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Gênero e Moda - A Construção Da Aparência Na Prática de Cross-Dressing

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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS – UNISINOS

UNIDADE ACADÊMICA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
NÍVEL DOUTORADO

MARINA SEIBERT CEZAR

GÊNERO E MODA:
A construção da aparência na prática de cross-dressing

SÃO LEOPOLDO
2016
Marina Seibert Cezar

GÊNERO E MODA:
A construção da aparência na prática de cross-dressing

Dissertação apresentada como requisito


para obtenção do título de Doutor em
Ciências Sociais, pelo Programa de Pós-
Graduação em Ciências Sociais da
Universidade do Vale do Rio dos Sinos –
UNISINOS.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Miriam Steffen Vieira

São Leopoldo
2016
C387g Cezar, Marina Seibert
Gênero e moda : a construção da aparência na
prática de cross-dressing / por Marina Seibert Cezar. –
2016.
186 f.: il. ; 30 cm.

Dissertação (doutorado) — Universidade do Vale do


Rio dos Sinos, Programa de Pós-Graduação em
Ciências Sociais, São Leopoldo, RS, 2016.
“Orientadora: Prof.ª Dr.ª Miriam Steffen Vieira.”

1. Cross-dressing. 2. Convenções. 3. Gênero.


4. Moda. 5. Corpo. I. Título.

CDU: 391

Catalogação na Publicação:
Bibliotecário Alessandro Dietrich - CRB 10/2338
Marina Seibert Cezar

GÊNERO E MODA:
A construção da aparência na prática de cross-dressing

Dissertação apresentada como requisito


para obtenção do título de Doutor em
Ciências Sociais, pelo Programa de Pós-
Graduação em Ciências Sociais da
Universidade do Vale do Rio dos Sinos –
UNISINOS.

Aprovado em 26 de fevereiro de 2016

BANCA EXAMINADORA

José Rogério Lopes – UNISINOS

Laura Cecília Lopez – UNISINOS

Anna Paula Vencato – UNIMES

Henrique Alexander Grazzi Keske – UNIVERSIDADE FEEVALE

(Orientadora) Miriam Steffen Vieira - UNISINOS


Dedico a todos que são fora do padrão.
Como eu, como você.
AGRADECIMENTOS

Meus sinceros agradecimentos a quem sabiamente me direcionou a


identificar um tema tão apaixonante e soube gerenciar meus devaneios, Prof.ª Dr.ª
Miriam Steffen Vieira.
Aos professores da banca avaliadora na Qualificação e agora os da Defesa
Final, pelo esforço incondicional da leitura em busca de melhores rumos.
A todas as interlocutoras que gentilmente compartilharam suas experiências
pessoais, que por motivo de sigilo não posso nomeá-las.
Um carinho especial à Celeste Forte, professora da UniCV, pelos
direcionamentos enquanto eu estive em Mindelo. E a todos que dela saíram
amizades que permanecerão comigo.
Agradecimento especial a CAPES/AULP pela experiência inigualável ao me
proporcionar uma imersão cultural e resgate de dados para enriquecimento na
compreensão do pensar nesta pesquisa e outras perspectivas de estudos
comparativos que se desmembrarão desta.
E a toda a equipe do PPGCS que tive contato durante o curso, pois graças
as exigências intelectuais, me fizeram enxergar com mais clareza a complexidade do
mundo.
“Pela corporeidade, o homem faz do mundo
a extensão de suas experiências”
(BRETON, 2010, p. 8).
RESUMO

Fundamentada pelo campo das ciências sociais, esta tese tem como tema
de investigação, a relação entre gênero e moda, através da perspectiva orientada
pela mídia sobre a transgeneridade. Instigada pelo lugar da aparência construída por
meio do uso de signos estéticos, a inquietude teórica é estabelecida na noção do
corpo em permanente negociação com modelos estabelecidos, conforme o sexo
designado ao sujeito no seu nascimento. Este estudo objetiva investigar os
princípios do sistema de moda inseridos nos estudos de gênero, o qual propõe criar
um panorama da inserção do corpo e sua identidade relacional a partir das
experiências vestimentares, estas, orientadas pelas instâncias da cultura material. A
tese também focaliza se tais sujeitos dados como masculinos e que transitam nas
dimensões de gênero pela estetização pessoal através de recursos de enfeites que
são convencionados ao universo das mulheres, projetam um arquétipo feminino para
a sua produção visual. Para tanto, parte-se de uma pesquisa exploratória,
envolvendo uma revisão bibliográfica interdisciplinar para gerar pontos de conexões
entre as principais áreas dos saberes: ciências sociais, estudos de gênero,
antropologia do consumo e noções da estética; associada a uma busca em campo,
na qual o universo empírico é constituído por transgêneros da associação Brazilian
Cross-dresser Club, bem como, por interlocutoras que identificam-se pela prática,
além do resgate de relatos das que expuseram suas experiências em biografias ou
em redes sociais. Por meio desta investigação, tem-se como um dos principais
resultados alcançados, a validação da importância dada à linguagem visual, quando
exercida sob um ângulo de observação de discurso social dado pela categoria
binária de gênero. Nesse espaço de expressão e negociação com o meio, a prática
de cross-dressing redimensiona os efeitos sociais já que conduzem a imagem
pessoal para uma nova hierarquia dentro das dimensões políticas, em um processo
constante de luta pelo reconhecimento.

Palavras-chave: Cross-dressing. Convenções. Gênero. Moda. Corpo.


ABSTRACT

Grounded by the social sciences field, this thesis has as its investigation
theme, the relation between gender and fashion, through the perspective guided by
media regarding transgenderism. Instigated by the role of appearance build by the
use of aesthetics signs, the theoretical restlessness is stablished on the notion of the
body in a permanent bargain with the established models, according to the gender
designated at birth. This study investigates the principles of the fashion system
inserted in gender studies, which proposes to create a panorama of body and its
relative identity from clothing experiences, and those, guided by the instances of
material culture. The thesis also focus on if such subjects, labeled as masculine and
that transit on the dimensions of gender through personal aesthetic choices that
conventionally belong to women’s universe, projects a feminine archetype for their
visual production. Therefore, it starts from an exploratory research, encompassing an
interdisciplinary bibliographic revision to generate the connection points between the
main knowledge areas: social sciences, gender studies, consume anthropology and
aesthetic notions; associated with a field research, on which the empirical universe is
constituted by transgenders from the association Brazilian Cross-dresser Club, as
well as by interlocutors that identify themselves through this practice, besides the
collection of reports shared on biographies and social networks. Through this
investigation, one of the main results achieved is the validation of the importance
given to visual language, when exerted by an angle of observation of the social
speech in which gender classification s binary. On this space of expression and
negotiation with the environment, the practice of cross-dressing gives a new size to
the social effects, since it takes the personal image to a new hierarchy within the
political dimension, in a process of constant struggle for recognition.

Key-words: Cross-dressing. Conventions. Gender. Fashion. Body.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Quatro frames em sentido horário do vídeo Troca-Troca, de Daniel Toledo


.................................................................................................................................. 28
Figura 2 – Gravura de um personagem representando o estilo Macaroni e um
trabalho do porcelanista Franz Anton Busteli ............................................................ 53
Figura 3 – Chevalier d'Éon e suas facetas femininas ................................................ 55
Figura 4 – Barbette se produzindo e em uma de suas performances ....................... 64
Figura 5 – Flávio de Carvalho e seus apelos artísticos ante a ditadura das
tendências vindas do Hemisfério Norte ..................................................................... 66
Figura 6 – Cenas em palco do Dzi Croquetes ........................................................... 67
Figura 7 – Capas de revistas internacionais com Andreja Pejic, com dizeres sobre
quebras de barreiras de gênero ................................................................................ 75
Figura 8 – Editorial com casais transgêneros para a Barneys New York: Edie Charles
e May Simon; e a direita, Katie Hill e Arin Andrews .................................................. 77
Figura 9 – Pintura de um Onnagata datada de 1799 e a direita outro registro, já do
século XX ................................................................................................................ 116
Figura 10 – Exemplos de hijras ............................................................................... 122
Figura 11 – Entusiastas do espartilho masculino: Fakir Musafar e Mr. Pearl .......... 129
Figura 12 – Lady Warhol ........................................................................................ 139
Figura 13 – Uso de estigmas como reinvindicação de visibilidade.......................... 160
Figura 14 – Captura de telas dos filmes Call her Savage e Morocco, respectivamente
................................................................................................................................ 167
LISTA DE SIGLAS

ABNT Associação Brasileira de Normas Técnicas


ABRAT Associação Brasileira de Transgêneros
BCC Brazilian Cross-dresser Club
CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
CRS Cirurgia de redesignação sexual
FASM Faculdade Santa Marcelina
FIT Fashion Institute of Technology
HBIGDA Harry Benjamin International Gender Dysphoria Association
LGBTTT Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros
MAM Museu de Arte Moderna
MEC Ministério da Educação
PPGCS Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
SICAPES Sistema Integrado CAPES
SUS Sistema Único de Saúde
UNICV Universidade de Cabo Verde
USP Universidade de São Paulo
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 11
2 DIMENSÕES SOCIAIS DA MODA ........................................................................ 22
2.1 O VESTUÁRIO E SEUS SIGNOS ....................................................................... 26
2.2 IDENTIDADE ATRAVESSADA PELO CONSUMO ............................................. 33
3 O GÊNERO NA HISTÓRIA DA MODA .................................................................. 45
3.1 DO SÉCULO XIV ATÉ AS TENDÊNCIAS DE HOJE .......................................... 50
4 CONSTRUÇÃO DA APARÊNCIA ......................................................................... 79
4.1 CORPO ADESTRADO ........................................................................................ 83
4.2 FAZENDO O GÊNERO – A FABRICAÇÃO DO FEMININO................................ 88
4.3 APROPRIAÇÃO DO PRÓPRIO CORPO .......................................................... 102
5 CONVENÇÕES DE GÊNERO ............................................................................. 106
5.1 PARA ALÉM: LEITURAS ANTROPOLÓGICAS ................................................ 115
5.2 RELAÇÃO DE PODER...................................................................................... 122
5.3 IDENTIDADES PERIFÉRICAS E DIREITOS .................................................... 130
5.4 PADRÕES DE CORPOS PELA CULTURA DE MASSA ................................... 161
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 173
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 178
ANEXO A – PESSOAS QUE MENOS GOSTA DE ENCONTRAR ........................ 189
11

1 INTRODUÇÃO

A presente investigação tem como proposição maior, refletir sobre a


utilização das ferramentas comunicacionais do sistema de moda pelas cross-
dressers, possibilitando a expressão visual dentro de um espaço social, dentre elas,
a desestabilidade das convenções de gênero. Dessa forma, a pesquisa em questão
teoriza a noção de travestimento e as apresentações da prática dadas pela mídia,
em que as praticantes do sexo atribuído no nascimento como masculino se
apropriam de adereços considerados tradicionalmente pertinentes ao universo
feminino, resultando em um importante elemento de expressão. Comparativamente
ao termo travesti, popularmente a expressão cross-dresser ocupa um significado
menos atrelado à sexualidade e mais ligado à interferência da aparência pessoal,
bem como, atribui a elementos visuais sua própria agência de significados nos
signos do gênero. Atrelado a tal pensamento, forma uma cadeia de raciocínio sobre
a pessoa que modifica sua imagem e passa a encontrar ressonância na esfera
subjetiva, mais do que na fisiológica, em que a estrutura corpórea se transforma em
uma negociação com o meio. Assunto público, esse corpo transgressor é impresso
em um campo de disputa atravessado pela dominação masculina que se estabelece
pela via da heterossexualidade compulsória.
Para esta pesquisa, a palavra convenção é conceituada a partir dos saberes
de Hoggart (1973, p. 163), que define como “[...] o que permite a relação da
experiência com os arquétipos”. Na perspectiva de uma cultura fetichizada, tem-se
nos produtos, o imaginário coletivo da sua concretude. E para a expressão cross-
dressing, que em tradução livre apresenta cross como ‘atravessar’, ‘misturar’,
‘cruzar’, e dressing no sentido de ‘vestir-se’, ‘roupa’, ‘revestimento’, propõe o
conceito de trocas nas convenções do trajar, dirigidas a identidade de gênero. Tal
nomenclatura encontra eco na singularidade desta pesquisa ao apresentar um
significado mais amplo, logo, se mantém estrangeira, pois a sua tradução ao
português não representaria todo o conceito sobre a prática do travestimento. De
suma importância, é adotada como autoclassificação pelas interlocutoras e,
igualmente, tensionadas por elas. Desse modo, vê-se como uma palavra de
identificação que é relacionada com lutas por reconhecimento, e então, é aqui
utilizada desde esta perspectiva conceitual identificada em campo. Ademais, tem-se
12

como escolha, a escrita da palavra com o uso do hífen, tal qual: cross-dressing, para
evidenciar o processo de transição, e não apenas a prática.
No âmbito popular brasileiro, quem auxiliou nessa compreensão foi a
cartunista Laerte Coutinho, que desde 2009 expõe seu gosto pelo uso de roupas
femininas. Uma das precursoras sobre tal exposição na esfera pública, atualmente,
é uma pessoa que se identifica com identidade feminina, apesar de negar qualquer
apoio a rótulos. Em entrevista a um programa de televisão (GABI, 2012), a
apresentadora a chamou de cross-dresser e ela aceitou de bom grado, embora
ainda tenha se colocado como um transgênero, que segundo a própria, transita nas
fronteiras do feminino e do masculino, questionando alguns aspectos culturais ao
confrontar as convenções de gênero. Sua facilidade em permear por vários
ambientes e de ser respeitada como profissional faz com que ela seja uma
referência no meio, e despretensiosamente provoque pela transgeneridade, uma
forma de atuação como cidadã, quando desestabiliza a rigidez das identidades
tabuladas.
Laerte procura traduzir o cross-dressing como uma necessidade de vivenciar
códigos femininos. Honesta em relação a seus sentimentos e sem a preocupação de
precisar explicar aos demais quando não é questionada nas entrevistas, ela coloca
que não estava disposta a arquitetar uma blindagem para essa vontade. Para muitas
entrevistadas e estudiosos analisados, ela foi a responsável maior no quadro
brasileiro, a retirar do gueto e pôr em pauta essa questão com bastante naturalidade
diante da grande massa, já que sua credibilidade como pessoa pública, sua
eloquência e seu profissionalismo oportunizaram esse trânsito. Nas pesquisas in
loco, seu nome foi muito ressaltado como exemplo a seguir. Embora em um dos
encontros estabelecidos para esta tese, uma praticante que tinha vindo de São
Paulo e que estava de passagem em Porto Alegre, conhece Laerte pessoalmente e,
colocou que na sua visão, toda a atividade profissional desta ficou em segundo
plano, já que dificilmente a chamam para falar somente de seu trabalho, mas sim,
sobre o rumo de sua expressão estética e sexual (DIÁRIO DE CAMPO, 13/05/2015).
Vale ressaltar que esta pesquisa não possui o intuito de categorizar um
parecer sobre a essência do sujeito pela sua exterioridade. Diante do que será
apresentado, encarrega-se antes, de evidenciar alguns marcadores estéticos no
domínio da roupagem, que possibilitem recriar a própria imagem e, dessa agência,
proporcionar novas relações sociais. Aqui, debruça-se o olhar curioso e científico
13

sobre o contexto motivacional focalizando-o sobre a importância da representação


física sob a perspectiva do uso da aparência como uma forma de comunicação de
ordem discursiva. Mais do que trazer respostas, a proposta maior é gerar
inquietudes e repensar a limitação da concepção de gênero baseada na genitália. E
mais: visa questionar como, por meio do trânsito identitário, a customização corporal
pode manifestar-se e interferir na relação entre sujeitos. O entusiasmo por estudar
essas práticas discursivas que orientarão as análises está justamente na falta de
normatização desta experiência, já que esta se encontra regida, principalmente, pelo
processo de negociação com a vestimenta. Por excelência, o desafio desta
investigação está no recorte sobre estabelecer o papel da roupa e seus artifícios
estéticos na construção das dimensões de identidade de gênero em homens
praticantes do cross-dressing. Esse ineditismo também se desdobra na dinâmica
das comunicações visuais.
A justificativa da escolha das abordagens no que tange à adoção visual do
gênero feminino e toda esta concepção da experiência pelo viés da moda – campo
ainda incipiente1 e tão carente de articulações – é justamente realizado na intenção
de contribuir, pois são ainda escassas nas pesquisas nacionais. Vale colocar que,
atualmente, os meios eletrônicos facilitam a compreensão de massa sobre assuntos
que transitam nos estudos de gênero. Esta pesquisa doutoral quer potencializar isso,
trazendo como tema o corpo na esfera de disputas e visto como uma materialização
de relevância política que rompe com o juízo dominante, o qual entende que a
estrutura corporal deva seguir o seu destino anatômico.
Disso, o estudo que se desenvolve é feito sempre pontuando que os
possíveis leitores podem vir de variados campos do saber. Em vista disso, as áreas
de conhecimento são ancoradas por campos diferentes, e ao longo desta leitura,
será propositalmente visível a tentativa de diálogo entre diferentes bibliografias, para
incitar algumas aproximações e, para com isso, interpor uma visão interdisciplinar no
sentido de articular diferentes linhas de pensamento. Uma das principais
características de uma pesquisa exploratória é justamente a familiarização com as
abordagens e oportunizar a aptidão para construir novas hipóteses. Parte disso

1 O primeiro curso superior em moda autorizado pelo Ministério da Educação foi na Faculdade Santa
Marcelina – FASM em São Paulo, com legislação de abertura em 14/08/1974 e iniciado somente no
final da década de oitenta (MEC, 2013).
14

nasce pela urgência do descolamento do senso comum estudado, a respeito do


reducionismo da moda como uma disciplina prática.
Também, o modo de escrita desta pesquisa é residual da própria abordagem
teórica da moda: apropria-se de diversas outras áreas de pesquisa das quais se
sustenta, uma vez que esta nem mesmo existe como Área de Avaliação no Sistema
Integrado de Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal – SICAPES (2015). A
moda como área de estudo tem a sua dinâmica própria, é autêntica, questionadora e
lida sempre com a atualidade. Além disso, os que a estudam possuem esse perfil.
Diante disso, esta proposta foi a maneira encontrada para trazer a cientificidade
imprescindível ao trabalho, sem deixar de lado demais características já
mencionadas. Assim, atrelar-se às ciências sociais significa ampliar o campo das
experiências, permitindo discussões contemporâneas entre gênero, identidade,
cultura, estética, antropologia do consumo e, enfim, remete a uma pluralidade
complexa. Tudo isso é relacionado ao uso da roupa como uma interlocutora que
questiona as convenções de gênero.
Dito isso, algumas questões mostram-se norteadoras dos pressupostos
teóricos. Adota-se a pergunta balizadora sobre como se dá a utilização dos
ornamentos corporais pelas pessoas transgêneras e sobre até que ponto esse uso
interfere nas dimensões de identidade de gênero. Outra ponderação para a
problematização a se acrescentar remete aos conflitos que a cross-dresser tenciona,
levando em conta as expectativas sexuais ensinadas no espaço cultural.
Têm-se algumas formulações de hipóteses a serem confrontadas, dentre as
quais, a principal é questionar se a utilização de determinados elementos dados pelo
sistema de moda pelas praticantes visa a uma aproximação do que estas
consideram como a representação da figura da mulher. Opta-se por recursos
estéticos como estratégias para talvez afinar esse processo de identidade, na busca
de algum reconhecimento que ultrapasse os atributos biológicos. Tudo permite supor
que o desejo de ‘ser’ é muito mais do que ‘ter’, ou seja, os objetos tratados como de
uso feminino são desejados pelas cross-dressers, mas não pela sua funcionalidade.
Antes de tudo, pelo aspecto simbólico que auxilia na legitimação do ‘ser mulher’. O
consumo, desta forma, transforma-se em evidências de legitimação sociais e, nesse
debate, o ato de travestir sugere uma mudança não só externa, mas também
interna, a saber, no autoconhecimento. Outro ponto de partida dedutivo é questionar
se elas invariavelmente lidam com tensões por decorrência da aparência criada, já
15

