GOMES - Gustavo Kosienczuk
GOMES - Gustavo Kosienczuk
GOMES - Gustavo Kosienczuk
Londrina
2023
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Londrina
2023
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LONDRINA,
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2023
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Orientadora: Prof. Dr. Leoni Maria Padilha Henning
Universidade Estadual de Londrina - UEL
________________________________________
Prof. Dr. Eldon Henrique Mühl
Universidade de Passo Fundo – UPF
________________________________________
Prof. Dr. Darcísio Natal Muraro
Universidade Estadual de Londrina – UEL
AGRADECIMENTOS
Unamuno (1864-1936)
SIGLA………………………………….............................................................NOME
IBESP.................................. Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política
ISEB...............................................................Instituto Superior de Estudos Brasileiros
AL..........................................................................................................América Latina
AIB………………….............………..............………………..Ação Integralista Brasileira
CDC....................................................................................................Centro Dom Vital
ISEB………..………....………………..………Instituto Superior De Estudos Brasileiros
ICAR……………………..........………..……………..Igreja Católica Apostólica Romana
JUC............................................................................Juventudo Universitária Católica
TL..............................................................................................Teologia da Libertação
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13
Tabla de contenido
1 Conscientização, Uma Aproximação Ao Conceito..........................................................25
1.1 Análise de Conceito..................................................................................................25
1.2 Análise de Conteúdo – Conscientização em Categorias.........................................30
2 Raízes Da Ideia De Conscientização Freiriana...............................................................40
2.1 Instituto Superior de Estudos Brasileiros - ISEB......................................................41
2.1.1 Álvaro Vieira Pinto.............................................................................................44
2.1.2 Professor Guerreiro Ramos..............................................................................52
2.1.3 Karl Mannheim, Awareness e a Consciência Democrática..............................56
2.1.4 Considerações parciais e ensaio de uma conclusão – ISEB............................60
2.2 Influência Católica....................................................................................................64
2.2.1 Igreja Progressista............................................................................................76
2.2.2 Alceu Amoroso Lima e o Personalismo............................................................81
2.2.3 Freire: Catolicismo e Personalismo, conclusões parciais.................................92
3 CRISE ATUAL DE CONSCIÊNCIAS...............................................................................95
3.1 Crise das consciências – consciência fanática: entre barbárie e ativismo...............96
3.2 Crise das consciências – Individualismo anti-integrador........................................107
4 Conclusão......................................................................................................................117
5 Referências....................................................................................................................121
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Resumo
ABSTRACT
In this paper we seek to understand some of Paulo Freire's primary sources in his
elaboration and development of the idea of Conscientization. We start from an
interest born from personal experience, but it is considered that the development of
this subject is always relevant in face of the constant mutability of society, especially
in the digital context that elaborates new forms of degeneration within capitalist
society. The new digital media constantly work for the massification of the population
and, allied to neoliberalism, present a degenerative factor of consciences in
perspective of individualistic development. We present two theoretical cores that
constitute the basic influence on Paulo Freire's theory and worldview: the ISEB and
Catholicism. We identify key concepts to understand the Freirean idea, such as the
idea of authenticity, decolonization, utopia, individualism, work, and personality. The
research ends up in a critical analysis of fanaticism within the current context,
permeated by the digital experience and different elements that can lead to the
degeneration of consciences in the molds of Adorno's critique (1995). In addition to
this author, the studies of Lévy (1999) and Alves (2011) help us problematize the
current situation and identify Freire's educational proposals, and the idea of
conscientization, as elements constantly needed in society for the search for the
autonomy of subjects.
Introdução
com Leonard Mlodinow, The Grand Design (2010), que a Filosofia está morta,
portanto não precisaríamos perder tempo com ela em sala de aula. O fiz apenas
para provocar, obviamente, porém o professor respondeu dizendo que na verdade
tal comentário se dirigia ao assunto específico trabalhado por Hawking, o campo de
estudo sobre os buracos negros. Evidentemente eu não conhecia a obra de Hawking
e acreditei no que ele dizia, porém fiquei curioso e, chegando em casa naquele dia,
pesquisei onde estava esta citação.
Realizei anotações relacionadas à obra e ao fragmento do texto onde
Hawking fazia tal afirmação, pois ele se referia ao fato de que a Filosofia não
acompanhou os avanços científicos e, por tal motivo, foi superada e não era mais
capaz de contribuir com as discussões gerais sobre a realidade, a existência e o
universo em si. O contexto real da fala de Hawking era muito diferente daquilo que
havia sido afirmado em sala pelo professor.
Diante do fato óbvio de que o docente havia simplesmente inventado
qualquer coisa durante a discussão para invalidar meu argumento, me surgiu
indignação e, vendo uma oportunidade para, mais uma vez, expressar rebeldia e
insatisfação diante da postura deste professor específico, busquei por mais
informação que pudesse sustentar minha crítica.
Em uma pesquisa rápida na internet encontrei este homem, Paulo Freire, a
quem se referiam como o Patrono da Educação Brasileira (Título que lhe foi
concedido em 13 de abril de 2012 pela lei nº12.612).
Dentro do acervo disponível, selecionei o livro que, por possuir menos
páginas, poderia ser lido em um período mais curto de tempo. Durante os intervalos
das aulas eu me dirigia até a biblioteca para consultar o material.
A primeira leitura, com pouca idade, ocorreu de forma dura, lenta, tanto pela
falta de familiaridade com a linguagem de Freire presente no texto quanto pelo
estranhamento diante de seus conceitos principais.
