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Gênero e Moda - A Construção Da Aparência Na Prática de Cross-Dressing
Gênero e Moda - A Construção Da Aparência Na Prática de Cross-Dressing
Gênero e Moda - A Construção Da Aparência Na Prática de Cross-Dressing
GÊNERO E MODA:
A construção da aparência na prática de cross-dressing
SÃO LEOPOLDO
2016
Marina Seibert Cezar
GÊNERO E MODA:
A construção da aparência na prática de cross-dressing
São Leopoldo
2016
C387g Cezar, Marina Seibert
Gênero e moda : a construção da aparência na
prática de cross-dressing / por Marina Seibert Cezar. –
2016.
186 f.: il. ; 30 cm.
CDU: 391
Catalogação na Publicação:
Bibliotecário Alessandro Dietrich - CRB 10/2338
Marina Seibert Cezar
GÊNERO E MODA:
A construção da aparência na prática de cross-dressing
BANCA EXAMINADORA
Fundamentada pelo campo das ciências sociais, esta tese tem como tema
de investigação, a relação entre gênero e moda, através da perspectiva orientada
pela mídia sobre a transgeneridade. Instigada pelo lugar da aparência construída por
meio do uso de signos estéticos, a inquietude teórica é estabelecida na noção do
corpo em permanente negociação com modelos estabelecidos, conforme o sexo
designado ao sujeito no seu nascimento. Este estudo objetiva investigar os
princípios do sistema de moda inseridos nos estudos de gênero, o qual propõe criar
um panorama da inserção do corpo e sua identidade relacional a partir das
experiências vestimentares, estas, orientadas pelas instâncias da cultura material. A
tese também focaliza se tais sujeitos dados como masculinos e que transitam nas
dimensões de gênero pela estetização pessoal através de recursos de enfeites que
são convencionados ao universo das mulheres, projetam um arquétipo feminino para
a sua produção visual. Para tanto, parte-se de uma pesquisa exploratória,
envolvendo uma revisão bibliográfica interdisciplinar para gerar pontos de conexões
entre as principais áreas dos saberes: ciências sociais, estudos de gênero,
antropologia do consumo e noções da estética; associada a uma busca em campo,
na qual o universo empírico é constituído por transgêneros da associação Brazilian
Cross-dresser Club, bem como, por interlocutoras que identificam-se pela prática,
além do resgate de relatos das que expuseram suas experiências em biografias ou
em redes sociais. Por meio desta investigação, tem-se como um dos principais
resultados alcançados, a validação da importância dada à linguagem visual, quando
exercida sob um ângulo de observação de discurso social dado pela categoria
binária de gênero. Nesse espaço de expressão e negociação com o meio, a prática
de cross-dressing redimensiona os efeitos sociais já que conduzem a imagem
pessoal para uma nova hierarquia dentro das dimensões políticas, em um processo
constante de luta pelo reconhecimento.
Grounded by the social sciences field, this thesis has as its investigation
theme, the relation between gender and fashion, through the perspective guided by
media regarding transgenderism. Instigated by the role of appearance build by the
use of aesthetics signs, the theoretical restlessness is stablished on the notion of the
body in a permanent bargain with the established models, according to the gender
designated at birth. This study investigates the principles of the fashion system
inserted in gender studies, which proposes to create a panorama of body and its
relative identity from clothing experiences, and those, guided by the instances of
material culture. The thesis also focus on if such subjects, labeled as masculine and
that transit on the dimensions of gender through personal aesthetic choices that
conventionally belong to women’s universe, projects a feminine archetype for their
visual production. Therefore, it starts from an exploratory research, encompassing an
interdisciplinary bibliographic revision to generate the connection points between the
main knowledge areas: social sciences, gender studies, consume anthropology and
aesthetic notions; associated with a field research, on which the empirical universe is
constituted by transgenders from the association Brazilian Cross-dresser Club, as
well as by interlocutors that identify themselves through this practice, besides the
collection of reports shared on biographies and social networks. Through this
investigation, one of the main results achieved is the validation of the importance
given to visual language, when exerted by an angle of observation of the social
speech in which gender classification s binary. On this space of expression and
negotiation with the environment, the practice of cross-dressing gives a new size to
the social effects, since it takes the personal image to a new hierarchy within the
political dimension, in a process of constant struggle for recognition.
1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 11
2 DIMENSÕES SOCIAIS DA MODA ........................................................................ 22
2.1 O VESTUÁRIO E SEUS SIGNOS ....................................................................... 26
2.2 IDENTIDADE ATRAVESSADA PELO CONSUMO ............................................. 33
3 O GÊNERO NA HISTÓRIA DA MODA .................................................................. 45
3.1 DO SÉCULO XIV ATÉ AS TENDÊNCIAS DE HOJE .......................................... 50
4 CONSTRUÇÃO DA APARÊNCIA ......................................................................... 79
4.1 CORPO ADESTRADO ........................................................................................ 83
4.2 FAZENDO O GÊNERO – A FABRICAÇÃO DO FEMININO................................ 88
4.3 APROPRIAÇÃO DO PRÓPRIO CORPO .......................................................... 102
5 CONVENÇÕES DE GÊNERO ............................................................................. 106
5.1 PARA ALÉM: LEITURAS ANTROPOLÓGICAS ................................................ 115
5.2 RELAÇÃO DE PODER...................................................................................... 122
5.3 IDENTIDADES PERIFÉRICAS E DIREITOS .................................................... 130
5.4 PADRÕES DE CORPOS PELA CULTURA DE MASSA ................................... 161
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 173
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 178
ANEXO A – PESSOAS QUE MENOS GOSTA DE ENCONTRAR ........................ 189
11
1 INTRODUÇÃO
como escolha, a escrita da palavra com o uso do hífen, tal qual: cross-dressing, para
evidenciar o processo de transição, e não apenas a prática.
No âmbito popular brasileiro, quem auxiliou nessa compreensão foi a
cartunista Laerte Coutinho, que desde 2009 expõe seu gosto pelo uso de roupas
femininas. Uma das precursoras sobre tal exposição na esfera pública, atualmente,
é uma pessoa que se identifica com identidade feminina, apesar de negar qualquer
apoio a rótulos. Em entrevista a um programa de televisão (GABI, 2012), a
apresentadora a chamou de cross-dresser e ela aceitou de bom grado, embora
ainda tenha se colocado como um transgênero, que segundo a própria, transita nas
fronteiras do feminino e do masculino, questionando alguns aspectos culturais ao
confrontar as convenções de gênero. Sua facilidade em permear por vários
ambientes e de ser respeitada como profissional faz com que ela seja uma
referência no meio, e despretensiosamente provoque pela transgeneridade, uma
forma de atuação como cidadã, quando desestabiliza a rigidez das identidades
tabuladas.
Laerte procura traduzir o cross-dressing como uma necessidade de vivenciar
códigos femininos. Honesta em relação a seus sentimentos e sem a preocupação de
precisar explicar aos demais quando não é questionada nas entrevistas, ela coloca
que não estava disposta a arquitetar uma blindagem para essa vontade. Para muitas
entrevistadas e estudiosos analisados, ela foi a responsável maior no quadro
brasileiro, a retirar do gueto e pôr em pauta essa questão com bastante naturalidade
diante da grande massa, já que sua credibilidade como pessoa pública, sua
eloquência e seu profissionalismo oportunizaram esse trânsito. Nas pesquisas in
loco, seu nome foi muito ressaltado como exemplo a seguir. Embora em um dos
encontros estabelecidos para esta tese, uma praticante que tinha vindo de São
Paulo e que estava de passagem em Porto Alegre, conhece Laerte pessoalmente e,
colocou que na sua visão, toda a atividade profissional desta ficou em segundo
plano, já que dificilmente a chamam para falar somente de seu trabalho, mas sim,
sobre o rumo de sua expressão estética e sexual (DIÁRIO DE CAMPO, 13/05/2015).
Vale ressaltar que esta pesquisa não possui o intuito de categorizar um
parecer sobre a essência do sujeito pela sua exterioridade. Diante do que será
apresentado, encarrega-se antes, de evidenciar alguns marcadores estéticos no
domínio da roupagem, que possibilitem recriar a própria imagem e, dessa agência,
proporcionar novas relações sociais. Aqui, debruça-se o olhar curioso e científico
13
1 O primeiro curso superior em moda autorizado pelo Ministério da Educação foi na Faculdade Santa
Marcelina – FASM em São Paulo, com legislação de abertura em 14/08/1974 e iniciado somente no
final da década de oitenta (MEC, 2013).
14
estudos de gênero, entretanto nem todas serão trazidas para este projeto doutoral
por uma questão de recorte da pesquisa. No intuito de evitar certas exotizações no
uso de nomenclaturas não consensuais, opta-se por não pré-delimitar fronteiras,
mas por expor algumas articulações e esclarecer a relação de poder que construirão
os aspectos que constituem as categorias. Logo, a estrutura dos capítulos é dividida
pelos conceitos norteadores. Cada subdivisão mostra os pilares da problematização,
conforme seus objetivos. Assim, nos pressupostos teóricos, as etapas a serem
seguidas levam em consideração um planejamento estratégico metodológico que
possa atingir as etapas básicas para responder ao problema. É por este percurso
científico que segue a investigação, visando uma sequência lógica e ágil de
operacionalização. Portanto, ao elaborar os pilares básicos sobre a moda pelo viés
da visualidade corporal, com as práticas sociais e os estudos de gênero, vê-se
necessário proporcionar quatro capítulos de premissas teóricas, além da Introdução
e das Considerações Finais. Todos eles indicam os principais caminhos de estudo
para então incorporar subseções teóricas. Para um melhor aprofundamento na
questão da sistematização do conteúdo, decidiu-se elaborar uma seção secundária,
sendo adotada a numeração progressiva, ou seja, há alguns capítulos segmentados
em subcapítulos, discriminando cada um dos fragmentos analisados.
Assim, vê-se relevante, em primeira instância, fundamentar a moda e suas
subjetividades como um sistema complexo, no qual a roupa se situa como uma das
fontes principais de expressão do indivíduo. Em nome de um nivelamento de
conceitos, o primeiro bloco de conteúdo visa pontuar a dimensão do sistema de
moda pelas narrativas visuais e pela lógica do consumo como produto dessa
engrenagem identitária. Ainda nesse espaço, pretende que a indumentária seja
entendida mediante diferentes significados, graças às perspectivas de uso. A partir
de uma breve contextualização histórica, o terceiro capítulo enfoca o local da moda
na construção das dimensões identitárias de gênero. Para tanto, faz-se necessário
expor algumas concepções básicas sobre o segmento, objetivando elucidar que tipo
de articulação é proposta no terreno das ciências sociais graças à trajetória no modo
de trajar os gêneros. O propósito disso é dar passagem para o seguinte capítulo que
relata as possibilidades de interferências visuais e a produção da imagem como
forma de ritual ensinado. Entende-se assim, a constituição da estética pessoal no
contexto da fluidez que traz um olhar sobre a dinâmica da constituição do sujeito.
17
abertas e não estruturadas, sem tabulação para que os assuntos sejam trazidos à
tona conforme o interesse das respondentes, pressupostos do próprio método. Este
método conta com o auxílio de um Diário de Campo, no qual são registrados
conceitos chave durante as conversas, e assim que surge a possibilidade, de
imediato ocorre a transcrição literal para arquivos digitais. Em concomitância com as
leituras, os relatos são confrontados com pesquisa de autores estudados e postos
nesta pesquisa sem tomá-los como verdades absolutas, mas sim, para agregar na
forma de exemplos, as opções teóricas.
Tem-se clara a escolha do campo de análise, ao se delimitar pessoas na
orientação sexual de quem foi dado como masculino ao nascimento pelo seu órgão
genital, mas categoricamente sente-se pertencente ao gênero feminino. A título de
organização metodológica, será abordada somente esta via de interpretação de
categoria, deixando de lado o outro caminho: as nascidas com o gene feminino, mas
cuja identidade de gênero se assume como masculina.
As oportunidades de incursões foram feitas inicialmente graças ao endereço
eletrônico do Brazilian Cross-dresser Club – BCC, no qual o primeiro contato geral
foi encaminhado para a representante do Rio Grande do Sul. De todos os contatos
virtuais, somente sete ocasionaram efetivamente uma entrevista pessoal. Essas
entrevistas foram sendo aprofundadas no decorrer do período da tese. As
interlocutoras têm idades entre 35 e 582, com ocupações profissionais e hábitos de
consumo pertencem prioritariamente à classe B. Os encontros presenciais são
referentes às datas de 09/11/2012, quando ocorreu o primeiro encontro e
13/05/2015, quando aconteceu o último, todos realizados na cidade de Porto
Alegre/RS, com associadas ou não do mesmo clube, mas sempre praticantes, o que
oportunizou uma interessante troca de experiências. No decorrer dos resgates dos
relatos, optou-se por não revelar nomes de registro ou mesmo sociais, nem fotos,
por uma questão ética e para sugerir uma condição mais propícia de confiança. Pelo
mesmo motivo, não houve o uso de gravador, na intenção de não intimidá-las ou de
incitá-las a utilizar uma fala decorada e com filtros.
Dessas interlocuções pessoais, apenas uma não corresponde ao BCC. Ela é
transexual e aluna da universidade na qual a autora desta investigação leciona. Ela
é também líder de um coletivo local sobre transexualidade, que tem como área de
3 Disponível em www.facebook.com/faggyfaghag
20
no meio acadêmico, tanto no âmbito da moda quanto no das ciências sociais, uma
vez que se propõe transportar teorias entre elas. Além disso, as reflexões
alimentarão a construção multidisciplinar teórica por meio de uma inserção
abrangente, possibilitando ampliar ainda mais as discussões, já que podem se
relacionar a outras áreas do conhecimento.
22
Os sociólogos são pessoas sérias; não têm tempo para seguir a moda [...]