que provoca a noção de um corpo inteligível. Disso, parece nascer um grande


dilema pessoal, pois na condição de mulher, elas se sentem moralmente mais
satisfeitas, porém rejeitadas no âmbito público. Já na figura de homem, estão
frustrados com sua imagem, porém são aceitos na sociedade. É somente com seus
pares que há de fato um espaço de conforto, no qual a busca pelo reconhecimento
transcende qualquer valor. Há com isso, um confronto para pensar de que maneira
esse funcionamento ocorre quando essa pessoa está em desacordo com sua
concepção sexual fisiológica.
Como últimas suposições que servirão de guia e que ainda serão
submetidas à verificação, o ato de ‘se montar’, conforme o termo êmico para
significar quando a pessoa está produzida com elementos ornamentais do sexo
considerado o seu oposto pela concepção binária, garante a encenação simbólica
de uma persona, que será sempre diferente dos atributos biológicos. Mesmo
podendo não ser permanentes e públicos, os recursos visuais femininos são trazidos
para a anatomia que demarca, mas rompe com a diferença sexual pelo binarismo.
De mesmo modo, são transferidos os estigmas. Sendo assim, a prática pode servir
como ponto de conexão entre a aparência, o vestuário, a identidade de gênero, o
desejo, a sexualidade, o corpo e as demais dimensões do indivíduo, possibilitando
uma eficácia simbólica de pertencimento.
Na linha de abordagem, o objetivo geral é analisar o modo de adoção
desses elementos estéticos pelas cross-dressers nas suas dimensões de identidade
de gênero por meio da construção da imagem pessoal. Dessa essência teórica,
desmembram-se nos objetivos específicos para então, trilhar uma espinha dorsal de
pesquisa. Um deles é fazer um levantamento histórico, articulando as dinâmicas da
moda pelo campo do gênero, para assim, compreender os significados das
construções identitárias pela perspectiva trans. Ainda, objetiva identificar o lugar que
o vestuário ocupa nessa prática, e reconhecer como o corpo se torna o principal
interlocutor desse diálogo. Por fim, pretende-se analisar as tensões e rupturas
sociais advindas dessa experiência identitária, fundamentadas por convenções
impostas pelo binarismo sexual e esclarecer quais são suas representatividades na
esfera pública e privada.
Partindo dessas interrogações sobre o gerenciamento das ornamentações
como evidências que vão interferir nas relações sociais, é que se inicia a revisão
teórica. No plano convencional, há uma variedade de eonismos compreendida nos
16

estudos de gênero, entretanto nem todas serão trazidas para este projeto doutoral
por uma questão de recorte da pesquisa. No intuito de evitar certas exotizações no
uso de nomenclaturas não consensuais, opta-se por não pré-delimitar fronteiras,
mas por expor algumas articulações e esclarecer a relação de poder que construirão
os aspectos que constituem as categorias. Logo, a estrutura dos capítulos é dividida
pelos conceitos norteadores. Cada subdivisão mostra os pilares da problematização,
conforme seus objetivos. Assim, nos pressupostos teóricos, as etapas a serem
seguidas levam em consideração um planejamento estratégico metodológico que
possa atingir as etapas básicas para responder ao problema. É por este percurso
científico que segue a investigação, visando uma sequência lógica e ágil de
operacionalização. Portanto, ao elaborar os pilares básicos sobre a moda pelo viés
da visualidade corporal, com as práticas sociais e os estudos de gênero, vê-se
necessário proporcionar quatro capítulos de premissas teóricas, além da Introdução
e das Considerações Finais. Todos eles indicam os principais caminhos de estudo
para então incorporar subseções teóricas. Para um melhor aprofundamento na
questão da sistematização do conteúdo, decidiu-se elaborar uma seção secundária,
sendo adotada a numeração progressiva, ou seja, há alguns capítulos segmentados
em subcapítulos, discriminando cada um dos fragmentos analisados.
Assim, vê-se relevante, em primeira instância, fundamentar a moda e suas
subjetividades como um sistema complexo, no qual a roupa se situa como uma das
fontes principais de expressão do indivíduo. Em nome de um nivelamento de
conceitos, o primeiro bloco de conteúdo visa pontuar a dimensão do sistema de
moda pelas narrativas visuais e pela lógica do consumo como produto dessa
engrenagem identitária. Ainda nesse espaço, pretende que a indumentária seja
entendida mediante diferentes significados, graças às perspectivas de uso. A partir
de uma breve contextualização histórica, o terceiro capítulo enfoca o local da moda
na construção das dimensões identitárias de gênero. Para tanto, faz-se necessário
expor algumas concepções básicas sobre o segmento, objetivando elucidar que tipo
de articulação é proposta no terreno das ciências sociais graças à trajetória no modo
de trajar os gêneros. O propósito disso é dar passagem para o seguinte capítulo que
relata as possibilidades de interferências visuais e a produção da imagem como
forma de ritual ensinado. Entende-se assim, a constituição da estética pessoal no
contexto da fluidez que traz um olhar sobre a dinâmica da constituição do sujeito.
17

Na sequência, este trabalho oferece com o conjunto de perspectivas que se


articula com os saberes anteriores, a apresentação do cross-dressing como uma
possibilidade de questionar as convenções de gênero ao utilizar adereços femininos
em busca de um repertório estético ritualizado que qualificará uma existência
desejada. Problematiza-se um espaço onde o homem, pelo determinismo biológico,
adota em contradição, elementos do vestuário feminino como uma forma de
expressão visual que vai produzir interferência nas suas conexões sociais. Essa
discussão perpassa algumas dicotomias, como o corpo anatômico e o simbólico, o
público e o privado e as demais instabilidades fornecidas pelo controle repressivo. E,
como deve ser, a tese se encerra com as Considerações Finais, retomando e
avaliando as principais discussões estabelecidas anteriormente.
Para o desenvolvimento deste estudo, algumas diretrizes devem ser
destacadas: a base de sustentação focaliza os pilares ciências sociais
(comportamento e relações sociais), estudo de gênero (identidade de gênero e
prática do travestimento) e moda (linguagem visual e consumo de signos). Do ponto
de vista dos objetivos demonstrados, a metodologia adotada pauta-se por uma
pesquisa exploratória que conta com uma revisão bibliográfica multidisciplinar, com
referenciais teóricos das principais áreas de conhecimento citadas. Além disso, há
as ramificações complementares que possibilitam uma reflexão sobre o uso de
elementos visuais sobre o corpo e acerca de como que essa prática pode ser vista
como um fenômeno societal.
Há de se levar em consideração as possíveis limitações deste percurso
metodológico. Por este motivo, para responder às problematizações apresentadas,
somam-se os procedimentos técnicos que consistem na pesquisa bibliográfica,
prioritariamente a partir de obras, teses, artigos científicos, revistas e filmes, com a
observação participante. O planejamento dos métodos definidos nesta realização
corrobora o desenvolvimento de uma pesquisa em curso que é qualitativa, de
orientação etnográfica, com coleta e análise de dados decorrentes da abordagem
dos fenômenos sociais. A técnica é sustentada por dois roteiros (um de observação
e outro de entrevistas), registros e análises das informações. O conteúdo teórico
auxilia na possibilidade aplicativa, permitindo desenvolver estratégias para as
análises dos dados levantados. (PRODANOV; FREITAS, 2013). Esse conjunto de
ferramentas metodológicas garante a interação com os membros que correspondem
ao seu objeto de estudo, por meio de um plano de entrevistas com perguntas
18

abertas e não estruturadas, sem tabulação para que os assuntos sejam trazidos à
tona conforme o interesse das respondentes, pressupostos do próprio método. Este
método conta com o auxílio de um Diário de Campo, no qual são registrados
conceitos chave durante as conversas, e assim que surge a possibilidade, de
imediato ocorre a transcrição literal para arquivos digitais. Em concomitância com as
leituras, os relatos são confrontados com pesquisa de autores estudados e postos
nesta pesquisa sem tomá-los como verdades absolutas, mas sim, para agregar na
forma de exemplos, as opções teóricas.
Tem-se clara a escolha do campo de análise, ao se delimitar pessoas na
orientação sexual de quem foi dado como masculino ao nascimento pelo seu órgão
genital, mas categoricamente sente-se pertencente ao gênero feminino. A título de
organização metodológica, será abordada somente esta via de interpretação de
categoria, deixando de lado o outro caminho: as nascidas com o gene feminino, mas
cuja identidade de gênero se assume como masculina.
As oportunidades de incursões foram feitas inicialmente graças ao endereço
eletrônico do Brazilian Cross-dresser Club – BCC, no qual o primeiro contato geral
foi encaminhado para a representante do Rio Grande do Sul. De todos os contatos
virtuais, somente sete ocasionaram efetivamente uma entrevista pessoal. Essas
entrevistas foram sendo aprofundadas no decorrer do período da tese. As
interlocutoras têm idades entre 35 e 582, com ocupações profissionais e hábitos de
consumo pertencem prioritariamente à classe B. Os encontros presenciais são
referentes às datas de 09/11/2012, quando ocorreu o primeiro encontro e
13/05/2015, quando aconteceu o último, todos realizados na cidade de Porto
Alegre/RS, com associadas ou não do mesmo clube, mas sempre praticantes, o que
oportunizou uma interessante troca de experiências. No decorrer dos resgates dos
relatos, optou-se por não revelar nomes de registro ou mesmo sociais, nem fotos,
por uma questão ética e para sugerir uma condição mais propícia de confiança. Pelo
mesmo motivo, não houve o uso de gravador, na intenção de não intimidá-las ou de
incitá-las a utilizar uma fala decorada e com filtros.
Dessas interlocuções pessoais, apenas uma não corresponde ao BCC. Ela é
transexual e aluna da universidade na qual a autora desta investigação leciona. Ela
é também líder de um coletivo local sobre transexualidade, que tem como área de

2 Idades referentes ao ano de 2016.


19

atuação lidar com as principais frentes do tema e encaminha as usuárias para as


devidas orientações, sejam elas jurídicas ou sociais. A ativista em questão é
bastante ativa na causa e diz proporcionar todo o tipo de suporte às transexuais
(DIÁRIO DE CAMPO, 05/07/2013).
Todos os momentos de encontro foram agregadores, pois até as conversas
que a priori fugiam completamente do escopo das perguntas, serviram para reflexão
sobre um plano mais macro, para compreender o cotidiano. Tem-se em mente uma
pesquisa qualitativa de orientação etnográfica “[...] enfatiza evidências
observacionais detalhadas” (YIN, 2011, p. 30), nas quais esses pormenores podem
transcender as respostas orais. O recorte focaliza também os gestos, a aparência e
outras sutilezas que merecem atenção. Essa questão ocorreu também na
manutenção do fórum online das associadas, no qual há todo o tipo de conversa.
Também por esse motivo, as entrevistas realizadas tornaram-se um material
confidencial e assim, não serão disponibilizadas na íntegra.
Além disso, foi também no campo que se confirmou a decisão pelo uso do
pronome feminino. A adoção das designações de gênero autoatribuída pelas
interlocutoras seria um sinal de respeito, ao passo que unanimemente, é utilizada
essa conjugação entre elas. O contrário é entendido como uma ofensa propositada –
mesmo sentimento descrito por Kulick (2008) durante a sua imersão. Em um plano
linguístico, as praticantes fisiologicamente demarcadas ao nascimento com o sexo
masculino, representaria uma contradição nas regras textuais. Todavia pela lógica
do trabalho, situa-se como um termo êmico, também porque o tema lida com a
aparência construída, indiferente inclusive, da orientação sexual.
Com este instrumento de dados primários, os autores teóricos escolhidos
vêm ao encontro de interlocuções com as principais áreas. Somadas a isso, houve
algumas indicações de leituras elencadas durante as entrevistas, por meio de
sugestões nos sites de grupos específicos, ou ainda, graças às divulgações de links
sobre notícias e/ou fotos do meio. Em especial, foi realizado acompanhamento das
atividades sugeridas na página pessoal de Norrie mAy Welby na mídia Facebook3,
considera a primeira pessoa no mundo a ser registrada legalmente como sem sexo
definido.

3 Disponível em www.facebook.com/faggyfaghag
20

Como acréscimo, esta pesquisa também segue os métodos de Bourdieu


(2003), quando postula que o investigador deve permitir se colocar em um real
cenário de problematização, onde na escuta orientada, tudo deve ser compreendido
como um sinônimo de novidade para identificar e manter o encantamento científico.
Nessa mesma linha de raciocínio, é importante a conscientização de variáveis que
exigem flexibilidade por um motivo simples: este projeto tem como objeto de estudo,
pessoas. E é também por isso, que Prodanov e Freitas (2013, p. 80) atentam para o
fato de que, “[...] à medida que a ação acontece, descobrimos novos problemas
antes não pensados, cuja análise e consequente resolução também sofrem
modificações, dado o nível maior de experiência [...]”. O convívio real reforça um dos
pontos interessante deste tipo de verificação, que traz a surpresa de certos dados,
não somente as respostas de perguntas já preestabelecidas.
Como contribuição à teorização, opta-se pelo emprego de materiais visuais.
Ao longo do desenvolvimento, o texto conta com o apoio de algumas imagens a fim
de elucidar a abordagem apresentada. Ainda, vale explicar o uso de figuras em uma
tese pelo motivo de que o próprio tema evidencia a visualidade, esta que está
invariavelmente ativada como pilar fundante da investigação proposta. E assim
como as figuras disponíveis podem ser vistas como um veículo de significação,
Loizos (2003, p. 138) também defende que os filmes devem ser percebidos como
documentos de pesquisa, já que são traços do complexo conjunto de
acontecimentos reais, onde “o mundo em que vivemos é crescentemente
influenciado pelos meios de comunicação [...] o visual e a mídia desempenham
papeis importantes na vida social [...] não podem ser ignorados”, alerta. Apoiado
nessa observação, tem-se como fechamento do trabalho, a adoção de um meio
audiovisual pré-existente com comentários focais, sobre a percepção de alguns
filmes de Hollywood compilados em um documentário, que retrata uma possibilidade
de influência massificadora sobre os padrões de corpos. Ambos os recursos visuais
aqui escolhidos, servem para dar aporte para uma melhor comunicação ao escrito.
Convergindo com os princípios da Linha de Pesquisa Identidade e
Sociabilidade do programa de pós-graduação em Ciências Sociais da Unisinos, vê-
se nesta pesquisa, uma possibilidade de intercambiar universos vistos inicialmente
de forma tão distantes. Na realidade, tais universos são bastante próximos, já que
um se utiliza do outro para manifestar-se como um discurso narrativo visual. Espera-
se então, construir saberes e desta forma, enriquecer as possibilidades de estudos
21

no meio acadêmico, tanto no âmbito da moda quanto no das ciências sociais, uma
vez que se propõe transportar teorias entre elas. Além disso, as reflexões
alimentarão a construção multidisciplinar teórica por meio de uma inserção
abrangente, possibilitando ampliar ainda mais as discussões, já que podem se
relacionar a outras áreas do conhecimento.
22

2 DIMENSÕES SOCIAIS DA MODA

Para dar início à reflexão proposta, é primordial colocar em pauta a


compreensão sobre o termo moda. Muito mais do que meros produtos de estética
passageira, a esfera desse termo contempla uma forma de comunicação cultural. A
partir do momento em que ela passa a ser vista como um manifesto de expressão,
então, torna-se um campo fértil para negociação entre os sujeitos inseridos em um
contexto social. Considerando que a palavra vem do latim modus, que significa em
linhas gerais, modos de fazer, essa conotação sugere uma amplitude nos estudos
sobre o entendimento do sujeito e suas relações sociais. Carregada de simbolismo,
trata-se de um conceito amplo e de inúmeras vertentes que por fim, define uma
multiplicidade de existências. Ao resgatar o amplo e escorregadio significado dessa
palavra, o desafio é trabalhá-la no seu sentido discursivo de expressão maior, que
traduz um fenômeno social de mudanças temporais na maneira do trajar sob a
influência do meio. Identificada no final da Idade Média, pode-se dizer que, antes
dessa época, era a simplificação da indumentária como sinônimo de um elemento
utilitário, sem alterações cíclicas coletivas, lideradas conforme os gostos vigentes da
nobreza como um princípio a ser seguido.
Nesse âmbito de discussão, Santaella (2004, p. 115) sintetiza: “Poucos
fenômenos exibem, tanto quanto a moda, o entrelaçamento indissolúvel das esferas
do econômico, social, cultural, organizacional, técnico e estético”. A semioticista é
uma das poucas que reluta em mostrá-la como um complexo fenômeno passível de
transitar nas áreas de estudo das ciências sociais. Para tanto, conta com o viés da
arte, os atributos de classe e as separações de sexo. A autora sugere que nenhuma
outra experiência pode ser mais eficaz para servir de testemunho das vontades, e
que desperta ao mesmo tempo, fascínio e alienação. Filha preferida do capitalismo,
para ela, a moda transfere uma estreita e invariável relação com a aparência, já que
ela é um traço permanente e sempre remodelada pela cultura. Instrumento de
integração, ela também antecipa uma série de narrativas advinda de um conjunto
entrelaçado pela lógica do impulso, direcionando os requisitos corporais de uma
época e de um local. Nesse fluxo subversivo de superação da manutenção do
desejo, o importante é a recusa o antigo para dar passagem ao que é mais novo e,
consequentemente, ao melhor. Os princípios de renovação permanente têm bases
em especial, nas classes sociais, ocorrendo um ciclo nervoso e incessante de
23

criação, imitação e renovação toda vez em que há a perda da posição privilegiada


pelos objetos de distinções. A moda nasceu desse propósito e até hoje não se
desvinculou por completo dessa estrutura. Nesse sentido, ela trabalha nos dois
âmbitos, tanto para evidenciar as diferenciações quanto para negá-las; além disso,
esses sinais de envolvimentos podem se dar pelos códigos indumentários.
Ao desvincular essa ideia da moda de um único significado replicado no
consenso geral, restrito à banalidade de estilos efêmeros de consumo, e ao
compreendê-la de forma mais ampla como um manifesto social, é possível perceber
então, que assume distintas formas de expressão. Assim, conquista o poder
subjetivo de se afirmar em inúmeros espaços onde opera a visualidade e ainda
transita com propriedade e sem barreiras nessas variáveis. É a forma mais visível de
consumo e talvez por isso, seja a forma que mais fielmente reproduz as condições
de pertencimento do sujeito. Ciclo constante de transitoriedade de gostos para
garantir a diferenciação na vida urbana, a moda concede a maior produção
simbólica que pode expressar na relação sujeito-objeto.
Vale refletir por que a moda é ainda pouco explorada nas áreas humanas, já
que ela é um complexo acontecimento que exibe os sentimentos identitários dos
sujeitos inseridos em uma sociedade. Algo tão própria da cultura e, ao mesmo
tempo, tão martirizada como sinônimo de frivolidade – embora talvez o cerne da
questão esteja exatamente aqui. O excesso de familiarização dificulta enxergar sua
potencial significância, pois “[...] ela é tão integrante do nosso cotidiano que
acabamos por não mais pensar nela, e, em todo caso, por não pensar em fazer dela
a esfera de uma reflexão filosófica, sociológica ou psicológica de qualquer
amplitude” sugere Monneyron (2007, p. 12). Assim como parece estar intrínseca no
cotidiano de uma forma ou de outra, ainda é pouco distinguida como uma área digna
de profundos estudos. Além do mais, também é popularmente posta como uma
dinâmica que somente alguns têm a permissão de participar, mobilizando os que
estariam de fora dessa concepção como um elemento de discurso arbitrário.
Na tentativa de defender a importância da moda no campo da sociologia,
mesmo que nem sempre esta relação seja objetiva, Erner (2005, p. 15) chega a
ironizar:

Os sociólogos são pessoas sérias; não têm tempo para seguir a moda [...]
Por vezes, o mundo da moda ignora a sociologia [...] Portanto, o universo de
Zara e de Chanel raramente é explorado pelos sociólogos. Todavia, a moda
24

é um objeto perfeitamente legítimo para a disciplina que tem por tarefa


entender o social.

