Nothing Special   »   [go: up one dir, main page]

DM MS DanielaNeto

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 131

Daniela Sofia Pereira Neto

AFINAL O QUE É O ASSÉDIO SEXUAL?


AS REPRESENTAÇÕES DOS/AS ESTUDANTES DA
UNIVERSIDADE DE COIMBRA RELATIVAMENTE AO ASSÉDIO
SEXUAL

Dissertação no âmbito do Mestrado em Sociologia, orientada pela Professora


Doutora Madalena Duarte e apresentada à Faculdade de Economia da
Universidade de Coimbra.

Outubro de 2020
Daniela Sofia Pereira Neto

Afinal o que é o Assédio Sexual?


As Representações dos/as Estudantes da Universidade de Coimbra
relativamente ao Assédio Sexual

Dissertação no âmbito do Mestrado em Sociologia, orientada pela Professora Doutora


Madalena Duarte e apresentada à Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
para obtenção do grau de Mestre

Outubro de 2020
Para todas as mulheres que lutam pela
sua própria sobrevivência: que os silêncios sejam
preenchidos pelas suas vozes!
ÍNDICE

AGRADECIMENTOS ......................................................................................................... I

RESUMO ........................................................................................................................ II

ABSTRACT ..................................................................................................................... III

INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 1

PARTE I – ENQUADRAMENTO TEÓRICO

1. VIOLÊNCIA DE GÉNERO E SEXUAL – PISTAS PARA A TEORIZAÇÃO DO ASSÉDIO ........... 3


1.1. Violência de Género no privado e no público ...................................................... 3
1.2. Violência de género e interseccionalidade........................................................... 9
1.3. A face oculta da violência de género – a violência exercida por mulheres ........ 10
1.4. Violência entre pessoas do mesmo sexo............................................................ 13
1.5. A Violência Sexual .............................................................................................. 15

2. ASSÉDIO SEXUAL ...................................................................................................... 18


2.1. O Assédio enquanto Violência Sexual ..................................................................... 18
2.2. A invenção do conceito de assédio sexual – da esfera laboral ao estatuto da
sexualidade na teoria feminista ..................................................................................... 19
2.3. As definições de assédio sexual............................................................................... 21
2.4. O assédio sexual em Portugal ................................................................................. 26
2.5. O Piropo em Portugal – Assédio sexual ou elogio? ................................................. 30

3. ASSÉDIO E VIOLÊNCIA SEXUAL ENTRE JOVENS UNIVERSITÁRIOS/AS ......................... 33

PARTE II – ESTUDO EMPÍRICO

4. ESTRATÉGIAS METODOLÓGICAS .............................................................................. 37


4.1. Opções Metodológicas ............................................................................................ 40
4.1.1. Focus Group ................................................................................................................................ 40
4.1.2. Entrevista semiestruturada ........................................................................................................ 46
4.2. Análise de Dados ..................................................................................................... 47

5. AFINAL O QUE É O ASSÉDIO SEXUAL? ....................................................................... 50


5.1. Um olhar sobre as definições dos/as estudantes .................................................... 50
5.1.1. Qual a raíz da violência? ............................................................................................................. 54
5.1.2. Quem são as vítimas? ................................................................................................................. 55
5.1.3. Quem são os/as assediadores/as? ............................................................................................. 57
5.2. Representações sobre o feminino e o masculino.................................................... 58
5.3. Assédio sexual na Universidade de Coimbra? Análise do(s) quotidiano(s) dos/as
estudantes. ..................................................................................................................... 64
5.3.1. Contexto diurno .......................................................................................................................... 65
5.3.2. Contexto de sala de aula (por professores/as) .......................................................................... 66
5.3.3. Contexto de praxe académica .................................................................................................... 70
5.3.4. Contexto noturno – o caso das festas académicas .................................................................... 78
5.4. Combater o assédio sexual? O papel das instituições e campanhas de sensibilização
no contexto académico .................................................................................................. 83

REFLEXÃO FINAL .......................................................................................................... 92

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................... 99


ANEXOS
AGRADECIMENTOS
À Professora Doutora Madalena Duarte, pelo privilégio da sua orientação, por me motivar
sempre a ir mais além e pelo carinho com que ouviu todas as minhas inquietações ao longo
destes meses. Será sempre uma fonte de inspiração!

Aos meus pais e à minha irmã, Maria Carolina, por todo o amor e paciência. Um obrigada
do tamanho do mundo por me ajudarem a concretizar todos os meus sonhos e por nunca
me deixarem desistir.

À minha avó Carlota e ao meu avô Manuel, por todo o carinho e por me darem sempre
tanta força.

À Mariana Garrido, pela revisão, pelas críticas construtivas e pela amizade tão sincera. Por
mais voltas que dês ao mundo, sei que estarás sempre perto.

À Joana Gomes, pelos desabafos e pelas histórias que ficarão para a eternidade. Coimbra
foi e será o nosso ponto de encontro.

À Beatriz Ribeiro, pelas longas conversas e pela ajuda preciosa para esta dissertação.

Aos/às amigos/as do coração, que estiveram comigo ao longo destes meses, pelo carinho
e pela amizade: João Pedro Domingues, Ana Cláudia, Rute Gil, Diana Cruz, Carolina Pessoa
e Trezinha Santos.

Aos/às estudantes entrevistados/as, que gentilmente se deixaram conhecer e que


partilharam as suas histórias, o meu agradecimento mais profundo. Não esqueço também
aqueles/as com quem me cruzei neste caminho e que, inesperadamente, acabaram por
entrar na minha vida.

À Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e aos/às Professores/as que fizeram


parte deste meu percurso, por todos os ensinamentos.

Last, but definitely not least, a tantos/as outros/as que fizeram parte desta caminhada e
que, apesar de os seus nomes não se encontrarem escritos nesta folha, dificilmente os/as
esquecerei.
Aqueles que passam por nós, não vão sós, não nos deixam
sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós.
Antoine De Saint-Exupéry
Obrigada!

I
RESUMO
O objetivo da presente dissertação de mestrado consiste em analisar as representações
dos/as estudantes da Universidade de Coimbra relativamente ao assédio sexual. A
definição de assédio sexual tem sido marcada por várias incertezas e por uma pluralidade
de significados, desde o momento em que surgiu nos debates feministas, na década de
1970, até aos dias de hoje. É certo que o assédio é crescentemente reconhecido como um
grave problema social quando falamos na esfera laboral, mas o mesmo não se pode afirmar
relativamente a outras esferas da vida social.

Esta dissertação pretende contribuir para um maior conhecimento deste fenómeno, ainda
parcamente estudado em Portugal, através do estudo de um grupo populacional
específico: os/as estudantes universitários/as. Para tal, procurou-se compreender quais as
experiências e os significados que os/as estudantes atribuem ao assédio sexual; avaliar a
importância que assume no contexto académico; e conhecer os mecanismos existentes de
consciencialização e de denúncia. Esta análise é feita tendo em conta os discursos
normativos que constroem as imagens das mulheres, que enquadram o seu
comportamento e definem os seus papéis.

A presente investigação tem uma natureza qualitativa, assentando na análise de conteúdo


de focus group e de entrevistas. Os dados recolhidos permitiram perceber que as definições
de assédio sexual dos/as estudantes se afastam daquelas que conhecemos dos vários
diplomas e que os vários contextos onde estes/as se inserem, moldam as suas
representações relativamente ao fenómeno. Ao mesmo tempo, foi possível compreender
que tem sido dada pouca atenção à problemática no contexto universitário, o que tem
contribuído para que a sua prática continue a ser vivida em silêncio e reproduzida por
muitos/as estudantes.

A presente dissertação convida-nos, assim, a (re)pensar os caminhos que devem ser


trilhados para um maior reconhecimento do assédio sexual como uma forma séria de
violência assente na desigualdade de género.

PALAVRAS-CHAVE:

Assédio sexual; Representações; Violência de Género; Teorias Feministas; Ensino Superior.

II
ABSTRACT
The aim of this master’s degree dissertation is to analyse the representations made by the
students of the University of Coimbra regarding sexual harassment. The definition of sexual
harassment has been marked by several doubts and by a plurality of meanings from the
time it emerged in the 1970’s feminist debates to the present day. While it is true that
harassment is being increasingly recognized as a serious social issue when we discuss it in
the professional sphere, the same cannot be said of other spheres of social life.

This dissertation aims to contribute toward a greater knowledge of a phenomena which is


still poorly studied in Portugal, through the study of a specific populational group:
university students. To this end, we sought to understand what are the experiences and
meanings that students attribute to sexual harassment; to evaluate the importance it
assumes in the academic context; and to acknowledge the existing mechanisms for
awareness-raising and reporting. The analysis is carried out taking into account the
normative discourses that produce images of women, frame their behaviour and define
their roles.

This research is of a qualitative nature, relying on the content analysis of focus groups and
interviews. The gathered data allowed us to understand that the definitions of sexual
harassment among students are different from those we know from the legislation and
conventions, and that the contexts in which they are inserted, shape their representations
regarding the phenomena. Simultaneously, it was understood that little attention has been
given to the issue in the university context, which has contributed for the practice to
continue to be lived in silence and replicated by many students.

The present dissertation therefore invites us to (re)think the pathways that should be
travelled towards a greater recognition of sexual harassment as a severe form of gender-
based violence.

KEYWORDS:

Sexual harassment; Representations; Gender Violence; Feminist Theories; Higher


Education.

III
INTRODUÇÃO
O assédio sexual emergiu nos debates teóricos, amplamente difundidos pelos movimentos
feministas (radicais), na década de 1970, sob a definição de “atenção sexual não desejada”.
Catherine Mackinnon, uma das figuras mais proeminentes do movimento, espoletou o
argumento sociológico e legal de que o assédio constituía uma forma de discriminação com
base no sexo (Oliveira, 2014). O assédio sexual surgiu circunscrito à esfera laboral, imbuído
no pressuposto de uma relação hierárquica no local de trabalho. Deste modo, ressalva-se
a parca adaptabilidade, ainda nos dias de hoje, a outros contextos onde pode estar
presente.

Em Portugal, os estudos sobre o assédio sexual apareceram por volta dos anos de 1980,
com enfoque no contexto laboral (Silva, 2017). A Convenção de Istambul (ratificada em
2013) permitiu catapultar as atenções em torno do assédio sexual, uma vez que o
acomodou junto de outras formas de violência que têm tido destaque quer nas lutas
feministas, quer nas agendas políticas (idem). Ao mesmo tempo, despertou acesos debates
em torno do piropo e da sua consagração (ou não) na legislação portuguesa.

Dada a crescente visibilidade que a comunicação social tem vindo a conferir ao problema
do assédio sexual no seio da Universidade de Coimbra, principalmente em torno dos rituais
académicos, vários têm sido os debates em torno do fenómeno. Do ponto de vista teórico,
a literatura científica sobre este assunto é muito escassa.

O objetivo da presente dissertação é o de compreender as experiências e significados que


os/as estudantes conferem ao assédio sexual e a importância que lhe atribuem. Procura,
por isso, conhecer os vários contextos do quotidiano destes/as, compreender as dinâmicas
que lhes estão associadas e o modo como representam o assédio sexual em cada um desses
contextos. Por fim, pretende-se conhecer os mecanismos de consciencialização e de
denúncia que dispõem. Esta dissertação procura, assim, encontrar linhas de resposta para
a questão de partida: quais as representações dos/as estudantes da Universidade de
Coimbra relativamente ao assédio sexual?

Para responder a esta questão, optou-se por uma metodologia qualitativa e, atendendo a
população e o assunto a estudar, foram concretizadas quatro sessões de focus group a
estudantes da Universidade de Coimbra. Do mesmo modo, foram entrevistadas algumas

1
instituições, com o intuito de abordar pontos de descontinuidade que surgiram com a
análise dos focus group e para solidificar a importância que os/as estudantes lhes
atribuíram.

A primeira parte, relativa ao enquadramento teórico, está dividida em três capítulos. No


primeiro capítulo analisa-se a violência de género e aprofundam-se as discussões mais
relevantes para o assunto a estudar. São exemplos os debates teóricos em torno dos
conceitos género, poder e patriarcado; a tensão inerente à dicotomia público/privado.
Procura-se igualmente desconstruir os pressupostos teóricos em torno da
interseccionalidade, da violência entre pessoas do mesmo sexo e da violência exercida por
mulheres.

No segundo capítulo propõe-se a análise do assédio sexual, desde o momento em que


surgiu, até aos debates mais relevantes na atualidade. De igual modo, destrinçam-se as
bases teóricas em torno da delimitação dos conceitos de assédio sexual e procede-se à sua
problematização. Sublinha-se igualmente, neste capítulo, a centralidade que tem vindo a
assumir no contexto português, nomeadamente através do estudo em torno da
problemática e do enquadramento legal. Por fim, analisa-se o piropo e a discussão sobre
este conceito enquanto assédio sexual (ou não).

O terceiro capítulo visa informar sobre a investigação que tem vindo a ser empenhada em
relação ao estudo do assédio e da violência sexual entre jovens universitários/as.

A segunda parte da presente dissertação, destina-se ao estudo empírico. No quarto


capítulo inscreve-se a metodologia a utilizar, o problema de pesquisa, os objetivos e as
hipóteses. No quinto capítulo procede-se à análise empírica e apresentam-se os resultados
deste estudo.

Para encerrar a presente dissertação serão apresentadas as reflexões que os dados


recolhidos suscitaram. Embora estas pretendam contribuir para um maior conhecimento
sobre o assédio sexual em Portugal, assumem-se sobretudo como pistas para futuras
investigações.

2
PARTE I
ENQUADRAMENTO TEÓRICO
CAPÍTULO 1
VIOLÊNCIA DE GÉNERO E SEXUAL – PISTAS PARA A TEORIZAÇÃO DO ASSÉDIO

1.1. Violência de Género no privado e no público

A violência de género tem vindo a ser considerada um flagelo à escala mundial e encontra-
se profundamente enraizada na maioria das sociedades (Duarte, 2013; Neves, 2016). É,
deste modo, uma grave violação dos direitos fundamentais das mulheres em termos de
dignidade, igualdade e acesso à justiça (idem; FRA, 2014). Madalena Duarte (2013) diz-nos
que “[p]or todo o mundo, as mulheres são alvo de diferentes violências: violência
doméstica, violações, incesto, assédio sexual, tráfico para trabalhos forçados ou
prostituição, violência relacionada com dotes, crimes de honra, mutilação genital feminina,
entre outras” (idem, p. 57-58). As formas de violência referidas pela autora têm vindo a ser
designadas “violência de género” e distinguem-se por prejudicar homens e mulheres de
forma desproporcional (Aboim, 2013; Dias, 2008a; FRA, 2014).

As reflexões iniciais acerca desta forma de violência foram espoletadas por autores/as do
campo da saúde mental e começaram por privilegiar aquela que ocorria entre estranhos/as
(Duarte, 2013; Muehlenhard & Kimes, 1999). Eram igualmente privilegiadas as teorias em
torno do consumo de álcool e das infâncias problemáticas para explicar as condutas
violentas dos/as agressores/as (Bograd apud Mendes et al., 2013, p. 88). No encalce da
literatura de índole feminista, esta perspetiva foi sendo desconstruída e as atenções
voltaram-se para a delimitação dos conceitos em torno da violência contra as mulheres e
para o desenvolvimento de teorias que permitissem encontrar respostas para os
frequentes abusos (Muehlenhard & Kimes, 1999). A investigação permitiu dar respostas e
provar que a violência era cometida por homens “que acredita[va]m que o casamento lhes
confer[ia] direitos sobre as esposas e que a violência [era] um meio aceitável de exercer
esses direitos” (Bograd apud Duarte, 2013, p. 59). Esta perspetiva continua a ser sustentada
por autores/as que consideram que a violência contra as mulheres existiu desde sempre e,
mesmo nas sociedades atuais, é um meio a que os homens recorrem para disciplinar e
controlar as mulheres (Muehlenhard & Kimes, 1999), o que lhes é permitido pelas
estruturas sociais patriarcais.

3
Com o entusiasmo dos movimentos de mulheres na transição das décadas de 1960 e 1970,
estas questões começaram a ser partilhadas entre elas e permitiram que descobrissem que
tinham em comum, entre outros problemas, a violência de que eram alvo no seio familiar.
Descobriram, também, que não se tratava de um assunto individual ou pessoal, mas de
algo que assumia proporções de um problema social que carecia de respostas (Azambuja,
2008; Dias, 2008b; Tavares, 2008). Deste modo, as perspetivas feministas permitiram
desnudar o facto de as sociedades se encontrarem estruturadas com base no género, de
onde resulta(va) o exercício do poder por parte dos homens sobre as mulheres (Dias,
2008b).

A terminologia adotada para reportar esta forma de violência não é consensual. Desde
logo, realça-se que as definições assumem diferentes significados nas várias regiões e que
derivam de perspetivas teóricas distintas, propostas pelas diversas áreas de estudos (Heise
& Garcia-Moreno, 2002). Não obstante, a literatura julga incontestável o contributo dos
movimentos feministas para a definição e delimitação deste problema (Krook, 2020).
Inicialmente, foi empregue o desígnio “violência doméstica” porque foi neste âmbito que
o fenómeno começou por ser denunciado e estudado (Macedo, 2015). Todavia, para Dias
(2008b), o termo é alvo de contestação por incluir o incesto, a violação entre cônjuges, o
abuso de menores e o abuso contra pais, irmãos ou outros familiares. Na esteira de
Casimiro (2013), o conceito é ainda plausível de abranger a violência exercida por mulheres
no contexto doméstico e familiar. Por estas razões, a designação não encerra todos os
contornos que envolvem a violência de que as mulheres são alvo, nomeadamente o facto
de poder ocorrer noutros espaços que não o doméstico e de se revestir das mesmas
caraterísticas – as desigualdades com base no género. Para fazer face a este problema,
Duarte (2013) diz-nos que foram considerados outros conceitos para enquadrar esta forma
de violência, como são exemplos os desígnios “violência contra as mulheres”, “violência na
intimidade”, “violência nas relações conjugais”, entre outros. Estes destacam-se, do
mesmo modo, pela inadaptabilidade aos contextos em que se desenrolam, dado o enfoque
na esfera doméstica, o que remete para a família, tradicionalmente identificada com o
casamento. Assim, excluem outros tipos de relações de intimidade e situações onde não
há qualquer vínculo, mas onde predominam os abusos. Também o conceito “violência
contra as mulheres” é incapaz de solucionar este problema porque deixa de fora a violência

4
que é dirigida contra os homens e que se reveste das mesmas caraterísticas, tal como
pretendo desconstruir mais adiante.

Para combater estas lacunas, Duarte (2013) elucida que:

[...] começa a desenhar-se uma tendência para se falar de violência de género,


que enquadra atos de violência com base no género, cometidos, quase
exclusivamente, por homens contra mulheres e sustentados pelas normas
culturais, sociais e religiosas e pelas desigualdades económicas (Duarte, 2013, p.
60).

No âmbito da presente dissertação e porque o assédio sexual extravasa a esfera familiar e


as relações de intimidade, opto por usar o termo “violência de género”. Este, é suscetível
de abranger a violência que é dirigida contra uma pessoa devido ao seu género, à sua
identidade ou expressão, ou aquela que afeta de forma desproporcionada indivíduos de
um género em particular (Lisboa et al., 2009). Nos pontos seguintes abordo, ainda que de
forma sucinta, as discussões que considero mais relevantes em torno deste conceito.

A teoria feminista tem sido atraída para a ideia de que é no cruzamento entre género,
poder e patriarcado que se circunscrevem as raízes históricas da opressão das mulheres
(Dias, 2008b; Hunnicutt, 2009). Sylvia Walby (1990) revela-nos que o patriarcado é um
sistema de estruturas sociais no qual os homens dominam e oprimem as mulheres.
Justifica-se, por isso, a relevância da sua análise, uma vez que nos informa sobre a origem
da opressão das mulheres (Murray, 1995). Assim, é com base nos pressupostos patriarcais
que se confere aos homens “o direito a bater na mulher” (Siegel apud Silva, 2017, p. 77) e
também o que lhes permite controlar e determinar a conduta destas. Ao mesmo tempo,
recebem tolerância por parte da sociedade para punir o que se lhes apresenta como desvio
(Dias, 2010; Saffioti, 2001; Sousa, 2016).

A análise do género é igualmente meritória porque é um dos primeiros e principais eixos


que estruturam as nossas sociedades. Como argumenta Joan Scott (2008), “o género é o
primeiro domínio com o qual ou através do qual o poder se articula” (idem, p. 66) e é a
partir dele que se confere aos homens o exercício do poder sobre a mulher, de acordo com
a regra patriarcal (Dias, 2008b). Assim, a investigação trilhada pelos feminismos acerca da
violência de género tem na sua origem as desigualdades hierárquicas que resultam das
diferenças entre o feminino e o masculino e dos discursos que são construídos à sua volta
(Duarte, 2013).

5
A célebre afirmação de Simone de Beauvoir (2015) “ninguém nasce mulher: torna-se
mulher” (idem, p. 14) permitiu introduzir e usar o “género” como instrumento contra as
interpretações biológicas (Duarte, 2013). A este respeito, Carol Pateman (2003) afirma que:

[...] o “género” foi introduzido como uma arma crucial na luta contra o
patriarcado. O pressuposto patriarcal é o de que as mulheres são naturalmente
submissas aos homens, submissão essa que é devida à sua biologia, ao seu sexo.
O referir do género em vez do sexo prova que a posição das mulheres não é
ditada pela natureza, pela biologia ou sexo, mas é uma questão de invenção
social e política (idem, p. 36).

Tal como reivindica Gisela Bock (2008), o “género” tem vindo a ser usado a fim de informar
que o estado de subordinação, de inferioridade e de falta de poder das mulheres não é
ditado pela natureza. Pelo contrário, encontra-se alicerçado nas construções sociais,
culturais, políticas e históricas que não habitam apenas nos espaços domésticos e privados,
como se cruzam e interpelam nas diversas esferas da vida pública das mulheres. Perante
esta aceção, a violência de género encontra-se estreitamente associada ao
desenvolvimento histórico das relações familiares e à divisão e tensão entre os domínios
público e privado (Dias, 2008b). Assim, é relevante analisar e discutir os principais
argumentos e perspetivas que envolvem esta tensão.

A dicotomia público/privado1 é historicamente variável e traduz os vários processos de


organização das sociedades ocidentais da modernidade. A esta distinção reconhece-se,
ainda, o papel central na teoria liberal, onde se inscrevem as ambiguidades que resultam
das práticas e pressupostos patriarcais. Estas ambiguidades, como se pretende
demonstrar, encontram-se profundamente enraizadas e têm consequências drásticas,
principalmente para as mulheres (Aboim, 2012; Okin, 2008).

Simone de Beauvoir (2015) revela que “a história [nos] mostrou que os homens detiveram
sempre todos os poderes e julgaram útil manter as mulheres em estado de dependência”
(idem, p. 243). Este corolário demonstra que sempre coube aos homens ditar os espaços
que as mulheres ocupam ou devem ocupar, desde o seu nascimento (Dias, 2010; Melo &
Menta, 2013). Assim, estas têm vindo a ser encaradas como propriedade e incumbidas de
ocupar a esfera privada (Dias, 2010) e aos homens cabe o domínio da esfera pública (Melo
& Menta, 2013; Okin, 2008).

Para a análise desta dicotomia, sigo de perto a contextualização trilhada na Tese de Doutoramento de
1

Madalena Duarte (2013).

6
Com a emergência do feminismo radical, acomodado ao slogan “o pessoal é político”, a
tensão em torno da dicotomia tornou-se mais evidente:

Assim, numa tentativa de politizar o pessoal, as feministas, sobretudo radicais,


procuraram demonstrar que o poder e as práticas políticas e económicas estão
estritamente relacionados com as estruturas e práticas da esfera doméstica e
que, consequentemente a injustiça das leis existentes se deve a uma estrutura
omnipresente da dominação masculina – patriarcado – que começa no espaço
privado e se expande para a esfera pública e instituições políticas (Duarte, 2013,
p. 71).2

A crítica inerente a esta corrente manifesta-se contra o feminismo liberal, que reclamava
para as mulheres os direitos dos homens (Duarte, 2013). A literatura diz-nos que as
reivindicações desencadeadas por esta corrente não procuraram desafiar o papel da
mulher no interior da família, mas tão somente a defesa dos direitos e oportunidades
destas (e.g. educação, sufrágio), com o argumento de que fariam delas esposas e mães
melhores (Okin, 2008). Ainda que as lutas do feminismo liberal tenham reclamado a
igualdade de direitos na esfera pública, as mulheres acabaram por aceitar o seu vínculo à
esfera doméstica e, portanto, a responsabilidade por esta foi sendo natural e inevitável
(idem). Em contrapartida, o feminismo radical procurou demonstrar, com o slogan referido
anteriormente, que a cidadania não se exerce apenas no espaço público, mas também na
intimidade e que estes dois espaços estão interligados. Direcionou, por isso, a sua
combatividade para a instituição família (privado), por julgar que nela residia a maior fonte
de opressão das mulheres (Duarte, 2013). Assim, quando as feministas radicais defendem
a separação das duas esferas (Okin, 2008), pretendem desconstruir a neutralidade entre
estas e demonstrar que é nesta relação que as desigualdades de género são continuamente
(re)produzidas (Aboim, 2012).

Se, como afirma Duarte (2013), “o que acontece na vida pessoal não é imune em relação à
dinâmica de poder entre os sexos nem isolado da vida pública” (idem, p.72), é
imprescindível equacionar a possibilidade de o poder patriarcal, no espaço privado, ser
transferido para o espaço público. Nesta senda, é importante dissecar o modo como o
patriarcado se conecta com outros espaços estruturais (cf. Walby, 1990).

2
Embora o enfoque da citação seja a legislação, nomeadamente com a alusão à “injustiça das leis”, dado que
é o ponto chave da tese defendida por Duarte (2013), o que se pretende aqui destacar é a expansão do
patriarcado do espaço privado para o espaço público.

7
No âmbito da presente dissertação destaco a relação entre o patriarcado e o espaço
estrutural da Economia, voltado para o mercado, ou seja, para o sistema capitalista3. A
literatura não é consensual a este respeito. Há autores/as que defendem que a interação
entre o patriarcado e o sistema capitalista é conflituosa (Walby apud Duarte, 2013, p. 80)
e realçam que o capitalismo não foi eficaz ao ponto de abolir o sistema patriarcal (Walby,
1990). Aliás, destacam que foi uma porta de entrada para que a violência se articulasse
com outras formas de opressão, como é o caso da classe social (Duarte, 2013). Outros/as
autores/as defendem que a emergência do capitalismo apenas tornou mais explícita a
subordinação das mulheres (idem). Especial atenção será dada à primeira perspetiva,
embora não se possa negligenciar a segunda.

Duarte (2013) diz-nos que do espaço da economia e do mercado de trabalho, por via das
classes sociais, resultam relações de exploração e precarização das mulheres. Deste modo,
o que se pretende demonstrar é que ao mesmo tempo que o patriarcado confina as
mulheres ao espaço doméstico e à esfera privada, ao trabalho da criação dos/as filhos/as
e manutenção familiar (Bock, 2008), o capitalismo é responsável por as empurrar para fora
de casa, para o mercado e para a esfera laboral (Ferreira apud Duarte, 2013, p. 80). Por sua
vez, é nestes espaços que as mulheres são alvo dos efeitos perversos do patriarcado.

O efeito mais explorado pela literatura diz respeito à divisão igualitária do trabalho, dado
que o mercado incita as mulheres a participar nele de forma injusta. Assim, uma vez que o
sistema se mantém favorável aos homens, as mulheres acabam por ser excluídas dos
melhores empregos. O mesmo acontece quando falamos em estratégias, ainda que
informais, relacionadas com a distribuição dos cuidados domésticos e cujo objetivo é a
viabilização da paridade, onde estas, não raras vezes, são sobrecarregadas com as tarefas
domésticas, com a prestação de cuidados e o seu trabalho é continuamente expropriado
(Aboim, 2012). A perversidade estende-se, também, à violência de que são alvo nestes
espaços. Neste encalce, o assédio sexual no local de trabalho revela as mesmas
caraterísticas e resquícios da violência que as mulheres sofrem na esfera privada e que, por
via da contaminação das esferas, constitui um dos principais obstáculos para o exercício da

3
É relevante clarificar que o capitalismo está presente tanto no espaço público, como no espaço privado, e
que o espaço público não se restringe apenas ao capitalismo. Importa também referir que se procurou fazer
apenas referência aos espaços mais relevantes para o estudo do assédio sexual.

8
cidadania plena por parte destas (Duarte, 2013; Magalhães, 2011). Embora se tenham
lançado aqui as bases para esta reflexão, este tópico será desenvolvido no Capítulo 2.

1.2. Violência de género e interseccionalidade

As teorias feministas que advêm das correntes pós-coloniais trouxeram um desafio à


teorização em torno da violência de género, que analisamos anteriormente, que se prende
com a necessidade de articular o género com outras formas de opressão (Duarte, 2013;
Walby et al., 2012). Ainda que a categoria “género” seja bastante profícua para explicar a
violência de que as mulheres são alvo, as críticas do feminismo pós-colonial demonstram
que não é suficiente para dar conta das desigualdades e diferenças entre as próprias
mulheres e que se inscrevem dentro do próprio género feminino (Branco, 2008). É neste
cenário que João Oliveira (2010) informa que, “ainda que a opressão sexista seja uma
experiência comum a todas as mulheres, não é suficiente para homogeneizar esta
experiência” (idem, p. 29). O autor denuncia, assim, a urgência de teorizar o género na sua
relação com outras estruturas de opressão (Duarte, 2013).

Kimberlé Crenshaw (1991) partiu da invisibilidade de mulheres afroamericanas num estudo


sobre a violência doméstica e questionou o porquê de estas serem continuamente
apagadas pelos silêncios estratégicos do racismo e do feminismo (Walby et al., 2012). Para
responder a este problema, a autora deu origem ao termo “interseccionalidade”, de forma
a capturar as consequências da interação entre dois ou mais eixos de subordinação. Assim,
este conceito tem sido usado a fim de dar conta do modo como a raça, a classe, o género,
a sexualidade, a etnia, a nacionalidade ou a idade operam na relação com a(s) violência(s)
de que as mulheres são alvo. Estas categorias não atuam como unidades isoladas ou
enquanto individualidades mutualmente exclusivas, mas como fenómenos que,
construídos reciprocamente, moldam e originam desigualdades sociais complexas (Collins,
2015; Crenshaw, 1991). A interseccionalidade informa-nos, assim, sobre as múltiplas
pertenças categoriais e ganha corpo no modo como o sistema das várias experiências de
discriminação gera mecanismos de exclusão e de controlo social para as mulheres. Recorre-
se, também, a este conceito para perceber de que forma os diferentes conjuntos de
identidades têm impacto no acesso das mulheres aos direitos e às oportunidades (Branco,
2008; Oliveira, 2010).

9
É perante esta aceção que João Oliveira (2010) defende que, com as lentes da
interseccionalidade, “a teoria feminista deixa de querer habitar nesse espaço da “mulher”
e passa a querer entender as imbricações das várias multitudes contidas nessas mulheres”
(idem, p. 30). Esta perspetiva tem, assim, permitido romper com as conceções mainstream
acerca da violência contra as mulheres, nomeadamente a ideia de que a violência as afeta
apenas devido ao seu género (Duarte, 2013). Esta teoria é imprescindível no estudo da
violência de género porque nos informa que as mulheres experienciam, simultaneamente,
diferentes formas de opressão que compõem obstáculos e constrangimentos à sua
cidadania plena. Realça-se, por via do que aqui se discute, que a violência não é um
fenómeno homogéneo porque afeta mulheres, mas heterogéneo, uma vez que estas estão
imersas em contextos sociais onde se cruzam diferentes sistemas de poder (Branco, 2008;
Duarte & Oliveira, 2012).

1.3. A face oculta da violência de género – a violência exercida por mulheres

Sob a premissa de que homens e mulheres podem ser tanto vítimas como
perpetradores/as de atos violentos, como já anteriormente referi, é importante
reconhecer que as caraterísticas das formas de violência que habitualmente afetam as
mulheres se distinguem das que atingem os homens (Heise & Garcia-Moreno, 2002). Estes,
não raras vezes, são mortos ou agredidos em lutas ou conflitos e são, com maior
regularidade, os perpetradores da violência que é exercida sobre as mulheres. A literatura
diz-nos que o traço mais significativo que marca a diferença entre a vitimação masculina
comparativamente à feminina predomina na natureza da violência. No caso das mulheres,
é permeada pelas desigualdades de género, o que contrasta com a que maioritariamente
afeta os homens, cuja vitimação é idêntica à que é verificada na população em geral (Lisboa
et al., 2009).

As mulheres não são consideradas as habituais perpetradoras de atos violentos, por isso,
muitas vezes, a literatura de índole feminista aponta a violência de género como algo
exclusivo destas (Carmo et al., 2011; Machado & Matos, 2014). É importante não
negligenciar que o problema não se limita ao sexo feminino e, por este motivo, a
investigação tem procurado expor e problematizar esta face oculta.

10
Como já atrás se referiu, as teorias feministas têm vindo a sustentar que a violência tem no
seu epicentro o patriarcado enquanto sistema de opressão que, por sua vez, tem na sua
base as desigualdades entre os géneros. Este argumento, de acordo com algumas visões,
cola a mulher a um lugar de vítima e de passividade:

É justamente nesta senda que a perspetiva feminista radical, não só se revela


incapaz de conceber a figura da mulher como potencial agressora, situando-a
permanentemente na posição de vítima como, ao fazê-lo, associa a sua imagem
à de um ser completamente indefeso, inábil e desprovido de capacidade de
(re)acção (Casimiro, 2013, p. 17).

De acordo com esta perspetiva, é fulcral entender os comportamentos atribuídos ao


feminino e ao masculino por via dos papéis sexuais. Assim, propõe-se analisar o modo
como estes têm vindo a contribuir quer para a manutenção da invisibilidade da violência
exercida pelas mulheres, quer para reforçar o modo como têm sido tradicionalmente
aceites e reproduzidos (Casimiro, 2013).

