DM MS DanielaNeto
DM MS DanielaNeto
DM MS DanielaNeto
Outubro de 2020
Daniela Sofia Pereira Neto
Outubro de 2020
Para todas as mulheres que lutam pela
sua própria sobrevivência: que os silêncios sejam
preenchidos pelas suas vozes!
ÍNDICE
AGRADECIMENTOS ......................................................................................................... I
RESUMO ........................................................................................................................ II
INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 1
Aos meus pais e à minha irmã, Maria Carolina, por todo o amor e paciência. Um obrigada
do tamanho do mundo por me ajudarem a concretizar todos os meus sonhos e por nunca
me deixarem desistir.
À minha avó Carlota e ao meu avô Manuel, por todo o carinho e por me darem sempre
tanta força.
À Mariana Garrido, pela revisão, pelas críticas construtivas e pela amizade tão sincera. Por
mais voltas que dês ao mundo, sei que estarás sempre perto.
À Joana Gomes, pelos desabafos e pelas histórias que ficarão para a eternidade. Coimbra
foi e será o nosso ponto de encontro.
À Beatriz Ribeiro, pelas longas conversas e pela ajuda preciosa para esta dissertação.
Aos/às amigos/as do coração, que estiveram comigo ao longo destes meses, pelo carinho
e pela amizade: João Pedro Domingues, Ana Cláudia, Rute Gil, Diana Cruz, Carolina Pessoa
e Trezinha Santos.
Last, but definitely not least, a tantos/as outros/as que fizeram parte desta caminhada e
que, apesar de os seus nomes não se encontrarem escritos nesta folha, dificilmente os/as
esquecerei.
Aqueles que passam por nós, não vão sós, não nos deixam
sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós.
Antoine De Saint-Exupéry
Obrigada!
I
RESUMO
O objetivo da presente dissertação de mestrado consiste em analisar as representações
dos/as estudantes da Universidade de Coimbra relativamente ao assédio sexual. A
definição de assédio sexual tem sido marcada por várias incertezas e por uma pluralidade
de significados, desde o momento em que surgiu nos debates feministas, na década de
1970, até aos dias de hoje. É certo que o assédio é crescentemente reconhecido como um
grave problema social quando falamos na esfera laboral, mas o mesmo não se pode afirmar
relativamente a outras esferas da vida social.
Esta dissertação pretende contribuir para um maior conhecimento deste fenómeno, ainda
parcamente estudado em Portugal, através do estudo de um grupo populacional
específico: os/as estudantes universitários/as. Para tal, procurou-se compreender quais as
experiências e os significados que os/as estudantes atribuem ao assédio sexual; avaliar a
importância que assume no contexto académico; e conhecer os mecanismos existentes de
consciencialização e de denúncia. Esta análise é feita tendo em conta os discursos
normativos que constroem as imagens das mulheres, que enquadram o seu
comportamento e definem os seus papéis.
PALAVRAS-CHAVE:
II
ABSTRACT
The aim of this master’s degree dissertation is to analyse the representations made by the
students of the University of Coimbra regarding sexual harassment. The definition of sexual
harassment has been marked by several doubts and by a plurality of meanings from the
time it emerged in the 1970’s feminist debates to the present day. While it is true that
harassment is being increasingly recognized as a serious social issue when we discuss it in
the professional sphere, the same cannot be said of other spheres of social life.
This research is of a qualitative nature, relying on the content analysis of focus groups and
interviews. The gathered data allowed us to understand that the definitions of sexual
harassment among students are different from those we know from the legislation and
conventions, and that the contexts in which they are inserted, shape their representations
regarding the phenomena. Simultaneously, it was understood that little attention has been
given to the issue in the university context, which has contributed for the practice to
continue to be lived in silence and replicated by many students.
The present dissertation therefore invites us to (re)think the pathways that should be
travelled towards a greater recognition of sexual harassment as a severe form of gender-
based violence.
KEYWORDS:
III
INTRODUÇÃO
O assédio sexual emergiu nos debates teóricos, amplamente difundidos pelos movimentos
feministas (radicais), na década de 1970, sob a definição de “atenção sexual não desejada”.
Catherine Mackinnon, uma das figuras mais proeminentes do movimento, espoletou o
argumento sociológico e legal de que o assédio constituía uma forma de discriminação com
base no sexo (Oliveira, 2014). O assédio sexual surgiu circunscrito à esfera laboral, imbuído
no pressuposto de uma relação hierárquica no local de trabalho. Deste modo, ressalva-se
a parca adaptabilidade, ainda nos dias de hoje, a outros contextos onde pode estar
presente.
Em Portugal, os estudos sobre o assédio sexual apareceram por volta dos anos de 1980,
com enfoque no contexto laboral (Silva, 2017). A Convenção de Istambul (ratificada em
2013) permitiu catapultar as atenções em torno do assédio sexual, uma vez que o
acomodou junto de outras formas de violência que têm tido destaque quer nas lutas
feministas, quer nas agendas políticas (idem). Ao mesmo tempo, despertou acesos debates
em torno do piropo e da sua consagração (ou não) na legislação portuguesa.
Dada a crescente visibilidade que a comunicação social tem vindo a conferir ao problema
do assédio sexual no seio da Universidade de Coimbra, principalmente em torno dos rituais
académicos, vários têm sido os debates em torno do fenómeno. Do ponto de vista teórico,
a literatura científica sobre este assunto é muito escassa.
Para responder a esta questão, optou-se por uma metodologia qualitativa e, atendendo a
população e o assunto a estudar, foram concretizadas quatro sessões de focus group a
estudantes da Universidade de Coimbra. Do mesmo modo, foram entrevistadas algumas
1
instituições, com o intuito de abordar pontos de descontinuidade que surgiram com a
análise dos focus group e para solidificar a importância que os/as estudantes lhes
atribuíram.
O terceiro capítulo visa informar sobre a investigação que tem vindo a ser empenhada em
relação ao estudo do assédio e da violência sexual entre jovens universitários/as.
2
PARTE I
ENQUADRAMENTO TEÓRICO
CAPÍTULO 1
VIOLÊNCIA DE GÉNERO E SEXUAL – PISTAS PARA A TEORIZAÇÃO DO ASSÉDIO
A violência de género tem vindo a ser considerada um flagelo à escala mundial e encontra-
se profundamente enraizada na maioria das sociedades (Duarte, 2013; Neves, 2016). É,
deste modo, uma grave violação dos direitos fundamentais das mulheres em termos de
dignidade, igualdade e acesso à justiça (idem; FRA, 2014). Madalena Duarte (2013) diz-nos
que “[p]or todo o mundo, as mulheres são alvo de diferentes violências: violência
doméstica, violações, incesto, assédio sexual, tráfico para trabalhos forçados ou
prostituição, violência relacionada com dotes, crimes de honra, mutilação genital feminina,
entre outras” (idem, p. 57-58). As formas de violência referidas pela autora têm vindo a ser
designadas “violência de género” e distinguem-se por prejudicar homens e mulheres de
forma desproporcional (Aboim, 2013; Dias, 2008a; FRA, 2014).
As reflexões iniciais acerca desta forma de violência foram espoletadas por autores/as do
campo da saúde mental e começaram por privilegiar aquela que ocorria entre estranhos/as
(Duarte, 2013; Muehlenhard & Kimes, 1999). Eram igualmente privilegiadas as teorias em
torno do consumo de álcool e das infâncias problemáticas para explicar as condutas
violentas dos/as agressores/as (Bograd apud Mendes et al., 2013, p. 88). No encalce da
literatura de índole feminista, esta perspetiva foi sendo desconstruída e as atenções
voltaram-se para a delimitação dos conceitos em torno da violência contra as mulheres e
para o desenvolvimento de teorias que permitissem encontrar respostas para os
frequentes abusos (Muehlenhard & Kimes, 1999). A investigação permitiu dar respostas e
provar que a violência era cometida por homens “que acredita[va]m que o casamento lhes
confer[ia] direitos sobre as esposas e que a violência [era] um meio aceitável de exercer
esses direitos” (Bograd apud Duarte, 2013, p. 59). Esta perspetiva continua a ser sustentada
por autores/as que consideram que a violência contra as mulheres existiu desde sempre e,
mesmo nas sociedades atuais, é um meio a que os homens recorrem para disciplinar e
controlar as mulheres (Muehlenhard & Kimes, 1999), o que lhes é permitido pelas
estruturas sociais patriarcais.
3
Com o entusiasmo dos movimentos de mulheres na transição das décadas de 1960 e 1970,
estas questões começaram a ser partilhadas entre elas e permitiram que descobrissem que
tinham em comum, entre outros problemas, a violência de que eram alvo no seio familiar.
Descobriram, também, que não se tratava de um assunto individual ou pessoal, mas de
algo que assumia proporções de um problema social que carecia de respostas (Azambuja,
2008; Dias, 2008b; Tavares, 2008). Deste modo, as perspetivas feministas permitiram
desnudar o facto de as sociedades se encontrarem estruturadas com base no género, de
onde resulta(va) o exercício do poder por parte dos homens sobre as mulheres (Dias,
2008b).
A terminologia adotada para reportar esta forma de violência não é consensual. Desde
logo, realça-se que as definições assumem diferentes significados nas várias regiões e que
derivam de perspetivas teóricas distintas, propostas pelas diversas áreas de estudos (Heise
& Garcia-Moreno, 2002). Não obstante, a literatura julga incontestável o contributo dos
movimentos feministas para a definição e delimitação deste problema (Krook, 2020).
Inicialmente, foi empregue o desígnio “violência doméstica” porque foi neste âmbito que
o fenómeno começou por ser denunciado e estudado (Macedo, 2015). Todavia, para Dias
(2008b), o termo é alvo de contestação por incluir o incesto, a violação entre cônjuges, o
abuso de menores e o abuso contra pais, irmãos ou outros familiares. Na esteira de
Casimiro (2013), o conceito é ainda plausível de abranger a violência exercida por mulheres
no contexto doméstico e familiar. Por estas razões, a designação não encerra todos os
contornos que envolvem a violência de que as mulheres são alvo, nomeadamente o facto
de poder ocorrer noutros espaços que não o doméstico e de se revestir das mesmas
caraterísticas – as desigualdades com base no género. Para fazer face a este problema,
Duarte (2013) diz-nos que foram considerados outros conceitos para enquadrar esta forma
de violência, como são exemplos os desígnios “violência contra as mulheres”, “violência na
intimidade”, “violência nas relações conjugais”, entre outros. Estes destacam-se, do
mesmo modo, pela inadaptabilidade aos contextos em que se desenrolam, dado o enfoque
na esfera doméstica, o que remete para a família, tradicionalmente identificada com o
casamento. Assim, excluem outros tipos de relações de intimidade e situações onde não
há qualquer vínculo, mas onde predominam os abusos. Também o conceito “violência
contra as mulheres” é incapaz de solucionar este problema porque deixa de fora a violência
4
que é dirigida contra os homens e que se reveste das mesmas caraterísticas, tal como
pretendo desconstruir mais adiante.
A teoria feminista tem sido atraída para a ideia de que é no cruzamento entre género,
poder e patriarcado que se circunscrevem as raízes históricas da opressão das mulheres
(Dias, 2008b; Hunnicutt, 2009). Sylvia Walby (1990) revela-nos que o patriarcado é um
sistema de estruturas sociais no qual os homens dominam e oprimem as mulheres.
Justifica-se, por isso, a relevância da sua análise, uma vez que nos informa sobre a origem
da opressão das mulheres (Murray, 1995). Assim, é com base nos pressupostos patriarcais
que se confere aos homens “o direito a bater na mulher” (Siegel apud Silva, 2017, p. 77) e
também o que lhes permite controlar e determinar a conduta destas. Ao mesmo tempo,
recebem tolerância por parte da sociedade para punir o que se lhes apresenta como desvio
(Dias, 2010; Saffioti, 2001; Sousa, 2016).
5
A célebre afirmação de Simone de Beauvoir (2015) “ninguém nasce mulher: torna-se
mulher” (idem, p. 14) permitiu introduzir e usar o “género” como instrumento contra as
interpretações biológicas (Duarte, 2013). A este respeito, Carol Pateman (2003) afirma que:
[...] o “género” foi introduzido como uma arma crucial na luta contra o
patriarcado. O pressuposto patriarcal é o de que as mulheres são naturalmente
submissas aos homens, submissão essa que é devida à sua biologia, ao seu sexo.
O referir do género em vez do sexo prova que a posição das mulheres não é
ditada pela natureza, pela biologia ou sexo, mas é uma questão de invenção
social e política (idem, p. 36).
Tal como reivindica Gisela Bock (2008), o “género” tem vindo a ser usado a fim de informar
que o estado de subordinação, de inferioridade e de falta de poder das mulheres não é
ditado pela natureza. Pelo contrário, encontra-se alicerçado nas construções sociais,
culturais, políticas e históricas que não habitam apenas nos espaços domésticos e privados,
como se cruzam e interpelam nas diversas esferas da vida pública das mulheres. Perante
esta aceção, a violência de género encontra-se estreitamente associada ao
desenvolvimento histórico das relações familiares e à divisão e tensão entre os domínios
público e privado (Dias, 2008b). Assim, é relevante analisar e discutir os principais
argumentos e perspetivas que envolvem esta tensão.
Simone de Beauvoir (2015) revela que “a história [nos] mostrou que os homens detiveram
sempre todos os poderes e julgaram útil manter as mulheres em estado de dependência”
(idem, p. 243). Este corolário demonstra que sempre coube aos homens ditar os espaços
que as mulheres ocupam ou devem ocupar, desde o seu nascimento (Dias, 2010; Melo &
Menta, 2013). Assim, estas têm vindo a ser encaradas como propriedade e incumbidas de
ocupar a esfera privada (Dias, 2010) e aos homens cabe o domínio da esfera pública (Melo
& Menta, 2013; Okin, 2008).
Para a análise desta dicotomia, sigo de perto a contextualização trilhada na Tese de Doutoramento de
1
6
Com a emergência do feminismo radical, acomodado ao slogan “o pessoal é político”, a
tensão em torno da dicotomia tornou-se mais evidente:
A crítica inerente a esta corrente manifesta-se contra o feminismo liberal, que reclamava
para as mulheres os direitos dos homens (Duarte, 2013). A literatura diz-nos que as
reivindicações desencadeadas por esta corrente não procuraram desafiar o papel da
mulher no interior da família, mas tão somente a defesa dos direitos e oportunidades
destas (e.g. educação, sufrágio), com o argumento de que fariam delas esposas e mães
melhores (Okin, 2008). Ainda que as lutas do feminismo liberal tenham reclamado a
igualdade de direitos na esfera pública, as mulheres acabaram por aceitar o seu vínculo à
esfera doméstica e, portanto, a responsabilidade por esta foi sendo natural e inevitável
(idem). Em contrapartida, o feminismo radical procurou demonstrar, com o slogan referido
anteriormente, que a cidadania não se exerce apenas no espaço público, mas também na
intimidade e que estes dois espaços estão interligados. Direcionou, por isso, a sua
combatividade para a instituição família (privado), por julgar que nela residia a maior fonte
de opressão das mulheres (Duarte, 2013). Assim, quando as feministas radicais defendem
a separação das duas esferas (Okin, 2008), pretendem desconstruir a neutralidade entre
estas e demonstrar que é nesta relação que as desigualdades de género são continuamente
(re)produzidas (Aboim, 2012).
Se, como afirma Duarte (2013), “o que acontece na vida pessoal não é imune em relação à
dinâmica de poder entre os sexos nem isolado da vida pública” (idem, p.72), é
imprescindível equacionar a possibilidade de o poder patriarcal, no espaço privado, ser
transferido para o espaço público. Nesta senda, é importante dissecar o modo como o
patriarcado se conecta com outros espaços estruturais (cf. Walby, 1990).
2
Embora o enfoque da citação seja a legislação, nomeadamente com a alusão à “injustiça das leis”, dado que
é o ponto chave da tese defendida por Duarte (2013), o que se pretende aqui destacar é a expansão do
patriarcado do espaço privado para o espaço público.
7
No âmbito da presente dissertação destaco a relação entre o patriarcado e o espaço
estrutural da Economia, voltado para o mercado, ou seja, para o sistema capitalista3. A
literatura não é consensual a este respeito. Há autores/as que defendem que a interação
entre o patriarcado e o sistema capitalista é conflituosa (Walby apud Duarte, 2013, p. 80)
e realçam que o capitalismo não foi eficaz ao ponto de abolir o sistema patriarcal (Walby,
1990). Aliás, destacam que foi uma porta de entrada para que a violência se articulasse
com outras formas de opressão, como é o caso da classe social (Duarte, 2013). Outros/as
autores/as defendem que a emergência do capitalismo apenas tornou mais explícita a
subordinação das mulheres (idem). Especial atenção será dada à primeira perspetiva,
embora não se possa negligenciar a segunda.
Duarte (2013) diz-nos que do espaço da economia e do mercado de trabalho, por via das
classes sociais, resultam relações de exploração e precarização das mulheres. Deste modo,
o que se pretende demonstrar é que ao mesmo tempo que o patriarcado confina as
mulheres ao espaço doméstico e à esfera privada, ao trabalho da criação dos/as filhos/as
e manutenção familiar (Bock, 2008), o capitalismo é responsável por as empurrar para fora
de casa, para o mercado e para a esfera laboral (Ferreira apud Duarte, 2013, p. 80). Por sua
vez, é nestes espaços que as mulheres são alvo dos efeitos perversos do patriarcado.
O efeito mais explorado pela literatura diz respeito à divisão igualitária do trabalho, dado
que o mercado incita as mulheres a participar nele de forma injusta. Assim, uma vez que o
sistema se mantém favorável aos homens, as mulheres acabam por ser excluídas dos
melhores empregos. O mesmo acontece quando falamos em estratégias, ainda que
informais, relacionadas com a distribuição dos cuidados domésticos e cujo objetivo é a
viabilização da paridade, onde estas, não raras vezes, são sobrecarregadas com as tarefas
domésticas, com a prestação de cuidados e o seu trabalho é continuamente expropriado
(Aboim, 2012). A perversidade estende-se, também, à violência de que são alvo nestes
espaços. Neste encalce, o assédio sexual no local de trabalho revela as mesmas
caraterísticas e resquícios da violência que as mulheres sofrem na esfera privada e que, por
via da contaminação das esferas, constitui um dos principais obstáculos para o exercício da
3
É relevante clarificar que o capitalismo está presente tanto no espaço público, como no espaço privado, e
que o espaço público não se restringe apenas ao capitalismo. Importa também referir que se procurou fazer
apenas referência aos espaços mais relevantes para o estudo do assédio sexual.
8
cidadania plena por parte destas (Duarte, 2013; Magalhães, 2011). Embora se tenham
lançado aqui as bases para esta reflexão, este tópico será desenvolvido no Capítulo 2.
9
É perante esta aceção que João Oliveira (2010) defende que, com as lentes da
interseccionalidade, “a teoria feminista deixa de querer habitar nesse espaço da “mulher”
e passa a querer entender as imbricações das várias multitudes contidas nessas mulheres”
(idem, p. 30). Esta perspetiva tem, assim, permitido romper com as conceções mainstream
acerca da violência contra as mulheres, nomeadamente a ideia de que a violência as afeta
apenas devido ao seu género (Duarte, 2013). Esta teoria é imprescindível no estudo da
violência de género porque nos informa que as mulheres experienciam, simultaneamente,
diferentes formas de opressão que compõem obstáculos e constrangimentos à sua
cidadania plena. Realça-se, por via do que aqui se discute, que a violência não é um
fenómeno homogéneo porque afeta mulheres, mas heterogéneo, uma vez que estas estão
imersas em contextos sociais onde se cruzam diferentes sistemas de poder (Branco, 2008;
Duarte & Oliveira, 2012).
Sob a premissa de que homens e mulheres podem ser tanto vítimas como
perpetradores/as de atos violentos, como já anteriormente referi, é importante
reconhecer que as caraterísticas das formas de violência que habitualmente afetam as
mulheres se distinguem das que atingem os homens (Heise & Garcia-Moreno, 2002). Estes,
não raras vezes, são mortos ou agredidos em lutas ou conflitos e são, com maior
regularidade, os perpetradores da violência que é exercida sobre as mulheres. A literatura
diz-nos que o traço mais significativo que marca a diferença entre a vitimação masculina
comparativamente à feminina predomina na natureza da violência. No caso das mulheres,
é permeada pelas desigualdades de género, o que contrasta com a que maioritariamente
afeta os homens, cuja vitimação é idêntica à que é verificada na população em geral (Lisboa
et al., 2009).
As mulheres não são consideradas as habituais perpetradoras de atos violentos, por isso,
muitas vezes, a literatura de índole feminista aponta a violência de género como algo
exclusivo destas (Carmo et al., 2011; Machado & Matos, 2014). É importante não
negligenciar que o problema não se limita ao sexo feminino e, por este motivo, a
investigação tem procurado expor e problematizar esta face oculta.