Não cheguei ao final do livro, lembro-me que quando encontrei o trecho
“Fases de Elaboração e Aplicação do Método” tive a compreensão de que eu não
era o público-alvo do texto e de que estava direcionado à aplicação pedagógica,
como um “manual” para professores. Contudo, ter lido apenas as páginas iniciais
deste livro já havia exercido um forte impacto sobre mim, caso contrário não estaria
hoje relendo e trabalhando este texto que outrora me encantou.
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os quais o autor reconhece que estavam repletos de uma visão ingênua em relação
à teorização de sua prática (TORRES, 1979).
Sua ideia de conscientização foi criticada como sendo, na verdade, mais uma
forma de doutrinação pois, segundo Berger (1974), é um meio pelo qual uma
pessoa, que se considera superior em uma falsa e artificial “hierarquia de
consciências”, inculca seus valores e crenças culturais na mente de outra sob a
justificativa de um falso assistencialismo. Para este autor, é impensável um processo
educacional de “conscientização”, já que cada indivíduo conhece melhor sua própria
realidade do que qualquer pessoa externa a seu contexto íntimo.
A nosso ver, tais críticas seriam facilmente refutadas por uma leitura atenta
dos textos e propostas freirianas. Freire não pensa em estruturar uma hierarquia de
consciências como se houvesse uma referência em escala universal, antes elabora
estágios de consciência contextuais, uma percepção aprofundada e histórica sobre
as condições de existência e relação vividas pelos indivíduos (FREIRE, 1979). A
conscientização de Freire está muito mais relacionada à ideia de refletir e teorizar o
cotidiano vivido, por meio da práxis, do que assimilar/memorizar um conhecimento
de fonte externa (FREIRE, 1987).
O pensamento freiriano continua tendo forte presença e relevância em
projetos e práticas educativas no Brasil e no mundo. Esperamos contribuir para
elucidar e ampliar a compreensão sobre alguns pontos concernentes à ideia de
conscientização, tão cara ao pensamento de Freire.
Não buscamos realizar um trabalho profundo e detalhado de definição ou
reelaboração do conceito, tal tarefa já foi e é amplamente trabalhada por outros
trabalhos aos quais consultamos.
Nossas principais hipóteses levantadas propõem que o conceito de
conscientização freiriano provém muito da teologia católica, mais especificamente
daquela construída após o Concílio do Vaticano II, mas foi, ao longo da vida e
produção de Freire, se completando pela vivência reflexiva do autor que teorizou e
desenvolveu sua prática continuamente.
Acreditamos na relevância deste estudo uma vez que apresenta o potencial
de, sintetizando diversos estudos sobre o pensamento freiriano, apresentar uma
estrutura da evolução deste conceito tão relevante na obra de Freire e que hoje está
presente no cotidiano popular e na formação de professores.
25
1
Devemos dizer de maneira inicial que o livro ao qual tivemos acesso está em formato PDF,
disponibilizado no site “www.centropaulofreire.com.br”, e não possui marcação de página na folha,
pelo qual nossas identificações de página se referem ao que nos indica nosso leitor de PDF (Adobe
Acrobat X Pro).
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ato de conhecer seja feito de maneira crítica e consciente, não mecânica e passiva
por meio de memorização.
Já as situações-limites são definidas como aquelas que, constituídas de
contradições relacionadas aos indivíduos, os leva a aderirem aos fatos de forma
totalizante e imutável, com uma percepção fatalista. Ou seja, são situações que
levam as pessoas a um sentimento de impotência diante da realidade. Sem a
percepção histórica de si mesmos, das contradições e de alternativas de ação para
transformar os fatos, os sujeitos “[...] não enfrentam, nem buscam respostas aos
desafios” (p.618), Nesta definição está apontado o papel daqueles “comprometidos
numa ação cultural para a conscientização” (p.618), que é “[...] convidar os homens
a captar com seu espírito a verdade de sua própria realidade” (p.618). Na definição
que nos é dada devemos compreender este conceito não é componente
instrumental como o desafio a ser enfrentado e superado.
Da mesma maneira, é importante esclarecer o que é criticidade, já que é um
dos principais requerimentos para a conscientização, elemento ao qual se somará a
curiosidade, gerando novas respostas à situação limite. Criticidade, define o
Dicionário Paulo Freire (STRECK et al, 2010), “[...] é a capacidade do educando e do
educador refletirem criticamente a realidade na qual estão inseridos”, o que tornaria
possível, após perceber objetivamente tal realidade, “[...] o conhecimento e a
intervenção para transformá-la” (MOREIRA, 2010, p.194). A compreensão e a
reflexão crítica se estruturam com um “rigor metodológico” capaz de elaborar
sistematicamente o saber oriundo da experiência.
Importante destacar que a criticidade, para Freire, vai além da compreensão e
da reflexão, do saber sobre tal objeto, pois objetiva a transformação. Se tivéssemos
que sistematizar detalhadamente uma “hermenêutica da criticidade” esta
provavelmente seria: 1.experiência (da realidade) – 2.crítica/desnaturalização –
3.compreensão – 4.ação/intervenção – 5.transformação.
Resgatemos a exposição do dicionário sobre as exigências da
conscientização para, agora esclarecidos a respeito de seus conceitos estruturantes,
interpretá-la de forma mais adequada: “A conscientização requer o desenvolvimento
da criticidade, que, aliada à curiosidade epistemológica, potencializa a criatividade
da ação transformadora ante as situações-limite” (FREITAS, 2010, p.151).