Recuperando os postulados teóricos de Simone de Beauvoir, sublinha-se uma relação de


causalidade de acordo com a qual ser-se de um determinado sexo é tornar-se um dado
género. Judith Butler (2017) rompe com este pressuposto ao afirmar que,
independentemente da intratabilidade biológica que o sexo pareça ter, o género é uma
construção social. De acordo com a teoria proposta pela autora, a “mulher” não precisa de
ser a construção do corpo feminino, tal como o “homem” não precisa de interpretar apenas
corpos masculinos. Assim, o género deixa de ser interpretado como algo que se tem, mas
como algo se vai fazendo e a ser concebido enquanto ato performativo (Nogueira, 2001;
Pereira, 2009, 2013). Na abertura de um espaço em que os indivíduos podem “fazer
género”, manifestam-se diferentes formas de “ser mulher” e de “ser homem” construídas
por meio de papéis atribuídos a cada género pela sociedade. Estes papéis, por sua vez, são
o conjunto de expectativas relacionadas com os comportamentos que cada sexo deve
desempenhar (Carrito & Araújo, 2013) e ditam o modo como as mulheres e os homens se
devem comportar, de acordo uma grelha de normas e atos que se espera que executem
(Amâncio, 1993, 1994; Oliveira & Amâncio, 2002).

Nas últimas décadas temos assistido a mudanças no modo como, tanto os homens como
as mulheres, constroem a sua identidade de género, destacando-se o abandono dos papéis
que tradicionalmente lhes vinham a ser atribuídos. Contudo, persistem imagens que têm
sido preservadas pela sociedade (Casimiro, 2013): a mulher como afetuosa, carinhosa,

11
meiga e sensível; o homem enquanto forte, corajoso, assertivo e agressivo (Amâncio, 1992,
1993, 1994).

A violência encontra-se ligada à masculinidade e ancorada a estereótipos de acordo com


os quais os homens são mais fortes do que as mulheres e, por isso, manifestamente menos
propensos de lhes ser imputada a ideia de vitimação (Carmo et al., 2011). Contrariamente,
quando são vítimas, há alguma dificuldade em categorizar os atos enquanto violência, dado
que não é esperado que o sejam por via dos papéis que lhes são atribuídos pela sociedade.
Do mesmo modo, há a ideia de que, caso se encontrem no papel da vítima, sejam capazes
de se defender, o que contribui para a manutenção dos papéis sexuais tradicionalmente
aceites (Costa et al., 2011).

Do lado das mulheres é igualmente relevante romper com o mito de que não são violentas
e revelar esta faceta. Vera Duarte (2013), embora recorra ao conceito de delinquência no
seu trabalho teórico, evidencia alguns traços da violência exercida pelas mulheres. Desde
logo, comprova o modo como as representações tradicionais sobre os papéis de género
alimentam definições sustentadas na associação da violência à masculinidade, símbolo de
poder e virilidade e que não encaixa na feminilidade. Assim, a autora propõe que esta
discussão seja feita a partir da matriz da transformação dos papéis atribuídos às mulheres
pela sociedade. Neste exercício, a autora salvaguarda, ainda, que homens e mulheres estão
cada vez mais presentes nos mesmos espaços e, por isso, sujeitos/as às mesmas tensões.
Nesta senda, sugere que se possam repensar as categorias da violência exercida por
mulheres, para que deixem de ser conceitos vazios que colonizam definições em função da
violência que é exercida pelos homens. De modo concreto, a autora pretende que se deixe
de habitar nas conceções tradicionais acerca dos papéis sexuais e chama a atenção para as
suas múltiplas expressões e contextos envolventes (idem; Duarte & Carvalho, 2013).

Ressalva-se, também, a dificuldade que a sociedade tem em percecionar a mulher como


alguém capaz de exercer violência e de perpetrar um crime. Ao longo dos anos, tem vindo
a perpetuar-se a ideia de que o lugar da mulher no crime é o da vítima e não o da criminosa.

Os homens cometem crimes. A criminalidade é um topos da masculinidade.


“Crime” evoca força, violência, falta de compaixão, insensibilidade pelo
sofrimento alheio. Coisas de que os homens são capazes. As vítimas serão
mulheres. A vítima é um ser indefeso, violentado, inocente ou provocador
mesmo sem querer. A vitimização corresponde a uma certa essência da
feminilidade.

12
Quando estes papéis se invertem, o desvio (o desvio à “normalidade do desvio”
que é a criminalidade) acentua-se. A mulher que mata não é “simplesmente”
homicida, é um monstro (Beleza, 2004, p. 32).

Para Duarte (2013), as mulheres, não raras vezes, são sancionadas de modo mais severo
pela sociedade, uma vez que esta se baseia numa dicotomia de género fortemente
ancorada à agressividade/passividade (idem). Quando a mulher comete um crime, há uma
mudança paradigmática em torno dos papéis sexuais: por um lado, assiste-se ao
afastamento dos papéis tradicionais e à desconstrução do mito de que a mulher não é
agressiva; por outro lado, observa-se a desvalorização, por parte dos homens, da violência
de que são alvo, dado que os papéis sexuais ditam quem pode perpetrar a violência e quem
deverá ser a vítima (Barros et al., 2019).

1.4. Violência entre pessoas do mesmo sexo

Os estudos sobre a violência de género têm privilegiado aquela que ocorre entre homens
e mulheres e descurado outras facetas que se encontram inexploradas, como é o caso da
violência entre pessoas do mesmo sexo. Embora seja uma realidade indesmentível na
sociedade, tem permanecido silenciada (Santos, 2012; Topa, 2010).

Conforme demonstra a literatura, a violência entre pessoas do mesmo sexo revela o


mesmo grau de incidência em relação àquela que ocorre entre pessoas de sexos diferentes
(Matthews et al., 2002) e apresenta caraterísticas e dinâmicas semelhantes a qualquer
manifestação de violência (Topa, 2010). No entanto, o fenómeno reveste-se de
particularidades, como o facto de questionar alguns preceitos feministas, os quais importa
sublinhar (idem). Como referi anteriormente, a violência tem sido associada às relações de
género desiguais e, por isso, este caso paradigmático desconstrói esse preceito, dado que
não se verificam desequilíbrios entre os géneros. Ao mesmo tempo, é imprescindível
refletir sobre o estatuto minoritário que as relações entre pessoas do mesmo sexo têm na
sociedade. Assim, é fulcral compreender os conceitos interseccionalidade e masculinidade
hegemónica (Elísio et al., 2018).

Tal como sublinha Santos (2012), “importa considerar o fenómeno da violência desde um
ponto de vista caleidoscópico, que englobe as suas múltiplas facetas e nuances” (idem, p.
14). A abordagem feminista interseccional, explorada anteriormente, compõe uma

13
ferramenta imprescindível para o estudo desta forma de violência porque permite
compreender os vários eixos de opressão dentro da sociedade (Elísio et al., 2018), nos quais
se encontra a sexualidade.

Recuperando as discussões em torno do género que expus anteriormente, é crucial analisar


a teoria de Robert Connell (1997) em torno da(s) masculinidade(s), a qual estabelece que
a masculinidade se refere ao modo como cada sociedade interpreta os corpos masculinos
e a feminilidade por correspondência ao feminino (Carrito & Araújo, 2013). Ambas não são
fixas, porque cada uma delas é internamente complexa e contraditória. Assim, ao assumir
que existem várias masculinidades, o autor usa o conceito de masculinidade hegemónica
para destacar aquela que é sobrevalorizada em cada espaço-tempo em relação às
restantes. Trata, a título de exemplo, da forma como os homens se apropriam do papel
masculino ideal (Elísio et al., 2018), de manter a dominação masculina sobre as mulheres e
de manter igualmente em estado de dependência outras formas de masculinidade (Oliveira
& Amâncio, 2002). É, inclusive, o que ensina os homens a desejar mulheres e a desprezá-
las, a ter medo de outros homens e a desenvolver entre si a ideia de companheirismo
(Saavedra, 2004).

A literatura estabelece que as diferenças entre a violência perpetrada entre pessoas de


sexos diferentes e aquela que ocorre entre pessoas do mesmo sexo estão no facto de lhes
estar associado um contexto heterossexista e heteronormativo (Brown, 2008; Elísio et al.,
2018; Santos, 2012). Portanto, é imprescindível entender o modo como corpos, pessoas,
práticas e normas sofrem processos de naturalização em detrimento de outros géneros,
formas ou expressões não-normativas (Costa et al., 2010).

A heterossexualidade é a forma usada para interpretar relações sociais a partir das quais
se caraterizam pessoas como sendo feminino e masculino (Barros et al., 2019). Enquanto
categoria e estrutura de poder, tem vindo a ser privilegiada e normalizada (Costa et al.,
2010). Por sua vez, o heterossexismo tem sido usado para referenciar o sistema ideológico
que nega e estigmatiza qualquer forma de comportamento, identidade ou comunidade não
heterossexual (Moita, 2006).

[...] não se trata de ver apenas a existência de diferentes orientações sexuais,


trata-se antes de reconhecer que as sociedades reproduzem ativamente
determinadas formas de sexualidade em detrimento de outras – que tentam
manter controladas enquanto minoritárias (Elísio et al., 2018, p. 51).

14
O problema da violência entre pessoas do mesmo sexo prende-se sobretudo com a
dificuldade que as pessoas têm em lidar com a sua orientação sexual, que por si só as
remete à discriminação. Por outro lado, uma vez que a problematização da violência de
género tem sido feita em torno das desigualdades entre os géneros, há alguma dificuldade
em categorizar as vivências e experiências desta índole, que ocorrem entre pessoas do
mesmo sexo, enquanto tal. Por fim, atendendo que as vítimas sentem culpa por viver uma
ordem de género “fora da norma” (Elísio et al., 2018), não raras vezes, acreditam que são
merecedoras ou culpadas e que esta situação surge como castigo face à sua orientação
sexual perversa (Nunam apud Costa et al., 2010, p. 7). O estigma é o que conduz à
desvalorização e silenciamento da violência entre pessoas do mesmo sexo.

1.5. A Violência Sexual

A violência sexual constitui uma das dimensões da violência de género4 que, pela sua
natureza, não sobressai e que pode estar associada à coocorrência de outras formas de
violência (Lisboa et al., 2009). Esta, informada pela desigualdade histórica das mulheres nas
sociedades, nem sempre foi considerada uma grave violação de direitos, particularmente
das mulheres, dado que foi, durante muito tempo, socialmente tolerada e desvalorizada
(Mendes, 2016; Mota, 2020; Ventura, 2018).

A literatura diz-nos que a violência sexual tem vindo a ganhar interesse na gramática e na
academia portuguesa (Ventura, 2018). Apesar disso, do ponto de vista sociológico, tem sido
um assunto pouco explorado e marcado pela inexistência de uma definição uniformizada.
Desde logo, é importante referir que os conceitos sugeridos pelos/as diferentes autores/as
e pelas organizações, apresentam variações, o que torna difícil obter uma definição clara e
passível da sua delimitação. Dado que os conceitos são informados pela investigação,
enuncio as principais pistas que mostram o caminho trilhado neste âmbito (Lisboa et al.,
2009).

Os primeiros estudos acerca da violência sexual remontam à década de 1970, momento


em que também a violência contra as mulheres foi desnudada e denunciada. Surgiram,

4
As Convenções, Diplomas, documentos oficiais e a literatura apontam que a violência de género pode
ocorrer sob a forma física, psicológica e sexual (Krug & Dahlberg, 2002).

15
inicialmente, comprometidos com o pressuposto de que as situações mais comuns de
violência sexual eram aquelas em que a vítima era violada por estranhos/as (Lisboa et al.,
2009; McMahon, 2011). Por esta razão, as definições em torno do conceito, eram
figurativas deste pressuposto e do enquadramento legal conhecido no momento, o qual
tinha especial enfoque na penetração vaginal, no uso da força física e na ausência de
consentimento (Spohn and Horney apud FAL, 2019, p. 14). A investigação permitiu
desconstruir estes pressupostos e provou que a violação era um fenómeno mais frequente
do que se julgava até então. Provou, ainda, que a maior parte dos episódios de violência
sexual não se coadunavam nos estereótipos que eram considerados até ao momento
(Martins, 2012; Muehlenhard & Kimes, 1999). No caso das violações, ocorriam
principalmente entre indivíduos que se conheciam, o que gerou uma alteração significativa
(embora gradual) na forma como a violência sexual estava a ser estudada e interpretada.
Assim, começaram a ser abordados os seguintes conceitos: wife rape, para o caso de
mulheres agredidas no âmbito de uma relação conjugal; e date rape, para reportar as
violações no contexto do namoro ou saídas ocasionais. Ao debruçar as atenções sobre estes
dois conceitos, os estudos mostraram que, por se desenrolarem principalmente no âmbito
das relações de intimidade, não raras vezes no contexto de namoro, as situações não
chegavam a ser denunciadas e reportadas (Caridade & Machado, 2013; Fisher et al., 2000;
Martins, 2013; Muehlenhard & Kimes, 1999; Santos & Caridade, 2017). Permaneciam, por
isso, omissas e acabavam por não ser englobadas e espelhadas na maioria das definições.

Com vista ao alargamento do conceito, os estudos sugeriram o enquadramento de outras


tipologias, as quais permitiram compreender que a violência sexual pode ocorrer em
múltiplos contextos, desde a família, emprego ou espaços públicos. À semelhança das
restantes formas de violência de género, envolve um conjunto de atos que nem sempre
foram considerados violentos e que podem ser cometidos por pessoas conhecidas ou não
da vítima (Lisboa et al., 2009). Assim, tem vindo a ser conceptualizada sob uma amplitude
de comportamentos sexualmente violentos e concebida por várias instâncias tanto
nacionais, como internacionais, tal como é o caso da Organização Mundial de Saúde, como:

[...] todos os atos sexuais ou tentativas para obtenção de atos sexuais,


comentários sexuais não consentidos, ações contra a sexualidade de uma pessoa,
através do uso da coação sexual, por qualquer pessoa, independentemente da
relação com a vítima, em qualquer ambiente, incluindo, mas não se limitando a
ambientes como casa e trabalho (Krug & Dahlberg, 2002).

16
Embora a maioria das vítimas de violência sexual pertença ao sexo feminino, não se podem,
de modo algum, silenciar as do sexo masculino (Krug & Dahlberg, 2002). Recuperando a
discussão em torno dos papéis sexuais, tem-se perpetuado a ideia de que os homens são
invulneráveis, não têm controlo, do mesmo modo que as mulheres têm sido encaradas
como vulneráveis, passivas e reduzidas a objetos disponíveis para os homens
(Muehlenhard & Kimes, 1999). A não ser o caso da infância e do abuso sexual de menores,
no qual se inclui o sexo masculino, a violência sexual sobre os homens tem sido pouco
investigada (Prazeres et al., 2014). A literatura diz-nos que uma parte substantiva da
violência sexual que é perpetrada contra estes ocorre no seio de relações entre pessoas do
mesmo sexo. Destacam-se, também, as violações, entre outras formas de coação sexual,
no contexto prisional e o facto de serem ferramentas usadas para manter a disciplina e o
respeito (Krug & Dahlberg, 2002). Assim, o estudo do fenómeno da violência sexual
apresenta limitações, dado que os ditames do género ancorados nos valores e tradições de
caráter sexista, que atribuem aos homens o controlo da sexualidade das mulheres, tomam
como inadmissível que possa ocorrer contra eles mesmos (idem).

17
CAPÍTULO 2
ASSÉDIO SEXUAL

2.1. O Assédio enquanto Violência Sexual

Entre os conceitos associados à violência sexual destaca-se o de “assédio”, por ser o que
espelha a maioria dos comportamentos relacionados com esta forma de violência e o que
levanta maiores dificuldades na sua definição e delimitação (Lisboa et al., 2009). Este
conceito encontra-se definido na Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o
Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, comummente designada
Convenção de Istambul, como:

Qualquer tipo de comportamento indesejado de natureza sexual, sob a forma


verbal, não-verbal ou física, com o intuito ou o efeito de violar a dignidade de
uma pessoa, em particular quando cria um ambiente intimidante, hostil,
degradante, humilhante ou ofensivo.5

Realço a definição redigida na Convenção de Istambul porque foi esta que permitiu
acomodar o assédio sexual junto de outras formas de violência de género que têm tido
destaque tanto nas lutas feministas, como nas agendas políticas (Silva, 2017). Deste modo,
o diploma é voltado para o reconhecimento de que o assédio sexual é uma forma de
violência de género que não sobressai, mas que afeta desproporcionalmente as mulheres
(Sottomayor, 2015).

É premente sublinhar que envolve comportamentos de caráter sexual que vão desde o
piropo (entendido como galanteio) até à própria violação (Amâncio & Lima, 1994). Nem
sempre as condutas que engloba foram ou são interpretadas enquanto violência, o que
requer um enquadramento passível de mostrar o modo como surgiu e foi estudado.

5
Definição redigida no artigo 40.º da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à
Violência Contra as Mulheres e a Violência Doméstica, adotada em Istambul, a 11 de maio de 2011, aprovada
por Portugal, publicada na resolução da Assembleia da República n.º 4/2013, de 21 de janeiro e em vigor a 1
de agosto de 2014. Consultada em
http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=1878&tabela=leis

18
2.2. A invenção do conceito de assédio sexual – da esfera laboral ao estatuto da
sexualidade na teoria feminista6

Foi a partir dos relatos das experiências de mulheres trabalhadoras no âmbito de um curso
intitulado “Women and Work”, que Lin Farley cunhou e atribuiu o desígnio “assédio sexual”
às experiências narradas (Dias, 2008; Torres et al., 2016). Estas experiências referiam-se
sobretudo ao abuso de mulheres trabalhadoras por parte dos seus superiores (Zippel apud
Torres et al., 2016, p. 46). De igual modo, aludiam à “atenção sexual não desejada”, dado
que as situações passavam pela exigência explícita ou implícita, por parte de superiores, a
que as mulheres, suas subordinadas, se mostrassem sexualmente disponíveis (Crouch,
1998; Torres et al., 2016). Neste âmbito, a autora considerou que o assédio consistia num
comportamento masculino, de natureza sexual indesejada e não recíproco (Crouch, 1998;
Dias, 2008a), e que até então fazia parte do pressuposto de ter ou manter um emprego.

Para Ana Silva (2017), embora a invenção do conceito tenha sido reclamada por Lin Farley,
“Catherine MacKinnon seria a grande impulsionadora” (idem, p. 42). O argumento que se
encontra na base desta afirmação é o de que esta autora permitiu dar o salto entre uma
perceção isolada do assédio sexual, do domínio das ofensas interpessoais, para uma
perspetiva mais ampla de subordinação das mulheres em relação aos homens (ibidem).
Assim, foi MacKinnon que fabricou o argumento sociológico e legal de acordo com o qual
esta experiência constitui uma forma de discriminação com base no sexo (Oliveira, 2014).
De outro modo, espoletou a ideia de que o assédio se afasta do desejo sexual, uma vez que
se instancia na afirmação do poder masculino sobre as mulheres (Magalhães et al., 2019;
Oliveira, 2014; Torres et al., 2016).

A partir da gramática de Catherine MacKinnon foi possível começar a trilhar um caminho


do ponto de vista jurídico com base nos casos que chegavam a tribunal e propor uma
definição relativa ao assédio sexual. Sublinha-se que os casos ocorriam principalmente no
local de trabalho e assumiam duas formas: o assédio quid pro quo e o assédio de ambiente
hostil. Na ótica de Isabel Dias (2008a), até ao final dos anos 1980, a maioria das denúncias
de assédio correspondia ao designado quid pro quo. A expressão latina diz respeito a uma
troca de favores e, portanto, em jogo estaria a tentativa de obtenção de favores sexuais

6
Neste ponto sigo de perto a contextualização histórica fornecida por Ana Silva (2017).

19
em troca de benefícios nas condições de trabalho. Quando a vítima recusa esta situação
pode traduzir-se em despromoção, detioração das condições de trabalho e pode incorrer
em situação de despedimento. Assim, os comportamentos que lhe estão na base são
sugestivos de compensação com promoção e obtenção de melhores condições de trabalho
(Dias, 2008a; Torres et al., 2016). A outra forma de assédio carateriza-se pelo ambiente
hostil e de intimidação com base no sexo. Sobre esta, a literatura sublinha que lhe estão
associadas práticas ofensivas e humilhantes, produto de atitudes sexistas, machistas ou
misóginas (Torres et al., 2016).

Destaca-se manifestamente o contributo teórico de Catherine MacKinnon, não apenas por


ter despertado as atenções em torno do problema do assédio sexual no contexto do
trabalho, mas por ter impulsionado a investigação em torno dele.

Jane Gallop (1997), na obra “Feminist accused of sexual harassment”, conta a história de
como foi acusada e punida por assédio sexual a duas alunas e o modo como o feminismo o
inventou:

O argumento da autora não é, obviamente, que o feminismo está na origem do


assédio sexual, ou da sua prática, mas que o inventou ao isolá-lo
conceptualmente, ao despertar uma consciência político-jurídica para o seu
significado social, ao imputar-lhe uma natureza estruturalmente desigualitária
(...) (Silva, 2017, p. 24).

É no encalce dos movimentos feministas que se dá a disciplinarização académica do assédio


sexual, nomeadamente com a eclosão de uma área de estudos suscetível de produzir e de
consagrar esta prática enquanto disciplina e objeto de estudo (Silva, 2017). O feminismo
que alavancou a fabricação do conceito, comummente catalogado de radical, foi sobretudo
construído em torno do argumento de que a dominância masculina é sexual, uma vez que
os homens sexualizam hierarquicamente com base no género (idem). Assim, a sexualidade
é o fundamento das desigualdades entre os géneros e, em última instância, a mulher é
identificada e ela própria se reconhece como alguém cuja sexualidade existe para outrem
(ibidem; MacKinnon, 1982, 1989).

Para se contar a história do assédio sexual e o modo como foi inventado, é premente
questionar o modo como a pornografia se tornou um referencial para pensar a sexualidade
enquanto eixo de dominação masculina. Nesta senda, Catherine MacKinnon, que se
inscreve numa linha de ativismo anti-pornografia, acusa a indústria de promover uma

20
realidade hostil para as mulheres (Ventura, 2018). Para a autora, é o que as exibe na sua
“intrínseca e iminente violabilidade” (Silva, 2017, p. 36) e o que encoraja a violência e
submissão das mulheres. Considera, assim, que a pornografia é uma forma de sexo forçado
onde se institui a desigualdade de género (MacKinnon, 1982, 1989; Silva, 2017) e o que
faculta aos homens o que eles pretendem sexualmente: mulheres batidas, obrigadas,
forçadas, humilhadas, desfiguradas, mortas, criando a ilusão de que não passam de
mulheres acessíveis, à espera para serem usadas e objetificadas (idem).

Esta perspetiva não é consensual, dado que a crítica que lhe está inerente se encontra na
tensão entre a sexualidade como libertação sexual e a sexualidade como extensão do
privilégio masculino. Este último ponto de vista é defendido por autores/as como Camille
Paglia, que defendem que as situações referidas não levam necessariamente à violência e
que podem, inclusivamente, abrir espaço para o empoderamento feminino (Silva, 2017).

É nesta aceção da sexualidade enquanto submissão feminina, ilustrada pela pornografia,


que MacKinnon fundamenta e convence os tribunais de que o sexo é uma estrutura de
poder hierárquico na qual se manifesta o assédio sexual. Para a autora, o assédio não é
primeiramente um abuso de força física, de violência ou de autoridade: é um abuso de sexo
(Silva, 2017) e é o que trivializa a ideia de que os corpos e a sexualidade das mulheres não
são governadas por elas próprias (Mendes, 2016). Assim, quando um homem assedia
sexualmente uma mulher, expressa o controlo sexual sobre ela sob a forma de um
mecanismo de dominação (Oliveira, 2014; Silva, 2017).

2.3. As definições de assédio sexual

Se definir é limitar, importa esclarecer que as definições refletem uma realidade que, não
raras vezes, acaba por ser desfigurada por elas mesmas. Isto acontece porque a realidade
é sempre mais rica e complexa e não é, por muitas razões, possível de inscrever nas
definições no seu todo (Lança, 2016). O mesmo acontece quando pensamos nas que
conhecemos acerca do conceito de assédio sexual e em todas as que se encontram
relacionadas com o fenómeno.

O maior problema que persiste na literatura relativa ao assédio sexual habita na ausência
de uma definição unânime acerca do termo e que seja, ao mesmo tempo, passível de

21
enquadrar a variedade de experiências que este engloba. Para Margaret Crouch (1998), o
conceito de assédio sexual não é estável e, possivelmente, nunca o será. O argumento da
autora prende-se com o facto de as primeiras definições formuladas acerca do fenómeno
incluírem aproximadamente todos os comportamentos que as mais recentes englobam.
Porém, as propostas iniciais não foram aceites de imediato pela comunidade académica e
pelas instituições. Deste modo, a autora reforça que o desenvolvimento conceptual em
torno do significado de assédio sexual tem sido alvo de negociações acerca das
interpretações sobre o fenómeno, tendo em consideração os comportamentos que vão
surgindo e que vão sendo representados enquanto tal. Têm sido igualmente tomadas em
consideração as definições anteriormente formuladas e o modo como se podem acomodar
às descobertas (idem). Se há algum consenso relativamente a este assunto é o de que a
investigação tem permitido concluir que se trata de um domínio onde prevalecem várias
definições, cujas classificações existentes recobrem um leque alargado de experiências
(Dias, 2008a). Como tal, é premente reconhecer o contributo dos/as autores/as feministas
que cunharam o conceito “assédio sexual” porque, apesar de a prática ser antiga, não
existia nenhuma definição para uniformizar a conduta até ao momento em que foi
identificado por Lin Farley (Crouch, 1998).

Nas definições propostas pelos diplomas, desde as mais prematuras até às que fazem parte
do nosso léxico nos dias de hoje, o assédio sexual encontra-se definido sobretudo pelos
comportamentos percecionados como abusivos com o objetivo de intimidar, coagir ou
ameaçar a dignidade de outra(s) pessoas(s) (Torres et al., 2016). Configura, assim, uma
série de atos revelados por meio de palavras ou atitudes de caráter sexual e que se
demarcam por não serem pretendidos pela pessoa a quem se destina (Magalhães, 2011).
Ainda que possa ser confundido com sedução, de acordo com Magalhães (2011), a
aproximação de índole sexual ou afetiva não é posta em causa, mas o facto de a conduta
não ser pretendida pelos/as destinatários/as.

A caraterística essencial do assédio sexual é a de ser indesejado, cabendo a cada


individuo determinar que comportamento entende como aceitável e o que
entende como ofensivo. A abordagem sexual só se torna assédio sexual se for
persistente e desde que a pessoa destinatária tenha mostrado claramente que
considera essa conduta ofensiva, embora um único incidente de assédio possa
constituir assédio sexual se for suficientemente grave. É a natureza indesejada
desta conduta que distingue assédio sexual do comportamento amistoso, que é
bem-vindo e retribuído (Múrias et al., 2016, p. 41).

22
A investigação trilhada por Catherine MacKinnon permitiu o desenvolvimento de uma
definição que gira em torno da equação das relações de poder e da discriminação com base
no sexo. Tal como elucida Dias (2008a), perante esta interpretação, o assédio define-se na
intersecção do sexo e do poder e trata-se de uma forma de exercer poder e controlo por
meio do sexo. Assim, há um afastamento da ideia de desejo sexual, dado que se trata de
uma forma de afirmação do poder masculino sobre as mulheres, ilustrado por via das
desigualdades entre os sexos (idem).

Dado que o assédio sexual foi descoberto no local de trabalho, Ana Oliveira (2014) sublinha
que, na maioria dos diplomas, prevalecem definições relativas a este contexto. Embora
sejam igualmente relevantes, concentram-se nas propostas anteriormente teorizadas e
que já analisamos – assédio sexual de ambiente hostil e quid pro quo. A crítica que subjaz
a esta tipificação prende-se com o facto de as definições se encontrarem associadas ao
contexto laboral, onde apenas nele fazem sentido. Para o efeito, é imprescindível
problematizar o assédio na relação com os espaços em que ocorre. Tal como aponta Silva
(2017), é relevante considerar o assédio sob a forma de “uma discriminação histórica das
mulheres em relação aos homens que se traduz também na relação com os espaços que
lhes é permitido ocupar” (idem, p. 51). Resgatando a teoria em torno da dicotomia
público/privado, importa refletir sobre o modo como os pressupostos patriarcais
desconsideram a presença das mulheres nos espaços públicos e os mecanismos pelos quais
as mulheres são subalternizadas nestes espaços.

O assédio nos espaços públicos consiste numa manifestação naturalizada da sexualidade


que, muitas vezes, passa despercebida, embora seja uma forma de violência experienciada
recorrentemente (Bowman, 1993; Oliveira, 2014; Vera-Gray, 2016). Este problema
encontra-se profundamente enraizado na dicotomia público/privado, no sentido em que,
apesar da liberdade das mulheres em aceder à esfera pública, é também nela que
encontram o assédio sexual enquanto comportamento constrangedor da sua cidadania.
Assim, é nos interstícios do espaço público que o assédio sexual se revela um mecanismo
de “vigilância da feminilidade” (Oliveira, 2014, p. 8) e que traduz a reduzida participação
das mulheres nestes espaços. É igualmente o que transmite às mulheres e adolescentes a
sensação de os seus corpos serem objetos sexuais dos homens (Sottomayor, 2015), o que

23
restringe a mobilidade geográfica das mulheres, o conforto nos espaços públicos e a
liberdade de movimento.

Cynthia Bowman (1993) argumenta que o assédio nos espaços públicos evoca respostas
emocionais de medo por parte das mulheres. Este medo é um mecanismo de controlo
social lhes impõe limitações, dado que funciona como um instinto de defesa e de alerta e
o que as ensina qual o seu espaço, quem é o ser forte e o ser fraco, que tipo de roupa
devem vestir e que atividades devem ou não praticar (Oliveira, 2014). Neste sentido, o
medo, o controlo social e as normas que lhes estão inerentes, informam acerca da
(i)licitude das violências de que são alvo e que se estendem, também, ao local onde
ocorrem (Silva, 2017).

Aludindo às definições que se conhecem acerca do assédio sexual, principalmente as que


se encontram redigidas nos diplomas (e que se referem sobretudo ao local de trabalho),
importa questionar até que ponto os espaços públicos não se podem considerar
igualmente hostis e desconfortáveis para as mulheres. Em última análise, são espaços tão
nefastos para elas como os locais de trabalho, mas por se confrontarem com a igualdade
formal dos individuos, não têm vindo a ser englobados nas definições.

Outra crítica relativa às definições de assédio sexual diz respeito aos atos que engloba e se
podem considerar enquanto tal. Isabel Dias (2008a), a título de exemplo, revela que
percorre a seguinte grelha de comportamentos:

[C]onversas indesejadas sobre sexo; anedotas ou expressões com conotações


sexuais; contacto físico não desejado; solicitação de favores sexuais; pressão para
“encontros” e saídas; exibicionismo; voyeurismo; criação de um ambiente
pornográfico; abuso sexual e violação (...) (idem, p. 13).

A autora demonstra que o assédio sexual envolve uma panóplia de atos e enuncia-os.
Todavia, dado que a descrição detalhada se inscreve num estudo sobre o assédio sexual no
local de trabalho, deixa de fora particularidades relativas a outros espaços onde as mesmas
condutas podem ocorrer e nos quais não são consideradas enquanto tal. Ressalva-se,
ainda, a escassez ao nível da investigação e de diplomas que permitam compreender,
mapear e descrever as condutas que envolvem o assédio sexual. Deste modo, sublinha-se
a parca adaptabilidade das definições que já se conhecem, dado que carecem de um
enquadramento específico relativamente ao que se interpreta como assédio sexual e ao
lugar onde ocorrem.

24
A ambiguidade que cabe a cada comportamento que se inscreve nas próprias definições é
outro dos problemas que dificulta a definição de assédio sexual. Os comportamentos que
têm vindo a ser contemplados na maioria dos diplomas podem ser objeto de diferentes
interpretações tanto por parte de quem perpetra, como por parte de quem sofre. Isto é, o
que pode constituir um ato ofensivo de caráter sexual para um indivíduo, pode ser um
comportamento natural para outro. Por esta razão, as definições requerem um
enquadramento que seja capaz de acautelar a multiplicidade de interpretações.

Em virtude da pluralidade de representações acerca do que constitui ou não assédio sexual,


os/as ativistas e investigadores/as têm vindo a argumentar que as definições acerca da
violência sexual, particularmente aquelas que se concentram na violação, ignoram uma
parte substancial das experiências subjetivas femininas (Schwartz & DeKeseredy, 1997). Liz
Kelly (1987) teorizou o conceito de continuum de violência sexual para dar conta que as
experiências mais severas desta forma de violência de que as mulheres são alvo no seu
quotidiano estão conectadas a outras menos comuns, aquelas que se encontram definidas
juridicamente e que conhecemos, atendendo a gravidade.

O assédio sexual tem vindo a ser considerado uma das formas mais comuns de violência
sexual, mas ao mesmo tempo tem sido desvalorizado, dado que tem vindo a ser
representado como “um pouco de diversão” ou “apenas uma piada” e, por isso, menos
propenso de ser definido como um ato ilícito (Kelly, 1987). Apesar de ser percecionado
como uma forma de violência menos grave, há autores/as que defendem que pode
conduzir a situações mais graves, como é o caso da violação (Magalhães et al., 2019). Esta
perspetiva é sustentada sobretudo por autores/as que sublinham que uma parte dos atos
percecionados como assédio sexual instilam o medo como prelúdio para comportamentos
de violência sexual mais graves (Silva, 2017).

Embora seja uma experiência comum a várias mulheres, há alguma dificuldade em que na
própria sociedade se reconheçam alguns dos comportamentos anteriormente
mencionados como assédio sexual, devido à ideologia patriarcal (Dias, 2008a). Assim, é
imperativa a redefinição em torno dos conceitos de assédio sexual, de modo a combater
a(s) invisibilidade(s) das mulheres e a reconsiderar os vários espaços onde a ação se pode
desenrolar.