Ele expõe três alicerces básicos para tal engrenagem mover-se:


arbitrariedade, distinção e imitação. Produto de um imaginário que transfigura um
objeto, a moda opera os julgamentos de valores de maneira complexa. É um
mecanismo de negociação bastante único, que não se utiliza a palavra falada, já que
tem base em fatos, e como seu pressuposto, reflete os acontecimentos vigentes em
mercadorias. Ao mesmo tempo, a lógica de antecipações de desejos sobre escolhas
ainda faz um consumidor ter como sua melhor justificativa para mais uma nova
aquisição o ‘porque sim’ ou ‘porque eu mereço’. Como um dos princípios da
sociedade moderna é a autonomia, o sujeito situa-se perante os demais por meio de
sua aparência. Assim como é libertador, o autor acredita que a responsabilidade da
autoimagem como prolongamento da identidade mostra-se um grande peso na
definição deliberada de estilo de vida de cada um.
Em face disso, Svendsen (2010) dá uma particular atenção à emergência do
conceito de moda ser entendido, por definição, como objeto de investigação. Mas
não raro, a simples conexão dela com a cientificidade já soa estranha para muitos,
garante. Arena de reinvenções que brinca com a lógica da conformidade versus
individualidade, a proposta é supor que a moda e seus elementos de suporte
transcendem objetos os quais são sobrepostos na pele para as três principais
finalidades: proteção, enfeite e pudor. É sim, ferramenta pela qual as pessoas
deixam-se manipular na aparência, de acordo com as circunstâncias. Além disso,
possui o poder de compilar e transmitir saberes de um determinado tempo e espaço.
Visto isso, não é demasia asseverar que a moda é um sistema que reflete o
entendimento de mundo e que testemunha a passagem humana na história,
retratando comportamentos de uma época. Ela auxilia a compreensão da própria
trajetória do ser humano, pois acompanha e condensa as sensibilidades da cultura.
Então,

[...] em vez de limitarmos nosso olhar à esfera das roupas, considerarmos


que esse fenômeno invade os limites de todas as outras áreas do consumo
e pensarmos que sua lógica também penetra a arte, a política e a ciência,
fica claro que estamos falando sobre algo que reside praticamente no centro
do mundo moderno (SVENDSEN, 2010, p. 10).
25

Especialmente por se tratar de um princípio de fácil deslocamento e


universalmente praticado, é um fenômeno que consegue transitar livremente nos
mais variados lugares, já que tem passagem livre e assume distintas formas de
manifestos.
Sobre isso, alguns nomes foram essenciais para iniciar o despertar dessa
compreensão científica. Um deles foi o de Gilda de Melo e Souza (1987),
considerada a precursora nacional a historicizar a moda e divulgá-la como uma forte
linguagem abstrata. Seu ensaio sociológico foi fundante para disseminar no âmbito
brasileiro, uma nova forma de enxergar a moda como um campo do saber nas
teorias, perpassando pelas frivolidades femininas. Ela se especializou nas distinções
das classes sociais do século XIX por meio de seu entendimento sobre a elaboração
de competição social e sexual. Resultado de sua tese ‘A moda no século XIX: ensaio
de sociologia estética’ defendida em 1950 na Universidade de São Paulo – USP,
pelo curso de Filosofia, Ciências e Letras e orientado pelo professor Roger Bastide,
foi necessário que ela esperasse mais de trinta anos para ter o devido
reconhecimento intelectual no formato de um livro, até hoje bastante
contemporâneo. Na ocasião, seu trabalho recebeu severas críticas assim que
lançado, além de sofrer o descrédito da vocação acadêmica, muito em função por
ter sido escrito por uma mulher, como explica Pontes (2004, p. 21):

Na hierarquia acadêmica e científica da época, que presidia tanto a escolha


dos objetos de estudo quanto a forma de exposição e explicação dos
mesmos, a tese de Gilda estava “condenada” à “derrota”. “Profana” e
“plebeia”, a moda, na escala de valores e legitimidade atribuídos por esse
sistema classificatório, encontrava-se em uma posição diametralmente
oposta ao tema da guerra que Florestan escolhera para a sua tese de
doutorado, atividade masculina por excelência, “sagrada” e “nobre”.

A autora dessa declaração está se referindo à inevitável comparação feita


entre a pesquisa de Gilda e a do sociólogo e político Florestan Fernandes, seu
colega naquele período que defendia sua tese ‘A função social da guerra na
sociedade Tupinambá’ e que fez avaliações positivas, mas também críticas ao
trabalho da pesquisadora. Diferente de Gilda, ele foi rapidamente reconhecido pela
sua produção intelectual, mesmo que no trabalho de ambos houvesse qualidades
semelhantes nas bases sociológicas fundadoras dos estudos realizados.
Com o uso de documentações como as interpretações de trechos de
romances, análises de gravuras, fotografias, pinturas, crônicas de jornais, entre
26

outros materiais, a tese dela foi reveladora para disseminar a moda como um
intrínseco demarcador social a partir de evidências históricas. Para Souza (1987),
muito porque a competição encontra-se em todas as camadas por meio da
aceitação ou rejeição de valores estéticos vigentes e locais. Em proveito disso, sua
investigação será uma das bases teóricas adotadas no capítulo 3.1, que disserta
sobre a história da moda pelas diferenciações de gênero.

2.1 O VESTUÁRIO E SEUS SIGNOS

Convém levar em consideração que a moda tem a possibilidade de estar em


vários campos, quando entendida como um dos indicativos de um espírito de tempo,
como na gastronomia, na engenharia, nos serviços etc. Todavia, é por meio da
roupa que ela encontra maior plenitude para se expressar. Seguramente, as vestes
são alicerce para servir de alimento para a alma, já que têm o poder de transmitir
mensagens culturalmente fomentadas, que ultrapassem a consciência do
mensageiro. São os únicos bens que são trocados todos os dias e que estão
bastante próximos da pele, tanto física quanto simbolicamente. Atuam
determinantemente na linguagem não verbal e fazem tornar visíveis os valores de
vida do usuário. O uso e a troca de peças transcende sua funcionalidade; caso
contrário, o consumo ocorreria conforme o ritmo do desgaste do produto e assim,
seria notoriamente reduzido. Sobre isso, Solomon (2008, p. 609) propõe uma
definição: “O sistema de moda consiste de todas as pessoas e organizações
envolvidas na criação de significados simbólicos e na transferência desses
significados para produtos culturais”. Logo, vestir-se é muito mais do que cobrir a
pele: é antes, uma forma de se expressar publicamente.
Esse sistema que consiste na produção, organização e transferência de
significados simbólicos permite diálogos entre pessoas e encontra ressonância nos
estudos de Barthes (2009), o qual extensivamente, criou uma forma atípica de
didática, quase matemática, para o entendimento do sistema discursivo vindo
especialmente da imprensa. A pesquisa resultou na obra ‘Sistema da Moda’,
publicada pela primeira vez em 1967 em Paris, e que é considerada até os dias
atuais, um verdadeiro dicionário para decifrar os desafios dessa linguagem. Os
indicadores desse estudo mostram que é viável extrair de uma frase simplória
publicada em revistas de moda popular, incontáveis decodificações mediante uma
27

metodologia bastante apurada. Graças á proposta de analisar a semântica por meio


de descrições, sem dúvida o autor foi um dos responsáveis por trazer mais peso
científico aos signos e nas áreas correlacionadas.
Para ele, o signo é a junção de significado e significante, cuja unidade se faz
na relação significante. E, embora o sistema de sentido requer saber que os objetos
possuem um potencial de significação, não o faz de forma autônoma. É antes,
atravessado pelo meio linguístico. A condição de análise volta-se para a linguística e
para isso, passa por noções de reconhecimento, quando alega que o vestuário
funciona como máscara para o corpo, sendo dessa forma, uma disposição poética
de grande investimento ao usuário. O código indumentário é então, tanto a
representação de um objeto quanto o amparo sobre o qual este é lido. Pela
complexidade, é necessário observar sua completa extensão, que reverbera em
toda sintaxe de elementos. Ou seja, é inviável haver uma comunicação sem signo. E
para ele, a moda é o grande sistema de signos, talvez o maior, que é segmentada
em variadas análises. Uma delas diz respeito às funções e situações,
desmembradas em situações ativas e festivas, em que elas são concretizadas pelo
sujeito sobre o qual supostamente age:

O fazer da Moda é, de alguma maneira, abortado: seu sujeito é atormentado


por uma representação das essências no momento de agir: de certo modo,
vestir-se para agir é não agir, é exibir o ser do fazer, sem assumir sua
realidade (BARTHES, 2009, p. 369).

A motivação do signo também se estabelece na ordem entre significante e


significado. Em alguma medida, só será sabido, por exemplo, que o calçado de salto
alto e bico fino é um artefato predominantemente feminino, quando houver o
gerenciamento pelo observador a um processo de interpretação conforme suas
associações anteriores de atribuição de valor. Essa negociação é permanente com o
seu meio, onde o significado é relacional. Em uma perspectiva retórica, quanto mais
mítica a peça for à sua função, mais ela está mascarando seu signo. Mediante uma
análise semiológica, a saia é outra peça do guarda-roupa bastante representativa
nos estudos de gênero. Em uma agência material em que ela seja o significante, e a
feminilidade, um significado, está aí posta uma produção de signo.
Objetos de mediação, o ato de trajar é carregado de valores dados. Para
representar isso, vale evocar o artista Daniel Toledo, o qual propõe, por meio de
28

uma performance audiovisual com oito integrantes, alternados entre homens e


mulheres, que vistam as roupas assim deixadas pelo que se despiu ao seu lado. O
vídeo, que faz parte de um de seus trabalhos sobre a presentificação do corpo,
somente acaba quando cada um prova todos os conjuntos. Esse experimento
percorre cerca de dez minutos. Aparentemente banal, toda a vez que as peças
femininas estão em corpos masculinos, a estranheza é inevitável. O que movimenta
é o corpo; as peças permanecem nas mesmas posições, ocasionado momentos de
nudez que também despertam no mínimo, alguma atenção. Diante disso, Barthes
(2009, p. 382) busca, em outros filósofos, a conotação do corpo nu e coberto: “Hegel
já sugerira que ele mantém uma relação de significação com o vestuário: como
sensível puro, o corpo não pode significar; o vestuário propicia a passagem do
sensível ao sentido; digamos que ele é o significado por excelência”.

Figura 1 – Quatro frames em sentido horário do vídeo Troca-Troca, de Daniel Toledo

Fonte: Toleto (2008).

A partir do momento em que a pessoa se cobre com as roupas e os


adereços, propõe um discurso visual o qual a representará perante os observadores.
Esses enunciados mostram quem é e/ou como ela gostaria de ser, e dessa forma,
ser lembrada como tal. Ancorado nessa ferramenta, o sujeito cria percepções a fim
de transmitir atribuições pessoais. As vestimentas nesse sentido, oportunizam
projetar as fantasias e ampliar a imaginação, para mostrar aos demais,
29

determinadas autoatribuições uma vez que estas são concebidas para transmitir
alguma mensagem do usuário que as porta. Em nome de um respaldo social, a
aparência é permanentemente alterada em nome de uma aceitação, já que as
pessoas vivem em grupos e são dependentes disso em maior ou menor grau. A
roupagem equivale a protestos silenciosos em que se vestir passa a ser um
enunciado de valores, não apenas um apelo estético.
Tais abordagens sobre a comunicação visual são propostas, entre outros,
por Bourdieu (2009), de que aqui, se faz uso, já que os estudos desse sociólogo
versam sobre as lógicas das produções simbólicas e acerca das reproduções de
valores. Como formas de classificação, os símbolos e suas apreciações estéticas
contribuem para a condição da integração social, já que constituem um instrumento
de conhecimento.
Segundo essa perspectiva, os objetos podem ser dotados de sentido,
todavia, as apropriações de sistemas simbólicos se definem pelo uso e pela relação.
A atribuição de sentido depende de uma perspectiva situacional, bem como, os
mecanismos de percepção pressupõem os juízos estéticos. Assim, invariavelmente
atrelado às distinções, o gosto implica um poderoso indicador de posição social e
categoriza a condição de existência individual.
O autor ainda defende que a eficácia do julgamento deriva do
reconhecimento de signos validados por agentes definidores de disposições
estéticas, que são compreendidos como um conjunto de normas incorporadas pela
experiência. O reconhecimento é então, produto de um princípio de classificação
associado à posição no campo. Dessa maneira, a experiência provém do sujeito,
inserido em um contexto. Assim como no campo artístico, a criação e a reprodução
poderiam existir tanto nas coisas quanto na leitura do observador. Ou seja, há uma
linguagem regulatória.
Em contribuição, Proni (2008) alega que o vestuário tem sempre um
propósito comunicativo, pois pela semiótica, é tudo do que o sujeito se apropria para
se comunicar e tudo que possui um sentido dentro de um contexto. Para sustentar
alguns signos, como o de ‘ser uma verdadeira mulher’, isso precisa ser consistente,
mesmo que isolado. A roupa sempre será um signo; logo, vai representar algo para
alguém, já que emitirá significados conforme o repertório cultural do observado e do
seu observador. De novo: uma saia só será um pedaço de tecido se nunca antes
fosse vista e ensinada em um cenário social. Quando familiarizada por uma
30

sociedade, ou seja, quando vários intérpretes lhe atribuem um sentido, pode remeter
à sensualidade velada, à devoção religiosa, à vulgaridade explícita etc. Há
representatividades de acordo com o que for previamente dado. Mesmo havendo
uma margem de subjetividade na atividade interpretativa, esta derivará
prioritariamente, de um saber incorporado, já que “O sentido é uma condição
humana, o significado é um fato social” (PRONI, 2008, p. 158); e mais: o significado
ordena o sentido. Acima de tudo, há uma correspondência que orienta códigos
indumentários, e esses são organizados por semelhança e oposição. Cada
sociedade define o que lhe é feminino em resposta ao que é masculino, por
exemplo. Não é de hoje o pensamento de que um objeto possui uma conotação
neutra, já que não conduz inerentemente significação social, mas sim, é da forma
como é usado na conjuntura que nascem as produções de sentido. Cada objeto
deve ser lido conforme o seu contexto cultural e temporal. Se a moda adquire uma
representação isolada, é porque esse sentido de comunicação antes do uso só
ocorreu porque houve um ensinamento sobre este. Quando na vitrina, uma bolsa de
alguma marca renomada passa esplendor e um desejo de consumo inatingível, é
porque o observador já tem uma perspectiva cultural criada para ela. Para um nativo
isolado que nunca viu algo daquela natureza, não faria sentido algum.
Sobre isso, há repertórios criados tão densos que são quase como
uniformes, pois negociam questões éticas de reconhecimento com uma forte
atribuição de sentido. De forma arbitrária, o usuário precisa ser merecedor dessas
insígnias, uma vez que a mercadoria vai emprestar uma comunicação mediante o
uso. Depois de inserida nesse território de princípios, cada peça pode ser
responsável por um imaginário. O momento de uso do vestuário pode valer uma
reflexão sobre um motivo: a crença na passagem de ano, uma entrevista de
emprego, um primeiro encontro amoroso, festividades familiares e incontáveis outros
eventos que, por preverem a socialização, deixam latente um querer mostrar. As
vestes, quando inseridas em um contexto social, são místicas, com seus poderosos
códigos estabelecidos pela relação. A crença é inventada, todavia o sentimento é
real: a fé na paz emocionará mais, se a pessoa estiver vestida de branco na virada
de ano; a postura do candidato em uma entrevista será mais confiante se ele estiver
com seu ‘casaco da sorte’. Com significações dadas, o vestuário passa a ser a
própria representação e por este motivo, provoca novas posturas ao usuário. Esses
arranjos comunicativos são tão penetrantes que o comportamento do protagonista
31

pode se modificar de acordo com o que estiver usando, adaptando-se e agindo da


maneira mais conveniente que possa se encaixar.
Um objeto novo e sozinho é livre de passado, mas no momento em que
alguém àquele adere, começa a fazer parte do enredo de vida de quem o adquiriu,
auxiliando a narrar a história e as perspectivas. A roupa assim, torna-se memória e
evoca sensações. Ela já foi considerada patrimônio familiar, e mais, moeda de troca
de grande peso e poder, lembra Crane (2006). Até hoje, mesmo que de menor
importância, pode funciona como uma herança, nem tanto pelo seu valor financeiro,
mas pelo apelo emocional, por meio do qual repassa o legado do doador à pessoa
que recebe os trajes. Desvinculada do sujeito, as vestes têm a capacidade de recriar
a presença de seu dono, e passam a ajudar a contar sua biografia.
Da mesma forma que a roupa é capaz de potencializar certos elementos
visuais atribuídos ao gênero, Lurie (1997) defende por meio de seus princípios
binaristas, que essa pode ocultar, como acontece no ramo militar, por exemplo. Das
mulheres que querem impor-se nesse e em outros ambientes dominados pelos
homens, são exigidas uma postura em paralelo com uma aparência não
popularmente associada aos apelos sexuais. Não por coincidência, a imagem
mostrada nas mídias populares, quando se quer identificar uma mulher bem-
sucedida, é de uma referência que remete a uma exagerada masculinidade. Objetiva
uma definição sobre o padrão de competência, que implica a abdicação de mostrar a
pele, de não evidenciar a silhueta e de esconder os cabelos, para encaixar-se nas
expectativas distinguidas pela anatomia. Na mesma instância, ao retratar um
homossexual, facilmente vêm à mente, opções de signos bastante efeminados.
A indumentária proporciona uma conversação proposital entre os sujeitos,
vinculando-os de certa forma. É possível acontecer de o observador não conseguir
colocar em palavras o que está vendo, mas, de igual forma, haverá uma
interpretação, pois assim como em um discurso que se utiliza da fala, o não verbal
também elabora dialetos visuais. A comunicação visual igualmente possui uma
gramática e um vocabulário próprios. A essa interlocução, é atribuído um sentido de
discurso, assim como a qualquer ensaio comunicativo que possui uma transmissão
de sinais. Essa prática social é compartilhada com a finalidade de interagir com o
próximo, desencadeando uma troca de experiências e concepções:
32

A comunicação necessita, para transcorrer entre os sujeitos sociais, de uma


espécie de ‘escritura’, ou seja, de certa codificação reconhecida entre os
sujeitos de uma mesma sociedade que os leve ao entendimento das
mensagens ali estruturadas, depositadas de modo a compartilharem
significados no mundo (CASTILHO; MARTINS, 2005, p. 43).

Indiferente ao motivo inicial dessa interferência visual, toda escolha tem o


poder de traduzir e mostrar o que se pensa, e a roupagem é o meio mais visível
dessa manifestação. Há a produção e uso de signos, por meio de elementos
vestíveis, que auxiliam na construção do sujeito como ser pertencente a uma
sociedade. Esses embrulhos de ordem discursiva tornam-se um campo fértil para
enunciações comunicacionais, uma vez que o ser humano possui uma carência nata
dessas projeções. Os autores acreditam que há uma necessidade inerente das
pessoas em querer significar, evocando enunciações estéticas, no intuito de criar
palavreados visuais, e, dessa maneira, mediar uma comunicação não verbal.
A presença da vestimenta na aparência humana influencia o relacionamento
do sujeito com seu meio, e, ao aproveitá-lo como uma estrutura discursiva,
potencializa uma simbiose com a roupagem. Indissociável, esse invólucro recriado
pelo próprio portador, acaba por se tornar manifesto que se internaliza, a ponto de
fazer parte do indivíduo. As roupas podem ser vistas como objetos modeladores que
revestem e trabalham sobre o corpo, transformando-o em uma espécie de
materialização da memória. Emblemática, a roupa recebe a marca humana, que se
relaciona e imprimi as marcas do usuário. Essa é a visualidade do ser humano na
sociedade em que ele se encontra, contracenando simbolicamente com os demais
que também se manifestam visualmente.
Os arranjos pertencentes à comunicação visual permitem ao ser humano
uma vasta gama de possibilidades interpretativas. Os elementos de ordens
discursivas são depositados nessa comunicação estética, aliados a um profundo
investimento psíquico que autoriza novas formas de ser e de se mostrar, por meio
de experiências em níveis visuais, que promovem o traje como instrumento
comunicativo. A relevância conferida entre os objetos e seu suporte pode ser vista
também como um conjunto de combinações visuais que manifesta uma visão de
mundo.
O sujeito, quando revestido, sugere uma figura enigmática e complexa,
coberto de representações culturais. Vale colocar que a linguagem não é privilégio
apenas da comunicação oral. Mesmo destituída de fala, a comunicação visual
33

também denota uma espécie de oratória; a diferença é que essa se utiliza de


articulações visíveis a serem interpretadas. Pode, inclusive, ser mais pertinente do
que a falada, já que, muitas vezes, sua sistematização escapa de alçada pessoal e a
torna fiel no seu sentido. As enunciações conseguem alterar a estrutura física de
inúmeras maneiras e tomam por empréstimo um diálogo de natureza misteriosa, em
que os portadores dessas prerrogativas consentem tal mudança. A cobertura
vestível com uma intenção predefinida é legitimada pelo observador. Vestir-se é um
ato realizado de maneira deliberada, a fim de provocar o outro, o qual responderá da
mesma forma, adequando a sua assinatura pessoal. Todos os produtos eleitos para
ficarem próximos às pessoas carregam aspectos simbólicos negociados para
discursar em seus nomes.