10
Como já atrás se referiu, as teorias feministas têm vindo a sustentar que a violência tem no
seu epicentro o patriarcado enquanto sistema de opressão que, por sua vez, tem na sua
base as desigualdades entre os géneros. Este argumento, de acordo com algumas visões,
cola a mulher a um lugar de vítima e de passividade:
Nas últimas décadas temos assistido a mudanças no modo como, tanto os homens como
as mulheres, constroem a sua identidade de género, destacando-se o abandono dos papéis
que tradicionalmente lhes vinham a ser atribuídos. Contudo, persistem imagens que têm
sido preservadas pela sociedade (Casimiro, 2013): a mulher como afetuosa, carinhosa,
11
meiga e sensível; o homem enquanto forte, corajoso, assertivo e agressivo (Amâncio, 1992,
1993, 1994).
Do lado das mulheres é igualmente relevante romper com o mito de que não são violentas
e revelar esta faceta. Vera Duarte (2013), embora recorra ao conceito de delinquência no
seu trabalho teórico, evidencia alguns traços da violência exercida pelas mulheres. Desde
logo, comprova o modo como as representações tradicionais sobre os papéis de género
alimentam definições sustentadas na associação da violência à masculinidade, símbolo de
poder e virilidade e que não encaixa na feminilidade. Assim, a autora propõe que esta
discussão seja feita a partir da matriz da transformação dos papéis atribuídos às mulheres
pela sociedade. Neste exercício, a autora salvaguarda, ainda, que homens e mulheres estão
cada vez mais presentes nos mesmos espaços e, por isso, sujeitos/as às mesmas tensões.
Nesta senda, sugere que se possam repensar as categorias da violência exercida por
mulheres, para que deixem de ser conceitos vazios que colonizam definições em função da
violência que é exercida pelos homens. De modo concreto, a autora pretende que se deixe
de habitar nas conceções tradicionais acerca dos papéis sexuais e chama a atenção para as
suas múltiplas expressões e contextos envolventes (idem; Duarte & Carvalho, 2013).
12
Quando estes papéis se invertem, o desvio (o desvio à “normalidade do desvio”
que é a criminalidade) acentua-se. A mulher que mata não é “simplesmente”
homicida, é um monstro (Beleza, 2004, p. 32).
Para Duarte (2013), as mulheres, não raras vezes, são sancionadas de modo mais severo
pela sociedade, uma vez que esta se baseia numa dicotomia de género fortemente
ancorada à agressividade/passividade (idem). Quando a mulher comete um crime, há uma
mudança paradigmática em torno dos papéis sexuais: por um lado, assiste-se ao
afastamento dos papéis tradicionais e à desconstrução do mito de que a mulher não é
agressiva; por outro lado, observa-se a desvalorização, por parte dos homens, da violência
de que são alvo, dado que os papéis sexuais ditam quem pode perpetrar a violência e quem
deverá ser a vítima (Barros et al., 2019).
Os estudos sobre a violência de género têm privilegiado aquela que ocorre entre homens
e mulheres e descurado outras facetas que se encontram inexploradas, como é o caso da
violência entre pessoas do mesmo sexo. Embora seja uma realidade indesmentível na
sociedade, tem permanecido silenciada (Santos, 2012; Topa, 2010).
Tal como sublinha Santos (2012), “importa considerar o fenómeno da violência desde um
ponto de vista caleidoscópico, que englobe as suas múltiplas facetas e nuances” (idem, p.
14). A abordagem feminista interseccional, explorada anteriormente, compõe uma
13
ferramenta imprescindível para o estudo desta forma de violência porque permite
compreender os vários eixos de opressão dentro da sociedade (Elísio et al., 2018), nos quais
se encontra a sexualidade.
A heterossexualidade é a forma usada para interpretar relações sociais a partir das quais
se caraterizam pessoas como sendo feminino e masculino (Barros et al., 2019). Enquanto
categoria e estrutura de poder, tem vindo a ser privilegiada e normalizada (Costa et al.,
2010). Por sua vez, o heterossexismo tem sido usado para referenciar o sistema ideológico
que nega e estigmatiza qualquer forma de comportamento, identidade ou comunidade não
heterossexual (Moita, 2006).
14
O problema da violência entre pessoas do mesmo sexo prende-se sobretudo com a
dificuldade que as pessoas têm em lidar com a sua orientação sexual, que por si só as
remete à discriminação. Por outro lado, uma vez que a problematização da violência de
género tem sido feita em torno das desigualdades entre os géneros, há alguma dificuldade
em categorizar as vivências e experiências desta índole, que ocorrem entre pessoas do
mesmo sexo, enquanto tal. Por fim, atendendo que as vítimas sentem culpa por viver uma
ordem de género “fora da norma” (Elísio et al., 2018), não raras vezes, acreditam que são
merecedoras ou culpadas e que esta situação surge como castigo face à sua orientação
sexual perversa (Nunam apud Costa et al., 2010, p. 7). O estigma é o que conduz à
desvalorização e silenciamento da violência entre pessoas do mesmo sexo.
A violência sexual constitui uma das dimensões da violência de género4 que, pela sua
natureza, não sobressai e que pode estar associada à coocorrência de outras formas de
violência (Lisboa et al., 2009). Esta, informada pela desigualdade histórica das mulheres nas
sociedades, nem sempre foi considerada uma grave violação de direitos, particularmente
das mulheres, dado que foi, durante muito tempo, socialmente tolerada e desvalorizada
(Mendes, 2016; Mota, 2020; Ventura, 2018).
A literatura diz-nos que a violência sexual tem vindo a ganhar interesse na gramática e na
academia portuguesa (Ventura, 2018). Apesar disso, do ponto de vista sociológico, tem sido
um assunto pouco explorado e marcado pela inexistência de uma definição uniformizada.
Desde logo, é importante referir que os conceitos sugeridos pelos/as diferentes autores/as
e pelas organizações, apresentam variações, o que torna difícil obter uma definição clara e
passível da sua delimitação. Dado que os conceitos são informados pela investigação,
enuncio as principais pistas que mostram o caminho trilhado neste âmbito (Lisboa et al.,
2009).
4
As Convenções, Diplomas, documentos oficiais e a literatura apontam que a violência de género pode
ocorrer sob a forma física, psicológica e sexual (Krug & Dahlberg, 2002).
15
inicialmente, comprometidos com o pressuposto de que as situações mais comuns de
violência sexual eram aquelas em que a vítima era violada por estranhos/as (Lisboa et al.,
2009; McMahon, 2011). Por esta razão, as definições em torno do conceito, eram
figurativas deste pressuposto e do enquadramento legal conhecido no momento, o qual
tinha especial enfoque na penetração vaginal, no uso da força física e na ausência de
consentimento (Spohn and Horney apud FAL, 2019, p. 14). A investigação permitiu
desconstruir estes pressupostos e provou que a violação era um fenómeno mais frequente
do que se julgava até então. Provou, ainda, que a maior parte dos episódios de violência
sexual não se coadunavam nos estereótipos que eram considerados até ao momento
(Martins, 2012; Muehlenhard & Kimes, 1999). No caso das violações, ocorriam
principalmente entre indivíduos que se conheciam, o que gerou uma alteração significativa
(embora gradual) na forma como a violência sexual estava a ser estudada e interpretada.
Assim, começaram a ser abordados os seguintes conceitos: wife rape, para o caso de
mulheres agredidas no âmbito de uma relação conjugal; e date rape, para reportar as
violações no contexto do namoro ou saídas ocasionais. Ao debruçar as atenções sobre estes
dois conceitos, os estudos mostraram que, por se desenrolarem principalmente no âmbito
das relações de intimidade, não raras vezes no contexto de namoro, as situações não
chegavam a ser denunciadas e reportadas (Caridade & Machado, 2013; Fisher et al., 2000;
Martins, 2013; Muehlenhard & Kimes, 1999; Santos & Caridade, 2017). Permaneciam, por
isso, omissas e acabavam por não ser englobadas e espelhadas na maioria das definições.
16
Embora a maioria das vítimas de violência sexual pertença ao sexo feminino, não se podem,
de modo algum, silenciar as do sexo masculino (Krug & Dahlberg, 2002). Recuperando a
discussão em torno dos papéis sexuais, tem-se perpetuado a ideia de que os homens são
invulneráveis, não têm controlo, do mesmo modo que as mulheres têm sido encaradas
como vulneráveis, passivas e reduzidas a objetos disponíveis para os homens
(Muehlenhard & Kimes, 1999). A não ser o caso da infância e do abuso sexual de menores,
no qual se inclui o sexo masculino, a violência sexual sobre os homens tem sido pouco
investigada (Prazeres et al., 2014). A literatura diz-nos que uma parte substantiva da
violência sexual que é perpetrada contra estes ocorre no seio de relações entre pessoas do
mesmo sexo. Destacam-se, também, as violações, entre outras formas de coação sexual,
no contexto prisional e o facto de serem ferramentas usadas para manter a disciplina e o
respeito (Krug & Dahlberg, 2002). Assim, o estudo do fenómeno da violência sexual
apresenta limitações, dado que os ditames do género ancorados nos valores e tradições de
caráter sexista, que atribuem aos homens o controlo da sexualidade das mulheres, tomam
como inadmissível que possa ocorrer contra eles mesmos (idem).
17
CAPÍTULO 2
ASSÉDIO SEXUAL
Entre os conceitos associados à violência sexual destaca-se o de “assédio”, por ser o que
espelha a maioria dos comportamentos relacionados com esta forma de violência e o que
levanta maiores dificuldades na sua definição e delimitação (Lisboa et al., 2009). Este
conceito encontra-se definido na Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o
Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, comummente designada
Convenção de Istambul, como:
Realço a definição redigida na Convenção de Istambul porque foi esta que permitiu
acomodar o assédio sexual junto de outras formas de violência de género que têm tido
destaque tanto nas lutas feministas, como nas agendas políticas (Silva, 2017). Deste modo,
o diploma é voltado para o reconhecimento de que o assédio sexual é uma forma de
violência de género que não sobressai, mas que afeta desproporcionalmente as mulheres
(Sottomayor, 2015).
É premente sublinhar que envolve comportamentos de caráter sexual que vão desde o
piropo (entendido como galanteio) até à própria violação (Amâncio & Lima, 1994). Nem
sempre as condutas que engloba foram ou são interpretadas enquanto violência, o que
requer um enquadramento passível de mostrar o modo como surgiu e foi estudado.
5
Definição redigida no artigo 40.º da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à
Violência Contra as Mulheres e a Violência Doméstica, adotada em Istambul, a 11 de maio de 2011, aprovada
por Portugal, publicada na resolução da Assembleia da República n.º 4/2013, de 21 de janeiro e em vigor a 1
de agosto de 2014. Consultada em
http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=1878&tabela=leis
18
2.2. A invenção do conceito de assédio sexual – da esfera laboral ao estatuto da
sexualidade na teoria feminista6
Foi a partir dos relatos das experiências de mulheres trabalhadoras no âmbito de um curso
intitulado “Women and Work”, que Lin Farley cunhou e atribuiu o desígnio “assédio sexual”
às experiências narradas (Dias, 2008; Torres et al., 2016). Estas experiências referiam-se
sobretudo ao abuso de mulheres trabalhadoras por parte dos seus superiores (Zippel apud
Torres et al., 2016, p. 46). De igual modo, aludiam à “atenção sexual não desejada”, dado
que as situações passavam pela exigência explícita ou implícita, por parte de superiores, a
que as mulheres, suas subordinadas, se mostrassem sexualmente disponíveis (Crouch,
1998; Torres et al., 2016). Neste âmbito, a autora considerou que o assédio consistia num
comportamento masculino, de natureza sexual indesejada e não recíproco (Crouch, 1998;
Dias, 2008a), e que até então fazia parte do pressuposto de ter ou manter um emprego.
Para Ana Silva (2017), embora a invenção do conceito tenha sido reclamada por Lin Farley,
“Catherine MacKinnon seria a grande impulsionadora” (idem, p. 42). O argumento que se
encontra na base desta afirmação é o de que esta autora permitiu dar o salto entre uma
perceção isolada do assédio sexual, do domínio das ofensas interpessoais, para uma
perspetiva mais ampla de subordinação das mulheres em relação aos homens (ibidem).
Assim, foi MacKinnon que fabricou o argumento sociológico e legal de acordo com o qual
esta experiência constitui uma forma de discriminação com base no sexo (Oliveira, 2014).
De outro modo, espoletou a ideia de que o assédio se afasta do desejo sexual, uma vez que
se instancia na afirmação do poder masculino sobre as mulheres (Magalhães et al., 2019;
Oliveira, 2014; Torres et al., 2016).
6
Neste ponto sigo de perto a contextualização histórica fornecida por Ana Silva (2017).
19
em troca de benefícios nas condições de trabalho. Quando a vítima recusa esta situação
pode traduzir-se em despromoção, detioração das condições de trabalho e pode incorrer
em situação de despedimento. Assim, os comportamentos que lhe estão na base são
sugestivos de compensação com promoção e obtenção de melhores condições de trabalho
(Dias, 2008a; Torres et al., 2016). A outra forma de assédio carateriza-se pelo ambiente
hostil e de intimidação com base no sexo. Sobre esta, a literatura sublinha que lhe estão
associadas práticas ofensivas e humilhantes, produto de atitudes sexistas, machistas ou
misóginas (Torres et al., 2016).
Jane Gallop (1997), na obra “Feminist accused of sexual harassment”, conta a história de
como foi acusada e punida por assédio sexual a duas alunas e o modo como o feminismo o
inventou:
Para se contar a história do assédio sexual e o modo como foi inventado, é premente
questionar o modo como a pornografia se tornou um referencial para pensar a sexualidade
enquanto eixo de dominação masculina. Nesta senda, Catherine MacKinnon, que se
inscreve numa linha de ativismo anti-pornografia, acusa a indústria de promover uma
20
realidade hostil para as mulheres (Ventura, 2018). Para a autora, é o que as exibe na sua
“intrínseca e iminente violabilidade” (Silva, 2017, p. 36) e o que encoraja a violência e
submissão das mulheres. Considera, assim, que a pornografia é uma forma de sexo forçado
onde se institui a desigualdade de género (MacKinnon, 1982, 1989; Silva, 2017) e o que
faculta aos homens o que eles pretendem sexualmente: mulheres batidas, obrigadas,
forçadas, humilhadas, desfiguradas, mortas, criando a ilusão de que não passam de
mulheres acessíveis, à espera para serem usadas e objetificadas (idem).
Esta perspetiva não é consensual, dado que a crítica que lhe está inerente se encontra na
tensão entre a sexualidade como libertação sexual e a sexualidade como extensão do
privilégio masculino. Este último ponto de vista é defendido por autores/as como Camille
Paglia, que defendem que as situações referidas não levam necessariamente à violência e
que podem, inclusivamente, abrir espaço para o empoderamento feminino (Silva, 2017).
Se definir é limitar, importa esclarecer que as definições refletem uma realidade que, não
raras vezes, acaba por ser desfigurada por elas mesmas. Isto acontece porque a realidade
é sempre mais rica e complexa e não é, por muitas razões, possível de inscrever nas
definições no seu todo (Lança, 2016). O mesmo acontece quando pensamos nas que
conhecemos acerca do conceito de assédio sexual e em todas as que se encontram
relacionadas com o fenómeno.
O maior problema que persiste na literatura relativa ao assédio sexual habita na ausência
de uma definição unânime acerca do termo e que seja, ao mesmo tempo, passível de
21
enquadrar a variedade de experiências que este engloba. Para Margaret Crouch (1998), o
conceito de assédio sexual não é estável e, possivelmente, nunca o será. O argumento da
autora prende-se com o facto de as primeiras definições formuladas acerca do fenómeno
incluírem aproximadamente todos os comportamentos que as mais recentes englobam.
Porém, as propostas iniciais não foram aceites de imediato pela comunidade académica e
pelas instituições. Deste modo, a autora reforça que o desenvolvimento conceptual em
torno do significado de assédio sexual tem sido alvo de negociações acerca das
interpretações sobre o fenómeno, tendo em consideração os comportamentos que vão
surgindo e que vão sendo representados enquanto tal. Têm sido igualmente tomadas em
consideração as definições anteriormente formuladas e o modo como se podem acomodar
às descobertas (idem). Se há algum consenso relativamente a este assunto é o de que a
investigação tem permitido concluir que se trata de um domínio onde prevalecem várias
definições, cujas classificações existentes recobrem um leque alargado de experiências
(Dias, 2008a). Como tal, é premente reconhecer o contributo dos/as autores/as feministas
que cunharam o conceito “assédio sexual” porque, apesar de a prática ser antiga, não
existia nenhuma definição para uniformizar a conduta até ao momento em que foi
identificado por Lin Farley (Crouch, 1998).
Nas definições propostas pelos diplomas, desde as mais prematuras até às que fazem parte
do nosso léxico nos dias de hoje, o assédio sexual encontra-se definido sobretudo pelos
comportamentos percecionados como abusivos com o objetivo de intimidar, coagir ou
ameaçar a dignidade de outra(s) pessoas(s) (Torres et al., 2016). Configura, assim, uma
série de atos revelados por meio de palavras ou atitudes de caráter sexual e que se
demarcam por não serem pretendidos pela pessoa a quem se destina (Magalhães, 2011).
Ainda que possa ser confundido com sedução, de acordo com Magalhães (2011), a
aproximação de índole sexual ou afetiva não é posta em causa, mas o facto de a conduta
não ser pretendida pelos/as destinatários/as.
22
A investigação trilhada por Catherine MacKinnon permitiu o desenvolvimento de uma
definição que gira em torno da equação das relações de poder e da discriminação com base
no sexo. Tal como elucida Dias (2008a), perante esta interpretação, o assédio define-se na
intersecção do sexo e do poder e trata-se de uma forma de exercer poder e controlo por
meio do sexo. Assim, há um afastamento da ideia de desejo sexual, dado que se trata de
uma forma de afirmação do poder masculino sobre as mulheres, ilustrado por via das
desigualdades entre os sexos (idem).
Dado que o assédio sexual foi descoberto no local de trabalho, Ana Oliveira (2014) sublinha
que, na maioria dos diplomas, prevalecem definições relativas a este contexto. Embora
sejam igualmente relevantes, concentram-se nas propostas anteriormente teorizadas e
que já analisamos – assédio sexual de ambiente hostil e quid pro quo. A crítica que subjaz
a esta tipificação prende-se com o facto de as definições se encontrarem associadas ao
contexto laboral, onde apenas nele fazem sentido. Para o efeito, é imprescindível
problematizar o assédio na relação com os espaços em que ocorre. Tal como aponta Silva
(2017), é relevante considerar o assédio sob a forma de “uma discriminação histórica das
mulheres em relação aos homens que se traduz também na relação com os espaços que
lhes é permitido ocupar” (idem, p. 51). Resgatando a teoria em torno da dicotomia
público/privado, importa refletir sobre o modo como os pressupostos patriarcais
desconsideram a presença das mulheres nos espaços públicos e os mecanismos pelos quais
as mulheres são subalternizadas nestes espaços.
23
restringe a mobilidade geográfica das mulheres, o conforto nos espaços públicos e a
liberdade de movimento.
Cynthia Bowman (1993) argumenta que o assédio nos espaços públicos evoca respostas
emocionais de medo por parte das mulheres. Este medo é um mecanismo de controlo
social lhes impõe limitações, dado que funciona como um instinto de defesa e de alerta e
o que as ensina qual o seu espaço, quem é o ser forte e o ser fraco, que tipo de roupa
devem vestir e que atividades devem ou não praticar (Oliveira, 2014). Neste sentido, o
medo, o controlo social e as normas que lhes estão inerentes, informam acerca da
(i)licitude das violências de que são alvo e que se estendem, também, ao local onde
ocorrem (Silva, 2017).
Outra crítica relativa às definições de assédio sexual diz respeito aos atos que engloba e se
podem considerar enquanto tal. Isabel Dias (2008a), a título de exemplo, revela que
percorre a seguinte grelha de comportamentos:
A autora demonstra que o assédio sexual envolve uma panóplia de atos e enuncia-os.
Todavia, dado que a descrição detalhada se inscreve num estudo sobre o assédio sexual no
local de trabalho, deixa de fora particularidades relativas a outros espaços onde as mesmas
condutas podem ocorrer e nos quais não são consideradas enquanto tal. Ressalva-se,
ainda, a escassez ao nível da investigação e de diplomas que permitam compreender,
mapear e descrever as condutas que envolvem o assédio sexual. Deste modo, sublinha-se
a parca adaptabilidade das definições que já se conhecem, dado que carecem de um
enquadramento específico relativamente ao que se interpreta como assédio sexual e ao
lugar onde ocorrem.