25
2.4. O assédio sexual em Portugal

Em Portugal, podemos afirmar que não têm sido muitos os estudos sobre o assédio sexual,
classificando-se a investigação neste domínio como muito escassa. No entanto, se
adotarmos uma perspetiva comparada verificamos que tanto o esforço político para
conhecer a dimensão do problema, como as iniciativas do ativismo social, seguiram de
muito perto a trajetória internacional (Torres et al., 2016). Ana Silva (2017) diz-nos que os
estudos realizados sobre o assédio sexual surgem muito comprometidos em responder a
diretivas governamentais e internacionais. Assim, pressionada pelos movimentos
feministas, a Comissão Europeia publicou o primeiro relatório sobre o assédio sexual em
1987 (Oliveira, 2014; Rubenstein, 1987), o que se fez sentir em Portugal poucos anos
depois.

A Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE) encomendou aquele que foi
o primeiro estudo, realizado entre 1988 e 1989 e publicado em 1994 (Amâncio & Lima,
1994). Este estudo, intitulado “Assédio Sexual no Local de Trabalho”, revelou que uma em
cada três mulheres foi vítima deste desiderato neste espaço (idem), o que despertou a
atenção em torno do fenómeno. Um segundo estudo, concretizado novamente neste
contexto, procurou compreender as vertentes sexual e moral do assédio e foi publicado
em 2016 (Torres et al., 2016).

No domínio dos estudos sobre a violência, o assédio sexual é mencionado no Inquérito


Nacional sobre Violência sobre as Mulheres, publicado no ano de 1997 (Lourenço et al.,
1997), onde a prática foi incluída entre os indicadores de violência sexual (Torres et al.,
2016). O assunto foi tratado novamente no Inquérito Nacional “Violência de Género”
(Lisboa et al., 2009), o qual inclui um capítulo acerca da violência sexual e onde o assédio
foi, novamente, considerado um subtipo desta forma de violência (Torres et al., 2016).

No que concerne às iniciativas ligadas ao ativismo social, destacam-se os projetos


desenvolvidos pela UMAR – União de Mulheres Alternativa e Resposta, dos quais se realça
o projeto “Rota dos Feminismos” (Silva, 2017). Este projeto consistiu numa oportunidade
para aumentar o conhecimento sobre o assédio sexual, para pressionar politicamente com
o intuito de encontrar soluções legislativas, de política social, educacional e de prevenção
e intervenção sobre as suas consequências, assim como contribuir para o apoio e proteção
às vítimas (Magalhães, 2012).

26
Dos trabalhos mais recentes, destaco o contributo teórico de Ana Silva (2017), com a Tese
de Doutoramento intitulada “A expressão normativa do assédio: aproximações
sociojurídicas à sexualidade”, cuja importância se atribui manifestamente às discussões e
diálogos que serviram de suporte para a presente dissertação.

Para se falar do assédio sexual em Portugal é importante, também, perceber o modo como
se inscreve na legislação portuguesa e o caminho que tem vindo a percorrer no sentido do
seu reconhecimento.

A igualdade entre homens e mulheres consagrada na Constituição da República


Portuguesa, em 1976, tem encontrado resistências de índole estrutural que, por sua vez,
têm condicionado a cidadania plena mulheres, principalmente no que diz respeito ao
assédio sexual. Este, figura somente na jurisdição laboral e nos espaços públicos, por
omissão legislativa, não se inscreve como um comportamento desviante (Oliveira, 2014).
Isto permite demonstrar que a consciência em Portugal relativamente ao assédio sexual
enquanto conduta inadmissível tem sido mais rápida e eficaz no domínio das relações
laborais do que nas relações sociais em geral (Oliveira, 2014; Torres et al., 2016).
Sottomayor (2015) considera a classificação enquanto contraordenação no Código de
Trabalho insuficiente, dado que se trata de um comportamento que viola os direitos
fundamentais (sobretudo das mulheres), não apenas no contexto laboral, mas também nos
espaços públicos em geral. Neste sentido, Ana Oliveira (2014) interroga: “se já foi admitido
[...] o comportamento antijurídico do assédio sexual no Código do Trabalho, porque é que
tal não tem tradução nos espaços públicos?” (idem, p. 6). A autora pretende demonstrar
que, por afetar as mulheres de forma profunda na sociedade, é um assunto que assume
dignidade penal e sobre o qual é importante refletir e destacar os principais argumentos
(ibidem; Sottomayor, 2015).

O Código Penal assenta na premissa de que só podem ser crime os comportamentos que
ofendem os valores dominantes da sociedade (Oliveira, 2014). O assédio é entendido
enquanto manifestação naturalizada da sexualidade, o que, nos espaços públicos, uma vez
que a desigualdade sexual se confronta com a igualdade formal entre os indivíduos, não
constitui argumento para um regime legal específico (idem). Deste modo, tal como refere
a literatura, é premente compreender o “caráter sexual” que atravessa o assédio no Código
do Trabalho e o capítulo dos crimes contra a liberdade sexual no Código Penal (Silva, 2017).

27
Um dos marcos legislativos no Direito Penal (sexual) português deu-se com a revisão de
1995 (Decreto-lei n.º 48/95, de 15 de março), nomeadamente com a deslocação dos crimes
sexuais do capítulo relativo aos crimes contra valores e interesses da vida em sociedade
para o título dos crimes contra as pessoas. Assim, passaram a estar preordenados à tutela
do bem jurídico da “liberdade e autodeterminação sexual” (Caeiro & Figueiredo, 2016;
Silva, 2017). De acordo com Ana Silva (2017), esta deslocação permitiu expurgar as
referências moralistas alicerçadas nos crimes sexuais e a descoberta de outras vertentes
da liberdade sexual carecidas de tutela (Caeiro & Figueiredo, 2016).

A coação sexual foi a figura vulgarmente associada ao assédio sexual (Silva, 2017), passível
de absorver uma parte muito representativa dos comportamentos que este engloba, mas
não estava nela prevista a punibilidade da sua tentativa e que abrangia, a título de exemplo,
a mera solicitação de favores sexuais. Assim, o legislador deixaria sem tutela jurídico-penal
o assédio sexual em sentido estrito. Ainda neste âmbito, o artigo foi decorado com o
conceito de “ato sexual de relevo”, indeterminado, é certo. Sobre este, embora tenha vindo
a libertar dos conteúdos moralistas, integra um campo de preocupação, dado que cria
abertura para a interpretação do legislador.

Com a revisão do Código Penal de 2007 (Lei n.º 59/2007, de 4 de fevereiro), o crime “atos
exibicionistas”, considerado até então, desapareceu e passou a prever-se o tipo legal
designado “importunação sexual” (Caeiro & Figueiredo, 2016; Castilhos & Guimarães,
2015; Silva, 2017). Este, seria suscetível de abranger o assédio nos espaços públicos,
mesmo que o ato para o qual a vítima fosse constrangida não se considerasse um ato sexual
de relevo para o efeito do artigo da coação. Além desta alteração ao tipo legal a defender,
a tipificação passou a incluir o “constrangimento a contacto de natureza sexual”. De acordo
com a tese defendida por Caeiro & Figueiredo (2016), uma vez que o conteúdo ilícito da
conduta não se prende com a imoralidade do ato exibicionista, mas sim com a
importunação e a consequente violação da liberdade sexual, o elemento de
constrangimento seria indispensável, uma vez que sem este não haveria importunação
particularmente relevante (idem; Silva, 2017). Tal como acontece com a tipificação da
coação, deixaria de fora a incriminação da maior parte das situações de natureza verbal ou
gestual, igualmente ofensivas e perturbadoras da integridade e da liberdade (Sottomayor,
2015).

28
A Convenção de Istambul revelou-se um marco importante no que diz respeito ao assédio
sexual porque debruçou a sua análise nas formas de violência contra as mulheres sob uma
perspetiva específica, para as quais foram adotadas medidas legislativas para o combate a
este problema (Castilhos & Guimarães, 2015; Sottomayor, 2015). Perante a necessidade de
acomodar o artigo 40.º da Convenção, sob a epígrafe “Assédio sexual”, perfilaram-se três
posições7: a primeira defendia que não seria necessário efetuar qualquer alteração
legislativa, uma vez que o assédio já estaria punido pelo direito nacional; a segunda passava
pela introdução do crime de perseguição e eventual alteração de outras normas penais,
como a importunação sexual (que acabou por ser a posição final); a terceira consistia na
tipificação do assédio sexual numa norma autónoma (proposta defendida pelo Bloco de
Esquerda)8 (Silva, 2017).

Para acomodar o disposto na Convenção de Istambul, manifestaram-se duas situações: (I)


o surgimento de novas incriminações autónomas, como o crime de perseguição (artigo
154.º-A do CP); e (II) a alteração e reformulação dos crimes de coação sexual (artigo 163.º
do CP) e importunação sexual (artigo 170.º do CP) (Castilhos & Guimarães, 2015).

Face ao crime autonomizado, o verbo “assediar” foi referido explicitamente no Código


Penal pela primeira vez, ainda que equivalente a perseguição (Silva, 2017). Por outro lado,
deu-se o aditamento de “propostas de teor sexual” ao artigo relativo à importunação
sexual, que passou a criminalizar, além dos atos de exibicionismo e de constrangimento de
condutas de natureza sexual, os “apalpões” e “beijos”, entre outras formas de assédio
verbal. Este aditamento ao crime de importunação sexual culminou com a discussão em
torno da criminalização do “piropo”. Por não levar necessariamente a atos extremos de
violência e por não ser considerado assédio sexual para muitos indivíduos, a análise deste,
pela relevância que tem vindo a assumir em Portugal, concretizar-se-á isoladamente.

7
Neste ponto sigo de perto a análise de Silva (2017).
8
O Bloco de Esquerda usou a seguinte definição na sua proposta: “[o] assédio sexual é uma forma de coerção,
tantas vezes exercida por alguém em posição hierárquica superior à das vítimas, maioritariamente mulheres.
Constituído por palavras ou atos de natureza sexual, indesejados e ofensivos para as pessoas que dos mesmos
são alvo, os mesmos ocorrem em múltiplos espaços (das ruas, escolas, universidades, transportes públicos
aos locais de trabalho) e atingem sobretudo raparigas e mulheres, podendo também ter por alvo grupos de
homens mais vulneráveis, como jovens, homossexuais, minorias étnicas.”
O projeto de lei e a exposição dos motivos poderá ser encontrado em
http://debates.parlamento.pt/catalogo/r3/dar/s2a/12/04/005/2014-09-19/43?pgs=43-44&org=PLC

29
2.5. O Piropo em Portugal – Assédio sexual ou elogio?

Definir o assédio sexual não é uma tarefa simples. Verificamos que, em Portugal, têm sido
poucos os estudos acerca do fenómeno noutros domínios que não o laboral e, por isso,
ressalva-se o irrisório reconhecimento da prática enquanto comportamento indecoroso e
enquanto constrangimento à cidadania plena de todos/as. Por fim, analisamos as
sucessivas reformas e discussões em torno da legislação com o argumento de que as leis
são, muitas vezes, o espelho das definições e que são crime os atos que violam os valores
dominantes da sociedade (Silva, 2017).

Um dos debates mais intensos sobre o que constituiu assédio sexual em Portugal tem
surgido em torno do piropo (Oliveira, 2014), sobretudo a par da ratificação da Convenção
de Istambul e da consequente fabricação de normas incriminadoras para a acomodar.

Se para uns/umas o piropo é uma marca literária de matriz sociocultural a presevar, para
outros/as é uma tradição de dominação masculina, fundada nos pressupostos patriarcais
(Teixeira, 2019). O piropo tem vindo a ser continuamente produzido e reproduzido de
forma recorrente e, não raras vezes, surge de modo espontâneo, despoletado sobretudo
por homens (estranhos ou não) no processo de sedução de uma mulher (Abarca, 2016).
Como realça Inês Leite (2015):

O autor do piropo limita-se a fazer um comentário – que pode ser tão suave que
ainda seja visto como um elogio simpático, ou tão ofensivo que apenas se pode
qualificar como uma “ordinarice” indescritível – à distância, ao passar ou ao
aproximar-se de uma pessoa.9

Para Magalhães (2011), embora os piropos possam incluir alguns laivos de criatividade,
nem sempre são representados como meros elogios e tendem a ser considerados
mecanismos de poder e de submissão da dominação masculina (Magalhães, 2011; Teixeira,
2019). Isto é, assédio sexual. Os argumentos que estão na base desta perspetiva situam-se
na elisão dos piropos a uma ordem patriarcal, a qual afeta a liberdade e a dignidade das
mulheres. Como aponta a autora, trata-se de um meio de constrangimento da liberdade
das mulheres no espaço público e que serve para relembrar o modo como têm vindo a ser
objetificadas (Magalhães, 2011).

9
Capazes (2015), “O Piropo”. Consultado a 20 de setembro de 2020, disponível em:
https://www.capazes.pt/cronicas/o-piropo-por-ines-ferreira-leite/

30
Assim, aquela argumentação de que o piropo, mesmo contendo um aparente
significado de elogio, possa ser considerado um comportamento ‘razoável’ e de
que uma mulher deve aceitar, consiste numa dimensão discursiva do discurso
patriarcal da erotização da imagem da mulher e da sua reificação e alienação
num mercado sexual sem contrato (cf Pateman 2002) (UMAR, 2011).

O debate em torno do piropo ficou vulgarmente conhecido a partir do aditamento das


“propostas de teor sexual” ao crime de importunação, cujo entusiasmo foi acolhido no
espaço público e, principalmente, mediático. Como aponta Teixeira (2019), a consideração
do piropo como uma das formas de assédio sexual verbal machista suscitou uma
pluralidade interpretações acerca da sua criminalização e que deram origem a
(des)acordos. Seis meses após a alteração da lei da importunação sexual, surgiu no Diário
de Notícias o título “Piropos já são crime e dão pena de prisão até três anos” (Câncio, 2015).
Com este marco, deu-se início à confusão sobre a criminalização do galanteio ou do piropo,
o que gerou desconforto na sociedade relativamente à impossibilidade do flirt. Do mesmo
modo, ao nível jurídico, gerou a falta de entendimento sobre que tipo de ilicitude estaria
em causa e o bem jurídico a proteger (Gonçalves, 2019).

Como considera Oliveira (2014), o assédio sexual verbal sobre as mulheres nos espaços
públicos, nomeadamente através da figura do piropo, entendido como galanteio, é uma
manifestação da cultura patriarcal que dificilmente preenche a tutela do bem jurídico
individual da liberdade ou da autodeterminação sexual. Como denota Sottomayor:

É um escândalo ouvir dizer, como motivo para não punir o assédio, que a questão
do assédio é uma questão de liberdade! Se a questão do assédio é uma questão
de liberdade, então é a liberdade das vítimas que está a pedir para entrar na
equação. Será pedir muito? O assédio sexual de rua (verbal) tem sido um «espaço
de não direito», em que apenas está protegida a liberdade do assediador.10

É num terreno movediço onde se circunscrevem tantas incertezas e marcado por parcos
consensos sobre o que é assédio e o que não é, que este se define. Mais ainda, torna-se
evidente que não é tanto a referência a conteúdos sexuais ou a conotação sexual que se
imprime nas condutas que instanciam o assédio enquanto violência, mas antes o combate
a uma estrutura que, na sua raíz, fragiliza a condição feminina – o patriarcado.

10
Capazes (2015), “Assédio Sexual”. Consultado a 20 de setembro de 2020, disponível em:
https://www.capazes.pt/cronicas/assedio-sexual-3/view-all/

31
CAPÍTULO 3
ASSÉDIO E VIOLÊNCIA SEXUAL ENTRE JOVENS UNIVERSITÁRIOS/AS

As Universidades, embora possam ser consideradas lugares privilegiados, marcados pela


sabedoria e onde as opiniões são expressas abertamente entre as instituições e os/as
estudantes (Martins, 2012), nem sempre são locais seguros para os/as jovens que as
frequentam, sobretudo quando se trata do sexo feminino. Sobre este contexto, a
investigação tem vindo a demonstrar que as estudantes universitárias apresentam maior
risco de ser vítimas de violência sexual (Mota, 2020), uma vez que neste contexto se tem
vindo a sublinhar a sua prevalência (Cooper, 2002).

À entrada no Ensino Superior e ao percurso académico são associados ideais de liberdade


e a visão de que é uma fase em que os/as jovens vivem, muitas vezes, pela primeira vez,
sozinhos/as. São, por isso, confrontados/as com uma redefinição identitária baseada na
experimentação e na definição dos limites pessoais e grupais (Mendes et al., 2013). Assim,
devido ao estilo de vida praticado durante esta fase das suas vidas, a literatura tem vindo
a sublinhar o envolvimento em atividades que os/as podem expor a situações de maior
risco para a ocorrência de violência e assédio sexual (APAV, 2013; Martins, 2012).

O estudo pioneiro conduzido por Makepeace (1981), ao incluir o abuso físico e sexual numa
amostra composta por estudantes universitários/as, revelou a prevalência de violência nas
relações de intimidade entre estes/as. Os resultados apresentados serviram para espoletar,
durante as décadas seguintes, o aumento (gradual) do interesse em torno desta
problemática, até então pouco estudada (Caridade & Machado, 2008). Sublinha-se, por
isso, que a maioria dos estudos sobre a violência de género com a população universitária,
se reportam à violência no namoro (Antunes & Machado, 2012; Caridade & Machado,
2008; Mendes et al., 2013; Neves et al., 2020; Oliveira & Sani, 2009; Peixoto et al., 2013)

Em Portugal, o cenário é idêntico, embora só muito recentemente se tenham unido


esforços para a investigação desta problemática. A este respeito, destaca-se a investigação
trilhada por Paiva & Figueiredo (2004), cuja análise se debruçou no abuso na intimidade
dos/as jovens adultos/as portugueses/as. Ainda em Portugal, salienta-se o recente
aumento da investigação com amostras de população jovem (adulta) e/ou universitária.

33
Não obstante o foco se encontre no contexto das relações de intimidade entre os/as
jovens, os estudos são relevantes porque permitem apurar as atitudes e as crenças
destes/as face à violência, bem como as dinâmicas que lhes estão associadas (Caridade &
Machado, 2008, 2012, 2013; Gama, 2016; Matos et al., 2006; Mendes et al., 2013; Oliveira
& Sani, 2005; Peixoto et al., 2013).

Foi possível compreender, a partir dos estudos centrados na população jovem, que a
grande parte dos episódios de violência sexual não encaixa na visão estereotipada da
violação perpetrada por um/a estranho/a. Ao nível das representações, quando os estudos
se centram nesta forma de violência, os/as estudantes tendem a descrever acontecimentos
que ocorrem na rua, à noite, em que as vítimas estão sozinhas, desprotegidas e,
subitamente, são atacadas por um/a estranho/a (Anderson, 2007). Assim, os estudos
facultaram a alteração do modo como a violência sexual passou a ser estudada e encarada,
o que permitiu que as atenções se voltassem para aquela que é cometida entre pessoas
conhecidas, para os contextos do namoro e das relações ocasionais (Martins, 2012).

Como consequência da investigação trilhada, a literatura tem vindo a demonstrar que os/as
jovens não percecionam as agressões perpetradas no âmbito das suas relações como
abusivas (Caridade & Machado, 2008). A violência sexual, quando ocorre nestes contextos,
encontra-se, muitas vezes, relacionada com os comportamentos que são esperados em
função do género numa relação de intimidade (APAV, 2013). De acordo com esta
perspetiva, a ausência de resistência por parte da vítima perante uma investida sexual de
alguém com quem mantém um compromisso é menor do que seria esperado caso o/a
agressor/a fosse desconhecido/a. Sublinha-se, ainda, que predomina uma atitude de
negação face à intimidade como um contexto em que a violência sexual pode ocorrer, o
que prejudica o reconhecimento da experiência (idem).

Como procuro demonstrar, os predominantes comportamentos ou condições de risco no


contexto universitário, potenciam a ocorrência ou o contacto com a violência que nos
encontramos a investigar (Martins, 2012). Embora os estudos apresentem uma grande
amplitude de fatores, sublinho os que têm maior relevância para a presente dissertação11.

11
Procura-se dissecar estes fatores enquanto condições que contribuem para o aumento do risco de ser
vítima de violência sexual e não enquanto causas ou razões pelas quais um indivíduo é, ou foi, em algum
momento da sua vida, alvo de um ato violento (APAV, 2013)

34
Pertencer ao sexo feminino apresenta um risco especialmente maior de ser vítima de
violência sexual. Esta informação tem vindo a ser sustentada ao longo da presente
dissertação, além de que tem vindo a ser comprovada pelos estudos realizados com
amostras de estudantes universitários/as (Caridade & Machado, 2008; Martins, 2012).
Também a adolescência e a transição para a vida adulta são períodos de grande influência
e vulnerabilidade para a ocorrência desta prática devido à imaturidade emocional,
inexperiência relacional e o facto de ser uma fase de iniciação sexual (Serquina-Ramiro,
2005).

A pertença a grupos masculinizados caraterizados por códigos de conduta próprios, pelo


exagerado sentido de masculinidade e pelo incentivo ao contacto físico mais agressivo
pode apresentar-se, igualmente, um fator de risco. Como salienta Martins (2012), os
estudos têm vindo a mostrar que os/as envolvidos/as nestas atividades podem rever as
suas crenças acerca da sexualidade das mulheres refletidas no grupo. O mesmo surge
noutros estudos, os quais demonstram que a pertença a estes grupos contribui para a
adesão a mitos socioculturais e a atitudes estereotipadas de género (Peixoto et al., 2013).

No contexto universitário sublinha-se, do mesmo modo, a ligação a estruturas patriarcais


rígidas nas quais a ideologia de superioridade masculina é forte e onde prevalecem
assimetrias entre homens e mulheres. Constitui, por isso, um fator de risco para a violência
sexual (APAV, 2013)

Por fim, destaca-se o consumo de álcool e/ou outras substâncias associadas a contextos de
risco (festas, bares, discotecas) e a situações de sedução rápida com o objetivo de relações
ocasionais. Estes contextos e situações estão, por si só, relacionadas a uma maior
probabilidade de ocorrência de violência sexual (APAV, 2013; Mendes et al., 2013). Assim,
pelo grau de desinibição que permitem, são invocadas como um fator de desculpabilização
para alguns dos comportamentos transgressores dos limites pessoais (idem). O consumo
de álcool e/ou outras substâncias pode reduzir as inibições sociais e prejudicar a
capacidade de raciocínio, de comunicação e de interpretação de situações relacionais
(Schwartz & DeKeseredy, 1997). Deste modo, quando a vítima está alcoolizada, a sua
vulnerabilidade e risco de vitimização aumentam, devido à incapacidade de reconhecer
situações de risco e consequente resistência à agressão, dado que o álcool interfere de

35
forma significativa com a capacidade de consentir o envolvimento sexual, detetar o perigo
e resistir prontamente a uma agressão sexual.

No que diz respeito aos estudos sobre o assédio sexual com amostras de estudantes
universitários/as é importante referir, desde logo, a sua escassez.

Ao nível da literatura internacional destaca-se a investigação conduzida por Till (1980), que
revela que a prática de assédio sexual nas universidades se manifesta através uso de
autoridade para enfatizar a sexualidade ou a identidade sexual, de tal forma que prejudica
ou impede o/a estudante de desfrutar os benefícios educacionais e as oportunidades que
decorrem nesta etapa. Destaca-se igualmente o desajustamento e as imprecisões ao nível
conceptual face aos estudos relacionados com esta problemática, que sublinham a
necessidade de informar sobre o que constitui ou não assédio sexual (Vohlídalová, 2011).

Em Portugal, o assédio sexual entre estudantes universitários/as, tem sido englobado em


estudos mais amplos sobre a violência sexual neste contexto (FAL, 2019). Num estudo
levado a cabo com uma amostra de estudantes de uma universidade portuguesa, intitulado
“Violência Sexual na Academia de Lisboa: Prevalência e Perceção dos Estudantes”, o
assédio constituiu um dos principais indicadores de violência sexual. O estudo comprovou
que a maioria dos/as inquiridos/as já foi vítima, pelo menos uma vez, de alguma das
práticas descritas no âmbito da importunação sexual verbal ou não verbal (idem).

Como é possível compreender através desta breve análise do estado da arte do fenómeno
em Portugal e porque a investigação relativa ao assédio sexual no contexto universitário é
muito escassa, esta dissertação pretende ser um contributo para o seu estudo.

36
PARTE II
ESTUDO EMPÍRICO
CAPÍTULO 4
ESTRATÉGIAS METODOLÓGICAS

O desassossego que conduz esta dissertação prende-se com a necessidade de


compreender e transformar a problemática das representações dos/as estudantes da
Universidade de Coimbra relativamente ao assédio sexual em problema sociológico.

Escolher estudar um determinado assunto é porque quase sempre nos interessa e, muitas
vezes, porque temos conhecimento prévio acerca dele (Campenhoudt et al., 2019). Estas
condições não são a priori negativas porque nada se começa “do zero”, ou seja, há sempre
algumas ideias pré-concebidas, pessoas a quem podemos recorrer e com quem podemos
estabelecer contactos úteis para a investigação. Nem sempre a proximidade ao tema e ao
objeto de estudo são pontos favoráveis e podem, inclusivamente, considerar-se
obstáculos, dado que quando a realidade social nos é “familiar” não nos permite dar início
à investigação sob uma posição de “tábua rasa”. Como nos dizem Campenhoudt et al.
(2019), “a nossa mente não é virgem: está preenchida por um amontoado de imagens,
crenças, aspirações, esquemas” (idem, p. 33). Deste modo, para produzir conhecimento
científico acerca da realidade social que pretendemos estudar, a literatura insiste
veemente na necessidade de distanciamento e de rutura epistemológica (Campenhoudt et
al., 2019). O mesmo aconteceu quando iniciei a investigação porque, apesar de estudar na
Universidade de Coimbra e de compreender as dinâmicas que a envolvem, procurei este
distanciamento da realidade social.

Com o intuito de desenvolver uma teoria empiricamente fundamentada optou-se por uma
metodologia qualitativa através da qual os objetos não são reduzidos a simples variáveis,
mas representados na sua totalidade, dentro dos seus contextos quotidianos (Flick, 2009).

Nesta metodologia, a definição do problema de pesquisa tem a função de conduzir a


atenção do/a investigador/a ao fenómeno em análise e desempenha o papel de “guia” na
investigação (Coutinho, 2015). Acresce que, ao usar uma metodologia de caráter
qualitativo, “o problema começa por ser uma descrição do objeto da pesquisa e que vai
sendo refinado como resultado da revisão da literatura e da recolha de dados” (idem, p.
329).

37
O primeiro problema que se coloca a qualquer investigador/a prende-se com o modo de
dar início à investigação. Procurei, por isso, enunciar o problema na forma de uma pergunta
de partida e por meio da qual exprimi concretamente aquilo que tencionava apreender
(Campenhoudt et al., 2019). Assim, pretende-se encontrar linhas de resposta à questão de
partida: Quais as representações dos e das estudantes da Universidade de Coimbra
relativamente ao assédio sexual?

O processo de recolha de dados foi ainda conduzido por algumas questões específicas:
Quais as mudanças que ocorrem na vida dos/as estudantes com a entrada no Ensino
Superior? Qual a importância que os/as estudantes atribuem à praxe académica no
processo de integração na Universidade de Coimbra? Qual a importância das lógicas
ritualistas e boémias nas representações dos/as estudantes acerca do assédio sexual?
Quais as representações dos/as estudantes acerca dos papéis atribuídos pela sociedade ao
feminino e ao masculino? Quais as definições dos/as estudantes relativamente ao assédio
sexual? Os/as estudantes representam o assédio sexual como uma forma de violência de
género? E como uma forma de violência sexual? De que forma pode o assédio sexual ser
socialmente legitimado/tolerado com base em normas enraizadas na nossa sociedade?
Quais as representações sobre as vítimas de assédio sexual? E sobre os/as assediadores/as?
Podem estas representações estar ancoradas em estereótipos? Os/as estudantes
conhecem os mecanismos formais e/ou informais que podem recorrer para casos de
assédio sexual? Que representações têm acerca destes? Quais as representações dos/as
estudantes relativamente às campanhas de sensibilização no meio académico?

Para responder eficazmente à pergunta de partida e às questões específicas que norteiam


esta dissertação é crucial a formulação de uma grelha de objetivos específicos que
permitam sustentar o objetivo geral de analisar sociologicamente as representações dos/as
estudantes da Universidade de Coimbra relativamente ao assédio sexual (OG). Assim, os
objetivos específicos são:

OE1: Compreender as representações dos/as estudantes da Universidade de


Coimbra acerca da praxe e tradições académicas, estabelecendo a relação entre
estas e as representações relativamente ao assédio sexual;

38
OE2: Perceber se os/as estudantes da Universidade de Coimbra representam o
assédio sexual como uma forma de violência de género sustentada nas
desigualdades de género e que tem vindo a ser socialmente tolerada;

OE3: Compreender as representações dos/as estudantes da Universidade de


Coimbra relativamente ao assédio sexual enquanto prática que ocorre no(s) seu(s)
quotidiano(s) e determinar de que forma os comportamentos de risco por parte
destes/as são usados para legitimar a sua prática;

OE4: Compreender as representações dos/as estudantes da Universidade de


Coimbra acerca dos papéis atribuídos ao feminino e ao masculino e de que forma
podem estar alicerçados e sustentados em estereótipos sexistas que moldam as
suas representações relativamente ao assédio sexual;

OE5: Compreender as representações dos/as estudantes da Universidade de


Coimbra relativamente aos mecanismos (formais e/ou informais) que podem
usufruir/dispor em situação de assédio sexual e/ou como forma de prevenção e
combate.

Os objetivos expostos anteriormente e a revisão da literatura efetuada permitem sustentar


a construção de um sistema de hipóteses em torno da hipótese geral – os/as estudantes
da Universidade de Coimbra representam o assédio sexual como um problema social que
os/as afeta tanto a eles/as como a sociedade em geral (HG):

H1: Os/as estudantes da Universidade de Coimbra reconhecem que as suas


representações acerca do assédio sexual são moldadas pela praxe e tradições
académicas;

H2: Os/as estudantes da Universidade de Coimbra representam o assédio sexual


como uma forma de violência de género, alicerçada nas desigualdades de género,
sendo que também consideram a Universidade de Coimbra um dos lugares onde se
assiste à reprodução de normas que o legitimam;

H3: Os/as estudantes da Universidade de Coimbra representam o assédio sexual


enquanto prática que ocorre no(s) seu(s) quotidianos e evidenciam a relação entre
a sua prática e os comportamentos de risco usados para o legitimar;

39
H4: Os/as estudantes da Universidade de Coimbra têm representações relativas ao
assédio sexual moldadas e ancoradas em estereótipos com base no género e
preceitos sexistas;

H5: Os/as estudantes da Universidade de Coimbra reconhecem e têm


representações acerca dos mecanismos (formais e/ou informais) que podem
usufruir/dispor em caso de ocorrência, prevenção e combate ao assédio sexual na
Universidade de Coimbra.

4.1. Opções Metodológicas

A dissertação que apresento enquadra-se num plano de investigação qualitativo, orientado


por um paradigma interpretativo, cujo objetivo se prende com a produção de uma teoria
baseada em dados empíricos, através de mecanismos de causalidade e de produção de
sentido. Deste modo, são valorizadas as palavras e as ações dos sujeitos, bem como a
apreensão e o aprofundamento das interpretações que estes lhes conferem (Coutinho,
2015). Os pilares fundamentais nos quais se fundamentou foram, por um lado, o recurso
às representações sociais enquanto elemento estruturador através das quais se
procuraram assimilar significados; e, por outro lado, o uso dos focus group e das entrevistas
semiestruturadas como técnicas privilegiadas de recolha de informação.

4.1.1. Focus Group

Os focus group12 são uma metodologia qualitativa que consiste num evento organizado, de
forma informal e de tamanho reduzido, no qual os/as participantes partilham caraterísticas
comuns (Mendes et al., 2013), como é o caso de pertencerem à Universidade de Coimbra,
independentemente de se conhecerem previamente ou não. Do mesmo modo, a razão
pela qual se optou por esta técnica de recolha de informação deve-se ao facto de esta

12
Existem algumas controvérsias no que refere à tradução da expressão “focus group”. Optei por, no âmbito
da presente dissertação, adotar a tradução referida por Virgínia Ferreira (2004) – “entrevista focalizada de
grupo” – bem como a definição proposta pela autora: “trata-se de um evento organizado que implica a
reunião de pessoas que possuem em comum o terem passado por determinada experiência, a intervenção
de uma pessoa que conduz a entrevista e, em termos de conteúdos, são exploradas as experiências subjetivas
das pessoas que participam relativamente à questão que constitui o foco da conversa” (idem, p. 103).

40
congregar algumas das vantagens dos métodos qualitativos como, por exemplo, a
profundidade dos dados a recolher (Ferreira, 2004). Além disso, não apresenta algumas
desvantagens de outros métodos de observação, nomeadamente “a morosidade que é
própria de uma metodologia que ‘espera que as coisas aconteçam’ para obter informação”
(idem, p. 103). No leque das vantagens encontra-se também a convicção de que é possível
conhecer melhor as atitudes, as crenças e os sentimentos dos/as participantes quando se
encontram em interação com o grupo (Gibbs, 1997). Como aponta Ferreira (2004), “a
situação de grupo faz surgir uma muito maior multiplicidade de opiniões e de processos
emocionais, muito mais limitados em situação de entrevista individual” (idem, p. 104).
Assim, a utilização dos focus group, permite obter o esboço das representações dos/as
entrevistados/as relativamente às experiências vividas por estes/as e ao modo como
constroem a problemática (Ferreira, 2004).

Na fase de planeamento dos focus group, em primeiro lugar, foi elaborado o guião que
permitiu conduzir as sessões. Krueger (1988) aponta que este deve conter uma média de
cinco a seis questões, não excedendo as dez e, ainda, que deve partir de questões mais
genéricas para questões específicas. Ferreira (2004) diz-nos que se deve partir de um
modelo de entrevista simples e recorrer à técnica do afunilamento. Assim, numa primeira
abordagem, procurou-se compreender situações mais abrangentes relativas às mudanças
que ocorreram com a entrada no Ensino Superior e progrediu-se para questões específicas
relacionadas com a questão da violência, em particular o assédio sexual. Neste percurso,
procurou-se cobrir todos os tópicos e temas relevantes para a dissertação.