O processo de conscientização, que vai além da simples tomada de
consciência, se sustenta no desenvolvimento da compreensão elaborada e rigorosa
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(p.150). Neste último trecho percebemos que o autor vai além da definição, indica
um resultado alcançado “através da conscientização”. Aqui compreendemos que,
por meio do processo de historicização e objetivação/desnaturalização do mundo, os
sujeitos (que tomam a realidade como objeto de análise e produzem conhecimentos
estruturantes da mesma) se percebem participantes na constituição do conjunto
social e material ao qual integram. Ao atuar de maneira consciente e propositiva a
realidade é transformada dentro do espectro de possibilidades dado pelos recursos
materiais e intelectuais que dispõe o seu agente transformador. Conjuntamente, os
sujeitos que a transformam também passam por mudanças.
A sexta definição encontrada pelo autor (ibidem) está no livro Ação Cultural
para a Liberdade (FREIRE, 1981), onde Freire diz que “conscientização” é o nome
que ele atribui ao “processo pelo qual os homens se preparam eles próprios para
inserir-se de modo crítico numa ação de transformação” (FREIRE, 1981, p. 77).
Nesta mesmo obra, Freire (1981) aproxima muito conscientização da ideia de
educação libertadora, definindo esta segunda como a práxis autêntica e, sendo
assim, “um ato de conhecimento e um método para a transformação que os homens
devem exercer sobre a realidade que procuram conhecer” (FREIRE, 1981, p.75).
Além de educação libertadora, o autor se inclina a considerar a ideia de
alfabetização político como sendo outro sinônimo de conscientização, pois, na
mesma obra (FREIRE, 1981), Freire afirma que o processo de alfabetização política
pode ser aplicado tanto para a domesticação quanto para a libertação dos oprimidos
e que no primeiro caso, quando a alfabetização política visa a opressão,
impossibilita a conscientização, porém quando o processo de alfabetização política
visa a libertação então já “é ele próprio a conscientização” (p.80).
Em Os Cristãos e a Libertação dos Oprimidos (FREIRE, 1978), o autor
(TOMAZ, 2019) identifica uma sétima definição do termo. Nesta obra, Freire (1978)
afirma que a conscientização deve ser invariavelmente um esforço crítico de
clarificar a realidade, ação que traz a exigência de um compromisso político.
Em Conscientização (FREIRE, 1979), Tomaz (2019) encontra outra definição
relevante do termo, que também possui equivalência em uma obra muito menos
conhecida e intitulada La Historia es Posibilidad (FREIRE, 1993). Esta oitava
proposta enfatiza o compromisso histórico que traz a conscientização, destacando o
papel de sujeito do ser humano no mundo em sua inserção crítica e comprometida
na história como atores criadores e recriadores do mundo. Esta situação exige dos
sujeitos que criem sua própria existência com os recursos que encontrem a
disposição em seu contexto (TOMAZ, 2019).
Considerando suas descobertas anteriores já apresentadas aqui, Tomaz
(2019) desenvolve uma interpretação sobre o compromisso histórico que a
conscientização demanda daqueles envoltos neste processo: “[...] esse
compromisso histórico não se dá apartado de uma ação dialética da práxis (teoria e
prática), nem também do compromisso político da classe oprimida que busca pela
própria libertação” (p.183). Ele destaca a concordância desta ideia com aquilo que
35
sociedade civil brasileira passou por uma acentuada politização que, conforme o
Brasil passava por um processo de democratização, levou à "reconfiguração do
papel do Estado capitalista brasileiro” (OLIVEIRA, 2016, p.1).
Oliveira (2016) realiza um detalhado estudo sobre o relatório isebiano
(Relatório do ISEB, s/d), mostrando que o documento afirma o motivo original da
criação do ISEB como sendo de promoção ideológica do pensamento nacional-
desenvolvimentista.
É-nos explicado que o grupo passou por dois momentos distintos, mudança
que ocorreu após uma crise interna ocorrida em 1958 “[...] que culmina na
reestruturação organizacional do instituto expressa no DL 45.811 de abril de 1959”
(p.6). A dita crise reforçou a posição nacionalista do grupo e levou a uma mudança
em seus objetivos, passando da missão de influenciar a burocracia civil e militar
(PINTO, 1959) para os estudantes, sindicatos e demais grupos nacionalistas que
estavam se organizando (Ibidem).
A título de curiosidade, pois não é central em relação a nossa pesquisa, a
crise de 1958 se deu sobre as ideias apresentadas por Hélio Jaguaribe, então líder
do ISEB, sobre a política do petróleo e de capitais estrangeiros. Jaguaribe era
favorável a privatizar a exploração do petróleo e a abertura aos investimentos de
capital estrangeiro, pois solucionaria os problemas brasileiros de falta de verba e de
técnica. Ideias consideradas contrárias a posição nacionalista do ISEB (Ibidem).
Em 14 de Maio de 1956 ocorreu a primeira aula inaugural do instituto,
proferida pelo professor Álvaro Vieira Pinto, então Chefe do Departamento de
Filosofia do ISEB. O tema então tratado era “Ideologia e Desenvolvimento Nacional”,
44
cuja aula foi atendida pelo Presidente da República e altas autoridades do país
(Ibidem).