2.2 IDENTIDADE ATRAVESSADA PELO CONSUMO

Está claro então, que o sistema de moda não trata somente de renovação de
estilos, mas de compreensões de si apresentadas imageticamente na sociedade.
Renovação de juízo de valores também, pois significa fazer uso de inúmeras
designações para a expressão do sujeito como um agente social, já que está
intimamente comprometida com a realidade, embora prefira se apresentar de
maneira lúdica. “O vestuário é parte do indivíduo, não algo externo à identidade
pessoal [...], As roupas são uma parte vital da construção social do eu” acredita
Svendsen (2010, p. 20). Na busca pela completude, o vestir e as respectivas
transfigurações temporárias acabam fazendo parte da constituição do indivíduo,
tornando-se um desdobramento dele. Muito em função de que supostamente, no
processo de escolha dos adereços corporais, há uma relação íntima com o ego,
sendo desde muito tempo, sinônimo de autocontrole. A pessoa coberta situa-se
como parte fundante na construção da identidade, todavia, é de se acrescentar que
a atribuição de significado da nudez será paradoxalmente, sempre proporcional à
indumentária. É isso que o autor vai chamar de ausência visível. Guardadas as
devidas inflexibilidades nas regras culturais, a construção da aparência pessoal é
completamente livre. Ela mobiliza símbolos e se expressa através deles, mas na
mesma instância, torna-se uma grande responsabilidade, pois sua superfície
depende somente da própria pessoa.
34

Merece reforçar o fato de que o uso de peças só terá significados para


aquele que reconhece sua oferta de valor simbólico e que decodifica o capital
cultural. É tornar visível um signo de pertença, ancorado nos midiáticos propósitos
sociais; alguns bens suprem certas necessidades subjetivas, pois servem como um
veículo de interação. Aspirante a membro de um grupo, para se expressar no âmbito
social, o sujeito é dependente de produtos externos como parte do corpo. Por essa
razão, não resta dúvida, para Svendsen (2010, p. 20) de que “A identidade não é
mais fornecida apenas por uma tradição, é também algo que temos de escolher em
virtude do fato de sermos consumidores”. Insistentemente, o autor reflete a
importância dos símbolos na linguagem e como resultado, da construção da
identidade.
Ao explorar as aquisições sob um viés pelo fenômeno social, compreende-
se que os consumidores fazem suas escolhas a partir da inserção na dinâmica da
cultura. Acima de tudo, os modelos de consumo estariam muito mais intrínsecos em
uma esfera social e os produtos só poderiam ser entendidos mediante a perspectiva
situacional. A análise do sistema de trocas decorre da relação entre pessoas, e
nesse ciclo permanente, pressupõe algumas configurações identitárias. Tamanha é
a carga de delimitação dos bens, que possibilita o afastamento ou a aproximação
entre pessoas. Contradizendo algumas conjecturas disseminadas em grande escala
no segmento da moda, é impraticável querer analisar a peça por si só ou fixar um
conceito pré-fabricado, já que “As roupas são semanticamente instáveis porque o
significado está diretamente relacionado ao contexto” (SVENDSEN, 2010, p. 80).
Sem se dar por convencido sobre a lógica da origem e atribuição do significado, em
momentos, o filósofo garante que é arbitrário e que reside na própria peça, porém
lembra a possibilidade do significado ser previamente algo elaborado.
Os discursos que na roupagem precedem envolvem a escolha compulsória
como tema central, encarregada do fluxo da variação e de mecanismos estimulantes
da novidade e substituição. O autor ainda indaga sobre as convicções tachadas
como supostamente autônomas, quando na verdade, tratam-se de um
disciplinamento social com raízes no contexto do sujeito. Ainda, questiona a
complexidade entre o binômio significante e significado em conformidade com regras
que são compartilhadas e que criam associações. Ao passo que o valor simbólico de
um objeto é dado pela sua inatingibilidade e exclusividade, outra parte é criada
35

graças ao compartilhamento como afiliação social, subordinado à regra da similitude


pelo gosto coletivo e classificatório.
Os adornos intensificam e ampliam a dimensão física e simbólica do seu
portador, e por extensão, da personalidade deste. Nesse âmbito, Simmel (2008, p.
62) entende que “não termina com os limites geométricos do seu corpo”, mas sim,
irradia e exterioriza o ser. Quando ornamentado, o sujeito é alargado na sua
concepção, e extrapola sua estrutura física como propriedade primeira do ‘eu’.
Consequentemente, ele é mais, é maior, é diferente e tem domínio quando em
contato com elementos estéticos. Ao expandir os contornos epidérmicos, provoca
também novos sentimentos, como a confiança ou vergonha. No início do século XX,
o autor já interpretava a moda como um fenômeno social que se concretiza por meio
da transitoriedade constante e obrigatória do gosto. Para ele, a moda consubstancia
uma complexa convergência de inúmeras dimensões da vida e, justamente por esse
mecanismo, é onipresente na vida dos indivíduos. É a forma derradeira da absorção
de conteúdos sociais e que pode se apropriar das aparências para estabelecer
relações entre seus portadores.
Na teoria simmeliana, os sujeitos que se vestem de forma semelhante, são
aqueles que espontaneamente vão se comportar de forma parecida também,
reconhecendo os juízos estéticos como intérpretes das manifestações da vida.
Assim, os adereços orientados pela moda permitem ao sujeito expressar-se pelas
interiorizações de valores culturais, a que ele vai chamar de novos disfarces. Esses
adornos preenchidos antecipadamente de significados culturais, possuem a função
de intensificar e tornar visível a personalidade do portador, uma síntese do ser, e
afinal, um subproduto da vaidade.
Já Sant´Anna (2007) ressalta a aparência como função determinante para a
filiação social e sendo assim, constitui e insere os sujeitos no mundo. Ela acredita
em uma ética de dimensão estética que constitui um ethos. De proporções
importantes, é na aparência que estaria a responsabilidade nas relações, sendo o
sistema de moda, a detentora que impulsiona essa ação do parecer que atua no
imaginário e é intrínseco a cultura. Diante disso, afirma que “A aceitabilidade social
desfrutada, por sua vez, corresponde ao grau de investimento realizado sobre a
aparência, constituindo esse esforço pessoal num capital [...]” (SANT´ANNA, 2007,
p. 77). Notadamente, a construção de uma visualidade mobiliza uma dimensão
36

identitária, e nesse sentido, socializada. É a exaltação de si e uma vontade de


presentificação de ordem social.
Esse sentimento é potencializado no mundo atual, em que a imagem
constrói uma estrutura mítica do sujeito, e em que os objetos de consumo os
dominam em um espetáculo ilusório. Estimular a compra é mais do que atender
necessidades; são impulsos para constantes desejos de se projetar, na mesma
medida em que as mercadorias são revestidas de significados. Longe da
racionalidade, o ato da compra como uma ação social dispensa justificativas, ao
subjetivar o imaterial em mensagens de autoexpressão por meio das posses. É
sobre esta ótica que a autora propõe um paralelo sobre a condição de integração
para constituir uma identidade pela suposta liberdade de escolha ser tão
fragmentada quanto a experiência estética. Constantemente redefinidos em um
mundo de imagens em forma de mercadorias, as pessoas entregam-se aos bens,
dando sentido a um estilo de vida imaginário. O exercício da aparência como
atributo de valor é uma das maiores estratégias de poder, atrelado às distinções das
configurações sociais. E, em uma hierarquia dos possuidores, aqueles sem a
apropriação das mercadorias são desencaixados nesse processo de domínio da
imagem. A esses, a autora chama de sujeitos marginais do consumo; aos bens
admirados, nomeia como meta-consumo.
Toda a imagem é uma construção de um ego, e isso implica riscos bastante
concretos. Até porque, muitas vezes, tal declaração não é deliberadamente feita
pela vontade do proprietário. À revelia do que se deseja, as referências discursivas
entre pessoas são realizadas, e ao constituir um discurso de si, muitos constroem
uma imagem e aderem a essa expressão ética sobre si. Pela noção retórica do
ethos, Amossy (2005) alerta para as impressões que são implícitas ao ser humano,
e sublinha que, delas, as negociações são feitas. Crítica da análise do discurso, ela
acredita que em alguns momentos, a dimensão da imagem pode ter um peso maior
do que a própria fala. Embora os estudos dela sejam mais voltados para as trocas
verbais e para a teoria da argumentação, é interessante pensar o princípio da
análise do discurso também pelo viés imagético do locutor. Pois constitutivos, os
modos de enunciações da imagem de si estabelecem uma recíproca relação
discursiva que orientarão a interação entre pessoas. Por vezes, as convenções na
sua concretude são originadas dessas influências mútuas dos ritos de
apresentações da presença física.
37

Como qualquer comunicação, a moda necessita de um emissor e um leitor.


As pessoas interagem no universo de suas próprias estéticas, de acordo com a
proposição de emitir uma mensagem, a qual dependerá sempre de, no mínimo, de
alguém que vai transmitir esse diálogo visual e um receptor para decodificar. A
manipulação da aparência é individual e invariavelmente nutrida de uma bagagem
de experiências biográficas, que cria subsídios para uma leitura que não usa uma
grafia textual. Para Castilho e Martins (2005), a ideia de essa contemplação
depender sempre de um observador comprova que o ato de se vestir leva em
consideração a forma como os outros o perceberão, já que o não verbal também
elabora dialetos. Prova disso é que uma peça de roupa somente é dada como
presente quando há uma intimidade naquela relação. E por ser algo tão pessoal,
pode trazer facilmente ofensa, se não condisser com a identidade do presenteado.
Desse modo, é apropriado o uso de elementos semânticos para demonstrar ao outro
os interesses pessoais, regendo uma leitura da performance corporal. A produção é
dada, considerando o contexto que o espera.
A presença da vestimenta na aparência humana influencia o relacionamento
do sujeito com o seu meio, e ao aproveitar o visual como uma estrutura discursiva,
potencializa uma simbiose entre esses. Indissociável, o invólucro recriado pela
própria pessoa, acaba por se tornar uma evidência que se internaliza a ponto de
fazer parte do indivíduo. As roupas podem ser vistas como objetos modeladores que
revestem e trabalham sobre o sujeito, transformando-o em uma espécie de
materialização da memória.
Os autores garantem que o sistema de moda é uma comunicação fiel dos
desejos vigentes e assim, a aparência pessoal possibilita a criação de identidades
híbridas, permitindo aos sujeitos se expressarem por meio de seu traço performático.
Como um grande paradoxo, essa linguagem visual é capaz tanto de unir quanto de
distinguir, mas de qualquer forma, sempre ocorrerão relações comunicativas. Não
seria então banal colocar que a peculiar conjugação para traduzir facetas da
identidade pode dar-se também estilisticamente. Dessa interlocução, é atribuído um
sentido ao discurso, assim como qualquer ensaio comunicativo que possui uma
transmissão de sinais. Tal prática social é compartilhada na intenção de interagir
com o próximo, desencadeando uma troca de experiências entre os sujeitos. É o
que Castilho e Martins (2005, p. 43) colocam sobre o discurso de moda:
38

A comunicação necessita, para transcorrer entre os sujeitos sociais, de


uma espécie de “escritura”, ou seja, de certa codificação reconhecida entre
os sujeitos de uma mesma sociedade que os leve ao entendimento das
mensagens ali estruturadas, depositadas de modo a compartilharem
significados no mundo.

Conscientes ou não, as intenções de se criar uma postura discursiva são


rotineiras e imediatas. Quando o sujeito depara-se com o seu roupeiro – fonte de
peças com uma quantidade injustificável e armazenadas sob o seu cuidado –
escolhe com cautela o que vai usar, pensando sempre sobre o que gostaria de
expressar, mesmo que no âmbito do inconsciente. São revelações muitas vezes
reservadas na intimidade e somente depois dessa licença simbólica e particular, é
que a pessoa está pronta para se mostrar ao mundo. Pensando em conformidade
com uma dinâmica cultural mercantilista e subjetiva, não basta consumir, é
necessário decodificar seu modo de uso. Um projeto de pertencimento nasce de
uma negociação estética com o meio. Face ao exposto, o processo de interação
incita uma certa mobilidade da aparência, já que pressupõe a presença do outro.
Para comprar, as pessoas precisam identificar-se com os objetos.
Os bens de consumo estético podem ser vistos como uma segunda pele que
pode compor a aparência final do indivíduo; essa liberdade transcende a própria
consciência do portador no espaço social, provendo inclusive a satisfação pessoal.
Ou seja, as possibilidades de elaborações corporais podem oportunizar vínculos
sociais, já que esse revestir e recriar em nome de alguma similitude ou diferenciação
cria um efeito de sentido. Os professores da obra ainda postulam que, uma vez que
as pessoas são morfologicamente desprovidas de adornos naturais, é a forma como
o corpo é embrulhado que fará a diferença.
Suportado por essa lógica, uma vez que não há uma permanência na
travestilidade, a experiência transitória se dá de forma ainda mais intensa. Os
produtos situam e compõem o indivíduo. Em um processo de conformidade, a
‘princesa’ volta na condição de ‘sapo’ – expressões identificadas em campo, quando
as cross-dressers referem-se a produção visual de aparência feminina, ou seja,
‘montada’, ou na condição arquetipal masculina, respectivamente. Tais referências
identitárias são acionadas em momentos de passagem da dimensão de
autorreconhecimento, conforme a narrativa de apropriação (DIÁRIO DE CAMPO,
09/11/2012).
39

Também em sintonia com a abordagem, uma entrevistada para esta


pesquisa quis demonstrar grande propriedade no assunto sujeito-em-processo ao
explicar algumas diferenças de escolhas de compra daquelas cross-dressers que já
se ‘montavam’ há mais tempo e que tinham com isso, um autoconhecimento melhor,
em contrapartida àquelas para quem a prática ainda era um estranho modo de estar.
Além de treino, uma das instâncias seria o poder financeiro e o contexto social, que
interfere diretamente nas escolhas sobre o que usar, pois à medida que a prática
trans vai sendo familiarizada, o gosto torna-se mais refinado, o bom senso estético
mais apurado e consequentemente, mais discreto. Segundo a interlocutora nessa
ocasião, para a praticante que não tem suficientes condições financeiras, a
tendência é direcionar-se para contextos mais excessivos e vulgares. Parte disso é o
desafio de reaprender a consumir, adaptando produtos e serviços a uma nova
identidade, a de gênero (DIÁRIO DE CAMPO, 18/06/2014).
Ao que parece, os adereços pessoais são um poderoso meio de
proporcionar subversivas declarações sociais, já que podem ser feitos em nível
inconsciente. E por ser destinado ao espaço público, o vestir é mais para os outros
do que para o próprio usuário. Face ao exposto, os espaços influenciam
substancialmente como as pessoas se apresentam. Goffman (2010, p. 35-6) traz
seu ponto de vista sobre essa questão:

Um dos meios mais evidentes que o indivíduo usa para demonstrar que
está situacionalmente presente é o gerenciamento disciplinado da aparência
pessoal ou ‘porte pessoal’, quer dizer, o complexo formado pelas roupas,
maquiagem, penteado e outras decorações de superfície que ele carrega
consigo.

Mais clara do que a própria língua falada, o vocabulário visual fornece várias
informações sobre o sujeito em uma relação ambígua de intenções e interpretações.
Interfere no fluxo da identidade na condição de processo; é após estendida,
deduzida e emprestada, tendo em vista o julgamento dado ao indivíduo situado em
seu contexto e engajamento. Não há chance de unificar tal decodificação, mas o
autor distingue o comportamento comunicativo em duas facetas. À primeira ele
propõe a chamar de interação desfocada, que consiste em uma análise imediata de
uma pessoa, quando essa é vista de relance, sem grandes aprofundamentos. Já
outra faceta é a interação focada, a qual nasce em um foco em comum de atenção,
40

a exemplo do que acontece na fala que é revezada entre ambos, portanto, quando
há uma sinergia.
De um ponto de vista analítico sobre o consumo, Miller (2007) garante que a
cultura material auxilia na compreensão do senso da humanidade por intermédio dos
objetos. Partindo do pressuposto de que o materialismo seja uma verdadeira
devoção a certos objetos, toda a forma de consumo atravessa uma postura moral e
recoloca o indivíduo em relação com o mundo. O sistema de classificação pode por
isso, ser entendido como a tomada de decisão dos consumidores a fim de integrar
as mercadorias nos seus estilos de vida, ação que se posiciona como um forte
parâmetro social.
Vale colocar que os incrementos dessa interferência corporal traduzem-se
pelos signos de poderes simbólicos que auxiliam a negociar com o social. É
oportuno pensar esses embrulhos de ordem discursiva para enunciações
comunicacionais, uma vez que o ser humano possui uma vontade inerente nessas
projeções. Ainda, para essas possibilidades serem aceitas, está em jogo que os
princípios de estetização condizem com cada cultura. Caso não estiver de acordo
com essa estrutura dominante, facilmente a arbitrariedade vai mostrar-se,
convertendo-se em rejeição, ou no mínimo, em estranhamento.
Para fins de situar mais o consumo pela ótica da antropologia, convém
ampliar esta abordagem analisando os estudos de Douglas e Isherwood (2013).
Para eles, os bens assumem aspectos ritualizados e bastante visíveis dentro de um
universo de valores da própria cultura, que constituem eficazes definições de
acontecimentos e auxiliam na mediação entre os sujeitos. É uma maneira de
estabelecer conexões, já que são importantes marcadores simbólicos e por isso,
estreitam vínculos. Quando estabelecidos padrões de preferências materiais
considerados apropriados, as relações contam com o auxílio dos produtos para tais
mediações, convertidos em uma poderosa comunicação.
Há com isso, um investimento considerável, de peso simbólico, que
expressa princípios de mudanças ou permanências de estilos de vida. Por uma
lógica cultural que os mantém dinâmicos e estruturadores nas relações sociais, os
produtos são neutros e por isso podem operar como pontes ou cercas, conforme
expressão dos autores para denotar os mecanismos de inclusão ou exclusão, já que
o seu uso é um ato social.
41

Curioso é perceber que no senso comum, muito se fala de desejos bastante


abstratos vindo de gostos pessoais, quando pela visão destes, podem ser vistos
como necessidades materiais normativas. Mesmo que as escolhas dos
consumidores sejam livres, estão culturalmente embebidas como requisitos de
estratificações, que por isso, conferem-lhe interações. Nessa perspectiva, os bens
não são escolhas aleatórias como parecem, mas preferências socialmente
orientadas.
Ora, um vestido pendurado em um cabide tem um efeito de sentido diferente
do que quando usado por uma mulher; assume um terceiro redimensionamento se
usado por um homem. Trata-se de um sistema complexo que não mantém um
significado por si mesmo, mas pela interação humana e suas autenticações de
fronteiras. O valor atribuído às propriedades físicas é disciplinado justamente por
que:

O homem é um ser social. Nunca poderemos explicar a demanda olhando


apenas para as propriedades físicas dos bens. O homem precisa de bens
para comunicar-se com os outros e para entender o que se passa à sua
volta. As duas necessidades são uma só, pois a comunicação só pode ser
construída em um sistema estruturado de significados (DOUGLAS,
ISHERWOOD, 2013, p. 145).

O uso das aquisições é um processo muito íntimo, porém seu efeito é


público. Justamente por isso, tal ação demonstra ser um treinamento cultural. E
sendo um ato público e de experiência social, o mundo dos bens é sempre
compartilhado; nesse sentido, denuncia por completo específicas atribuições na
esfera coletiva. É o lado material de um modo de existência, que vai evidenciar os
gostos e, por conseguinte, determinadas estruturas sociais demarcadas e
reveladoras. Eficiente sistema de troca que demarca um universo individual e
coletivo na forma mercantilizada, o objeto torna-se especialmente político quando
ocupa espaços e segue por determinadas regras de pertencimento.
Em correspondência, o que rege o ato do consumo é despertado por meio
de estímulos gerados no próprio ambiente. São considerações culturais que têm o
poder de interferir no comportamento de compra. E para além de uma produção
material e econômica, Kopytoff (1986, p. 64 – tradução nossa) acredita na dimensão
sociocultural das mercadorias nas sociedades mais complexas:
42

Do ponto de vista cultural, a produção de mercadorias é também um


processo cultural e cognitivo: as mercadorias devem ser não somente
produzidas materialmente como coisas, mas também culturalmente
marcadas como sendo um certo tipo de coisa4.

Esses atributos são de ordem humana e por isso, tendem a humanizá-los ao


longo da vida, embora possam também mudar no decorrer do tempo, seja simbólico
ou mesmo funcionalmente, já que então, a atribuição de valores é conferida pelas
motivações humanas. Este estudo realizado pelo antropólogo citado merece
atenção, pois alega não existir inerentemente uma perspectiva simbólica. As coisas
tornam-se mais do que mercadorias quando dotadas de uma produção de sentido e
isso constitui a uma biografia social também, fazendo parte de uma fase da vida e
dessa forma, construindo laços. Vale dizer que, de certa forma, esse fato mobiliza
categorias identitárias.
Nesse âmbito da discussão, em um contexto temporal da circulação de
mercadorias, o valor da troca perpassa a lógica mercantil, pois está sob as
expressões de consumo, dotado de específicos significados. Essa dinâmica não é
limitada a um mero potencial mercantil, mas ao estado simbólico. Mais do que um
estado permanente, quando as coisas tornam-se mercadorias e circulam no social,
há fases desse processo cognitivo a ser considerado. Uma vez que a
mercantilização compõe um caráter processual, uma coisa pode ser efetivada em
uma mercadoria, e em outro momento, em algo completamente distinto. Ou ainda,
uma coisa ser mercadoria para alguém, não significa que o será para todos. Por
meio de uma abordagem biográfica dos bens materiais, Kopytoff (1986 – tradução
nossa) ainda sugere que até o ser humano pode constituir essa perspectiva cultural,
utilizando o corpo como um intercâmbio mercantil, embora este também não seja um
atributo de valor universalizado. Sujeitos e objetos passariam por um processo de
mercantilização, sob essa perspectiva de entendimento. À égide do processo de
singularização do universo do consumo, as coisas são mercadorias no seu ato
mercantil, mas por sua dimensão simbólica, adquirem uma biografia na relação com
o usuário. Esse princípio de personalidade não está estabelecido, ele é construído,
mesmo que de forma tensa.