Na etapa do planeamento, tal como refere Krueger (1988), são também identificados/as
os/as participantes. Atendendo a população – os/as estudantes da Universidade de
Coimbra – foram entrevistados/as estudantes das oito Faculdades que compõem a
Universidade (Faculdade de Letras, Faculdade de Ciências e Tecnologias, Faculdade de
Farmácia, Faculdade de Medicina, Faculdade de Economia, Faculdade de Psicologia e
Ciências da Educação e Faculdade de Ciências do Desporto e Educação Física), inscritos/as
no ano letivo 2019/2020 e a frequentar a licenciatura e/ou o mestrado integrado. Para o
recrutamento houve várias possibilidades de fazer chegar o pedido aos/às estudantes.
Optou-se por recorrer aos vinte e seis Núcleos de Estudantes, uma vez que representam
cada curso, departamento ou Faculdade. Numa fase posterior foi enviado um pedido de

41
colaboração, via e-mail, a cada Núcleo e dirigido, de forma particular, aos/às seus/suas
dirigentes. Apenas seis Núcleos de Estudantes demonstraram interesse em colaborar no
estudo, os quais assumiram prontamente a responsabilidade de encaminhar um/a
estudante para as sessões.

A partir do momento em que foram estabelecidos os primeiros contactos com os Núcleos


surgiram algumas sugestões por parte destes, por exemplo, houve alguns que forneceram
contactos pessoais de outros/as dirigentes e estudantes a quem me poderia dirigir. Apesar
dos esforços, nem sempre foi possível encontrar estudantes através do método pretendido
e, por esse motivo, recorri a amigos/as e aos/às amigos/as e colegas destes/as para a
participação no estudo.

A recetividade ao estudo não foi idêntica por parte dos/as estudantes de todas as
Faculdades e anos de estudo e, por isso, a representatividade da amostra foi condicionada
pelas disponibilidades destes/as (Anexo 1). É importante referir que, dado que a amostra
não é suficientemente ampla, opto por tratar dos/as estudantes uniformemente no
capítulo da análise de dados empíricos. Assim, faço apenas distinção em relação ao sexo
dos/as estudantes porque é uma categoria bastante relevante para o presente estudo. No
entanto, quando são questões específicas de um determinado grupo, faço essa alusão.

Depois de obter um número razoável de estudantes interessados/as em participar no


estudo, solicitei o preenchimento de um formulário onde colocaram as suas
disponibilidades (dias e horas) e os dados para que pudesse completar a tabela relativa à
amostra (Anexo 1). Posteriormente, procedeu-se à planificação das sessões e à formação
dos grupos.

Foram concretizadas 4 sessões de focus group, sendo que dessas quatro, duas sessões
foram mistas, uma sessão destinou-se ao sexo feminino e a outra ao sexo masculino.
Optou-se por concretizar uma sessão para as mulheres e outra para os homens porque se
trata de um assunto que assume especificidades distintas em função do sexo e porque são
abordadas questões relacionadas com algum grau de intimidade (Mendes et al., 2013). A
dinâmica do grupo misto foi igualmente importante porque permitiu compreender
algumas particularidades e fazer o confronto de posições e ideias.

42
A literatura aborda, recorrentemente, o número de participantes em cada sessão de focus
group. Morgan (1997) defende a participação de entre seis a oito indivíduos. Já para
Krueger (1988), cada sessão deverá congregar entre sete a dez participantes. No âmbito da
presente dissertação, optou-se por contactar cerca de 10 estudantes para cada sessão
para, no caso de eventuais falhas, poder contar com uma média de 8 participantes e
garantir as condições mínimas para a sua realização. Relativamente às sessões
concretizadas avança-se que não estiveram sempre presentes os/as 10 participantes.
Todavia, em todas as sessões estiveram cerca de 8 estudantes, à exceção da sessão relativa
ao sexo masculino, que contou com 9 estudantes.

É importante sublinhar que se aplicou o estudo no decorrer do período letivo, o que


condicionou a calendarização das sessões, dado que a maioria das disponibilidades dos/as
estudantes incidiu no período depois das 18h, após terminarem as suas aulas. Quanto ao
local, as sessões concretizaram-se na sala de reuniões da Faculdade de Economia da
Universidade de Coimbra, o que permitiu cumprir os requisitos mínimos para a gravação
das sessões. O espaço acabou, também, por ser uma limitação no que diz respeito aos
horários, sendo que interrompi ou acelerei as entrevistas em função do tempo, uma vez
que havia alguma pressão para terminar a tempo do encerramento da Faculdade.

A duração das sessões foi um aspeto recorrentemente abordado pelos/as estudantes que,
por várias vezes, perguntavam o tempo que durariam. Apercebi-me, em diversas ocasiões,
que os/as estudantes não se mostravam disponíveis para estar durante as duas horas que
inicialmente estipulei. Assim, o que ao início se revelou uma preocupação, depois de estar
nas sessões, notei que os entraves em termos de tempo colocados pelos/as estudantes se
deviam apenas ao receio de passar cerca de 2h com outros/as estudantes que não
conheciam, numa dinâmica onde teriam de partilhar opiniões sobre assuntos acerca dos
quais não estavam completamente à vontade. À medida que as sessões foram decorrendo,
a duração não foi um obstáculo, mas o seu contrário, porque quando terminava a sessão,
por causa do horário da Faculdade, os/as estudantes reforçavam, inclusivamente, que
gostariam de continuar a debater e conversar durante mais tempo, caso fosse possível.
Ainda relativamente a este ponto, todas as sessões começaram dentro da hora prevista e
duraram entre 1h30 a 2h, sendo que não houve nenhuma sessão com menos de 1h30 e
nenhuma delas excedeu as 2h.

43
Acerca do modo como decorreram as sessões é premente tecer alguns comentários
relativos ao meu papel enquanto moderadora. Desde logo, tal como sugere a literatura,
procurei ter um papel limitado à introdução dos temas e à facilitação da comunicação entre
os/as estudantes. Tentei, por isso, ser imparcial, evitei partilhar as minhas opiniões ou
tomar partido de uns/umas participantes em relação a outros/as (Ferreira, 2004). Houve
alguns momentos em que, enquanto entrevistadora, senti que alguns/mas estudantes
monopolizavam o discurso para falar acerca de algo que apenas eles/as tinham acesso e
isso impossibilitou, talvez, outros/as estudantes de comentar as situações que estavam a
ser expostas por estes/as. Nestes casos, o meu papel de moderação foi no sentido de pedir
que partilhassem e explicassem o contexto, para que os restantes elementos do grupo
pudessem comentar e intervir.

O à vontade dos/as estudantes não foi igual em todos os grupos e em todas as situações.
Estabeleci a primeira ronda como obrigatória e destinada à apresentação de cada um/a
dos/as estudantes, sendo que lhes foi solicitado que se apresentassem de acordo com a
ordem em que estavam sentados/as, para garantir que todos/as falavam. Todavia, a
primeira questão depois da primeira ronda foi respondida, em todas as sessões, com algum
grau de inibição e os/as estudantes acabaram por seguir a ordem que havia sido imposta
na ronda de apresentações. O facto de ter partido de uma questão genérica sobre a qual
todos/as tinham conhecimento e experiência, permitiu que os/as participantes pudessem
“quebrar o gelo” entre si e incentivar o diálogo entre estes/as. No fim, acabaram por
partilhar o que sentiam e expor as suas opiniões de modo espontâneo.

No que diz respeito às sessões concretizadas em grupos mistos, a experiência também foi
muito rica em termos do material explorado, porque estavam ambos os sexos reunidos e
o confronto de posições foi recorrente.

Ressalva-se que a amostra foi a mais heterogénea que se conseguiu, o que permitiu que os
dados a recolher também fossem bastante relevantes. Nos vários momentos, após as
sessões, foi reforçada, por parte dos/as participantes, a importância e o interesse em
momentos como estes, porque permitiam às raparigas compreender a posição e os dilemas
dos rapazes, como o contrário. Contudo, os assuntos abordados foram mais intensos nos
grupos exclusivamente femininos e masculinos. Tornou-se muito claro que os/as
estudantes estavam mais confiantes e davam exemplos concretos de situações que lhes

44
aconteceram na primeira pessoa, enquanto que nos grupos mistos se referiam sobretudo
a situações de amigos/as ou pessoas próximas.

Ao nível da composição dos grupos, penso que todos/as se sentiram bastante confortáveis,
à exceção de uma das sessões mistas. Para esta sessão estava agendada a participação de
6 raparigas e 4 rapazes. No entanto, nenhuma das raparigas faltou, 2 rapazes faltaram e
restaram apenas dois rapazes na sessão. Enquanto moderadora, senti algum desconforto
por parte dos dois estudantes em relação às raparigas e, por isso, tentei que, no decorrer
da sessão e, de modo a diminuir a timidez que estavam a sentir no momento, se
abordassem assuntos mais genéricos e com menor grau de intimidade.

Ainda no que diz respeito ao meu papel na moderação nas sessões, dado que não estava
habituada à metodologia, porque nunca tinha concretizado nenhuma sessão até ao
momento, é imprescindível a análise dos pontos positivos e negativos relativamente a este
aspecto. Uma vez que a sessão foi gravada apenas em áudio, tornou-se complicado saber
quem falava e entender alguns aspetos importantes relacionados com a expressão
corporal. Como já contava previamente com esta situação, socorri-me da ajuda de
alguns/mas colegas no sentido de me auxiliarem para tomar notas. Assim, permitiu que me
concentrasse nos discursos, bem como facilitar a interação entre os/as intervenientes.

A primeira sessão foi a mais complicada porque estava preocupada com o guião e em
cumprir todos os tópicos, de tal forma que, quando coloquei as questões, acabei por sentir
que os/as estudantes ficavam um pouco reticentes com a mudança de assuntos. Deste
modo, nas sessões seguintes, já não dei tanta importância ao guião e permiti que os
discursos fluíssem. De passos mais lentos ou mais rápidos, todos os discursos acabaram por
tocar os assuntos pretendidos e, em vez de mudar de assunto de forma brusca, fui pegando
em aspetos que os/as estudantes estavam a evidenciar e pedi que comentassem noutros
sentidos ou que os explorassem sob outros pontos de vista.

Além da pessoa que me deu auxílio nas notas, o gravador tornou-se uma ferramenta
essencial e sobre a qual é necessário tecer alguns comentários. Ao longo do discurso de
apresentação, enquanto entrevistadora, realcei que o gravador iria ser utilizado para me
auxiliar na transcrição e que, por esse motivo, as sessões iriam ser gravadas, para que nada
se perdesse. Senti, nas rondas iniciais, que os/as estudantes se encontravam mais
inibidos/as e, por vezes, olhavam para o gravador com algum receio. À medida que iam

45
quebrando o gelo entre si, os olhares pararam de estar concentrados no gravador e
passaram a cruzar-se entre os/as participantes, que passavam a comunicar também com o
olhar. De certa forma, esse à vontade que foram construindo permitiu que, aos poucos,
os/as estudantes mudassem o seu discurso e a forma como construíam as suas narrativas
foi sendo cada vez mais espontânea. A certo momento, os/as estudantes foram adaptando
os seus discursos, aproximando-se cada vez mais das expressões usadas no dia-a-dia. Por
vezes, recorriam inclusivamente ao calão, embora nesses momentos olhassem fixamente
para o gravador e pedissem desculpa por estarem de ânimos mais exaltados.

4.1.2. Entrevista semiestruturada

A outra técnica de recolha de dados a que recorri e que também é muito utilizada na
investigação qualitativa é a entrevista semiestruturada. Esta técnica é sobretudo usada
quando se pretendem conhecer perspetivas dos/as participantes sobre determinados
problemas, mas onde os dados são significativamente comparáveis entre estes (Coutinho,
2015).

No que diz respeito ao modo de entrevistar, de acordo com Ghiglione & Matalon (1992), a
entrevista semiestruturada carateriza-se pelo facto de o/a entrevistador/a conhecer todos
os temas sobre os quais pretende obter reações por parte dos/as entrevistados/as, mas
cuja ordem e forma como são introduzidos são moldados ao longo da entrevista.

No âmbito da presente investigação recorri à entrevista semiestruturada para aprofundar


um conjunto de temas sobre os quais já tinha conhecimento, mas que não estavam
suficientemente explorados pelos focus group. A entrevista serviu, assim, para abordar
alguns pontos de descontinuidade que surgiram na análise dos focus group e para
solidificar a importância que os/as estudantes, nas sessões, atribuíram a algumas
instituições, órgãos e associações. Assim, optei por entrevistar a Direção-Geral da
Associação Académica de Coimbra, a Secção de Defesa dos Direitos Humanos da
Associação Académica de Coimbra, a linha SOS Estudante, a Associação de Pesquisadores
e Estudantes Brasileiros em Coimbra, o Conselho de Veteranos da Universidade de
Coimbra, o Provedor do Estudante e a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima.

46
Para solicitar o pedido da entrevista, optou-se por enviar um e-mail, novamente dirigido
aos/às seus/suas dirigentes. Obtive respostas por parte de todos/as, no entanto, é
importante sublinhar que, no caso das associações dirigidas por estudantes foi mais difícil
obter respostas em tempo útil, o que condicionou os prazos inicialmente estabelecidos.
Sobre este aspecto, importa referir que as sessões de focus group foram concretizadas no
período antes da pandemia, enquanto que, as entrevistas, foram concretizadas mais tarde,
no período pós confinamento. Assim, esta questão do tempo que se demorou a planificar
e a obter respostas por parte das instituições, deve-se ao facto de as entrevistas terem
surgido, também, numa altura em que os/as estudantes estavam mais ocupados/as com
avaliações. Sublinho que só depois de as pessoas estarem mais acomodadas ao digital e
após um período mais intenso de quarentena é que foi possível estabelecer estes
contactos. Ainda relativamente à calendarização das sessões, foi dada a possibilidade de se
poderem concretizar via zoom. Porém, houve instituições que preferiram estabelecer este
contacto presencialmente, apesar das condições a que estávamos sujeitos/as.

Em média, as entrevistas tiveram uma duração aproximada de 40 minutos. Realço que


houve uma entrevista que durou aproximadamente 20 minutos e outra que durou 1h40
minutos. À semelhança dos focus group, as entrevistas foram também gravadas.

Opta-se por preservar e revelar a entidade das instituições, associações e órgãos nas suas
narrativas ao longo do capítulo empírico, dado que as entrevistas foram devidamente
autorizadas. Ressalvo, também, que os conteúdos não colocam em causa a integridade de
nenhuma delas, nem mesmo de outras pessoas. É igualmente relevante realçar que esta
opção também se prende com a intenção de evidenciar as particularidades de cada uma e
o trabalho que têm vindo a desempenhar em torno da problemática.

4.2. Análise de Dados

A análise de dados tem a importante função de verificar se as informações recolhidas,


através dos métodos escolhidos, correspondem às hipóteses esperadas. Trata-se, por isso,
da verificação empírica.

Como elucidam Campenhoudt et al. (2019), a realidade é sempre mais rica e complexa do
que as hipóteses que elaboramos a seu respeito e, por isso, quando nos debruçamos sobre

47
os dados recolhidos, percebemos que há outros factos além dos que esperávamos e outras
relações que não se podem negligenciar. A análise dos dados é o que nos permite
interpretar todos estes factos inesperados, com o intuito de, no fim, nos permitir propor
pistas de reflexão e de investigação para o futuro.

Na presente dissertação optou-se pela análise de conteúdo, uma vez que foram
concretizados focus group e entrevistas semiestruturadas. A análise de conteúdo oferece-
nos a oportunidade de tratar, de forma metódica, as informações e narrativas que, ao
princípio, apresentam alguma profundidade e complexidade. Assim, ao recorrer a este
procedimento de análise, o material em bruto transforma-se em material mais elaborado,
mas também mais sintético (Campenhoudt et al., 2019).

Relativamente ao modo como foram analisados os dados, em primeiro lugar foram


transcritos os focus group. Foi uma tarefa difícil porque, tal como referi anteriormente, foi
apenas gravado o áudio das sessões. Atendendo que em cada sessão estiveram sempre
entre 8 a 9 participantes, perceber as suas vozes e os diálogos sobrepostos, foi uma tarefa
árdua. Ter tido o auxílio de colegas para tirar notas, nomeadamente para apontar o nome
e as três primeiras palavras proferidas por cada um/a dos/as participantes, tornou-se uma
ajuda imprescindível e facilitou a tarefa. Estes/as colegas escreveram, ainda, algumas notas
sobre questões relativas à expressão corporal, igualmente imprescindíveis. Esta ajuda
permitiu que eu conseguisse estar atenta durante as sessões e que eu mesma tirasse
algumas notas sobre a expressão corporal, o tom de voz proferido pelos/as estudantes,
trocas de olhares e até mesmo descrever o estado de espírito destes/as (e.g. exaltados/as,
irónicos/as, receosos/as, ...). Estas questões foram muito relevantes para analisar as
entrevistas.

Depois deste processo de transcrição analisei as entrevistas e tomei algumas notas


relativamente a estas. Optei por usar algumas cores e etiquetas para marcar o discurso
dos/as estudantes sobre os tópicos abordados e opiniões, o que me permitiu construir
algumas categorias e subcategorias a partir de cada uma das entrevistas, de modo a
compreender se me estava a aproximar das hipóteses e a ver o que estava além delas.

Seguidamente, procedi a uma análise transversal e comparativa das transcrições de todas


as sessões de focus group, de modo a perceber os temas e opiniões em comum, os que
eram apenas mencionados numa das sessões e os que surgiam em todas elas. O objetivo

48
foi perceber o que era comum, o que era particular e o porquê. Esta análise transversal e
comparativa permitiu-me delinear um documento onde coloquei todos estes assuntos, os
quais organizei consoante a relação entre eles através de um mapa de cores que me
permitiu visualizar, com clareza, os temas abordados e perceber a importância que lhes era
atribuída. Por fim, procurei triangular a informação e verificar se as conclusões eram
confirmadas por diversos pontos de vista, os que eram semelhantes e os que divergiam.

Optou-se por analisar as narrativas em torno da categoria central “assédio sexual”, por ser
o conceito-chave da presente dissertação. Depois de analisados os discursos organizados
em subcategorias (ainda que pouco definidas e concretas) procurou-se compreender a
relação entre cada uma delas e a categoria principal. De seguida, analisei
pormenorizadamente os discursos que estavam relacionados com esta categoria central e
acomodei-os à presente dissertação.

As entrevistas surgiram meses mais tarde devido à pandemia, tal como referi
anteriormente. O procedimento inicial foi idêntico no que concerne às transcrições e à
primeira análise. De seguida, fundi os discursos selecionados (aqueles que eram mais
relevantes para a dissertação e que estavam relacionados com a categoria central) nas
subcategorias já estipuladas e criei, também, novas subcategorias para alguns assuntos e
tópicos particulares, explorados somente nas entrevistas. Neste caso, a triangulação foi
ainda mais complexa porque envolveu não só uma análise comparativa entre estas, como
também das transcrições dos focus group.

Estes procedimentos foram todos feitos manualmente com recurso apenas às ferramentas
de texto (e.g. word). Utilizei uma codificação muito simples e, em certo modo. muito
precária, porque me baseei apenas em cores e em algumas etiquetas que me permitiram
perceber os tópicos e as subcategorias. Apesar de tudo, foi um processo longo e muito
moroso.

Por fim, ressalvo que, com o recurso à análise de conteúdo, consegui obter representações
que não tomaram como indicadores os meus próprios valores e subjetividade. Permitiram-
me, assim, ir mais além do que inicialmente esperava (Campenhoudt et al., 2019).

49
CAPÍTULO 5
AFINAL O QUE É O ASSÉDIO SEXUAL?

5.1. Um olhar sobre as definições dos/as estudantes

A análise em torno da definição de assédio sexual foi um dos momentos que gerou maior
controvérsia entre os/as estudantes ao longo das sessões. Os/as estudantes concluem que
o conceito de assédio sexual não é fixo e que está sujeito a uma multiplicidade de
representações. À semelhança do estudo de Mendes et al. (2013), também os/as
estudantes entrevistados/as revelam que os limites entre o que se considera ou não
violência são individuais e que a definição do conceito se encontra na identificação da
ultrapassagem de tais limites, o que lhe confere uma certa ambiguidade.

(...) o facto do tal limite das pessoas [ser] diferente, se calhar, de pessoa para
pessoa... e isso condiciona... se calhar, as pessoas que sofrem, talvez não saibam
como explicar, não sabem dizer se foi ou não assédio. (Estudante B_F4, sexo
masculino)

A maior dificuldade para estes/as é o facto de o assédio se poder confundir com outras
condutas – como é o caso da sedução. Como analisamos no Capítulo 2, a confusão entre
sedução e assédio é recorrente e, por isso, o conceito abre margem para dúvidas. Como
nos informa a literatura, a caraterística que distingue o assédio sexual de outras condutas
afetivas é a indesejabilidade (Múrias et al., 2016). Contudo, nos discursos dos/as
estudantes, falta este elemento para que consigam resolver esta equação.

(...) o que cada pessoa considera para si assédio, o que considera ser seduzida, o
que considera ser assediada... eu acho que há uma dificuldade em definir...
(Estudante C_F4, sexo masculino)

Reconhecendo que os/as estudantes consideram que o conceito de assédio sexual não é
unânime nem fácil de delimitar, dado que se pode confundir com outras condutas,
procurou-se compreender os comportamentos que figuram as suas definições.

O conceito de “desconforto” abordou-se de modo recorrente em todas as sessões, de tal


forma que os/as estudantes de ambos os sexos revelam que “a partir do momento em que
uma pessoa não fica confortável já é assédio” (Estudante A_F3, sexo feminino). As
narrativas permitem igualmente compreender que, quando sentem desconforto, significa
que há algo de errado com aquela conduta, o que os/as leva a interpretar como assédio:

50
Para mim, deixarem-me desconfortável, a forma como... porque o que nós
sentimos é real, não são coisas da nossa cabeça. Se nos sentimos desconfortáveis
é porque há algo errado... (Estudante G_F2, sexo feminino)

Nos discursos relativos a este conceito, diagnostica-se a dificuldade que os/as estudantes
têm em percecionar comportamentos de natureza sexual, uma vez que são claros quanto
à ocorrência de abusos sob a forma física e psicológica e raramente aludem à violência
sexual: “(...) acho que só o simples facto de deixarmos alguém desconfortável, seja física ou
psicologicamente, já tem um piquinho de assédio” (Estudante G_F1, sexo masculino).

Acerca do desconforto, a maior dificuldade revelada pelos/as estudantes persiste na


delimitação que separa as condutas aceitáveis das inaceitáveis, dado que estes/as
concluem que se trata de um conceito ao qual correspondem múltiplas representações.

(...) porque o que é confortável para mim, pode não ser confortável para outra
rapariga... mesmo com amigos meus, que dizem piadas ou assim, eu não fico
incomodada, mas sei que tenho amigas minhas que talvez, [com] as mesmas
piadas, reagem de forma diferente... e eu acho que, para mim é assédio, para
elas pode não ser. Sinto que, a partir do momento que a barreira do confortável
com a situação é ultrapassada, começa a ser um pouco assédio. (Estudante D_F3,
sexo feminino)

Procurou-se compreender condutas (concretas) que os/as estudantes identificam


enquanto assédio sexual. É o caso dos gestos, realçado apenas por uma estudante: “[o]
facto de mandarem beijinhos e fazerem gestos, para mim, isso é assédio!” (Estudante G_F2,
sexo feminino). Os designados “gestos obscenos” figuram as definições relativas ao assédio
sexual, mas nem todos/as os/as estudantes os interpretam enquanto tal. Através das
narrativas, os gestos não são interpretados por todos/as enquanto assédio sexual, o que
pode ser explicado pela normalização deste tipo de condutas por parte da sociedade.

O ato de tocar foi também referido, nomeadamente com a referência ao “apalpão”:

(...) o que eu ia dizer é que... a primeira coisa que me vem à cabeça, pelo menos
para mim, quando falamos em assédio sexual, é o toque... e pronto, apalpões (...)
(Estudante A_F4, sexo masculino).

O toque enquanto assédio sexual revelou-se um ponto de discórdia durante as sessões. Por
um lado, há estudantes (e.g. de desporto ou atletas) que interpretam o toque como um
estímulo e desvalorizam a conexão a um comportamento de natureza sexual; por outro
lado, quando se especificam alguns contextos, como as festas académicas, o toque e o
apalpão destacam-se negativamente, sobretudo por parte das estudantes do sexo
feminino. Estas consideram o toque uma forma de assédio sexual e um motivo de revolta,

51
principalmente nos contextos festivos, dado que é algo que lhes acontece repetidamente
e lhes causa desconforto.

As opiniões das estudantes demonstram que não precisa de haver toque para que haja
assédio sexual – “É que não precisa de ser um toque, não precisa de ser nada disso. Um
olhar, um pensamento, uma palavra basta para...” (Estudante C_F1, sexo feminino).
Aludem, como vimos, a comportamentos como o olhar e o assédio verbal. Os estudantes
do sexo masculino não colocam em causa o facto de estes atos poderem ser interpretados
enquanto assédio, embora tenham dificuldades em associar a violência a estas condutas.

Ao recuperar os argumentos enunciados pelas estudantes, surge a ideia de que o


desconforto que sentem começa com o olhar, o que acabou por ser a conduta mais
debatida na sessão dirigida ao sexo feminino. O debate culminou com a distinção de dois
tipos de olhar: um olhar que faz a pessoa sentir-se bonita, que as estudantes gostam de
receber, pela sensação de elogio que é despertada nelas; e um olhar perverso, que gera
desconforto e que interpretam como assédio sexual.

(...) para mim, quando me sinto desconfortável... quando me estão a olhar muito
ou me estão a olhar de alto abaixo, sabem aquele olhar mesmo perverso? Isso
para mim já é assédio... agora estás a passar na rua e a pessoa fica a olhar para ti
com aquele olhar mesmo “se eu pudesse...”, estás a entender? Isso não é correto
(...) (Estudante G_F2, sexo feminino)

Tu consegues distinguir o olhar de cima abaixo, mas olhando com reprovação e


o olhar de cima abaixo (...) com má intenção. E tu também consegues distinguir
um rapaz a olhar para ti de alto abaixo e saberes que é um olhar mal-
intencionado e um olhar de dizer tipo “esta rapariga é muita gira!” (Estudante F_
F2, sexo feminino)

Para a maioria dos estudantes do sexo masculino, o olhar é uma forma de demonstrar
agrado por alguém que consideram atraente e acreditam que é uma ferramenta
imprescindível no processo de sedução. Contudo, afirmam que “olhar fixamente” é
inapropriado e de natureza sexual. Os/as estudantes de ambos os sexos destacam o olhar
dirigido ao sexo feminino como figurativo de assédio, embora não negligenciem o olhar
direcionado ao sexo masculino por parte das mulheres. Realça-se esta perspetiva porque,
embora as narrativas permitam construir o fenómeno do assédio sexual em torno da matriz
da violência de género, sublinha-se esta pista relativa ao papel da mulher, nomeadamente
o facto poder incorrer numa situação de assédio onde toma o lugar da agressora.

52
(...) mas não deixa de haver contra o sexo masculino, haver um grupo de
raparigas a comentar, a olhar, a dizer e, desculpem-me a expressão, “a comer
com os olhos”! (Estudante C_F1, sexo feminino)

No que diz respeito ao assédio verbal, as narrativas enfatizam o piropo, o que gerou
intensos debates no decorrer das sessões. Como se demonstra no Capítulo 2, o piropo tem
sido objeto de acesas polémicas no seio da sociedade portuguesa devido à dificuldade da
sua interpretação, no sentido de perceber se se trata ou não de uma conduta ofensiva. Ao
nível da literatura, esta questão surge no estudo da FAL (2019), onde se sublinha que as
práticas de importunação sexual, nas quais se inscreve o piropo, apresentam uma
tendência decrescente para serem categorizadas como violência sexual. Para os/as
estudantes entrevistados/as a situação é idêntica, exceto se o ato estiver acompanhado de
outras condutas analisadas anteriormente. Nessa circunstância, a opinião geral é de que o
ato é ilícito e se inscreve enquanto assédio sexual:

Um piropo não é assédio, é um piropo. Um piropo bem dado é um piropo; um


piropo com um olhar mal intencionado, como acabamos de dizer, é assédio.
(Estudante C_F2, sexo feminino)

Esta perspetiva não é unânime, sobretudo para os/as estudantes que consideram que,
embora o piropo seja assédio, não se trata de algo relevante e que atribuam importância.

(...) esse da brasa e do não sei quê, acho um bocado demais... mas agora também
não fico super fragilizada... e acho que é assédio, mas não acho que é uma coisa
que me afete assim tanto. (Estudante B_F3, sexo feminino)

As narrativas em torno do piropo revelam que, quando é dito por uma pessoa conhecida,
pode ser interpretado como elogio. Todavia, quando é dirigido por uma pessoa
desconhecida, o entendimento é diferente e o piropo passa a ser visto como uma ofensa
sexual. Conclui-se que o que transforma o piropo em assédio sexual depende mais de quem
o profere (ser alguém conhecido ou desconhecido) do que o ato em si.

Tal como defendem Múrias et al. (2016), cabe a cada indivíduo determinar que
comportamentos entende como aceitáveis ou ofensivos. Esta conclusão foi igualmente
avançada pelos/as estudantes, os/as quais consideram que é de extrema relevância cada
indivíduo definir os seus limites e perceber em que contextos estes são (ou não)
ultrapassados. Através dos discursos é possível deduzir que o conceito de assédio sexual
está sujeito às representações de cada um/a, àquilo consideram atos ofensivos de natureza
sexual, dentro dos limites que estabelecem. Assim, molda-se às atitudes, crenças,

53
experiências e vivências de cada indivíduo, o que faz com que seja extremamente difícil de
encerrar numa definição fixa e unânime.

É importante referir que as representações relativas ao conceito se desviam das definições


contempladas nos diplomas legais, os quais se reportam sobretudo ao objetivo de
intimidar, coagir ou ameaçar a dignidade de outras pessoas. Deste trabalho empírico ao
nível da conceptualização e caraterização das definições relativas ao assédio sexual,
ressalva-se a relevância de compreender a panóplia de atos, condutas e comportamentos
que se associam ao fenómeno.

Porque as definições não se esgotam nos conceitos que os/as estudantes apontam como
assédio sexual, procurou-se compreender as dinâmicas e contextos que os/as envolvem e
a forma como estes/as constroem o fenómeno. Assim, procura-se explorar o modo como
as definições podem ser igualmente subjetivas e variar de acordo com os contextos em que
os/as estudantes estão submersos/as.

5.1.1. Qual a raíz da violência?

O assédio sexual nem sempre é representado pelos/as estudantes como uma forma de
violência, dado que em causa estão comportamentos que têm vindo a ser naturalizados e
legitimados pela própria sociedade. Esta perspetiva não é consensual e há uma grande
parcela de estudantes que frisam, no decorrer das sessões, algumas pistas acerca das raízes
do assédio sexual enquanto violência. Desde logo, sublinham a discrepância entre aquilo
que fazem e que consideram comportamentos “normais” ou “naturais” e ações
espontâneas, que podem ser consideradas assédio.

E às vezes há muitas coisas que nós fazemos no dia-a-dia que não pensamos,
porque está completamente enraizado na nossa cultura, nas nossas práticas
diárias e que constituem uma marca de... eu posso falar, mas acho que nós
vivemos numa sociedade com elevado grau de machismo estrutural e aí a
questão dos assédios, baseia-se nos micro machismos. Nós próprios fazemos
coisas que, para nós, está tudo bem e outra pessoa que se calhar não concorda e
que não deu permissão para isso... (Estudante I_F4, sexo masculino)

Os/as estudantes concluem que a raiz do assédio sexual se encontra no machismo, ou seja,
num sistema normativo que concede privilégios aos homens. Sobre este ponto, é
importante realçar que, embora os/as estudantes refiram o chavão “machismo” nas suas

54
narrativas, os argumentos espoletados por estes/as cruzam-se com o que se realçou no
Capítulo 1 sobre o patriarcado. Deduz-se, por isso, a conexão do assédio sexual às
estruturas sociais patriarcais, de onde sobressai o poder do homem sobre a mulher.

Acho que o machismo é um problema que atravessa gerações, do tempo dos reis
e mesmo antes disso e isso nunca vai passar... e isso é algo que está intrínseco na
sociedade e que, sinceramente está intrínseco mais no homem e é algo do
homem, já... não estou a dizer todos, estou a generalizar. (...) é intrínseco, mas
que de certa forma, voluntaria ou involuntariamente, acontece... às vezes, até eu
próprio posso estar a ser, mesmo não querendo ser. (Estudante E_F4, sexo
masculino)

Os/as estudantes tecem comentários acerca da longevidade deste sistema, ou seja, do


patriarcado, o que lhes desperta um sentimento de impotência, dado que consideram a
mudança difícil porque em causa estão comportamentos naturalizados que serão muito
difíceis de erradicar. Deste modo, não negligenciam que se possa erradicar o sistema
patriarcal, mas consideram que tal não será possível num curto espaço de tempo, o que
compõe um motivo de preocupação para os/as entrevistados/as.

5.1.2. Quem são as vítimas?

Procurou-se compreender as representações dos/as estudantes relativamente ao perfil das


vítimas de assédio sexual. À semelhança da literatura, também estes/as referem que são
sobretudo do sexo feminino, o que permite deduzir que caraterizam o fenómeno enquanto
violência de género.

Apesar deste reconhecimento, que se estende a todos/as os/as participantes, realçam que
também não se podem deixar de apontar as situações em que a vítima pertence ao sexo
masculino:

(...) a minha maneira de pensar é que nunca podemos generalizar, porque


acontece a maior parte das vezes a raparigas, mas obviamente que também, de
certeza, que há rapazes que sofrem com isso... como vamos falar de violência
doméstica, onde o assunto é generalizado entre mulheres que sofrem de
violência doméstica e quando vamos ver estudos, há quase tantas mulheres
como homens vítimas. (Estudante A_ F4, sexo masculino)

De modo concreto, são vários os/as estudantes que recorrem ao exemplo da violência
doméstica para sublinhar que os homens também podem ser vítimas. Por um lado, o
excerto que citei acima permite deduzir que os/as estudantes percecionam o assédio
sexual num continuum de violência de género, uma vez que conseguem conectar os

55
fenómenos entre si; por outro lado, realçam-se as representações relativas às vítimas, o
que requer uma análise sobre os papéis de género e a forma como a sociedade codifica os
traços da vitimação. Assim, os/as estudantes reforçam a seguinte ideia: “[o] problema é
que os homens, como são muito... a ideia do machismo e da superioridade masculina,
também leva os homens a não mostrarem fraqueza” (Estudante A_F4, sexo masculino).
Deste modo, aludem a este tipo de argumentação para justificar o parco reconhecimento
de situações em que os homens estão no papel da vítima.