24
A ambiguidade que cabe a cada comportamento que se inscreve nas próprias definições é
outro dos problemas que dificulta a definição de assédio sexual. Os comportamentos que
têm vindo a ser contemplados na maioria dos diplomas podem ser objeto de diferentes
interpretações tanto por parte de quem perpetra, como por parte de quem sofre. Isto é, o
que pode constituir um ato ofensivo de caráter sexual para um indivíduo, pode ser um
comportamento natural para outro. Por esta razão, as definições requerem um
enquadramento que seja capaz de acautelar a multiplicidade de interpretações.
O assédio sexual tem vindo a ser considerado uma das formas mais comuns de violência
sexual, mas ao mesmo tempo tem sido desvalorizado, dado que tem vindo a ser
representado como “um pouco de diversão” ou “apenas uma piada” e, por isso, menos
propenso de ser definido como um ato ilícito (Kelly, 1987). Apesar de ser percecionado
como uma forma de violência menos grave, há autores/as que defendem que pode
conduzir a situações mais graves, como é o caso da violação (Magalhães et al., 2019). Esta
perspetiva é sustentada sobretudo por autores/as que sublinham que uma parte dos atos
percecionados como assédio sexual instilam o medo como prelúdio para comportamentos
de violência sexual mais graves (Silva, 2017).
Embora seja uma experiência comum a várias mulheres, há alguma dificuldade em que na
própria sociedade se reconheçam alguns dos comportamentos anteriormente
mencionados como assédio sexual, devido à ideologia patriarcal (Dias, 2008a). Assim, é
imperativa a redefinição em torno dos conceitos de assédio sexual, de modo a combater
a(s) invisibilidade(s) das mulheres e a reconsiderar os vários espaços onde a ação se pode
desenrolar.
25
2.4. O assédio sexual em Portugal
Em Portugal, podemos afirmar que não têm sido muitos os estudos sobre o assédio sexual,
classificando-se a investigação neste domínio como muito escassa. No entanto, se
adotarmos uma perspetiva comparada verificamos que tanto o esforço político para
conhecer a dimensão do problema, como as iniciativas do ativismo social, seguiram de
muito perto a trajetória internacional (Torres et al., 2016). Ana Silva (2017) diz-nos que os
estudos realizados sobre o assédio sexual surgem muito comprometidos em responder a
diretivas governamentais e internacionais. Assim, pressionada pelos movimentos
feministas, a Comissão Europeia publicou o primeiro relatório sobre o assédio sexual em
1987 (Oliveira, 2014; Rubenstein, 1987), o que se fez sentir em Portugal poucos anos
depois.
A Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE) encomendou aquele que foi
o primeiro estudo, realizado entre 1988 e 1989 e publicado em 1994 (Amâncio & Lima,
1994). Este estudo, intitulado “Assédio Sexual no Local de Trabalho”, revelou que uma em
cada três mulheres foi vítima deste desiderato neste espaço (idem), o que despertou a
atenção em torno do fenómeno. Um segundo estudo, concretizado novamente neste
contexto, procurou compreender as vertentes sexual e moral do assédio e foi publicado
em 2016 (Torres et al., 2016).
26
Dos trabalhos mais recentes, destaco o contributo teórico de Ana Silva (2017), com a Tese
de Doutoramento intitulada “A expressão normativa do assédio: aproximações
sociojurídicas à sexualidade”, cuja importância se atribui manifestamente às discussões e
diálogos que serviram de suporte para a presente dissertação.
Para se falar do assédio sexual em Portugal é importante, também, perceber o modo como
se inscreve na legislação portuguesa e o caminho que tem vindo a percorrer no sentido do
seu reconhecimento.
O Código Penal assenta na premissa de que só podem ser crime os comportamentos que
ofendem os valores dominantes da sociedade (Oliveira, 2014). O assédio é entendido
enquanto manifestação naturalizada da sexualidade, o que, nos espaços públicos, uma vez
que a desigualdade sexual se confronta com a igualdade formal entre os indivíduos, não
constitui argumento para um regime legal específico (idem). Deste modo, tal como refere
a literatura, é premente compreender o “caráter sexual” que atravessa o assédio no Código
do Trabalho e o capítulo dos crimes contra a liberdade sexual no Código Penal (Silva, 2017).
27
Um dos marcos legislativos no Direito Penal (sexual) português deu-se com a revisão de
1995 (Decreto-lei n.º 48/95, de 15 de março), nomeadamente com a deslocação dos crimes
sexuais do capítulo relativo aos crimes contra valores e interesses da vida em sociedade
para o título dos crimes contra as pessoas. Assim, passaram a estar preordenados à tutela
do bem jurídico da “liberdade e autodeterminação sexual” (Caeiro & Figueiredo, 2016;
Silva, 2017). De acordo com Ana Silva (2017), esta deslocação permitiu expurgar as
referências moralistas alicerçadas nos crimes sexuais e a descoberta de outras vertentes
da liberdade sexual carecidas de tutela (Caeiro & Figueiredo, 2016).
A coação sexual foi a figura vulgarmente associada ao assédio sexual (Silva, 2017), passível
de absorver uma parte muito representativa dos comportamentos que este engloba, mas
não estava nela prevista a punibilidade da sua tentativa e que abrangia, a título de exemplo,
a mera solicitação de favores sexuais. Assim, o legislador deixaria sem tutela jurídico-penal
o assédio sexual em sentido estrito. Ainda neste âmbito, o artigo foi decorado com o
conceito de “ato sexual de relevo”, indeterminado, é certo. Sobre este, embora tenha vindo
a libertar dos conteúdos moralistas, integra um campo de preocupação, dado que cria
abertura para a interpretação do legislador.
Com a revisão do Código Penal de 2007 (Lei n.º 59/2007, de 4 de fevereiro), o crime “atos
exibicionistas”, considerado até então, desapareceu e passou a prever-se o tipo legal
designado “importunação sexual” (Caeiro & Figueiredo, 2016; Castilhos & Guimarães,
2015; Silva, 2017). Este, seria suscetível de abranger o assédio nos espaços públicos,
mesmo que o ato para o qual a vítima fosse constrangida não se considerasse um ato sexual
de relevo para o efeito do artigo da coação. Além desta alteração ao tipo legal a defender,
a tipificação passou a incluir o “constrangimento a contacto de natureza sexual”. De acordo
com a tese defendida por Caeiro & Figueiredo (2016), uma vez que o conteúdo ilícito da
conduta não se prende com a imoralidade do ato exibicionista, mas sim com a
importunação e a consequente violação da liberdade sexual, o elemento de
constrangimento seria indispensável, uma vez que sem este não haveria importunação
particularmente relevante (idem; Silva, 2017). Tal como acontece com a tipificação da
coação, deixaria de fora a incriminação da maior parte das situações de natureza verbal ou
gestual, igualmente ofensivas e perturbadoras da integridade e da liberdade (Sottomayor,
2015).
28
A Convenção de Istambul revelou-se um marco importante no que diz respeito ao assédio
sexual porque debruçou a sua análise nas formas de violência contra as mulheres sob uma
perspetiva específica, para as quais foram adotadas medidas legislativas para o combate a
este problema (Castilhos & Guimarães, 2015; Sottomayor, 2015). Perante a necessidade de
acomodar o artigo 40.º da Convenção, sob a epígrafe “Assédio sexual”, perfilaram-se três
posições7: a primeira defendia que não seria necessário efetuar qualquer alteração
legislativa, uma vez que o assédio já estaria punido pelo direito nacional; a segunda passava
pela introdução do crime de perseguição e eventual alteração de outras normas penais,
como a importunação sexual (que acabou por ser a posição final); a terceira consistia na
tipificação do assédio sexual numa norma autónoma (proposta defendida pelo Bloco de
Esquerda)8 (Silva, 2017).
7
Neste ponto sigo de perto a análise de Silva (2017).
8
O Bloco de Esquerda usou a seguinte definição na sua proposta: “[o] assédio sexual é uma forma de coerção,
tantas vezes exercida por alguém em posição hierárquica superior à das vítimas, maioritariamente mulheres.
Constituído por palavras ou atos de natureza sexual, indesejados e ofensivos para as pessoas que dos mesmos
são alvo, os mesmos ocorrem em múltiplos espaços (das ruas, escolas, universidades, transportes públicos
aos locais de trabalho) e atingem sobretudo raparigas e mulheres, podendo também ter por alvo grupos de
homens mais vulneráveis, como jovens, homossexuais, minorias étnicas.”
O projeto de lei e a exposição dos motivos poderá ser encontrado em
http://debates.parlamento.pt/catalogo/r3/dar/s2a/12/04/005/2014-09-19/43?pgs=43-44&org=PLC
29
2.5. O Piropo em Portugal – Assédio sexual ou elogio?
Definir o assédio sexual não é uma tarefa simples. Verificamos que, em Portugal, têm sido
poucos os estudos acerca do fenómeno noutros domínios que não o laboral e, por isso,
ressalva-se o irrisório reconhecimento da prática enquanto comportamento indecoroso e
enquanto constrangimento à cidadania plena de todos/as. Por fim, analisamos as
sucessivas reformas e discussões em torno da legislação com o argumento de que as leis
são, muitas vezes, o espelho das definições e que são crime os atos que violam os valores
dominantes da sociedade (Silva, 2017).
Um dos debates mais intensos sobre o que constituiu assédio sexual em Portugal tem
surgido em torno do piropo (Oliveira, 2014), sobretudo a par da ratificação da Convenção
de Istambul e da consequente fabricação de normas incriminadoras para a acomodar.
Se para uns/umas o piropo é uma marca literária de matriz sociocultural a presevar, para
outros/as é uma tradição de dominação masculina, fundada nos pressupostos patriarcais
(Teixeira, 2019). O piropo tem vindo a ser continuamente produzido e reproduzido de
forma recorrente e, não raras vezes, surge de modo espontâneo, despoletado sobretudo
por homens (estranhos ou não) no processo de sedução de uma mulher (Abarca, 2016).
Como realça Inês Leite (2015):
O autor do piropo limita-se a fazer um comentário – que pode ser tão suave que
ainda seja visto como um elogio simpático, ou tão ofensivo que apenas se pode
qualificar como uma “ordinarice” indescritível – à distância, ao passar ou ao
aproximar-se de uma pessoa.9
Para Magalhães (2011), embora os piropos possam incluir alguns laivos de criatividade,
nem sempre são representados como meros elogios e tendem a ser considerados
mecanismos de poder e de submissão da dominação masculina (Magalhães, 2011; Teixeira,
2019). Isto é, assédio sexual. Os argumentos que estão na base desta perspetiva situam-se
na elisão dos piropos a uma ordem patriarcal, a qual afeta a liberdade e a dignidade das
mulheres. Como aponta a autora, trata-se de um meio de constrangimento da liberdade
das mulheres no espaço público e que serve para relembrar o modo como têm vindo a ser
objetificadas (Magalhães, 2011).
9
Capazes (2015), “O Piropo”. Consultado a 20 de setembro de 2020, disponível em:
https://www.capazes.pt/cronicas/o-piropo-por-ines-ferreira-leite/
30
Assim, aquela argumentação de que o piropo, mesmo contendo um aparente
significado de elogio, possa ser considerado um comportamento ‘razoável’ e de
que uma mulher deve aceitar, consiste numa dimensão discursiva do discurso
patriarcal da erotização da imagem da mulher e da sua reificação e alienação
num mercado sexual sem contrato (cf Pateman 2002) (UMAR, 2011).
Como considera Oliveira (2014), o assédio sexual verbal sobre as mulheres nos espaços
públicos, nomeadamente através da figura do piropo, entendido como galanteio, é uma
manifestação da cultura patriarcal que dificilmente preenche a tutela do bem jurídico
individual da liberdade ou da autodeterminação sexual. Como denota Sottomayor:
É um escândalo ouvir dizer, como motivo para não punir o assédio, que a questão
do assédio é uma questão de liberdade! Se a questão do assédio é uma questão
de liberdade, então é a liberdade das vítimas que está a pedir para entrar na
equação. Será pedir muito? O assédio sexual de rua (verbal) tem sido um «espaço
de não direito», em que apenas está protegida a liberdade do assediador.10
É num terreno movediço onde se circunscrevem tantas incertezas e marcado por parcos
consensos sobre o que é assédio e o que não é, que este se define. Mais ainda, torna-se
evidente que não é tanto a referência a conteúdos sexuais ou a conotação sexual que se
imprime nas condutas que instanciam o assédio enquanto violência, mas antes o combate
a uma estrutura que, na sua raíz, fragiliza a condição feminina – o patriarcado.
10
Capazes (2015), “Assédio Sexual”. Consultado a 20 de setembro de 2020, disponível em:
https://www.capazes.pt/cronicas/assedio-sexual-3/view-all/
31
CAPÍTULO 3
ASSÉDIO E VIOLÊNCIA SEXUAL ENTRE JOVENS UNIVERSITÁRIOS/AS
O estudo pioneiro conduzido por Makepeace (1981), ao incluir o abuso físico e sexual numa
amostra composta por estudantes universitários/as, revelou a prevalência de violência nas
relações de intimidade entre estes/as. Os resultados apresentados serviram para espoletar,
durante as décadas seguintes, o aumento (gradual) do interesse em torno desta
problemática, até então pouco estudada (Caridade & Machado, 2008). Sublinha-se, por
isso, que a maioria dos estudos sobre a violência de género com a população universitária,
se reportam à violência no namoro (Antunes & Machado, 2012; Caridade & Machado,
2008; Mendes et al., 2013; Neves et al., 2020; Oliveira & Sani, 2009; Peixoto et al., 2013)
33
Não obstante o foco se encontre no contexto das relações de intimidade entre os/as
jovens, os estudos são relevantes porque permitem apurar as atitudes e as crenças
destes/as face à violência, bem como as dinâmicas que lhes estão associadas (Caridade &
Machado, 2008, 2012, 2013; Gama, 2016; Matos et al., 2006; Mendes et al., 2013; Oliveira
& Sani, 2005; Peixoto et al., 2013).
Foi possível compreender, a partir dos estudos centrados na população jovem, que a
grande parte dos episódios de violência sexual não encaixa na visão estereotipada da
violação perpetrada por um/a estranho/a. Ao nível das representações, quando os estudos
se centram nesta forma de violência, os/as estudantes tendem a descrever acontecimentos
que ocorrem na rua, à noite, em que as vítimas estão sozinhas, desprotegidas e,
subitamente, são atacadas por um/a estranho/a (Anderson, 2007). Assim, os estudos
facultaram a alteração do modo como a violência sexual passou a ser estudada e encarada,
o que permitiu que as atenções se voltassem para aquela que é cometida entre pessoas
conhecidas, para os contextos do namoro e das relações ocasionais (Martins, 2012).
Como consequência da investigação trilhada, a literatura tem vindo a demonstrar que os/as
jovens não percecionam as agressões perpetradas no âmbito das suas relações como
abusivas (Caridade & Machado, 2008). A violência sexual, quando ocorre nestes contextos,
encontra-se, muitas vezes, relacionada com os comportamentos que são esperados em
função do género numa relação de intimidade (APAV, 2013). De acordo com esta
perspetiva, a ausência de resistência por parte da vítima perante uma investida sexual de
alguém com quem mantém um compromisso é menor do que seria esperado caso o/a
agressor/a fosse desconhecido/a. Sublinha-se, ainda, que predomina uma atitude de
negação face à intimidade como um contexto em que a violência sexual pode ocorrer, o
que prejudica o reconhecimento da experiência (idem).
11
Procura-se dissecar estes fatores enquanto condições que contribuem para o aumento do risco de ser
vítima de violência sexual e não enquanto causas ou razões pelas quais um indivíduo é, ou foi, em algum
momento da sua vida, alvo de um ato violento (APAV, 2013)
34
Pertencer ao sexo feminino apresenta um risco especialmente maior de ser vítima de
violência sexual. Esta informação tem vindo a ser sustentada ao longo da presente
dissertação, além de que tem vindo a ser comprovada pelos estudos realizados com
amostras de estudantes universitários/as (Caridade & Machado, 2008; Martins, 2012).
Também a adolescência e a transição para a vida adulta são períodos de grande influência
e vulnerabilidade para a ocorrência desta prática devido à imaturidade emocional,
inexperiência relacional e o facto de ser uma fase de iniciação sexual (Serquina-Ramiro,
2005).
Por fim, destaca-se o consumo de álcool e/ou outras substâncias associadas a contextos de
risco (festas, bares, discotecas) e a situações de sedução rápida com o objetivo de relações
ocasionais. Estes contextos e situações estão, por si só, relacionadas a uma maior
probabilidade de ocorrência de violência sexual (APAV, 2013; Mendes et al., 2013). Assim,
pelo grau de desinibição que permitem, são invocadas como um fator de desculpabilização
para alguns dos comportamentos transgressores dos limites pessoais (idem). O consumo
de álcool e/ou outras substâncias pode reduzir as inibições sociais e prejudicar a
capacidade de raciocínio, de comunicação e de interpretação de situações relacionais
(Schwartz & DeKeseredy, 1997). Deste modo, quando a vítima está alcoolizada, a sua
vulnerabilidade e risco de vitimização aumentam, devido à incapacidade de reconhecer
situações de risco e consequente resistência à agressão, dado que o álcool interfere de
35
forma significativa com a capacidade de consentir o envolvimento sexual, detetar o perigo
e resistir prontamente a uma agressão sexual.
No que diz respeito aos estudos sobre o assédio sexual com amostras de estudantes
universitários/as é importante referir, desde logo, a sua escassez.
Ao nível da literatura internacional destaca-se a investigação conduzida por Till (1980), que
revela que a prática de assédio sexual nas universidades se manifesta através uso de
autoridade para enfatizar a sexualidade ou a identidade sexual, de tal forma que prejudica
ou impede o/a estudante de desfrutar os benefícios educacionais e as oportunidades que
decorrem nesta etapa. Destaca-se igualmente o desajustamento e as imprecisões ao nível
conceptual face aos estudos relacionados com esta problemática, que sublinham a
necessidade de informar sobre o que constitui ou não assédio sexual (Vohlídalová, 2011).
Como é possível compreender através desta breve análise do estado da arte do fenómeno
em Portugal e porque a investigação relativa ao assédio sexual no contexto universitário é
muito escassa, esta dissertação pretende ser um contributo para o seu estudo.
36
PARTE II
ESTUDO EMPÍRICO
CAPÍTULO 4
ESTRATÉGIAS METODOLÓGICAS
Escolher estudar um determinado assunto é porque quase sempre nos interessa e, muitas
vezes, porque temos conhecimento prévio acerca dele (Campenhoudt et al., 2019). Estas
condições não são a priori negativas porque nada se começa “do zero”, ou seja, há sempre
algumas ideias pré-concebidas, pessoas a quem podemos recorrer e com quem podemos
estabelecer contactos úteis para a investigação. Nem sempre a proximidade ao tema e ao
objeto de estudo são pontos favoráveis e podem, inclusivamente, considerar-se
obstáculos, dado que quando a realidade social nos é “familiar” não nos permite dar início
à investigação sob uma posição de “tábua rasa”. Como nos dizem Campenhoudt et al.
(2019), “a nossa mente não é virgem: está preenchida por um amontoado de imagens,
crenças, aspirações, esquemas” (idem, p. 33). Deste modo, para produzir conhecimento
científico acerca da realidade social que pretendemos estudar, a literatura insiste
veemente na necessidade de distanciamento e de rutura epistemológica (Campenhoudt et
al., 2019). O mesmo aconteceu quando iniciei a investigação porque, apesar de estudar na
Universidade de Coimbra e de compreender as dinâmicas que a envolvem, procurei este
distanciamento da realidade social.
Com o intuito de desenvolver uma teoria empiricamente fundamentada optou-se por uma
metodologia qualitativa através da qual os objetos não são reduzidos a simples variáveis,
mas representados na sua totalidade, dentro dos seus contextos quotidianos (Flick, 2009).
37
O primeiro problema que se coloca a qualquer investigador/a prende-se com o modo de
dar início à investigação. Procurei, por isso, enunciar o problema na forma de uma pergunta
de partida e por meio da qual exprimi concretamente aquilo que tencionava apreender
(Campenhoudt et al., 2019). Assim, pretende-se encontrar linhas de resposta à questão de
partida: Quais as representações dos e das estudantes da Universidade de Coimbra
relativamente ao assédio sexual?
O processo de recolha de dados foi ainda conduzido por algumas questões específicas:
Quais as mudanças que ocorrem na vida dos/as estudantes com a entrada no Ensino
Superior? Qual a importância que os/as estudantes atribuem à praxe académica no
processo de integração na Universidade de Coimbra? Qual a importância das lógicas
ritualistas e boémias nas representações dos/as estudantes acerca do assédio sexual?
Quais as representações dos/as estudantes acerca dos papéis atribuídos pela sociedade ao
feminino e ao masculino? Quais as definições dos/as estudantes relativamente ao assédio
sexual? Os/as estudantes representam o assédio sexual como uma forma de violência de
género? E como uma forma de violência sexual? De que forma pode o assédio sexual ser
socialmente legitimado/tolerado com base em normas enraizadas na nossa sociedade?