4Texto original: “From a cultural perspective, the production of commodities is also a cultural and
cognitive process: commodities must be not only produced materially as things, but also culturally
marked as being a certain kind of thing”.
43

Brewer e Porter (1993 – tradução nossa) também expressam esse percurso


crítico. A partir de uma perspectiva histórica, eles organizaram uma obra juntamente
com demais escritores, para questionar a falta de aprofundamentos
multidisciplinares e as dimensões políticas quando se fala em consumo e sua
resposta para a massificação da sociedade, da cultura e da produção. Os autores
tentam identificar o nascimento da antropologia do consumismo e mostram o
impacto que teve na vida das pessoas. Embora essa concepção teórica seja
historicamente imatura, garantem, não é um objeto de estudo no sentido de tentar
compreender seu início e seu funcionamento atual, em um espectro muito mais
amplo sobre assuntos humanos.
Explicam que forçosamente, houve uma reestruturação adiantada de toda a
cadeia produtiva e intensas trocas comerciais que alteraram na mesma intensidade,
a forma de aquisição de bens. A cultura do consumo agrega-se a praticamente todos
os serviços, desde as necessidades básicas até os luxos e valores conspícuos.
Inclusive a revolução da imagem, com as respectivas reproduções incessantes
como forma de comunicação. Diante de tais perspectivas, “Imagens visuais, sinais
verbais e o mundo das coisas forma uma tríade cujo estresse e tensões são
persistidas5” (BREWER; PORTER, 1993, p. 7 – tradução nossa), lembram, pois com
a demanda acelerada da produção industrial, toda a expectativa orientou-se mais
para a aparência do que para a qualidade.
Em uma sociedade industrial que se estabelecia, os bens de massa
começavam a ser parte fundante do consumo moderno, empoderando esses bens
com significado social, a ponto de concebê-los como mediadores de valores nas
relações. Este tipo de abordagem como campo de análise, aos poucos foi sendo
visto como necessidade teórica, tomando uma proporção central para o
entendimento da cultura moderna, o que até hoje revela indícios. Portanto, o
consumo estimula a constituir produção de diferenciação e enquadramento, que vão
ser definidas de forma material.
Pela noção estabelecida entre objeto e sujeito, assim termina este capítulo
com algumas fundamentações sobre o mundo material como um domínio discursivo
e por conseguinte, formador de sociabilidade. Instrumento de enunciações, percebe-
se que a escolha de bens para uso próprio jamais é mera escolha; tal relação está

5Texto original: “Visual images, verbal signs and the world of things formed a triangle whose stresses
and strains need to be insisted upon”.
44

na definição de sujeito social, em que a materialidade é um tornar comum no


ambiente. A subjetividade da moda nesse sentido, desempenha por excelência, um
papel central no sistema de comunicação que instiga a pensar os objetos
consumidos em uma perspectiva da linguagem na identidade transitória,
sublinhando um efeito de coprodução a respeito da pessoa revestida de
simbologias. Posto isso, o terceiro capítulo que segue, tem por função contextualizar
a história da moda pela concepção dos estudos de gênero, a fim de trazer mais
aproximações nas áreas e com isso, oportunizar uma visão relacional dessas
esferas teóricas.
45

3 O GÊNERO NA HISTÓRIA DA MODA

A passos largos, o objetivo deste capítulo é apresentar um panorama na


perspectiva dos estudos de gênero, imbricados na história da moda. Para tanto, é
realizada uma revisão literária nas pesquisas de historiadores, que retratam a
trajetória do vestuário e os hábitos de ornamentações. E disso, segmentar
cronologicamente uma interface sobre as diferentes percepções dadas pelas
épocas, embora mostrando que o modo de vestir sempre teve um interesse em
distinguir os sexos e mostrar pela aparência, identidades não momentâneas.
Então, essa parte introdutória, antes das separações por épocas, visa dar
base para questionar algumas visões deterministas sobre a moda nos gênero que
partem de valores que principalmente enxergam a mulher como, por excelência, o
lugar da sedução e do engodo. Digno de nota, trata-se de uma corrente que é ainda
muito verdadeira atualmente e reforçada pela mídia: a objetificação feminina e a
hierarquia que põe o homem como parte determinante na dimensão política.
Conforme exposto nas abordagens anteriores, fica claro que o modo de se
apresentar no coletivo é um campo fértil de atributo de sentido sexual. Ora a roupa
servia como uma maneira simbólica de equiparar homens e mulheres, ora os
distanciava. Mas, mesmo difusa, sua função dificilmente foi reduzida à mera
proteção física, pois até na Pré-História havia a possibilidade de mediação pelo
aspecto da existência estética. Ossos, chifres, penas, pigmentos, dentes, garras e
demais subprodutos animais eram portados sem uma utilidade de sobrevivência. As
aparências são preliminares que dão conta de iniciar uma relação, pois também
constroem o entendimento das mudanças de uma sociedade.
Sobre perceber a roupa como uma expressão artística e com possibilidades
de conotações sexuais, vê-se nos estudos de Hollander (1996) uma oportunidade de
relacionar peças do guarda-roupa como um indicador de gênero. Detentoras de uma
declaração visual, as indumentárias reagem de acordo com a força simbólica que
carregam e com a atribuição de sentido nelas cultivadas. Nessa direção, a autora
exemplifica o uso permanente do terno, o qual, desde a sua origem, remonta à
autoridade, ao vigor e, sobretudo, à masculinidade. Seu aspecto conservador seria
uma fantasia moderna de uma sexualidade agenciada na sua materialidade. Já as
linhas austeras daquele permanecem como tradição e o vocabulário visual continua
uma ferramenta confiável. Ressalva a pesquisadora que, apesar disso, o vestuário
46

masculino sempre foi mais vanguardista que o das mulheres, mesmo que o terno
tenha se tornado o traje mais importante e também impecavelmente monótono.
Porém, também sugere uma estabilidade no tempo e multiplicidade de locais de uso,
decorrendo de uma possível forma de modernidade.
Esse conjunto é um dos itens mais significativos do vestuário, pois, além da
demarcação clara de gênero, o terno desvinculou por definitivo a exuberância da
aristocracia com a nova burguesia trabalhadora. A permanência da alfaiataria, há
mais de duzentos anos, se realizou graças à sua estética repetitiva, à qual os
homens permanentemente recorrem para garantir credibilidade na política, no
mundo empresarial, em tribunais, em relações amorosas, entre outras situações e
contextos. Em resposta a uma solidificação de atributos fixos de gênero, quando
uma mulher quer oportunizar uma aparência simples e atemporal, é nas origens
masculinas que ela encontrará seu trajar. A autora acredita que esse é incomparável
na sua força simbólica de permanência. Tal qualidade reforça a ideia da sexualidade
nas roupas, pois o terno contracenou claramente com os prazeres dos disfarces
femininos.
Para além disso, a moda tem intrinsecamente a característica de ser
reveladora, e por isso ocorre de as pessoas poderem sentir-se fora do controle por
expor seus segredos no âmbito visual. Não fundamentados na razão, os desejos de
comunicação visual podem estar no inconsciente. Hollander (1996, p. 51) lembra
ainda, que nossas peles são sempre insuficientes demais para se expor sem
adereços artificiais:

Na moda moderna, a sexualidade das roupas é a sua primeira qualidade


[...]. As criancinhas aprendem que as roupas lhes dão uma identidade
privada, definindo ideias interiores sobre seu próprio corpo que começam
com ideias sobre a sua sexualidade. No processo contínuo desta definição,
o vestuário usado em público pelos adultos torna-se finalmente um gesto
sexual recíproco em um mundo geralmente bissexual. A excitação popular
atual com o transexualismo no vestir mostra apenas quão profundamente
acreditamos ainda em separar simbolicamente as roupas dos homens e das
mulheres, mesmo que em muitas ocasiões ambos se vistam da mesma
forma.

No mundo material, a moda é a responsável por se moldar para cada sujeito,


já que adere a um corpo individual, com sua própria sexualidade particular, que se
projeta em um conjunto de relações na coletividade. Na visão da autora, a moda
possui como mote principal, a ideia da massificação de um gosto temporal provisório
47

aderido no coletivo, tornando-os semelhantes. Apesar de verdadeira, ela também é


comprometida com envolver o sujeito e suas narrativas pessoais, nas quais a
identidade de gênero está imbricada.
No campo da sociologia, Bourdieu (1999) parte do pressuposto histórico de
que há claramente uma incorporação de hierarquia por meio das diferenciações de
sexo. Ele contribui no debate através de um quadro teórico mais amplo, quando
propõe que o corpo assinala uma existência de classificação, algo resultante da
construção social que, mesmo naturalizado, não é dado anatomicamente. Na sua
visão, a mulher encontra-se em uma posição peculiar no universo de bens
simbólicos, quando compete a linguagem do corpo, pois sua aparência é sempre
mais exaltada e assim, recai como um artifício na sedução, gerando maior
investimento de recurso financeiro, tempo e energia. Ou seja, a estrutura relacional
da condição de mulher é perceber-se como objeto estético. Por excelência, a
predisposição a incitar atração dos homens faz parte da condição de existência
delas, para quem “O mundo social funciona (em graus diferentes, segundo as áreas)
como um mercado de bens simbólicos dominado pela visão masculina” (BOURDIEU,
1999, p. 118). Como efeitos da posição dominante e dominado, os trajes masculinos
tendem a propositalmente deixar nebuloso o corpo deles.
Foi Simmel (2008) quem inaugurou o debate de que condicionalmente são
as mulheres as mais estimuladas a fazerem parte dessas engrenagens das
mudanças dos desejos materiais, justamente porque foram elas que, na maioria das
vezes, estiveram mais próximas de um fazer apropriado das épocas. Potencializa
com isso, a perspectiva de que elas são originalmente mais fieis do que os homens,
e eles, por sua vez, seguem com mais facilidade a sazonalidade da aparência, como
consequência, do consumo. Como se percebe, as mudanças na moda masculina
são realmente muito mais lentas. E como característica feminina, a coqueteria já
indicaria uma submissão ao querer despertar a atração do homem por meio da
aparência. No decorrer dos tempos, os homens foram se acostumando com o
nivelamento visual e se afastando da trivialidade, incentivados, em especial, pela
realidade no âmbito profissional, acredita o autor.
A moda é uma possibilidade de atingir a feminilidade arquetípica, um
investimento libidinoso, que, ao mesmo tempo, proporciona uma falsa estabilidade
na identidade feminina, como uma máscara para concretizar novos devaneios. Ao
explorar o corpo com revestimentos visíveis, o proprietário governa seu próprio ego
48

e, como resposta, projeta, em grande escala, a própria história da civilização. Assim,


é reforçada a ideia de produção da aparência pessoal como um desdobramento de
si que oportuniza um padrão na alternativa de buscar uma identificação feminina,
mesmo que somente no nível simbólico das exterioridades. Como um investimento
libidinoso, muitas vezes, a moda é vista como uma das possibilidades mais
evidentes de mostrar tal feminilidade esperada. Transfigurar-se nesse sentido, pode
ser um processo temporário de constituição do sujeito.
Sobre um ponto de vista histórico, a pesquisadora e professora de
sociologia, Diana Crane (2006), percebe uma estreita mediação sobre o aspecto
identitário através das escolhas na roupagem. Para ela, o homem ainda hoje
valoriza mais aqueles trajes que espelham a sua posição de trabalho. Isso seria um
reflexo de um conjunto de normas hegemônicas que permanece como a principal
manifestação da construção masculina, havendo quatro pontos característicos:

1) potência e controle físicos associados ao corpo masculino; 2)


heterossexualidade, definida como relações sociais com homens e relações
sexuais com mulheres; 3) conquistas profissionais em empregos
identificados como ‘trabalho de homem’; e 4) papel familiar patriarcal
(CRANE, 2006, p. 354).

Em reforço, a autora em estudo explica que é por essa razão que muitos
relutam em expor uma imagem pessoal fora do padrão, uma vez que, como senso
comum, os homens são portadores de uma identidade supostamente mais
inabalável. O simples interesse pela moda já o faz ser alvo de suspeitas e de
chacotas, pois a masculinidade implica uma displicência na aparência. Logo, tal
negligência pode ser ironicamente proposital e construída por meio de um cuidado
pessoal. Para muitas sociedades, a moda sempre se certificou de garantir as
distinções de gênero; mesmo quando tenta confundir, na realidade, isso não passa
de uma proposta passageira de modismo da estação.
Como tal, a aparência faz parte fundante da construção social da identidade,
e são encontrados nesta, muitas vezes, os preceitos um tanto quanto inflexíveis;
assim, ela subverte ou conserva fronteiras simbólicas. São apresentadas tanto uma
expressão individual quanto uma forma de controle, pois este é usado para fornecer
uma declaração sobre o posicionamento do sujeito na sociedade, “[...] mas suas
mensagens principais referem-se às maneiras pelas quais mulheres e homens
consideram seus papeis de gênero, ou a como se espera que eles o percebam”,
49

enfatiza Crane (2006, p. 47). Como premissa básica, há a cobrança das diferenças
inerentes nos modos de vestir desde o surgimento da concepção de moda,
ensinadas e repetidas ininterruptamente. Pelo levantamento histórico, percebe-se
que a roupa, estrategicamente enfatiza algumas partes dos corpos para acentuar
certas diferenças morfológicas. Como o tórax, pênis e ombro no homem e as curvas,
decotes e quadril que reforçam a imagem da mulher. Nesse sentido, a roupa seguiu
contrastando a linha divisória dos gêneros.
Como percurso crítico, a arbitrariedade é conhecida pela sua consolidação
no sistema de moda sobre o que são considerados elementos estéticos do feminino
e do masculino. Para reforçar tal conceito, Lipovetsky (2005) sustenta uma teoria
chamada de processo de diferenciação ostensiva, que consiste em produtos de
moda que são designados exclusivamente a um gênero. Do lado feminino, é
possível citar claramente a saia, mas também os vestidos, scarpins, maquiagens,
tailleurs, entre outros; bem como, no universo masculino, resguardam-se a gravata,
smoking, sapato etc. O intuito desse processo é acentuar os gêneros e colocá-los
em oposições. A título de regra, tudo que se diz contrário, complementa-se, como
muito se acredita que devam ser o homem e a mulher. Essa interiorização subjetiva
faz parte fundante da organização do sistema das aparências, mas, ao final deste
capítulo, pretende-se questionar a afirmação do filósofo que, em 1989 sentenciava,
na publicação de seu livro, que o masculino estaria condenado a eternamente
desempenhar essa função. Razões para pensar isso não faltavam, pois o vestido,
por exemplo, é de domínio feminino no Ocidente há mais de seis séculos.
Por trás da tão falada democracia e da libertação que a moda se permitiu ao
longo de sua trajetória, um impedimento moral e intocável ainda resiste. Mesmo com
as mudanças no tempo, nos dias de hoje, quando pouco se veem os imperativos e
as regras, a versatilidade ainda reconhece e respeita o espaço de cada gênero.
Talvez possa perceber-se, em determinados momentos, a oscilação da linha
divisória, mas a homogeneização da moda dos gêneros ainda está longe de existir.
É por esse motivo que a saia ainda faz fortemente parte do imaginário masculino,
assim como outras peças vistas como símbolos do fetiche feminino, como o salto
agulha e as lingeries. Hollander (1996, p. 80) afirma que as saias “[...] constam como
um elemento original e puramente feminino. Desde seus começos no século XVI,
nunca foram tomados como empréstimo pelo vestuário masculino”. Vale lembrar que
50

o kilt se encaixa como um saiote tradicional de uso dos homens que faz parte da
cultura escocesa, e por isso, não se inclui na definição de saia feminina.
Entendida, então, como um dispositivo social, a moda tem como propósito
privilegiar certas partes do corpo, conforme os valores de um período histórico e
local. Em toda a sua amplitude, percebe-se, por exemplo, que os homens
“apresentam insistentemente a utilização e a valorização de formas em linhas
verticalizadas e que ressaltam principalmente os ombros e as pernas como
indicadores de sua força e virilidade” (CASTILHO; MARTINS, 2005, p. 33). Esse é o
padrão estético oposto ao feminino, que exalta as curvas. Muito desses moldes a
serem seguidos decorrem como uma resposta ao princípio de integração e
completude.
Para uma maior clareza sobre como a moda enxerga as separações de
gênero no trajar, a seguir, é discriminado alguns pontos históricos que foram
marcantes nesse atributo de sentido. O intuito é identificar essa conotação desde o
final do século XIV, que é quando a vestimenta começa a ser compreendida como
integrante de um fenômeno social cíclico de mudança de desejos materiais, até
hipóteses sobre os novos rumos das tendências vigentes. Vale colocar que não há o
objetivo de naturalizar associações de formas diretas; é antes, uma abordagem mais
abrangente, que não possui o interesse de contemplar singularidades nesse
processo histórico. São assim, dadas algumas opções críticas como mote de análise
para propor certos paralelos sobre acontecimentos sociais e as formas de trajar de
parte da população.