É importante ressalvar que são poucos os discursos que associam outras caraterísticas
identitárias à vitimação. Assim sendo, destacam-se os poucos exemplos relativos a
situações de assédio que podem ocorrer entre pessoas do mesmo sexo: “[o] assédio não
acontece só de um homem para mulher, pode acontecer de mulher para homem ou de
homem para homem ou de mulher para mulher” (Estudante F_F2, sexo feminino). É
premente sublinhar que estas questões não foram discutidas pelos/as estudantes ao longo
das sessões e que apenas se realçou o estigma associado a este tipo de relações.

São igualmente escassos os exemplos sobre a associação entre o assédio e a nacionalidade


e/ou etnia. Além do caso das estudantes brasileiras (que abordarei mais à frente no
contexto de sala de aula), é somente relatado um caso de assédio a uma mulher negra13:
“[a]s mulheres negras são... é claro, é racismo, é puro racismo, mas também há essa
questão de, ainda é mais objetivada do que uma mulher branca” (Estudante F_F2, sexo
feminino). Embora o discurso não seja claro e não haja uma referência precisa ao conceito
de interseccionalidade, explorado no capítulo 1, permite dar algumas pistas sobre o modo
como os vários eixos de opressão se cruzam e gerem múltiplas discriminações (Crenshaw,
1991).

Em todas as sessões destaca-se, à semelhança de outros estudos (APAV, 2013), a


dificuldade que os/as estudantes têm em se colocar no papel da vítima. Assim, referem que
se trata de algo que poderá acontecer a outras pessoas e raramente se obtêm referências
claras em relação a situações que lhes ocorrem na primeira pessoa. Destaca-se que esta
identificação é ainda mais difícil para os estudantes do sexo masculino, que não relataram

13
Este caso não envolveu o contexto académico, nem nenhum/a estudante. Opto por aludir a este caso pelas
conclusões que surgem acerca dele.

56
quaisquer experiências de assédio. Retomarei estas discussões mais à frente a propósito
dos papéis atribuídos ao feminino e ao masculino.

5.1.3. Quem são os/as assediadores/as?

No que concerne ao perfil dos/as potenciais assediadores/as, os/as estudantes indicam que
são maioritariamente homens, mais velhos, havendo uma associação à imagem de
predadores sexuais. Contudo, muitos/as reconhecem que, por vezes, estas imagens
assentam em preconceitos e estereótipos enraizados e compartilhados pela sociedade.

Ao longo das sessões foi realçada, sobretudo pelas estudantes, a ideia do homem mais
velho e também do desconhecido. Tal como referi anteriormente, os/as estudantes
revelam uma maior facilidade em considerar assédio quando se trata de alguém que não
conhecem, dado que o risco e o receio de vir a acontecer alguma coisa desta índole, com
conhecidos/as, não é tão grande. Para estes/as, quando há um comportamento indesejado
por parte de um/a conhecido/a, sentem que há um “à vontade”, por parte das possíveis
vítimas, em chamar à atenção e em alertar. De outro modo, mesmo que o ato possa
configurar aquilo que consideram assédio sexual, os/as estudantes tendem a não
considerar como tal. Esta questão é abordada recorrentemente pela literatura, a qual nos
informa que há alguma dificuldade em associar a violência sexual ao contexto da
intimidade e de proximidade entre os indivíduos (Mendes et al., 2013).

(...) tenho uma irmã e às vezes, quando ela sai à noite, quando anda à noite na
rua, tenho um bocado de receio... não sei, de ser vítima de alguma coisa, de
assédio, um piropo, digamos, não gosto... por isso é a questão de ser um
desconhecido ou não. De amigos, às vezes, pronto, acho que se pode falar de
assédio, mas temos aquele à vontade de dizer “calma lá”... (Estudante F_F3, sexo
masculino)

É quando os/as estudantes narram histórias de assédio sexual que lhes aconteceram no
contexto académico, que se desfazem de alguns preconceitos relativos ao perfil dos/as
assediadores/as, principalmente a ideia de que são indivíduos provenientes de grupos
marginalizados:

(...) não sei quem era, mas não era um rapaz mais velho que nós, ou seja, se calhar
um ano ou dois, nem tanto... tinha um aspeto normal, não tinha aspeto de uma
pessoa com menos posses ou um sem abrigo ou delinquente ou
toxicodependente ou pronto, pessoas mais dadas a esse tipo de comportamento.

57
Infelizmente, são rotuladas por esse tipo de comportamentos, mas é um rapaz
super normal (...). (Estudante F_F2, sexo feminino)

À medida que os/as estudantes abordam estas questões é possível assistir à desconstrução

dos estereótipos e representações pré-concebidas em relação ao fenómeno. De modo


concreto, os discursos aproximam-se das perspetivas feministas acerca da violência de
género destacadas no Capítulo 1, as quais revelam que a violência não necessita de ser
cometida por homens loucos ou desviantes, mas por homens “normais” (Bograd apud
Duarte, 2013, p. 59).

5.2. Representações sobre o feminino e o masculino

Com base nos preceitos teóricos explorados no Capítulo 1, é possível compreender que o
género é um dos principais eixos de organização das nossas sociedades (Scott, 2008), cuja
análise na relação com o assédio sexual é imprescindível. Sublinho igualmente a
importância que esta categoria assume neste estudo, porque embora as Universidades
sejam espaços cada vez mais feminizados e heterogéneos, persistem modelos de
referência e práticas inerentes ao género que têm vindo a ser reproduzidas (Mendes et al.,
2013).

Com as narrativas dos/as estudantes são identificadas pistas acerca dos papéis atribuídos
pela sociedade ao feminino e ao masculino. Estes são um conjunto de expectativas
relacionadas com os comportamentos que cada sexo desempenha e ditam o modo como
homens e mulheres se devem comportar (Carrito & Araújo, 2013; Oliveira & Amâncio,
2002). À semelhança da literatura, também os/as estudantes entrevistados/as identificam
a mulher como frágil e sensível e associam os homens à força e valentia. Contudo, esta
análise não se esgota nestas caraterísticas.

Conforme revelo no capítulo relativo às estratégias metodológicas, nas sessões com os/as
estudantes, optou-se por partir de questões mais amplas, nas quais se apreenderam os
hábitos de sociabilidade, com quem estes/as se relacionam ou procuram estar nos vários
momentos que compõem os seus quotidianos. Neste encalce, capturaram-se algumas
particularidades relativas aos papéis sexuais que importa destrinçar e pormenorizar.

58
Os/as estudantes esclarecem que gostam de se relacionar com toda a gente,
independentemente do género. No entanto, há rapazes que salientam que preferem
estudar com raparigas devido à imagem de que são mais organizadas e concentradas para
este tipo de tarefas. Já a maioria das raparigas, nas suas saídas à noite, opta por sair com
os rapazes, uma vez que lhes está imputada uma imagem de força e de valentia.

Como é possível deduzir a partir das narrativas, prevalece a ideia de andar em grupo.
Apesar de os/as estudantes destacarem a pertença a grupos mistos, ou seja, compostos
por raparigas e por rapazes, referem que há momentos em que se juntam em grupos
homogéneos (só de raparigas ou só de rapazes) para conversar sobre determinados
assuntos ou para executar tarefas específicas. As raparigas confessam que, quando estão
em grupos femininos, conversam sobre rapazes e sobre os seus problemas mais íntimos.
Os estudantes do sexo masculino salientam que, quando estão em grupo, falam
recorrentemente sobre as suas histórias de sedução. É associado a este contexto que
expõem que, quando passa alguma rapariga que consideram mais atraente, tecem
comentários e trocam olhares. A opinião destes é de que é errado, mas apesar de terem
essa consciência, revelam que são comportamentos socialmente enraizados que não
conseguem evitar.

Tenho casos concretos e no meu grupo de amigos que, quando passa aquela gaja
demasiado boa e tal e... há aqueles comentários menos bons... isso acontece e
isso é uma cena involuntária. Nós não fazemos, não é por mal... é simplesmente
aqueles comentários inapropriados. São demasiado? São! Deviam ser evitados?
Deviam! Contudo, isto é um erro da sociedade, é algo que sai tão natural que é
como se fosse já uma desculpa que está intrínseca a isso... (Estudante E_F4, sexo
masculino).

Ao longo das sessões procurou-se compreender as mudanças que ocorrem na vida dos/as
estudantes com a entrada no Ensino Superior, cujos discursos se concentram na abertura
de horizontes e na nova sensação de liberdade que se desperta neles/as. Assim, tanto os/as
estudantes como as instituições, sublinham a importância da nova sensação de liberdade,
mas também o facto de se encontrar ancorada aos papéis sexuais. Tal como nos diz a
literatura, os/as estudantes que deixam a casa de família, sentem uma nova liberdade que
contempla a possibilidade de fazer outras escolhas (Mendes et al., 2013). Esta sensação é
mais evidente no caso das raparigas, que apresentam uma maior necessidade de se
libertarem de algumas coisas que traziam das suas famílias e de desfrutarem dessa
liberdade.

59
(...) a maior parte dos estudantes são deslocados e, principalmente as raparigas,
têm uma necessidade quando mudam, de crescer, de se libertarem também de
algumas coisas que trazem da sua família de origem e da sua cidade natal e,
portanto, acabam por, ao vir para uma cidade diferente e estar num contexto
que lhes permite uma liberdade que habitualmente não têm, porque nas cidades
de origem estão mais protegidas pelas famílias e, muitas vezes, não têm, na sua
cidade natal, a mesma possibilidade de se relacionar com várias pessoas e de ter
uma maior liberdade (...). (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima)
Dado que as influências familiares e culturais definem o que é esperado para cada um dos
sexos, persiste a ideia de que os/as estudantes deslocados/as, de meios mais
conservadores, se devem comportar de forma tradicional. Ou seja, espera-se que usufruam
da sua liberdade dentro dos “limites” e que não os extravasem. É premente referir que esta
questão é ainda mais acentuada se estivermos a falar do sexo feminino.

No leque das questões culturais, a que é mais realçada nas discussões diz respeito ao
vestuário e à forma como, sobretudo as mulheres, se apresentam. Tal como esclarece o
excerto da entrevista, muitas estudantes, quando ingressam o Ensino Superior, procuram
libertar-se de alguns hábitos e, inevitavelmente, mudam a sua forma de vestir. Assim,
optam por um estilo diferente: usam frequentemente maquilhagem e roupas arrojadas
(Mendes et al., 2013). Mas se desfrutam desta liberdade ao nível do que escolhem vestir,
a roupa, não raras vezes, é também um mecanismo de controlo social (idem). As mulheres
são aquelas que manifestam uma opinião ainda mais crítica em relação a outras mulheres:

Lembro-me de uma vez, estava em minha casa a vestir-me, estava a minha colega
de casa e estava lá um rapaz e eu ia sair e perguntei: “estou bem para sair?” e
ele, “ah, se calhar tens um bocadinho de frio, leva um casaco um bocadinho
maior”... ao que ela responde: “as putas nunca têm frio!”. (Estudante D_ F3, sexo
feminino)
Os estudantes do sexo masculino concluem que as mulheres recorrem a outro modo de
vestir para “dar nas vistas” ou para se sentirem mais “desejadas”, mas, ao mesmo tempo,
são julgadas “provocadoras”. Esta ideia contribui para reforçar a manutenção do vestuário
enquanto indicador de disponibilidade sexual e para reproduzir os papéis e normas que
lhes estão associadas. Estes discursos encontram-se, ainda, colados às ideias de
passividade das mulheres e à própria vitimação, tal como procuro desconstruir mais à
frente.

Queria falar de uma coisa um pouco complicada que parece um pouco machista,
mas eu tenho amigas minhas que se vestem de forma recorrente de... a gente
pode aqui chamar de forma provocatória. Assim, vestir-se com roupas curtas,
justas, que mostrem mais partes do corpo que outras... e eu acho que essas
minhas colegas gostam, de certa forma, de se sentir desejadas... gostam de, ao

60
passar, que as pessoas olhem... e eu acho que para elas, um homem que olhe
para elas e ache que ela é gira e toda boa e é marota, acho que para elas isso não
as incomoda. (Estudante C_F4, sexo masculino)

Embora em número reduzido, há estudantes de ambos os sexos que apontam que estas
questões estão meramente associadas ao facto de as mulheres se sentirem bem de
determinada forma. Assim, apesar de os discursos serem pouco explícitos, identificam
estas questões enquanto mecanismos de controlo social de ordem patriarcal baseados em
estereótipos. Consideram, por isso, que relacionar o modo de vestir à forma de ser e de
estar é contribuir para a manutenção do machismo. Em última instância, do patriarcado.

Acho que ao associar todas estas questões de vestes, de maneiras de estar, de


agir, de falar, de produção ao machismo é o grande problema de hoje... é um
problema que não devia ser sequer um problema, porque quando a gente coloca,
quando a gente associa a veste ou a produção em causa ou o machismo, só a
maneira como ela se vestiu, é provocatória do machismo sim ou não? Ao fazer
essa pergunta, é tudo de mau que está no seio do machismo. Pelo facto de querer
encontrar machismo aqui, já é um ato machista. (Estudante F_F4, sexo
masculino)

Nas narrativas, sobretudo das estudantes, predomina a ideia de que a roupa tem vindo a
ser considerada um indicador de disponibilidade sexual: “Não é por eu estar com uma
camisola transparente e um brallette que eu quero alguma coisa ou estou a permitir-lhe
que digam ‘olha, queres vir?’ ou alguma coisa” (Estudante G_F2, sexo feminino).

Dada a conexão entre o vestuário e a disponibilidade sexual, podemos deduzir que as


mulheres ponderam o que vestem atendendo o lugar (geográfico) onde vão ou o meio onde
estão inseridas. Trata-se, pois, de uma ferramenta que dispõem e que recorrem para não
ser vítimas de alguma forma de violência, tal como sublinha a literatura (Duarte, 2013;
Oliveira, 2014). Através das narrativas, as estudantes informam que vestem roupa
específica atendendo os contextos onde se inserem. Se se sentem protegidas, sobretudo
em lugares onde há maior presença de raparigas, optam por se vestir como se sentem bem,
mesmo que isso implique o uso de roupas mais arrojadas. Evidenciam igualmente que
quando frequentam lugares onde predominantemente se cruzam com o sexo masculino,
se vestem de forma mais discreta. É premente ressalvar o caso específico revelado apenas
pelas estudantes das Engenharias, que ponderam muito bem o que vestem quando vão
para as suas aulas, principalmente no Pólo 2, dado que é um lugar onde se encontram
sobretudo homens:

(...) mas eu acho que nós como mulheres, também sentimos muito... por
exemplo, se for para o pólo 2, eu vejo a roupa que vou levar, eu não levo saia,

61
não tão facilmente como quando vou para o pólo 1. (Estudante A_F3, sexo
feminino)

Há estudantes que enfatizam que estas questões não estão necessariamente relacionadas
com lugares geográficos específicos, com maior ou menor presença de homens, com mais
ou menos iluminação. Para estas estudantes, basta usar uma peça de roupa mais curta para
que se sintam invadidas pelos olhares, entre outros atos, que as remetem ao desconforto.
Revelam, por isso, que a própria sociedade está formatada para reforçar a manutenção
deste tipo de mecanismos.

Como demonstram as narrativas dos/as estudantes, a roupa é um mecanismo de controlo


social realçado recorrentemente e, por isso, muito importante para fornecer informação
acerca dos papéis sexuais. A relevância deste assunto para o assédio sexual e para a
presente dissertação, encontra-se na relação entre a forma como as pessoas se vestem e
as ideias pré-concebidas acerca da vitimação, que não se esgotam no que foi referido
acerca das vítimas.

A literatura e os dados que analisámos até ao momento indicam que as mulheres têm uma
maior propensão a ser vítimas. Indicam igualmente pistas que permitem reconhecer que
se consideram vítimas inocentes as mulheres respeitáveis, que vestem roupas discretas e
que foram atacadas por um/a estranho/a, um/a criminoso/a. As estudantes que quebram
com esta visão são tomadas por vítimas culpadas, porque são tentadoras, porque levam os
homens a cair na tentação e, neste sentido, são agentes da sua própria vitimação (Schafran
apud Duarte, 2013, p. 95). Quando incorrem numa situação de assédio sexual, as mulheres
que se vestem de forma arrojada e que são extravagantes nos modos como se apresentam,
são representadas como alguém que alimentou a sua própria vitimação. São, por isso,
responsabilizadas pela violência com o discurso repetidamente mencionado pelos/as
estudantes de que estavam “a pedi-las”.

(...) nós ouvimos isto trinta vezes por dia e isto revolta-me de uma forma... que é
aquilo do “está a pedi-las”, sabem? Aquilo do “foi violada, é porque está a pedi-
las”. Aconteceu-me, aqui há uns tempos, uma coisa que é... eu não costumo usar
saias (...). A primeira vez que eu uso saia, passo por dois gajos, desculpem, dois
senhores (...), nunca me disseram nada. Nesse dia, estava de saia e dizem “então,
não se diz boa tarde?”. Isto não é nada de especial, mas os olhares deles (...).
Estou de saia... o que significa uma rapariga estar de saia? Ainda por cima de dia,
que nem era de noite. O que significa? Está de saia já pode ser abordada? E eu
nem sou uma pessoa que use... então a primeira vez que uso saia sou o quê? Já
posso ser abordada por um gajo porque uso saia, é? Abordada por uma má forma
(...). (Estudante C_F2, sexo feminino)

62
Ao recuperar as narrativas acerca dos/as potenciais agressores/as e a partir do
reconhecimento de que o assédio sexual também pode ser perpetrado por mulheres, os/as
estudantes revelam algumas pistas sobre os papéis atribuídos ao feminino. A constatação
destes casos surgiu aliada à representação de que as mulheres são consideradas “mais
abusadas” e conotadas de forma negativa. Tal como sublinha o estudo de Mendes et al.
(2013), algumas das críticas face aos comportamentos das mulheres são avançadas por elas
mesmas, que exercem controlo moral entre elas. A este respeito, a literatura sugere que
as mulheres são condenadas de forma mais severa do que os homens porque é uma prática
inerente à masculinidade e, por isso, algo que é esperado do sexo masculino. Quando as
mulheres tomam este tipo de práticas, desafia-se a normatividade:

Também acho que há duas partes, sim. Mas também depende de cada pessoa,
sei lá. Há raparigas que, também, se calhar são um bocado mais abusadas e às
vezes também podem conseguir deixar os rapazes desconfortáveis, mas eu acho
que isso depende um bocadinho de pessoa para pessoa. (Estudante G_F3, sexo
feminino)

E acho que, outra vez aqui, a sociedade volta, entre aspas, a impor-se aqui,
porque não é natural uma mulher fazer isso. Se bem que, se uma pessoa quiser
pôr um rapaz desconfortável, sabe perfeitamente como o fazer, mas é mais
condenável. Enquanto que, quando é um homem nunca foi... sempre pôde.
(Estudante H_F3, sexo feminino)

As narrativas revelam que há maior facilidade em culpabilizar a mulher em questões de


índole sexual. São, por isso, condenadas de modo mais severo do que os homens por aquilo
que fazem e sujeitas a imposições sociais de ordem diversa. Por exemplo, no estudo
Mendes et al. (2013), a mulher que toma a iniciativa de abordar um homem desconhecido
é criticada e considerada “leviana”. Do estudante boémio, apenas se espera que goze a vida
e que assuma uma posição de dominador face às mulheres. Assim, há uma maior facilidade
em que os homens assumam as suas conquistas publicamente e se “gabem” delas, como é
sublinhado pelos/as estudantes. Das mulheres, espera-se que as escondam, dado que paira
a certeza de que vão ser julgadas e criticadas pela sociedade.

“Eu fiz”. Eu acho que nós temos mais vergonha... às vezes até parece que... se
estamos hoje com uma pessoa e com outra amanhã, até parece que temos um
pouco mais vergonha disso e acho que, para os rapazes, isso é tipo motivo de se
andarem a gabar e de dizer a toda a gente... do género “hoje estive com aquela,
ontem estive com a outra”, estão a entender? Sinto que há muito isso!
(Estudante D_F3, sexo feminino)

(...) a nível de sociedade, o facto de um rapaz faz, ok... uma rapariga faz, espera
aí que já é condenada. É muito mais natural e é muito mais fácil de falar do que

63
para nós, porque tem todas essas imposições sociais, porque a nível de
sociedade, o homem está sempre acima (...) (Estudante H_F3, sexo feminino)

Longe de se esgotarem as representações acerca do feminino e do masculino, as que são


aqui discutidas assumem especial relevância para mapear as representações relativamente
ao assédio sexual por parte dos/as estudantes. Assim, permitem solidificar algumas das
questões referidas na componente teórica e oferecem uma reflexão mais profunda
relativamente a outros tópicos pouco explorados na literatura. É importante referir que a
análise dos papéis sexuais se continuará a revelar, sobretudo na relação com os vários
contextos em que o assédio sexual é identificado.

5.3. Assédio sexual na Universidade de Coimbra? Análise do(s) quotidiano(s)


dos/as estudantes.

As narrativas demonstram que o quotidiano dos/as estudantes é marcado por vários


contextos e atividades muito caraterísticas deste período das suas vidas. Primeiramente,
destaca-se o contexto diurno marcado pelas rotinas de estudo, mas também pela interação
com a cidade e pelos percursos entre casa, as Faculdades e os espaços onde convivem.
Atendendo a imagem do conhecimento associada às Universidades, especial atenção será
dada ao contexto de sala de aula, nomeadamente com situações de assédio por parte de
docentes. A praxe académica é igualmente uma das atividades que faz parte do quotidiano
dos/as estudantes e que não está tão associada a um momento temporal, uma vez que
ocorre tanto durante o dia como no período da noite. Por fim, destaca-se o contexto
noturno, ligado às festas académicas, aos rituais de saídas à noite e aos vários momentos
de convívio que se desenrolam pela(s) noite(s) fora.

Os/as estudantes, ao longo das discussões em grupo, identificam situações em que tiveram
contacto ou seria mais suscetível de terem contacto com o assédio sexual e que importa
aqui frisar. A relevância deste subcapítulo é que nos permite compreender não só as
representações destes/as relativamente ao assédio sexual, mas também as suas principais
fontes de preocupação e inquietações. Pretende-se, ainda, cruzar a informação
compartilhada pelos/as estudantes com aquela que advém das várias instituições que
rodeiam a comunidade académica, bem como o trabalho que tem vindo a ser desenvolvido
por estas no que concerne ao problema que se está a tratar.

64
5.3.1. Contexto diurno

Face ao contexto diurno, a imagem compartilhada pelos/as estudantes é de que o assédio


sexual não é tão representativo e que passa apenas por olhares e comentários pontuais:
“Acho que durante o dia, em tempo de aulas, acho que pelo menos não tenho essa
perceção, que seja algo muito representativo... talvez momentos pontuais, como
comentários, olhares (...)” (Estudante A_F1, sexo masculino). Tendem, por isso, a
desvalorizar a associação deste contexto à prevalência de assédio. Porém, destacam-se
episódios que os/as estudantes identificam como assédio sexual sob a forma verbal e que
ocorreram em momentos de interação com a cidade:

(...) a começar pelo dia, eu por acaso quero partilhar a situação mais
desagradável que me aconteceu em Coimbra, que foi há cerca de dois meses, à
porta da Faculdade, em plena luz do dia, com montes de pessoas à volta e foi
mesmo muito desagradável. Eu estava a sair da Faculdade, estava ao telefone e
foi mesmo uma situação de assédio, mesmo. Nunca me tinha acontecido, nunca
me tinha sentido assim (...). Tinha ido à Faculdade resolver uma série de
problemas, tinha sido só um dia de resolver problemas e vinha a sair da
Faculdade, tipo com a pasta carregada, a chover “a potes”, tipo de guarda-chuva,
casaco de chuva, a falar ao telefone, a resolver problemas do núcleo... e várias
vezes sou abordada na Faculdade e sou parada por colegas que nunca vi na vida,
porque me pedem ajuda e auxílio para tirar dúvidas de problemas pedagógicos
ou fazer perguntas (...). E estava a sair da Faculdade e houve um rapaz que disse
que precisava realmente de falar comigo (...), porque ele estava a dizer-me assim
“estás a falar ao telefone? Precisava de falar contigo e é urgente” e eu disse: “o
que é que precisas” e ele disse assim “ah! é que eu nunca te tinha visto e tu és
muito bonita” ou “tu és muito linda”. E eu fiquei assim... eu não disse nada e
depois ele assim: “queria saber se não querias fazer sexo comigo” e eu fiquei,
completamente assim, tipo vidrada, gelada, estás a ver? Estão a ver? Tipo, parei,
olhei à volta e só pensei assim para mim “só pode ser para os apanhados”(...). Em
plena porta férrea, com montes de gente a passar... e acho que houve pessoas
que me chamaram para me cumprimentar e eu não tinha mais nada, peguei no
telefone, continuei sempre para a frente a falar com essa amiga minha. Não me
lembro do que lhe disse, sei que fiquei montes de tempo a falar sem saber o que
lhe estava a dizer (...). (Estudante F_F2, sexo feminino)

Estava a sair da minha Faculdade e, se vocês saírem do estádio universitário, vê-


se a encosta toda de Coimbra, mesmo ali à beira do rio. Ainda não tinha passado
a ponte, então agachei-me, pousei o telemóvel em cima do murito e estava a
tirar uma foto da encosta toda. Epá, tudo bem, a tirar, tirei uma, tirei duas...
levanto-me e vem um homem, um sujeito para aí dos seus quarenta e alguns...
passa por mim e vinha-se a rir. Ok, eu sou simpática e tal e às vezes as pessoas
falam na rua e uma pessoa até brinca. Ele vinha-se a rir e ele assim “deves ser
uma boa...”. E eu pensei assim, eu tive tempo na minha cabeça para pensar e
assim... eu até pensei que ele ia dizer que eu era boa fotógrafa, porque eu estava
ali, tirei duas e três fotos... e ele disse “deves ser uma boa foda” (...), vocês sabem
o que é estares a cruzar-te com um homem que tem idade para ser teu pai e diz-
te isto assim? (Estudante H_F3, sexo feminino)

65
Sobre as narrativas relativas ao contexto diurno, deduzem-se duas conclusões. A primeira
é que, se inicialmente os/as estudantes sublinham a desvalorização do assédio verbal,
nomeadamente com a discussão em torno do piropo, com estes relatos, torna-se claro que
é algo que lhes causa desconforto e que, sobretudo as estudantes, atribuem bastante
importância. A segunda conclusão é que não é tanto a abordagem que as incomoda, ou
seja, o facto de a pessoa desconhecida as interpelar ou lançar “piropos”, mas o conteúdo
sexual daquilo que é dito. Assim, se há piropos que os/as estudantes até interpretam como
elogios, é o recurso a um vocabulário extremamente indecoroso e sexualizado que
transporta a conduta para o domínio das ofensas sexuais.

Por fim, acerca dos trechos que cito, ao longo das sessões denota-se uma facilidade muito
maior, por parte dos/as estudantes, em interpretar os casos relativos a este contexto como
assédio sexual. De modo particular, é algo frequentemente associado à ideia do
desconhecido que se aproxima na rua durante a noite, tal como sublinho anteriormente.
Quando estas situações ocorrem durante o dia, os/as estudantes atribuem maior
gravidade, dado que permitem romper com as ideias pré-concebidas acerca do fenómeno.
Assim, se a maior fonte de preocupação das estudantes até ao momento em que foram
reveladas estas situações se prendia com a segurança nos momentos noturnos (cuja análise
se procederá mais à frente), é aqui que concluem que não se sentem seguras apenas
porque são mulheres.

Esta questão está também relacionada com a ideia da vitimação explorada anteriormente,
no sentido em que estas se posicionam mais facilmente num papel de vítimas inocentes e
encaram a sua vitimação de modo mais sério, uma vez que são alvo destas formas de
violência num contexto que não as submete a uma imagem pecaminosa e de vítimas
culpadas.

5.3.2. Contexto de sala de aula (por professores/as)

Como sublinho no Capítulo 2, o assédio sexual, tal como se encontra definido e redigido
nos diplomas, pressupõe uma relação hierárquica. Quando há episódios desta índole por
parte de docentes a estudantes, deveria ser uma evidência clara de que se trata de assédio.
Os/as estudantes não mencionam este pressuposto hierárquico nas suas definições

66
relativamente a esta conduta e, por isso, deduz-se que para estes/as, o assédio não precisa
de estar veiculado a uma posição hierárquica, mas consuma-se nos atos em si. No caso das
instituições, há uma maior facilidade em identificar casos de assédio sexual no seio de uma
relação hierárquica, o que pode ser explicado pelo conhecimento relativo às definições dos
diplomas legais, as quais vão ao encontro deste pressuposto. Embora os/as estudantes não
apontem a posição hierárquica como elemento chave da definição de assédio sexual, não
negligenciam a possibilidade da sua ocorrência neste contexto. No entanto, os exemplos
são escassos.

As narrativas permitem apreender os significados que os/as estudantes atribuem a estudar


na Universidade de Coimbra. Inevitavelmente, voltam-se para a abertura de horizontes e
de aprendizagens. Os/as docentes são igualmente representados/as figuras que pautam
pelo conhecimento e pela transmissão de valores. Porém, o problema do assédio sexual
surgiu aliado a estas representações:

(...) no meu 1º ano da Faculdade tinha um professor que não era correto com as
raparigas... só foi meu professor no 2º semestre e colegas tinham sido alunas
dele no 1º semestre... e elas já me tinham avisado que ele fazia assim...
comentários impróprios sobre a roupa das alunas, que gravava boomerangs das
alunas e punha nas histórias do Instagram, pedia para alunas o seguirem no
Instagram, adicionarem no Facebook... e é um homem que devia ter 35 anos no
máximo, novíssimo! E houve alguns episódios que me ficaram. Mas houve um
que eram 9h da manhã, estávamos na sala, mas ainda não tinham chegado
muitos alunos, então o professor começou a falar com umas raparigas que
estavam mais perto dele... e a rapariga estava a usar um top cai-cai e a primeira
coisa que o professor lhe diz é “que soutien é que usas para essa camisola?”. Foi
assim um momento... a miúda ficou desconfortável... não lhe respondeu (...). No
momento ninguém disse nada, mas esse professor, depois mais tarde, no início
do ano letivo passado, numa festa do meu curso, houve uns rapazes que o
convidaram (...). E ele foi e disse: “Ah!, se eu soubesse que, sei lá, um nome, a
Maria (nome fictício), fazia natação sincronizada, já a tinha ido ver há mais
tempo”. Depois, essa miúda fez queixa à coordenadora do curso e o professor foi
afastado totalmente. Mas ele... vocês se calhar pensariam, ok, é professor, se me
acontecer alguma coisa vai ser alguém que, não digo proteger, mas fazer com
que aquilo não aconteça na sala de aula dele... porque se fosse um aluno a fazer
um comentário, ele ia reprovar o aluno, reprovar o comentário, mas como era
ele a fazer, parecia que não havia mal. (Estudante A_F2, sexo feminino)

Este assunto é exposto maioritariamente pelas estudantes de sexo feminino, as quais


revelaram alguns sinais de receio em abordar o tópico nas sessões. O tema surgiu quando
já havia alguma conexão entre os/as participantes nas discussões, dado o grau de
intimidade necessário para a sua abordagem. Ainda assim, os discursos fluíram lentamente
e houve quase sempre a sensação de que ponderavam com muita moderação o que iam
dizendo.

67
Para muitos/as estudantes, este problema é antigo, do conhecimento de todos/as, mas
ainda é considerado tabu e algo marginalizado. Estes/as sublinham que a situação é errada
e contraditória, devido à imagem dos/as docentes como as figuras máximas da sua
educação. A opinião dos/as estudantes é de que os/as docentes, com este tipo de
condutas, contribuem para a reprodução e manutenção deste tipo de normas e promovem
a aprendizagem de comportamentos que colocam em causa a dignidade do próximo.

As instituições, como referi anteriormente, sublinham principalmente casos de assédio


sexual na comunidade académica entre docentes e estudantes brasileiras, embora não
negligenciem outros casos. Esta informação é avançada por várias instituições, as quais
destacam a predominância de assédio verbal no contexto de sala de aula, nomeadamente
com a referência a “bocas” e “comentários” dirigidos às estudantes brasileiras.

Este caso é de extrema importância e permite relacionar com a teoria da


interseccionalidade que analiso no Capítulo 1 e na delimitação do perfil das vítimas.
Conclui-se que as mulheres estão submersas em vários eixos de opressão que, combinados
entre si, gerem múltiplas discriminações que importa ter em consideração. Este exemplo
relaciona-se igualmente com alguma da literatura acerca das migrações, em particular
aquela que diz respeito à discriminação das mulheres brasileiras. Acerca desta, informa
que, como estas mulheres estão associadas a uma nacionalidade predominante no
“mercado do sexo” em Portugal, não raras vezes, assistimos à propagação do estigma da
prostituição para outras imigrantes com a mesma nacionalidade (Duarte & Oliveira, 2012).
Ao mesmo tempo são diagnosticados impasses na interpretação dos comentários que são
dirigidos pelos/as docentes a estas estudantes e que derivam de problemas de linguagem.

Vão surgindo alguns casos que configuram, eu diria, diferentes situações que a
gente pode incluir nas situações de assédio, quer sejam, enfim, os relatos,
comentários de natureza sexual, explícita ou implícita, que têm a ver com, por
exemplo, comentários feitos por docentes mulheres ou por docentes homens e
envolvendo também, sobretudo, estudantes brasileiras. Ou seja, são
comentários que são vistos por essas estudantes como sendo do ponto de vista
daquilo que é uma abordagem desadequada, alguns que, enfim, são bocas
despropositadas que ficam (...) ali muito na fronteira do que é um conteúdo
sexual ou de natureza sexual ou até sexista do comentário (...). (Provedor do
Estudante)

O vestuário é, novamente, um dos assuntos revelados nos discursos dos/as estudantes,


que aludem à sua associação ao contexto de sala de aula. Neste sentido, os/as estudantes
confessam que ponderar a roupa que vestem para os momentos de avaliação e de aulas é

68
algo recorrente. Não há relatos na primeira pessoa, mas os/as estudantes socorrem-se de
exemplos de pessoas que conhecem, o que reforça a perspetiva realçada anteriormente e
que se prende com a dificuldade que estes/as têm em se posicionar no papel da vítima.