Vieira Pinto assumiu a diretoria executiva do ISEB em 1961 (GONZATTO &
MERKLE, 2016), também, foi o professor mais atuante em sala de aula durante o
ano de 56 e 60 (OLIVEIRA, 2016), ano em que publicou a obra intitulada
Consciência e Realidade Nacional (PINTO, 1960). Freire teve uma convivência
importante com Vieira Pinto, pois esteve com este autor durante algum tempo em
exílio no Chile, como atesta na dedicatória de A Importância do Ato de Ler, de
1989a:
Freire cita Álvaro Vieira Pinto por diversas vezes ao longo de suas obras,
como já transcritos aqui, em Conscientização (1979) e em A Importância do Ato de
Ler (1989a). O livro a que nos referimos, Consciência e Realidade Nacional (1960)
também é muito citado, sendo referido duas vezes na obra Educação como Prática
da Liberdade (1967), uma vez em Cultural Freedom in Latin América (2011), uma
vez em Ação Cultural para a Liberdade (1981) e duas vezes em Pedagogia do
Oprimido (1987). Por esse motivo, percebemos a enorme proximidade entre os dois
intelectuais não somente do ponto de vista físico, mas, no estreitamento de ideias e
admiração.
na ideologia” (p.34) é aquele que é produto da consciência das massas, não por um
cientista de qualquer disciplina. Aos cientistas sociais e aos políticos cabe apenas a
função de recolher e interpretar a ideologia legítima do povo com os instrumentos
lógicos necessários, mas sem distorcê-la de nenhuma maneira. Para que esta
ideologia legítima, após ser corretamente elaborada, possa ser difundida e colocada
em prática.
Vieira Pinto (1956) finaliza a obra (a aula inaugural) destacando que a
ideologia do desenvolvimento nacional não serve a interesses particulares ou de
grupos particulares e dominantes, mas é orientada pela legítima consciência das
massas. A Filosofia do Desenvolvimento não possui compromissos partidários e
deveria ser feita com urgência. Ao ISEB caberia esta tarefa de elaboração e, por
centralizar a ação intelectual neste sentido, poderia contribuir para que a
transformação da consciência social se desse de forma acelerada, principalmente
entre as “classes dirigentes” (PINTO, 1959, p.46).
A obra é finalizada sem contemplar o uso do termo “conscientização” ou
mesmo “consciência crítica”.
Das críticas recebidas, esta obra foi considerada uma suma do pensamento
isebiano, com a expectativa de que seria consagrada como a obra clássica do
pensamento desenvolvimentista da década de 1950 (MAINARDES, 1992).
Após alguns anos, Álvaro Vieira conheceu Jean-Paul Sartre quando este, em
1960, visitou o Rio de Janeiro. Junto a Rolan Corbisier e Cândido Mendes de
Almeida, também professores, discorreram sobre nacionalismo e colonialismo. Vale
constar que o existencialismo de Sartre também exerceu grande influência na
formação do pensamento e das ideias de Paulo Freire.
O autor de Conscientização (1979) também lança mão de muitos conceitos e
maneiras de interpretar a realidade que pertencem a linha teórica existencialista, não
bastasse as diversas ocasiões em que cita autores existencialistas em suas obras,
como Karl Jaspers (em Educação como Prática da Liberdade, 1967, por exemplo),
sempre se dispõe radicalmente comprometido com os fatores condicionantes e a
circunstância existencial de cada indivíduo. Por diversas vezes usa termos como
“situação existencial” (p.17, 18, 31), “necessidade existencial” (p.42), “sentido
existencial” (p.23) ou “experiência existencial” (p.18, 31, 41) do sujeito como ponto
central da abordagem e da prática de seu método (FREIRE, 1979).
48
Esta fala concorda com a linha teórica que desenvolvia Guerreiro Ramos
(1958) e era ponto de discordância com Freire. Nesta obra Pinto (1956), parece
concordar que o desenvolvimento do nível de consciência ocorre em consequência
imposta pelo desenvolvimento do “conjunto de condições materiais” (op cit).
A seguir veremos mais detalhadamente tal questão. Ao projetarmos a
presente investigação, tínhamos a compreensão de que, pelo fato de Paulo Freire
(1979) citar o nome completo do professor Álvaro Vieira Pinto e apenas fazer
menção ao professor Guerreiro Ramos e uma equipe de professores do ISEB, era
este autor, Vieira Pinto, que apresentara, por meio de suas obras ou pela aula
inaugural do instituto, o conceito a Freire.
Como não encontramos o vocábulo ‘conscientização’ em Ideologia e
Desenvolvimento Nacional (1956), acreditávamos que Freire havia elaborado o
53
indivíduo. Freire não descarta a contribuição que a mudança das estruturas sociais e
econômicas possuem neste processo, porém afirma que estas não são suficientes.
Neste diálogo com o pensamento de Ramos (1958) podemos entender que
as condições materiais são importantes e, provavelmente, necessárias - “[...]
condições históricas propícias” (FREIRE, 1949, p.34), porém é indispensável um
“trabalho formador” (Ibidem).
Este trabalho, apontado por Freire (1959) como condicionante para o
desenvolvimento da consciência transitivo-crítica, pode ser compreendido como um
processo educativo carregado de intencionalidade emancipatória e apoiado por ditas
condições materiais que possibilitem a superação da “vida vegetativa” e a
objetivação da realidade.
No início de sua obra (FREIRE, 1959) já aponta a necessidade de
organicidade - vinculação com a realidade circunstancial - para que haja uma
educação transformadora e que rompa com os valores tradicionais desumanizantes,
como o “centralismo, verbalismo, anti-dialogação, autoritarismo, ‘assistencialização’”,
que são “fruto de nossa inexperiência democrática” (p.11).
A ideia de organicidade também era tema presente no pensamento do ISEB,
cujos integrantes propunham de maneira central o pensar sobre o Brasil não apenas
como objeto, mas da perspectiva de quem o vive, o constitui, dai a proposição do
ideario nacionalista e da maneira literária de Vieira Pinto (1960).
Em introdução à obra de Vanilda Paiva (1986), Paulo Freire e o
Nacionalismo-Desenvolvimentista, somos informados sobre o movimento
vanguardista do ISEB ao conceituar alguns termos centrais que viriam a fazer parte
do imaginário freiriano.