3.1 DO SÉCULO XIV ATÉ AS TENDÊNCIAS DE HOJE

Embora na condição de um movimento cultural, a moda seja uma invenção


do final da Idade Média, pela igreja católica, o recato sexual era biblicamente o
propósito original para cobrir o corpo. Conforme o período e local, o corpo despido
nem sempre foi sinônimo de vergonha, ainda que historiadores de moda concordem
que foi justamente com a popularização do hábito de se cobrir que despertou ainda
mais o interesse sexual. Hoje, um corpo nu, desadornado e espontaneamente
exposto pode não trazer grandes excitações, diferente do estimulado com
apetrechos de beleza. Lurie (1997, p. 226) explica: “Seja ou não a causa primordial,
desde o início dos tempos, uma função importante do vestuário tem sido promover a
51

atividade erótica: atrair homens e mulheres uns aos outros, garantindo, assim, a
sobrevivência da espécie”, e para tanto, vê-los de forma complementar para atingir
tal meta.
Levando a discussão para o terreno histórico ocidental da classe média e
alta, Svendsen (2010) acredita que há uma divisão clara dos gêneros nos modos de
trajar desde o século XIV. Sistematicamente, as mulheres prevaleceriam com uma
silhueta mais ajustada. No âmbito da modéstia, a estrutura de modelagem e costura
para o busto resultou na atenção ao decote, que aos poucos foi se aprofundando e
se tornando um símbolo feminino, ainda mais enfatizado graças ao contraponto dos
sufocantes espartilhos. Desde então, a exposição da pele viria a ser um assunto
delas.
Dessas vontades, os fatores sexuais fortificam-se como um dos motivos do
uso de determinadas roupas. Guardadas as devidas proporções e os relativismos
culturais, as distinções entre os sexos pelas convenções no trajar podem ser
encontradas nas civilizações. O primeiro grande divisor de sentidos sexuais, na
visão de Hollander (1996), foi situado em meados de 1380. Houve uma ruptura que
se estabeleceu desde então, mesmo que interpretada de maneiras distintas. A
historiadora exemplifica mediante a violação de conduta de Joana d´Arc, que, se
ocorresse antes ou depois desse período, possivelmente não teria visualmente
chocado tanto. No entanto, no início do século XV, as vestimentas eram
sexualmente expressivas demais. Evidentemente, a heroína francesa causou
estranheza não apenas pela sua aparência, mas assumiu até em momentos do
cotidiano, um estilo atípico das demais mulheres da época. Tal prática tornou-a
ainda mais conhecida. Sem qualquer modéstia romântica ou véu na cabeça, suas
armaduras e seu temperamento com bases nos privilégios masculinos renderam-lhe
a reputação de uma feiticeira. Ou de uma prostituta, pois só uma teria coragem de
separar suas pernas com tecidos como faziam os homens. Símbolo de fuga para
perceber as pernas como membros funcionais, a calça teria que aguardar mais de
quatro séculos para que fosse de fato, um hábito entre elas também.
Ainda pela visão de culpabilizar a imagem da mulher pelos males da
sociedade, vale lembrar que os romanos julgavam bárbaras as vestimentas
costuradas, que contornavam o corpo, chegando a decretar pena de morte a quem
as usasse; além disso, houve diversas tentativas do senado romano de proibir o uso
de seda, pois além de seu alto custo, a propriedade das roupas de seda de se
52

aderirem aos contornos do corpo, segundo eles, era uma ameaça à moral. Assim
como os calçados, em um período em que os britânicos se mantinham nas colônias
norte-americanas, foram criadas rígidas leis contra o uso de salto alto, pois dizia-se
que tais sapatos seduziam os homens para a luxúria e o pecado; ademais, em
algumas comunidades da época, o salto era um símbolo associado à bruxaria. Já os
de bico fino e compridos que foram tendência por quase quatrocentos anos
consecutivos, até sua proibição pela igreja em 1367, quando foram considerados
pecaminosos e chamados de garra do diabo. Os religiosos condenavam seu uso,
pois além de considera-los depravados, quem os usasse não era capaz de se
ajoelhar em oração. Por esses motivos, a igreja alegou que a Peste Negra ocorria,
pois fora a maneira de Deus castigar a humanidade pelo uso de tais peças
demoníacas (COX; JONES, 2014).
É durante o Renascimento que se origina um código moral bastante
apurado, que orienta o olhar somente para a parte de cima do corpo. Essa é uma
época em que se define uma beleza moderna vista somente no feminino, misturando
ao mesmo tempo, fragilidade e castidade, uma perfeição e admiração. Esse domínio
da beleza é retratado nas pinturas de Vênus, associa Vigarello (2006), em que se
desenha uma fronteira bem clara, que deixa toda a força e o temor na figura
masculina para que, com esse vigor, eles combatessem os inimigos, e se
equilibrassem com a formosura e o refinamento delas. Essa posição de inferioridade
e pudor fazia parte de um conjunto de dinâmicas que serviam ao deleite dos
homens. Além disso, promoviam a literatura.
Uma das personalidades da história que aqui parece ser interessante
evidenciar é o duque Philippe d'Orleans, talvez um dos primeiros entusiastas de
cross-dressing. Conquanto ele tenha nascido no século XVII, que já priorizava o uso
excessivo de ornamentos como saltos, perucas, babados e chapéus para os
homens, Steele (2013 – tradução nossa) acredita que foi somente graças ao seu
status hereditário de realeza, que o duque garantiu não ser executado como o seria
qualquer outro cidadão.
A frivolidade do século XVIII foi concretizada com os abusos estéticos dos
denominado Macaroni, um estilo masculino que resgatou os principais atributos do
coquetismo feminino, extrapolando a sua essência. Dessa lógica, nasceu um
homem considerado bastante efeminado, usando coletes, calções e casacos muito
justos no corpo e desenvolvidos com matérias-primas pouco acessíveis para o
53

tempo, como veludo, fio de chenille, brocados, sedas bordadas e paetês


metalizados. Tudo isso era aliado a muito perfume e a perucas extremamente
alongadas com ornamentos de laços. Essa produção confundia as pessoas, como
explica McNeil (2013, p. 95 – tradução nossa):

[...] era frequentemente tida como uma imagem de gênero indeterminado


[...] ele tem sido pouco analisado dentro da história da sexualidade [...]. Isso
é porque o modo de vestir tem sido pouco usado como uma lente para ler
mensagens e códigos através dos quais as pessoas declaram suas vidas6.

Todavia, essa extravagância era concentrada somente nos aristocráticos,


ingleses na sua maioria, que influenciavam os gostos vigentes da população. Além
de uma questão financeira, já que era bastante custoso mantê-la, havia uma
implícita permissão social, pois aqueles de baixo status eram condenados à forca
por libertinagem.

Figura 2 – Gravura de um personagem representando o estilo Macaroni e um


trabalho do porcelanista Franz Anton Busteli

Fontes: Macaroni Club (2015); Bustelli (2015).

6 Texto original: “[...] was often seen as indeterminate gender image [...] it has not been sufficiently
analyzed in the history of sexuality [...]. This is because the way of dress has been not used as a
reflection to read messages and codes through which people declare their lives”.
54

Alguns artesãos como o alemão Franz Anton Bustelli, reproduziam o petit-


maître – expressão atribuída a tal comportamento e estética para a época – em suas
obras. Esse estilo durou pouco, mas deixou possibilidades de futuras novas
aberturas.
Outro marco nos estudos de gênero pela história da moda ocorreu em 1775,
quando o médico e filósofo Pierre Roussel lançou o livro ‘Sistema físico e moral da
mulher’. Neste, há uma elaboração analítica sobre a construção da identidade
feminina baseada nessas duas principais plataformas que o título propõe. Alguns
discernimentos mulheris remetem ao fato de que a função reprodutora fica evidente
em uma natureza vulnerável, dependente do homem para praticamente tudo, e
estreitamente relacionada a uma subordinação de seu próprio corpo. As diferenças
entre os dois sexos na indumentária fica, por conseguinte, cada vez mais evidente.
Além disso, ressaltam-se incentivos na intelectualidade e na fisiologia, ao mesmo
tempo em que se tornam, homens e mulheres, complementares na condição de um
casal (HOUBRE, 2005).
Seguindo na linha cronológica, é, antes, útil entender que o termo eonismo
significa a tendência de homens a adotar costumes considerados culturalmente
femininos. A expressão originou-se em um diplomata francês, Charles de Beaumont,
mais conhecido como Chevalier d'Éon: em português, o Cavaleiro de Eon7 que, por
muitos anos de sua vida como soldado, alegava ser uma mulher. Como agente
secreto, ele inicialmente se travestia usando vestidos, saltos e perucas com a
finalidade do disfarce; essa era uma necessidade profissional e um atributo de
negociação para infiltrar-se em espaços de difícil acesso. Mas o que iniciou como
ornamentação, recaiu em um hábito pessoal.
Madame Beaumont, como também era conhecida, mantinha uma certa
autorização no sentido da mobilidade entre os gêneros, já que servia ao trabalho de
espionagem ao Rei Luiz XV. Uma possibilidade para entender tamanha aceitação
desse travestimento seria pelo poder que a aristocracia tinha, mantendo tal
comportamento inquestionável. Apesar dos rumores e do grande estranhamento que
suscitava em todos, já que este gosto era público, jamais teve sua posição social
ameaçada na corte francesa. Curiosamente, “Nas histórias que o/a cercam inexiste

7Nascido em 1728 e falecido em 1810, seu nome de batismo era Charles Geneviève Louis Auguste
André Timothée D’Eon de Beaumont, herdeiro de uma família francesa nobre (BRITISH MUSEUM,
2014 – tradução nossa).
55

uma moral assentada no pressuposto da determinação natural das condutas”


(BENTO, 2008, p. 16-7).

Figura 3 – Chevalier d'Éon e suas facetas femininas

Fontes: Chevalier (2013); British Museum (2014).

Diante dos exageros, possivelmente como uma resposta a tanta


extrapolação visual, o final do século XVIII foi aos poucos, mostrando um tempo de
renúncia na ornamentação masculina, sugerindo uma maior funcionalidade. Como
resquício, até hoje fica a cargo da mulher a elaboração em busca da beleza
conspícua. A uniformidade por sua vez, garantia ao homem a credibilidade e
respeitabilidade em uma época industrial e de grande efervescência no mercado.
Monneyron (2007) lembra que é na Revolução Francesa que ocorre a distinção
dimórfica mais eficiente, quando se proíbe às parisienses o uso da calça e a
56

chamada não moda para os homens. A seriedade estava enfim, instaurada nas
vestes masculinas, e no século XIX, é então proposta a austeridade para o traje
masculino, para refletir o trabalho e o consequente anseio financeiro, de forma a
deixar os ornamentos e a ociosidade necessária para as suas esposas e filhas.
Foi também, por conta da Revolução Industrial, que se exigiu do homem
passar mais tempo no trabalho e, portanto, ser mais comedido nos trajes, a fim de
refletir sua produção material. A palavra de ordem era a sobriedade, que virou
sinônimo de riqueza, mesmo não aparente. Essa função ficava sob a
responsabilidade da esposa, papel reforçado pelo comportamento bastante
submisso e limitado que a ela era dado. Exceto pelo vestuário, o que o torna tão
interessante para elas. Com isso, surge a funcionalidade da calça e a austeridade da
camisa, em contraponto com a ociosidade do espartilho, a frivolidade dos babados e
toda a ostentação dos acessórios que marcavam a separação de gêneros e suas
respectivas funções sociais (FRINGS, 2012).
Como extensão a essa narrativa histórica, o período vitoriano privilegiou uma
mulher delicadamente frágil, dependente de seu esposo tanto no quesito financeiro
quanto no emocional. Levando em conta o padrão de beleza mostrando uma mulher
fisionomicamente debilitada, esta fazia seu corpo insuficiente supostamente urgir por
camadas de tecidos e em meio a estruturas como corpetes, anáguas, crinolina e
barbatanas, sem contar os acessórios, que a deixavam na realidade, ainda mais
impotente. Além disso, sua pele clara representava sua condição social e, em uma
sociedade patriarcal, sustentar uma mulher incapaz com todos seus caprichos era
sinônimo de riqueza e poder sexual.
Mesmo que muito breve, a época eduardiana serviu para deixar de lado
tanta infantilidade e fraqueza. Embora ainda volumosas, as roupas da época
pressentiam lentamente, a mulher mais emancipada, justamente quando ganhavam
força os movimentos feministas. Houve uma singela tentativa de instaurar a calça,
mas ainda era cedo demais para os mais tradicionais; logo foi abolida, mesmo com o
pretexto do uso da bicicleta.
Foi então que efetivamente no século XIX, instaurou-se a preocupação com
o dar voz aos novos anseios da burguesia, ocasionando, como era de se esperar,
uma grande mudança no trajar como resposta a esse novo estilo de vida. A
industrialização também foi um dos fatores responsáveis por acentuar o
antagonismo dos sexos, reservando às mulheres tarefas mais sedentárias; aos
57

homens foram dadas atribuições externas ao lar. A vida segregária obrigava


distintas atuações de gênero. Sintetizando a bibliografia histórica de Gilda de Mello e
Souza (1987), uma parcela bastante considerável de mulheres se resumia em
orientar seu tempo na busca de um interessante marido, já que seria a maneira mais
eficiente de ascensão e manutenção social, além de estabilidade econômica. Nessa
perspectiva, as mulheres deveriam estar confinadas nos lares, e as atividades
cotidianas convergiam para o preparo de um futuro casamento, levando-as a
desenvolver seus dotes manuais e a se ornamentar cada vez mais.
A situação de eterna solteira era um quadro bastante assustador, mas não
mais do que precisar se dedicar a algum trabalho remunerado. Assim, prevalecia a
entrega a dotes domésticos inúteis. Motivada por esse receito com a acentuação do
ócio, a arte da sedução e do exibicionismo via-se culminante no cenário feminino
para atingir a essa expectativa:

Tendo a moda como único meio lícito de expressão, a mulher atirou-se à


descoberta de sua individualidade, inquieta, a cada momento insatisfeita,
refazendo por si o próprio corpo, aumentando exageradamente os quadris,
comprimindo a cintura, violentando o movimento natural dos cabelos.
Procurou em si – já que não lhe sobrava outro recurso – a busca de seu
ser, a pesquisa atenta de sua alma (SOUZA, 1987, p. 100).

A alienação e reclusão conferiam o impulso artístico e a exuberância no


planejamento de sua complexa plasticidade pessoal, um verdadeiro estilo de
existência. Todo o encanto era para elas, correspondendo ao uso excessivo de
cores, formas, acessórios e maquiagens, enquanto o homem estava compromissado
com a industrialização e evolução fabril. A austeridade e monotonia no trajar
ficavam, dessa forma, por conta dos trabalhadores e a renúncia ao excesso
aproximava-se cada vez mais, de uma simplicidade funcional que visava passar
despercebido com os uniformes. A regularidade visual incentivou o interesse maior
pelos bigodes bem pontudos, cabelos aparados e chapéus, como também pelas
bengalas e luvas. Apesar de igualmente sóbrios, a autora considera esses
elementos como símbolos fálicos, uma vez que representam uma compensação
pela renúncia visual que o homem teve de assumir. Nesse aspecto, os substitutos
dos ornamentos incluíam até o fumo excessivo dos charutos.
As distinções visuais dos sexos ficavam no âmbito funcional também. O
empecilho que tolhia os movimentos das mulheres servia de subsídio para demarcar
58

uma posição de não estar desempenhando nenhum trabalho braçal. Alguns


mecanismos da moda reproduziam ludicamente a futilidade, no sentido de impedir
qualquer prática de trabalho. A saber: os saltos altos lhes davam permissão de
poucos passos; os espartilhos, mal as deixavam respirar; as crinolinas negavam
qualquer transporte, assento ou porta que fosse simplório na sua largura; as luvas
apertadas, em delicadas mãos, faziam poucas e leves coisas caber-lhes; as caudas
de vestidos podiam ser varridas somente em chãos limpos nos passeios. Ou seja,
inúmeros são os exemplos de inflexibilidade física que reforçam a ociosidade e o
esnobismo das mulheres da nobreza da época.
Ainda pela visão de Souza (1987), a emancipação feminina surge como
ponto de convergência para importantes mudanças no vestir e no comportar-se,
antes vistas somente no âmbito doméstico, como o exibicionismo, a imitação e o
recalque, graças especialmente, à proliferação das atividades produtivas. A cientista
social defende que a moda foi o principal recurso de identificação entre os sexos, e
uma vez que o desenvolvimento da indústria permitiu a libertação das mulheres das
classes altas nas atividades produtivas, acabou por proporcionar um destaque a elas
nos centros urbanos. O desenvolvimento da indústria ocasionou um acesso mais
variado de matérias-primas e informações de tendências em jornais, retratando os
gostos de outros países para acompanhar e copiar. As ruas e avenidas, agora mais
bem preparadas para os transeuntes, eram palco para a visibilidade e teatralidade
pública.
Crane (2006) concorda que, nesse período, era a moda que claramente
distinguia os papeis de gênero, ao ornamentar a mulher da nobreza de forma a não
restar dúvidas de sua ociosidade aristocrática. Uma verdadeira matrona burguesa
com vários criados para desempenhar as atividades por ela. Com frequência, as
solteiras e trabalhadoras desafiavam essa lógica, já que suas – poucas – roupas não
eram restritivas, sendo impensável o uso de cores claras, crinolinas e sombrinhas,
por exemplo, nos ambientes de fábrica. Muitas delas, com o apoio de movimentos
feministas, reivindicavam o direito de usar peças mais saudáveis, como as calças.
Dentro dessa perspectiva, Amelia Bloomer se mostrou muito à frente de seu tempo
quando, refletindo sua militância na equiparação de gêneros, propôs uma reforma no
vestuário. Acabou emprestando seu nome para a criação de uma peça. Mesmo
possuindo uma saia, a calça bloomer era volumosa por debaixo dela e foi pouco
compreendida, repercutindo no cenário internacional quando a própria Amelia
59

publicou em uma revista em 1851. Poucas tinham coragem de permanecer usando


tal modelo de roupa após a negativa repercussão e os assédios constantes nas
ruas. Apenas ela foi autorizada, graças à popularização de atividades ao ar livre,
como pedalar, nadar e andar a cavalo, hábitos de lazer que exigiam maior
mobilidade até para as damas da sociedade. Para Crane (2006), no final do século,
a cultura começa a ser global e notadamente, os estilos começam a se propagar, o
que inevitavelmente, gera mais compreensão do todo. E assim, Londres era o polo
para o vestuário masculino ocidental; e o feminino, oriundo de Paris.
Outro marco interessante a ser pontuado na história da moda, pela visão dos
estudos de gênero, foi o dandismo, um movimento caracterizado pela sobriedade na
distinção do vestir, destacando a masculinidade na sociedade que por muito tempo,
tinha voltado as atenções para o vestuário das mulheres. Propunham assim, a
ternura feminina em uma figura masculina, com um ar superior voltado ao ócio,
segundo Eco (2010, p. 333) resume: “Como exemplo sublime de aristocrático tédio e
de desprezo pelo sentimento comum [...]”. Era quase como uma forma de protesto
visual; o rompimento definitivo do dimorfismo trazido pela Revolução Francesa. De
visual contestador do parecer, ele reivindicava o direito de, assim como as mulheres,
também poder exalar os cuidados com a aparência.
Um dos ícones dândis era George Bryan Brummell. Costumes requintados e
ar de esnobe, Beau Brummell como era conhecido, significou o arquétipo deste
fenômeno na Inglaterra, propondo trajes modernos, incluindo a gravata, indo contra
a dinâmica da moda masculina no início do século XIX. Mesmo que não tivesse
origem aristocrática, ele influenciou o estilo de vida da alta sociedade, ao retirar
todos os excessos como os saltos altos e as cores chamativas. Contradizendo a
lógica da distinção da época, ele comprovou que a elegância poderia ser algo
aprendido, e não vindo obrigatoriamente de berço. Mesmo sem credenciais
hereditárias, terras, ou até mesmo um endereço ou renda fixa, ele possuía um
refinamento que era ensinado aos demais homens de classe, salienta Hollander
(1996).
De aparência alinhada e sóbria, ele dizia que um homem deveria cuidar da
manutenção da elegante, porém sem perder a discrição – sentimento chave para ser
considerado um dândi. Legendário, ele corporificava um novo estilo que surpreendia
por conseguir articular a alfaiataria com conceito de urbano. A essência dessa
tendência estava na dedicação dada aos adornos. Batterberry (1977 – tradução
60

nossa) afirma que Brummell era considerado realmente original, pois introduziu não
somente uma nova proposta bastante específica, mas todo um conceito baseado na
elegância masculina cujas diretrizes são seguidas até os dias de hoje. Além de
roupas ajustadas perfeitamente ao corpo e o uso do linho, foi seu mérito trazer à
tona para a época, os cabelos curtos mostrados sem mais as perucas. Em um
período em que a toalete não era valorizada, o rosto barbeado e a higiene pessoal
impecável que incluía doses diárias de banho com leite seguramente chamavam
muita atenção.
A rotina de Brummel era um tanto quanto excêntrica: engraxar seus sapatos
com champanhe e gastar diariamente cinco horas para se arrumar com direito à
plateia presenciando-o, na chance de tentar seguir seus passos. O cuidado extremo
da alfaiataria levava-o a encomendar suas luvas em lugares diferentes durante sua
confecção, sendo os dedos de pelica em um lugar e os polegares, em outro. Ainda
como precursor, escovava os dentes diariamente e cuidava para se manter limpo o
dia todo, nem que para isso, trocasse de roupa quantas vezes fosse preciso. Morreu
em um hospício em 1840. Embora a ostentação não fosse mais bem vista, o
entendimento da exuberância estava no cuidado excessivo com a aparência,
considerado até então, algo pertencente ao universo feminino (COX; JONES;
STAFFORD, 2013).
Outros nomes foram também muito importantes nesse modelo de vida
refinado e sustentado por hábitos conspícuos. Entre eles, Lord Byron e Charles
Baudelaire, cada um com suas excentricidades, mas sempre mantendo “uma arte de
viver no cotidiano”, poetiza Maffesoli (2010, p. 78). A finalidade era apresentar a
austeridade inglesa no trajar, propositalmente se distanciando da decadência que se
pronunciava na França. Isso se transformava em uma tentativa de deixar de lado os
exageros do Rococó e do Barroquismo, ocasionando uma limpeza, tanto na
aparência quanto na higiene pessoal e até na postura. Esse estilo inspirado na
ociosidade e no gosto pela arte como representação máxima da estética elitista, foi
adotado também por Oscar Wilde, que se potencializou pelo sua homossexualidade
no final do século XIX, na Inglaterra. Mais do que posses ou direitos hereditários,
Svendsen (2010) acredita que ele tinha elegância corporificada graças aos
alinhamentos sofisticados trazidos pela alfaiataria.
Todos esses e outros dândis foram homens autoindulgentes ao propor um
grande cuidado de si, com um refinamento um tanto quanto excêntrico, por meio da
61

alfaiataria criativa e da qualidade nas vestimentas. O dandismo permanece


correspondendo a um estilo no vestir caracterizado pelo excesso de cuidados no
trajar do homem contrapondo-se à discrição nos gestos. Sobre essa releitura, para
muitos, Eduardo VII foi um ícone de inspiração para até hoje representar esse estilo.
Essa observância em seguir uma formalidade padronizada e segura, quase
patriarcal, com elementos visuais aristocráticos, causou uma grande estranheza na
época. Tanto que, no influente documento de 1857, ‘Estudo forense de atentado ao
pudor’, o médico francês Ambroise-Auguste Tardieu justificava a identificação da
pederastia em termos de uma aparência efeminada e em um interesse suspeito por
moda, já que não era um hábito tido originalmente masculino (STEELE, 2013 –
tradução nossa).
Interessante de se perceber é que este tipo de beleza masculina pôde
aflorar muito em função da segurança feminina. Prenunciando talvez, o que
aconteceria no próximo momento da história, sobre a independência das mulheres,
a fragilidade começa a ser vista na aparência deles, sendo compartilhados alguns
antigos critérios de beleza antes só exigidos delas. Ilustrava uma suavização, já
pensando em uma maior igualdade que estava por vir, cujas fontes de informações
populares da época nem mesmo conseguiam descrevê-los. Segundo Vigarello
(2006), as características cabíveis como belo, delicado e perfeccionista eram muito
destinadas ao universo feminino até então.
Chegando ao século XX, Crane (2006) aponta para o fato de que a Primeira
Guerra Mundial trouxe uma preocupação de sobrevivência tanto física quanto
simbólica, já que muitas cidadãs dos países em conflito, pertencentes da classe
média e mesmo da alta, precisaram trabalhar no lugar do marido que estava na
batalha. E mais, como uma forma de mostrar a presença e credibilidade do homem
ausente, elas preferiam silhuetas com conotações consideradas mais
masculinizadas para a época. Este estilo alternativo se materializava com o uso de
casacos, gravatas e coletes, e colocou as mulheres, antes extremamente
ornamentadas, em um patamar nunca antes tão próximo à moda deles, desde a sua
origem como um sistema cíclico social. Criou-se inclusive, para isso, uma expressão:
à la garçonne. Nas cenas mais vanguardistas de lugares como New York, a troca
visual de papeis era tão marcante, que já se podia usar a expressão cross-dressing
pela associação com a subcultura lésbica, pois esse fato ultrapassava meramente o
tomar emprestados alguns elementos do guarda-roupa do homem.
62