As narrativas dos/as estudantes referem que em causa estão, geralmente, as classificações


obtidas em determinadas unidades curriculares. É ainda importante referir que estes
discursos dizem sobretudo respeito a Faculdades com um elevado grau de
conservadorismo.

Uma coisa que ouço muito das minhas colegas de casa de Direto é, “ajuda-me a
escolher a roupa que hoje vou ter oral e o professor é não sei quem e eu tenho
de ir assim, ou tenho de ir assim vestida porque é isso” ou “temos um problema
com um trabalho, vai tu falar com o professor que és rapariga, é mais fácil”.
(Estudante D_F3, sexo feminino)

As instituições reconhecem que é uma informação que lhes é reportada e relatada


recorrentemente.

(...) com professores há e já houve, já tivemos chamadas, alguns contactos do


género, alunas, acaba por ser muito mais o sexo feminino, que ligam a dizer...
isto mais prevalente nas épocas de exames e, por exemplo, que têm uma oral
que é muito difícil, mas que já sabem que se forem vestidas de x forma que é
possível que seja mais facilitada. Ou que, por exemplo, inclusive são, estou a dar
um exemplo muito específico em que me falou de várias situações, estava numa
oral e o professor nunca a olhou nos olhos ou que assistiu à oral de outra pessoa
e que a pessoa não teve competências para passar, mas ia com x roupa ou falou
de x forma querida, ou já era uma pessoa querida do professor, então acabou
por completar a cadeira... (SOS Estudante)

Os discursos dos/as estudantes a este respeito sublinham que esta informação acaba por
ser compartilhada entre pares a partir do momento em que chegam às Faculdades ou que
ingressam em novas unidades curriculares que pressupõem uma mudança de docentes:

Eu não sei como é que é com os vossos cursos, falando mais na parte diurna, mas
há sempre um professor no nosso curso... um ou dois... certos professores que
dizem, que os nossos colegas mais velhos dizem, “leva decote para as aulas”.
(Estudante C_F1, sexo feminino)

Esta partilha de informação entre pares é um mecanismo de alerta para comportamentos


inapropriados por parte de alguns/mas docentes e/ou estudantes mais velhos/as. Deste
modo, geram receio nos/as estudantes a quem a informação é transmitida, o que faz com
que muitos/as estudantes evitem estar na presença de determinado/a docente ou colega.
As instituições sublinham que a informação é, ao mesmo tempo, um mecanismo dissuasor
e de prevenção de potenciais situações risco.

69
(...) quando, à medida que os estudantes, por exemplo, que às vezes são as partes
mais vulneráveis, chegam a uma instituição... se nessa instituição, por exemplo,
existir alguém que tem esse perfil, essa pessoa normalmente já é conhecida. Já é
conhecida por fazer comentários inapropriados, é conhecida por ter outro tipo
de comportamentos e acho que isso acaba por dar algum grau de proteção às
pessoas, [para] que possam fugir dessas situações que as podem expor. E,
portanto, (...), por exemplo, há docentes que, por uma razão ou por outra, onde
as estudantes não vão aos horários de atendimento... não vão ou não aceitam,
enfim, reuniões pelo Skype ou pelo WhatsApp ou onde quer que seja e fogem a
esse tipo de contactos, porque às vezes têm um receio, um receio infundado,
outras vezes têm uma informação que vai sendo passada entre pares sobre
comportamentos... assim... menos próprios, para ser polido na maneira de dizer,
próprios de certas pessoas, sejam docentes, sejam colegas estudantes às vezes
mais velhos. (Provedor do Estudante)

Sobre os casos de assédio sexual no contexto de sala de aula, um dos assuntos que mais
incomodou os/as estudantes ao longo das sessões prende-se com o encaminhamento. Este
assunto será analisado com maior detalhe mais adiante quando abordar o papel das
instituições relativamente ao assédio sexual.

5.3.3. Contexto de praxe académica14

A partir do momento em que os/as estudantes ingressam o Ensino Superior são


confrontados/as com uma nova dinâmica marcada pela participação em rituais
académicos, designadamente, a praxe (Mendes et al., 2013). De acordo com as narrativas
destes/as, é um importante mecanismo de integração na comunidade académica,
profundamente associado ao crescimento pessoal, transmissão de valores e
estabelecimento de laços de amizade. Todos os discursos enfatizam estas opiniões quer
por parte daqueles/as que eram e são adeptos/as da praxe, quer por aqueles/as para quem
a praxe não tinha ou tem qualquer significado.

Nem sempre foram escutados discursos positivos a este respeito ao longo das sessões e,
por isso, os/as estudantes divulgam outros contextos15 e modos de interagir com a cidade,

14
A Praxe Académica encontra-se definida como “o conjunto de usos e costumes tradicionalmente existentes
entre os estudantes da Universidade de Coimbra e todos os que forem decretados pelo Conselho de
Veteranos da Universidade de Coimbra” no artigo 1.º do Código da Praxe. Como é possível compreender e
será demonstrado, não se reduz à situação de gozo do caloiro. Reconhecendo que o conceito é mais amplo
do que o que se procura aludir, opto por usar este conceito para aludir ao gozo do caloiro, por ser a
denominação que lhe é recorrentemente dada.
15
Os/as estudantes reforçaram que há outros mecanismos que promovem a inclusão e integração na cidade,
como é exemplo o Cri’atividade, que é uma alternativa à praxe e também o Gabinete de Inclusão do Núcleo
de Estudantes de Direito.

70
além da praxe académica. Na base desta divulgação predomina a ideia de que as
experiências de praxe não são iguais para todos/as e que podem, também, ser contextos
nefastos e onde os/as estudantes não se sentem bem.

A perspetiva da integração, o elemento mais proferido pelos/as estudantes, foi


desconstruída e posta em causa com os discursos em torno da humilhação e das práticas
física e psicologicamente agressivas que se associam à praxe. É premente sublinhar que
este contexto pressupõe um processo hierárquico rígido e uma dinâmica de submissão por
parte dos/as estudantes mais velhos/as (“veteranos/as”) para com os/as mais novos/as
(“caloiros/as”). Recorro uma vez mais ao estudo de Mendes et al. (2013) para enfatizar as
narrativas dos/as estudantes face a esta situação. Estes/as referem que aceitam participar
na praxe devido à possibilidade de se sentirem integrados/as, ainda que isso implique
sujeitarem-se a algumas regras ou rituais dos quais discordam (idem). A partir dos discursos
de alguns/mas estudantes conclui-se que não os/as incomoda (ou incomodou) de modo
severo participar, embora não concordem com tudo o que experiencia(ra)m. Há estudantes
que realçam que, à medida que ascendem na hierarquia, deixam de se identificar e de se
sentir confortáveis em exercer o papel de dominadores/as e por isso, não raras vezes,
abandonam a praxe.

Os/as estudantes reconhecem que há exageros e abusos nas praxes, sobretudo do ponto
de vista psicológico, mas a grande maioria julga imprescindível passar por essas situações
durante esta fase das suas vidas. O argumento de base desta afirmação prende-se com as
futuras relações de subordinação no trabalho, o que culminou com a interpretação da
praxe como uma preparação para esse tipo de situações:

Há exageros na minha praxe? Há. Eu estive de quatro a ouvir um sermão que não
fazia sentido nenhum... mas continuo a dizer a mesma coisa... naquele dia, foi
um doutor mais velho, que não fazia sentido nenhum ele dizer aquilo... um dia,
vai ser no trabalho, que o meu chefe não vai estar a fazer sentido dar-me na
cabeça daquela maneira e vai estar a dar... (Estudante H_F3, sexo feminino)

Quando se procura compreender a relação entre a praxe e o assédio sexual, tanto a partir
da literatura como dos discursos das instituições, averigua-se que as Universidades são
construídas com base em relações de poder assimétricas.

(...)a Universidade é construída sobre relações de poder definidas e muito


assimétricas. Nós sabemos que relações de poder assimétricas são,
naturalmente, contextos favoráveis a que as pessoas se sintam mais
vocacionadas para assediar e, portanto, eu acho que essa caraterística

71
incontornável de uma instituição de Ensino Superior, não especificamente da
UC... mas relações hierárquicas, inclusive entre estudantes, ou seja, entre
códigos da praxe, se é do primeiro ano... eu acho que existem várias situações
entre estudantes e os estudantes do mesmo sexo ou de sexo diferente ou de um
género diferente... existem várias situações que são situações que partem de
uma assimetria de poderes que são favoráveis a que ocorram casos de assédio
de natureza sexual ou até moral. (Provedor do Estudante)

A praxe é uma evidência clara das marcadas relações de poder assimétricas que, aliadas a
uma lógica patriarcal e sexista, reforçam e incentivam uma cultura de violência, sobretudo
de cariz sexual (Mendes et al., 2013). As narrativas dos/as estudantes acerca da relação
entre a praxe académica e o assédio sexual não são claras e tampouco lineares. Importa
ressalvar, desde já, que não há discursos por parte dos/as estudantes relativamente a casos
de assédio sexual neste contexto. Porém, uma vez que estão em causa rituais de base
patriarcal e sexista, procura-se escrutinar e interpretar o modo como a praxe pode (ou não)
estar relacionada com a problemática.

A maioria dos/as estudantes reconhece que a praxe é sexista16, o que tem sido alvo de
diferentes interpretações. Há estudantes que interpretam como uma praxe separada por
sexos, onde o sexo masculino prepara a praxe para os seus caloiros e o sexo feminino a
praxe das suas caloiras e esses momentos ocorrem em horários e locais distintos. Para
estes/as estudantes é o mais acertado a fazer, para não expor nenhum dos sexos a
situações de desconforto. Por outro lado, os discursos em relação a este modo de
interpretação sugerem que a praxe gera discrepâncias ao nível da integração. A conclusão
é de que este não é um modelo viável, afinal é este o objetivo da praxe.

Numa segunda interpretação, há estudantes que realçam modelos de praxe onde estão
todos/as juntos/as, onde os rapazes obedecem aos rapazes e as raparigas às raparigas,
cujas narrativas relativamente a esta interpretação sublinham que é algo que poucos
cursos fazem. É importante realçar este aspecto porque apesar de as praxes consideradas
mistas serem a norma17, os/as estudantes julgam que são os/as únicos/as a passar por essa

16
O conceito de praxe sexista que aqui exploro diz respeito à separação por sexos, porque é assim que os/as
estudantes designam essa situação nos seus discursos.
17
Quase todos/as os/as estudantes apontaram que as suas praxes são mistas. Apenas a praxe da Faculdade
de Farmácia, dado que engloba todos os cursos da Faculdade e da Faculdade de Direito, onde as praxes são
separadas por tertúlias, referiram ter praxes sexistas rígidas, ou seja, separadas por sexo. É importante
compreender que esta questão também depende da amostra de estudantes (Anexo 1).

72
situação e reforçam sempre que é contra as normas, embora o façam na mesma com muita
cautela.

(...) fazemos uma coisa que poucos fazem: misturar rapazes e raparigas... nós
estamos todos juntos porque, como podem imaginar, somos poucas raparigas e
fazer separado não ia ser, supostamente, aquilo que é, que é inclusiva e acho que
é sexista tudo muito bem, até um certo ponto. Eles brincam todos... claro que há
um jogo mais ousado ou mais assim ou mais assado, ok, em primeiro vão os
rapazes uns contra os outros e depois as raparigas umas contra as outras...
(Estudante H_F3, sexo feminino)
As narrativas demonstram que não há consenso quanto às interpretações do que se
entende por praxe sexista e, por isso, há estudantes que reforçam a importância de
compreender porque é que o Código da Praxe estabelece a divisão por sexos. Neste
sentido, procurou-se perceber a posição e o entendimento do Conselho de Veteranos,
dado que são a Assembleia que regula a praxe académica:

(...) o Conselho de Veteranos está perfeitamente ciente e nós sabemos que


existem praxes com rapazes e raparigas, mistas por assim dizer... e não vemos
problema nenhum com isso. Acho que atualmente, haver uma separação
taxativa de rapazes para um lado e raparigas para o outro é até pejorativo (...). O
que nós somos contra, o que achamos que não deve acontecer, é haver uma
praxe em que estejam 50 caloiras e 2 rapazes (...) ou o inverso... por uma questão
muito simples... vão sempre, eventualmente vai acontecer uma situação que vai
ser condenável. Vão decorrer 20 praxes em que há rapazes a praxar caloiras e, se
calhar, até corre bem (...), mas basta uma correr mal, que mancha a imagem da
UC, mancha a imagem da praxe e que cai logo o Carmo e a Trindade. Por isso, por
segurança, nós mantemos o artigo. (Conselho de Veteranos)

Quando se procurou compreender porque é que as praxes mistas não podem estar
devidamente protocoladas no Código da Praxe, concluiu-se que as situações de
desconforto são presumíveis neste contexto. Face ao discurso que cito acima, deduz-se que
o artigo permanecerá inalterável por uma questão de segurança e para ilibar algumas
responsabilidades, caso possa a vir a acontecer alguma coisa.

Sobre este aspecto, os discursos dos/as estudantes sublinham o receio de que algo pode
correr mal, o que é, por vezes, infundado e baseado em histórias transmitidas entre pares.

E no meu curso nunca houve, por exemplo, eu sei que há cursos que as raparigas
só praxam raparigas e os rapazes só praxam rapazes. Na minha Faculdade não,
no meu curso é tudo ao molho e fé em Deus. Estamos ali todos e toda a gente
praxa toda a gente, por isso acho que nunca correu mal, nunca houve assim
nenhuma situação que me assustasse, porque eu sei de histórias assim...
Péssimas... (Estudante A_F2, sexo feminino)

As narrativas em torno das praxes mistas encontram-se também coladas nos papéis e
estereótipos sexuais, aos quais aludimos anteriormente e que reforçam as diferenças entre

73
o feminino e o masculino. No contexto da praxe surge sobretudo a ideia de que as mulheres
são mais severas e agressivas. Assim, os/as estudantes apontam que as praxes conduzidas
por mulheres são invasivas e comprometem o conforto dos estudantes do sexo masculino.

Estudante E_F2, sexo feminino: A nossa praxe costuma ser mista, porque as
doutoras pedem para os praxar a eles...
Estudante C_F2, sexo feminino: Coitados!

A estes discursos acrescenta-se a ideia compartilhada pelos/as estudantes acerca das


diferenças entre as praxes femininas e masculinas. Deste modo, as estudantes ressalvam
que as praxes dos rapazes são divertidas e que as suas são vingativas e marcadas por abusos
psicológicos. As praxes exclusivamente femininas são as que maioritariamente contribuem
para a manutenção da humilhação e das normas patriarcais no contexto de praxe
(retomarei esta ideia mais à frente).

(...) não achei que fosse inclusiva, porque primeiro estavam basicamente sempre
a ralhar connosco e depois sempre achei que a parte do sexismo não contribui
para o lado das raparigas. Os rapazes, nós olhávamos para a praxe deles e víamos
que estavam-se a divertir, porque eles levam tudo na brincadeira e quando fazem
uma consequência, também é uma consequência em brincadeira. As raparigas,
notava-se que, quando era uma consequência, era mais uma vingança...
(Estudante A_F3, sexo feminino)

(...) onde há muitas raparigas misturadas... já estão a imaginar que não resulta
bem, considerando que é uma praxe muito vingativa. Depois se falamos de uma
doutora... então, elas sabem sempre tudo, então é péssimo, porque estamos
sempre “de quatro” e elas quase nos humilham à frente de toda a gente, do
género, “ó caloira, andou a dizer mal de mim, não sei quê?”. É um bocado
humilhante (...). (Estudante G_F3, sexo feminino)

Esta tendência não se verifica apenas nas praxes separadas por sexo, dado que nas praxes
mistas, as narrativas dos/as estudantes revelam igualmente o repertório excessivo em
torno do abuso psicológico e das humilhações. Assim, também nas praxes mistas, as
raparigas são expostas a jogos e brincadeiras de cariz sexual que comprometem a sua
integridade e dignidade. Não raras vezes, a exposição a estas condutas é fomentada por
outras raparigas, o que, uma vez mais, nos fornece algumas pistas acerca dos papéis
sexuais, nomeadamente a ideia de que são mais maléficas entre elas do que com os
rapazes.

Temos uma horrível, aí é assim, a rapariga ou aceita muito bem e brinca com
aquilo, ou então é das piores que há, desculpem lá, mas eu vou descrever mesmo
aquilo, que é... uma rapariga que vai à frente e o rapaz vai atrás a correr, feito
desalmado na rua, onde há espaço: “Anda cá”, “não que estou com o período”,
“não faz mal que gosto de arroz de cabidela...” (risos). Aquilo é muito agressivo

74
e depois é assim, ou tu levas a coisa na brincadeira, porque estás no espírito, ou
corre mal. (Estudante H_F3, sexo feminino)

A referência aos conteúdos sexuais é um dos assuntos abordados recorrentemente


pelos/as estudantes:

A coisa que discordo com a nossa praxe é que ela é muito sexual, é tudo muito
virado para esse lado. No início, há os jogos para se conhecerem e há essas coisas
todas, mas isso vai acabando e vão ficando as praxes e aquelas brincadeiras mais
sexuais. As músicas são todas sexuais, já toda a gente sabia... mas, em termos até
de jogos, o kamasutra humano e coisas assim, é muito virado para esse lado e eu
como doutora, nessas praxes, recuava... não considero, quando fui caloira, não
me senti bem ao fazer, portanto, como doutora, também não vou para aí.
(Estudante A_F3, sexo feminino)

As brincadeiras e jogos ousados, que aludem à sexualidade, são frequentes no contexto de


praxe, como é possível depreender através do excerto citado. Os/as estudantes revelam
que sentem algum desconforto e apontam que são recorrentemente expostos/as a jogos
com posições sexuais e/ou confrontados/as com perguntas mais íntimas acerca da sua
sexualidade. Por oposição, há a opinião de que não é tanto o recurso ao jogo em si que é
motivo de desconforto, dado que apenas tem o efeito de contribuir para aproximar os/as
estudantes, mas o exagero em termos da sua repetição.

(...) a questão das posições sexuais faz parte da juventude e bem feito tem a sua
piada... abrir as pessoas... o problema é precisamente quando exageram e
quando acaba por ser quase sempre a mesma coisa. Lembro-me de um curso que
estava sempre a fazer o macaquinho do chinês sexual, faziam para aí 3 vezes por
praxe. Tem piada só uma vez. (Conselho de Veteranos)

As narrativas a este respeito não são apenas relativas às brincadeiras e reportam-se


igualmente às canções, cânticos e hinos de curso. Assim, a opinião dos/as estudantes de
ambos os sexos é de que predomina uma linguagem de cariz extremamente sexual e sexista
que os/as remete ao desconforto.

(...) tu estavas a falar na praxe e nas músicas e... não sei como é que são as vossas
músicas de curso, mas as do meu curso são... nós temos as regras divididas,
temos a praxe divididas, rapazes de um lado, raparigas do outro. As raparigas têm
uma lista de regras e cantam e eu, honestamente não sei... e as nossas são...
basicamente é falar sobre comer gajas... (Estudante A_F1, sexo masculino)

Não, não, não... é das coisas que eu mais odeio de sempre. Por exemplo, quando
é a parte dos cânticos, calo-me sempre e é muito sexista, mesmo músicas do meu
curso... (Estudante C_F3, sexo feminino)

Sobre este aspeto, procurou-se escutar o Conselho de Veteranos:

Isto sempre fez parte dos estudantes, o problema é que nos últimos anos
exagerou-se no uso do vernáculo, ao ponto de serem coisas completamente

75
repugnantes e ofensivas e já não têm... o vernáculo tem aquele coiso do “ah, ele
disse um palavrão”. Ou seja, chegou-se a um ponto em que se exagerou tanto e
deturpou-se tanto, que todas as músicas têm um cariz altamente sexual, mas lá
está, é uma coisa que evoluiu com a sociedade. Por exemplo, dou um exemplo
muito bom, são os rapazes da Orxestra Pitagórica, que são altamente críticos, são
altamente, por assim dizer, brejeiros, mas no sentido de classe. Mas nunca, nas
suas músicas, eles exageram na sua... a música não repugna, não usam o exagero,
consegues ter lá uma piada inerente... enquanto que nos gritos de praxe não... é
imensamente sexualizado, é muito intenso e depois reduz-se só a isso. A
interação é quem, numa palavra, consegue dizer a coisa mais repugnante. Nesse
aspecto é uma evolução meramente social (...), mas sim, somos avidamente
contra. (Conselho de Veteranos)

O entrevistado sublinha que os ditos “vernáculos” sempre fizeram parte do repertório


dos/as estudantes, mas que, nos anos mais recentes, se tem vindo a assistir a um exagero
do seu uso. Sublinha igualmente que já se procurou incentivar alguns cursos a alterar os
seus cancioneiros e a criar novas canções e hinos, de modo a quebrar esta tendência. O
entrevistado diz-nos que não resultou e que os/as estudantes revelam uma extrema falta
de criatividade e que recorrem, inevitavelmente, aos “vernáculos”. Assim, o Conselho de
Veteranos, manifesta-se avidamente contra o léxico das canções e critica o facto de os/as
estudantes, atualmente, estarem reduzidos a este curto laivo de criatividade.

Como tenho procurado elucidar ao longo da presente dissertação e à semelhança do que


revela a literatura, a praxe académica é marcada por rituais sexistas e de base machista, o
que se pode comprovar tanto ao nível das brincadeiras como das canções e hinos dos vários
cursos. Apesar de marcada por uma lógica patriarcal rígida, que não é habitualmente posta
em causa pela maioria dos/as estudantes (Mendes et al., 2013), não se podem esquecer as
narrativas daqueles/as que concluem que este é um ambiente que promove a objetificação
das mulheres.

Sim, mas tu vês isso (objetificação da mulher) na praxe, quem é adepto da praxe,
eu sou e já fui mais e continuo a ser, mas tu vês isso nos cânticos da praxe, nos
rituais da praxe, tu vês isso na Faculdade... (Estudante B_F1, sexo masculino)

Esta conclusão é alvo de contestação por vários/as estudantes, principalmente porque


emerge na sequência da discussão em torno de uma polémica que surgiu nas redes sociais
e na comunicação social sobre uma festa promovida por um grupo praxístico18. Em causa
estava um cartaz relativo a um preçário que não tinha valores, mas desafios destinados

18
Esta polémica surgiu na comunicação social. Poderá ser encontrada em: Público (2019),“Cartaz que
prometia shots grátis a mulher que se beijassem divide estudantes de Coimbra”, consultado a 10 de outubro
de 2020, disponível em: https://www.publico.pt/2019/10/10/p3/noticia/cartaz-prometia-shots-gratis-a-
mulheres-que-se-beijassem-divide-estudantes-de-coimbra-1889598

76
“apenas às meninas” que iam desde “beijar alguém” a “mostrar as mamas”. A opinião de
alguns/mas estudantes é de que este tipo de situações promove a objetificação da mulher
e contribui para a naturalização de comportamentos. Outros/as estudantes, defendem que
são apenas brincadeiras, que têm de ser interpretadas como tal e que jamais se podem
levar “à letra”:

Estudante C_F1, sexo feminino: Não é por cantares ou gritares uma coisa que a
vais fazer!

Estudante B_F1, sexo masculino: Mas é por cantares ou assim que propicias...
não é uma brincadeira, não podes levar como uma brincadeira!

Esta discussão é particularmente relevante porque permite sustentar o argumento


defendido por Mendes et al. (2013), quando sublinha que “relativamente às mulheres, a
praxe é totalmente anti-emancipatória (...), pois as mulheres reproduzem rituais de praxe
que integram uma clara violência sexual” (idem, p. 100). Assim, os discursos dos/as
estudantes permitem trilhar duas reflexões: a primeira é a de que começa a haver
consciência de que se trata de uma prática que promove a cultura de submissão das
mulheres por parte da comunidade estudantil; a segunda é que esta associação é mais clara
para os estudantes do que para as estudantes, dado que estes, no geral, revelam maior
preocupação em defender os interesses delas.

No momento em que os/as estudantes concluem acerca da lógica por de trás da praxe –
ancestral e patriarcal – os discursos apontam para a sua reformulação. Preconiza, acima de
tudo, a ideia de que deve acompanhar a mudança da sociedade e que, se hoje se caminha
no sentido da valorização da mulher, a praxe tem de caminhar em prol dessa mudança:

(...) mas não é de realizar... é o retrocesso! Porque tu estás a caminhar num


sentido, no sentido de atingir uma coisa que é a valorizar a mulher, a não
objetificar o seu corpo... e depois na praxe, em brincadeira, estás a contrariar
tudo aquilo que fora dela estás a tentar chegar lá, percebes? (Estudante B_F1,
sexo masculino)
Ainda que perante a ausência de discursos claros e evidentes que permitam sustentar a
conexão entre a praxe e o assédio, não se pode esquecer que esta se reveste de um
extremo caráter sexual e sexista. Não se pode igualmente esquecer que, tal como revelo
atrás, as hierarquias associadas à praxe são um rastilho para a ocorrência de assédio sexual.
Por considerar que esta combinação de fatores pode contribuir para este tipo de condutas,
mesmo sem relatos concretos por parte dos/as estudantes de casos de assédio sexual neste

77
contexto, procurou-se compreender o que pensa o Conselho de Veteranos relativamente
a este assunto.

Eu acho que, muitas vezes, esse tipo de situações, quando acontecem, não estão
necessariamente ligadas à praxe. Elas não acontecem por causa de... no
ambiente de praxe em si. Acontece, provavelmente, entre estudantes e entre
pessoas que são mais otárias que outras... mas, ou seja, a ligação em si à praxe
ou o incentivo da parte da praxe nunca é devido à praxe. Como tal, as pessoas
associam mais o assédio à pessoa em si e à personalidade da pessoa e não à
instituição (...). (Conselho de Veteranos)

A conclusão da instituição é que não é a estrutura que alimenta o assédio sexual, mas a
personalidade das pessoas que fazem parte dessa estrutura. Apesar da mudança que o
Conselho de Veteranos tem vindo a promover ao longo dos últimos meses, no sentido da
sua reestruturação e na tentativa de limpar a própria imagem da praxe, persistem alguns
problemas. Desde logo, nem todos/as os/as estudantes estão a par e acompanham as
mudanças que o Conselho de Veteranos tem procurado implementar, o que faz com que
resistam algumas práticas. Resiste, também, a dificuldade em reconhecer as raízes deste
tipo de problemas, o que não passa pelas novas caras. Pelo contrário, tal como foi possível
analisar, passa antes pela estrutura em si, isto é, pelo abandono das conceções
tradicionalistas e patriarcais.

5.3.4. Contexto noturno – o caso das festas académicas

A entrada no Ensino Superior é também marcada por uma nova dinâmica de experiências
de convivialidade e de rituais. As narrativas dos/as estudantes realçam as típicas saídas à
noite nas terças e quintas “académicas” nos vários espaços de convívio e com o objetivo
de sedimentar as suas sociabilidades. Realçam-se igualmente os expoentes máximos das
festas académicas – a Queima das Fitas e a Latada. Quando se pediu aos/às estudantes que
falassem acerca das festas académicas, os relatos incidiram, principalmente, sobre
episódios relativos à Queima das Fitas e à Latada e, por isso, extraem-se duas conclusões:
a primeira é que as noites de terça e quinta-feira são, de certo modo, banais, isto é,
encontram-se demasiado enraizadas no imaginário dos/as estudantes, ao passo que,
quando se pede que falem delas, pouca importância lhes é dada; a segunda conclusão é
que, dado que os/as estudantes enfatizam a Queima das Fitas e a Latada, permite-nos
deduzir que, embora sejam momentos que ocorrem em alturas específicas do ano, são

78
realçados pela exuberância e excessos vividos. Assim, os/as estudantes sublinham
situações extremas relativas a estes contextos.

Por falar em festas académicas... pronto, provavelmente toda a gente sabe,


porque tenho várias colegas de outras Universidades, dos mais variados pontos
do país que me perguntaram "o que se está aí a passar em Coimbra?". Foram
vários os vídeos de relações sexuais no meio da rua. (Estudante A_F1, sexo
masculino)

Apesar de terem sido destacadas diversas situações, um dos episódios mais abordado e
referido pelos/as estudantes diz respeito aos vídeos que circularam nas redes sociais de
jovens a ter relações sexuais na rua durante as festas académicas19. Para os/as
entrevistados/as, os vídeos são relevantes para a análise do assédio sexual porque
permitem compreender o modo como se estão a naturalizar as relações sexuais nestes
contextos.

Através da exposição relativa às condutas representadas pelos/as estudantes enquanto


assédio sexual, os/as estudantes destacam a prevalência excessiva do toque e dos apalpões
no contexto noturno. Concluem que é algo que afeta principalmente o sexo feminino,
principalmente quando ocorre em espaços apertados, no meio da multidão e onde é difícil
identificar quem os faz:

É horrível para qualquer rapariga, numa festa académica, tu estás simplesmente


a querer passar na multidão, para ir à casa de banho, ir beber, o que quer que
seja e apalparem-te 5 vezes o rabo nesse caminho (...). E depois tu olhas para trás
e nem vês ninguém que tivesse na situação ou na oportunidade de... tu ficas ali,
no meio de uma multidão, desesperada, sem saber o que fazer. Já tive várias
amigas a chegar ao pé de mim, desesperadas, a querer sair dali, porque não
conseguem passar o meio da multidão sem sofrer isso. (Estudante C_F1, sexo
feminino)

Perante os discursos dos/as estudantes averiguou-se, também, a relação com o consumo


excessivo de bebidas alcoólicas, tal como exploramos no Capítulo 3. Os discursos dos/as
estudantes permitem deduzir que este consumo excessivo é algo recorrente entre estes/as
tanto nas habituais noites de terça e quinta-feira, como na Queima das Fitas e na Latada.
Nas narrativas destes/as persiste a ideia de que não é possível sair sem consumir bebidas
alcoólicas, uma vez que as noites não são tão divertidas sem álcool: “[t]emos de admitir

19
Este assunto também ficou conhecido na Comunicação Social. Pode ser encontrado em: Magg (2019),
“WhatsApp. Estão a circular vídeos de jovens a terem sexo na rua em festas académicas”, consultado a 10 de
outubro, disponível em https://magg.sapo.pt/atualidade/atualidade-nacional/artigos/whatsapp-estao-a-
circular-videos-de-jovens-a-terem-sexo-na-rua-em-festas-academicas

79
que tudo o que são cidades académicas são álcool. Ninguém consegue sair à noite sóbrio e
estar tranquilo” (Estudante H_F3, sexo feminino). Assim, a rotina de bebedeiras é algo com
que se confrontam regularmente.

O pessoal sai à noite e exagera, o pessoal sai à noite e bebe... E os excessos fazem
com que as pessoas, às vezes, tenham algumas atitudes e alguns
comportamentos, que sejam fora do comum e fora do normal do dia-a-dia... (...)
às vezes, o problema são as outras pessoas, com quem a gente se cruza e, por
diferença de 10 ou 15 minutos, eu vou cruzar-me com alguém completamente
bêbedo e que pode ter uma atitude comigo menos apropriada... (Estudante F_F2,
sexo feminino)

Através dos discursos em torno do consumo de álcool surge a referência a condutas pouco
apropriadas, nomeadamente a referência a episódios de natureza sexual. Os/as estudantes
reconhecem o álcool enquanto desinibidor: “(...) eu acho que as pessoas acabam por estar
mais desleixadas, no sentido de não pensarem naquilo que estão a dizer e simplesmente
dizem ou fazem” (Estudante A_F1, sexo masculino). Ao mesmo tempo, os discursos
revelam que este não pode ser usado como justificação para comportamentos
desadequados: “(...) tu estavas a dizer que a bebedeira potencia... é verdade que potencia,
mas não pode ser uma justificativa para que a prática aconteça, entendes?” (Estudante
B_F1, sexo masculino)

Através dos discursos em torno do consumo excessivo de álcool é possível destrinçar


algumas particularidades que se prendem com os papéis sexuais. Assim, os/as estudantes
realçam que as raparigas são quem mais extravasa os limites e quem habitualmente usa o
consumo de álcool para justificar comportamentos fora do comum:

À noite está toda a gente bêbeda, se acontecer alguma coisa é culpa da


bebedeira, então aí acho que se nota mais as raparigas a sair mais da casca,
porque deixam de ter tantos filtros e saltam fora do que a sociedade impõe. E aí
amigos, quem as parar que tenha sorte. (Estudante H_F3, sexo feminino)

Relativamente à parte noturna e diurna, acho que a noite, mesmo o facto de as


pessoas quando saem à noite, ser aquela situação de beber álcool e de estarem
mais alcoolizadas e mais “soltas”... há muito abuso nessa situação, mas isso sinto
que é parte a parte. As raparigas ficam mais ariscas e metem-se mais com
rapazes, como os rapazes, tipo é aquela situação de, parece que vão ao talho.
(Estudante B_F3, sexo feminino)

Os trechos citados comprovam o que refiro anteriormente acerca do modo como as


mulheres “ultrapassam os limites” e de como é algo que sobressai, dado que são
recorrentemente censuradas e julgadas de forma severa. No que concerne ao sexo

80
masculino predomina a imagem do estudante boémio, o que faz com que se naturalizem
alguns dos seus comportamentos relacionados com o consumo excessivo de álcool.