Outra forte influência para esta perspectiva adotada por Freire é Karl
Mannheim (1893-1947), um sociólogo húngaro, de raiz weberiana e marxista, que
contribuiu lançando algumas bases para Freire pensar sobre o processo de
desenvolvimento da consciência e sobre a essência desta.
Mannheim, apesar de não compor o grupo isebiano, é apresentado neste
capítulo do texto devido à sua proximidade teórica com tal grupo. De acordo com
Paiva (1978),
Sobre este processo, Paiva (1978) não termina sua investigação neste trecho
e dedica um capítulo específico para tal. Em dito capítulo, inicia apontando a
preocupação de ambos os autores (Mannheim e Freire) com a educação de adultos
que, para eles, teria uma relevância central no espaço educativo, já que ela incluiria
ao diálogo da democracia, por meio de uma reorientação da personalidade para um
adequado comportamento democrático, sujeitos anteriormente excluídos.
Para o trabalho de definição conceitual, a autora aproxima conscientização ao
conceito de awareness de Mannheim. Tal termo se refere à capacidade de,
percebendo as relações causais das ocorrências em nosso contexto imediato,
basear a ação com coerência ao contexto global. Essa consciência tem sua
expressão identificada no correto diagnóstico do estado das coisas, porém se
expressa em diferentes graus (Ibidem).
Mannheim considera que
nação a se construir no país. “Figuras como Roland Corbisier, Vieira Pinto e Freire
assumem que viam nessa passagem de uma consciência ingênua para uma
consciência crítica, por eles definida como uma ‘conversão à realidade nacional’”
(OLIVEIRA, 2006, p.115).
Em produção anterior, anexada ao texto de 1986 , Paiva (1978) já concluía
que:
Para o Freire seguinte, o segundo Freire - situado “desde finais dos anos 60 e
começo dos 70” (Ibid) - a questão das classes sociais era uma percepção clara,
motivo pelo qual concebe a educação popular como sendo sempre um reflexo dos
“níveis da luta de classe dessa sociedade” (p.119, tradução nossa).
Em diálogo com Esther Pérez e Fernando Martínez (1997), Freire fala sobre a
importância de construir um conhecimento contextual, que parta da realidade das
pessoas e suas percepções comuns e evolua junto com o desenvolvimento do
pensamento e capacidades cognitivas das pessoas conhecedoras, como o próprio
conhecimento científico que se transforma historicamente com novas descobertas e
observações.
Ao processo de tomada de consciência, identificação, deste conhecimento
popular e seu desenvolvimento em um conhecimento mais complexo e amplo, Pérez
e Martínez (1997) identificam como a compreensão de conscientização dos
primeiros escritos freirianos.
A resposta de Freire expressa a evolução de seu pensamento:
Deste evento saíram 3 documentos centrais que nos são mais pertinentes
para a investigação desenvolvida aqui. Lumen Gentium, Gravissimum Educationis e
Excorde Eclesseiae.
Em uma análise comparativa dos documentos e contrastando-os com o que
era defendido por Freire (1967) naquele contexto histórico, podemos perceber
diversas similitudes em aspectos epistemológicos e epistemológicos, categorias
norteadoras e basilares para Freire ao pensar educação (ESTRADA-DANELL et al,
2013).
Estrada-Danell (et al, 2013) utiliza a teoria educacional de T.W Moore (1978)
para elaborar um esquema composto por 3 categorias definidoras de uma teoria da
educação e utiliza tal esquema para avaliar os documentos do concílio e a obra de
Freire (1967). A primeira categoria é o aspecto antropológico, onde se questiona: o
que é o ser humano para o autor analisado? Que características são apresentadas
por esta visão de ser humano? O ser humano possui algum dever moral ou ético no
mundo? E que modelo de ser humano visa ser formado pela teoria (ESTRADA-
DANELL et al, 2013, p.59)?
Em sua análise a obra de Freire (1967), os autores identificam como
características ontológicas do ser humano o fato de ser social e integrador, e
descreve a palavra “integrador” em comparação com “adaptação”: “a integração
difere da adaptação e a supera pois se distingue por transformar o próprio entorno”
(ESTRADA-DANELL el al, p.160). Ou seja, não se adapta ao ambiente, adapta o
ambiente a si. Tal conceito ressalta a dialeticidade da existência humana e de sua
presença no e com o mundo, em seu contexto que o marca com historicidade. Os
autores também identificam e destacam a questão da desumanização a qual o ser
humano está exposto quando submetido a processos e situações de opressão
(Ibidem).
Outro aspecto destacado é a temporalidade, que permite aos seres humanos
se perceberem como seres históricos, transformando-se assim em sujeitos que
atuam e transformam o presente e seu futuro, convergindo assim na capacidade de
libertação das situações de opressão.
Para os autores a visão da dignidade humana que se encontra presente no
processo de humanização que é potencial em cada indivíduo equivale a
consideração da dignidade humana expressa no Gravissium Educationis. Lumen
Gentium e Gravissium Educationis advogam pela união fraterna de todos os
69
cristãos, bem como o aspecto humano social e o seu chamado a viver em/com e
comprometer-se com uma comunidade, assumindo responsabilidades dentro desta
relação. Lumen Gentium ainda fala sobre a capacidade de contextualização humana
como reconhecimento da constituição particular de cada indivíduo. Estes são
aspectos que dialogam e se encontram refletidos no pensamento antropológico dos
primeiros escritos de Freire (ESTRADA-DANELL et al, 2013).
Para os autores,
O pressuposto freiriano de natureza humana com vocação original
para a liberdade harmoniza com os pressupostos encontrados nos
três documentos da igreja católica, já que [...] o ser humano foi
dotado de dignidade inerente na criação (ibidem, p.162).