Antes desse tempo, a sensualidade era enfatizada por meio de tecidos,


simulações e ornamentos. É aqui que a mudança maior acontece no âmbito do
corpo, quando este, por si só, é a atenção maior, e as exposições propositais de
partes de pele se bastam para compor uma figura com apelo sensual. Diretamente,
ele passa a ser o protagonista da beleza e então, todos os cuidados estéticos são de
interesse também da área médica. Não mais oculto, Hollander (1996) enaltece a
noção do toque na pele, sem intermeio e sem a impressão de vulnerabilidade. Na
mesma intensidade, as matérias-primas naturais foram mais aprimoradas – couros,
pelos e sedas – para o deleite tátil das mulheres. Gabrielle Chanel soube
materializar esse espírito de confiança sexual, ao mesmo tempo priorizando o corpo
para trazer conforto ao refinamento, como elemento possível de ser levado em
conta. Invariavelmente, traços masculinos vieram à tona, ao propor independência
no vestir, com peças que não necessitassem do auxílio de uma segunda pessoa,
como era vestir um corpete. Além da calça e do cabelo curto, um ícone pouco
abordado na história da moda pelo viés do gênero é a bolsa 2.55, uma invenção de
Chanel que simbolizava a equiparação dos sexos. Isso porque, tal acessório enfim
possuía alças, demonstrando que as mulheres estavam mudando já que precisavam
de uma bolsa mais condizente com sua vida dinâmica, permitindo as mãos livres
para questões mais importantes.
Há de se considerar que, talvez a principal transformação na barreira de
gêneros na indumentária foi no decênio 1920, quando as cidadãs mais
vanguardistas começavam a efetivamente, buscar seu lugar na vida política e
econômica. Precursores de um espírito de tempo já saturado dos excessos no trajar,
o vestuário feminino passa por eliminações nas suas estruturas. Para tanto, busca
inspirações na vestimenta masculina. Muitas mulheres, já em posições significativas
de trabalho, obrigaram-se a afrouxar o espartilho, a recusar a crinolina, a diminuir o
chapéu e a encurtar a saia para facilitar a mobilidade nos afazeres, desta vez, não
só no âmbito doméstico. Embora na parte de baixo continuassem a imperar as saias
e saltos, o tornozelo torna-se a zona mais erótica, já que, pela primeira vez na
história da moda ocidental, ele retorna a ser visto. Desde então, nunca mais
precisou ser ocultado novamente. Vale lembrar que agora elas tinham muito mais
tempo, antes desperdiçado com lavagem das inúmeras peças sobrepostas, além de
precisar passá-las, remendá-las e simplesmente, ainda vesti-las. Da mesma forma,
os cabelos, não mais até a cintura, poupavam as mulheres de ficarem horas
63

lavando, secando, penteando e o elaborando. Paralelamente a isso, a vida fora de


casa começa a trazer mais oportunidades de relacionamentos entre gêneros. Assim:

[...] realmente, à mulher reprimida fisicamente por adornos incômodos como


a crinolina, ou moralmente pela decência a um número de gestos muito
limitado opõe-se uma mulher muito mais livre em seus movimentos e
potencialmente livre para se entregar às mesmas atividades dos homens, e,
além disso, para se comportar como eles em todas as áreas da vida social
(MONNEYRON, 2007, p. 44).

Descobrindo o que a sociedade poderia oferecer-lhes, a prática de esportes


a céu aberto e a pele corada pelo sol começa a virar sinônimo de saúde; não é mais
uma consequência de um trabalho braçal. Até a bermuda começa a ser vista nos
períodos de ócio ou de atividades físicas. Como era esperado, a calça era a peça
menos atraente quando vista nos eventos públicos. Lurie (1997) ainda reflete que
até hoje há escolas tradicionais que perduram a obrigação da saia como uniforme
para representar a obediência. O período de 1920 mostrava apetrechos que já
sinalizavam a emancipação feminina, como gravatas e colarinhos. Aliando-se a isso,
a atriz Louise Brooks e seu cabelo curto eton crop foi um ícone na época, bastante
distante do padrão de beleza de poucos anos antes. Derivadas da imagem do
homem, elas recorriam aos atributos simbólicos além do cabelo, achatadores de
seios para definir uma silhueta mais tubular, cintura deslocada para o quadril e
demais recursos, como correspondência à evolução do comportamento: direito ao
voto, fumo em público, direção ao carro, saídas sozinhas à noite entre outros
hábitos.
Houve também, os maiores progressos na indumentária em menos tempo.
Popularizaram-se os tecidos com maior maleabilidade e a produção requereu o
auxílio de zíper e de elásticos para acompanhar o movimento corporal. Nascia um
novo estilo de vida vanguardista para a época, apresentando mulheres boêmias,
audaciosas e livres. Vigarello (2006, p. 143) justifica: “Essa gracilidade não é apenas
formal. Ela pretende revelar a autonomia das linhas do corpo, ilustrando a profunda
transformação da mulher” que estava só iniciando.
Como contraponto a esse início de liberação visual de gêneros, foi nessa
mesma década que ocorreu a publicação de um guia em Paris, advertindo que nos
arredores da Champs-Élysées, poder-se-ia deparar com jovens homens exprimidos
em casacos cinturados, escandalosamente enfatizando o quadril, com ridículo
64

cabelo ondulado. Um verdadeiro preparo psicológico para os transeuntes, Steele


(2013 – tradução nossa) afirma. Como esperado, a subjetiva contrapartida dos
homens veio na forma do frescor no vestir. Era o caso de Barbette, apelido dado ao
ator que no meio artístico ficou conhecido justamente pelas suas performances, nas
quais se apresentava somente com elementos estéticos e trejeitos femininos, e a
nem todos agradando.
Figura 4 – Barbette se produzindo e em uma de suas performances

Fontes: Vintage Drag (2015); Trans (2015).

Essa democratização visual estende-se nos decênios de 1930 e 1940 como,


por exemplo, pode-se perceber na figura de Marlene Dietrich, que também adotava
elementos masculinos – a atriz alemã será importante novamente no subcapítulo
sobre a popularização dos filmes de Hollywood como outro recurso de imagem para
aproximação do tema. Entretanto, essa mesma dialética da aparência se dá por um
65

outro motivo: a recessão causada pela Segunda Guerra Mundial, período no qual
novamente, o homem se ausenta e assim, faz as mulheres serem mais funcionais
no modo de vestir, uma vez que começam a sustentar a família e precisam gastar o
mínimo em objetos supérfluos. As atividades fora de casa, tanto por uma
necessidade profissional como de lazer, começam a deixar marcas no corpo. As
peças de banho permitem que o sol bronzeie as peles e a musculatura fica torneada,
graças à popularização da prática de esportes ao ar livre.
Mas, com a chegada do pós-guerra, um sentimento de paz e esperança vem
à tona. Graças ao retorno dos homens, Crane (2006) assinala que as mulheres das
classes médias e altas poderiam voltar a serem românticas donas de casa, como foi
muito representado nos filmes, através do estilo American Way of Life. A moda na
década de 1950, como previsto, dialogou com esse fato, trazendo a feminilidade de
volta, com a cintura bastante marcada, os quadris largos e as saias rodadas.
Enquanto isso, os meninos celebravam o rock com jaquetas e jeans, em especial
com esta calça que teve uma rápida popularização, vinda de uma alternativa de
uniforme durável e barata de trabalho nas mineradoras, e que se tornou talvez, a
peça mais unissex já criada. Por esse fato, o New Look é até hoje, a representação
máxima de uma vontade de mudança que durante a Segunda Guerra Mundial havia
sido perdida, quando um único traje composto por um blazer e uma saia repercutiu
no mundo inteiro, ao propor o uso de muitos metros de tecidos para simplesmente
confeccionar o efeito plissado. O desperdício é curiosamente celebrado, símbolo do
fim da recessão.
Em estudos paralelos, Gilberto Freyre (2009) já percebia o lugar peculiar da
moda pelo motivo de ela dar conta de explorar e projetar as mudanças sociais.
Consubstancia um modo de ser e estar no mundo, incluindo uma ética entre sexos e
suas moralidades nas relações. Notadamente o autor defendia isso; inclusive
propunha uma diferenciação na esfera textual: ‘modos’ relacionados ao homem e
‘modas’ destinadas às mulheres como mudanças de gostos e hábitos mais
efêmeros. Mesmo não ultrapassando o plano simbólico, de qualquer maneira, atinge
a arbitrariedade da figura masculinizada ou da estética da feminilidade. Ele atenta
para o fato da função básica da moda, a distinção, e chama de mulher ornamental a
passividade delas para com os maridos, servindo seus aperfeiçoamentos de
artifícios para testemunhar o apreço deles.
66

Para Freyre (2009), houve algumas tentativas de atravessamentos como o


episódio envolvendo o artista Flávio de Carvalho, pois, por detrás de um ato, há
sempre uma complexidade pouco compreendida no tempo presente e deste em
específico, talvez só agora seja possível uma certa maturidade para enxergar algo
revolucionário. Tamanha repercussão isso trouxe, que por muitos, esse homem se
fez notar e passou a ser guardado na história, simplesmente por usar em 1956 uma
saia na rua. Foi um ato considerado uma dissimulação visual, embora muito antes
ele fosse um importante nome do universo das letras e das artes. Sua proposta era
expor uma releitura lúdica do New Look, e focar em como seria a composição
masculina mais adequada ao clima tropical brasileiro.

Figura 5 – Flávio de Carvalho e seus apelos artísticos ante a ditadura das


tendências vindas do Hemisfério Norte

Fonte: Carvalho (2012).

Em seguida, como resposta à natalidade do pós-guerra, há uma proliferação


da cultura jovem graças ao baby boom. Pela primeira vez, os adolescentes eram os
verdadeiros portadores de informações, influenciando as condutas de toda uma
sociedade. É descoberta Twiggy, uma menina andrógina, pálida, extremamente
67

magra que viraria modelo mundialmente reconhecida. Com a proliferação da


subcultura hippie, a distinção de gêneros no vestir fica menor, e ambos voltam a
usar vestes com muito mais conotações remetendo oposições ao machismo, aos
conflitos mundiais e às ideologias do que propriamente direcionadas a uma
preocupação com uma segmentação sexual. O unissex, nesse sentido, disseminou-
se facilmente. O estilista Yves Saint Laurent cria em 1966, o smoking feminino, e a
minissaia de Mary Quant eclode com a sexualidade até então reprimida, um símbolo
de ruptura, contracenando com o anticoncepcional e com a revolução sexual
progressista.
No mesmo decênio, Amanajás (2014) aponta que houve a formação do Dzi
Croquettes, um grupo de dança que misturava coreografias provocativas e
encenações irreverentes, em que os bailarinos ficavam seminus ou travestidos na
maioria das vezes, com o auxílio de muita purpurina, maquiagem e acessórios.

Figura 6 – Cenas em palco do Dzi Croquetes


68

Fontes: Interative (2011); Deformance (2011).

Com o apadrinhamento da atriz americana Liza Minnelli, os dançarinos


despontavam no meio artístico, levando especialmente para Paris, um ritmo sensual
da bossa nova, com o profissionalismo artístico e mensagens da contracultura.
Mesmo não sendo deliberadamente o objetivo inicial, a travestilidade e a
preocupação em definirem-se como ‘gente’ apenas, não como homem ou como
mulher, também abriram portas para afirmação dos direitos dos homossexuais.
Lobert (1979) coloca que as apresentações – que iniciaram em 1972 no Rio
de Janeiro e por esta pesquisadora acompanhadas de 1973 até 1974 – possuíam
um discurso não só estético como também ético. Durante o auge da repressão
política, ela explica que o teatro era visto muito mais como um espaço subversivo do
que de produção cultural. E foi dali que o grupo ficou conhecido, sempre contestador
às tradições machistas, embora não sem os temores de possíveis confrontos
políticos:

O estilo estético adotado cria certos receios. Lennie com sua grande
experiencia de confrontação com o público confessa: “No começo eu
estranhava terrivelmente [...]”. Os atores criaram vestuário transgredindo
todos os padrões socialmente conhecidos até então, sejam tradicionais ou
de fantasia. Mas a ressonância simbólica apontava, sobretudo para o
confronto de corpos masculinos em roupas supostamente femininas
(LOBERT, 1979, p. 07).

Na pesquisa de campo realizada durante as turnês, a autora relata as


constantes trocas de roupas no decorrer das peças, sendo um artista sempre
diferente do outro. Mesmo com a autoatribuição sendo ‘show de travestis’, o que
mais chamava a atenção para o público da época eram as ambiguidades. Tangas,
purpurinas, luvas de cetim, saias e saltos em corpos viris, barbas e pelos reafirmam
a ótica da transgressão pela dança e teatro.
De cunho político, as performances, através de expressão corporal
estridente, utilizavam da linguagem cênica para trazer certas problemáticas sociais
brasileiras em pleno regime militar. Por ter chamado a atenção da ditadura, muitos
materiais foram censurados; motivo pelo qual há poucos registros sobre o grupo e
os espetáculos.
Tantas mudanças vindas à cena, especialmente trazidas pelos jovens,
alteram o rumo da história. Não querendo mais os valores de passividade e tradição
69

de seus pais, aqueles fazem a diferença e conquistam espaços antes inimagináveis.


Liberdade sexual, realização e expressão da identidade, atuação na política e várias
imprevisibilidades, sempre em sintonia com a geração pensada como um todo, sem
a autoridade patriarcal. No tocante a esse ponto, Vigarello (2006, p. 175) sublinha:

O conjunto desses comportamentos de consumo, ou igualitários, é


contemporâneo de uma oscilação decisiva da qual a estrela do pós-guerra
estabeleceu o exemplo: a afirmação definitiva da condição feminina. Tudo
muda a partir dos anos 1960: é impossível pensar, como antes, no horizonte
do masculino e do feminino.

A divisão sexual, tão demarcada nos anos anteriores, dá lugar à igualdade


por intermédio das camisetas, tênis e calça jeans para todos. A valorização é dada
pelas atitudes de cidadania e em prol do bem coletivo.
E assim, Steele (2013 – tradução nossa) salienta que o Peacock Revolution8
estava premeditado a acontecer em resposta à intolerância aos considerados maus
costumes dos anos cinquenta. Levemente, houve uma flexibilidade no trajar
masculino, oferecendo a eles mais opções de peças, semelhantemente à realidade
delas, em vez do rígido e diário terno para todas as ocasiões. Cores, estampas,
silhuetas e materiais foram expostos, a fim de condizer com uma vontade latente de
individualmente expressar-se, demonstrando uma profunda mudança no contexto
social, em especial vinda dos jovens. Os homens começam a perceber o peso do
capital estético e o comércio de beleza logo toma esse espaço, lançando produtos
específicos para eles.
A noção de masculinidade pode estar presente nas escolhas das roupas e
no comportamento, acredita Cole (2013 – tradução nossa). A história do estilo gay
sempre esteve ligada ao esforço de exprimir uma hipermasculinidade ou
feminilidade extrema. O autor se apropria das teorias de Butler para justificar, com
base na noção da performatividade, uma negociação tensa e permanente para se
expor, culminando isso na aproximação maior com a moda. Logo, o invólucro
corporal demonstrava a identidade de gênero conforme os estereótipos da época.
Foi também nesse período que a Alta Costura ganhou pela primeira vez, um
setor masculino, registrando de vez o interesse dos homens pela moda. O mercado,
percebendo isso, investe nesse ramo e as opções de peças aumentam graças à

8A tentativa de tradução para o português as palavras ‘pavão’ e ‘revolução’ faz perder seu sentido,
portanto, a expressão do movimento social é usada em inglês.
70

inclusão “[...] do vestuário masculino na lógica eufórica da moda” (LIPOVETSKY,


2005, p. 130). Depois de muito tempo na austeridade, enfim há um imperativo de
libertação, pelo menos nas horas de lazer. Estampas iniciam pela roupa de esporte,
dando passagem para as demais linhas. Camisetas e moletons tornam-se populares
aos jovens, com uma variedade de estampas nunca antes vista. Somada a isso, há
uma redução considerável da diferenciação dos sexos identificada nos cabelos e
acessórios.
Foi no início de 1970 que a cultura pop explorou o seu máximo, com
premissa da estética punk, elementos fetichistas, glam rock e influências da arte. O
não binarismo sexual nas produções estéticas era visto em ícones como David
Bowie, que se perpetuou como uma referência andrógina. O cantor, por vezes
brincava por meio de personagens em videoclipes e turnês, travestindo-se e
provocando seus muitos seguidores. Crane (2006, p. 367) garante que “Ele foi o
primeiro cantor a projetar uma imagem escancaradamente travestida” que subvertia
as questões de gênero.
E assim, já se aproximando do final do século, as jovens que entravam
massivamente no mercado de trabalho instrumentalizaram seus corpos, como que
na intenção simbólica de mostrar que podiam tomar postos masculinos, e ainda
manter a feminilidade. Por isso, adverte Lurie (1997), criou-se uma forma de trajar
que, da cintura para cima, denotava uma silhueta com ombros marcados pelo uso
de jaquetas e blazers defensivos e com cores sóbrias. Quando elas se levantavam
por detrás de suas mesas, surpreendiam com minissaias, meia-calça e saltos. O
foco estava nos ombros acentuados com as ombreiras para mostrar a mesma
posição de prestígio profissional, mas sem deixar de lado a feminilidade. A conquista
de modos diferentes de expressão dá vazão a uma maior presença não
heterossexual nos espaços públicos e os princípios de liberdade para pertencer a
grupos garante maior visibilidade. O direito à diferença traz multidões às paradas
gays em cidades do mundo todo. Visa a democratização, embora com obstáculos.
No tocante à trajetória histórica mais recente, o metrossexual foi um termo
que permitiu dar conta daqueles homens considerados excessivamente
preocupados com a aparência, despendendo dinheiro e tempo a mais do que a
maioria dos demais. A expressão, criada especificamente em 1992 por um jornalista
americano, já tinha a intenção de projetar a abertura sexual que estaria por vir no
século XXI: um “homem heterossexual que lida bem com seu lado feminino”
71