Por vezes, o mundo da moda ignora a sociologia [...] Portanto, o universo de
Zara e de Chanel raramente é explorado pelos sociólogos. Todavia, a moda
24
outros materiais, a tese dela foi reveladora para disseminar a moda como um
intrínseco demarcador social a partir de evidências históricas. Para Souza (1987),
muito porque a competição encontra-se em todas as camadas por meio da
aceitação ou rejeição de valores estéticos vigentes e locais. Em proveito disso, sua
investigação será uma das bases teóricas adotadas no capítulo 3.1, que disserta
sobre a história da moda pelas diferenciações de gênero.
determinadas autoatribuições uma vez que estas são concebidas para transmitir
alguma mensagem do usuário que as porta. Em nome de um respaldo social, a
aparência é permanentemente alterada em nome de uma aceitação, já que as
pessoas vivem em grupos e são dependentes disso em maior ou menor grau. A
roupagem equivale a protestos silenciosos em que se vestir passa a ser um
enunciado de valores, não apenas um apelo estético.
Tais abordagens sobre a comunicação visual são propostas, entre outros,
por Bourdieu (2009), de que aqui, se faz uso, já que os estudos desse sociólogo
versam sobre as lógicas das produções simbólicas e acerca das reproduções de
valores. Como formas de classificação, os símbolos e suas apreciações estéticas
contribuem para a condição da integração social, já que constituem um instrumento
de conhecimento.
Segundo essa perspectiva, os objetos podem ser dotados de sentido,
todavia, as apropriações de sistemas simbólicos se definem pelo uso e pela relação.
A atribuição de sentido depende de uma perspectiva situacional, bem como, os
mecanismos de percepção pressupõem os juízos estéticos. Assim, invariavelmente
atrelado às distinções, o gosto implica um poderoso indicador de posição social e
categoriza a condição de existência individual.
O autor ainda defende que a eficácia do julgamento deriva do
reconhecimento de signos validados por agentes definidores de disposições
estéticas, que são compreendidos como um conjunto de normas incorporadas pela
experiência. O reconhecimento é então, produto de um princípio de classificação
associado à posição no campo. Dessa maneira, a experiência provém do sujeito,
inserido em um contexto. Assim como no campo artístico, a criação e a reprodução
poderiam existir tanto nas coisas quanto na leitura do observador. Ou seja, há uma
linguagem regulatória.
Em contribuição, Proni (2008) alega que o vestuário tem sempre um
propósito comunicativo, pois pela semiótica, é tudo do que o sujeito se apropria para
se comunicar e tudo que possui um sentido dentro de um contexto. Para sustentar
alguns signos, como o de ‘ser uma verdadeira mulher’, isso precisa ser consistente,
mesmo que isolado. A roupa sempre será um signo; logo, vai representar algo para
alguém, já que emitirá significados conforme o repertório cultural do observado e do
seu observador. De novo: uma saia só será um pedaço de tecido se nunca antes
fosse vista e ensinada em um cenário social. Quando familiarizada por uma
30
sociedade, ou seja, quando vários intérpretes lhe atribuem um sentido, pode remeter
à sensualidade velada, à devoção religiosa, à vulgaridade explícita etc. Há
representatividades de acordo com o que for previamente dado. Mesmo havendo
uma margem de subjetividade na atividade interpretativa, esta derivará
prioritariamente, de um saber incorporado, já que “O sentido é uma condição
humana, o significado é um fato social” (PRONI, 2008, p. 158); e mais: o significado
ordena o sentido. Acima de tudo, há uma correspondência que orienta códigos
indumentários, e esses são organizados por semelhança e oposição. Cada
sociedade define o que lhe é feminino em resposta ao que é masculino, por
exemplo. Não é de hoje o pensamento de que um objeto possui uma conotação
neutra, já que não conduz inerentemente significação social, mas sim, é da forma
como é usado na conjuntura que nascem as produções de sentido. Cada objeto
deve ser lido conforme o seu contexto cultural e temporal. Se a moda adquire uma
representação isolada, é porque esse sentido de comunicação antes do uso só
ocorreu porque houve um ensinamento sobre este. Quando na vitrina, uma bolsa de
alguma marca renomada passa esplendor e um desejo de consumo inatingível, é
porque o observador já tem uma perspectiva cultural criada para ela. Para um nativo
isolado que nunca viu algo daquela natureza, não faria sentido algum.
Sobre isso, há repertórios criados tão densos que são quase como
uniformes, pois negociam questões éticas de reconhecimento com uma forte
atribuição de sentido. De forma arbitrária, o usuário precisa ser merecedor dessas
insígnias, uma vez que a mercadoria vai emprestar uma comunicação mediante o
uso. Depois de inserida nesse território de princípios, cada peça pode ser
responsável por um imaginário. O momento de uso do vestuário pode valer uma
reflexão sobre um motivo: a crença na passagem de ano, uma entrevista de
emprego, um primeiro encontro amoroso, festividades familiares e incontáveis outros
eventos que, por preverem a socialização, deixam latente um querer mostrar. As
vestes, quando inseridas em um contexto social, são místicas, com seus poderosos
códigos estabelecidos pela relação. A crença é inventada, todavia o sentimento é
real: a fé na paz emocionará mais, se a pessoa estiver vestida de branco na virada
de ano; a postura do candidato em uma entrevista será mais confiante se ele estiver
com seu ‘casaco da sorte’. Com significações dadas, o vestuário passa a ser a
própria representação e por este motivo, provoca novas posturas ao usuário. Esses
arranjos comunicativos são tão penetrantes que o comportamento do protagonista
31
Está claro então, que o sistema de moda não trata somente de renovação de
estilos, mas de compreensões de si apresentadas imageticamente na sociedade.
Renovação de juízo de valores também, pois significa fazer uso de inúmeras
designações para a expressão do sujeito como um agente social, já que está
intimamente comprometida com a realidade, embora prefira se apresentar de
maneira lúdica. “O vestuário é parte do indivíduo, não algo externo à identidade
pessoal [...], As roupas são uma parte vital da construção social do eu” acredita
Svendsen (2010, p. 20). Na busca pela completude, o vestir e as respectivas
transfigurações temporárias acabam fazendo parte da constituição do indivíduo,
tornando-se um desdobramento dele. Muito em função de que supostamente, no
processo de escolha dos adereços corporais, há uma relação íntima com o ego,
sendo desde muito tempo, sinônimo de autocontrole. A pessoa coberta situa-se
como parte fundante na construção da identidade, todavia, é de se acrescentar que
a atribuição de significado da nudez será paradoxalmente, sempre proporcional à
indumentária. É isso que o autor vai chamar de ausência visível. Guardadas as
devidas inflexibilidades nas regras culturais, a construção da aparência pessoal é
completamente livre. Ela mobiliza símbolos e se expressa através deles, mas na
mesma instância, torna-se uma grande responsabilidade, pois sua superfície
depende somente da própria pessoa.
34
Um dos meios mais evidentes que o indivíduo usa para demonstrar que
está situacionalmente presente é o gerenciamento disciplinado da aparência
pessoal ou ‘porte pessoal’, quer dizer, o complexo formado pelas roupas,
maquiagem, penteado e outras decorações de superfície que ele carrega
consigo.
Mais clara do que a própria língua falada, o vocabulário visual fornece várias
informações sobre o sujeito em uma relação ambígua de intenções e interpretações.
Interfere no fluxo da identidade na condição de processo; é após estendida,
deduzida e emprestada, tendo em vista o julgamento dado ao indivíduo situado em
seu contexto e engajamento. Não há chance de unificar tal decodificação, mas o
autor distingue o comportamento comunicativo em duas facetas. À primeira ele
propõe a chamar de interação desfocada, que consiste em uma análise imediata de
uma pessoa, quando essa é vista de relance, sem grandes aprofundamentos. Já
outra faceta é a interação focada, a qual nasce em um foco em comum de atenção,
40
a exemplo do que acontece na fala que é revezada entre ambos, portanto, quando
há uma sinergia.
De um ponto de vista analítico sobre o consumo, Miller (2007) garante que a
cultura material auxilia na compreensão do senso da humanidade por intermédio dos
objetos. Partindo do pressuposto de que o materialismo seja uma verdadeira
devoção a certos objetos, toda a forma de consumo atravessa uma postura moral e
recoloca o indivíduo em relação com o mundo. O sistema de classificação pode por
isso, ser entendido como a tomada de decisão dos consumidores a fim de integrar
as mercadorias nos seus estilos de vida, ação que se posiciona como um forte
parâmetro social.
Vale colocar que os incrementos dessa interferência corporal traduzem-se
pelos signos de poderes simbólicos que auxiliam a negociar com o social. É
oportuno pensar esses embrulhos de ordem discursiva para enunciações
comunicacionais, uma vez que o ser humano possui uma vontade inerente nessas
projeções. Ainda, para essas possibilidades serem aceitas, está em jogo que os
princípios de estetização condizem com cada cultura. Caso não estiver de acordo
com essa estrutura dominante, facilmente a arbitrariedade vai mostrar-se,
convertendo-se em rejeição, ou no mínimo, em estranhamento.
Para fins de situar mais o consumo pela ótica da antropologia, convém
ampliar esta abordagem analisando os estudos de Douglas e Isherwood (2013).
Para eles, os bens assumem aspectos ritualizados e bastante visíveis dentro de um
universo de valores da própria cultura, que constituem eficazes definições de
acontecimentos e auxiliam na mediação entre os sujeitos. É uma maneira de
estabelecer conexões, já que são importantes marcadores simbólicos e por isso,
estreitam vínculos. Quando estabelecidos padrões de preferências materiais
considerados apropriados, as relações contam com o auxílio dos produtos para tais
mediações, convertidos em uma poderosa comunicação.
Há com isso, um investimento considerável, de peso simbólico, que
expressa princípios de mudanças ou permanências de estilos de vida. Por uma
lógica cultural que os mantém dinâmicos e estruturadores nas relações sociais, os
produtos são neutros e por isso podem operar como pontes ou cercas, conforme
expressão dos autores para denotar os mecanismos de inclusão ou exclusão, já que
o seu uso é um ato social.
41
4Texto original: “From a cultural perspective, the production of commodities is also a cultural and
cognitive process: commodities must be not only produced materially as things, but also culturally
marked as being a certain kind of thing”.
43
5Texto original: “Visual images, verbal signs and the world of things formed a triangle whose stresses
and strains need to be insisted upon”.
44
masculino sempre foi mais vanguardista que o das mulheres, mesmo que o terno
tenha se tornado o traje mais importante e também impecavelmente monótono.
Porém, também sugere uma estabilidade no tempo e multiplicidade de locais de uso,
decorrendo de uma possível forma de modernidade.
Esse conjunto é um dos itens mais significativos do vestuário, pois, além da
demarcação clara de gênero, o terno desvinculou por definitivo a exuberância da
aristocracia com a nova burguesia trabalhadora. A permanência da alfaiataria, há
mais de duzentos anos, se realizou graças à sua estética repetitiva, à qual os
homens permanentemente recorrem para garantir credibilidade na política, no
mundo empresarial, em tribunais, em relações amorosas, entre outras situações e
contextos. Em resposta a uma solidificação de atributos fixos de gênero, quando
uma mulher quer oportunizar uma aparência simples e atemporal, é nas origens
masculinas que ela encontrará seu trajar. A autora acredita que esse é incomparável
na sua força simbólica de permanência. Tal qualidade reforça a ideia da sexualidade
nas roupas, pois o terno contracenou claramente com os prazeres dos disfarces
femininos.
Para além disso, a moda tem intrinsecamente a característica de ser
reveladora, e por isso ocorre de as pessoas poderem sentir-se fora do controle por
expor seus segredos no âmbito visual. Não fundamentados na razão, os desejos de
comunicação visual podem estar no inconsciente. Hollander (1996, p. 51) lembra
ainda, que nossas peles são sempre insuficientes demais para se expor sem
adereços artificiais:
Em reforço, a autora em estudo explica que é por essa razão que muitos
relutam em expor uma imagem pessoal fora do padrão, uma vez que, como senso
comum, os homens são portadores de uma identidade supostamente mais
inabalável. O simples interesse pela moda já o faz ser alvo de suspeitas e de
chacotas, pois a masculinidade implica uma displicência na aparência. Logo, tal
negligência pode ser ironicamente proposital e construída por meio de um cuidado
pessoal. Para muitas sociedades, a moda sempre se certificou de garantir as
distinções de gênero; mesmo quando tenta confundir, na realidade, isso não passa
de uma proposta passageira de modismo da estação.
Como tal, a aparência faz parte fundante da construção social da identidade,
e são encontrados nesta, muitas vezes, os preceitos um tanto quanto inflexíveis;
assim, ela subverte ou conserva fronteiras simbólicas. São apresentadas tanto uma
expressão individual quanto uma forma de controle, pois este é usado para fornecer
uma declaração sobre o posicionamento do sujeito na sociedade, “[...] mas suas
mensagens principais referem-se às maneiras pelas quais mulheres e homens
consideram seus papeis de gênero, ou a como se espera que eles o percebam”,
49
enfatiza Crane (2006, p. 47). Como premissa básica, há a cobrança das diferenças
inerentes nos modos de vestir desde o surgimento da concepção de moda,
ensinadas e repetidas ininterruptamente. Pelo levantamento histórico, percebe-se
que a roupa, estrategicamente enfatiza algumas partes dos corpos para acentuar
certas diferenças morfológicas. Como o tórax, pênis e ombro no homem e as curvas,
decotes e quadril que reforçam a imagem da mulher. Nesse sentido, a roupa seguiu
contrastando a linha divisória dos gêneros.
Como percurso crítico, a arbitrariedade é conhecida pela sua consolidação
no sistema de moda sobre o que são considerados elementos estéticos do feminino
e do masculino. Para reforçar tal conceito, Lipovetsky (2005) sustenta uma teoria
chamada de processo de diferenciação ostensiva, que consiste em produtos de
moda que são designados exclusivamente a um gênero. Do lado feminino, é
possível citar claramente a saia, mas também os vestidos, scarpins, maquiagens,
tailleurs, entre outros; bem como, no universo masculino, resguardam-se a gravata,
smoking, sapato etc. O intuito desse processo é acentuar os gêneros e colocá-los
em oposições. A título de regra, tudo que se diz contrário, complementa-se, como
muito se acredita que devam ser o homem e a mulher. Essa interiorização subjetiva
faz parte fundante da organização do sistema das aparências, mas, ao final deste
capítulo, pretende-se questionar a afirmação do filósofo que, em 1989 sentenciava,
na publicação de seu livro, que o masculino estaria condenado a eternamente
desempenhar essa função. Razões para pensar isso não faltavam, pois o vestido,
por exemplo, é de domínio feminino no Ocidente há mais de seis séculos.