Não são apenas os/as estudantes que associam o consumo de bebidas alcoólicas à
ocorrência de violência sexual. Neste sentido, também por parte das instituições
predomina também o reconhecimento de que os contextos festivos se revelam de risco
acrescido, o que permite sustentar os argumentos oferecidos pela literatura:

(...) os consumos por parte dos estudantes universitários, seja de álcool ou outras
substâncias, são bastante elevados e não é só durante as festividades
académicas, mas também durante todo o ano, nos dias que os estudantes
escolhem para as suas saídas. Por isso, há uma série de festas, sejam festas
académicas ou sejam outras, em que o consumo exagerado destas substâncias é
motivado e em que quem não consome até deixa de fazer parte do grupo, ou é
posto um pouco de lado. Portanto, há um sentido para o consumo e o consumo
em si, não é que o consumo seja a causa da violência, mas é um potenciador, um
desinibidor e faz com que algumas pessoas se sintam mais desinibidas para
serem violentas e em relação às vitimas, deixa-as mais vulneráveis, porque vão
estar com os seus sentidos mais entorpecidos e com menor capacidade de
reação. (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima)

É premente realçar que os discursos dos/as estudantes ressalvam igualmente situações que
ocorrem no contexto noturno e que não estão diretamente associadas às festas
académicas em si. Sobressaem, assim, os trajetos entre as festas e os regressos a casa. Os
discursos recaem sobre a questão da segurança e sobre a falta de liberdade que assola
principalmente as estudantes:

Eu sinceramente, eu não me vejo a ir sozinha para casa, por exemplo hoje... não
dá... entendem? Fico mesmo com medo. O meu coração fica a palpitar. Eu não
devia ter medo de andar sozinha na rua... Ainda mais de dia, entendem?
(Estudante G_F2, sexo feminino)

Esta situação gerou alguns relatos por parte de estudantes face a situações de perseguição
que já sofreram nos seus trajetos das festas para casa:

(...) a única situação mesmo em que eu fiquei mesmo assustada cá, foi aquela
situação do homem, mas ele não tinha a nossa idade, devia ter quarenta ou
cinquenta anos. Aconteceu porque uma amiga minha passou mal uma noite e
fomos de táxi até casa dela, eu deixei-a em casa, mas eu tinha mesmo que ir para
casa (...),como eu tinha dito, eu não tinha medo nenhum de andar sozinha, eram
4h30 da manhã e eu disse-lhe “eu vou para casa”... ela estava mal, mas já ia
dormir. E eu saí de casa dela e ao sair de casa dela eu vou por uma parte mais
coberta e um homem estava lá ao fundo às quatro e meia da manhã e eu só me
lembro que ele tinha um guarda-chuva. E eu fiquei a olhar para ele e pensei “o
que é que um homem faz aqui às quatro e meia da manhã a mexer num guarda-
chuva?” e ele olhou para mim e continuou e aquilo que eu fiz foi mudar de
passeio... só que eu tinha que passar por ele, para ir para o sítio onde era a minha
casa (...). Ele começa a andar quando vê que eu estou a ir para o lado dele e
começa a ir atrás de mim. Eu pego no telemóvel, a falar com um amigo meu e

81
começo-lhe a dizer “eu acho que estou a ser perseguida”, porque o homem vinha
mesmo atras de mim, só que eu tenho este cabelo que é uma trunfa e acho que
ele não se apercebeu. E depois eu grito “eu acho mesmo que estou a ser
perseguida, está um homem atrás de mim”. E é só nesse momento em que eu o
vejo a virar para o Santander, como se fosse para o banco, às quatro e meia da
manhã (...). Eu fiquei tão em choque na altura que só me lembro que ele tinha
um guarda-chuva e que era muito mais velho do que eu, não me lembro de mais
nada, porque só estava preocupada se me acontecesse alguma coisa. (Estudante
H_F2, sexo feminino)
Tal como acontece na situação que cito e tal como evidenciam outras estudantes, para
quebrar esta sensação de insegurança e para evitar que sejam vítimas, um dos mecanismos
usado recorrentemente é falar ao telemóvel nos seus trajetos das festas até casa. Outro
mecanismo a que as estudantes recorrem prende-se com a presença de rapazes nos seus
grupos, tal como realço atrás. Assim, as raparigas procuram andar em grupos de rapazes,
o que contribui para se sintam seguras e para que tenham a certeza de que podem contar
com o apoio deles caso lhes aconteça alguma coisa:

Sinto-me sempre segura no meu grupo. Como também temos sempre rapazes,
sinto-me mais segura. Se fossem só raparigas, sinto que é mais provável
acontecer. Nunca vou sozinha para casa, vai sempre alguém comigo. Como tenho
amigos que vivem ao pé de mim, levam-me sempre ou vamos todos de táxi e
acho que é menos provável de acontecer alguma coisa. (Estudante A_F2, sexo
feminino)

Esta perspetiva não é unânime. Por um lado, há rapazes que dizem que há raparigas que
não querem que estes (mesmo que conhecidos) as levem a casa porque têm igualmente
receio: “(...) eu já tive casos de querer levar pessoas a casa e de me dizerem que não, porque
pensavam que eu tinha outra intenção.” (Estudante G_F1, sexo masculino). Por outro lado,
há estudantes que apontam que o rapaz não é o elemento que faça realmente a diferença:
“(...) não estou a ver sentir-me menos segura porque estou com 3 raparigas em relação a
estar com 2 raparigas e 1 rapaz. Não acho que o rapaz seja ali a barreira de guarda-costas
e ninguém se mete...” (Estudante C_F2, sexo feminino).

Contrariamente ao que seria de esperar, os discursos em torno do contexto noturno e das


festas académicas permitem compreender que o assédio sexual é uma prática com que se
confrontam recorrentemente. A tendência revelada pelos/as estudantes é no sentido da
desvalorização dos episódios de assédio sexual neste contexto porque é algo que se
encontra naturalizado e que já é esperado. Os discursos permitem igualmente perceber
que, por ser algo com que se confrontam com regularidade nas suas noites académicas,
ativam, desde logo, mecanismos para escapar a uma possível vitimização. Assim, sobretudo

82
as estudantes, procuram estar em grupos compostos por rapazes, evitam andar na rua
sozinhas, não aceitam boleias e tentam não dar nas vistas. É também possível compreender
que não são tanto os possíveis episódios nas festas que lhes causam afronta, mas os
trajetos entre as festas e as suas casas, nos quais são interpeladas, principalmente por
homens desconhecidos, mais velhos, que se encontram na rua, o que corresponde à visão
tradicional acerca do perfil de assediador.

Porque este contexto se confunde com o excesso de bebidas alcoólicas e com os papéis
sexuais tradicionalmente atribuídos, merece uma maior desconstrução.

5.4. Combater o assédio sexual? O papel das instituições e campanhas de


sensibilização no contexto académico

Quando se procedeu à análise das representações dos/as estudantes acerca do assédio


sexual, tornou-se evidente a necessidade de compreender o papel de algumas instituições,
organizações, associações e órgãos que compõem a Universidade de Coimbra e/ou que
contactam com este tipo de casos. O objetivo foi o de perceber, por um lado, o modo como
têm acolhido (ou procuram acolher) os casos de assédio sexual e, por outro lado, analisar
o trabalho que têm vindo a empenhar ao nível da divulgação de informação e das
campanhas de sensibilização.

Os/as estudantes revelam algumas dificuldades em descrever o processo de denúncia de


casos de assédio sexual, dado que a maioria destes/as aponta sobretudo a Polícia e aludem
a procedimentos relativos às violações (uma vez que realçam provas forenses, tais como
guardar a roupa, etc.). Quando se trata de denunciar, predomina a sensação de que só as
condutas mais extremas, tais como a violação, são aceites pelas autoridades. Nesta senda,
quando os/as estudantes recordam os atos que identificam enquanto assédio sexual, este
tópico é alarmante devido à dificuldade em provar as situações que os/as entregam ao
desconforto. Esta situação é ainda mais alarmante se a conduta ocorre na rua, é perpetrada
por um/a desconhecido/a e não têm qualquer elemento de prova: “Como ias chegar à PSP
e dizer ‘assobiaram-me ali naquela rua, àquela hora, por uma pessoa que não conheço de
lado nenhum’? O que é que iam dizer? ‘Olha filha, vai para casa, fecha-te em casa!’”
(Estudante C_F1, sexo feminino).

83
Os casos de assédio sexual que ocorrem dentro da própria Universidade de Coimbra, em
particular no contexto de sala de aula, são também um motivo de preocupação para os/as
estudantes. Estes/as sentem que serão sempre desvalorizados/as e prejudicados/as, dado
que julgam que quem terá de se acomodar a uma situação não pretendida e de que foram
alvo serão eles/as: “(...) irrita-me, também, o facto de quem sai mais prejudicado é sempre
o aluno e a aluna do que o professor (...)” (Estudante G_F2, sexo feminino). Consideram
igualmente que o processo de denúncia passa por relatar ao/à coordenador/a de curso, o
que se faz acompanhar por um sentimento de impotência por parte dos/as estudantes, que
consideram ineficaz expor a situação a esta pessoa que, por sua vez, estabelece relações
cordiais com o/a docente que perpetra o assédio. Assim, acham que serão facilmente
desacreditados/as.

Tal como sublinha o relatório preliminar do projeto SUPERA (Lopes et al., 2019), embora a
prevalência de assédio sexual na Universidade de Coimbra seja significativa20, os casos
raramente têm sido denunciados, principalmente à própria instituição. Face a esta
informação, que foi possível também comprovar através das narrativas, os/as estudantes
revelam duas tendências: na primeira, remetem-se ao silêncio, o que acabou por ser a
norma; na segunda, denunciam a outras figuras da comunidade académica que se
encontram fora deste registo mais institucional.

As instituições e associações que habitualmente recebem estes casos no contexto


académico reconhecem que não são especializadas neste tipo de atendimento, mas são
vistas como entidades de recurso por parte dos/as estudantes. São exemplos a SOS
Estudante, embora tenha acolhido poucos casos até ao momento e a Secção de Defesa de
Direitos Humanos, que tem tido um papel mais ativo. Ambas apontam que encaminham as
denúncias para instituições com maior autonomia e com um papel mais específico na
resolução deste tipo de casos. Assim, procuram encaminhar para órgãos que compõem a
Universidade de Coimbra e que têm a missão de defender os interesses legítimos dos/as
estudantes, como é o caso da Provedoria. Encaminham igualmente para a Associação
Portuguesa de Apoio à Vítima, dado que é uma organização especializada no acolhimento
deste tipo de situações.

20
Informação avançada pelo próprio projeto.

84
A Direção-Geral da Associação Académica de Coimbra representa os/as estudantes, mas
não receberam, até ao momento, qualquer denúncia desta índole. Assim, dizem-nos que
não dispõem de qualquer mecanismo para o atendimento de casos. Face ao que foi
revelado na entrevista, sublinha-se alguma dificuldade em que a própria associação
descreva (ainda que hipoteticamente) o processo de encaminhamento de casos desta
natureza, o que é justificado com o argumento de que nunca tiveram contacto com esta
realidade. É ainda premente referir que não mencionam as figuras que têm um papel ativo
no tratamento destes casos na Universidade (e.g. Provedoria) e que apenas apontam que
passa pelas coordenações de curso, acima de tudo por pessoas com alguma sensibilidade
para acolher os casos. Este ponto é muito relevante porque, à semelhança das narrativas
dos/as estudantes, permite perceber que predomina a opinião generalizada relativamente
à falta de sensibilidade para com este tema no seio da comunidade académica:

(...) se acontecesse teria de investigar um bocadinho, mas acho que aqui se


calhar... se fosse... dependia um bocadinho do contexto em que teria acontecido
tudo isto, pronto. Ao nível da Faculdade, aulas, alguma coisa que fosse mais
repetitiva, que até pudesse afetar ali um bocadinho o desempenho escolar, se
calhar até iria mesmo falar ou com o coordenador de curso ou com alguém na
Faculdade que tivesse um bocadinho mais essa sensibilidade (...) e dependendo
um bocadinho da gravidade e do contexto, ir também à polícia, por exemplo, ou
algo assim. (Direção-Geral da Associação Académica de Coimbra)

Também o relatório preliminar do projeto SUPERA sublinha que o apoio institucional


prestado para atender este tipo de casos é, muitas vezes, considerado inadequado e
insuficiente, nomeadamente ao nível de faltas de resposta, falta de informação sobre os
procedimentos seguidos e algumas questões controversas ao nível da confidencialidade e
anonimato (Lopes et al., 2019).

A provedoria é o órgão a que as instituições e associações encaminham casos de assédio


sexual e o que lida com este tipo de casos no seio da comunidade académica.

(...) a Provedoria age com um conjunto de casos e defende tudo aquilo que são
interesses legítimos dos estudantes e, dentro da carta de princípios éticos da
Universidade de Coimbra, qualquer forma de assédio, incluindo o assédio sexual,
seja de uma aluna ou de um aluno, seja de um professor ou de uma professora,
seja o contrário, entre alunos, qualquer tipo de assédio é um desrespeito por
aquilo que são os princípios éticos e as normas comportamentais de qualquer
pessoa, incluindo funcionários, não docentes (...). Em casos de natureza sexual,
designadamente de assédio, obviamente há uma atuação do Provedor... não vai
chegar a um relato de assédio, o Provedor não vai perguntar ao estudante ou à
estudante se ele ou ela já falou com o docente, se já falou com o colega, se já
falou, ou seja, é precisamente daqueles casos, tudo o que são casos de abusos,
abusos da praxe, abusos de natureza sexual, ações reiteradas de assédio moral,

85
pode-se ter questões de assédio moral também, o Provedor não exige que esse
percurso normal, que é o percurso que leva a que a Provedoria seja a última
instância de recurso... o Provedor não exige, nem pede que o estudante
comprove, ou seja, não há passos anteriores necessários (...). Qualquer situação
que vai ao Provedor, vai pedir provas, o Provedor está sujeito a sigilo, está
obrigado ao sigilo, o Provedor e a Provedoria, as pessoas que trabalham na
Provedoria estão obrigadas ao dever de sigilo. Ou seja, não vai nunca tomar
nenhuma ação que não seja consentida pela pessoa (...). E, portanto, o Provedor
está sempre disponível para que os estudantes reportem casos de assédio e que
queiram reportar ao Provedor, em primeira mão, a situação em que estão, em
que foram envolvidos (...). (Provedor do Estudante)

Face à informação citada, verifica-se um desconhecimento generalizado, por parte dos/as


estudantes, em relação a este órgão, o qual é referido unicamente por aqueles/as que se
encontram envolvidos/as no associativismo estudantil. Também nem todas as associações
que representam os/as estudantes são capazes de identificar a figura do Provedor. Este
ponto é extremamente relevante, dado que ao longo das sessões surgem dúvidas sobre
quem efetivamente lida com este tipo de casos e quais as instituições ou órgãos aos quais
se pode recorrer. Conclui-se que, se esta informação não circula na comunidade estudantil,
é muito difícil que se tratem e reconheçam este tipo de casos. Assim, assiste-se só à
naturalização e reprodução dos casos.

Do mesmo modo que os/as estudantes aludem à falta de conhecimento sobre onde se
podem dirigir em caso de assédio sexual, surgem igualmente discussões acerca das
campanhas e da sensibilização por forma a combater este problema.

Os discursos dos/as estudantes relativamente às campanhas de sensibilização perfilam-se


em três posições: os/as que consideram que há falta de campanhas; os/as que apontam a
existência delas, mas que ressalvam outros obstáculos; e os/as que identificam campanhas
concretas.

Na primeira perspetiva, os discursos evidenciam uma falta de consciencialização sobre o


assédio no contexto universitário e apontam que não existe um trabalho profícuo e
profundo ao nível da consciencialização e prevenção.

Relativamente à segunda posição, há estudantes que reconhecem que vão existindo


algumas campanhas, mas que não são representativas das vivências universitárias, ou seja,
consideram que não são adequadas:

As instituições e até mesmo as pessoas que são afetadas por isso, generalizam
de certa forma os casos, que passa despercebido o que é que aconteceu. E depois
lá está, há muita coisa que é direcionada logo e não há um foco, não há um tentar

86
perceber e assim. Instituições fora não conheço. Conheço algumas, pronto, não
acho que sejam representativas daquilo que é a vivência na universidade e acho
que isso é uma falha na sociedade. E depois, lá está, é como te expliquei, quando
há e se há, não são informadas de ambas as partes sobre o que é o problema. E
isso é uma falha, sinceramente... (Estudante E_F4, sexo masculino)
Outros discursos mostram que há apenas alguma falta de divulgação destas e a ausência
de interesse por parte dos/as estudantes, bem como alguma dificuldade em mobilizá-
los/as para formações e palestras sobre estes assuntos. Este desinteresse é marcado pelos
contrastes de género, sendo que o sexo masculino é aquele que menos frequenta estas
sessões. Os discursos indicam que será difícil avançar no combate a este problema se esta
tendência persistir porque, ao estarem só presentes as mulheres a abordar estes assuntos,
não permite atingir a mudança:

Fora do meio académico, às vezes acontecem, são é pouco divulgadas (...). O


problema é só como mobilizar as pessoas para as atividades, porque se elas
acontecerem e forem poucas pessoas a aparecer, vale de pouco... e se forem só
as mulheres a ir também não adianta, porque elas a falar só de problemas que as
afetam só a elas, não vai permitir mudar nada. (Estudante I_F4, sexo masculino)
Por fim, destacam-se os discursos por parte dos/as estudantes que mencionam campanhas
concretas, sendo importante realçar que as campanhas abordadas são sobretudo dirigidas
pela Direção-Geral da Associação Académica de Coimbra. Os/as estudantes identificam
principalmente o projeto “IN.DISCUTÍVEL”, que tem como objetivo alertar e sensibilizar
para problemas do quotidiano que ainda constituem tabu. Relativamente a este projeto,
há alguns aspetos que os/as estudantes destacam e que merecem reflexão.

Em primeiro lugar, há estudantes que identificam campanhas deste projeto relativamente


ao assédio sexual e conseguem, ainda que de modo sucinto e redutor, descrevê-las: “Gostei
muito, no indiscutível, da parte do assédio sexual... das raparigas com as vendas e dos
cartazes. Para mim, foi das melhores (...).” (Estudante C_F1, sexo feminino). Contudo, a
entidade responsável pelo projeto revela que não foram concretizadas campanhas em
relação ao assunto:

É assim, relativamente ao assédio sexual em específico, não fizemos nada nos


últimos dois anos. O que fizemos foi relativamente à violência no namoro e
violência no geral. Nunca especificamos para a questão do assédio sexual, isso
também é verdade. (Direção-Geral da Associação Académica de Coimbra)

É importante refletir sobre este aspecto e destrinçar algumas conclusões. A primeira é que
as interpretações sobre o que é o assédio sexual divergem entre estudantes e instituições
e, por isso, deduz-se que a associação pode ter promovido uma campanha sobre um

87
determinado assunto, mais ou menos amplo, mas os/as estudantes identificam como
sendo uma campanha sobre assédio sexual. A segunda conclusão é que, uma vez que os
mandatos da mesma associação são anuais, há uma grande flutuação de pessoas, o que
pode traduzir-se em perdas de informação sobre o que foi concretizado em mandatos
anteriores e na dificuldade de busca de informação.

Sobre este projeto, a campanha que mereceu destaque por parte dos/as estudantes foi a
da violência no namoro. Esta ocorreu uma semana antes da aplicação dos focus group e,
por isso, estava mais presente nas memórias dos/as estudantes. Assim, procurou-se
compreender os objetivos da campanha junto da associação que a promoveu:

(...) nós fomos a todos os departamentos, dividimo-nos em todos os


departamentos da Universidade e fomos entregando, distribuindo entre os
estudantes, homens e mulheres, nós temos, de... apesar de serem flores, nós
quisemos dar a entender que não são só as mulheres, mas também os homens...
mas acho que isso também acaba por alertar um bocadinho e as pessoas acabam
por pensar “ok, se calhar tenho de estar mais atenta, mesmo não só comigo, mas
também com a pessoa que está ao meu lado”. (Direção-Geral da Associação
Académica de Coimbra)

É possível compreender, através das narrativas dos/as estudantes e da associação, que a


campanha consistia em distribuir flores pelos/as estudantes dos vários departamentos e
Faculdades. Essas flores estariam acompanhadas de alguns dados e frases sobre a violência
no namoro e pretendiam alertar a comunidade estudantil para este problema. Contudo,
nem todos/as os/as estudantes tiveram acesso à campanha, em particular do sexo
masculino, que revelaram alguma indignação quando se tocou neste assunto:

Pegando na DG, eles estiveram a entregar flores no pólo três e em tudo o que era
local... Contudo, e isso é uma falha deles e não sei até que ponto isso não é uma
questão deles, eles só entregaram o raio das flores às raparigas (...). E,
sinceramente, eu fui perguntar “porque é que não me dás uma flor a mim?” e
eles disseram que era só para as raparigas, estão a perceber? E isto é uma cena
que... (...). Sinceramente, se uma própria instituição prega uma coisa, está a fazer
outra? Porque é que um rapaz também não merece uma flor? (...), muitos destes
aspetos que eles fazem é muito por coisas que fica bem e de passar paninhos
quentes por situações que são efetivamente questões problemáticas na
sociedade e o que eles fazem é passar o paninho e não resolvem com olhos de
ver... (...) é olha, dão uma flor e passa o assunto. Isso, para mim, não é resolver o
assunto. (Estudante E_F4, sexo masculino)

Alguns estudantes do sexo masculino referem, como é possível ler no excerto citado, que
as flores foram dadas somente às raparigas, apesar de supostamente se destinarem a
ambos os sexos. Tal poderá ter acontecido devido a falhas na comunicação entre a
associação e as pessoas destinadas a fazer a campanha, o que foi também realçado

88
pelos/as estudantes entrevistados/as, embora seja de evitar esse tipo de situações, porque
contribuem para transmitir informações contraditórias.

Ainda no que diz respeito às campanhas, foram também ouvidas outras instituições que
não foram referidas por nenhum/a dos/as estudantes nas várias sessões de entrevista, mas
cujo contributo para o combate a este desiderato na comunidade académica é inegável:

(...) na última queima das fitas fizemos um inquérito em algumas perguntas e


dentro delas tinha assim se os estudantes sabiam o que era assédio sexual, se era
assédio, se eles já havido sofrido e uma percentagem muito grande dizia saber o
que era assédio... mais ainda, diziam não ter sofrido nenhum tipo de assédio
sexual... mas a seguir, quando dávamos alguns exemplos sobre o que era assédio
sexual, tivemos uma mudança de mais de quarenta porcento de respostas, então
pessoas que antes haviam dito nunca ter sofrido, quando tinham uma questão
mais exemplificada, concreta, mudavam a sua resposta “ah afinal sim, já sofri”...
e percebia-se logo uma falta de conhecimento do que é que é o assédio sexual,
principalmente num ambiente assim de festa académica, com jovens... (Secção
de Defesa dos Direitos Humanos)

Através do exemplo oferecido pela Secção de Defesa dos Direitos Humanos sobre uma das
campanhas concretizadas, sublinha-se a escassez de conhecimento dos/as estudantes
relativamente ao assédio sexual. Assim, se estes/as, num momento inicial, consideram que
nunca sofreram assédio, depois de lhes ter sido dada alguma informação sobre o que é, há
uma alteração significativa na resposta inicial.

Também a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima tem concretizado algum trabalho


relativamente à violência sexual, onde se inclui o assédio, nomeadamente através do
projeto UNISEXO:

(...) no âmbito do projeto que nós tivemos, o Unisexo, tivemos algumas


campanhas, porque esse projeto implicava mesmo a construção de campanhas
sobre a violência sexual e era muito focado nos universitários. Aliás, o projeto
tinha a ver com a violência sexual no contexto universitário. Esse projeto acabou
em 2015 e a partir daí não foram construídos pela APAV mais materiais sobre VS
no contexto universitário (...). E, portanto, foram construídos dois vídeos e vários
materiais, cartazes, na altura a campanha foi muito focada aqui em Coimbra,
porque foi aqui que o projeto decorreu, portanto a sede do projeto era cá e nós
fizemos desde cartazes, publicidade nos autocarros da cidade, fizemos
individuais de papel para dar às cantinas, quer da universidade, quer do
politécnico, tínhamos mupis, conseguimos acordos com a Queima das Fitas e
com a Latada para os vídeos serem passados durante os concertos, flyers que
foram distribuídos, fizemos campanhas de rua pré-queima e pré-latada, para
fazer alguma divulgação (...). (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima)

As instituições, apesar das sucessivas campanhas, revelam que não são suficientes.
Consideram que, muitas vezes, são ignoradas pela comunidade académica e chegam
maioritariamente a pessoas que já têm informação. Julgam, assim, que a melhor forma de

89
chegar aos/às estudantes é estar no ambiente deles/as e sublinham que as campanhas que
ocorrem nas festas académicas, ainda que não sejam altamente eficazes, alertam sempre
algumas pessoas para comportamentos de risco e ajudam caso aconteça alguma coisa. O
exemplo ilustrativo sobre este aspecto, revelado pelas instituições, é que, nas festas
académicas, distribuem alguns autocolantes com contactos úteis e frases que permitam
que os/as estudantes se apercebam de determinados riscos. Ainda sobre este contexto,
revelam que as campanhas podem ser mais eficazes se houver alguma sensibilização
prévia.

As instituições apontam também campanhas em épocas de exames, que não têm sido
concretizadas, mas, dado que é uma altura em que apresenta alguns indícios de assédio
sexual entre estudantes e docentes, torna-se premente desmistificar e alertar para o
fenómeno.

Um dos pontos-chave destacado pelo projeto SUPERA prende-se com a necessidade de


uma ação sistemática e substantiva por parte das instituições da própria Universidade de
Coimbra, não apenas no sentido de responderem às denúncias, mas também ao nível da
prevenção (Lopes et al., 2019).

Com vista a combater o assédio sexual na comunidade académica, também as instituições


alertam para alguns aspetos a melhorar. Revelam, desde logo, a necessidade de uma
unidade dentro da Universidade de Coimbra capaz de acolher estes casos. Do mesmo
modo, sublinham que a informação relativa ao papel de cada uma das instituições tem de
ser transmitida aos/às estudantes de forma a que consigam delinear um processo de
denuncia e reportar sempre que incorrerem numa situação deste tipo.

Apesar do reconhecimento, tanto por parte das narrativas dos/as estudantes como por
parte das entrevistas às instituições, sobre a ausência de locais onde se podem dirigir para
reportar casos, há ainda quem aponte que os problemas são de outra índole:

Os gabinetes existem, existe gabinete de apoio ao estudante na AAC, na reitoria,


provedor do estudante, há imensos e todo o tipo de gabinetes de apoio ao
estudante por todo o lado, oportunidades de ajuda. O obstáculo que eu acho, é
mesmo a mentalidade das pessoas, a personalidade das pessoas... fazendo
metáfora com outro flagelo, acaba por ser a violência doméstica, imensas
atividades de sensibilização, imensas instituições, toda a gente tem uma
televisão, o dia da VD, imensa sensibilização, no entanto há muitos casos que
passam despercebidos. O problema não é na falta de presença ou trabalho das
instituições, tem a ver com as várias circunstâncias para que a pessoa não se sinta

90
confortável para se queixar. Os obstáculos não são institucionais, nem de falta de
apoio, são obstáculos sociais e psicológicos das pessoas. (Conselho de Veteranos)

De modo concreto, é neste cenário marcado pela incerteza sobre o que é ou não assédio
sexual, que importa não só esclarecer os/as estudantes, como desempenhar um trabalho
mais profícuo e profundo ao nível da consciencialização no interior das próprias
instituições, para que se deixe de habitar num campo de ação hipotético e se passe à
prática. É igualmente importante a união de esforços no sentido de transmitir mensagens
claras aos/às estudantes sobre comportamentos que não são aceitáveis e também no
sentido de mostrar a que estruturas podem recorrer, tanto dentro como fora da
Universidade.

91
REFLEXÃO FINAL
Estudar representações é sempre um caminho marcado por uma multiplicidade de
significados, cuja procura do saber nunca se esgota. O mesmo acontece com a presente
dissertação: está longe de oferecer uma resposta simples e precisa à pergunta que a
conduz. No entanto, é um passo em frente porque nos permite “ver além da fachada”,
apreender significados e construir mapas de representações através deles. Obriga-nos, por
isso, a um exercício contínuo de reflexão que só pode ser concretizado por via da sociologia
das ausências e das emergências (Santos, 2002). Assim, quando procuro compreender o
que afinal é o assédio sexual para os/as estudantes da Universidade de Coimbra, tornam-
se relevantes as evidências, mas também as ausências, o que ainda não foi revelado e que
merece ser expandido. Por outro lado, a sociologia das emergências, surge para preencher
este vazio e ampliar os saberes acerca do que já conhecemos.

Optou-se por analisar o assédio sexual a partir da matriz da violência de género, por se
tratar de um fenómeno que afeta mulheres de forma desproporcional em relação aos
homens. As narrativas dos/as estudantes também revelam que vitimiza maioritariamente
mulheres, embora nem todos/as encarem e interpretem o assédio sexual como uma forma
de violência.

O assédio sexual, para os/as estudantes, define-se no conceito de desconforto e engloba


atos como os olhares, os toques, os gestos e os piropos. Todos/as concluem que não é
simples definir o que é o assédio sexual, dado que o conceito se reveste de muitas
ambiguidades e varia de acordo com as representações individuais. Deste modo, é possível
depreender que a definição se molda aos quadros de crenças e de experiências de cada
indivíduo. Os/as estudantes garantem que conseguem perceber se um olhar ou um piropo
é assédio ou não, porém, reconhecem igualmente que será muito difícil encerrar condutas
imprecisas numa mera definição.

Se os diplomas legais consideram que a indesejabilidade é o que distingue o assédio sexual


das condutas afetivas, para os/as estudantes, essa distinção só é desvelada quando o ato é
perpetrado pelo/a desconhecido/a e mediante o conteúdo sexual que reveste a ação. Estas
representações baseadas nos discursos dos/as estudantes, conduzem a intensos debates
em torno do assédio sexual na esfera privada e em relação às pessoas que se conhecem.

92
Assim, chegamos a um limiar em que a ilicitude não está no ato em si, mas na pessoa que
o pratica e no conteúdo do que faz.

No sentido de preencher os vazios em torno dos conceitos, procurou-se compreender,


também, de que modo os/as estudantes revêem o assédio sexual nos vários contextos
do(s) seu(s) quotidiano(s).

O contexto diurno revela-se a maior fonte de preocupação para os/as estudantes, dado
que consideram que, por não ser algo tão esperado, os/as incomoda de forma mais severa.
Assim, os/as estudantes reconhecem que o assédio sexual é uma prática que está enraizada
na nossa sociedade e que se estende a todos os contextos, sendo que, até naquele que têm
a maior sensação de segurança é uma prática que prevalece. Deduz-se igualmente que
tanto o piropo como o olhar, quando são revelados neste contexto, são interpretados como
assédio sexual, sobretudo se forem dirigidos por pessoas desconhecidas, o que contrasta
com o contexto noturno, onde são completamente desvalorizados por se tratar de algo
com que os/as estudantes são frequentemente confrontados/as.

Nas salas de aula, o assédio sexual é referido recorrentemente pelas instituições, embora
não seja negligenciado pelos/as estudantes. É importante realçar que muitos/as
demonstram sentir-se incomodados/as neste contexto e salientam que têm receio em falar
sobre este assunto, dado que os/as principais perpetradores/as são os/as docentes. Acerca
deste contexto, realça-se a aproximação às definições inscritas nos diplomas, as quais
estabelecem que o assédio sexual presume uma relação hierárquica entre a vítima e o/a
perpetrador/a por meio de chantagem ou aliciamento em troca de benefícios. A
preocupação dos/as estudantes prende-se sobretudo com a certeza de que, com esta
conduta, se naturalizam comportamentos que comprometem a dignidade dos indivíduos,
dado que os/as responsáveis pela sua educação e transmissão de valores os reproduzem.

A praxe encontra-se profundamente associada à integração dos/as estudantes, o que não


é posto em causa por nenhum/a deles/as. No entanto, é em relação a este contexto que
surgem relatos sobre a objetificação da mulher e sexismo exacerbado, apesar de não haver
conhecimento de qualquer caso de assédio sexual. Assim, podem as ausências justificar as
presenças? À luz da sociologia das ausências é premente compreender que, embora não
se conheçam casos concretos, não se podem esquecer os jogos, as brincadeiras e as
canções que entregam os/as estudantes ao desconforto, tal como é possível concluir

93
através das narrativas. De igual modo, também não se pode deixar de referir que é um
contexto marcado por hierarquias rígidas, o que é um rastilho para um conjunto de
situações que contribuem para a exposição ao assédio sexual. Mais ainda, importa
sublinhar que, tanto os/as estudantes como os/as responsáveis pela praxe, contribuem
para a perpetuação de algumas práticas e para que se caminhe no sentido da naturalização
de condutas que os/as devolvem ao assédio sexual. As praxes, como vimos, não são
meramente tradicionais, são patriarcais.

O contexto noturno, associado às festas académicas e convívios, é aquele que causa menor
preocupação nos/as estudantes, embora a literatura nos mostre que é um ambiente
propício à violência sexual e os discursos permitam confirmar. Com efeito, estes/as
afirmam que, neste contexto, o assédio sexual é algo com que são regularmente
confrontados/as, mas onde há uma normalização destes comportamentos, seja pela
culpabilização do consumo de álcool, como pela confusão, evidente nos seus discursos,
entre sedução e assédio. Para combater algumas situações, não raras vezes, recorrem a
mecanismos de controlo social, nomeadamente andar em grupo, evitar estar na rua
sozinhos/as, não vestir roupas ousadas e autorregular o seu comportamento, indo ao
encontro do que é esperado para cada género. Contudo, estes mecanismos comprometem,
principalmente, a liberdade das estudantes e criam uma sensação de os seus corpos serem
comandados, não por elas, mas pelas imposições da sociedade. Perante esta aceção, o
assédio sexual encontra-se profundamente colado aos papéis que têm vindo a ser
atribuídos pela sociedade, tanto ao feminino como ao masculino, e à contínua
(re)produção destes.

Como se demonstra ao longo da presente dissertação, os papéis sexuais definem quem


pode ser a vítima de assédio sexual, delimitam como uma mulher pode ou não reagir, de
que forma é que os homens se devem comportar num contexto de sedução, sendo que,
todas estas questões são incorporadas numa norma social e reproduzidas nas nossas
sociedades. Se, por um lado, à mulher é imposta a ideia de passividade, quando perpetra
um ato de assédio sexual tende a ser punida de forma mais severa. É igualmente imposta
a responsabilidade de dizer “não” a um ato de aproximação sexual, mesmo quando quer
responder sim, devido à responsabilidade e ao facto de lhe ser atribuída uma conotação
negativa. Por outro lado, aos estudantes do sexo masculino cabe a representação de

94
boémios, de alguém que tem de abrir margem para a sedução e para possíveis lances. Os
efeitos destes papéis refletem-se por via de algumas mensagens que vão sendo
transmitidas e que os/as estudantes aludem ao longo das discussões, nomeadamente a
ideia de que “não é não”. Estas mensagens são ainda mais marcantes para as mulheres, a
quem é imposta a regra de que devem responder “não” a qualquer investida sexual. As
narrativas permitem rever a pertinência de refazer os papéis sexuais e as mensagens que
lhes têm vindo a ser associadas, de modo a deixarmos tão somente de habitar neste espaço
da negação, que concede privilégios aos homens e que atribui a culpa à mulher. Nesta
esteira, é relevante transmitir sinais claros de que um sim também é um sim e de que não
podemos viver à luz deste tipo de preceitos e normas que, aliás, são patriarcais.