Quais as representações sobre as vítimas de assédio sexual? E sobre os/as assediadores/as?
Podem estas representações estar ancoradas em estereótipos? Os/as estudantes
conhecem os mecanismos formais e/ou informais que podem recorrer para casos de
assédio sexual? Que representações têm acerca destes? Quais as representações dos/as
estudantes relativamente às campanhas de sensibilização no meio académico?
38
OE2: Perceber se os/as estudantes da Universidade de Coimbra representam o
assédio sexual como uma forma de violência de género sustentada nas
desigualdades de género e que tem vindo a ser socialmente tolerada;
39
H4: Os/as estudantes da Universidade de Coimbra têm representações relativas ao
assédio sexual moldadas e ancoradas em estereótipos com base no género e
preceitos sexistas;
Os focus group12 são uma metodologia qualitativa que consiste num evento organizado, de
forma informal e de tamanho reduzido, no qual os/as participantes partilham caraterísticas
comuns (Mendes et al., 2013), como é o caso de pertencerem à Universidade de Coimbra,
independentemente de se conhecerem previamente ou não. Do mesmo modo, a razão
pela qual se optou por esta técnica de recolha de informação deve-se ao facto de esta
12
Existem algumas controvérsias no que refere à tradução da expressão “focus group”. Optei por, no âmbito
da presente dissertação, adotar a tradução referida por Virgínia Ferreira (2004) – “entrevista focalizada de
grupo” – bem como a definição proposta pela autora: “trata-se de um evento organizado que implica a
reunião de pessoas que possuem em comum o terem passado por determinada experiência, a intervenção
de uma pessoa que conduz a entrevista e, em termos de conteúdos, são exploradas as experiências subjetivas
das pessoas que participam relativamente à questão que constitui o foco da conversa” (idem, p. 103).
40
congregar algumas das vantagens dos métodos qualitativos como, por exemplo, a
profundidade dos dados a recolher (Ferreira, 2004). Além disso, não apresenta algumas
desvantagens de outros métodos de observação, nomeadamente “a morosidade que é
própria de uma metodologia que ‘espera que as coisas aconteçam’ para obter informação”
(idem, p. 103). No leque das vantagens encontra-se também a convicção de que é possível
conhecer melhor as atitudes, as crenças e os sentimentos dos/as participantes quando se
encontram em interação com o grupo (Gibbs, 1997). Como aponta Ferreira (2004), “a
situação de grupo faz surgir uma muito maior multiplicidade de opiniões e de processos
emocionais, muito mais limitados em situação de entrevista individual” (idem, p. 104).
Assim, a utilização dos focus group, permite obter o esboço das representações dos/as
entrevistados/as relativamente às experiências vividas por estes/as e ao modo como
constroem a problemática (Ferreira, 2004).
Na fase de planeamento dos focus group, em primeiro lugar, foi elaborado o guião que
permitiu conduzir as sessões. Krueger (1988) aponta que este deve conter uma média de
cinco a seis questões, não excedendo as dez e, ainda, que deve partir de questões mais
genéricas para questões específicas. Ferreira (2004) diz-nos que se deve partir de um
modelo de entrevista simples e recorrer à técnica do afunilamento. Assim, numa primeira
abordagem, procurou-se compreender situações mais abrangentes relativas às mudanças
que ocorreram com a entrada no Ensino Superior e progrediu-se para questões específicas
relacionadas com a questão da violência, em particular o assédio sexual. Neste percurso,
procurou-se cobrir todos os tópicos e temas relevantes para a dissertação.
Na etapa do planeamento, tal como refere Krueger (1988), são também identificados/as
os/as participantes. Atendendo a população – os/as estudantes da Universidade de
Coimbra – foram entrevistados/as estudantes das oito Faculdades que compõem a
Universidade (Faculdade de Letras, Faculdade de Ciências e Tecnologias, Faculdade de
Farmácia, Faculdade de Medicina, Faculdade de Economia, Faculdade de Psicologia e
Ciências da Educação e Faculdade de Ciências do Desporto e Educação Física), inscritos/as
no ano letivo 2019/2020 e a frequentar a licenciatura e/ou o mestrado integrado. Para o
recrutamento houve várias possibilidades de fazer chegar o pedido aos/às estudantes.
Optou-se por recorrer aos vinte e seis Núcleos de Estudantes, uma vez que representam
cada curso, departamento ou Faculdade. Numa fase posterior foi enviado um pedido de
41
colaboração, via e-mail, a cada Núcleo e dirigido, de forma particular, aos/às seus/suas
dirigentes. Apenas seis Núcleos de Estudantes demonstraram interesse em colaborar no
estudo, os quais assumiram prontamente a responsabilidade de encaminhar um/a
estudante para as sessões.
A recetividade ao estudo não foi idêntica por parte dos/as estudantes de todas as
Faculdades e anos de estudo e, por isso, a representatividade da amostra foi condicionada
pelas disponibilidades destes/as (Anexo 1). É importante referir que, dado que a amostra
não é suficientemente ampla, opto por tratar dos/as estudantes uniformemente no
capítulo da análise de dados empíricos. Assim, faço apenas distinção em relação ao sexo
dos/as estudantes porque é uma categoria bastante relevante para o presente estudo. No
entanto, quando são questões específicas de um determinado grupo, faço essa alusão.
Foram concretizadas 4 sessões de focus group, sendo que dessas quatro, duas sessões
foram mistas, uma sessão destinou-se ao sexo feminino e a outra ao sexo masculino.
Optou-se por concretizar uma sessão para as mulheres e outra para os homens porque se
trata de um assunto que assume especificidades distintas em função do sexo e porque são
abordadas questões relacionadas com algum grau de intimidade (Mendes et al., 2013). A
dinâmica do grupo misto foi igualmente importante porque permitiu compreender
algumas particularidades e fazer o confronto de posições e ideias.
42
A literatura aborda, recorrentemente, o número de participantes em cada sessão de focus
group. Morgan (1997) defende a participação de entre seis a oito indivíduos. Já para
Krueger (1988), cada sessão deverá congregar entre sete a dez participantes. No âmbito da
presente dissertação, optou-se por contactar cerca de 10 estudantes para cada sessão
para, no caso de eventuais falhas, poder contar com uma média de 8 participantes e
garantir as condições mínimas para a sua realização. Relativamente às sessões
concretizadas avança-se que não estiveram sempre presentes os/as 10 participantes.
Todavia, em todas as sessões estiveram cerca de 8 estudantes, à exceção da sessão relativa
ao sexo masculino, que contou com 9 estudantes.
A duração das sessões foi um aspeto recorrentemente abordado pelos/as estudantes que,
por várias vezes, perguntavam o tempo que durariam. Apercebi-me, em diversas ocasiões,
que os/as estudantes não se mostravam disponíveis para estar durante as duas horas que
inicialmente estipulei. Assim, o que ao início se revelou uma preocupação, depois de estar
nas sessões, notei que os entraves em termos de tempo colocados pelos/as estudantes se
deviam apenas ao receio de passar cerca de 2h com outros/as estudantes que não
conheciam, numa dinâmica onde teriam de partilhar opiniões sobre assuntos acerca dos
quais não estavam completamente à vontade. À medida que as sessões foram decorrendo,
a duração não foi um obstáculo, mas o seu contrário, porque quando terminava a sessão,
por causa do horário da Faculdade, os/as estudantes reforçavam, inclusivamente, que
gostariam de continuar a debater e conversar durante mais tempo, caso fosse possível.
Ainda relativamente a este ponto, todas as sessões começaram dentro da hora prevista e
duraram entre 1h30 a 2h, sendo que não houve nenhuma sessão com menos de 1h30 e
nenhuma delas excedeu as 2h.
43
Acerca do modo como decorreram as sessões é premente tecer alguns comentários
relativos ao meu papel enquanto moderadora. Desde logo, tal como sugere a literatura,
procurei ter um papel limitado à introdução dos temas e à facilitação da comunicação entre
os/as estudantes. Tentei, por isso, ser imparcial, evitei partilhar as minhas opiniões ou
tomar partido de uns/umas participantes em relação a outros/as (Ferreira, 2004). Houve
alguns momentos em que, enquanto entrevistadora, senti que alguns/mas estudantes
monopolizavam o discurso para falar acerca de algo que apenas eles/as tinham acesso e
isso impossibilitou, talvez, outros/as estudantes de comentar as situações que estavam a
ser expostas por estes/as. Nestes casos, o meu papel de moderação foi no sentido de pedir
que partilhassem e explicassem o contexto, para que os restantes elementos do grupo
pudessem comentar e intervir.
O à vontade dos/as estudantes não foi igual em todos os grupos e em todas as situações.
Estabeleci a primeira ronda como obrigatória e destinada à apresentação de cada um/a
dos/as estudantes, sendo que lhes foi solicitado que se apresentassem de acordo com a
ordem em que estavam sentados/as, para garantir que todos/as falavam. Todavia, a
primeira questão depois da primeira ronda foi respondida, em todas as sessões, com algum
grau de inibição e os/as estudantes acabaram por seguir a ordem que havia sido imposta
na ronda de apresentações. O facto de ter partido de uma questão genérica sobre a qual
todos/as tinham conhecimento e experiência, permitiu que os/as participantes pudessem
“quebrar o gelo” entre si e incentivar o diálogo entre estes/as. No fim, acabaram por
partilhar o que sentiam e expor as suas opiniões de modo espontâneo.
No que diz respeito às sessões concretizadas em grupos mistos, a experiência também foi
muito rica em termos do material explorado, porque estavam ambos os sexos reunidos e
o confronto de posições foi recorrente.
Ressalva-se que a amostra foi a mais heterogénea que se conseguiu, o que permitiu que os
dados a recolher também fossem bastante relevantes. Nos vários momentos, após as
sessões, foi reforçada, por parte dos/as participantes, a importância e o interesse em
momentos como estes, porque permitiam às raparigas compreender a posição e os dilemas
dos rapazes, como o contrário. Contudo, os assuntos abordados foram mais intensos nos
grupos exclusivamente femininos e masculinos. Tornou-se muito claro que os/as
estudantes estavam mais confiantes e davam exemplos concretos de situações que lhes
44
aconteceram na primeira pessoa, enquanto que nos grupos mistos se referiam sobretudo
a situações de amigos/as ou pessoas próximas.
Ao nível da composição dos grupos, penso que todos/as se sentiram bastante confortáveis,
à exceção de uma das sessões mistas. Para esta sessão estava agendada a participação de
6 raparigas e 4 rapazes. No entanto, nenhuma das raparigas faltou, 2 rapazes faltaram e
restaram apenas dois rapazes na sessão. Enquanto moderadora, senti algum desconforto
por parte dos dois estudantes em relação às raparigas e, por isso, tentei que, no decorrer
da sessão e, de modo a diminuir a timidez que estavam a sentir no momento, se
abordassem assuntos mais genéricos e com menor grau de intimidade.
Ainda no que diz respeito ao meu papel na moderação nas sessões, dado que não estava
habituada à metodologia, porque nunca tinha concretizado nenhuma sessão até ao
momento, é imprescindível a análise dos pontos positivos e negativos relativamente a este
aspecto. Uma vez que a sessão foi gravada apenas em áudio, tornou-se complicado saber
quem falava e entender alguns aspetos importantes relacionados com a expressão
corporal. Como já contava previamente com esta situação, socorri-me da ajuda de
alguns/mas colegas no sentido de me auxiliarem para tomar notas. Assim, permitiu que me
concentrasse nos discursos, bem como facilitar a interação entre os/as intervenientes.
A primeira sessão foi a mais complicada porque estava preocupada com o guião e em
cumprir todos os tópicos, de tal forma que, quando coloquei as questões, acabei por sentir
que os/as estudantes ficavam um pouco reticentes com a mudança de assuntos. Deste
modo, nas sessões seguintes, já não dei tanta importância ao guião e permiti que os
discursos fluíssem. De passos mais lentos ou mais rápidos, todos os discursos acabaram por
tocar os assuntos pretendidos e, em vez de mudar de assunto de forma brusca, fui pegando
em aspetos que os/as estudantes estavam a evidenciar e pedi que comentassem noutros
sentidos ou que os explorassem sob outros pontos de vista.
Além da pessoa que me deu auxílio nas notas, o gravador tornou-se uma ferramenta
essencial e sobre a qual é necessário tecer alguns comentários. Ao longo do discurso de
apresentação, enquanto entrevistadora, realcei que o gravador iria ser utilizado para me
auxiliar na transcrição e que, por esse motivo, as sessões iriam ser gravadas, para que nada
se perdesse. Senti, nas rondas iniciais, que os/as estudantes se encontravam mais
inibidos/as e, por vezes, olhavam para o gravador com algum receio. À medida que iam
45
quebrando o gelo entre si, os olhares pararam de estar concentrados no gravador e
passaram a cruzar-se entre os/as participantes, que passavam a comunicar também com o
olhar. De certa forma, esse à vontade que foram construindo permitiu que, aos poucos,
os/as estudantes mudassem o seu discurso e a forma como construíam as suas narrativas
foi sendo cada vez mais espontânea. A certo momento, os/as estudantes foram adaptando
os seus discursos, aproximando-se cada vez mais das expressões usadas no dia-a-dia. Por
vezes, recorriam inclusivamente ao calão, embora nesses momentos olhassem fixamente
para o gravador e pedissem desculpa por estarem de ânimos mais exaltados.
A outra técnica de recolha de dados a que recorri e que também é muito utilizada na
investigação qualitativa é a entrevista semiestruturada. Esta técnica é sobretudo usada
quando se pretendem conhecer perspetivas dos/as participantes sobre determinados
problemas, mas onde os dados são significativamente comparáveis entre estes (Coutinho,
2015).
No que diz respeito ao modo de entrevistar, de acordo com Ghiglione & Matalon (1992), a
entrevista semiestruturada carateriza-se pelo facto de o/a entrevistador/a conhecer todos
os temas sobre os quais pretende obter reações por parte dos/as entrevistados/as, mas
cuja ordem e forma como são introduzidos são moldados ao longo da entrevista.
46
Para solicitar o pedido da entrevista, optou-se por enviar um e-mail, novamente dirigido
aos/às seus/suas dirigentes. Obtive respostas por parte de todos/as, no entanto, é
importante sublinhar que, no caso das associações dirigidas por estudantes foi mais difícil
obter respostas em tempo útil, o que condicionou os prazos inicialmente estabelecidos.
Sobre este aspecto, importa referir que as sessões de focus group foram concretizadas no
período antes da pandemia, enquanto que, as entrevistas, foram concretizadas mais tarde,
no período pós confinamento. Assim, esta questão do tempo que se demorou a planificar
e a obter respostas por parte das instituições, deve-se ao facto de as entrevistas terem
surgido, também, numa altura em que os/as estudantes estavam mais ocupados/as com
avaliações. Sublinho que só depois de as pessoas estarem mais acomodadas ao digital e
após um período mais intenso de quarentena é que foi possível estabelecer estes
contactos. Ainda relativamente à calendarização das sessões, foi dada a possibilidade de se
poderem concretizar via zoom. Porém, houve instituições que preferiram estabelecer este
contacto presencialmente, apesar das condições a que estávamos sujeitos/as.
Opta-se por preservar e revelar a entidade das instituições, associações e órgãos nas suas
narrativas ao longo do capítulo empírico, dado que as entrevistas foram devidamente
autorizadas. Ressalvo, também, que os conteúdos não colocam em causa a integridade de
nenhuma delas, nem mesmo de outras pessoas. É igualmente relevante realçar que esta
opção também se prende com a intenção de evidenciar as particularidades de cada uma e
o trabalho que têm vindo a desempenhar em torno da problemática.
Como elucidam Campenhoudt et al. (2019), a realidade é sempre mais rica e complexa do
que as hipóteses que elaboramos a seu respeito e, por isso, quando nos debruçamos sobre
47
os dados recolhidos, percebemos que há outros factos além dos que esperávamos e outras
relações que não se podem negligenciar. A análise dos dados é o que nos permite
interpretar todos estes factos inesperados, com o intuito de, no fim, nos permitir propor
pistas de reflexão e de investigação para o futuro.
Na presente dissertação optou-se pela análise de conteúdo, uma vez que foram
concretizados focus group e entrevistas semiestruturadas. A análise de conteúdo oferece-
nos a oportunidade de tratar, de forma metódica, as informações e narrativas que, ao
princípio, apresentam alguma profundidade e complexidade. Assim, ao recorrer a este
procedimento de análise, o material em bruto transforma-se em material mais elaborado,
mas também mais sintético (Campenhoudt et al., 2019).
48
foi perceber o que era comum, o que era particular e o porquê. Esta análise transversal e
comparativa permitiu-me delinear um documento onde coloquei todos estes assuntos, os
quais organizei consoante a relação entre eles através de um mapa de cores que me
permitiu visualizar, com clareza, os temas abordados e perceber a importância que lhes era
atribuída. Por fim, procurei triangular a informação e verificar se as conclusões eram
confirmadas por diversos pontos de vista, os que eram semelhantes e os que divergiam.
Optou-se por analisar as narrativas em torno da categoria central “assédio sexual”, por ser
o conceito-chave da presente dissertação. Depois de analisados os discursos organizados
em subcategorias (ainda que pouco definidas e concretas) procurou-se compreender a
relação entre cada uma delas e a categoria principal. De seguida, analisei
pormenorizadamente os discursos que estavam relacionados com esta categoria central e
acomodei-os à presente dissertação.
As entrevistas surgiram meses mais tarde devido à pandemia, tal como referi
anteriormente. O procedimento inicial foi idêntico no que concerne às transcrições e à
primeira análise. De seguida, fundi os discursos selecionados (aqueles que eram mais
relevantes para a dissertação e que estavam relacionados com a categoria central) nas
subcategorias já estipuladas e criei, também, novas subcategorias para alguns assuntos e
tópicos particulares, explorados somente nas entrevistas. Neste caso, a triangulação foi
ainda mais complexa porque envolveu não só uma análise comparativa entre estas, como
também das transcrições dos focus group.
Estes procedimentos foram todos feitos manualmente com recurso apenas às ferramentas
de texto (e.g. word). Utilizei uma codificação muito simples e, em certo modo. muito
precária, porque me baseei apenas em cores e em algumas etiquetas que me permitiram
perceber os tópicos e as subcategorias. Apesar de tudo, foi um processo longo e muito
moroso.
Por fim, ressalvo que, com o recurso à análise de conteúdo, consegui obter representações
que não tomaram como indicadores os meus próprios valores e subjetividade. Permitiram-
me, assim, ir mais além do que inicialmente esperava (Campenhoudt et al., 2019).
49
CAPÍTULO 5
AFINAL O QUE É O ASSÉDIO SEXUAL?
A análise em torno da definição de assédio sexual foi um dos momentos que gerou maior
controvérsia entre os/as estudantes ao longo das sessões. Os/as estudantes concluem que
o conceito de assédio sexual não é fixo e que está sujeito a uma multiplicidade de
representações. À semelhança do estudo de Mendes et al. (2013), também os/as
estudantes entrevistados/as revelam que os limites entre o que se considera ou não
violência são individuais e que a definição do conceito se encontra na identificação da
ultrapassagem de tais limites, o que lhe confere uma certa ambiguidade.
(...) o facto do tal limite das pessoas [ser] diferente, se calhar, de pessoa para
pessoa... e isso condiciona... se calhar, as pessoas que sofrem, talvez não saibam
como explicar, não sabem dizer se foi ou não assédio. (Estudante B_F4, sexo
masculino)
A maior dificuldade para estes/as é o facto de o assédio se poder confundir com outras
condutas – como é o caso da sedução. Como analisamos no Capítulo 2, a confusão entre
sedução e assédio é recorrente e, por isso, o conceito abre margem para dúvidas. Como
nos informa a literatura, a caraterística que distingue o assédio sexual de outras condutas
afetivas é a indesejabilidade (Múrias et al., 2016). Contudo, nos discursos dos/as
estudantes, falta este elemento para que consigam resolver esta equação.
(...) o que cada pessoa considera para si assédio, o que considera ser seduzida, o
que considera ser assediada... eu acho que há uma dificuldade em definir...
(Estudante C_F4, sexo masculino)
Reconhecendo que os/as estudantes consideram que o conceito de assédio sexual não é
unânime nem fácil de delimitar, dado que se pode confundir com outras condutas,
procurou-se compreender os comportamentos que figuram as suas definições.
50
Para mim, deixarem-me desconfortável, a forma como... porque o que nós
sentimos é real, não são coisas da nossa cabeça. Se nos sentimos desconfortáveis
é porque há algo errado... (Estudante G_F2, sexo feminino)
Nos discursos relativos a este conceito, diagnostica-se a dificuldade que os/as estudantes
têm em percecionar comportamentos de natureza sexual, uma vez que são claros quanto
à ocorrência de abusos sob a forma física e psicológica e raramente aludem à violência
sexual: “(...) acho que só o simples facto de deixarmos alguém desconfortável, seja física ou
psicologicamente, já tem um piquinho de assédio” (Estudante G_F1, sexo masculino).