3
Sobre a ideia de inserção, Freire (2012) destaca o conceito e o diferencia de adaptação, Segundo o
autor, na adaptação há adequação ao mundo em um momento anterior à inserção, já a inserção
possui significado semelhante ao de integração, sendo a “tomada de decisão no sentido da
intervenção no mundo”.
71
4
No início de sua atuação, Jesus Cristo se dirigiu durante um sábado à sinagoga de Nazaré, sua
cidade natal, onde leu uma passagem do livro do profeta Isaías e declarou que tal profecia havia se
cumprido naquele dia (Lucas 4: 14-22). Ver também em Lucas 22:37.
72
Como podemos ver, nosso autor fez parte de um movimento corrente de sua
época, intelectuais católicos que se alinhavam ao marxismo. Porém, no caso de
Freire, a teoria não precedeu sua leitura da realidade, mas pela sua leitura de
mundo ele buscou na teoria algo que pudesse fundamentar uma prática coesa e
significativa, alinhada com seus princípios e objetivos.
Seu envolvimento com a Teologia da Libertação pode ser conhecido mais
detalhadamente por uma obra recente do teólogo Leonardo Boff. Em parceria com
75
Darício Natal Muraro e André Borges, estes três autores organizaram a obra
intitulada Paulo Freire em Diálogo (2021).
Logo na introdução da obra, em um breve relato sobre a vida de Paulo Freire,
Boff (2021) comenta sobre como se deu o envolvimento de Paulo Freire com a
Teologia da Libertação: em uma reunião promovida pela revista Concilium para
discutir os temas que seriam abordados em seus números anuais.
A revista reuniu diversos especialistas de distintas áreas, centralmente da
teologia progressista, e Freire foi convidado pelo reconhecimento de seu “método e
seu trabalho na área de educação junto ao Conselho Mundial de Igrejas em
Genebra” (p.6).
Freire era um apaixonado pela teologia, principalmente a do terceiro mundo,
pois percebia nela muita relação com seu método educativo, pois coincidem no
reconhecimento da necessidade de transformação do mundo para efetivamente
transformar o ser humano.
Diante do contexto em que a teologia progressista dominante naquele grupo
[europeia] era criticada por ser “reprodutora e legitimadora do status quo social”
(p.7), Freire intervém e aponta que a única maneira de mudar esta percepção social
era considerando “a situação miserável da maioria da humanidade” (p.7).
Em outro momento, falando especificamente sobre o objetivo da
conscientização, Freire aponta que “uma das funções humanitárias e sociais da
teologia ‘num gesto realmente amoroso’ consiste em ajudar o oprimido a descobrir
as verdadeiras causas de sua miséria” (p.8).
Podemos concluir este breve momento sobre a Teologia da Libertação com
outra citação a Boff, na obra bibliográfica de Moacir Gadotti (1996), assim ele
declara:
7
Para saber mais, consultar KADT (2007), que fala sobre a igreja progresista e aporta distintas
referências sobre obras e relatos sobre os jesuitas no Brasil colonial e imperial. Ver também
GOMES e SALERNO (2019), onde discutimos a participação dos Jesuítas na preservação da
população indígena, seu idioma e sua cultura por meio da elaboração de um sistema educativo.
79
8
Resumimos a segunda necessidade exposta no texto como “desenvolvimento do mercado interno”,
mas na obra se delonga explicando a necessidade de libertar o país de um dito “campo de
gravidade” (p.91) capitalista que teria como centro instituições que impediam o desenvolvimento
brasileiro.
9
Por superar as relações coloniais o texto se refere a romper com as relações internacionais
capitalistas que estabeleceram metrópoles e “nações coloniais” (p.91).
82
10
Muito pode ser questionado sobre a relevância em se dar tanto destaque para este autor, pois foi
um personagem conflitivo em alguns momentos e até mesmo antagonista a algumas ideias e autores
relevantes dentro do progressismo brasileiro, como Anísio Teixeira, por exemplo. Consideramos
importante sinalizar que não é escolha nossa dar tanta ênfase a Amoroso Lima em detrimento de
outros possíveis autores destacáveis, é um movimento feito por Freire no qual nós apenas o
acompanhamos de forma imparcial.
83
11
Importante destacar que tal obra foi originalmente pulicada no ano de 1946, ou seja, suas
discussões precedem a existência do ISEB, do IBESP – Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia
e Política - e todos os distintos grupos de estudos que culminaram no nacional desenvolvimentismo
da década de 50.
85
pessoa) por meio do trabalho, mais propriamente dito, por meio do esforço essencial
aplicado no trabalho (Ibidem).
Sendo assim, o trabalho é a maneira pela qual um indivíduo se relaciona com
a esfera social, estabelece “relações humanas” (p.64) e “com o mundo exterior”
(p.64). Amoroso defende que da mesma forma como o ser humano é uno e
indivisível, como indivíduo e pessoa, seu trabalho também o é, porém apresenta
distintos aspectos.
Falando de um trabalho inicial, o trabalho físico, que consiste no âmago do
individualismo humano, sendo a simples manifestação das forças físicas da pessoa
em sua existência biológica, o esforço físico como função biológica, o autor aponta
que “falta, entretanto, a êsse (sic) trabalho o caráter transitivo. Não nos relaciona
com o mundo exterior” (LIMA, 1956, p.64).