Por trás da tão falada democracia e da libertação que a moda se permitiu ao
longo de sua trajetória, um impedimento moral e intocável ainda resiste. Mesmo com
as mudanças no tempo, nos dias de hoje, quando pouco se veem os imperativos e
as regras, a versatilidade ainda reconhece e respeita o espaço de cada gênero.
Talvez possa perceber-se, em determinados momentos, a oscilação da linha
divisória, mas a homogeneização da moda dos gêneros ainda está longe de existir.
É por esse motivo que a saia ainda faz fortemente parte do imaginário masculino,
assim como outras peças vistas como símbolos do fetiche feminino, como o salto
agulha e as lingeries. Hollander (1996, p. 80) afirma que as saias “[...] constam como
um elemento original e puramente feminino. Desde seus começos no século XVI,
nunca foram tomados como empréstimo pelo vestuário masculino”. Vale lembrar que
50
o kilt se encaixa como um saiote tradicional de uso dos homens que faz parte da
cultura escocesa, e por isso, não se inclui na definição de saia feminina.
Entendida, então, como um dispositivo social, a moda tem como propósito
privilegiar certas partes do corpo, conforme os valores de um período histórico e
local. Em toda a sua amplitude, percebe-se, por exemplo, que os homens
“apresentam insistentemente a utilização e a valorização de formas em linhas
verticalizadas e que ressaltam principalmente os ombros e as pernas como
indicadores de sua força e virilidade” (CASTILHO; MARTINS, 2005, p. 33). Esse é o
padrão estético oposto ao feminino, que exalta as curvas. Muito desses moldes a
serem seguidos decorrem como uma resposta ao princípio de integração e
completude.
Para uma maior clareza sobre como a moda enxerga as separações de
gênero no trajar, a seguir, é discriminado alguns pontos históricos que foram
marcantes nesse atributo de sentido. O intuito é identificar essa conotação desde o
final do século XIV, que é quando a vestimenta começa a ser compreendida como
integrante de um fenômeno social cíclico de mudança de desejos materiais, até
hipóteses sobre os novos rumos das tendências vigentes. Vale colocar que não há o
objetivo de naturalizar associações de formas diretas; é antes, uma abordagem mais
abrangente, que não possui o interesse de contemplar singularidades nesse
processo histórico. São assim, dadas algumas opções críticas como mote de análise
para propor certos paralelos sobre acontecimentos sociais e as formas de trajar de
parte da população.
atividade erótica: atrair homens e mulheres uns aos outros, garantindo, assim, a
sobrevivência da espécie”, e para tanto, vê-los de forma complementar para atingir
tal meta.
Levando a discussão para o terreno histórico ocidental da classe média e
alta, Svendsen (2010) acredita que há uma divisão clara dos gêneros nos modos de
trajar desde o século XIV. Sistematicamente, as mulheres prevaleceriam com uma
silhueta mais ajustada. No âmbito da modéstia, a estrutura de modelagem e costura
para o busto resultou na atenção ao decote, que aos poucos foi se aprofundando e
se tornando um símbolo feminino, ainda mais enfatizado graças ao contraponto dos
sufocantes espartilhos. Desde então, a exposição da pele viria a ser um assunto
delas.
Dessas vontades, os fatores sexuais fortificam-se como um dos motivos do
uso de determinadas roupas. Guardadas as devidas proporções e os relativismos
culturais, as distinções entre os sexos pelas convenções no trajar podem ser
encontradas nas civilizações. O primeiro grande divisor de sentidos sexuais, na
visão de Hollander (1996), foi situado em meados de 1380. Houve uma ruptura que
se estabeleceu desde então, mesmo que interpretada de maneiras distintas. A
historiadora exemplifica mediante a violação de conduta de Joana d´Arc, que, se
ocorresse antes ou depois desse período, possivelmente não teria visualmente
chocado tanto. No entanto, no início do século XV, as vestimentas eram
sexualmente expressivas demais. Evidentemente, a heroína francesa causou
estranheza não apenas pela sua aparência, mas assumiu até em momentos do
cotidiano, um estilo atípico das demais mulheres da época. Tal prática tornou-a
ainda mais conhecida. Sem qualquer modéstia romântica ou véu na cabeça, suas
armaduras e seu temperamento com bases nos privilégios masculinos renderam-lhe
a reputação de uma feiticeira. Ou de uma prostituta, pois só uma teria coragem de
separar suas pernas com tecidos como faziam os homens. Símbolo de fuga para
perceber as pernas como membros funcionais, a calça teria que aguardar mais de
quatro séculos para que fosse de fato, um hábito entre elas também.
Ainda pela visão de culpabilizar a imagem da mulher pelos males da
sociedade, vale lembrar que os romanos julgavam bárbaras as vestimentas
costuradas, que contornavam o corpo, chegando a decretar pena de morte a quem
as usasse; além disso, houve diversas tentativas do senado romano de proibir o uso
de seda, pois além de seu alto custo, a propriedade das roupas de seda de se
52
aderirem aos contornos do corpo, segundo eles, era uma ameaça à moral. Assim
como os calçados, em um período em que os britânicos se mantinham nas colônias
norte-americanas, foram criadas rígidas leis contra o uso de salto alto, pois dizia-se
que tais sapatos seduziam os homens para a luxúria e o pecado; ademais, em
algumas comunidades da época, o salto era um símbolo associado à bruxaria. Já os
de bico fino e compridos que foram tendência por quase quatrocentos anos
consecutivos, até sua proibição pela igreja em 1367, quando foram considerados
pecaminosos e chamados de garra do diabo. Os religiosos condenavam seu uso,
pois além de considera-los depravados, quem os usasse não era capaz de se
ajoelhar em oração. Por esses motivos, a igreja alegou que a Peste Negra ocorria,
pois fora a maneira de Deus castigar a humanidade pelo uso de tais peças
demoníacas (COX; JONES, 2014).
É durante o Renascimento que se origina um código moral bastante
apurado, que orienta o olhar somente para a parte de cima do corpo. Essa é uma
época em que se define uma beleza moderna vista somente no feminino, misturando
ao mesmo tempo, fragilidade e castidade, uma perfeição e admiração. Esse domínio
da beleza é retratado nas pinturas de Vênus, associa Vigarello (2006), em que se
desenha uma fronteira bem clara, que deixa toda a força e o temor na figura
masculina para que, com esse vigor, eles combatessem os inimigos, e se
equilibrassem com a formosura e o refinamento delas. Essa posição de inferioridade
e pudor fazia parte de um conjunto de dinâmicas que serviam ao deleite dos
homens. Além disso, promoviam a literatura.
Uma das personalidades da história que aqui parece ser interessante
evidenciar é o duque Philippe d'Orleans, talvez um dos primeiros entusiastas de
cross-dressing. Conquanto ele tenha nascido no século XVII, que já priorizava o uso
excessivo de ornamentos como saltos, perucas, babados e chapéus para os
homens, Steele (2013 – tradução nossa) acredita que foi somente graças ao seu
status hereditário de realeza, que o duque garantiu não ser executado como o seria
qualquer outro cidadão.
A frivolidade do século XVIII foi concretizada com os abusos estéticos dos
denominado Macaroni, um estilo masculino que resgatou os principais atributos do
coquetismo feminino, extrapolando a sua essência. Dessa lógica, nasceu um
homem considerado bastante efeminado, usando coletes, calções e casacos muito
justos no corpo e desenvolvidos com matérias-primas pouco acessíveis para o
53
6 Texto original: “[...] was often seen as indeterminate gender image [...] it has not been sufficiently
analyzed in the history of sexuality [...]. This is because the way of dress has been not used as a
reflection to read messages and codes through which people declare their lives”.
54
7Nascido em 1728 e falecido em 1810, seu nome de batismo era Charles Geneviève Louis Auguste
André Timothée D’Eon de Beaumont, herdeiro de uma família francesa nobre (BRITISH MUSEUM,
2014 – tradução nossa).
55
chamada não moda para os homens. A seriedade estava enfim, instaurada nas
vestes masculinas, e no século XIX, é então proposta a austeridade para o traje
masculino, para refletir o trabalho e o consequente anseio financeiro, de forma a
deixar os ornamentos e a ociosidade necessária para as suas esposas e filhas.
Foi também, por conta da Revolução Industrial, que se exigiu do homem
passar mais tempo no trabalho e, portanto, ser mais comedido nos trajes, a fim de
refletir sua produção material. A palavra de ordem era a sobriedade, que virou
sinônimo de riqueza, mesmo não aparente. Essa função ficava sob a
responsabilidade da esposa, papel reforçado pelo comportamento bastante
submisso e limitado que a ela era dado. Exceto pelo vestuário, o que o torna tão
interessante para elas. Com isso, surge a funcionalidade da calça e a austeridade da
camisa, em contraponto com a ociosidade do espartilho, a frivolidade dos babados e
toda a ostentação dos acessórios que marcavam a separação de gêneros e suas
respectivas funções sociais (FRINGS, 2012).
Como extensão a essa narrativa histórica, o período vitoriano privilegiou uma
mulher delicadamente frágil, dependente de seu esposo tanto no quesito financeiro
quanto no emocional. Levando em conta o padrão de beleza mostrando uma mulher
fisionomicamente debilitada, esta fazia seu corpo insuficiente supostamente urgir por
camadas de tecidos e em meio a estruturas como corpetes, anáguas, crinolina e
barbatanas, sem contar os acessórios, que a deixavam na realidade, ainda mais
impotente. Além disso, sua pele clara representava sua condição social e, em uma
sociedade patriarcal, sustentar uma mulher incapaz com todos seus caprichos era
sinônimo de riqueza e poder sexual.
Mesmo que muito breve, a época eduardiana serviu para deixar de lado
tanta infantilidade e fraqueza. Embora ainda volumosas, as roupas da época
pressentiam lentamente, a mulher mais emancipada, justamente quando ganhavam
força os movimentos feministas. Houve uma singela tentativa de instaurar a calça,
mas ainda era cedo demais para os mais tradicionais; logo foi abolida, mesmo com o
pretexto do uso da bicicleta.
Foi então que efetivamente no século XIX, instaurou-se a preocupação com
o dar voz aos novos anseios da burguesia, ocasionando, como era de se esperar,
uma grande mudança no trajar como resposta a esse novo estilo de vida. A
industrialização também foi um dos fatores responsáveis por acentuar o
antagonismo dos sexos, reservando às mulheres tarefas mais sedentárias; aos
57
nossa) afirma que Brummell era considerado realmente original, pois introduziu não
somente uma nova proposta bastante específica, mas todo um conceito baseado na
elegância masculina cujas diretrizes são seguidas até os dias de hoje. Além de
roupas ajustadas perfeitamente ao corpo e o uso do linho, foi seu mérito trazer à
tona para a época, os cabelos curtos mostrados sem mais as perucas. Em um
período em que a toalete não era valorizada, o rosto barbeado e a higiene pessoal
impecável que incluía doses diárias de banho com leite seguramente chamavam
muita atenção.
A rotina de Brummel era um tanto quanto excêntrica: engraxar seus sapatos
com champanhe e gastar diariamente cinco horas para se arrumar com direito à
plateia presenciando-o, na chance de tentar seguir seus passos. O cuidado extremo
da alfaiataria levava-o a encomendar suas luvas em lugares diferentes durante sua
confecção, sendo os dedos de pelica em um lugar e os polegares, em outro. Ainda
como precursor, escovava os dentes diariamente e cuidava para se manter limpo o
dia todo, nem que para isso, trocasse de roupa quantas vezes fosse preciso. Morreu
em um hospício em 1840. Embora a ostentação não fosse mais bem vista, o
entendimento da exuberância estava no cuidado excessivo com a aparência,
considerado até então, algo pertencente ao universo feminino (COX; JONES;
STAFFORD, 2013).
Outros nomes foram também muito importantes nesse modelo de vida
refinado e sustentado por hábitos conspícuos. Entre eles, Lord Byron e Charles
Baudelaire, cada um com suas excentricidades, mas sempre mantendo “uma arte de
viver no cotidiano”, poetiza Maffesoli (2010, p. 78). A finalidade era apresentar a
austeridade inglesa no trajar, propositalmente se distanciando da decadência que se
pronunciava na França. Isso se transformava em uma tentativa de deixar de lado os
exageros do Rococó e do Barroquismo, ocasionando uma limpeza, tanto na
aparência quanto na higiene pessoal e até na postura. Esse estilo inspirado na
ociosidade e no gosto pela arte como representação máxima da estética elitista, foi
adotado também por Oscar Wilde, que se potencializou pelo sua homossexualidade
no final do século XIX, na Inglaterra. Mais do que posses ou direitos hereditários,
Svendsen (2010) acredita que ele tinha elegância corporificada graças aos
alinhamentos sofisticados trazidos pela alfaiataria.
Todos esses e outros dândis foram homens autoindulgentes ao propor um
grande cuidado de si, com um refinamento um tanto quanto excêntrico, por meio da
61
outro motivo: a recessão causada pela Segunda Guerra Mundial, período no qual
novamente, o homem se ausenta e assim, faz as mulheres serem mais funcionais
no modo de vestir, uma vez que começam a sustentar a família e precisam gastar o
mínimo em objetos supérfluos. As atividades fora de casa, tanto por uma
necessidade profissional como de lazer, começam a deixar marcas no corpo. As
peças de banho permitem que o sol bronzeie as peles e a musculatura fica torneada,
graças à popularização da prática de esportes ao ar livre.
Mas, com a chegada do pós-guerra, um sentimento de paz e esperança vem
à tona. Graças ao retorno dos homens, Crane (2006) assinala que as mulheres das
classes médias e altas poderiam voltar a serem românticas donas de casa, como foi
muito representado nos filmes, através do estilo American Way of Life. A moda na
década de 1950, como previsto, dialogou com esse fato, trazendo a feminilidade de
volta, com a cintura bastante marcada, os quadris largos e as saias rodadas.
Enquanto isso, os meninos celebravam o rock com jaquetas e jeans, em especial
com esta calça que teve uma rápida popularização, vinda de uma alternativa de
uniforme durável e barata de trabalho nas mineradoras, e que se tornou talvez, a
peça mais unissex já criada. Por esse fato, o New Look é até hoje, a representação
máxima de uma vontade de mudança que durante a Segunda Guerra Mundial havia
sido perdida, quando um único traje composto por um blazer e uma saia repercutiu
no mundo inteiro, ao propor o uso de muitos metros de tecidos para simplesmente
confeccionar o efeito plissado. O desperdício é curiosamente celebrado, símbolo do
fim da recessão.