(...) porque o que é confortável para mim, pode não ser confortável para outra
rapariga... mesmo com amigos meus, que dizem piadas ou assim, eu não fico
incomodada, mas sei que tenho amigas minhas que talvez, [com] as mesmas
piadas, reagem de forma diferente... e eu acho que, para mim é assédio, para
elas pode não ser. Sinto que, a partir do momento que a barreira do confortável
com a situação é ultrapassada, começa a ser um pouco assédio. (Estudante D_F3,
sexo feminino)
(...) o que eu ia dizer é que... a primeira coisa que me vem à cabeça, pelo menos
para mim, quando falamos em assédio sexual, é o toque... e pronto, apalpões (...)
(Estudante A_F4, sexo masculino).
O toque enquanto assédio sexual revelou-se um ponto de discórdia durante as sessões. Por
um lado, há estudantes (e.g. de desporto ou atletas) que interpretam o toque como um
estímulo e desvalorizam a conexão a um comportamento de natureza sexual; por outro
lado, quando se especificam alguns contextos, como as festas académicas, o toque e o
apalpão destacam-se negativamente, sobretudo por parte das estudantes do sexo
feminino. Estas consideram o toque uma forma de assédio sexual e um motivo de revolta,
51
principalmente nos contextos festivos, dado que é algo que lhes acontece repetidamente
e lhes causa desconforto.
As opiniões das estudantes demonstram que não precisa de haver toque para que haja
assédio sexual – “É que não precisa de ser um toque, não precisa de ser nada disso. Um
olhar, um pensamento, uma palavra basta para...” (Estudante C_F1, sexo feminino).
Aludem, como vimos, a comportamentos como o olhar e o assédio verbal. Os estudantes
do sexo masculino não colocam em causa o facto de estes atos poderem ser interpretados
enquanto assédio, embora tenham dificuldades em associar a violência a estas condutas.
(...) para mim, quando me sinto desconfortável... quando me estão a olhar muito
ou me estão a olhar de alto abaixo, sabem aquele olhar mesmo perverso? Isso
para mim já é assédio... agora estás a passar na rua e a pessoa fica a olhar para ti
com aquele olhar mesmo “se eu pudesse...”, estás a entender? Isso não é correto
(...) (Estudante G_F2, sexo feminino)
Para a maioria dos estudantes do sexo masculino, o olhar é uma forma de demonstrar
agrado por alguém que consideram atraente e acreditam que é uma ferramenta
imprescindível no processo de sedução. Contudo, afirmam que “olhar fixamente” é
inapropriado e de natureza sexual. Os/as estudantes de ambos os sexos destacam o olhar
dirigido ao sexo feminino como figurativo de assédio, embora não negligenciem o olhar
direcionado ao sexo masculino por parte das mulheres. Realça-se esta perspetiva porque,
embora as narrativas permitam construir o fenómeno do assédio sexual em torno da matriz
da violência de género, sublinha-se esta pista relativa ao papel da mulher, nomeadamente
o facto poder incorrer numa situação de assédio onde toma o lugar da agressora.
52
(...) mas não deixa de haver contra o sexo masculino, haver um grupo de
raparigas a comentar, a olhar, a dizer e, desculpem-me a expressão, “a comer
com os olhos”! (Estudante C_F1, sexo feminino)
No que diz respeito ao assédio verbal, as narrativas enfatizam o piropo, o que gerou
intensos debates no decorrer das sessões. Como se demonstra no Capítulo 2, o piropo tem
sido objeto de acesas polémicas no seio da sociedade portuguesa devido à dificuldade da
sua interpretação, no sentido de perceber se se trata ou não de uma conduta ofensiva. Ao
nível da literatura, esta questão surge no estudo da FAL (2019), onde se sublinha que as
práticas de importunação sexual, nas quais se inscreve o piropo, apresentam uma
tendência decrescente para serem categorizadas como violência sexual. Para os/as
estudantes entrevistados/as a situação é idêntica, exceto se o ato estiver acompanhado de
outras condutas analisadas anteriormente. Nessa circunstância, a opinião geral é de que o
ato é ilícito e se inscreve enquanto assédio sexual:
Esta perspetiva não é unânime, sobretudo para os/as estudantes que consideram que,
embora o piropo seja assédio, não se trata de algo relevante e que atribuam importância.
(...) esse da brasa e do não sei quê, acho um bocado demais... mas agora também
não fico super fragilizada... e acho que é assédio, mas não acho que é uma coisa
que me afete assim tanto. (Estudante B_F3, sexo feminino)
As narrativas em torno do piropo revelam que, quando é dito por uma pessoa conhecida,
pode ser interpretado como elogio. Todavia, quando é dirigido por uma pessoa
desconhecida, o entendimento é diferente e o piropo passa a ser visto como uma ofensa
sexual. Conclui-se que o que transforma o piropo em assédio sexual depende mais de quem
o profere (ser alguém conhecido ou desconhecido) do que o ato em si.
Tal como defendem Múrias et al. (2016), cabe a cada indivíduo determinar que
comportamentos entende como aceitáveis ou ofensivos. Esta conclusão foi igualmente
avançada pelos/as estudantes, os/as quais consideram que é de extrema relevância cada
indivíduo definir os seus limites e perceber em que contextos estes são (ou não)
ultrapassados. Através dos discursos é possível deduzir que o conceito de assédio sexual
está sujeito às representações de cada um/a, àquilo consideram atos ofensivos de natureza
sexual, dentro dos limites que estabelecem. Assim, molda-se às atitudes, crenças,
53
experiências e vivências de cada indivíduo, o que faz com que seja extremamente difícil de
encerrar numa definição fixa e unânime.
Porque as definições não se esgotam nos conceitos que os/as estudantes apontam como
assédio sexual, procurou-se compreender as dinâmicas e contextos que os/as envolvem e
a forma como estes/as constroem o fenómeno. Assim, procura-se explorar o modo como
as definições podem ser igualmente subjetivas e variar de acordo com os contextos em que
os/as estudantes estão submersos/as.
O assédio sexual nem sempre é representado pelos/as estudantes como uma forma de
violência, dado que em causa estão comportamentos que têm vindo a ser naturalizados e
legitimados pela própria sociedade. Esta perspetiva não é consensual e há uma grande
parcela de estudantes que frisam, no decorrer das sessões, algumas pistas acerca das raízes
do assédio sexual enquanto violência. Desde logo, sublinham a discrepância entre aquilo
que fazem e que consideram comportamentos “normais” ou “naturais” e ações
espontâneas, que podem ser consideradas assédio.
E às vezes há muitas coisas que nós fazemos no dia-a-dia que não pensamos,
porque está completamente enraizado na nossa cultura, nas nossas práticas
diárias e que constituem uma marca de... eu posso falar, mas acho que nós
vivemos numa sociedade com elevado grau de machismo estrutural e aí a
questão dos assédios, baseia-se nos micro machismos. Nós próprios fazemos
coisas que, para nós, está tudo bem e outra pessoa que se calhar não concorda e
que não deu permissão para isso... (Estudante I_F4, sexo masculino)
Os/as estudantes concluem que a raiz do assédio sexual se encontra no machismo, ou seja,
num sistema normativo que concede privilégios aos homens. Sobre este ponto, é
importante realçar que, embora os/as estudantes refiram o chavão “machismo” nas suas
54
narrativas, os argumentos espoletados por estes/as cruzam-se com o que se realçou no
Capítulo 1 sobre o patriarcado. Deduz-se, por isso, a conexão do assédio sexual às
estruturas sociais patriarcais, de onde sobressai o poder do homem sobre a mulher.
Acho que o machismo é um problema que atravessa gerações, do tempo dos reis
e mesmo antes disso e isso nunca vai passar... e isso é algo que está intrínseco na
sociedade e que, sinceramente está intrínseco mais no homem e é algo do
homem, já... não estou a dizer todos, estou a generalizar. (...) é intrínseco, mas
que de certa forma, voluntaria ou involuntariamente, acontece... às vezes, até eu
próprio posso estar a ser, mesmo não querendo ser. (Estudante E_F4, sexo
masculino)
Apesar deste reconhecimento, que se estende a todos/as os/as participantes, realçam que
também não se podem deixar de apontar as situações em que a vítima pertence ao sexo
masculino:
De modo concreto, são vários os/as estudantes que recorrem ao exemplo da violência
doméstica para sublinhar que os homens também podem ser vítimas. Por um lado, o
excerto que citei acima permite deduzir que os/as estudantes percecionam o assédio
sexual num continuum de violência de género, uma vez que conseguem conectar os
55
fenómenos entre si; por outro lado, realçam-se as representações relativas às vítimas, o
que requer uma análise sobre os papéis de género e a forma como a sociedade codifica os
traços da vitimação. Assim, os/as estudantes reforçam a seguinte ideia: “[o] problema é
que os homens, como são muito... a ideia do machismo e da superioridade masculina,
também leva os homens a não mostrarem fraqueza” (Estudante A_F4, sexo masculino).
Deste modo, aludem a este tipo de argumentação para justificar o parco reconhecimento
de situações em que os homens estão no papel da vítima.
É importante ressalvar que são poucos os discursos que associam outras caraterísticas
identitárias à vitimação. Assim sendo, destacam-se os poucos exemplos relativos a
situações de assédio que podem ocorrer entre pessoas do mesmo sexo: “[o] assédio não
acontece só de um homem para mulher, pode acontecer de mulher para homem ou de
homem para homem ou de mulher para mulher” (Estudante F_F2, sexo feminino). É
premente sublinhar que estas questões não foram discutidas pelos/as estudantes ao longo
das sessões e que apenas se realçou o estigma associado a este tipo de relações.
13
Este caso não envolveu o contexto académico, nem nenhum/a estudante. Opto por aludir a este caso pelas
conclusões que surgem acerca dele.
56
quaisquer experiências de assédio. Retomarei estas discussões mais à frente a propósito
dos papéis atribuídos ao feminino e ao masculino.
No que concerne ao perfil dos/as potenciais assediadores/as, os/as estudantes indicam que
são maioritariamente homens, mais velhos, havendo uma associação à imagem de
predadores sexuais. Contudo, muitos/as reconhecem que, por vezes, estas imagens
assentam em preconceitos e estereótipos enraizados e compartilhados pela sociedade.
Ao longo das sessões foi realçada, sobretudo pelas estudantes, a ideia do homem mais
velho e também do desconhecido. Tal como referi anteriormente, os/as estudantes
revelam uma maior facilidade em considerar assédio quando se trata de alguém que não
conhecem, dado que o risco e o receio de vir a acontecer alguma coisa desta índole, com
conhecidos/as, não é tão grande. Para estes/as, quando há um comportamento indesejado
por parte de um/a conhecido/a, sentem que há um “à vontade”, por parte das possíveis
vítimas, em chamar à atenção e em alertar. De outro modo, mesmo que o ato possa
configurar aquilo que consideram assédio sexual, os/as estudantes tendem a não
considerar como tal. Esta questão é abordada recorrentemente pela literatura, a qual nos
informa que há alguma dificuldade em associar a violência sexual ao contexto da
intimidade e de proximidade entre os indivíduos (Mendes et al., 2013).
(...) tenho uma irmã e às vezes, quando ela sai à noite, quando anda à noite na
rua, tenho um bocado de receio... não sei, de ser vítima de alguma coisa, de
assédio, um piropo, digamos, não gosto... por isso é a questão de ser um
desconhecido ou não. De amigos, às vezes, pronto, acho que se pode falar de
assédio, mas temos aquele à vontade de dizer “calma lá”... (Estudante F_F3, sexo
masculino)
É quando os/as estudantes narram histórias de assédio sexual que lhes aconteceram no
contexto académico, que se desfazem de alguns preconceitos relativos ao perfil dos/as
assediadores/as, principalmente a ideia de que são indivíduos provenientes de grupos
marginalizados:
(...) não sei quem era, mas não era um rapaz mais velho que nós, ou seja, se calhar
um ano ou dois, nem tanto... tinha um aspeto normal, não tinha aspeto de uma
pessoa com menos posses ou um sem abrigo ou delinquente ou
toxicodependente ou pronto, pessoas mais dadas a esse tipo de comportamento.
57
Infelizmente, são rotuladas por esse tipo de comportamentos, mas é um rapaz
super normal (...). (Estudante F_F2, sexo feminino)
À medida que os/as estudantes abordam estas questões é possível assistir à desconstrução
Com base nos preceitos teóricos explorados no Capítulo 1, é possível compreender que o
género é um dos principais eixos de organização das nossas sociedades (Scott, 2008), cuja
análise na relação com o assédio sexual é imprescindível. Sublinho igualmente a
importância que esta categoria assume neste estudo, porque embora as Universidades
sejam espaços cada vez mais feminizados e heterogéneos, persistem modelos de
referência e práticas inerentes ao género que têm vindo a ser reproduzidas (Mendes et al.,
2013).
Com as narrativas dos/as estudantes são identificadas pistas acerca dos papéis atribuídos
pela sociedade ao feminino e ao masculino. Estes são um conjunto de expectativas
relacionadas com os comportamentos que cada sexo desempenha e ditam o modo como
homens e mulheres se devem comportar (Carrito & Araújo, 2013; Oliveira & Amâncio,
2002). À semelhança da literatura, também os/as estudantes entrevistados/as identificam
a mulher como frágil e sensível e associam os homens à força e valentia. Contudo, esta
análise não se esgota nestas caraterísticas.
Conforme revelo no capítulo relativo às estratégias metodológicas, nas sessões com os/as
estudantes, optou-se por partir de questões mais amplas, nas quais se apreenderam os
hábitos de sociabilidade, com quem estes/as se relacionam ou procuram estar nos vários
momentos que compõem os seus quotidianos. Neste encalce, capturaram-se algumas
particularidades relativas aos papéis sexuais que importa destrinçar e pormenorizar.
58
Os/as estudantes esclarecem que gostam de se relacionar com toda a gente,
independentemente do género. No entanto, há rapazes que salientam que preferem
estudar com raparigas devido à imagem de que são mais organizadas e concentradas para
este tipo de tarefas. Já a maioria das raparigas, nas suas saídas à noite, opta por sair com
os rapazes, uma vez que lhes está imputada uma imagem de força e de valentia.
Como é possível deduzir a partir das narrativas, prevalece a ideia de andar em grupo.
Apesar de os/as estudantes destacarem a pertença a grupos mistos, ou seja, compostos
por raparigas e por rapazes, referem que há momentos em que se juntam em grupos
homogéneos (só de raparigas ou só de rapazes) para conversar sobre determinados
assuntos ou para executar tarefas específicas. As raparigas confessam que, quando estão
em grupos femininos, conversam sobre rapazes e sobre os seus problemas mais íntimos.
Os estudantes do sexo masculino salientam que, quando estão em grupo, falam
recorrentemente sobre as suas histórias de sedução. É associado a este contexto que
expõem que, quando passa alguma rapariga que consideram mais atraente, tecem
comentários e trocam olhares. A opinião destes é de que é errado, mas apesar de terem
essa consciência, revelam que são comportamentos socialmente enraizados que não
conseguem evitar.
Tenho casos concretos e no meu grupo de amigos que, quando passa aquela gaja
demasiado boa e tal e... há aqueles comentários menos bons... isso acontece e
isso é uma cena involuntária. Nós não fazemos, não é por mal... é simplesmente
aqueles comentários inapropriados. São demasiado? São! Deviam ser evitados?
Deviam! Contudo, isto é um erro da sociedade, é algo que sai tão natural que é
como se fosse já uma desculpa que está intrínseca a isso... (Estudante E_F4, sexo
masculino).
Ao longo das sessões procurou-se compreender as mudanças que ocorrem na vida dos/as
estudantes com a entrada no Ensino Superior, cujos discursos se concentram na abertura
de horizontes e na nova sensação de liberdade que se desperta neles/as. Assim, tanto os/as
estudantes como as instituições, sublinham a importância da nova sensação de liberdade,
mas também o facto de se encontrar ancorada aos papéis sexuais. Tal como nos diz a
literatura, os/as estudantes que deixam a casa de família, sentem uma nova liberdade que
contempla a possibilidade de fazer outras escolhas (Mendes et al., 2013). Esta sensação é
mais evidente no caso das raparigas, que apresentam uma maior necessidade de se
libertarem de algumas coisas que traziam das suas famílias e de desfrutarem dessa
liberdade.
59
(...) a maior parte dos estudantes são deslocados e, principalmente as raparigas,
têm uma necessidade quando mudam, de crescer, de se libertarem também de
algumas coisas que trazem da sua família de origem e da sua cidade natal e,
portanto, acabam por, ao vir para uma cidade diferente e estar num contexto
que lhes permite uma liberdade que habitualmente não têm, porque nas cidades
de origem estão mais protegidas pelas famílias e, muitas vezes, não têm, na sua
cidade natal, a mesma possibilidade de se relacionar com várias pessoas e de ter
uma maior liberdade (...). (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima)
Dado que as influências familiares e culturais definem o que é esperado para cada um dos
sexos, persiste a ideia de que os/as estudantes deslocados/as, de meios mais
conservadores, se devem comportar de forma tradicional. Ou seja, espera-se que usufruam
da sua liberdade dentro dos “limites” e que não os extravasem. É premente referir que esta
questão é ainda mais acentuada se estivermos a falar do sexo feminino.
No leque das questões culturais, a que é mais realçada nas discussões diz respeito ao
vestuário e à forma como, sobretudo as mulheres, se apresentam. Tal como esclarece o
excerto da entrevista, muitas estudantes, quando ingressam o Ensino Superior, procuram
libertar-se de alguns hábitos e, inevitavelmente, mudam a sua forma de vestir. Assim,
optam por um estilo diferente: usam frequentemente maquilhagem e roupas arrojadas
(Mendes et al., 2013). Mas se desfrutam desta liberdade ao nível do que escolhem vestir,
a roupa, não raras vezes, é também um mecanismo de controlo social (idem). As mulheres
são aquelas que manifestam uma opinião ainda mais crítica em relação a outras mulheres:
Lembro-me de uma vez, estava em minha casa a vestir-me, estava a minha colega
de casa e estava lá um rapaz e eu ia sair e perguntei: “estou bem para sair?” e
ele, “ah, se calhar tens um bocadinho de frio, leva um casaco um bocadinho
maior”... ao que ela responde: “as putas nunca têm frio!”. (Estudante D_ F3, sexo
feminino)
Os estudantes do sexo masculino concluem que as mulheres recorrem a outro modo de
vestir para “dar nas vistas” ou para se sentirem mais “desejadas”, mas, ao mesmo tempo,
são julgadas “provocadoras”. Esta ideia contribui para reforçar a manutenção do vestuário
enquanto indicador de disponibilidade sexual e para reproduzir os papéis e normas que
lhes estão associadas. Estes discursos encontram-se, ainda, colados às ideias de
passividade das mulheres e à própria vitimação, tal como procuro desconstruir mais à
frente.
Queria falar de uma coisa um pouco complicada que parece um pouco machista,
mas eu tenho amigas minhas que se vestem de forma recorrente de... a gente
pode aqui chamar de forma provocatória. Assim, vestir-se com roupas curtas,
justas, que mostrem mais partes do corpo que outras... e eu acho que essas
minhas colegas gostam, de certa forma, de se sentir desejadas... gostam de, ao
60
passar, que as pessoas olhem... e eu acho que para elas, um homem que olhe
para elas e ache que ela é gira e toda boa e é marota, acho que para elas isso não
as incomoda. (Estudante C_F4, sexo masculino)
Embora em número reduzido, há estudantes de ambos os sexos que apontam que estas
questões estão meramente associadas ao facto de as mulheres se sentirem bem de
determinada forma. Assim, apesar de os discursos serem pouco explícitos, identificam
estas questões enquanto mecanismos de controlo social de ordem patriarcal baseados em
estereótipos. Consideram, por isso, que relacionar o modo de vestir à forma de ser e de
estar é contribuir para a manutenção do machismo. Em última instância, do patriarcado.
Nas narrativas, sobretudo das estudantes, predomina a ideia de que a roupa tem vindo a
ser considerada um indicador de disponibilidade sexual: “Não é por eu estar com uma
camisola transparente e um brallette que eu quero alguma coisa ou estou a permitir-lhe
que digam ‘olha, queres vir?’ ou alguma coisa” (Estudante G_F2, sexo feminino).
(...) mas eu acho que nós como mulheres, também sentimos muito... por
exemplo, se for para o pólo 2, eu vejo a roupa que vou levar, eu não levo saia,
61
não tão facilmente como quando vou para o pólo 1. (Estudante A_F3, sexo
feminino)
Há estudantes que enfatizam que estas questões não estão necessariamente relacionadas
com lugares geográficos específicos, com maior ou menor presença de homens, com mais
ou menos iluminação. Para estas estudantes, basta usar uma peça de roupa mais curta para
que se sintam invadidas pelos olhares, entre outros atos, que as remetem ao desconforto.