Esta ideia de transitividade também está presente no exposto por Freire
(1959), quando ele fala sobre as duas posições apresentadas pelas pessoas em
decorrência da inexperiência democrática:
Dentro desta discussão nos deparamos com a ideia de transitividade no
pensamento de Lima (1956) como sendo a possibilidade de transitar entre
categorias existenciais. Sendo que o trabalho físico, denunciado como uma função
biológica, não é transitivo pois não extrapola suas contingências biológicas. Algo que
se apresente de forma intransitiva, é incapaz de dialogar com seu contexto, logo
aquilo que é transitivo vai além da esfera de sua criação/manifestação inicial, de seu
contexto imediato.
Estas considerações dialogam com a ideia do professor Guerreiro Ramos
(1958), que acreditava que o fato das pessoas estarem limitadas à uma vida
vegetativa, tendo que dedicar todas suas forças pela busca da subsistência, as
impedia de desenvolver uma consciência crítica e que, superada esta condição
inicial, a criticidade afloraria naturalmente em suas consciências.
Freire (1959) discordava da interpretação de Guerreiro, os avances
econômicos e superação da vida vegetativa permitiria apenas passar à consciência
transitivo-ingênua, onde há a percepção de realidades além do imediato e de
relações causais mais elaboradas e históricas, mas é necessário um trabalho
educativo intencional para o desenvolvimento das formas mais complexas e
conscientes de criticidade:
88
13
Existem casos excepcionais que fogem a essa regra e que são mencionados por Lima (1956, p.77).
Principalmente se apresentam na forma de grandes líderes religosos, homens de extrema devoção
que por vezes colocam extrema enfase ou na prática ou na elaboração teórica.
90
Consideramos que o tema proposto nesta seção da obra está satisfeito. Aqui
apresentamos o início da igreja católica progressista no Brasil, seu principal
promotor, Amoroso Lima, e uma das principais ideias que, derivando deste
movimento, contribuíram para a formação intelectual e da visão de mundo de Paulo
Freire.
É possível que, após a leitura deste capítulo, se pense na possível falta de
outro personagem importante, Mounier. Não abordamos diretamente este autor de
forma extensa pois sua influência existe de forma extensa como um grande guarda-
chuva que cobre o pensamento católico progressista não-marxista, o Personalismo
que abordamos pelo desenvolvimento de Alceu Amoroso Lima (1956).
94
17
Infelizmente não conseguimos localizar em qual obra Diderot elabora tal pensamento.
101
Não nos falta exemplos dos males do fanatismo quando assume um devoto
compromisso com a indiferença na esfera política. Nos últimos anos vivemos no
Brasil um grande espetáculo de ingenuidade, irracionalidade, compromisso com a
indiferença, mitificação e, encerrando com “chave de ouro”, muita barbárie.
É claro que aqui nos referimos às tensões políticas que, com base em
desinformação (movida a fake news), ameaçarem a recente e inexperiente
democracia em nosso país. O que, evidentemente, foi um período de retrocesso,
pode ser celebrado como, ao menos, o desvelamento de alguns dos mecanismos da
barbárie.
Em trabalho recente, Dibai (2018) analisou todo o percurso político de Jair
Bolsonaro antes de sua ascensão à presidência para compreender o campo do
radicalismo direitista na política brasileira. Em sua investigação foram encontrados 5
103
pontos centrais que sustentavam seu discurso como parlamentar dos anos de 1997
a 2017: o nacionalismo; a xenofobia; o racismo; o estado forte e; a antidemocracia.
Seguindo um roteiro bem conhecido segundo os modelos europeus,
Bolsonaro performou com muito estrelismo diante da mídia, com discursos
inspirados e emotivos, se apoiando na construção de inimigos comuns
personificados em grupos minoritários e vulneráveis que seriam prejudiciais ao bem
comum.
Apelando a uma tradição que já demonstrou eficácia, Bolsonaro assumiu a
postura anticomunista com o argumento sempre repetido de proteger o país diante
de uma ameaça ideológica.
Com toda sua atuação reproduzida e divulgada pela mídia, principalmente por
meio da mídia digital, este movimento de extrema-direita conseguiu chegar ao poder
e, mesmo após sua destituição nas eleições de 2022, os vestígios de fanatismo,
irracionalismo e barbárie ainda ecoam na sociedade.
Não seria casualidade se apontarmos para o texto de Freire (1979) sobre sua
percepção diante da experiência de sua primeira prisão durante a ditadura. O autor
via claramente que uma “[...] onda ameaçadora de irracionalismo se estendia sobre
nós: forma ou distorção patológica da consciência ingênua, perigosa ao extremo por
causa da falta de amor que a alimenta, por causa da mística que a anima” (p.10).
Sobre esta problemática, escreve Saviani (2021) em Paulo Freire, centésimo
ano: mais que um método, uma concepção crítica de educação:
de suas próprias ações. Pelo fato de sempre querer impor a sua opinião no sentido,
o sectário não respeita a opinião dos outros” (SARTORI, 2010, p.101)
O principal problema do ativismo na visão freiriana é a de que este
obstaculize com o “[...] autêntico processo de libertação apontado pela pedagogia
freiriana” (SARTORI, 2010, p.101), já que consiste na negação do diálogo e da
reflexão em uma perspectiva mais ampla sobre a própria ação do sujeito. É como se
o ativista estivesse preso em uma vida moral vegetativa, pois atua incansavelmente
para atender a uma moralidade inflexível que se expressa em práticas acríticas e
completamente desprovidas de capacidade integradora.
Freire também tecia críticas sobre esse tipo de ativismo. Tanto daquele
“ativista” teórico, que apenas estuda, mas apresenta um posicionamento social
neutro: “[...] há perguntas a serem feitas insistentemente por todos nós e que nos
fazem ver a impossibilidade de estudar por estudar” (FREIRE, 1996, p.40, grifo do
autor). Como também o mesmo autor critica o “militante messianicamente
autoritário” (p.42) que fica impaciente com a lenta transformação da consciência do
oprimido.