Em estudos paralelos, Gilberto Freyre (2009) já percebia o lugar peculiar da
moda pelo motivo de ela dar conta de explorar e projetar as mudanças sociais.
Consubstancia um modo de ser e estar no mundo, incluindo uma ética entre sexos e
suas moralidades nas relações. Notadamente o autor defendia isso; inclusive
propunha uma diferenciação na esfera textual: ‘modos’ relacionados ao homem e
‘modas’ destinadas às mulheres como mudanças de gostos e hábitos mais
efêmeros. Mesmo não ultrapassando o plano simbólico, de qualquer maneira, atinge
a arbitrariedade da figura masculinizada ou da estética da feminilidade. Ele atenta
para o fato da função básica da moda, a distinção, e chama de mulher ornamental a
passividade delas para com os maridos, servindo seus aperfeiçoamentos de
artifícios para testemunhar o apreço deles.
66
O estilo estético adotado cria certos receios. Lennie com sua grande
experiencia de confrontação com o público confessa: “No começo eu
estranhava terrivelmente [...]”. Os atores criaram vestuário transgredindo
todos os padrões socialmente conhecidos até então, sejam tradicionais ou
de fantasia. Mas a ressonância simbólica apontava, sobretudo para o
confronto de corpos masculinos em roupas supostamente femininas
(LOBERT, 1979, p. 07).
8A tentativa de tradução para o português as palavras ‘pavão’ e ‘revolução’ faz perder seu sentido,
portanto, a expressão do movimento social é usada em inglês.
70
(SABINO, 2007, p. 437), de acordo como alguns dicionários tentam explicar. Foi o
momento de expansão nas lojas de departamento, oportunizando espaços nas
araras nunca antes vistos para as secções masculinas. No embalo, a indústria de
cosméticos também aumentou, criando novas linhas de produtos. Um dos ícones
desse grupo foi o jogador de futebol David Beckham. Essa foi considerada uma
emancipação irônica do homem, em resposta à posição da mulher na pós-
modernidade. Tal emancipação, permite-se questionar a virilidade e desconstruir o
rótulo etimológico, propondo uma identidade com prefixo nem homo nem hetero,
mas metro. Com isso, é o final do século XX que trouxe uma maior tolerância nas
noções fixas no vestir os sexos, sempre em fina sintonia com o modo de pensar
vigente.
Ocorre que atualmente, mesmo que ainda tímido e insólito, já é possível
relatar alguns fatos mais contemporâneos para evidenciar a abertura no mercado de
moda para os estudos de gênero, os quais permitem dar margem para mais debates
nas áreas correlacionadas. Percebe-se, por exemplo, um movimento, mesmo que
lento, para deixar de sexualizar as roupas. Marcas como Commes de Garçons e
Yohji Yamamoto já não seriam uma novidade de aposta nesse estilo, uma vez que o
japonismo é uma estética à parte que sempre trouxe influências de linhas
minimalistas. O que é de surpreender é a aderência de tradicionais marcas de luxo
como a de Yves Saint Laurent e Hermès, que apresentaram suas últimas coleções
nas semanas mundiais de desfiles com tal proposta. Também chamam atenção as
lojas de departamento como Topshop e Selfridges, as quais recentemente abriram
uma seção de moda agender. Em uma tradução livre, essa seria algo assexuado,
sem definição de gênero, que também já é tida como non-gender, gender-neutral ou
genderless. A finalidade maior é transcender as noções tradicionais de como se
produzem e se vendem roupas (THE GUARDIAN, 2015).
Com os dizeres “Como Jaden Smith e seu vestido estão mudando a moda9”
(I-D, 2015 – tradução nossa), a chamada da matéria já denota a influência que
causa o filho do ator Will Smith, agora adolescente. O assunto genderless já foi
noticiado em outras ocasiões nesta mesma revista bastante conceituada no universo
do design, música e artes também: a I-D Magazine. Nesta, Jaden é considero
alguém de espírito livre e um dos ícones de tendência desse novo estilo que
9 Texto original: “How Jaden Smith and his dress are changing fashion”.
72
defende não mais uma apropriação dos opostos, pois não deveria nem mesmo
haver o simples oposto. São roupas. E separá-las conforme o seu usuário é
estereotipar de maneira arcaica. A música já tentou por várias formas, compor esse
repertório, mas talvez, questiona a revista, seja responsabilidade da moda enfim,
transgredir o binarismo por meio do visual, sentido que por vezes, é mais eficiente
do que da audição, do tato, do paladar e do olfato juntos. Nesse sentido, pessoas
heterossexuais e inseridas na cultura pop como Jaden, que divulga suas compras de
roupas na sessão feminina de redes de departamentos, instiga a refletir sobre os
novos rumos do mercado de consumo. Fato histórico sobre isso é a maior e a que
mais vale na condição de marca de luxo de moda, a Louis Vuitton (2016), estrear
com ele, a campanha de verão 2016/17 da linha feminina.
Tais produtos de moda alternativos que a priori não se posicionam para
somente um segmento, são ainda orientados para circuitos bastante restritos, de
demanda específica e em lugares vanguardistas que já possuem um histórico de
lançamento de tendências. Por ser algo que ainda está sendo maturado, não há
ainda livros que comprovem tal consolidação. Logo, as referências aqui citadas são
todas elas de endereços eletrônicos internacionais.
Essa prática transgressiva como tendência de comportamento é vista como
um grande desafio para o mercado de moda, pois sua ordenação sempre foi
fundamentalmente binarista. Sobre o gerenciamento, seguramente a primeira
distinção diz respeito ao gênero. Nas etapas metodológicas de um projeto de design,
antes mesmo de pesquisar, desenvolver, precificar e vender uma peça, é a escolha
do perfil do público-alvo que definirá as principais tomadas de negócio. Na outra
ponta, é também verdadeiro. Na loja, mesmo que o cliente se interesse por um
produto que não seja da sua categoria, os atendentes, talvez até sem a
intencionalidade, informam que aquilo não pertence a sua opção de possibilidades,
indiferentemente do seu gosto. Também o cronograma das apresentações dos
desfiles de prêt-à-porter e Alta Costura é alocado conforme os grupos previamente
definidos como infantil, masculino e feminino. Como se não bastasse, ainda os
periódicos são outra fonte que claramente indicam quem devem ser seus leitores
conforme seus genitais.
A primeira separação básica que é esperada em uma loja de moda são as
seções de departamentos, deixando evidente qual é o espaço destinado
exclusivamente ao homem ou à mulher, assumindo na sua maioria, inclusive nomes
73
casos: sobre a feminilização do homem recai um interdito social [...]”. Ele discute sobre a
facilidade que a moda tem de reconhecer diferenças sexuais, e não só isso, mas de
fazer questão de evidenciá-las, especialmente nos detalhes. Para ele, a moda é um
dos sistemas que melhor conhece as oposições entre masculino e feminino, mesmo
que as apropriações sejam somente de uma via. Isso significa que o vestuário
confeccionado para eles tem a habilidade de transitar no universo feminino, mas o
contrário não tem tanta força. Parece que a masculinização na aparência soa como
um empoderamento da identidade da mulher, enquanto a feminilidade fragiliza e
inferioriza o homem.
Em última análise, é identificado também um maior interesse por modelos
andróginos, ou seja, pessoas que possuem traços corporais indefinidos e por isso,
podem ser contratados para trabalhos tanto para representar uma figura masculina
quanto uma mulher, dependendo das orientações da marca. Esse é o caso de
Andrej Pejic, que desde 2014, prefere ser chamada de Andreja, e hoje situa-se como
uma pessoa trans. Mesma condição de Saskia de Brauw, uma mulher com traços
masculinos que lhe permitem brincar com as dimensões de gênero de acordo com o
interesse da produção fotográfica. Diferente da modelo Casey Legler, que não
transita tanto conforme as possibilidades do mercado, pois integra o casting
masculino da Ford Models dos Estados Unidos e se tornou precursora desse
comportamento por esse ato (GOLDSCHMIDT, 2013).
Figura 7 – Capas de revistas internacionais com Andreja Pejic, com dizeres sobre
quebras de barreiras de gênero
76
parceria que a empresa fez com duas comunidades trans: National Center for
Transgender Equality e a LGBT Community Center (BARNEYS, 2014).
Figura 8 – Editorial com casais transgêneros para a Barneys New York: Edie Charles
e May Simon; e a direita, Katie Hill e Arin Andrews
para a filha que não fossem limitadas aos motivos de princesas e personagens com
muito apelo romântico, além do uso exagerado da cor rosa em saias e macacões.
Assim, desde 2013 desenvolvem coleções com gênero neutro e que tem como valor,
estimular a imaginação, e expandiram rapidamente o que era somente para sanar tal
necessidade, para produção em massa.
Exemplos como esses demonstram uma renovação de interesse do
mercado em questionar a definição dos sexos estabelecida pela roupagem, que
rompem com estereótipos perpetuados pelo visual e incentivam a questão da
igualdade através dessa visão.
E conforme percebido nas literaturas, as engrenagens da moda
estabeleceram, como motivação social, permanentemente uma pauta para o sujeito
vestir-se em cada período. Face ao exposto:
4 CONSTRUÇÃO DA APARÊNCIA
10 Neste caso específico, demostrava que as travestis são as que mais sofreriam, com 25%
(SEFFNER, 2011).
80
saber que a imagem, quando não condiz com o esperado, pode agredir alguns mais
tradicionais ou aqueles que apenas não estão ainda habituados com tal dinâmica
(DIÁRIO DE CAMPO, 09/05/2013).
Diante disso, é possível perceber que a construção da aparência é um
grande paradoxo, algo posto como tão supérfluo é, ao mesmo tempo, o que pode
legitimar o gênero no corpo, pelos critérios visuais, e o que, por conseguinte, vai
direcionar os procedimentos de tratamento às pessoas. Chega ao ponto de servir de
protocolo para um laudo médico sobre o encaminhamento à cirurgia de
transgenitalização. É o que diz o terceiro item do documento produzido pela Harry
Benjamin International Gender Dysphoria Association11 – HBIGDA no qual se lê: “O
teste de vida real. Deve usar, durante todo o dia, as roupas comuns ao gênero
identificado” (BENTO, 2008, p. 186). Sem oscilações de vontades, esse
comportamento seria a prova final para convencer os psicólogos, os cirurgiões, os
assistentes sociais e demais membros que compõem um grupo de profissionais que
avalia a falta de encaixe e o encaminhamento à cirurgia. Com isso, volta-se
incessantemente ao quesito de precisar ajustar as pessoas em conceitos pré-
estabelecidos.
Em complemento, Alice – nome social da autora que publicou relatos sobre
a experiência pessoal do cross-dressing – reforça a ideia de que, por convenção, é a
roupa que, em primeira instância, vai mostrar a vontade de como o seu portador
quer ser reconhecido em seu gênero. Um dos únicos livros que a própria praticante
é quem escreve, Alice in Genderland12 é uma biografia de uma psiquiatra americana
que, desde sua pré-adolescência, foi se descobrindo. No auge da falta de
compreensão de si, como era de se esperar, replicava a opressão que lhe era
imposta pela comparação com os outros, o que definia seu desejo como ilegítimo:
“Como eu poderia viver com isso? Eu era um estudante de medicina [...], um homem
masculino orgulhoso. É assim que eu me via, era assim que todos me viam13”
(NOVIC, 2005, p. 32 – tradução nossa). Quando sua noiva soube de tudo,
desabafou, dizendo que preferiria que tivesse matado alguém. Na época, Alice nem
mesmo havia ouvido falar sobre cross-dressing e não tinha chegado ainda às
14 Texto original: “If you want to look like a woman, you better present yourself with the best
generalizations that you can get and overdo everything that seems to be regular and distinctive about
female discourse”.
82
curtos, por exemplo. Mas ainda assim, mesmo mais autoconfiante e com amigas
encorajando, por muito tempo entrou em pânico só de pensar como seria
inapropriado entrar em um restaurante que habitualmente preferia frequentar,
usando um vestido. Com o tempo, aprendeu que os observadores não sabem bem o
que pensar quando veem uma cross-dresser. Logo, se passar a impressão de que é
algo habitual e mesmo divertido, os demais tendem a pensar da mesma maneira.
Ainda no tocante à construção da aparência pela identidade de gênero
feminina, a cartunista e atual apresentadora de um programa de entrevistas, Laerte,
também dá seu depoimento. Diz ser um processo permanente de autoconhecimento
conseguir comprar roupas, sendo esse tanto um trabalho encantador quanto
exaustivo. Durante o período de experimentações, fica visível que ela já passou por
fases, por isso confessa:
forma como se delimita a condição humana que vai exteriorizar-se no entorno, nessa
perspectiva, passa a ser a própria expansão da mente. Portanto, o estudo social do
corpo se faz essencial para os cientistas sociais, pois é talvez o único concreto
patrimônio legítimo da pessoa, defende o autor.
Sob a rubrica de que, desde os atos gastrointestinais até os distúrbios
mentais são convencionados, o que dizer da aparência, que é um indicador
altamente moldável sob um processo civilizador. E ainda, como pode ocorrer um
desconforto quando alguém possui uma prática muito diferente de alimentação, por
exemplo, bem como, assume a noção de doença e de seus tratamentos, a imagem
pessoal pode causar tormentos na mesma intensidade, ou mesmo maior. Raras são
as práticas meramente instrumentais, pois são antes, doutrinações definidas pela
condição humana. O processo de socialização é permanente durante toda a vida do
sujeito, pois a interação com os demais e a transmissão cultural faz parte do tornar-
se membro de uma sociedade. Agentes ativos, como diria Goffman (2006).
consumadas são assim expostas como agentes muito mais complexos de serem
concebidos.
O gênero não precisa ser resultado do sexo, pode também construir o corpo
quando na interpretação de um significado que assume uma denominação tanto
cultural quanto psíquica. Algo a ser adquirido e declarado por um corpo sexuado em
papéis dinâmicos, podendo ser inclusive mutáveis. Em visão construcionista, para
Butler (2012, p. 209), não há separação do corpo pré-discursivo:
desmontar’, sempre cuidando muito para não deixar resquícios. Vencato (2013, p.