Revelam, por isso, que a própria sociedade está formatada para reforçar a manutenção
deste tipo de mecanismos.
A literatura e os dados que analisámos até ao momento indicam que as mulheres têm uma
maior propensão a ser vítimas. Indicam igualmente pistas que permitem reconhecer que
se consideram vítimas inocentes as mulheres respeitáveis, que vestem roupas discretas e
que foram atacadas por um/a estranho/a, um/a criminoso/a. As estudantes que quebram
com esta visão são tomadas por vítimas culpadas, porque são tentadoras, porque levam os
homens a cair na tentação e, neste sentido, são agentes da sua própria vitimação (Schafran
apud Duarte, 2013, p. 95). Quando incorrem numa situação de assédio sexual, as mulheres
que se vestem de forma arrojada e que são extravagantes nos modos como se apresentam,
são representadas como alguém que alimentou a sua própria vitimação. São, por isso,
responsabilizadas pela violência com o discurso repetidamente mencionado pelos/as
estudantes de que estavam “a pedi-las”.
(...) nós ouvimos isto trinta vezes por dia e isto revolta-me de uma forma... que é
aquilo do “está a pedi-las”, sabem? Aquilo do “foi violada, é porque está a pedi-
las”. Aconteceu-me, aqui há uns tempos, uma coisa que é... eu não costumo usar
saias (...). A primeira vez que eu uso saia, passo por dois gajos, desculpem, dois
senhores (...), nunca me disseram nada. Nesse dia, estava de saia e dizem “então,
não se diz boa tarde?”. Isto não é nada de especial, mas os olhares deles (...).
Estou de saia... o que significa uma rapariga estar de saia? Ainda por cima de dia,
que nem era de noite. O que significa? Está de saia já pode ser abordada? E eu
nem sou uma pessoa que use... então a primeira vez que uso saia sou o quê? Já
posso ser abordada por um gajo porque uso saia, é? Abordada por uma má forma
(...). (Estudante C_F2, sexo feminino)
62
Ao recuperar as narrativas acerca dos/as potenciais agressores/as e a partir do
reconhecimento de que o assédio sexual também pode ser perpetrado por mulheres, os/as
estudantes revelam algumas pistas sobre os papéis atribuídos ao feminino. A constatação
destes casos surgiu aliada à representação de que as mulheres são consideradas “mais
abusadas” e conotadas de forma negativa. Tal como sublinha o estudo de Mendes et al.
(2013), algumas das críticas face aos comportamentos das mulheres são avançadas por elas
mesmas, que exercem controlo moral entre elas. A este respeito, a literatura sugere que
as mulheres são condenadas de forma mais severa do que os homens porque é uma prática
inerente à masculinidade e, por isso, algo que é esperado do sexo masculino. Quando as
mulheres tomam este tipo de práticas, desafia-se a normatividade:
Também acho que há duas partes, sim. Mas também depende de cada pessoa,
sei lá. Há raparigas que, também, se calhar são um bocado mais abusadas e às
vezes também podem conseguir deixar os rapazes desconfortáveis, mas eu acho
que isso depende um bocadinho de pessoa para pessoa. (Estudante G_F3, sexo
feminino)
E acho que, outra vez aqui, a sociedade volta, entre aspas, a impor-se aqui,
porque não é natural uma mulher fazer isso. Se bem que, se uma pessoa quiser
pôr um rapaz desconfortável, sabe perfeitamente como o fazer, mas é mais
condenável. Enquanto que, quando é um homem nunca foi... sempre pôde.
(Estudante H_F3, sexo feminino)
“Eu fiz”. Eu acho que nós temos mais vergonha... às vezes até parece que... se
estamos hoje com uma pessoa e com outra amanhã, até parece que temos um
pouco mais vergonha disso e acho que, para os rapazes, isso é tipo motivo de se
andarem a gabar e de dizer a toda a gente... do género “hoje estive com aquela,
ontem estive com a outra”, estão a entender? Sinto que há muito isso!
(Estudante D_F3, sexo feminino)
(...) a nível de sociedade, o facto de um rapaz faz, ok... uma rapariga faz, espera
aí que já é condenada. É muito mais natural e é muito mais fácil de falar do que
63
para nós, porque tem todas essas imposições sociais, porque a nível de
sociedade, o homem está sempre acima (...) (Estudante H_F3, sexo feminino)
Os/as estudantes, ao longo das discussões em grupo, identificam situações em que tiveram
contacto ou seria mais suscetível de terem contacto com o assédio sexual e que importa
aqui frisar. A relevância deste subcapítulo é que nos permite compreender não só as
representações destes/as relativamente ao assédio sexual, mas também as suas principais
fontes de preocupação e inquietações. Pretende-se, ainda, cruzar a informação
compartilhada pelos/as estudantes com aquela que advém das várias instituições que
rodeiam a comunidade académica, bem como o trabalho que tem vindo a ser desenvolvido
por estas no que concerne ao problema que se está a tratar.
64
5.3.1. Contexto diurno
(...) a começar pelo dia, eu por acaso quero partilhar a situação mais
desagradável que me aconteceu em Coimbra, que foi há cerca de dois meses, à
porta da Faculdade, em plena luz do dia, com montes de pessoas à volta e foi
mesmo muito desagradável. Eu estava a sair da Faculdade, estava ao telefone e
foi mesmo uma situação de assédio, mesmo. Nunca me tinha acontecido, nunca
me tinha sentido assim (...). Tinha ido à Faculdade resolver uma série de
problemas, tinha sido só um dia de resolver problemas e vinha a sair da
Faculdade, tipo com a pasta carregada, a chover “a potes”, tipo de guarda-chuva,
casaco de chuva, a falar ao telefone, a resolver problemas do núcleo... e várias
vezes sou abordada na Faculdade e sou parada por colegas que nunca vi na vida,
porque me pedem ajuda e auxílio para tirar dúvidas de problemas pedagógicos
ou fazer perguntas (...). E estava a sair da Faculdade e houve um rapaz que disse
que precisava realmente de falar comigo (...), porque ele estava a dizer-me assim
“estás a falar ao telefone? Precisava de falar contigo e é urgente” e eu disse: “o
que é que precisas” e ele disse assim “ah! é que eu nunca te tinha visto e tu és
muito bonita” ou “tu és muito linda”. E eu fiquei assim... eu não disse nada e
depois ele assim: “queria saber se não querias fazer sexo comigo” e eu fiquei,
completamente assim, tipo vidrada, gelada, estás a ver? Estão a ver? Tipo, parei,
olhei à volta e só pensei assim para mim “só pode ser para os apanhados”(...). Em
plena porta férrea, com montes de gente a passar... e acho que houve pessoas
que me chamaram para me cumprimentar e eu não tinha mais nada, peguei no
telefone, continuei sempre para a frente a falar com essa amiga minha. Não me
lembro do que lhe disse, sei que fiquei montes de tempo a falar sem saber o que
lhe estava a dizer (...). (Estudante F_F2, sexo feminino)
65
Sobre as narrativas relativas ao contexto diurno, deduzem-se duas conclusões. A primeira
é que, se inicialmente os/as estudantes sublinham a desvalorização do assédio verbal,
nomeadamente com a discussão em torno do piropo, com estes relatos, torna-se claro que
é algo que lhes causa desconforto e que, sobretudo as estudantes, atribuem bastante
importância. A segunda conclusão é que não é tanto a abordagem que as incomoda, ou
seja, o facto de a pessoa desconhecida as interpelar ou lançar “piropos”, mas o conteúdo
sexual daquilo que é dito. Assim, se há piropos que os/as estudantes até interpretam como
elogios, é o recurso a um vocabulário extremamente indecoroso e sexualizado que
transporta a conduta para o domínio das ofensas sexuais.
Por fim, acerca dos trechos que cito, ao longo das sessões denota-se uma facilidade muito
maior, por parte dos/as estudantes, em interpretar os casos relativos a este contexto como
assédio sexual. De modo particular, é algo frequentemente associado à ideia do
desconhecido que se aproxima na rua durante a noite, tal como sublinho anteriormente.
Quando estas situações ocorrem durante o dia, os/as estudantes atribuem maior
gravidade, dado que permitem romper com as ideias pré-concebidas acerca do fenómeno.
Assim, se a maior fonte de preocupação das estudantes até ao momento em que foram
reveladas estas situações se prendia com a segurança nos momentos noturnos (cuja análise
se procederá mais à frente), é aqui que concluem que não se sentem seguras apenas
porque são mulheres.
Esta questão está também relacionada com a ideia da vitimação explorada anteriormente,
no sentido em que estas se posicionam mais facilmente num papel de vítimas inocentes e
encaram a sua vitimação de modo mais sério, uma vez que são alvo destas formas de
violência num contexto que não as submete a uma imagem pecaminosa e de vítimas
culpadas.
Como sublinho no Capítulo 2, o assédio sexual, tal como se encontra definido e redigido
nos diplomas, pressupõe uma relação hierárquica. Quando há episódios desta índole por
parte de docentes a estudantes, deveria ser uma evidência clara de que se trata de assédio.
Os/as estudantes não mencionam este pressuposto hierárquico nas suas definições
66
relativamente a esta conduta e, por isso, deduz-se que para estes/as, o assédio não precisa
de estar veiculado a uma posição hierárquica, mas consuma-se nos atos em si. No caso das
instituições, há uma maior facilidade em identificar casos de assédio sexual no seio de uma
relação hierárquica, o que pode ser explicado pelo conhecimento relativo às definições dos
diplomas legais, as quais vão ao encontro deste pressuposto. Embora os/as estudantes não
apontem a posição hierárquica como elemento chave da definição de assédio sexual, não
negligenciam a possibilidade da sua ocorrência neste contexto. No entanto, os exemplos
são escassos.
(...) no meu 1º ano da Faculdade tinha um professor que não era correto com as
raparigas... só foi meu professor no 2º semestre e colegas tinham sido alunas
dele no 1º semestre... e elas já me tinham avisado que ele fazia assim...
comentários impróprios sobre a roupa das alunas, que gravava boomerangs das
alunas e punha nas histórias do Instagram, pedia para alunas o seguirem no
Instagram, adicionarem no Facebook... e é um homem que devia ter 35 anos no
máximo, novíssimo! E houve alguns episódios que me ficaram. Mas houve um
que eram 9h da manhã, estávamos na sala, mas ainda não tinham chegado
muitos alunos, então o professor começou a falar com umas raparigas que
estavam mais perto dele... e a rapariga estava a usar um top cai-cai e a primeira
coisa que o professor lhe diz é “que soutien é que usas para essa camisola?”. Foi
assim um momento... a miúda ficou desconfortável... não lhe respondeu (...). No
momento ninguém disse nada, mas esse professor, depois mais tarde, no início
do ano letivo passado, numa festa do meu curso, houve uns rapazes que o
convidaram (...). E ele foi e disse: “Ah!, se eu soubesse que, sei lá, um nome, a
Maria (nome fictício), fazia natação sincronizada, já a tinha ido ver há mais
tempo”. Depois, essa miúda fez queixa à coordenadora do curso e o professor foi
afastado totalmente. Mas ele... vocês se calhar pensariam, ok, é professor, se me
acontecer alguma coisa vai ser alguém que, não digo proteger, mas fazer com
que aquilo não aconteça na sala de aula dele... porque se fosse um aluno a fazer
um comentário, ele ia reprovar o aluno, reprovar o comentário, mas como era
ele a fazer, parecia que não havia mal. (Estudante A_F2, sexo feminino)
67
Para muitos/as estudantes, este problema é antigo, do conhecimento de todos/as, mas
ainda é considerado tabu e algo marginalizado. Estes/as sublinham que a situação é errada
e contraditória, devido à imagem dos/as docentes como as figuras máximas da sua
educação. A opinião dos/as estudantes é de que os/as docentes, com este tipo de
condutas, contribuem para a reprodução e manutenção deste tipo de normas e promovem
a aprendizagem de comportamentos que colocam em causa a dignidade do próximo.
Vão surgindo alguns casos que configuram, eu diria, diferentes situações que a
gente pode incluir nas situações de assédio, quer sejam, enfim, os relatos,
comentários de natureza sexual, explícita ou implícita, que têm a ver com, por
exemplo, comentários feitos por docentes mulheres ou por docentes homens e
envolvendo também, sobretudo, estudantes brasileiras. Ou seja, são
comentários que são vistos por essas estudantes como sendo do ponto de vista
daquilo que é uma abordagem desadequada, alguns que, enfim, são bocas
despropositadas que ficam (...) ali muito na fronteira do que é um conteúdo
sexual ou de natureza sexual ou até sexista do comentário (...). (Provedor do
Estudante)
68
algo recorrente. Não há relatos na primeira pessoa, mas os/as estudantes socorrem-se de
exemplos de pessoas que conhecem, o que reforça a perspetiva realçada anteriormente e
que se prende com a dificuldade que estes/as têm em se posicionar no papel da vítima.
Uma coisa que ouço muito das minhas colegas de casa de Direto é, “ajuda-me a
escolher a roupa que hoje vou ter oral e o professor é não sei quem e eu tenho
de ir assim, ou tenho de ir assim vestida porque é isso” ou “temos um problema
com um trabalho, vai tu falar com o professor que és rapariga, é mais fácil”.
(Estudante D_F3, sexo feminino)
Os discursos dos/as estudantes a este respeito sublinham que esta informação acaba por
ser compartilhada entre pares a partir do momento em que chegam às Faculdades ou que
ingressam em novas unidades curriculares que pressupõem uma mudança de docentes:
Eu não sei como é que é com os vossos cursos, falando mais na parte diurna, mas
há sempre um professor no nosso curso... um ou dois... certos professores que
dizem, que os nossos colegas mais velhos dizem, “leva decote para as aulas”.
(Estudante C_F1, sexo feminino)
69
(...) quando, à medida que os estudantes, por exemplo, que às vezes são as partes
mais vulneráveis, chegam a uma instituição... se nessa instituição, por exemplo,
existir alguém que tem esse perfil, essa pessoa normalmente já é conhecida. Já é
conhecida por fazer comentários inapropriados, é conhecida por ter outro tipo
de comportamentos e acho que isso acaba por dar algum grau de proteção às
pessoas, [para] que possam fugir dessas situações que as podem expor. E,
portanto, (...), por exemplo, há docentes que, por uma razão ou por outra, onde
as estudantes não vão aos horários de atendimento... não vão ou não aceitam,
enfim, reuniões pelo Skype ou pelo WhatsApp ou onde quer que seja e fogem a
esse tipo de contactos, porque às vezes têm um receio, um receio infundado,
outras vezes têm uma informação que vai sendo passada entre pares sobre
comportamentos... assim... menos próprios, para ser polido na maneira de dizer,
próprios de certas pessoas, sejam docentes, sejam colegas estudantes às vezes
mais velhos. (Provedor do Estudante)
Sobre os casos de assédio sexual no contexto de sala de aula, um dos assuntos que mais
incomodou os/as estudantes ao longo das sessões prende-se com o encaminhamento. Este
assunto será analisado com maior detalhe mais adiante quando abordar o papel das
instituições relativamente ao assédio sexual.
Nem sempre foram escutados discursos positivos a este respeito ao longo das sessões e,
por isso, os/as estudantes divulgam outros contextos15 e modos de interagir com a cidade,
14
A Praxe Académica encontra-se definida como “o conjunto de usos e costumes tradicionalmente existentes
entre os estudantes da Universidade de Coimbra e todos os que forem decretados pelo Conselho de
Veteranos da Universidade de Coimbra” no artigo 1.º do Código da Praxe. Como é possível compreender e
será demonstrado, não se reduz à situação de gozo do caloiro. Reconhecendo que o conceito é mais amplo
do que o que se procura aludir, opto por usar este conceito para aludir ao gozo do caloiro, por ser a
denominação que lhe é recorrentemente dada.
15
Os/as estudantes reforçaram que há outros mecanismos que promovem a inclusão e integração na cidade,
como é exemplo o Cri’atividade, que é uma alternativa à praxe e também o Gabinete de Inclusão do Núcleo
de Estudantes de Direito.
70
além da praxe académica. Na base desta divulgação predomina a ideia de que as
experiências de praxe não são iguais para todos/as e que podem, também, ser contextos
nefastos e onde os/as estudantes não se sentem bem.
Os/as estudantes reconhecem que há exageros e abusos nas praxes, sobretudo do ponto
de vista psicológico, mas a grande maioria julga imprescindível passar por essas situações
durante esta fase das suas vidas. O argumento de base desta afirmação prende-se com as
futuras relações de subordinação no trabalho, o que culminou com a interpretação da
praxe como uma preparação para esse tipo de situações:
Há exageros na minha praxe? Há. Eu estive de quatro a ouvir um sermão que não
fazia sentido nenhum... mas continuo a dizer a mesma coisa... naquele dia, foi
um doutor mais velho, que não fazia sentido nenhum ele dizer aquilo... um dia,
vai ser no trabalho, que o meu chefe não vai estar a fazer sentido dar-me na
cabeça daquela maneira e vai estar a dar... (Estudante H_F3, sexo feminino)
Quando se procura compreender a relação entre a praxe e o assédio sexual, tanto a partir
da literatura como dos discursos das instituições, averigua-se que as Universidades são
construídas com base em relações de poder assimétricas.
71
incontornável de uma instituição de Ensino Superior, não especificamente da
UC... mas relações hierárquicas, inclusive entre estudantes, ou seja, entre
códigos da praxe, se é do primeiro ano... eu acho que existem várias situações
entre estudantes e os estudantes do mesmo sexo ou de sexo diferente ou de um
género diferente... existem várias situações que são situações que partem de
uma assimetria de poderes que são favoráveis a que ocorram casos de assédio
de natureza sexual ou até moral. (Provedor do Estudante)
A praxe é uma evidência clara das marcadas relações de poder assimétricas que, aliadas a
uma lógica patriarcal e sexista, reforçam e incentivam uma cultura de violência, sobretudo
de cariz sexual (Mendes et al., 2013). As narrativas dos/as estudantes acerca da relação
entre a praxe académica e o assédio sexual não são claras e tampouco lineares. Importa
ressalvar, desde já, que não há discursos por parte dos/as estudantes relativamente a casos
de assédio sexual neste contexto. Porém, uma vez que estão em causa rituais de base
patriarcal e sexista, procura-se escrutinar e interpretar o modo como a praxe pode (ou não)
estar relacionada com a problemática.
A maioria dos/as estudantes reconhece que a praxe é sexista16, o que tem sido alvo de
diferentes interpretações. Há estudantes que interpretam como uma praxe separada por
sexos, onde o sexo masculino prepara a praxe para os seus caloiros e o sexo feminino a
praxe das suas caloiras e esses momentos ocorrem em horários e locais distintos. Para
estes/as estudantes é o mais acertado a fazer, para não expor nenhum dos sexos a
situações de desconforto. Por outro lado, os discursos em relação a este modo de
interpretação sugerem que a praxe gera discrepâncias ao nível da integração. A conclusão
é de que este não é um modelo viável, afinal é este o objetivo da praxe.
Numa segunda interpretação, há estudantes que realçam modelos de praxe onde estão
todos/as juntos/as, onde os rapazes obedecem aos rapazes e as raparigas às raparigas,
cujas narrativas relativamente a esta interpretação sublinham que é algo que poucos
cursos fazem. É importante realçar este aspecto porque apesar de as praxes consideradas
mistas serem a norma17, os/as estudantes julgam que são os/as únicos/as a passar por essa
16
O conceito de praxe sexista que aqui exploro diz respeito à separação por sexos, porque é assim que os/as
estudantes designam essa situação nos seus discursos.
17
Quase todos/as os/as estudantes apontaram que as suas praxes são mistas. Apenas a praxe da Faculdade
de Farmácia, dado que engloba todos os cursos da Faculdade e da Faculdade de Direito, onde as praxes são
separadas por tertúlias, referiram ter praxes sexistas rígidas, ou seja, separadas por sexo. É importante
compreender que esta questão também depende da amostra de estudantes (Anexo 1).
72
situação e reforçam sempre que é contra as normas, embora o façam na mesma com muita
cautela.
(...) fazemos uma coisa que poucos fazem: misturar rapazes e raparigas... nós
estamos todos juntos porque, como podem imaginar, somos poucas raparigas e
fazer separado não ia ser, supostamente, aquilo que é, que é inclusiva e acho que
é sexista tudo muito bem, até um certo ponto. Eles brincam todos... claro que há
um jogo mais ousado ou mais assim ou mais assado, ok, em primeiro vão os
rapazes uns contra os outros e depois as raparigas umas contra as outras...