Recuperando o que foi referido na parte teórica, se o elemento que contribui para o
reconhecimento do assédio sexual é toda a lógica de discriminação que tem por base as
hierarquias, quando falamos nos espaços públicos, é impossível identificá-las. No entanto,
para os/as entrevistados/as, essas situações são igualmente assédio sexual. Assim, há
alguma dificuldade em que as instituições e os próprios diplomas reconheçam o assédio
nos espaços públicos enquanto assédio e em que este reconhecimento esteja consagrado
e seja explícito. Esta discussão é fundamentalmente teórica, mas os discursos dos/as
estudantes tornam evidente a necessidade de reformular os conceitos em torno do assédio
sexual. Ora, será que não pode o género contribuir para que haja uma assimetria de poder
que conduza ao assédio sexual? De outro modo, qual o desígnio das situações que se
configuram como assédio sexual, mas que extravasam esta relação hierárquica e se
prendem com o género enquanto estrutura de poder que gera hierarquias? O mesmo
precisa de ser desconstruído em relação a outras categorias interseccionais, como é o caso
da nacionalidade, a etnia, entre outras que foram exploradas no Capítulo 1.

A legislação, como procuro informar no Capítulo 2, tem uma função importantíssima na


sociedade porque é o que transmite aos indivíduos o que é um ato coadunável e o que não
é. O assédio sexual, como vimos, é um comportamento que se encontra profundamente
enraizado e sobre o qual a legislação não é explícita ou nem sequer está de acordo com o
que os indivíduos entendem por assédio sexual. Deste trabalho empírico deduz-se, assim,
a importância que assume (ou deveria assumir) para mapear os comportamentos que
revestem o assédio sexual.

95
Os/as estudantes apontam que combater o problema do assédio sexual passa sobretudo
pela sensibilização. Foi por também acreditar que a chave poderá estar aqui que foram
escutadas as instituições – tanto aquelas que representam os/as estudantes como as que
estão (ou podem estar) na linha da frente para a resolução deste tipo de casos – no sentido
de compreender o que tem vindo a ser feito em relação ao assédio sexual na comunidade
académica.

Desde logo, percebemos que as definições dos/as estudantes acerca do fenómeno se


afastam daquelas que são contempladas nos diplomas, porque não há uma referência clara
relativamente ao tipo de atos, aos conceitos-chave que incluem e, neste sentido, é
relevante compreender porque há este lapso. Realça-se que é predominantemente
transmitida aos/às estudantes informação relativa a outras formas de violência que não o
assédio sexual e que não tem vindo a ser empenhada a devida atenção a este fenómeno
em isolado. Assim, estes/as salientam a excessiva informação relativa à violência doméstica
ou no namoro, o que se afasta das particularidades do assédio e, por isso, quando o sofrem,
não conseguem interpretar enquanto violência. Os/as estudantes não se sentem potenciais
vítimas e tendem a desvalorizar a informação que lhes é transmitida, porque se encontra,
não raras vezes, desajustada às suas realidades e vivências.

Sobre as campanhas no seio da comunidade académica, os/as estudantes revelam que são
escassas e mencionam, maioritariamente, as que são promovidas pelas associações de
estudantes. Os/as estudantes reconhecem o esforço e o trabalho profícuo ao nível da
sensibilização por parte das associações, mas evidenciam que nem sempre lhes transmitem
a informação que necessitam e que nem sempre esta é útil e precisa. Tal como exploro no
Capítulo 5, há elementos de discórdia entre a mensagem que os/as estudantes recebem
das campanhas e a informação que as instituições lhes pretendem transmitir. Como é
possível deduzir através do trabalho de recolha de dados, nem todas as instituições
aparentam entender o que é o assédio sexual e, por isso, a informação que divulgam pode
não ser fidedigna e coerente. Sob outra perspetiva, é também pertinente revelar as falhas
ao nível comunicação entre as instituições. Nesta senda, não raras vezes, aquelas que
fazem um trabalho mais profundo e certeiro sobre estes assuntos, acabam por ser abafadas
por outras. Assim, a informação perde-se ou é retida e não chega à comunidade académica.

96
A ausência de informação estende-se, também, ao acolhimento de casos desta natureza,
sobretudo no sentido de perceber onde os/as estudantes se podem dirigir e os
procedimentos a tomar. De modo concreto, esta desinformação não é só sentida pelos/as
estudantes como por parte de quem representa os/as estudantes, dado que não
conseguem delinear em concreto estes procedimentos. Ora, se nem os/as representantes
dos/as estudantes e as instituições têm este conhecimento, como poderão os/as
afetados/as, em situações de fragilidade, saber?

A literatura insiste veemente na necessidade de estudar o fenómeno do assédio sexual com


as lentes da interseccionalidade. Os dados quanto às categorias identitárias foram escassos
e destacam-se principalmente os preconceitos dirigidos às estudantes brasileiras. Tal como
já referi, os silêncios são também ferramentas de análise muito importantes, daí a
necessidade de se escutarem estas ausências em futuras investigações. Assim, para uma
análise mais profunda do fenómeno, é importante que esta perspetiva seja tomada em
consideração. É igualmente importante que se possa estudar esta problemática com uma
amostra mais heterogénea e que permita dar conta da amplitude do problema.

A partir da análise dos dados é crucial ouvir mais estudantes, mas também perceber o
impacto que algumas situações que os/as envolvem têm nas suas representações. Assim,
é premente comparar as representações dos/as estudantes em momentos específicos. Um
dos objetivos iniciais seria o de perceber o impacto das festas académicas nas
representações dos/as estudantes relativamente a esta problemática e, por isso,
ponderou-se repetir as sessões de focus group após a Queima das Fitas, situação que
acabou por ficar pendente devido à pandemia. Os resultados permitem perceber que não
só é relevante escutar o modo como este contexto pode moldar as representações dos/as
estudantes, mas perceber outros além deste, como é o caso das épocas de exames e de
momentos de praxe mais intensos.

É igualmente importante que se possam explorar outras metodologias de investigação que


permitam compreender a concordância entre as representações e as práticas. É premente
estudar o fenómeno com maior proximidade aos contextos, nomeadamente com uma
maior variedade de metodologias, no sentido de apreender o modo como as práticas
podem divergir das representações e como os contextos podem moldar toda a realidade
que envolve os/as estudantes.

97
É fundamental perceber o impacto que as campanhas têm ao nível da consciencialização
dos/as estudantes. Assim, em momentos futuros, deverá haver um maior empenho neste
sentido por parte da comunidade académica, de modo a oferecer informação útil e
ajustada às necessidades dos/as estudantes. Será ainda relevante compreender o impacto
das campanhas nas representações dos/as estudantes relativamente ao assédio sexual,
sobretudo ao nível das suas definições.

As narrativas dos/as estudantes e das instituições permitem deduzir que há falhas


tremendas ao nível da comunicação, o que condiciona o acesso dos/as estudantes à
informação sobre mecanismos de denúncia. Condiciona igualmente o reconhecimento das
instituições especializadas no acolhimento destes casos. Constatou-se que estas falhas não
são apenas ao nível da informação, mas também relativas ao encaminhamento e
acolhimento dos casos. Assim, é fundamental a união de esforços no sentido de se
transmitirem sinais claros aos/às estudantes sobre onde se podem dirigir em caso de
assédio sexual e os procedimentos inerentes a estes relatos. É fulcral, também, que se
simplifiquem todos estes processos com o intuito de que as vítimas não desacreditem do
sistema e para que não desistam da denúncia devido à morosidade e a outros entraves.

Os discursos dos/as estudantes permitem compreender que, embora os números relativos


aos dados de assédio sexual sejam reduzidos, não é uma ausência. Neste sentido, é preciso
que as instituições reconheçam a prevalência desta prática e ativem mecanismos para o
seu combate.

Por fim, é preciso refletir sobre a importância deste trabalho no contexto em que foi
concretizado. Quando se conclui que na Universidade de Coimbra há assédio sexual e ao
mesmo tempo uma falta de informação sobre o que é, quer isto dizer que estamos perante
um problema grave. Em primeiro, porque neste lugar, descrito por muitos/as estudantes
alma mater, habita também uma cultura patriarcal rígida e práticas que comprometem a
dignidade dos/as que a rodeiam. Por outro lado, é aqui que se formam e educam as futuras
gerações, aqueles/as que irão estar em cargos decisivos, os/as que irão julgar os crimes do
futuro, os/as que irão estar a formar as gerações futuras – como poderemos estar cientes
de que esta situação se reverte? Para completar esta análise, um futuro melhor não é uma
realidade longínqua, mas encontra-se tão somente na reinvenção do presente.

98
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Abarca, E. (2016). ‘ ¡Quién fuera noche para caerle encima!’ Piropos in Chile: Sexual
harassment or flirtation? Sociolinguistic Studies, 10(4), 509–527.
https://doi.org/10.1558/sols.26731

Aboim, S. (2012). Do público e do privado: Uma perspectiva de género sobre uma dicotomia
moderna. Revista Estudos Feministas, 20(1), 95–117. https://doi.org/10.1590/S0104-
026X2012000100006

Aboim, S. (2013). A sexualidade dos Portugueses (Vol. 36). Fundação Francisco Manuel dos
Santos.

Amâncio, L. (1992). As Assimetrias nas Representações do Género. Revista Crítica de


Ciências Sociais, 34, 9–22.

Amâncio, L. (1993). Género—Representações e Identidades. Sociologia, Problemas e


Práticas, 14, 127–140.

Amâncio, L. (1994). Masculino e feminino: A construção social da diferença. Edições


Afrontamento.

Amâncio, L., & Lima, M. L. P. de. (1994). Inquérito Nacional sobre Assédio Sexual no
Mercado de Trabalho—Relatório Final. Comissão para a Igualdade no Trabalho e no
Emprego (CITE). http://cite.gov.pt/imgs/downlds/Assedio_Sexual.pdf

Antunes, J., & Machado, C. (2012). Violência nas relações íntimas ocasionais de uma
amostra estudantil. Analise Psicologica. https://doi.org/10.14417/ap.535

APAV. (2013). Manual Unisexo—Para o atendimento a vítimas adultas de violência sexual.


Associação Portuguesa de Apoio à Vítima.
https://apav.pt/apav_v2/images/pdf/Manual_UNISEXO.pdf

Araújo, C. P. (2017). A Violência Sexual nos Estudantes Universitários Portugueses


[Dissertação de Mestrado, ISPA - Instituto Universitário Ciências Psicológicas, Sociais e da
Vida]. http://repositorio.ispa.pt/bitstream/10400.12/5919/1/20736.pdf

Azambuja, M. (2008). Violência de género e os discursos circulantes nos cuidados de saúde


primários [Tese de Doutoramento, Universidade do Minho].
http://hdl.handle.net/1822/8506

99
Barros, I. C. D., Sani, A., & Santos, L. (2019). “É igual mas é diferente”. Género e violência
na intimidade entre pessoas do mesmo sexo. Análise Social, LIV(230), 106–130.
https://doi.org/10.31447/as00032573.2019230.05

Beauvoir, S. (2015). O segundo sexo—Volume 2 (2a edição).

Beleza, T. P. (2004). Anjos e monstros – A Construção das Relações de Género no Direito


Penal. ex aequo - Revista da Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres, 10, 29–
40.

Bock, G. (2008). Questionando dicotomias: Perspetivas sobre a história das mulheres. Em


Ana Isabel Crespo et al. (orgs.), Variações sobre Sexo e Género (pp. 78–101). Livros
Horizone.

Branco, P. (2008). Do Género à Interseccionalidade: Considerações sobre mulheres hoje e


em contexto europeu. JULGAR, 4, 103–117.

Brown, C. (2008). Gender-Role Implications on Same-Sex Intimate Partner Abuse. Journal


of Family Violence, 23(6), 457–462. https://doi.org/10.1007/s10896-008-9172-9

Butler, J. (2017). Problemas de Género: Feminismo e subversão da identidade (N. Quintas,


Trad.; 1a). Orfeu Negro.

Caeiro, P., & Figueiredo, J. M. (2016). Ainda dizem que as leis não andam: Reflexões sobre
o crime de importunação em Portugal e em Macau. Em Um Diálogo Consistente: Olhares
Recentes Sobre Temas do Direito Português e de Macau: Vol. I (pp. 106–207). Associação
de Estudos de Legislação e Jurisprudência de Macau.
https://www.fd.uc.pt/~pcaeiro/2016_Ainda_dizem_que_as_leis_nao_andam.pdf

Campenhoudt, L. V., Marquet, J., & Quivy, R. (2019). Manual de investigação em Ciências
Sociais. Gradiva.

Câncio, F. (2015, Dezembro 28). Piropos já são crime e dão pena de prisão até três anos.
Diário de Notícias. https://www.dn.pt/portugal/piropos-ja-sao-crime-e-dao-pena-de-
prisao-ate-tres-anos-4954471.html

Caridade, S., & Machado, C. (2008). Violência sexual no namoro: Relevância da prevenção.
PSICOLOGIA, XXII(1), 77–104. https://doi.org/10.17575/rpsicol.v22i1.339

Caridade, S., & Machado, C. (2012). Violência na intimidade juvenil: Da vitimação à

100
perpetração. Análise Psicológica, 24(4), 485–493. https://doi.org/10.14417/ap.541

Caridade, S., & Machado, C. (2013). Violência nas relações juvenis de intimidade: Uma
revisão da teoria, da investigação e da pratica. PSICOLOGIA, 27(1).
https://doi.org/10.17575/rpsicol.v27i1.244

Carmo, R., Grams, A., & Magalhães, T. (2011). Men as victims of intimate partner violence.
Journal of Forensic and Legal Medicine, 18(8), 355–359.
https://doi.org/10.1016/j.jflm.2011.07.006

Carrito, M., & Araújo, H. C. (2013). A « PALAVRA » AOS JOVENS A construção de


masculinidades em contexto escolar. Educação, Sociedade & Culturas, 39, 139–158.

Casimiro, C. (2013). Violência feminina: A face oculta da violência no casal. Revista da


Associação Portuguesa de Sociologia, 6, 5–25.

Castilhos, D. S., & Guimarães, A. P. (2015). O Crime de Importunação Sexual no Código


Penal Português. Actas do Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia:
cidadania, justiça e controlo social.
http://repositorio.uportu.pt/jspui/bitstream/11328/1342/1/O%20crime%20de%20import
u
na%C3%A7%C3%A3o%20sexual%20no%20C%C3%B3digo%20Penal%20Portugu%C3%AAs.
pd f

Collins, P. H. (2015). Intersectionality’s Definitional Dilemmas. Annual Review of Sociology,


41(1), 1–20. https://doi.org/10.1146/annurev-soc-073014-112142

Connell, R. (1997). La organización social de la masculinidad. Em Teresa Valdes, José


Olivarría (Orgs.), Masculinidad/es: Poder y crisis (Isis y Flasco-Chile, pp. 31–48). Isis y Flasco-
Chile.

Cooper, M. L. (2002). Alcohol use and risky sexual behavior among college students and
youth: Evaluating the evidence. Journal of Studies on Alcohol, Supplement, s14, 101–117.
https://doi.org/10.15288/jsas.2002.s14.101

Costa, C. G., Pereira, M., Oliveira, J. M. de, & Nogueira, C. (2010). Imagens sociais das
pessoas LGBT. Em Estudo sobre a discriminação em função da orientação sexual e da
identidade de género (pp. 93–147). Clássica-Artes Gráficas, S.A.

101
Costa, L. G., Machado, C., & Antunes, R. (2011). Violência nas relações homossexuais: A
face oculta da agressão na intimidade. Psychologica, 1, 2–15.

Coutinho, C. P. (2015). Metodologia de Investigação em Ciências Sociais e Humanas: Teoria


e prática. (2a). Edições Almedina.

Crenshaw, K. (1991). Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence
against Women of Color. Stanford Law Review, 43(6), 1241.
https://doi.org/10.2307/1229039

Crouch, M. A. (1998). The «Social Etymology» of ‘Sexual Harassment’. Journal of Social


Philosophy, 29(3), 19–40. https://doi.org/10.1111/j.1467-9833.1998.tb00118.x

Dias, I. (2008a). Violência contra as mulheres no trabalho: O caso do assédio sexual.


Sociologia, Problemas e Práticas, 57, 11–23.

Dias, I. (2008b). Violência e género em Portugal:abordagem e intervençâo. Cuestiones de


género: de la igualdad y la diferencia, 3, 153. https://doi.org/10.18002/cg.v0i3.3829

Dias, I. (2010). Violência doméstica e justiça: Respostas e desafios. Sociologia: Revista do


departamento de Sociologia da FLUP, XX, 245–262.

Duarte, M. (2013). Para um direito sem margens: Representações sobre o direito e a


violência contra as mulheres [Tese de Doutoramento]. Coimbra.

Duarte, M., & Oliveira, A. (2012). Mulheres nas margens: A violência doméstica e as
mulheres imigrantes. Sociologia, Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto,
XXIII, 223–237.

Duarte, V., & Carvalho, M. J. (2013). (Entre) olhares sobre delinquência no feminino. ex
aequo - Revista da Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres, 28, 31–44.

Elísio, R., Neves, S., & Paulos, R. (2018). A violência no namoro em casais do mesmo sexo:
Discursos de homens gays. Revista Crítica de Ciências Sociais, 117, 47–72.
https://doi.org/10.4000/rccs.8149

FAL. (2019). Violência Sexual na Academia de Lisboa: Prevalência e Perceção dos


Estudantes. https://doi.org/10.1017/CBO9781107415324.004

Ferreira, V. (2004). Entrevistas focalizadas de grupo: Roteiro da sua utilização numa

102
pesquisa sobre o trabalho nos escritórios. Actas dos ateliers do Vo Congresso Português de
Sociologia, 102–107. http://hdl.handle.net/10316/48164

Fisher, B. S., Cullen, F. T., & Turner, M. G. (2000). The Sexual Victimization of College Women
(NCJ-182369). Department of Justice, Washington, DC. National Inst. of Justice.;
Department of Justice, Washington, DC. Bureau of Justice Statistics.

Fitzgerald, L. (1990). Sexual harassment: The definition and measurement of a construct.


Em M. Paludi (Ed.), Ivory Power: Sexual Harassment on Campus (pp. 21–44). SUNY Press.

Flick, U. (2009). Introdução à pesquisa qualitativa (Joice Elias Costa, Trad.; 3a). Artmed.

FRA. (2014). Violência contra as mulheres: Um inquérito à escala da União Europeia. Síntese
dos resultados. Serviço das Publicações da União Europeia.

Gallop, J. (1997). Feminist accused of sexual harassment. Duke University Press.

Gama, J. (2016). Violência Sexual no Campus Universitário em Portugal [Dissertação de


Mestrado, ISPA - Instituto Universitário Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida].
http://repositorio.ispa.pt/bitstream/10400.12/5091/1/19786.pdf

Ghiglione, R., & Matalon, B. (1992). Como inquirir? As entrevistas. Em C. L. Pires (Trad.), O
Inquérito: Teoria e Prática (1a). Celta Editora.

Gibbs, A. (1997). Focus Groups. Social Research Update, 19.


http://sru.soc.surrey.ac.uk/SRU19.html

Gonçalves, M. E. (2019). A formulação de propostas de teor sexual: Um crime sexual ou um


crime contra a honra? [Dissertação de Mestrado em Ciências Jurídico Forenses, Faculdade
de Direito da Universidade de Coimbra].
https://estudogeral.uc.pt/bitstream/10316/90405/1/Maria%20Eduarda%20Lemos%20Go
nçalves.pdf

Heise, L., & Garcia-Moreno, C. (2002). Violence by intimate partners. Em E. Krug, L.


Dahlberg, J. Mercy, A. Zwi, & R. Lozano, World report on violence and health (pp. 89–121).
World Health Organization.

Hunnicutt, G. (2009). Varieties of Patriarchy and Violence Against Women: Resurrecting


“Patriarchy” as a Theoretical Tool. Violence Against Women, 15(5), 553–573.
https://doi.org/10.1177/1077801208331246

103
Kelly, L. (1987). The Continuum of Sexual Violence. Em Women, Violence and Social Control
(pp. 46–60). Palgrave Macmillan UK. https://doi.org/10.1007/978-1-349-18592-4_4

Krook, M. L. (2020). Global Feminist Collaborations and the Concept of Violence against
Women in Politics. Journal of International Affairs Editorial Board, 72(2), 77–94.

Krueger, R. (1988). Focus groups: A practical guide for applied research. Sage Publications.

Krug, E., & Dahlberg, L. (2002). Violence—A global public health problem. Em World report
on violence and health. World Health Organization.

Lisboa, M., Barroso, C., Patrício, J., & Leandro, A. (2009). Violência de Género—Inquérito
Nacional sobre a Violência Exercida contra Mulheres e Homens (Comissão para a Cidadania
e Igualdade de Género).

Lopes, M., Rodrigues, F., Fontes, F., Coelho, L., & Ferreira, V. (2019). SUPERA - Supporting
the Promotion of Equality in Research and Academia—Preliminary gender analysis and
baseline assessment of the University of Coimbra. Centro de Estudos Sociais.
https://ces.uc.pt/myces/UserFiles/livros/1900_Preliminary%20gender%20analysis%20an
d%20baseline%20assessment%20of%20the%20UC.pdf

Lourenço, N., Lisboa, M., & Pais, E. (1997). Violência Contra as Mulheres. Comissão para a
Igualdade e para os Direitos das Mulheres.

Macedo, E. (2015). Violência entre parceiros íntimos (vpi): Problema e sintoma no


panorama das violências sobre as mulheres. ex aequo - Revista da Associação Portuguesa
de Estudos sobre as Mulheres, 31, 29–44. https://doi.org/10.22355/exaequo.2015.31.03

Machado, A., & Matos, M. (2014). Homens vítimas na intimidade: Análise metodológica
dos estudos de prevalência. Psicologia & Sociedade, 26(3), 726–736.
https://doi.org/10.1590/S0102-71822014000300021

MacKinnon, Catharine A. (1982). Feminism, Marxism, Method, and the State: An Agenda
for Theory. The University of Chicago Press, 7(3), 515–544.

MacKinnon, Catherine A. (1989). Sexuality, Pornography, and Method: "Pleasure under


Patriarchy. Ethics, 99(2), 314–346. https://doi.org/10.1086/293068

Magalhães, M. J. (2011). Assedio sexual: Um problema de direitos humanos das mulheres.


Em A. Sani (Ed.), Temas de vitimologia: Realidades emergentes na vitimação e respostas

104
sociais (pp. 101–113). Almedina.

Magalhães, M. J. (2012). Rota dos Feminismos contra o Assédio Sexual. Relatório Final.
https://doi.org/10.13140/RG.2.1.4488.7763

Magalhães, M. J., Guerreiro, A., Pontedeira, C., Felgueiras, R., & Teixeira, A. M. (2019).
Assédio sexual: Perceção dos/as jovens portugueses/as. Psiquiatria, Psicologia & Justiça,
15, 1–62.

Makepeace, J. M. (1981). Courtship Violence among College Students. Family Relations,


30(1), 97. https://doi.org/10.2307/584242

Martins, S. M. da C. (2012). Vitimização e Perpetração Sexual em Jovens Adultos: Da


Caracterização da Prevalência às Atitudes [Tese de Doutoramento, Universidade do
Minho]. http://hdl.handle.net/1822/24405

Matos, M., Machado, C., Caridade, S., & Silva, M. J. (2006). Prevenção da violência nas
relações de namoro: Intervenção com jovens em contexto escolar. Psicologia: Teoria e
Prática, 8(1), 55–75.

Matthews, A. K., Tartaro, J., & Hughes, T. L. (2002). A Comparative Study of Lesbian and
Heterosexual Women in Committed Relationships. Journal of Lesbian Studies, 7(1), 101–
114. https://doi.org/10.1300/J155v07n01_07

McMahon, S. (2011). Changing Perceptions of Sexual Violence Over Time. National Online
Resource Center on Violence Against Women.
https://vawnet.org/sites/default/files/materials/files/2016-
09/AR_ChangingPerceptions.pdf

Melo, K. M. M. de, & Menta, S. A. (2013). Rompendo com o silêncio: A mulher em situação
de violência doméstica e a caracterização de um serviço que compõe a «rota crítica».
Caderno Espaço Feminino, 26(1), 190–206.

Mendes, J. M., Duarte, M., Araújo, P., & Lopes, R. (2013). Violência e relações de intimidade
no ensino superior em portugal: Representações e práticas. Teoria & Sociedade, 21.2, 87–
112.

Mendes, T. (2016). A desocultação da violência sexual pelas vozes de mulheres


sobreviventes—Um estudo exploratório em relações de intimidade [Dissertação de

105
Mestrado]. Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação do Porto.

Moita, G. (2006). A patologização da diversidade sexual: Homofobia no discurso de clínicos.


Revista Crítica de Ciências Sociais, 76, 53–72. https://doi.org/10.4000/rccs.862

Morgan, D. (1997). The Focus Group Guidebook. Sage.

Mota, J. R. S. (2020). A capa negra do amor: A importância do género na perceção da


violência sexual nas relações amorosas entre estudantes universitários [Dissertação de
Mestrado]. Universidade de Évora - Escola de Ciências Sociais.

Muehlenhard, C. L., & Kimes, L. A. (1999). The Social Construction of Violence: The Case of
Sexual and Domestic Violence. Personality and Social Psychology Review, 3(3), 234–245.

Múrias, C., Ferreira, V., Monteiro, R., Saleiro, S., & Lopes, M. (2016). Violência no
Trabalho—Guia para a Integração a Nível Local da Perspetiva de Género. CES - Centro de
Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.
https://lge.ces.uc.pt/files/LGE_violencia_trabalho.pdf

Murray, M. (1995). The Law of Father? Patriarchy in the transition form Feudalism to
Capitalism. Routledge.

Neves, S. (2016). Femicídio: O fim da linha da violência de género. ex aequo - Revista da


Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres, 34, 9–12.
https://doi.org/10.22355/exaequo.2016.34.01

Neves, S., Ferreira, M., Borges, J., Correia, M., Abreu, A. L., Correia, A., Topa, J., & Silva, E.
(2020). Estudo Nacional sobre a Violência no Namoro em Contexto Universitário: Crenças e
Práticas—2017/2020. Associação Plano i.

Nogueira, C. (2001). Construcionismo social, discurso e género. PSICOLOGIA, XV(1), 43–65.


https://doi.org/10.17575/rpsicol.v15i1.490

Okin, S. M. (2008). Gênero, o público e o privado. Revista Estudos Feministas, 16(2), 305–
332. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2008000200002

Oliveira, A. (2014). O assédio sexual nos espaços públicos. Cabo dos Trabalhos, 10.
https://cabodostrabalhos.ces.uc.pt/n10/documentos/3.3.1_Ana_Cristina_de_Oliveira_Sil
va.pdf

106
Oliveira, J. M. de. (2010). Os feminismos habitam espaços hifenizados – A Localização e
interseccionalidade dos saberes feministas. ex aequo - Revista da Associação Portuguesa
de Estudos sobre as Mulheres, 22, 25–39.

Oliveira, J. M. de, & Amâncio, L. (2002). Liberdades Condicionais: O conceito de papel sexual
revisitado. Sociologia, Problemas e Práticas, 40, 45–61.

Oliveira, M. S., & Sani, A. I. (2009). Relações De Namoro. Revista da Faculdade de Ciências
Humanas e Sociais.

Oliveira, M., & Sani, A. I. (2005). Comportamentos dos jovens Universitários face à violência
nas relações amorosas. Atas do VIII Congresso Galaico-Português de Psicopedagogia,
1061–1074.

Paiva, Carla, & Figueiredo, Bárbara. (2004). Abuso no relacionamento íntimo: Estudo de
prevalência em jovens adultos portugueses. Psychologica, 36, 75–107.

Peixoto, J., Matos, M., & Machado, C. (2013). Violência sexual no namoro: Os atletas
universitários como grupo de risco? PSICOLOGIA, 27(1).
https://doi.org/10.17575/rpsicol.v27i1.245

Pereira, M. do M. (2009). Fazendo género na escola: Uma análise performativa da


negociação do género entre jovens. ex aequo - Revista da Associação Portuguesa de
Estudos sobre as Mulheres, 20, 113–127.

Pereira, M. do M. (2013). Como se faz o género na escola? – Uma etnografia. Estudos


Feministas, 21(2), 727–742.

Prazeres (Coord.), V., Perdigão, A., Menezes, B., Almeida, C., Machado, D., & Silva, M. C. da.
(2014). Violência Interpessoal—Abordagem, Diagnóstico e Intervenção nos Serviços de
Saúde (Direção-Geral de Saúde).

Rubenstein, M. (1987). The dignity of women at work: A report on the problem of sexual
harassment in the member states of the European communities. Commission of the
European Communities ; European Community Information Service [distributor].

Saavedra, L. (2004). Diversidade na Identidade: A escola e as múltiplas formas de ser


masculino. Psicologia Educação e Cultura, VIII(1), 103–120.

Saffioti, H. I. B. (2001). Contribuições feministas para o estudo da violência de gênero.

107
Cadernos Pagu, 16, 115–136. https://doi.org/10.1590/S0104-83332001000100007

Santos, A. C. (2012). ‘Entre duas mulheres isso não acontece’ – Um estudo exploratório
sobre violência conjugal lésbica*. Revista Crítica de Ciências Sociais, 98, 3–24.
https://doi.org/10.4000/rccs.4988

Santos, A. M. R., & Caridade, S. M. M. (2017). Violência nas relações íntimas entre parceiros
do mesmo sexo: Estudo de prevalência. Temas em Psicologia, 25(3), 1341–1356.
https://doi.org/10.9788/TP2017.3-19Pt

Santos, B. de S. (2002). Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das
emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, 237–280.

Schwartz, M., & DeKeseredy, W. (1997). Sexual Assault on the College Campus: The Role of
Male Peer Support. SAGE Publications, Inc. https://doi.org/10.4135/9781452232065

Scott, J. (2008). Género: Uma categoria útil de análise histórica. Em Ana Isabel Crespo et al.
(orgs.), Variações sobre Sexo e Género (pp. 49–77). Livros Horizone.

Serquina-Ramiro, L. (2005). Physical Intimacy and Sexual Coercion Among Adolescent


Intimate Partners in the Philippines. Journal of Adolescent Research, 20(4), 476–496.
https://doi.org/10.1177/0743558405275170

Silva, A. C. de O. (2017). A expressão normativa do assédio: Aproximações sociojurídicas à


sexualidade [Tese de Doutoramento]. Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

Sottomayor, M. C. (2015). A convenção de Istambul e o novo paradigma da violência de


género. ex aequo - Revista da Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres, 31,
105–121. https://doi.org/10.22355/exaequo.2015.31.08

Sousa, T. T. L. de. (2016). Feminicídio: Uma leitura a partir da perspectiva feminista. ex


aequo - Revista da Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres, 34, 13–29.
https://doi.org/10.22355/exaequo.2016.34.02

Tavares, M. M. (2008). Feminismos em portugal (1947-2007) [Tese de Doutoramento,


Universidade Aberta]. https://doi.org/10.3389/978-2-88919-471-1

Teixeira, F. (2019). Metáforas da virilidade: O piropo na educação em sexualidade com


perspetiva de género. Em Tecituras sobre corpos, géneros e sexualidades no espaço escolar
(pp. 171–188). FURG.

108
Topa, H. (2010). No arco-íris também há roxo: Violência conjugal nas relações lésbicas. Les
Online, 2(1), 13–21.

Torres (Coord.), A., Costa, D., Sant’Ana, H., Coelho, B., & Sousa, I. (2016). Assédio Sexual e
Moral no Local de Trabalho (1a). Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego
(CITE).
http://cite.gov.pt/asstscite/downloads/publics/Assedio_Sexual_Moral_Local_Trabalho.pd
f

UMAR. (2011). Resultados do questionário sobre assédio sexual (Rota dos Feminismos).
UMAR.
http://assediosexual.umarfeminismos.org/images/documentos/Resultados_do_questionr
io_Assdio_Sexual.pdf

Ventura, I. (2018). Medusa no Palácio da Justiça ou uma história da violação sexual (1a.
edição). Tinta da China.

Vohlídalová, M. (2011). The perception and construction of sexual harassment by Czech


university students. Sociologicky Casopis, 47(6), 1119–1147.

Walby, S., Armstrong, J., & Strid, S. (2012). Intersectionality: Multiple Inequalities in Social
Theory. Sociology, 46(2), 224–240. https://doi.org/10.1177/0038038511416164

109
ANEXOS
ANEXO 1
CARATERIZAÇÃO DA AMOSTRA DOS/AS PARTICIPANTES NAS SESSÕES DE FOCUS GROUP
N %
Sexo Feminino 18 54,5
Masculino 15 45,5
Curso Matemática/ Engenharia Biomédica/ Design e 9 27,3
(Faculdade) Multimédia/ Engenharia Mecânica/ Antropologia
(Faculdade de Ciências e Tecnologia)
Direito/ Administração Público-privada 5 15,3
(Faculdade de Direito)
Línguas Modernas/ Ciências da Informação/ Português/ 4 12,1
Estudos Europeus
(Faculdade de Letras)
Medicina 2 6,1
(Faculdade de Medicina)
Sociologia/ Economia/ Gestão 8 24,2
(Faculdade de Economia)
Ciências Farmacêuticas 2 6,1
(Faculdade de Farmácia)
Ciências de Educação 2 6,1
(Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação)
Ciências do Desporto 1 3
(Faculdade de Ciências do Desporto e Educação Física)
Ano 1º 11 33,3
2º 4 12,1
3º 9 27,3
4º 7 21,2
5º 2 6,1
Residência Deslocados/as 26 78,8
A residir com a família 6 18,2

Você também pode gostar