Na sociedade digital é mais do que comum encontrarmos ativistas digitais,
conhecidos como “militantes de sofá”, que de militantes não têm nada, já que a ideia
da militância pressupõe o emprego da práxis reflexiva.
Não nos referimos aqui àquelas pessoas que se envolvem e atuam no campo
digital com ações significativas, seja em função de boicotar, recolher assinaturas,
denunciar ou sobrecarregar páginas e eventos que promovam atos ou discursos
desumanizantes, mas sim daquelas pessoas que apenas reproduzem de forma
acrítica e descomprometida discursos prontos e correntes digitais, seja em textos ou
vídeos, muitas vezes compartilhando notícias falsas.
Porém, não seriamos coerentes e nem sábios se, apontando apenas um lado
da moeda, cogitássemos que estamos indicando o problema em sua totalidade,
quando na verdade seguiríamos uma tradição já há muito denunciada de ignorar os
problemas que se originaram dos excessos opostos. Cairíamos em mais uma forma
de ingenuidade e “retórica idealista” (ADORNO, 1995) ao não apontarmos outro
elemento desesperador e motor da regressão das consciências ao estado de
barbárie.
Em sua obra O Problema do Trabalho (1956), Lima apresenta uma
deturpação marxista do trabalho que “[...] pode ainda levar ao fanatismo” (p.33). Este
105
[...] como uma lei da natureza. Como uma evolução que esmaga tôda
(sic) a personalidade, tôda (sic) variedade, tôda (sic) liberdade, todo
valor substancial alheio a essa marcha dialética inflexível e que
realiza independente da vontade humana, ou dela se servindo
apenas como um instrumento cego e acidental, de fôrças (sic) que
excedem infinitamente tôda (sic) veleidade de contradição (p.31)
18
Com muita dor escrevemos esta nota para salientar o fato de que durante a produção deste texto o
mundo lamenta as vítimas dos recentes terremotos na Turquia e na Síria. Todavia não é possível
realizar nenhuma estimativa minimamente precisa sobre as consequências destes eventos, mas
com certeza agravará a crise migratória já vivida pela guerra na Síria e inflará o êxodo populacional
em dito país, porém a comparação não ameniza em nada o sofrimento de nenhuma pessoa.
106
Lima (1956) adota a diferenciação entre massa e povo elaborada pelo Papa
Pio XII. Enquanto massa é uma multidão amorfa e inerte, que só pode ser
movimentada por uma força externa, o povo está feito de cada pessoa completa que
o constitui, com suas próprias especificidades, história, consciência e compromisso.
Se de um lado o povo possui autonomia e pensamento legitimo, é capaz e
deseja guiar a si mesmo e a seu grupo, a massa é manipulável e instável, se inclina
hora a direita e hora a esquerda. O autor considera a massa irreflexiva como o
antagonista da verdadeira democracia e de toda possibilidade de liberdade e
igualdade.
Seguimos com a questão anterior: a dia de hoje, apenas estar alfabetizado
liberta alguém de sua condição de massa?
A realidade nos mostra claramente que a leitura no sentido limpo e literal da
palavra não é suficiente. A leitura no ciberespaço é, como dito anteriormente por
Lévy (1999), um dilúvio de informação e desinformação. Outras habilidades são
necessárias para navegar pelas águas turvas do mundo virtual sem correr o risco de
ser influenciado por fake news, desinformações, comportamentos de massa ou
diversas outras formas de manipulação e enganação. A alfabetização, em Freire
(1989), é um processo que ocorre simultaneamente à conscientização. A dia de hoje
ela não deve se resumir na capacidade de ler e interpretar textos, mas em uma série
de habilidades mais amplas que permitam aos leitores avaliar a validade da
mensagem de forma crítica e contextualizada.
Já existem diversas propostas de educação midiática, muito além daquilo que
Paulo Freire (1979) realizava ao perguntar se havia relação entre a mulher de biquíni
e o maço de cigarros. Atualmente a Finlândia já leva a cabo uma proposta de
letramento midiático no currículo do Ensino Básico19.
Não desenvolvemos aqui nenhuma proposta para uma educação neste
sentido, já abordamos alguns possíveis elementos presentes na sociedade que
podem causar aquilo denunciado por Adorno (1995) como uma pressão civilizatória
ou outros distintos mecanismos que poderiam gerar reações de irracionalidade,
fanatismo e barbárie, tendo como centralidade o gregarismo político.
Queremos apenas concluir este ponto com uma interpretação do
posicionamento político de Freire. Lima (1956) indica um movimento crescente em
seu tempo, a “nova modalidade do socialismo” (p.133).
19
https://www.fundacaotelefonicavivo.org.br/noticias/educacao-na-finlandia-um-exemplo-de-inovacao/
108
não seja como todo mundo, quem não pense como todo o mundo,
corre o risco de ser eliminado (ORTEGA Y GASSET, s/d, p. 63-68).
23
A luz das ideias freirianas e em diálogo com os distintos textos de caráter mais religioso já expostos
aqui, estamos aptos a interpretar sem grandes dificuldades a parafrasear este trecho com ideias
freirianas: “não se adequem passivamente a vossa realidade, mas conscientizai-os e vivam o
processo de humanização, chegando a ser-mais”.
119
4 Conclusão
5 Referências
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Decreto Lei nº. 45,811 de 15 de abril de 1959, que “Dá nova organização do ISEB
(...) dispõe sobre o seu funcionamento e dá outras providências”. (LEX, 1959; p. 101,
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