(Estudante H_F3, sexo feminino)
As narrativas demonstram que não há consenso quanto às interpretações do que se
entende por praxe sexista e, por isso, há estudantes que reforçam a importância de
compreender porque é que o Código da Praxe estabelece a divisão por sexos. Neste
sentido, procurou-se perceber a posição e o entendimento do Conselho de Veteranos,
dado que são a Assembleia que regula a praxe académica:
Quando se procurou compreender porque é que as praxes mistas não podem estar
devidamente protocoladas no Código da Praxe, concluiu-se que as situações de
desconforto são presumíveis neste contexto. Face ao discurso que cito acima, deduz-se que
o artigo permanecerá inalterável por uma questão de segurança e para ilibar algumas
responsabilidades, caso possa a vir a acontecer alguma coisa.
Sobre este aspecto, os discursos dos/as estudantes sublinham o receio de que algo pode
correr mal, o que é, por vezes, infundado e baseado em histórias transmitidas entre pares.
E no meu curso nunca houve, por exemplo, eu sei que há cursos que as raparigas
só praxam raparigas e os rapazes só praxam rapazes. Na minha Faculdade não,
no meu curso é tudo ao molho e fé em Deus. Estamos ali todos e toda a gente
praxa toda a gente, por isso acho que nunca correu mal, nunca houve assim
nenhuma situação que me assustasse, porque eu sei de histórias assim...
Péssimas... (Estudante A_F2, sexo feminino)
As narrativas em torno das praxes mistas encontram-se também coladas nos papéis e
estereótipos sexuais, aos quais aludimos anteriormente e que reforçam as diferenças entre
73
o feminino e o masculino. No contexto da praxe surge sobretudo a ideia de que as mulheres
são mais severas e agressivas. Assim, os/as estudantes apontam que as praxes conduzidas
por mulheres são invasivas e comprometem o conforto dos estudantes do sexo masculino.
Estudante E_F2, sexo feminino: A nossa praxe costuma ser mista, porque as
doutoras pedem para os praxar a eles...
Estudante C_F2, sexo feminino: Coitados!
(...) não achei que fosse inclusiva, porque primeiro estavam basicamente sempre
a ralhar connosco e depois sempre achei que a parte do sexismo não contribui
para o lado das raparigas. Os rapazes, nós olhávamos para a praxe deles e víamos
que estavam-se a divertir, porque eles levam tudo na brincadeira e quando fazem
uma consequência, também é uma consequência em brincadeira. As raparigas,
notava-se que, quando era uma consequência, era mais uma vingança...
(Estudante A_F3, sexo feminino)
(...) onde há muitas raparigas misturadas... já estão a imaginar que não resulta
bem, considerando que é uma praxe muito vingativa. Depois se falamos de uma
doutora... então, elas sabem sempre tudo, então é péssimo, porque estamos
sempre “de quatro” e elas quase nos humilham à frente de toda a gente, do
género, “ó caloira, andou a dizer mal de mim, não sei quê?”. É um bocado
humilhante (...). (Estudante G_F3, sexo feminino)
Esta tendência não se verifica apenas nas praxes separadas por sexo, dado que nas praxes
mistas, as narrativas dos/as estudantes revelam igualmente o repertório excessivo em
torno do abuso psicológico e das humilhações. Assim, também nas praxes mistas, as
raparigas são expostas a jogos e brincadeiras de cariz sexual que comprometem a sua
integridade e dignidade. Não raras vezes, a exposição a estas condutas é fomentada por
outras raparigas, o que, uma vez mais, nos fornece algumas pistas acerca dos papéis
sexuais, nomeadamente a ideia de que são mais maléficas entre elas do que com os
rapazes.
Temos uma horrível, aí é assim, a rapariga ou aceita muito bem e brinca com
aquilo, ou então é das piores que há, desculpem lá, mas eu vou descrever mesmo
aquilo, que é... uma rapariga que vai à frente e o rapaz vai atrás a correr, feito
desalmado na rua, onde há espaço: “Anda cá”, “não que estou com o período”,
“não faz mal que gosto de arroz de cabidela...” (risos). Aquilo é muito agressivo
74
e depois é assim, ou tu levas a coisa na brincadeira, porque estás no espírito, ou
corre mal. (Estudante H_F3, sexo feminino)
A coisa que discordo com a nossa praxe é que ela é muito sexual, é tudo muito
virado para esse lado. No início, há os jogos para se conhecerem e há essas coisas
todas, mas isso vai acabando e vão ficando as praxes e aquelas brincadeiras mais
sexuais. As músicas são todas sexuais, já toda a gente sabia... mas, em termos até
de jogos, o kamasutra humano e coisas assim, é muito virado para esse lado e eu
como doutora, nessas praxes, recuava... não considero, quando fui caloira, não
me senti bem ao fazer, portanto, como doutora, também não vou para aí.
(Estudante A_F3, sexo feminino)
(...) a questão das posições sexuais faz parte da juventude e bem feito tem a sua
piada... abrir as pessoas... o problema é precisamente quando exageram e
quando acaba por ser quase sempre a mesma coisa. Lembro-me de um curso que
estava sempre a fazer o macaquinho do chinês sexual, faziam para aí 3 vezes por
praxe. Tem piada só uma vez. (Conselho de Veteranos)
(...) tu estavas a falar na praxe e nas músicas e... não sei como é que são as vossas
músicas de curso, mas as do meu curso são... nós temos as regras divididas,
temos a praxe divididas, rapazes de um lado, raparigas do outro. As raparigas têm
uma lista de regras e cantam e eu, honestamente não sei... e as nossas são...
basicamente é falar sobre comer gajas... (Estudante A_F1, sexo masculino)
Não, não, não... é das coisas que eu mais odeio de sempre. Por exemplo, quando
é a parte dos cânticos, calo-me sempre e é muito sexista, mesmo músicas do meu
curso... (Estudante C_F3, sexo feminino)
Isto sempre fez parte dos estudantes, o problema é que nos últimos anos
exagerou-se no uso do vernáculo, ao ponto de serem coisas completamente
75
repugnantes e ofensivas e já não têm... o vernáculo tem aquele coiso do “ah, ele
disse um palavrão”. Ou seja, chegou-se a um ponto em que se exagerou tanto e
deturpou-se tanto, que todas as músicas têm um cariz altamente sexual, mas lá
está, é uma coisa que evoluiu com a sociedade. Por exemplo, dou um exemplo
muito bom, são os rapazes da Orxestra Pitagórica, que são altamente críticos, são
altamente, por assim dizer, brejeiros, mas no sentido de classe. Mas nunca, nas
suas músicas, eles exageram na sua... a música não repugna, não usam o exagero,
consegues ter lá uma piada inerente... enquanto que nos gritos de praxe não... é
imensamente sexualizado, é muito intenso e depois reduz-se só a isso. A
interação é quem, numa palavra, consegue dizer a coisa mais repugnante. Nesse
aspecto é uma evolução meramente social (...), mas sim, somos avidamente
contra. (Conselho de Veteranos)
Sim, mas tu vês isso (objetificação da mulher) na praxe, quem é adepto da praxe,
eu sou e já fui mais e continuo a ser, mas tu vês isso nos cânticos da praxe, nos
rituais da praxe, tu vês isso na Faculdade... (Estudante B_F1, sexo masculino)
18
Esta polémica surgiu na comunicação social. Poderá ser encontrada em: Público (2019),“Cartaz que
prometia shots grátis a mulher que se beijassem divide estudantes de Coimbra”, consultado a 10 de outubro
de 2020, disponível em: https://www.publico.pt/2019/10/10/p3/noticia/cartaz-prometia-shots-gratis-a-
mulheres-que-se-beijassem-divide-estudantes-de-coimbra-1889598
76
“apenas às meninas” que iam desde “beijar alguém” a “mostrar as mamas”. A opinião de
alguns/mas estudantes é de que este tipo de situações promove a objetificação da mulher
e contribui para a naturalização de comportamentos. Outros/as estudantes, defendem que
são apenas brincadeiras, que têm de ser interpretadas como tal e que jamais se podem
levar “à letra”:
Estudante C_F1, sexo feminino: Não é por cantares ou gritares uma coisa que a
vais fazer!
Estudante B_F1, sexo masculino: Mas é por cantares ou assim que propicias...
não é uma brincadeira, não podes levar como uma brincadeira!
No momento em que os/as estudantes concluem acerca da lógica por de trás da praxe –
ancestral e patriarcal – os discursos apontam para a sua reformulação. Preconiza, acima de
tudo, a ideia de que deve acompanhar a mudança da sociedade e que, se hoje se caminha
no sentido da valorização da mulher, a praxe tem de caminhar em prol dessa mudança:
77
contexto, procurou-se compreender o que pensa o Conselho de Veteranos relativamente
a este assunto.
Eu acho que, muitas vezes, esse tipo de situações, quando acontecem, não estão
necessariamente ligadas à praxe. Elas não acontecem por causa de... no
ambiente de praxe em si. Acontece, provavelmente, entre estudantes e entre
pessoas que são mais otárias que outras... mas, ou seja, a ligação em si à praxe
ou o incentivo da parte da praxe nunca é devido à praxe. Como tal, as pessoas
associam mais o assédio à pessoa em si e à personalidade da pessoa e não à
instituição (...). (Conselho de Veteranos)
A conclusão da instituição é que não é a estrutura que alimenta o assédio sexual, mas a
personalidade das pessoas que fazem parte dessa estrutura. Apesar da mudança que o
Conselho de Veteranos tem vindo a promover ao longo dos últimos meses, no sentido da
sua reestruturação e na tentativa de limpar a própria imagem da praxe, persistem alguns
problemas. Desde logo, nem todos/as os/as estudantes estão a par e acompanham as
mudanças que o Conselho de Veteranos tem procurado implementar, o que faz com que
resistam algumas práticas. Resiste, também, a dificuldade em reconhecer as raízes deste
tipo de problemas, o que não passa pelas novas caras. Pelo contrário, tal como foi possível
analisar, passa antes pela estrutura em si, isto é, pelo abandono das conceções
tradicionalistas e patriarcais.
A entrada no Ensino Superior é também marcada por uma nova dinâmica de experiências
de convivialidade e de rituais. As narrativas dos/as estudantes realçam as típicas saídas à
noite nas terças e quintas “académicas” nos vários espaços de convívio e com o objetivo
de sedimentar as suas sociabilidades. Realçam-se igualmente os expoentes máximos das
festas académicas – a Queima das Fitas e a Latada. Quando se pediu aos/às estudantes que
falassem acerca das festas académicas, os relatos incidiram, principalmente, sobre
episódios relativos à Queima das Fitas e à Latada e, por isso, extraem-se duas conclusões:
a primeira é que as noites de terça e quinta-feira são, de certo modo, banais, isto é,
encontram-se demasiado enraizadas no imaginário dos/as estudantes, ao passo que,
quando se pede que falem delas, pouca importância lhes é dada; a segunda conclusão é
que, dado que os/as estudantes enfatizam a Queima das Fitas e a Latada, permite-nos
deduzir que, embora sejam momentos que ocorrem em alturas específicas do ano, são
78
realçados pela exuberância e excessos vividos. Assim, os/as estudantes sublinham
situações extremas relativas a estes contextos.
Apesar de terem sido destacadas diversas situações, um dos episódios mais abordado e
referido pelos/as estudantes diz respeito aos vídeos que circularam nas redes sociais de
jovens a ter relações sexuais na rua durante as festas académicas19. Para os/as
entrevistados/as, os vídeos são relevantes para a análise do assédio sexual porque
permitem compreender o modo como se estão a naturalizar as relações sexuais nestes
contextos.
19
Este assunto também ficou conhecido na Comunicação Social. Pode ser encontrado em: Magg (2019),
“WhatsApp. Estão a circular vídeos de jovens a terem sexo na rua em festas académicas”, consultado a 10 de
outubro, disponível em https://magg.sapo.pt/atualidade/atualidade-nacional/artigos/whatsapp-estao-a-
circular-videos-de-jovens-a-terem-sexo-na-rua-em-festas-academicas
79
que tudo o que são cidades académicas são álcool. Ninguém consegue sair à noite sóbrio e
estar tranquilo” (Estudante H_F3, sexo feminino). Assim, a rotina de bebedeiras é algo com
que se confrontam regularmente.
O pessoal sai à noite e exagera, o pessoal sai à noite e bebe... E os excessos fazem
com que as pessoas, às vezes, tenham algumas atitudes e alguns
comportamentos, que sejam fora do comum e fora do normal do dia-a-dia... (...)
às vezes, o problema são as outras pessoas, com quem a gente se cruza e, por
diferença de 10 ou 15 minutos, eu vou cruzar-me com alguém completamente
bêbedo e que pode ter uma atitude comigo menos apropriada... (Estudante F_F2,
sexo feminino)
Através dos discursos em torno do consumo de álcool surge a referência a condutas pouco
apropriadas, nomeadamente a referência a episódios de natureza sexual. Os/as estudantes
reconhecem o álcool enquanto desinibidor: “(...) eu acho que as pessoas acabam por estar
mais desleixadas, no sentido de não pensarem naquilo que estão a dizer e simplesmente
dizem ou fazem” (Estudante A_F1, sexo masculino). Ao mesmo tempo, os discursos
revelam que este não pode ser usado como justificação para comportamentos
desadequados: “(...) tu estavas a dizer que a bebedeira potencia... é verdade que potencia,
mas não pode ser uma justificativa para que a prática aconteça, entendes?” (Estudante
B_F1, sexo masculino)
80
masculino predomina a imagem do estudante boémio, o que faz com que se naturalizem
alguns dos seus comportamentos relacionados com o consumo excessivo de álcool.
Não são apenas os/as estudantes que associam o consumo de bebidas alcoólicas à
ocorrência de violência sexual. Neste sentido, também por parte das instituições
predomina também o reconhecimento de que os contextos festivos se revelam de risco
acrescido, o que permite sustentar os argumentos oferecidos pela literatura:
(...) os consumos por parte dos estudantes universitários, seja de álcool ou outras
substâncias, são bastante elevados e não é só durante as festividades
académicas, mas também durante todo o ano, nos dias que os estudantes
escolhem para as suas saídas. Por isso, há uma série de festas, sejam festas
académicas ou sejam outras, em que o consumo exagerado destas substâncias é
motivado e em que quem não consome até deixa de fazer parte do grupo, ou é
posto um pouco de lado. Portanto, há um sentido para o consumo e o consumo
em si, não é que o consumo seja a causa da violência, mas é um potenciador, um
desinibidor e faz com que algumas pessoas se sintam mais desinibidas para
serem violentas e em relação às vitimas, deixa-as mais vulneráveis, porque vão
estar com os seus sentidos mais entorpecidos e com menor capacidade de
reação. (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima)
É premente realçar que os discursos dos/as estudantes ressalvam igualmente situações que
ocorrem no contexto noturno e que não estão diretamente associadas às festas
académicas em si. Sobressaem, assim, os trajetos entre as festas e os regressos a casa. Os
discursos recaem sobre a questão da segurança e sobre a falta de liberdade que assola
principalmente as estudantes:
Eu sinceramente, eu não me vejo a ir sozinha para casa, por exemplo hoje... não
dá... entendem? Fico mesmo com medo. O meu coração fica a palpitar. Eu não
devia ter medo de andar sozinha na rua... Ainda mais de dia, entendem?
(Estudante G_F2, sexo feminino)
Esta situação gerou alguns relatos por parte de estudantes face a situações de perseguição
que já sofreram nos seus trajetos das festas para casa:
(...) a única situação mesmo em que eu fiquei mesmo assustada cá, foi aquela
situação do homem, mas ele não tinha a nossa idade, devia ter quarenta ou
cinquenta anos. Aconteceu porque uma amiga minha passou mal uma noite e
fomos de táxi até casa dela, eu deixei-a em casa, mas eu tinha mesmo que ir para
casa (...),como eu tinha dito, eu não tinha medo nenhum de andar sozinha, eram
4h30 da manhã e eu disse-lhe “eu vou para casa”... ela estava mal, mas já ia
dormir. E eu saí de casa dela e ao sair de casa dela eu vou por uma parte mais
coberta e um homem estava lá ao fundo às quatro e meia da manhã e eu só me
lembro que ele tinha um guarda-chuva. E eu fiquei a olhar para ele e pensei “o
que é que um homem faz aqui às quatro e meia da manhã a mexer num guarda-
chuva?” e ele olhou para mim e continuou e aquilo que eu fiz foi mudar de
passeio... só que eu tinha que passar por ele, para ir para o sítio onde era a minha
casa (...). Ele começa a andar quando vê que eu estou a ir para o lado dele e
começa a ir atrás de mim. Eu pego no telemóvel, a falar com um amigo meu e
81
começo-lhe a dizer “eu acho que estou a ser perseguida”, porque o homem vinha
mesmo atras de mim, só que eu tenho este cabelo que é uma trunfa e acho que
ele não se apercebeu. E depois eu grito “eu acho mesmo que estou a ser
perseguida, está um homem atrás de mim”. E é só nesse momento em que eu o
vejo a virar para o Santander, como se fosse para o banco, às quatro e meia da
manhã (...). Eu fiquei tão em choque na altura que só me lembro que ele tinha
um guarda-chuva e que era muito mais velho do que eu, não me lembro de mais
nada, porque só estava preocupada se me acontecesse alguma coisa. (Estudante
H_F2, sexo feminino)
Tal como acontece na situação que cito e tal como evidenciam outras estudantes, para
quebrar esta sensação de insegurança e para evitar que sejam vítimas, um dos mecanismos
usado recorrentemente é falar ao telemóvel nos seus trajetos das festas até casa. Outro
mecanismo a que as estudantes recorrem prende-se com a presença de rapazes nos seus
grupos, tal como realço atrás. Assim, as raparigas procuram andar em grupos de rapazes,
o que contribui para se sintam seguras e para que tenham a certeza de que podem contar
com o apoio deles caso lhes aconteça alguma coisa:
Sinto-me sempre segura no meu grupo. Como também temos sempre rapazes,
sinto-me mais segura. Se fossem só raparigas, sinto que é mais provável
acontecer. Nunca vou sozinha para casa, vai sempre alguém comigo. Como tenho
amigos que vivem ao pé de mim, levam-me sempre ou vamos todos de táxi e
acho que é menos provável de acontecer alguma coisa. (Estudante A_F2, sexo
feminino)
Esta perspetiva não é unânime. Por um lado, há rapazes que dizem que há raparigas que
não querem que estes (mesmo que conhecidos) as levem a casa porque têm igualmente
receio: “(...) eu já tive casos de querer levar pessoas a casa e de me dizerem que não, porque
pensavam que eu tinha outra intenção.” (Estudante G_F1, sexo masculino). Por outro lado,
há estudantes que apontam que o rapaz não é o elemento que faça realmente a diferença:
“(...) não estou a ver sentir-me menos segura porque estou com 3 raparigas em relação a
estar com 2 raparigas e 1 rapaz. Não acho que o rapaz seja ali a barreira de guarda-costas
e ninguém se mete...” (Estudante C_F2, sexo feminino).
82
as estudantes, procuram estar em grupos compostos por rapazes, evitam andar na rua
sozinhas, não aceitam boleias e tentam não dar nas vistas. É também possível compreender
que não são tanto os possíveis episódios nas festas que lhes causam afronta, mas os
trajetos entre as festas e as suas casas, nos quais são interpeladas, principalmente por
homens desconhecidos, mais velhos, que se encontram na rua, o que corresponde à visão
tradicional acerca do perfil de assediador.
Porque este contexto se confunde com o excesso de bebidas alcoólicas e com os papéis
sexuais tradicionalmente atribuídos, merece uma maior desconstrução.
83
Os casos de assédio sexual que ocorrem dentro da própria Universidade de Coimbra, em
particular no contexto de sala de aula, são também um motivo de preocupação para os/as
estudantes. Estes/as sentem que serão sempre desvalorizados/as e prejudicados/as, dado
que julgam que quem terá de se acomodar a uma situação não pretendida e de que foram
alvo serão eles/as: “(...) irrita-me, também, o facto de quem sai mais prejudicado é sempre
o aluno e a aluna do que o professor (...)” (Estudante G_F2, sexo feminino). Consideram
igualmente que o processo de denúncia passa por relatar ao/à coordenador/a de curso, o
que se faz acompanhar por um sentimento de impotência por parte dos/as estudantes, que
consideram ineficaz expor a situação a esta pessoa que, por sua vez, estabelece relações
cordiais com o/a docente que perpetra o assédio. Assim, acham que serão facilmente
desacreditados/as.
Tal como sublinha o relatório preliminar do projeto SUPERA (Lopes et al., 2019), embora a
prevalência de assédio sexual na Universidade de Coimbra seja significativa20, os casos
raramente têm sido denunciados, principalmente à própria instituição. Face a esta
informação, que foi possível também comprovar através das narrativas, os/as estudantes
revelam duas tendências: na primeira, remetem-se ao silêncio, o que acabou por ser a
norma; na segunda, denunciam a outras figuras da comunidade académica que se
encontram fora deste registo mais institucional.