79) explica:
novamente em Butler (1999), desta vez em ‘Corpos que Pesam’, retomam-se alguns
dos principais estudos do ‘Problemas de Gênero’, para certificar que o gênero
também é uma expectativa. É uma ação que se estabelece como um aparato pré-
discursivo, no qual, em resposta às práticas regulatórias, o agente social segue uma
matriz performática como lógica de reconhecimento. É tão somente a repetição
desses atos, porquanto um corpo será sempre decifrado por meio de significados
culturais, pressupondo que nem natureza nem cultura seriam de domínio total do
sujeito.
Os escritos da autora já iniciam com algumas perguntas sobre até que ponto
a pele encapsula os limites do corpo. Há sistemáticos contornos materiais que
atribuem valores a ele. A insistência na justificativa da natureza permanece, quando
bem dizendo, são efeitos de natureza: pensamentos que vão sendo naturalizados ou
desnaturalizados. Esse é o caso da necessidade de vincular a diferença sexual
simplesmente às funções materiais, quando na realidade, essa deve ser entendida
como uma prática discursiva. A categoria sexo é uma demarcação normativa que
perversamente regula os corpos que, embora dominados, são inconformados com a
força regulatória que os controlam. Acima de tudo,
que de fato estava em jogo era o comportamento de uma das que estava em
silêncio. Como mera espectadora, ela observava cuidadosamente a autora desta
tese e espelhava o modo de portar os braços na mesa enquanto o diálogo ocorria
com as demais. Assim como, já na saída, esta mesma pessoa permanece atenta e
levanta vagarosamente para ficar por último, dando a impressão que era para
conseguir perceber o andar ou o vestir da única que ali não se travestia (DIÁRIO DE
CAMPO, 05/07/2013).
Um dos paradoxos é que pode ocorrer uma busca pela naturalidade apoiada
em mecanismos de observação e treino. Por toda sociedade possuir suas
expectativas visuais a respeito das funções sexuais, algumas praticantes do cross-
dressing reforçam os pressupostos mais marcantes do que supostamente é uma
mulher na sociedade em que elas vivem. Percebe-se, por exemplo, uma fragilidade
física simulada em todas as entrevistadas que foram conhecidas pessoalmente
quando feitos os estudos e observação para esta tese. Nessa instância, uma delas,
objetivamente explicou sua preocupação com precisar monitorar constantemente
sua voz, a fim de lembrar-se de falar mais baixo e pausado, evitando usar qualquer
palavrão, uma vez que para ela, é assim que as mulheres conversam. Cuidar para
sempre andar mais lentamente, e quando for sentar, não ficar de pernas abertas são
outros ensaios controlados permanentemente. Também a forma de escrita recebidas
através de e-mails, mensagens e fóruns pode ser um indício que reforça essa
imagem institucionalizada, com expressões infantilizadas e excessivamente
carinhosas (DIÁRIO DE CAMPO, 2012 a 2015).
A ‘princesa’ nesse sentido, vai se construindo em um processo de
subjetividade. Até porque a própria dimensão de gênero é profundamente
arquetípica. E embora haja um grande empenho nessa construção, as declarações
sobre autopercepção são reveladoras: “Mas eu sei que não passo por mulher,
jamais vou” (DIÁRIO DE CAMPO, 09/11/2012). Assim, essa entrevistada admitiu que
mesmo completando aproximadamente dez anos que se apresenta publicamente na
figura feminina, até hoje sente uma grande adrenalina quando sai de casa. Ao
mesmo tempo em que quer ser notada e admirada, sabe que vai causar
estranhamento nas pessoas, até daquelas que depois lhe devotarão respeito.
Segundo o que acredita, é impossível passar despercebida; nenhuma praticante
consegue isso, mesmo sendo essa uma das principais metas.
101
16Expressão usada pelo próprio autor, ou ao menos, na obra traduzida, para designar as pessoas
não estigmatizadas. Embora revelado esse uso, aqui se acredita que estratifica ainda mais o sujeito.
102
17 Texto original: “[...] el género travesti se constituye a través de una imitación idealizada de la
(hiper)feminina [...] encarnan um tipo ideal y ficcional de mujer [...]”.
103
As roupas servem para nos separar dos corpos alheios, mas servem
também para nos separar dos nossos próprios. Mesmo em situações em
que se permite o nudismo (saunas, vestiários coletivos etc), a nudez dos
órgãos genitais é disfarçada e encarada com uma artificial naturalidade.
Esse tabu se constrói muito em função do fato de que o próprio ser humano
não aceita a nudez, e tampouco aceita qualquer invólucro posto em si. Todavia, na
tomada de consciência de que o corpo é finito, há uma vontade latente de
experimento de algo que é próprio de cada um. Enxergá-lo como algo fluido,
expandido, que permite novas formas de visualidade é de fato viver na plenitude.
Projetá-lo não somente teatralizado para os palcos ou adaptado pelas cirurgias, mas
reconhecido no âmbito político do cotidiano, ultrapassando os prazeres
convencionais de ordem biológica e somar a isso, a oscilante insatisfação com o
corpo faz com que o indivíduo recrie a sua própria aparência. Quaisquer tipos de
manipulações significam interferir na sua estrutura em nome de um modelo de
aparência negociada e atuante na sociedade.
É inegável a noção do corpo como uma entidade material, e dessas
interferências, nascem as inscrições corporais. Essas se revelam como se
preexistissem antes da posse de significado sexuado, logo, não faz sentido admitir
genealogias, já que tal construto é dado como passivo e desprovido de valor.
Ademais, é pertinente lembrar que o ser humano possui um fascínio inerente por
seu corpo, o que foi inicialmente contextualizado por Lacan (1988). Desse fascínio, o
ser humano constitui sua original comunicação e esta funcionará como uma
104
5 CONVENÇÕES DE GÊNERO
quarto alugado em uma casa, na perspectiva das mais de trinta travestis prostitutas.
Outro diferencial em sua obra é o fato de o autor ter germinado um relacionamento
próximo e sincero com elas. Em seu livro, estão relatos resultantes de uma vivência
bastante íntima e amigável, no qual ele faz questão de dar voz às próprias.
Para se referir à elas, o autor deu preferência ao pronome feminino, escolha
que para ele não era tão evidente assim, já que no inglês não há tantas distinções
linguísticas. Com o aprendizado, pôde esclarecer aos leitores que é de praxe para
aqueles que querem ofender, conjugar no masculino. No exemplo dado sobre a vida
dessas pessoas no nordeste do país – embora se saiba que não é exclusividade do
local – a intolerância é bastante grande, inclusive com agressões verbais e físicas
vindas dos moradores e até mesmo dos policiais. O que ajuda a pensar no contexto
desta pesquisa, é especialmente porque, na visão do autor, tais interlocutoras usam
roupas femininas muito provocantes em tempo integral, estando no seu período de
trabalho ou não. Assim, é como se carregassem esse fardo de condenação por
decorrência da linguagem visual comunicada, já que denuncia uma correspondência
vinda da produção da aparência, entre outras formas de expressão. Não por
coincidência, a expectativa de vida delas é mais baixa do que do cidadão que segue
os padrões heteronormativo, devido aos inúmeros problemas como doenças e
violência. O autor é enfático, ao narrar as advertências que antecipadamente
recebeu sobre os supostos perigos de andar com elas, o que se agrava quando se
mora junto. Extremamente marginalizadas, ele conta que elas são vistas como
ameaças pela população e pela mídia brasileira, que as apontam por extensão,
como verdadeiras criminosas.
Desses saberes, vale-se ainda de mais ensinamentos pertinentes de Kulick
(2008, p. 28), o qual aponta a possibilidade de suspender as pressuposições do
gênero baseadas em um sexo biológico concentrado na genitália:
possível generalizar todos que são postos como ‘anormais’ em comparação com os
‘normais’. Assim, o binarismo se apresenta também aqui, ao distinguir somente duas
formas de vivência, e desse processo de rotulagem, os que não seguem os papéis e
negam a adequação nas definições são postos à margem da perversão proposital.
Os ajustados, por sua vez, atuam como agentes da regulação que precisam deixar
claro que não fazem parte daquele grupo.
Vale pensar: querer atribuir condutas de pessoas que possuem uma
mobilidade identitária seria tão irresponsável quanto querer agrupar outros grupos
de sujeitos que por alguma razão se assemelham. É uma tentativa simplista pelo
fato de cada um possuir uma biografia original e peculiar interpretação de mundo. E
sobre a necessidade de criar modelos totalizantes nas pessoas que vivem a
sexualidade em contradição com sua fisionomia, Steele (2013, p. 33 – tradução
nossa) adverte que:
18 Texto original: “Historically, both men and women cross dress for a number os reasons, from
practical (women had more freedom in dressed than men) to erotic. Cross-dressing is not necessarily
a signo f homosexuality, but it has been historically and literarily exemplified individuals cross-dressing
as gays or lesbians”.
111
[...] para que um/a jovem possa vir a se reconhecer como homossexual,
será preciso que ele/ela consiga desvincular gay e lésbica dos significados
a que aprendeu a associá-los, ou seja, será preciso deixar de percebe-los
como desvios, patologias, formas não-naturais e ilegais de sexualidade.
Como se reconhecer em algo que se aprendeu a rejeitar e a desprezar?
Como, estando imerso/a nesses discursos normalizadores, é possível
articular sua (homo)sexualidade com prazer, com erotismo, com algo que
pode ser exercido sem culpa? (LOURO, 2003, p. 83-4).
UFSCar, em São Carlos/SP, que conta com pesquisadores na equipe como Anna Paula Vencato,
Berenice Bento, Larissa Pelúcio, Flávia Teixeira, Jorge Leite Júnior entre outro. Para saber mais:
www.ufscar.br/cis
112
autora deriva a compreensão do universo erótico para explicar que muitos dos
ensaios ocorrem da mesma maneira, porém em grau diferente. Há incontáveis locais
onde o ingresso se dá mediante a vestimenta apropriada ao contexto.
A historiadora também se vale de Freud, entre outros pensadores, ao
relacionar algumas peças como substitutos fálicos. Exemplifica como: o salto alto, o
avermelhado brilhoso dos lábios quando pintados, o aperto do espartilho, a
insinuação dos decotes, assim como com a interpretação de preferência de cores e
texturas, tais como o uso de peles e couro. Há sempre uma conexão entre dores e
prazeres ao decorar o próprio corpo em um cenário de construção de desejos.
Possivelmente, o salto fino alto seja o mais fortemente associado a simbologias
sexuais, tornando a quem o usa, uma pessoa indefesa e obrigando-a a tencionar
todo o corpo, mexendo com a estrutura física, que fica muito diferente de quando
estiver relaxada. Assim ocorre com a calcinha, peça que para muitos, é mais
excitante do que o corpo nu, pois conota um embrulho, ou seja, o melhor ainda está
por vir quando desembrulhado. Foi somente no início do século XX que se passou
das anáguas para uma peça menor e mais delicada, bastante próxima do que
conhecemos atualmente. Ainda mais distante do caráter de calça, a feminilidade
estava garantida na história. Nessa relação, é bastante comum essa ser o primeiro
experimento de uma cross-dresser, possivelmente por possuir tal peso simbólico e
por ser algo que pode ser utilizado em público sem que alguém repare. Isso foi
identificado tanto na pesquisa de campo, conforme já mencionado, quanto pelo
reforço de ideias de Steele (1997, p. 128), que comenta: “O entusiasmo por roupas
íntimas femininas está ligado à prática de vestir peças do sexo oposto, e muitos
travestis têm enfatizado o apelo de calcinhas femininas, em contraste com as
características nada atraentes tanto das calças quanto das cuecas masculinas”. No
intento de observar suas palavras, vale acrescentar que a própria concepção de
‘sexo oposto’ já se coloca como binarismo fundante ancorado nas diferenças e
complementariedade sexuais, questão posta nesta investigação.
A autora ainda se vale da ideia de fetichismo das mercadorias, fato cunhado
por Marx, apesar de este ter ficado muito mais preocupado com o aspecto da
produção dessas mercadorias. O conceito retrata a adoração e a forte identificação
por objetos graças à atribuição de um sistema simbólico, segundo o qual, ao mesmo
tempo, se ressalta a importância de entender esses produtos não somente como
peças de roupas, mas como objetos que emprestam um apelo erótico a quem os
115
20 Apesar de a terminologia poder indicar as duas vias, reforça-se que a proposta desta pesquisa é
trabalhar somente a direção de categoria do sexo atribuído masculino que se adorna com elementos
de significados femininos, eliminando o caminho contrário para fins de objetivos metodológicos.
116
histórica, o travestimento pode ser interpretado como uma expressão ampla, já que
compreende desde as brincadeiras de carnaval até os ritos nativos locais como o
berdache. É expressão desde quando Shakespeare utilizava esse artifício em seus
personagens para retratar as máscaras sociais de cada cidadão, até quando
aparece na técnica do teatro japonês kabuki21, no qual somente aos homens era
permitido encenar. Por essa razão, eles atuavam também nas figuras dramáticas
femininas. Alguns atores inclusive se especializavam exclusivamente a essas
interpretações, chamados de Onnagata. Markwick (2009, p. 68) lembra que “Só na
década de 1660 os papéis femininos, no palco, passaram a ser regular e
continuamente interpretados por mulheres”. Assim como na Índia, o treinamento de
ator de kathakali era por séculos, dado somente aos meninos, que interpretavam
tanto os personagens quanto as deusas.
21A título de curiosidade, o contrário seria o Takarazuka, ou seja, um show de que participavam
somente mulheres e estas, se necessário, trajavam-se masculinamente.
117
22 Termo utilizado para reproduzir uma falta de habilidade de caça e demais atividades resguardadas
étnicos em Nova Guiné, coleta realizada na década de trinta, utiliza-se dos estudos
da produção do caráter sem consideração do sexo e do papel da cultura nesse
processo. Por ter vivenciado de perto o cotidiano daqueles, ela pôde concluir que
havia temperamentos aprovados para homens e outros para mulheres, assim como
atribuídos a ambos. Foram identificadas diferentes prescrição de caráteres sexuais
nos Arapesh e nos Mundugumor. Uma terceira tribo, os Tchambuli, destoava mais
da estrutura cultural graças a alguns papéis que, quando comparados, eram
invertidos. Todavia, nenhuma conclusão foi creditada a bases biológicas, mas sim, a
segregações feitas pela instrução que se estabelece ainda na fase infantil. Como
unidade de análise, essa pesquisadora percebeu que os mecanismos de educação
podem ser formas de adestramento para acentuar as diferenças temperamentais
bastante arbitrárias, pois não se reconhecem dotes genuinamente individuais.