20
Informação avançada pelo próprio projeto.
84
A Direção-Geral da Associação Académica de Coimbra representa os/as estudantes, mas
não receberam, até ao momento, qualquer denúncia desta índole. Assim, dizem-nos que
não dispõem de qualquer mecanismo para o atendimento de casos. Face ao que foi
revelado na entrevista, sublinha-se alguma dificuldade em que a própria associação
descreva (ainda que hipoteticamente) o processo de encaminhamento de casos desta
natureza, o que é justificado com o argumento de que nunca tiveram contacto com esta
realidade. É ainda premente referir que não mencionam as figuras que têm um papel ativo
no tratamento destes casos na Universidade (e.g. Provedoria) e que apenas apontam que
passa pelas coordenações de curso, acima de tudo por pessoas com alguma sensibilidade
para acolher os casos. Este ponto é muito relevante porque, à semelhança das narrativas
dos/as estudantes, permite perceber que predomina a opinião generalizada relativamente
à falta de sensibilidade para com este tema no seio da comunidade académica:
(...) a Provedoria age com um conjunto de casos e defende tudo aquilo que são
interesses legítimos dos estudantes e, dentro da carta de princípios éticos da
Universidade de Coimbra, qualquer forma de assédio, incluindo o assédio sexual,
seja de uma aluna ou de um aluno, seja de um professor ou de uma professora,
seja o contrário, entre alunos, qualquer tipo de assédio é um desrespeito por
aquilo que são os princípios éticos e as normas comportamentais de qualquer
pessoa, incluindo funcionários, não docentes (...). Em casos de natureza sexual,
designadamente de assédio, obviamente há uma atuação do Provedor... não vai
chegar a um relato de assédio, o Provedor não vai perguntar ao estudante ou à
estudante se ele ou ela já falou com o docente, se já falou com o colega, se já
falou, ou seja, é precisamente daqueles casos, tudo o que são casos de abusos,
abusos da praxe, abusos de natureza sexual, ações reiteradas de assédio moral,
85
pode-se ter questões de assédio moral também, o Provedor não exige que esse
percurso normal, que é o percurso que leva a que a Provedoria seja a última
instância de recurso... o Provedor não exige, nem pede que o estudante
comprove, ou seja, não há passos anteriores necessários (...). Qualquer situação
que vai ao Provedor, vai pedir provas, o Provedor está sujeito a sigilo, está
obrigado ao sigilo, o Provedor e a Provedoria, as pessoas que trabalham na
Provedoria estão obrigadas ao dever de sigilo. Ou seja, não vai nunca tomar
nenhuma ação que não seja consentida pela pessoa (...). E, portanto, o Provedor
está sempre disponível para que os estudantes reportem casos de assédio e que
queiram reportar ao Provedor, em primeira mão, a situação em que estão, em
que foram envolvidos (...). (Provedor do Estudante)
Do mesmo modo que os/as estudantes aludem à falta de conhecimento sobre onde se
podem dirigir em caso de assédio sexual, surgem igualmente discussões acerca das
campanhas e da sensibilização por forma a combater este problema.
As instituições e até mesmo as pessoas que são afetadas por isso, generalizam
de certa forma os casos, que passa despercebido o que é que aconteceu. E depois
lá está, há muita coisa que é direcionada logo e não há um foco, não há um tentar
86
perceber e assim. Instituições fora não conheço. Conheço algumas, pronto, não
acho que sejam representativas daquilo que é a vivência na universidade e acho
que isso é uma falha na sociedade. E depois, lá está, é como te expliquei, quando
há e se há, não são informadas de ambas as partes sobre o que é o problema. E
isso é uma falha, sinceramente... (Estudante E_F4, sexo masculino)
Outros discursos mostram que há apenas alguma falta de divulgação destas e a ausência
de interesse por parte dos/as estudantes, bem como alguma dificuldade em mobilizá-
los/as para formações e palestras sobre estes assuntos. Este desinteresse é marcado pelos
contrastes de género, sendo que o sexo masculino é aquele que menos frequenta estas
sessões. Os discursos indicam que será difícil avançar no combate a este problema se esta
tendência persistir porque, ao estarem só presentes as mulheres a abordar estes assuntos,
não permite atingir a mudança:
É importante refletir sobre este aspecto e destrinçar algumas conclusões. A primeira é que
as interpretações sobre o que é o assédio sexual divergem entre estudantes e instituições
e, por isso, deduz-se que a associação pode ter promovido uma campanha sobre um
87
determinado assunto, mais ou menos amplo, mas os/as estudantes identificam como
sendo uma campanha sobre assédio sexual. A segunda conclusão é que, uma vez que os
mandatos da mesma associação são anuais, há uma grande flutuação de pessoas, o que
pode traduzir-se em perdas de informação sobre o que foi concretizado em mandatos
anteriores e na dificuldade de busca de informação.
Sobre este projeto, a campanha que mereceu destaque por parte dos/as estudantes foi a
da violência no namoro. Esta ocorreu uma semana antes da aplicação dos focus group e,
por isso, estava mais presente nas memórias dos/as estudantes. Assim, procurou-se
compreender os objetivos da campanha junto da associação que a promoveu:
Pegando na DG, eles estiveram a entregar flores no pólo três e em tudo o que era
local... Contudo, e isso é uma falha deles e não sei até que ponto isso não é uma
questão deles, eles só entregaram o raio das flores às raparigas (...). E,
sinceramente, eu fui perguntar “porque é que não me dás uma flor a mim?” e
eles disseram que era só para as raparigas, estão a perceber? E isto é uma cena
que... (...). Sinceramente, se uma própria instituição prega uma coisa, está a fazer
outra? Porque é que um rapaz também não merece uma flor? (...), muitos destes
aspetos que eles fazem é muito por coisas que fica bem e de passar paninhos
quentes por situações que são efetivamente questões problemáticas na
sociedade e o que eles fazem é passar o paninho e não resolvem com olhos de
ver... (...) é olha, dão uma flor e passa o assunto. Isso, para mim, não é resolver o
assunto. (Estudante E_F4, sexo masculino)
Alguns estudantes do sexo masculino referem, como é possível ler no excerto citado, que
as flores foram dadas somente às raparigas, apesar de supostamente se destinarem a
ambos os sexos. Tal poderá ter acontecido devido a falhas na comunicação entre a
associação e as pessoas destinadas a fazer a campanha, o que foi também realçado
88
pelos/as estudantes entrevistados/as, embora seja de evitar esse tipo de situações, porque
contribuem para transmitir informações contraditórias.
Ainda no que diz respeito às campanhas, foram também ouvidas outras instituições que
não foram referidas por nenhum/a dos/as estudantes nas várias sessões de entrevista, mas
cujo contributo para o combate a este desiderato na comunidade académica é inegável:
Através do exemplo oferecido pela Secção de Defesa dos Direitos Humanos sobre uma das
campanhas concretizadas, sublinha-se a escassez de conhecimento dos/as estudantes
relativamente ao assédio sexual. Assim, se estes/as, num momento inicial, consideram que
nunca sofreram assédio, depois de lhes ter sido dada alguma informação sobre o que é, há
uma alteração significativa na resposta inicial.
As instituições, apesar das sucessivas campanhas, revelam que não são suficientes.
Consideram que, muitas vezes, são ignoradas pela comunidade académica e chegam
maioritariamente a pessoas que já têm informação. Julgam, assim, que a melhor forma de
89
chegar aos/às estudantes é estar no ambiente deles/as e sublinham que as campanhas que
ocorrem nas festas académicas, ainda que não sejam altamente eficazes, alertam sempre
algumas pessoas para comportamentos de risco e ajudam caso aconteça alguma coisa. O
exemplo ilustrativo sobre este aspecto, revelado pelas instituições, é que, nas festas
académicas, distribuem alguns autocolantes com contactos úteis e frases que permitam
que os/as estudantes se apercebam de determinados riscos. Ainda sobre este contexto,
revelam que as campanhas podem ser mais eficazes se houver alguma sensibilização
prévia.
As instituições apontam também campanhas em épocas de exames, que não têm sido
concretizadas, mas, dado que é uma altura em que apresenta alguns indícios de assédio
sexual entre estudantes e docentes, torna-se premente desmistificar e alertar para o
fenómeno.
Apesar do reconhecimento, tanto por parte das narrativas dos/as estudantes como por
parte das entrevistas às instituições, sobre a ausência de locais onde se podem dirigir para
reportar casos, há ainda quem aponte que os problemas são de outra índole:
90
confortável para se queixar. Os obstáculos não são institucionais, nem de falta de
apoio, são obstáculos sociais e psicológicos das pessoas. (Conselho de Veteranos)
De modo concreto, é neste cenário marcado pela incerteza sobre o que é ou não assédio
sexual, que importa não só esclarecer os/as estudantes, como desempenhar um trabalho
mais profícuo e profundo ao nível da consciencialização no interior das próprias
instituições, para que se deixe de habitar num campo de ação hipotético e se passe à
prática. É igualmente importante a união de esforços no sentido de transmitir mensagens
claras aos/às estudantes sobre comportamentos que não são aceitáveis e também no
sentido de mostrar a que estruturas podem recorrer, tanto dentro como fora da
Universidade.
91
REFLEXÃO FINAL
Estudar representações é sempre um caminho marcado por uma multiplicidade de
significados, cuja procura do saber nunca se esgota. O mesmo acontece com a presente
dissertação: está longe de oferecer uma resposta simples e precisa à pergunta que a
conduz. No entanto, é um passo em frente porque nos permite “ver além da fachada”,
apreender significados e construir mapas de representações através deles. Obriga-nos, por
isso, a um exercício contínuo de reflexão que só pode ser concretizado por via da sociologia
das ausências e das emergências (Santos, 2002). Assim, quando procuro compreender o
que afinal é o assédio sexual para os/as estudantes da Universidade de Coimbra, tornam-
se relevantes as evidências, mas também as ausências, o que ainda não foi revelado e que
merece ser expandido. Por outro lado, a sociologia das emergências, surge para preencher
este vazio e ampliar os saberes acerca do que já conhecemos.
Optou-se por analisar o assédio sexual a partir da matriz da violência de género, por se
tratar de um fenómeno que afeta mulheres de forma desproporcional em relação aos
homens. As narrativas dos/as estudantes também revelam que vitimiza maioritariamente
mulheres, embora nem todos/as encarem e interpretem o assédio sexual como uma forma
de violência.
92
Assim, chegamos a um limiar em que a ilicitude não está no ato em si, mas na pessoa que
o pratica e no conteúdo do que faz.
O contexto diurno revela-se a maior fonte de preocupação para os/as estudantes, dado
que consideram que, por não ser algo tão esperado, os/as incomoda de forma mais severa.
Assim, os/as estudantes reconhecem que o assédio sexual é uma prática que está enraizada
na nossa sociedade e que se estende a todos os contextos, sendo que, até naquele que têm
a maior sensação de segurança é uma prática que prevalece. Deduz-se igualmente que
tanto o piropo como o olhar, quando são revelados neste contexto, são interpretados como
assédio sexual, sobretudo se forem dirigidos por pessoas desconhecidas, o que contrasta
com o contexto noturno, onde são completamente desvalorizados por se tratar de algo
com que os/as estudantes são frequentemente confrontados/as.
Nas salas de aula, o assédio sexual é referido recorrentemente pelas instituições, embora
não seja negligenciado pelos/as estudantes. É importante realçar que muitos/as
demonstram sentir-se incomodados/as neste contexto e salientam que têm receio em falar
sobre este assunto, dado que os/as principais perpetradores/as são os/as docentes. Acerca
deste contexto, realça-se a aproximação às definições inscritas nos diplomas, as quais
estabelecem que o assédio sexual presume uma relação hierárquica entre a vítima e o/a
perpetrador/a por meio de chantagem ou aliciamento em troca de benefícios. A
preocupação dos/as estudantes prende-se sobretudo com a certeza de que, com esta
conduta, se naturalizam comportamentos que comprometem a dignidade dos indivíduos,
dado que os/as responsáveis pela sua educação e transmissão de valores os reproduzem.
93
através das narrativas. De igual modo, também não se pode deixar de referir que é um
contexto marcado por hierarquias rígidas, o que é um rastilho para um conjunto de
situações que contribuem para a exposição ao assédio sexual. Mais ainda, importa
sublinhar que, tanto os/as estudantes como os/as responsáveis pela praxe, contribuem
para a perpetuação de algumas práticas e para que se caminhe no sentido da naturalização
de condutas que os/as devolvem ao assédio sexual. As praxes, como vimos, não são
meramente tradicionais, são patriarcais.
O contexto noturno, associado às festas académicas e convívios, é aquele que causa menor
preocupação nos/as estudantes, embora a literatura nos mostre que é um ambiente
propício à violência sexual e os discursos permitam confirmar. Com efeito, estes/as
afirmam que, neste contexto, o assédio sexual é algo com que são regularmente
confrontados/as, mas onde há uma normalização destes comportamentos, seja pela
culpabilização do consumo de álcool, como pela confusão, evidente nos seus discursos,
entre sedução e assédio. Para combater algumas situações, não raras vezes, recorrem a
mecanismos de controlo social, nomeadamente andar em grupo, evitar estar na rua
sozinhos/as, não vestir roupas ousadas e autorregular o seu comportamento, indo ao
encontro do que é esperado para cada género. Contudo, estes mecanismos comprometem,
principalmente, a liberdade das estudantes e criam uma sensação de os seus corpos serem
comandados, não por elas, mas pelas imposições da sociedade. Perante esta aceção, o
assédio sexual encontra-se profundamente colado aos papéis que têm vindo a ser
atribuídos pela sociedade, tanto ao feminino como ao masculino, e à contínua
(re)produção destes.
94
boémios, de alguém que tem de abrir margem para a sedução e para possíveis lances. Os
efeitos destes papéis refletem-se por via de algumas mensagens que vão sendo
transmitidas e que os/as estudantes aludem ao longo das discussões, nomeadamente a
ideia de que “não é não”. Estas mensagens são ainda mais marcantes para as mulheres, a
quem é imposta a regra de que devem responder “não” a qualquer investida sexual. As
narrativas permitem rever a pertinência de refazer os papéis sexuais e as mensagens que
lhes têm vindo a ser associadas, de modo a deixarmos tão somente de habitar neste espaço
da negação, que concede privilégios aos homens e que atribui a culpa à mulher. Nesta
esteira, é relevante transmitir sinais claros de que um sim também é um sim e de que não
podemos viver à luz deste tipo de preceitos e normas que, aliás, são patriarcais.
Recuperando o que foi referido na parte teórica, se o elemento que contribui para o
reconhecimento do assédio sexual é toda a lógica de discriminação que tem por base as
hierarquias, quando falamos nos espaços públicos, é impossível identificá-las. No entanto,
para os/as entrevistados/as, essas situações são igualmente assédio sexual. Assim, há
alguma dificuldade em que as instituições e os próprios diplomas reconheçam o assédio
nos espaços públicos enquanto assédio e em que este reconhecimento esteja consagrado
e seja explícito. Esta discussão é fundamentalmente teórica, mas os discursos dos/as
estudantes tornam evidente a necessidade de reformular os conceitos em torno do assédio
sexual. Ora, será que não pode o género contribuir para que haja uma assimetria de poder
que conduza ao assédio sexual? De outro modo, qual o desígnio das situações que se
configuram como assédio sexual, mas que extravasam esta relação hierárquica e se
prendem com o género enquanto estrutura de poder que gera hierarquias? O mesmo
precisa de ser desconstruído em relação a outras categorias interseccionais, como é o caso
da nacionalidade, a etnia, entre outras que foram exploradas no Capítulo 1.
95
Os/as estudantes apontam que combater o problema do assédio sexual passa sobretudo
pela sensibilização. Foi por também acreditar que a chave poderá estar aqui que foram
escutadas as instituições – tanto aquelas que representam os/as estudantes como as que
estão (ou podem estar) na linha da frente para a resolução deste tipo de casos – no sentido
de compreender o que tem vindo a ser feito em relação ao assédio sexual na comunidade
académica.
Sobre as campanhas no seio da comunidade académica, os/as estudantes revelam que são
escassas e mencionam, maioritariamente, as que são promovidas pelas associações de
estudantes. Os/as estudantes reconhecem o esforço e o trabalho profícuo ao nível da
sensibilização por parte das associações, mas evidenciam que nem sempre lhes transmitem
a informação que necessitam e que nem sempre esta é útil e precisa. Tal como exploro no
Capítulo 5, há elementos de discórdia entre a mensagem que os/as estudantes recebem
das campanhas e a informação que as instituições lhes pretendem transmitir. Como é
possível deduzir através do trabalho de recolha de dados, nem todas as instituições
aparentam entender o que é o assédio sexual e, por isso, a informação que divulgam pode
não ser fidedigna e coerente. Sob outra perspetiva, é também pertinente revelar as falhas
ao nível comunicação entre as instituições. Nesta senda, não raras vezes, aquelas que
fazem um trabalho mais profundo e certeiro sobre estes assuntos, acabam por ser abafadas
por outras. Assim, a informação perde-se ou é retida e não chega à comunidade académica.
96
A ausência de informação estende-se, também, ao acolhimento de casos desta natureza,
sobretudo no sentido de perceber onde os/as estudantes se podem dirigir e os
procedimentos a tomar. De modo concreto, esta desinformação não é só sentida pelos/as
estudantes como por parte de quem representa os/as estudantes, dado que não
conseguem delinear em concreto estes procedimentos. Ora, se nem os/as representantes
dos/as estudantes e as instituições têm este conhecimento, como poderão os/as
afetados/as, em situações de fragilidade, saber?
A partir da análise dos dados é crucial ouvir mais estudantes, mas também perceber o
impacto que algumas situações que os/as envolvem têm nas suas representações. Assim,
é premente comparar as representações dos/as estudantes em momentos específicos. Um
dos objetivos iniciais seria o de perceber o impacto das festas académicas nas
representações dos/as estudantes relativamente a esta problemática e, por isso,
ponderou-se repetir as sessões de focus group após a Queima das Fitas, situação que
acabou por ficar pendente devido à pandemia. Os resultados permitem perceber que não
só é relevante escutar o modo como este contexto pode moldar as representações dos/as
estudantes, mas perceber outros além deste, como é o caso das épocas de exames e de
momentos de praxe mais intensos.
97
É fundamental perceber o impacto que as campanhas têm ao nível da consciencialização
dos/as estudantes. Assim, em momentos futuros, deverá haver um maior empenho neste
sentido por parte da comunidade académica, de modo a oferecer informação útil e
ajustada às necessidades dos/as estudantes. Será ainda relevante compreender o impacto
das campanhas nas representações dos/as estudantes relativamente ao assédio sexual,
sobretudo ao nível das suas definições.
Por fim, é preciso refletir sobre a importância deste trabalho no contexto em que foi
concretizado. Quando se conclui que na Universidade de Coimbra há assédio sexual e ao
mesmo tempo uma falta de informação sobre o que é, quer isto dizer que estamos perante
um problema grave. Em primeiro, porque neste lugar, descrito por muitos/as estudantes
alma mater, habita também uma cultura patriarcal rígida e práticas que comprometem a
dignidade dos/as que a rodeiam. Por outro lado, é aqui que se formam e educam as futuras
gerações, aqueles/as que irão estar em cargos decisivos, os/as que irão julgar os crimes do
futuro, os/as que irão estar a formar as gerações futuras – como poderemos estar cientes
de que esta situação se reverte? Para completar esta análise, um futuro melhor não é uma
realidade longínqua, mas encontra-se tão somente na reinvenção do presente.
98
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109
ANEXOS
ANEXO 1
CARATERIZAÇÃO DA AMOSTRA DOS/AS PARTICIPANTES NAS SESSÕES DE FOCUS GROUP
N %
Sexo Feminino 18 54,5
Masculino 15 45,5
Curso Matemática/ Engenharia Biomédica/ Design e 9 27,3
(Faculdade) Multimédia/ Engenharia Mecânica/ Antropologia
(Faculdade de Ciências e Tecnologia)
Direito/ Administração Público-privada 5 15,3
(Faculdade de Direito)
Línguas Modernas/ Ciências da Informação/ Português/ 4 12,1
Estudos Europeus
(Faculdade de Letras)
Medicina 2 6,1
(Faculdade de Medicina)
Sociologia/ Economia/ Gestão 8 24,2
(Faculdade de Economia)
Ciências Farmacêuticas 2 6,1
(Faculdade de Farmácia)
Ciências de Educação 2 6,1
(Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação)
Ciências do Desporto 1 3
(Faculdade de Ciências do Desporto e Educação Física)
Ano 1º 11 33,3
2º 4 12,1
3º 9 27,3
4º 7 21,2
5º 2 6,1
Residência Deslocados/as 26 78,8
A residir com a família 6 18,2