Noções de masculinidade e feminilidade são antes, tidos como potencialidades
rotuladas pela ordem biológica que dependiam de valores assimilados mediante um
condicionamento cultural, que invariavelmente, cria expectativas sobre as atuações.
Assim como em qualquer cultura, há complexidade no conjunto de regras
que visam garantir o poder e equilíbrio. Comumente, há utilização do sexo como
uma forma de organização, para estabelecer traços de personalidade como um
condicionamento social, esclarecendo na mesma instância, o sentido da natureza
humana como algo extremamente maleável quando interage em um dado ambiente.
Esse tipo de planejamento da ordem social sobre as crenças de comportamento
congênito tem bases na complementaridade e é instituído como padrão que evoca
uma grande pressão social. Mead (2014, p. 290) adverte que essas conformações
interferem no curso de toda a vida do sujeito:
isso, não se encaixam aos roteiros que lhe seriam reservados. Disso decorre, pois
qualquer membro que desobedece aos juízos aplicados está violando o outro
também, o sujeito dos julgamentos. Em sociedades que se especializam em
comportamentos baseados no sexo, de forma invariável afloram justamente aqueles
impróprios, que não são desejados, e que condenam esses diferentes a enfrentar
desfavor social nas várias esferas de sua vida. Por outro lado, pouco é
compreendido quanto ao conceito de travestimento em culturas que não cultivem
padrões tão enraizados em papeis sexuais; logo, nesse caso, são oferecidas
escolhas conforme os interesses em jogo.
Um homem Mundugumor pode, por exemplo, exercer atividades que têm a
insistência em constituir uma associação feminina, sem ferir a masculinidade. Mas
outras atividades que possuem diferenças padronizadas podem suscitar o que
alguns grupos consideram inatural, como o já mencionado berdache. Qualquer
indício de um filho com tal comportamento implica embaraço e preocupação,
necessitando de atenção redobrada. Pessoas que, sem a variação no
temperamento, inclinam-se para o desajustamento, confrontam-se nas suas
evidências anatômicas, com as especificações decretadas dicotomicamente. E
sempre, para haver tal desajuste, é necessário apresentar formas de organização
que levam a concluir ser indigna a pura e simples classificação pelos padrões
comuns determinados.
Um outro e último exemplo etnográfico antes da abordagem sobre os
estudos queer, que desafia os moldes normativos e conduz a repensar conceitos
universalisantes são as hijras, assim chamadas os transgêneros na Índia. Almeida
(2015) refere-se às comunidades transexuais como parte das tradições indianas há
mais de quatro mil anos, sempre repletas de misticismo. Acredita-se que estas
podem determinar o destino, prevendo, abençoando ou amaldiçoando. Em algumas
regiões indianas que reverenciam o deus Aravan, aquelas são mais conhecidas
como aravani, havendo inclusive, concursos de beleza aravani e um grande festival
transgênero todos os anos, para celebrar o casamento hindu com o deus Krishna.
No período medieval, elas foram inclusive entendidas como líderes hindus, até a
colonização britânica, quando foi decretada prisão perpétua aos que mantivessem
relações sexuais com elas. A criminalização do sexo considerado para eles contra a
natureza, foi por pouco tempo revogada: de 2009 a 2013. Foi somente em 2014 que
as organizações dos direitos humanos permitiram às transexuais portar documentos
122
Uma breve localização temporal dos estudos queer mostra que, mesmo em
popularização progressiva, é bastante recente e talvez ainda pouco absorvido de
fato no contexto do cotidiano. Miskolci (2009) esclarece que a sexologia clássica não
dava conta de contemplar a dinâmica dos corpos, dos desejos e das sexualidades
das minorias, ao menos não por meio de um método desconstrutivista. Esse debate
começou a ganhar espaço, sobretudo nos Estados Unidos, em meados da década
123
24 Texto original: “And for queer politics, I mean na anti-identity specific model of sexual dissidence,
which is not connected in the declaration of na individual na ‘authentic’ as lesbian or gay, or bi, or
trans, but the one who sees the queer as a broad rejection os sexuality as a useful or socially
necessary classification system”.
128
Mas em seu discurso, por vezes, ele assume o desânimo nessas ações, já
que, na sua percepção, não importa quantas vezes na história já ocorreram
tentativas de visibilidades, ainda é uma identidade minoria no sentido mais amplo de
conotação sociológica, anexada a uma corrente normativa e, portanto, sempre
dependendo da bondade de estranhos. A política queer é feita para desafiar a
primazia do próprio sistema de classificação, não uma identidade autêntica
incrustada em seus termos básicos, mas que possua uma afinidade profunda com
todos aqueles de qualquer orientação sexual, que se recusam a ligar desejo com
gênero. E mais, para o autor, a sexualidade deva ser vista como não mais
importante do que qualquer outra orientação. Esta é uma declaração, mesmo que
complexa, que poderia ser entendida como algo a ser banalizado, uma realidade do
cotidiano e sem importância, sustentado na ideologia das diferenças.
A teoria queer confronta-se diretamente com os regimes de poder, ao
descaracterizar as normas hegemônicas e ao provocar o convívio de distinção
baseado na vigilância. Como um importante instrumento de transformação, o que
muito se percebe é a falta de um acesso físico igualitário, em espaços
diferentemente atribuídos, conforme se é homem ou mulher. Seria esta uma
discriminação justificada por traços já dados. Decorrente das diferenças fisiológicas,
as distribuições desiguais também são postas como inatas, muitas vezes, conforme
o local de atuação.
Aqueles que desapontam a heterossexualidade como um desejo natural são
postos como agentes sociais que não encontram nas categorias dadas como válidas
no estatuto social, suas referências identitárias, sendo desse modo, condenados a
uma indisponibilidade pelo olhar conservador. Por isso, “A luta principal é pela
destruição do sistema social da heterossexualidade, porque ‘sexo’ é a categoria
política naturalizada que funda a sociedade como heterossexual” (HARAWAY, 2004,
p. 225). Lésbicas, homens gays, transgêneros, intersexuais, todas essas e outras
formulações estariam fora da condição de existência, ausência de posição na
condição de uma definição de sujeito. Sendo o travestimento, a ideia mais
transgressora para questionar as tradições dos significados atribuídos de gênero e
desestabilizar as demarcações pelos artifícios visuais.
Ao historicizar as ambiguidades das relações entre os homens e as
mulheres, a autora resume que por excelência, o gênero é um conceito contestador
das diferenças sexuais nas variadas arenas de luta. Isso inclui algumas
129
contribuindo para afirmar a identidade de gênero tão reivindicada, em que para isso,
submetem-se a transformar seu corpo e a enfrentar cotidianamente desafios.
Quando essa visibilidade não acontece, os conflitos – isso inclui os internos
também – são inevitáveis. Para que os transgêneros consigam enxergar-se na
esfera da cidadania, eles podem querer acabar com o problema na sua origem,
literalmente. Para serem reconhecidos como cidadãos de direitos, aprendem que
devem se enquadrar como alguém legítimo, apresentando-se então ‘como uma
mulher deve ser’. Essas pessoas consideradas com gêneros inteligíveis criam uma
coletividade e trazem para a cena o reconhecimento de humanidade, levando em
conta suposições de temperamento e aparência. Ou próteses identitárias conforme o
autor chama.
No contexto desta pesquisa, o trabalho de campo revelou questões sobre
situações embaraçosas. Não só ocorrem os preconceitos esporádicos, os olhares
agressivos ou os sussurros entre os observadores, mas também ocorrem momentos
delicados com a justiça inclusive, já que a aparência e o nome social não condizem
com os documentos oficiais. Em um dos encontros para as entrevistas, uma
colaboradora explicou que já foi barrada algumas vezes em aeroportos, embora
geralmente seja liberada de forma respeitosa pela Polícia Federal quando eles se
dão conta de que não existe algo ilícito. Ela alega, pela lógica, que, assim como
praticamente todas as mulheres, ela usa artifícios para se embelezar e que, por isso,
dificilmente tem o mesmo rosto do que em alguma foto 3x4cm. Trata-se meramente
de uma proporcionalidade, acredita (DIÁRIO DE CAMPO, 13/01/2014).
Pela interpretação dicotômica de que há somente duas possibilidades opostas
e complementares de disposições corporais, logo, o órgão definidor para a
constatação de uma mulher tem na sua função, a heterossexualidade e a
reprodução. E ainda, conduz a um imperativo de comportamento específico. Dessa
radicalidade de concepção, muitos sujeitos que não se encaixam nesta dinâmica
que genitaliza as sexualidades, estarão sempre na sua incompletude,
impossibilitando a própria existência. A noção simplista da inteligibilidade do gênero
no corpo não permite espaço para espontaneidades, uma vez que já está
profundamente circunscrita a convenções históricas. Poucos ousam publicamente,
ultrapassar esses delimitadores, e quando os confrontam, são deslocados para um
terreno subjetivo capaz de incitar a intolerância e medicalização. Fixa-se um ato
cruel porque o sujeito vai problematizar em si e buscar explicações como uma falta
133
ou um erro que é interno. Tais sujeitos, assim, levam a acreditar em uma visão
depreciativa de si próprios. A inferioridade é imposta para ser adotada a cada vez
que eles se olham no espelho. Invariavelmente, há muita dor nesse processo para
aqueles corpos não categorizáveis que vivenciam de forma contraditória ao seu
gênero dado.
Diante disso, a demanda por uma cirurgia reparadora é muito mais voltada
para a seguridade de humanidade do que para algum prazer sexual. Ensinadas que,
se o problema está na não correspondência entre o sexo atribuído ao nascimento, o
desejo e a identidade de gênero, então o melhor a fazer é adequar a sua genitália e
postura corporal a algo já pré-existente. Ali, portanto, poderia estar o
reconhecimento, muito em correspondência com a autoaceitação. Esse circuito é um
verdadeiro quadro de angústia que origina um interesse pela transgenitalização em
nome de uma norma de gênero, a percepção de uma anomalia que precisa ser
corrigida. Sem dúvida, a dimensão do desejo pode interferir na tomada de decisão
delas, mas a cirurgia demanda algo muito mais profundo, pois toda vez que se fala
em se aceitar, a visão do outro é fundante nesse processo aflito de ajuste social. Em
concordância, na visão de Prost e Vincent (1992), a transexual está muito mais em
busca de um sentido de pertença do que de uma situação reversível, uma correção.
Pelo que vai ser por esses autores chamado de princípio da indisponibilidade,
dificilmente há um discernimento a ponto de conseguirem enxergar isso.
Fica claro então, que a insatisfação da aparência pessoal vem depois de um
padrão institucionalizado, exigindo comparações a ponto de conceber a opção de
um ‘corpo errado’. A bem dizer, quando é recorrido a uma simplificação, a
explicação de uma pessoa transexual é posta como alguém nascida desta forma,
inclusive nas interações das entrevistas informais, foi notável essa expressão, com
base em modelos normalizantes. Entretanto é uma resposta delicada que força a
pensar que existe então um ‘corpo correto’. Se for considerada uma ação corretiva,
onde está o erro? E mais, quem o impôs? Para haver a negação sobre si ou sobre
os outros, é necessário seguir por critérios de normalidade. Muito da rejeição desse
trânsito identitário pode ser o resultado de uma derivação médica sobre o imperativo
de se precisar corrigir clinicamente. Nestes casos, há uma busca por se afirmar
como mulher, sendo esse sentimento uma via de mão única, pois elas não ficam
transitando nessa vontade por conta de ser algo bastante claro na sua identidade de
gênero.
134
de confessar o sexo nos mais variados âmbitos, e serão as instituições que farão o
papel tanto de ouvinte quanto de controladora. A ascensão da família burguesa
vitoriana confisca esta pauta para dentro de casa e a reduz à função de reprodução.
Essa fase de repressão sexual, a qual o filósofo irá denunciar como prioritariamente
hipócrita, faz silenciá-lo por muito tempo. Foi somente dois séculos depois que o
assunto sexo se reverteu a um conteúdo censurado, embora existente. Atitude
potencializada em ambiente na presença de criança – diferente dos períodos
anteriores. O autor acredita que a negação possui uma função local de ser
moralmente aceito na tentativa de regular, jamais proibir. Por vezes, questiona a
ironia dessa coibição, quando lembra que a liberdade sexual chega a um ponto em
que possui um valor de mercado. Assim, ironicamente, passa como um momento de
inversão, no qual essa repressão pode ser lida como transgressora.
Facilmente, cria-se a necessidade de uma produção discursiva, na qual o
sexo começa a ter uma conotação científica, chegando até mesmo a interagir com
as áreas da saúde e da religião, por exemplo – ou forçadamente sendo assim
compreendida, em uma tentativa de criar um imperativo nato dos cidadãos para a
confissão. São instruções quase de uma estratégia de vigilância, já que quando há o
ato de se confessar, origina-se uma relação de poder, ou seja, a exposição de quem
declara e a autoridade a quem escuta. Entretanto, há um poder não imposto e
opressivo, muito mais relacionado ao processo de desejo, que inclusive é
normatizado dessa forma. Internaliza-se no sentido de não ser uma libertação, mas
uma estratégia de controle. Logo, a propagação de discurso sobre o assunto é dada
pela manifestação dos poderes que visava controlar a prática sexual: prazer de falar
e de ouvir sobre, originada na confissão na forma de consultas médicas,
psicanálises, biografias e afins. Assim, o discurso então científico começa a
ocasionar algumas justificativas para saber das verdades, baseada na produção de
observações e na formação de uma espécie de sentença.
Até hoje permanece esse resquício de uma certa desordem da lei quando se
fala sobre esse universo, aparentando uma esfera transgressora pelo simples ato de
trazê-la a tona: “Há dezenas de anos que nós só falamos de sexo fazendo pose:
consciência de desafiar a ordem estabelecida [...]” diz Foucalt (2011, p. 13) sobre o
regime de opressão e a solenidade por trás da evocação.
Em concordância, na biografia de Alice, ela explica que só depois de muitos
anos se aceitou; isso aconteceu quando enfim entendeu que primeiro era necessário
137
despir-se dos conceitos que ela mesma tinha sobre transgeneridade. Em especial
porque não compreendia o que ocorria, pois não era gay, já que permanecia
desejando as mulheres. Mas também queria ser uma, embora soubesse que jamais
o seria. Na sua visão, de início todas sentem muito medo do que está acontecendo,
já que há um treino social bastante enraizado a negar isso. Foi depois, com a idade,
que ela entendeu que tinha o melhor dos dois mundos e enfim não se deixou mais
governar pelas regras do machismo (NOVIC, 2005 – tradução nossa).
O chamado heteroterrorismo é cunhado justamente na tentativa de explicar
esses pequenos e constantes procedimentos punitivos da sociedade como resposta
a um ato de alguém quando não condiz com as expectativas, a começar pela
criança. Coibir de imediato um menino que se maquia porque lhe causou
curiosidade infantil em experimentar assim que viu sua colega fazer, é uma forma de
garantir a invisibilidade de uma identidade conflitante com as normas e inibir a
mobilidade de trânsitos de gênero. Há um controle das performances para proteger
a estabilidade da crença de que o corpo supostamente precisa refletir o sexo
designado. Ao patologizar a experiência, inferioriza a pessoa, que passa a não mais
se corresponder na condição humana. Ou que sofre a completa exclusão social
como medida punitiva, por desobedecer às lógicas instituídas para reforçar as
fronteiras e assim não contaminar mais gente. Pela interpretação de Foucault
(2001), o discurso religioso de ontem permanece nas entranhas de hoje, porém
mediante o discurso médico da ressignificância do anormal. Ele entende que um
corpo é investido de significado somente no discurso. Ou seja, não é sexuado e
dotado de sentido, sem antes haver uma determinação em um discurso sobre a
ideia de um sexo essencial. O autor também percebe os prazeres não redutíveis às
especificações pretendidas pelo sexo, mas interpretáveis como signo; nesse sentido,
o sexo seria o efeito, e não a origem.
Por uma vontade de esclarecimento teórico, vale colocar que por
heteronormatividade, seguindo a descrição de Bento (2008, p. 51), define-se:
antes disso. E ainda, essa negligência interfere também na identidade íntima, pela
falta de completude e autenticidade na construção do self, prejudicando a pessoa
que não se sente representada, já que o processo de interação e sua negociação
permanente são determinantes na construção da identidade. Em grande medida,
isso significa que a dinâmica do reconhecimento é uma necessidade humana, pois é
só com isso que há a completa existência moral de um cidadão digno de direitos. Os
grupos subalternos, conforme expressão do próprio autor, devem ser
compreendidos na sua diferença e por extensão, realizados consigo próprios.
Quando os minoritários são verdadeiros com eles mesmos, então é possível falar de
dignidade.
Paradoxal torna-se pensar que, ao passo que a fundação do sujeito se
desenvolve pelo contexto dialógico com os demais, ao mesmo tempo, uma
sociedade com valores pluralista não enxerga o caráter singular de cada indivíduo.
Na esfera pública, a política de diferença sugere um reconhecimento de cada
identidade, não abafada por uma concepção universalizante que está preocupado
em atender a maioria. É justamente a singularidade que está sendo contida pela
dominante que não permite espaço para um caráter individual. Sem isso, os direitos
podem se transformar em metas coletivas que não atendem às particularidades. É
só quando os objetivos coletivos são capazes de respeitar a diversidade, que se
tornam liberais. O pluralismo identitário atinge objetivos de naturezas variadas, visto
que prioriza uma política totalitária. Assim, retirando a condição de indivíduo com
todas as suas referências que o faz único e na sua maioria, são inerentes a ele, visto
pela soberania da massificação, surge a noção de cidadania. É justamente nesse
cenário que nasce a política de reconhecimento, tendo como pauta o resgate
heterogeneidade, respeitando a pluralidade dos cidadãos.
Muito além de somente tolerar, os estudos do filósofo que, por
consequência, envolvem a expressão da ética, propõem apresentar as diferenças e
orientar as condutas com bases no respeito desses valores subjacentes. Importante
destacar que esse desafio mostra-se cada vez mais urgente, haja vista a acelerada
globalização e as conexões online que facilitam o trânsito multicultural nos dias de
hoje.
Serve de critério o fato de que a identidade é temporária, pois dada em
correspondência com o outro, garante a sobrevivência da dinâmica interna de
movimentos. A atribuição da identidade de gênero e seus demarcadores configuram
141
concepções claras e rigorosas em cada relação social. Ele faz pensar sobre a
construção de exigências que cada um inventa para explicar a inferioridade de outro:
tratem de não reduzir as identidades periféricas como uma teoria de rotulação, pelo
contrário, ainda sim, essas são consideradas minorias e são sexualmente
estigmatizadas por romperem normas.
A aplicação de uma moralidade depende do contexto, conforme é essa
situação transgressora e quem são os envolvidos. O desvio é baseado na interação
e reação das demais pessoas ao um dado comportamento. Em grande medida,
nasce o conceito de identidade pública que o autor sugere. O transgressor só será
rotulado como tal quando houver o flagrante. Tanto ele quanto os demais, serão
moldados pela imagem que a concebe. O tratamento será feito de acordo com o
diagnóstico que popularmente lhe é dado, situando-o a partir de tal repertório de
análises:
Sob um outro ponto de vista, os desviantes servem, por que não, para
conscientizar-se de que é inviável insistir em um roteiro sobre o cotidiano e suas
articulações de vontades. Eles são informantes de novos comportamentos,
instigando uma inquietante readequação do observador da massa. O diferente não
fica só no espaço privado; ele exerce uma função pública. Mas, instiga Rodrigues
(2006, p. 25), “[...] a sociedade necessita dos fenômenos que rejeita, porque, por
oposição, exprime-se positivamente por meio deles, em uma expressão em que
seus conteúdos adquirem sentido através do que repelem – e através da qual ela
faz-se significar a si própria”. É uma relação paradoxal, pois ao mesmo tempo em
que as pessoas não se conformam com o diferente, são essas as que mais deste
necessitam para delimitar claramente os contornos de diferenciação, da qual não
fazem parte. Ao se submeterem pela comparação, surge o elemento balizador
intuitivo, sem uma ordem concreta, mas talvez muito mais pessoal.
Estudiosos que focam seu tema sobre a perspectiva do desvio chamam a
atenção de Simões (2009, p. 181) para um fato:
Esse ponto de partida deu maior ênfase ao percurso para ser rotulado como
desviante e às maneiras de negociação com os convencionalismos de modelos
hierárquicos de classificações de identidades de gênero. Todavia, a falta de simetria
sempre estará presente, seja de caráter sexual, seja de outro tipo de inconformismo
que desestrutura modelos de existências.
Para Butler (2012), há uma demasiada cobrança em tratar o corpo como um
discurso coerente – leia-se heteronormativo – visto que essa ordem pode ser
entendida como uma estrutura de poder. A autora vai chamar de ordem compulsória
a proposta de desmembrar as compreensões sobre gênero, desejo e sexo,
exatamente para não ocorrer esse aprisionamento de dimensões identitárias, uma
vez que é fato que a normatização tem a capacidade de criar excluídos. Esta é a
necessidade de uma lógica na matriz cultural, uma condição que cria expectativa à
adequação forçada das identidades. Como se certos corpos, na condição de
147
25 Processo de simbolização, onde o corpo é a primeira extrapolação da mente. Freud (1923) garantia
que antes de um ego, haveria um ego corporal interessado em experiências sobre o existir, expondo
evidências de aprendizados.
148
26O autor usa essa expressão para designar interações ou somente um amontoado de pessoas em
que há membros estigmatizados e outros não.
149
27A título de exemplificação mais detalhada, uma das interessadas que prontamente retornou sobre a
solicitação do primeiro contato pelo BCC, sentiu-se extremamente ofendida porque a autora desta
pesquisa não respondeu no mesmo dia. Registrou a cada dia, descontentamento pela falta de
atenção. Quando houve a primeira verificação pela doutoranda, no final de semana, das mensagens
de mídias sociais, havia um acúmulo de desagrados gerados crescentemente.
150
produzindo uma identidade coletiva. Com isso, nem todo grupo está aberto para
novos membros que não possuem certos padrões de atributos, pois até os militantes
se submetem a situações de opressão, e por isso, estão dispostos a uma postura e
a ações mais inclusivas. No entanto, questionam-se se de fato querem uma
convivência com o diferente, e ainda, perguntam-se se isso é associado a sua
imagem. Diante disso, seria uma ilusória pretensão querer:
há a exposição total em assumir, e quem sabe, isso não ser mais algo transitório.
Porém, muitas jamais se mostrarão no cotidiano; preferem o resguardo da
clandestinidade. Esse fato foi facilmente perceptível na pesquisa de campo, que
demonstrou nos meios estudados, que algumas informantes nunca expuseram sua
identidade de gênero feminina nos lugares de encontro comunitário, mesmo que
deixando sempre claro a preferência pela condição de ‘princesa’. Goffman (2012, p.
91) explora mais essa exposição de algum segredo que possui atributos
censuráveis:
mantido no espaço privado. Aqui é ainda mais verdadeiro, pois é realmente pelo
guarda-roupa que muito da identidade trans é construída, dado pelo regime de
visibilidade.
Sedgwick (1990 – tradução nossa) sugere a necessidade de reconsiderar
pelos estudos queer ser o ponto de partida e não ser tratado como exceção,
limitando-se aos problemas específicos de ordem sexual. A imagem marginal sobre
essa questão é dada pela dominação heterossexual, fundamentada pelo repúdio a
relações entre pessoas do mesmo sexo; assim, para ela, a simples tolerância não é
o suficiente, pois já demostra uma forma de violência. Enquanto não for incorporada
uma análise crítica da definição moderna da sexualidade, tal compreensão será
sempre incompleta.
Na contramão dessas ideias, é interessante de se pensar que a roupagem e
suas composições começam a intrinsecamente fazer parte da vida, no sentido de
demonstrar que algumas não mais exibirão sua existência privada. As vestes, como
símbolos sociológicos, passam a confundir o que é privado e o que é público nesse
processo de construção da identidade de gênero. Há pessoas transgêneras que
preferem ser vistas somente já ‘montadas’. Em campo, uma praticante falou que
sempre sugere para as demais associadas do BCC que, se for para divulgar fotos
em perfis de redes sociais, que sejam com a produção completa. Defende que isso
jamais seja feito durante o processo. Caso contrário, a magia se perde (DIÁRIO DE
CAMPO, 09/11/2012). A aparência final permanece como função pública, e o
procedimento até chegar ao objetivo final parece somente pertencer à ordem do
particular.
Para criar um paralelo sobre a dimensão do privado e do travestimento, vale
acrescentar que as drag queen também veem como essencial o segredo na sua
transformação, embora por motivos diferentes. Nos shows, os camarins são de
acesso restrito, já que é justamente o ocultamento que assegura o aspecto lúdico. O
mistério faz parte desse território restrito e é naquele que reside toda a inquietude do
processo de transformação. Possivelmente se houvesse a facilidade da exposição
para que as pessoas pudessem acompanhar uma drag queen ‘se montar’, se
adquiriria uma fragilidade da perspectiva da aparência. É o produto final por assim
dizer, que está em jogo para possibilitar a crença da fantasia. Ocorre um esforço
visível nessa produção pessoal, podendo chegar à profissionalização por meio de
remuneração, sendo então, um aspecto essencial a discrição para depois vir o
155
isso que a produção seja tão extravagante, para que de fato o sujeito seja
irreconhecível e possa expor-se sem receios. Assim, utiliza muitos adornos e gestos
carnavalescos, sem nutrir expectativas de ser confundido de fato com uma mulher.
Kogut (2006, p. 105) explica que “Uma drag queen não deixa de ser um tipo de
transformista, pois o uso das roupas pode estar ligado a questões artísticas – a
diferença é que a produção focaliza, em geral o humor, o exagero e não implica uma
excitação do tipo encontrado no travestismo”. Sendo assim, os recursos que utiliza
orientam-se para fins artísticos.
Já para Chidiac e Oltramari (2004), que em sua pesquisa de campo
objetivaram estudar o processo para a configuração da identidade drag e a relação
do personagem com o sujeito, consideram que a manifestação do feminino é
bastante explícita. E nesse sentido, a identidade é percebida como uma
metamorfose, a saber, como algo não fixo que possui uma fronteira flutuante. É nos
espaços artísticos específicos de atuação que são expostas características próprias
da personagem, como um nome, uma forma de andar, uma dublagem de cantoras
etc.
Como ponto de convergência, há inúmeros trabalhos que descrevem o
processo de ‘se montar’ uma drag queen, e vale observar que é recorrente a
simplificação da explicação, que é ‘quando um homem está de mulher’. Este simples
fato que a curta definição expressa já demonstra uma arbitrariedade. Os próprios
autores, a priori estudantes das áreas afins de comportamento, naturalizaram essa
dicotomia na sua forma de se expressar textualmente. Mesmo sem essa
prerrogativa, acabam por disseminar tal tipo de parâmetro universalista.
Reforçando a ideia trazida sobre a noção do segredo, este é seguramente
um dos motivos de o tema desta tese ser um objeto de estudo ainda pouco
explorado e com números inexatos. Uma frase inicial do site oficial do grupo de
cross-dressing no Brasil traduz o que aqui se discute: “sou mulher quando posso”
(BCC, 2013). Essa observação vai ao encontro de um testemunho de uma
entrevistada para esta pesquisa, que explicou como foram árduas suas tentativas de
expor sua aparência final, não só para o público como também para si. Como o
cargo dela exigia viajar muito, com isso, aproveitava para experimentar suas roupas
femininas na solidão de um quarto de hotel. Aos poucos, saía para o pátio e voltava
correndo, depois estendia essa experiência para o estacionamento e quando lhe
vinha coragem, até passeava de carro de noite ‘montada’. Foi depois de muitos
157
grande medida, o medo pela noção da diferença aprisiona e perpetua ainda mais as
mesmas imposições de princípios contra os quais fundamentalmente essas pessoas
lutam. Usam assim, as próprias opções pré-existentes e a constituição da
sexualidade que tentam combater, como base para disputa e negociações. Tudo
isso, até o ponto de gerar sentimento de surpresa quando, por exemplo, um
homossexual tem trejeitos viris como de um heterossexual, já que a atribuição
simbólica se constrói mais para a figura da mulher. Como se houvesse a compulsão
de, como membro de um casal, haver uma manutenção da diferença sobre os
papeis de cada membro. Se ambos são homossexuais, então ao menos um precisa
preencher o espaço vazio da mulher que ali não está. Nesse sentido, a própria
concepção de pertencimento mostra-se incompleta e segmentadora, pois reivindica
o aceite de um lugar já estabelecido, mesmo que não haja com ele a familiaridade.
Mais do que promover novas aberturas, há uma luta em reconhecer com
pertencente a grupos já existentes. Isso desencoraja condutas próprias, pois o modo
de existência acaba por ser somente um produto de incorporação.
Seguindo nessa lógica, há uma linha tênue e bastante desafiadora para as
cross-dressers conseguirem chegar a um ponto de equilíbrio da credibilidade de sua
aparência pela visão do outro, que já possui fortes disposições incorporadas de
discriminações que são históricas. A gestão da sua imagem pública está em fina
sintonia com um sacrilégio da masculinidade e afronta o sistema básico de
diferenciação. Ao inverter o contrato universalista, é condenada a dar justificativas,
mesmo que pouco ou nada eficazes.
Assim, diante de tudo que até então, neste capítulo foi exposto, vale o
questionamento sobre o que são e de onde vêm essas percepções sobre os
padrões do belo e do aceito, que orientam os corpos e constroem suas narrativas.
Tais conceitos serão levantados a seguir.
É possível que aqui se justifique a ideia de que aquilo que a mulher percebe
como beleza no homem coincide com a aparente capacidade de executar
tarefas ‘masculinas’, enquanto aquilo que o homem percebe como beleza
na mulher corresponde à aparente qualificação para representar papéis
‘femininos’ (MARWICK, 2009, p. 279).
atitude elegante e austera. Para vários cinéfilos, até hoje é considerada uma das
imagens mais sensuais da sétima arte, pois subliminarmente parecia que ela estava
querendo encantar a todos, homens e mulheres. Sobre essa via de mão única, o
escritor Quentin Crisp tenta explicar: “Quando um homem se veste como mulher, o
público ri. Quando uma mulher se veste como um homem, ninguém ri.31” (CLOSET,
1995, 10min 48seg – tradução nossa).
Figura 14 – Captura de telas dos filmes Call her Savage e Morocco, respectivamente
31Texto original: “When a man dresses as a woman, the audience laughed. When a woman dresses
as a man, no one laughs”.
168
garantir que não houvesse nenhum apelo sexual ou outras condutas consideradas
indecentes. Assim, criou-se o Código Hays, liderado por Will Hays, um padrão de
análise que iria definir modelos de moral aos produtores. A Legião da Decência,
como ficaram conhecidos, denunciava o que seria profano, sendo estabelecida a
letra ‘A’ para considerar algo aceitável; ‘B’ significava que havia algumas objeções
morais no filme e por fim ‘C’ que estava fadado a ser condenado. E se Hollywood
não prometesse seguir as regras, a Igreja ameaçava com boicotes em massa.
E assim o fez. Por mais de vinte anos, o diretor do Code Enforcement
Officer, Joseph Breen, comandava as censuras e tinha a autorização plena para
modificar o que fosse considerado de mau costume para o período. Incontáveis
filmes foram forçadamente adaptados ou inteiramente negados. Em pronunciamento
oficial, evoca sem piedade: “Pessoas decentes não gostam de ver esse tipo de
coisa. E é nosso dever fazer com que elas não se deparem com isso32” (CLOSET,
1995, 16min 27seg – tradução nossa).
Todavia, apesar dessa severa restrição, os personagens sexualmente
atípicos não foram deixados completamente de lado. O que ocorreu foi eles terem
ficado mais difíceis de serem identificados. Jamais eram citadas determinadas
palavras, somente apareciam sutis atitudes e aparências. Por causa dessa restrição,
os diretores aprenderam a driblar os profissionais que censuravam e o público
aprendeu a decifrar imagens. Os personagens não convencionais então, foram
camuflados por detrás de uma característica de pessoalidade de um vilão, por
exemplo. Nas entrelinhas da tela, a expressão da homossexualidade era indireta, e
ironicamente foi assim que na vida real ficou também: instaurada uma expressão
não declarada, uma imagem codificada.
Quando havia personagens em qualquer nível de desconformidade entre
sua anatomia e identidade de gênero, eram em núcleos diferentes e com uma veia
cômica, como no filme ‘Some like it hot’33, jamais como um usual estilo de vida, muito
menos respeitado. Mesmo quando era mais visível, pouco era falado sobre esse
fato. Nem os próprios atores na época recebiam explicitamente a descrição de seus
personagens, embora todos soubessem do que se tratava, pois aprenderam a
associar tal ideia com algum trejeito, ou se expressavam pelo gosto e uso de roupas
32 Texto original: “Decent people don’t like this sort of stuff. And it’s our job to that they get non of
them”.
33 Filme de 1959, traduzido no Brasil como ‘Quanto mais quente melhor’.
169
diferentes, ou por uma indireta no olhar e claro, por muitos rodeios nas falas. Era
necessário todo esse disfarce para não chamar a atenção da Legião da Decência,
pois quando o assunto sexo de alguma forma ficasse explícito e mais sério, era
imediatamente cortado.
Entretanto, no percurso cinematográfico, gradualmente os códigos foram
sendo abolidos e cada vez menos esse assunto foi encarado como um grande tabu.
Contudo, mesmo não sendo mais uma imposição, por muitos anos – e há quem diga
que até hoje, porém em graus diferentes – esse tipo de pensamento de opressão
ainda persistiu. Isso era percebido nas figuras dramáticas que jamais lutavam para
afirmar suas identidades de gênero, uma vez que elas mesmas se denegriam e se
consideravam pecadoras. O que ocorria nos filmes era a representação de um
monstro que estava com o seu destino já terrivelmente predefinido. No documentário
analisado, há uma compilação só de mortes trágicas, algumas inclusive comparadas
com filmes de terror, como ocorreu a emboscada morte de Frankstein, no qual a
semelhança é inegável. Hollywood concretizou o tema como sendo um segredo sujo
e motivo de culpa e fracasso, consequentemente de tristeza, desculpas e punição.
Qualquer um que não se encaixasse nos padrões, fazia parte de um contexto
repugnante com vidas infelizes, marginais que viviam em subúrbio ou na sombra,
sendo rejeitados pela família e à mercê de perigos. Isso era extremamente
amedrontador para os espectadores que se reconheciam nesses protagonistas, já
que era uma simulação e preparação da vida o que se ensinava no cinema. Vale
lembrar que na época, praticamente não se tinha outras fontes de aprendizado pelo
exemplo, que não fosse o cinema (CLOSET, 1995 – tradução nossa).
Foi somente em 1970, a partir do longa-metragem ‘The Boys in the Band’34
que Hollywood popularmente mostrou pela primeira vez, um grupo de gays que
enfrentava as dificuldades, que se impunham e defendiam aquilo em que
acreditavam, sem perder a diversão e camaradagem. Pelo menos em partes, pois
ainda era muito cedo não ter absolutamente nenhuma cena depreciativa. Mas o
principal era que não havia um final trágico para nenhum deles. Enfim, o filme que
de fato celebrou as diferenças foi o ‘Cabaret’35, dando passagem para vários outros,
como ‘Car Wash’36 o qual propunha um protagonista negro, alto e teoricamente viril
pela sua estrutura física, que se vestia e se comportava como uma mulher. Iniciava
ali uma visibilidade ao comportamento travéstico, ainda que distorcida, mas ao
menos já mais discutido. Em ‘Vanishing Point’37 por exemplo, um dos atores
interpretava uma figura dramática com calças e camisas bastante justas e de cores
consideradas femininas, além de usar bolsa. Eram essas suficientemente as
prerrogativas para apontá-lo como ‘não homem’ e consequentemente, para chamá-
lo a responder por isso.
Nesse viés, um roteirista chamado Ron Nyswaner relata que assistia no
cinema o ‘Freebie and the Bean’38 e de repente, apareceu-lhe uma figura travestida,
quando esta é morta pelo herói principal. No mesmo instante, toda a plateia
aplaudiu, visivelmente concordando com aquela cena, o que segundo a intepretação
dele, mais do que acabar com aquele vilão, a intenção era uma representação de
acabar com o conceito de travesti. Não bastava o seu simples fim; era necessário
um brutal assassinato, com muitos tiros e encenações exageradas. Em
complemento, os espectadores acabaram se acostumando com que os piores
xingamentos eram aqueles que vinham com uma carga sexualmente estereotipada.
Ao passo que outras ofensas de caráter também pessoal e/ou físico que possuem
um pudor filtrado da corrente do politicamente correto, o ‘bixa’, ‘viado’, ‘puto’,
‘traveco’ e afins apareceram em qualquer filme, logo, em qualquer conversa do
cotidiano. Assim, as pessoas se condicionaram a relacionar e a significar esses
termos com uma postura depreciativa.
Havia uma permissão velada ao não convencionalismo, como no filme ‘The
Rocky Horror Picture Show’39 no qual o personagem principal, interpretado pelo ator
Tim Curry, é chamado Dr. Frank-N-Furter, um cientista maluco, promíscuo e que
vivia em um castelo. No sentido de dar ênfase à excentricidade ou mesmo ao horror,
ele ainda se travestia. Estava completa a exotização. Em uma mistura de musical,
comédia e estilo trash, a adaptação foi banida em alguns países, já que provocações
não faltavam: cinta-liga, muita maquiagem e trejeitos performáticos sedutores.
Através de suas canções, as letras lembravam que ninguém deve julgar um livro
pela capa; apresentava-se ele como uma simples e doce travesti vinda do Planeta
Transexual (SWEET TRANSVESTITE, 2015).
O produtor Daniel Melnick conta que na época, foi uma tarefa muito difícil
montar o elenco. Os atores eram alertados a não aceitar os papeis, pois justificava-
se, iriam destruir para sempre suas carreiras. Na estreia, as pessoas visivelmente se
mostravam incomodadas a ponto de saírem da sala no meio do filme, demostrando
rejeição pela intimidade entre dois homens. Já o diretor John Schlesinger aponta
que o público americano está preparado para assistir a qualquer tipo de violência,
mas possui no tema da sexualidade o seu maior medo; nesse sentido, melhor fingir
que não existe. Isso se relaciona especialmente à homossexualidade masculina,
pois somente um ano depois foi lançado o ‘The Hunger’42 em que duas mulheres
eram apaixonadas. Com este filme, não houve tanta comoção; pelo contrário, para
muitos, foi tratado até com entusiasmo, entendido pelos homens como a garantia de
mostrar sua virilidade ao incentivar esse tipo de relação.
Em suma, fica evidente que o poder de persuasão do cinema está
justamente em conseguir mediar a compreensão do mundo e dessa incorporação,
representando os sonhos e produzindo necessidades. Ele consegue criar arquétipos
de como as pessoas devem comportar-se e romanticamente, impõe um modelo
40 Filme de 1982, traduzido no Brasil com o mesmo nome.
41 Texto original: “Twentieth Century-Fox is proud to presente one of the most honest and
controversial films we have ever released. We believe Making Love breaks new ground in its sensitive
portrayal of a Young woman executive who learns that her husband is experiencing a crisis about his
sexual identity. Making Love delas openly and candidly with a delicate issue. It is not sexually explicit.
But it may be too Strong dor some people. Making Love is bold but gentle. We are proud of its
honesty. We applaud its courage”.
42 Filme de 1983, traduzido no Brasil como ‘Fome de Viver’.
172
desejável e vendido como ideal. E nos que não se encaixam nesse construtor de
realidade, desperta uma vontade latente de traduzir aquelas histórias para a sua
própria vida.
173
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sem a intenção de propor uma visão totalizante, este estudo teve como
pretensão colocar em diálogo temas costumeiramente diferentes e permitir reflexões
multidisciplinares. Partindo da premissa de que o ato de cobrir o corpo tange
inúmeros arranjos simbólicos pertencentes a uma comunicação não verbal, qualquer
escolha de vestimenta manifesta uma interferência estilística na imagem pessoal, a
qual é revestida de significados dados pela cultura. Nessa perspectiva, a dinâmica
do gênero coloca-se como o pano de fundo teórico, quando se concentra no
entendimento do sistema de moda como um fenômeno que abarca a estética, o
vestuário, o corpo, o comportamento e os demais signos dessa prática, refletindo o
modo de ser por meio de suas específicas ferramentas visuais. Para a elaboração
textual, foi adotado um escopo de pesquisa que regeu os principais pontos
norteadores, para o qual foi levado em conta o cross-dressing como uma prática
discursiva.
Assim, com base no aporte de premissa teórica realizado, identificou-se que
os objetivos foram alcançados, embora talvez, de forma parcial, já que lidar com
comportamento como objeto de pesquisa é sempre algo volúvel. Foi possível
investigar os convencionalismos sociais e os processos de negação dos
observadores que resultam na intolerância visual. Na mesma intensidade,
possibilitou-se perceber os conflitos e dar visibilidade à compreensão dessa
experiência.
Entre observação de campo, levantamento de fatos contemporâneos e
fontes imagéticas, sempre com ênfase nos recursos bibliográficos, percebeu-se que
a orientação sexual transita inclusive pela dimensão da aparência, pois também se
gerencia pelas convenções de atributos. Nesse sentido, a relevância desta
investigação está na sua possível contribuição para os campos de estudos
correlacionados, já que o trabalho buscou aproximações de outros campos do saber
para as ciências sócias, ao expõe o uso de adereços corporais e da compreensão
de si pela imagem pessoal. Como efeito, a pesquisa buscou colocar o hábito do
enfeite corpóreo como fornecedor de um padrão de referência. Sob essa regência,
pretendeu-se enriquecer a bibliografia nacional para um campo ainda tão recente e
carente de articulações, com intenções de ser interessante a diversos pesquisadores
174
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