(SABINO, 2007, p. 437), de acordo como alguns dicionários tentam explicar. Foi o
momento de expansão nas lojas de departamento, oportunizando espaços nas
araras nunca antes vistos para as secções masculinas. No embalo, a indústria de
cosméticos também aumentou, criando novas linhas de produtos. Um dos ícones
desse grupo foi o jogador de futebol David Beckham. Essa foi considerada uma
emancipação irônica do homem, em resposta à posição da mulher na pós-
modernidade. Tal emancipação, permite-se questionar a virilidade e desconstruir o
rótulo etimológico, propondo uma identidade com prefixo nem homo nem hetero,
mas metro. Com isso, é o final do século XX que trouxe uma maior tolerância nas
noções fixas no vestir os sexos, sempre em fina sintonia com o modo de pensar
vigente.
Ocorre que atualmente, mesmo que ainda tímido e insólito, já é possível
relatar alguns fatos mais contemporâneos para evidenciar a abertura no mercado de
moda para os estudos de gênero, os quais permitem dar margem para mais debates
nas áreas correlacionadas. Percebe-se, por exemplo, um movimento, mesmo que
lento, para deixar de sexualizar as roupas. Marcas como Commes de Garçons e
Yohji Yamamoto já não seriam uma novidade de aposta nesse estilo, uma vez que o
japonismo é uma estética à parte que sempre trouxe influências de linhas
minimalistas. O que é de surpreender é a aderência de tradicionais marcas de luxo
como a de Yves Saint Laurent e Hermès, que apresentaram suas últimas coleções
nas semanas mundiais de desfiles com tal proposta. Também chamam atenção as
lojas de departamento como Topshop e Selfridges, as quais recentemente abriram
uma seção de moda agender. Em uma tradução livre, essa seria algo assexuado,
sem definição de gênero, que também já é tida como non-gender, gender-neutral ou
genderless. A finalidade maior é transcender as noções tradicionais de como se
produzem e se vendem roupas (THE GUARDIAN, 2015).
Com os dizeres “Como Jaden Smith e seu vestido estão mudando a moda9”
(I-D, 2015 – tradução nossa), a chamada da matéria já denota a influência que
causa o filho do ator Will Smith, agora adolescente. O assunto genderless já foi
noticiado em outras ocasiões nesta mesma revista bastante conceituada no universo
do design, música e artes também: a I-D Magazine. Nesta, Jaden é considero
alguém de espírito livre e um dos ícones de tendência desse novo estilo que

9 Texto original: “How Jaden Smith and his dress are changing fashion”.
72

defende não mais uma apropriação dos opostos, pois não deveria nem mesmo
haver o simples oposto. São roupas. E separá-las conforme o seu usuário é
estereotipar de maneira arcaica. A música já tentou por várias formas, compor esse
repertório, mas talvez, questiona a revista, seja responsabilidade da moda enfim,
transgredir o binarismo por meio do visual, sentido que por vezes, é mais eficiente
do que da audição, do tato, do paladar e do olfato juntos. Nesse sentido, pessoas
heterossexuais e inseridas na cultura pop como Jaden, que divulga suas compras de
roupas na sessão feminina de redes de departamentos, instiga a refletir sobre os
novos rumos do mercado de consumo. Fato histórico sobre isso é a maior e a que
mais vale na condição de marca de luxo de moda, a Louis Vuitton (2016), estrear
com ele, a campanha de verão 2016/17 da linha feminina.
Tais produtos de moda alternativos que a priori não se posicionam para
somente um segmento, são ainda orientados para circuitos bastante restritos, de
demanda específica e em lugares vanguardistas que já possuem um histórico de
lançamento de tendências. Por ser algo que ainda está sendo maturado, não há
ainda livros que comprovem tal consolidação. Logo, as referências aqui citadas são
todas elas de endereços eletrônicos internacionais.
Essa prática transgressiva como tendência de comportamento é vista como
um grande desafio para o mercado de moda, pois sua ordenação sempre foi
fundamentalmente binarista. Sobre o gerenciamento, seguramente a primeira
distinção diz respeito ao gênero. Nas etapas metodológicas de um projeto de design,
antes mesmo de pesquisar, desenvolver, precificar e vender uma peça, é a escolha
do perfil do público-alvo que definirá as principais tomadas de negócio. Na outra
ponta, é também verdadeiro. Na loja, mesmo que o cliente se interesse por um
produto que não seja da sua categoria, os atendentes, talvez até sem a
intencionalidade, informam que aquilo não pertence a sua opção de possibilidades,
indiferentemente do seu gosto. Também o cronograma das apresentações dos
desfiles de prêt-à-porter e Alta Costura é alocado conforme os grupos previamente
definidos como infantil, masculino e feminino. Como se não bastasse, ainda os
periódicos são outra fonte que claramente indicam quem devem ser seus leitores
conforme seus genitais.
A primeira separação básica que é esperada em uma loja de moda são as
seções de departamentos, deixando evidente qual é o espaço destinado
exclusivamente ao homem ou à mulher, assumindo na sua maioria, inclusive nomes
73

diferentes em cada linha. Essas implicações já se mostram essenciais no enxoval,


antes de um bebê nascer. Na estrutura da modelagem, as vestes dos meninos
geralmente enfatizam os ombros, e nas meninas, o quadril, na tentativa de antecipar
seus corpos adultos. A simples maneira de fechamento já decorre de um indicador
mesmo em peças iguais como são as camisas, nas quais somente elas têm a
obrigação de buscar o botão das casas pelo lado direito, além da colocação clássica
do zíper nas calças. Poucas são as áreas que reconhecem tamanha diferença do
que a da moda. E possivelmente, diferente de outros ramos no estudo de gênero, na
moda, a predominância é absolutamente feminina. Há uma variedade infinitamente
maior de produtos e serviços endereçados para as mulheres, muito em função das
prerrogativas históricas apresentadas anteriormente.
Digno de nota, a pesquisa de campo para esta tese evidenciou claramente
que as interlocutoras participantes possuem um grande fascínio pelas opções de
compras na sessão feminina, novidade para muitas praticantes, que se contentam
com as sucintas prateleiras masculinas. Na maioria dos casos, quem compra as
roupas das cross-dressers são as amigas, que fingem que são para elas. Além
dessas, as antigas companheiras, ou mesmo as atuais esposas, uma vez que a
cumplicidade pode ocorrer no próprio casamento. Pelo constrangimento, poucas
experimentam nas próprias lojas. Para dificultar ainda mais esta situação, a grade de
tamanho é limitada, então, além de seus corpos geralmente serem maiores, a
modelagem é para uma silhueta mais curvilínea. Uma praticante paulista, com a
concordância das outras três que estavam na mesa, gaúchas, garantiu que no Rio
Grande do Sul, os vendedores são os mais tradicionais e desconfiados,
desmotivando uma compra direta ao cliente final desse grupo (DIÁRIO DE CAMPO,
13/05/2015).
Diante disso, é oportuno pensar que ignorar demandas do mercado já
suscita uma lógica de regulação do que é considerado aceitável. Fica claro que “[...]
a própria seleção daquilo que é valorizado ou desejado em termos de consumo de
bens, e de quem tem ou não acesso a esses bens, está ligada a processos culturais
de classificação e hierarquização do mundo [...]”, aponta Facchini (2005, p. 59).
Assim, os consumidores ficam reféns das possibilidades disponíveis nas lojas e
compulsoriamente alienados de outros estilos de vida.
Ainda sobre o conceito agender, vale explicar que este é ligeiramente
diferente do unissex, porque, enquanto o primeiro preza pela igualdade, o outro
74

reconhece o masculino e o feminino, e identifica um ponto de equilíbrio que serve


para ambos. Embora se saiba que a aceitação é unilateral; ou seja, analisando as
mídias – sejam elas revistas de moda, blogs, programas de televisão, canais de
vídeos – insistem em utilizar o termo unissex que corresponde a um significado de
uniformização, quando na verdade as perspectivas são bem diferentes se dadas
para um homem ou para uma mulher. Ocorre que, até hoje, quando as mulheres se
apropriam de elementos da moda masculina, é considera uma quebra de barreiras
na busca de uma vantagem moral, sendo mostrado pela aparência, respeito e
admiração pela ascensão pessoal e principalmente, profissional. Já o contrário
significa fraqueza. Pela lógica da dominação, o uso de referências estéticas
femininas fragiliza e rebaixa o homem. Seria uma inferiorização ao nível da mulher,
por assim dizer, tanto pelos esquemas cognitivos que implicam a ordem da
aparência, quanto na sexualidade e no poder. Ora, esse modelo é muito diferente
quando é a mulher quem se apropria dos marcadores masculinos, pois
essencialmente, não tem a sua feminilidade comprometida. No máximo, ela terá
uma tentativa de enquadramento com um estilo andrógino. Isso significa dizer que a
sociedade ocidental contemporânea é muito mais tolerante ao ver uma mulher com
calça, cabelo curto e mesmo com uma postura mais viril, do que um homem com
saias, saltos e trejeitos que, ao que tudo indica, lhe trará uma situação de estigma. E
isso acaba por não mostrar toda a pluralidade existente.
Destaca-se uma maior incompreensão ainda, com as cross-dressers, que
extrapolam a dicotomia visual dos gêneros e por isso, desestabilizam qualquer
suposição incorporada. Até mesmo a concepção de travestimento para designar
mulheres que usam recursos estéticos masculinos não é utilizada. Nem nunca foi
rotulado como uma enfermidade médica; no máximo, como alguma perversão
atribuída às lésbicas. Cabe assinalar que, em uma das pesquisas focais realizadas,
uma entrevistada admitiu que sua vida seria bem mais fácil se “eu fosse uma mulher
e quisesse passar por homem” (DIÁRIO DE CAMPO, 13/01/2014), pois
possivelmente, nem mesmo chamaria a atenção. Segundo a visão dela, essa
situação é algo muito mais fácil de ser aceita e menos agressiva do que o contrário,
sendo este um dos motivos de as praticantes sofrerem tanto.
Por outro lado, Barthes (2009, p. 381) atenta para o fato de que o vestuário
feminino consegue absorver praticamente tudo o que seria somente do masculino, porém
do contrário não se vale: “[...] é que o tabu do outro sexo não tem a mesma força nos dois
75

casos: sobre a feminilização do homem recai um interdito social [...]”. Ele discute sobre a
facilidade que a moda tem de reconhecer diferenças sexuais, e não só isso, mas de
fazer questão de evidenciá-las, especialmente nos detalhes. Para ele, a moda é um
dos sistemas que melhor conhece as oposições entre masculino e feminino, mesmo
que as apropriações sejam somente de uma via. Isso significa que o vestuário
confeccionado para eles tem a habilidade de transitar no universo feminino, mas o
contrário não tem tanta força. Parece que a masculinização na aparência soa como
um empoderamento da identidade da mulher, enquanto a feminilidade fragiliza e
inferioriza o homem.
Em última análise, é identificado também um maior interesse por modelos
andróginos, ou seja, pessoas que possuem traços corporais indefinidos e por isso,
podem ser contratados para trabalhos tanto para representar uma figura masculina
quanto uma mulher, dependendo das orientações da marca. Esse é o caso de
Andrej Pejic, que desde 2014, prefere ser chamada de Andreja, e hoje situa-se como
uma pessoa trans. Mesma condição de Saskia de Brauw, uma mulher com traços
masculinos que lhe permitem brincar com as dimensões de gênero de acordo com o
interesse da produção fotográfica. Diferente da modelo Casey Legler, que não
transita tanto conforme as possibilidades do mercado, pois integra o casting
masculino da Ford Models dos Estados Unidos e se tornou precursora desse
comportamento por esse ato (GOLDSCHMIDT, 2013).

Figura 7 – Capas de revistas internacionais com Andreja Pejic, com dizeres sobre
quebras de barreiras de gênero
76

Fontes: Models (2013); Spotmag (2013).

Outro exemplo no âmbito da transexualidade em grande destaque é Lea T,


filha do jogador de futebol Toninho Cerezo. Antes de sua operação para retirada do
pênis, ela já trabalhava para marcas mundialmente conceituadas, como Givenchy e
Dolce & Gabbana, além de ter posado artisticamente nua para a Vogue Paris, o que
lhe rendeu uma enorme repercussão. Ela foi a primeira transexual a ser capa de
uma revista no Brasil, fato que ocorreu em 2011.
A campanha do verão 2014/15 da loja de departamento Barneys New York
chamada Brother, Sisters, Sons & Daughters também se mostra pertinente, pois
trouxe dezessete pessoas transgêneras, evidenciando suas histórias pessoais com
registros ao lado de seus familiares e amigos. Uma das propostas era retratar as
experiências de cada um, tanto as lutas quanto os triunfos pelos quais elas passam
em relação à sua identidade de gênero. Essa aproximação ocorreu em especial pela
77

parceria que a empresa fez com duas comunidades trans: National Center for
Transgender Equality e a LGBT Community Center (BARNEYS, 2014).

Figura 8 – Editorial com casais transgêneros para a Barneys New York: Edie Charles
e May Simon; e a direita, Katie Hill e Arin Andrews

Fonte: Barneys (2014).

Essa macrotendência – ou seja, algo muito mais profundo e permanente que


gera grande impacto no processo de escolha de compra, diferente de uma
microtendência que se estabelece na concretização efêmera em produtos – já é
vista na linha infantil. Uma das marcas que não acredita no estabelecimento de
rótulos para crianças é a Baby Teith (2015), ao qual propõe peças que são fáceis de
combinação, além de proporcionar conforto para a criança e para os recém-
nascidos, e que tais clientes mirins possam formar suas próprias decisões. A ideia
veio quando o casal, que são os criadores da empresa, não encontravam roupas
78

para a filha que não fossem limitadas aos motivos de princesas e personagens com
muito apelo romântico, além do uso exagerado da cor rosa em saias e macacões.
Assim, desde 2013 desenvolvem coleções com gênero neutro e que tem como valor,
estimular a imaginação, e expandiram rapidamente o que era somente para sanar tal
necessidade, para produção em massa.
Exemplos como esses demonstram uma renovação de interesse do
mercado em questionar a definição dos sexos estabelecida pela roupagem, que
rompem com estereótipos perpetuados pelo visual e incentivam a questão da
igualdade através dessa visão.
E conforme percebido nas literaturas, as engrenagens da moda
estabeleceram, como motivação social, permanentemente uma pauta para o sujeito
vestir-se em cada período. Face ao exposto:

Em qualquer período, o conjunto de discursos sobre vestuário inclui aqueles


que sustentam a conformidade com as concepções dominantes dos papéis
sociais e os que expressam as tensões sociais que forçam os conceitos
amplamente aceitos de papel social a tomar novas direções (CRANE, 2006,
p. 198).

Diante do que foi posto, percebe-se claramente que o sistema de moda,


como descrito nas obras analisadas, contribui para uma normatização estética
fundamentada nas relações de gênero desde o seu surgimento na condição de um
movimento social. Como de costume, a história sobre a indumentária se fixa em uma
norma moral que enxerga a identidade de gênero a partir da proposta visual, embora
com mudanças consideráveis nesses últimos anos.
Assim, encerra-se este capítulo com o desígnio de exemplificar alguns
fundamentos sobre, de que maneira, por muitos séculos, o modo de adornar-se
consegue se manifestar como uma identificação de gêneros. E dar continuidade ao
próximo assunto, na intenção de abordar a não estabilidade na produção identitária
partindo desses pressupostos visuais pela exposição pública de uma orientação
sexual presumida através da aparência, e que ajuda a legitimar o gênero no corpo,
em uma dinâmica a ser feita em conjunto com a roupagem. Ademais, em analisar a
perspectiva do lugar do corpo como interlocutor na fabricação do feminino.
79

4 CONSTRUÇÃO DA APARÊNCIA

A respeito da fluidez na produção identitária e seu peso nas dinâmicas


sociais, a posição de Simpson (2011, p. 113) faz pensar na interlocução da
roupagem: “Das populações excluídas, a que causa mais estranheza é, sem dúvida,
a das travestis, pois como a identidade é visível, fica difícil ocultar-se ou misturar-se
na multidão [...]”. É pertinente pensar que um indício de orientação sexual deduzida
apenas incomoda quando é aparente. Mesmo que uma pessoa siga os padrões
heteronormativos, se a aparência e o temperamento estiverem em desacordo com o
estabelecido, as críticas são quase que inevitáveis. Ou seja, o que desagrada é
muito mais a exposição pública na forma estética, pois denuncia rupturas no sistema
normativo. Como uma autoincriminação, a travestilidade expõe o sujeito a uma
desobediência, de ordem social, aos signos, pois sem as roupas e os elementos
femininos, talvez ninguém publicamente suspeitaria disso.
Inquieto, Seffner (2011, p. 41) discute sobre como nascem as produções de
vulnerabilidades nas sociedades conduzidas por regras de organização que
generificam significados simbólicos:

Há situações em que a travessia de fronteiras traz problemas ao


pertencimento de gênero: em geral, um homem que usa vestido é visto
como menos homem, quando não diretamente chamado de mulher, ou só
poderá fazer isto no terreno do deboche, como é o caso do carnaval. A
produção de identidades de gênero e sexuais está diretamente envolvida
com relações de poder na sociedade, que a todo o momento posicionam
homens e mulheres numa hierarquia.

Certas posturas, cores, produtos e até mesmo temperamentos não estão


isentos de uma análise precipitada em fazer ainda pertencer obrigatoriamente a um
dos âmbitos, masculino ou feminino. Ao justificar os dados da pesquisa10 sobre o
preconceito em relação às pessoas que se travestem, o autor esclarece que não só
há a associação de uma vida de rua com drogas, prostituição e criminalidade, mas
também porque há o fato de que essas pessoas não passam despercebidas. Isso
faz com que seja mais fácil de serem localizadas e, consequentemente, de serem
hostilizadas. Esse dado vem ao encontro de um relato de uma estudante transexual
que enfatizou sua maior meta: passar despercebida na rua; credita valor a isso por

10 Neste caso específico, demostrava que as travestis são as que mais sofreriam, com 25%

(SEFFNER, 2011).
80

saber que a imagem, quando não condiz com o esperado, pode agredir alguns mais
tradicionais ou aqueles que apenas não estão ainda habituados com tal dinâmica
(DIÁRIO DE CAMPO, 09/05/2013).
Diante disso, é possível perceber que a construção da aparência é um
grande paradoxo, algo posto como tão supérfluo é, ao mesmo tempo, o que pode
legitimar o gênero no corpo, pelos critérios visuais, e o que, por conseguinte, vai
direcionar os procedimentos de tratamento às pessoas. Chega ao ponto de servir de
protocolo para um laudo médico sobre o encaminhamento à cirurgia de
transgenitalização. É o que diz o terceiro item do documento produzido pela Harry
Benjamin International Gender Dysphoria Association11 – HBIGDA no qual se lê: “O
teste de vida real. Deve usar, durante todo o dia, as roupas comuns ao gênero
identificado” (BENTO, 2008, p. 186). Sem oscilações de vontades, esse
comportamento seria a prova final para convencer os psicólogos, os cirurgiões, os
assistentes sociais e demais membros que compõem um grupo de profissionais que
avalia a falta de encaixe e o encaminhamento à cirurgia. Com isso, volta-se
incessantemente ao quesito de precisar ajustar as pessoas em conceitos pré-
estabelecidos.
Em complemento, Alice – nome social da autora que publicou relatos sobre
a experiência pessoal do cross-dressing – reforça a ideia de que, por convenção, é a
roupa que, em primeira instância, vai mostrar a vontade de como o seu portador
quer ser reconhecido em seu gênero. Um dos únicos livros que a própria praticante
é quem escreve, Alice in Genderland12 é uma biografia de uma psiquiatra americana
que, desde sua pré-adolescência, foi se descobrindo. No auge da falta de
compreensão de si, como era de se esperar, replicava a opressão que lhe era
imposta pela comparação com os outros, o que definia seu desejo como ilegítimo:
“Como eu poderia viver com isso? Eu era um estudante de medicina [...], um homem
masculino orgulhoso. É assim que eu me via, era assim que todos me viam13”
(NOVIC, 2005, p. 32 – tradução nossa). Quando sua noiva soube de tudo,
desabafou, dizendo que preferiria que tivesse matado alguém. Na época, Alice nem
mesmo havia ouvido falar sobre cross-dressing e não tinha chegado ainda às

11 Associação Internacional de Disforia de Gênero Harry Benjamin – tradução nossa.


12 Este e-book nunca foi traduzido. Seu título seria uma alusão ao ‘Alice no País das Maravilhas’ com
as palavras gender (gênero) e land (terra, reino, país, etc. um espaço no sentido de fantasia,
encantado, daquele contexto específico).
13 Texto original: “How could I live with this? I was a medical student [...], a proud masculine man.

That’s how I saw myself, that’s how everyone saw me”.


81

facilidades da pesquisa pela internet, o que a impossibilitava de achar respostas


para o que estava passando.
Para comprar roupas, precisava mentir que era para uma amiga, o que fazia
sempre acompanhada de uma angústia por não poder provar. Resolveu achar mais
alternativas pela solicitação por catálogo, hábito comum para a época e o local. Ao
mesmo tempo em que ficava frustrada, fascinava ver os corredores femininos cheios
dos mais variados produtos, com incansáveis opções de acessórios, cores, formas e
modelos. A primeira vez que comprou roupas para si em uma loja física foi em um
shopping com uma amiga. Para as atendentes, dizia que fazia shows de drag queen.
Essa mentira lhe isentava de um outro tipo de constrangimento e que mostra a
seletividade em termos de discriminações, passando de um ‘pervertido
heterossexual que estava fazendo algo que não deveria’, para um ‘gay artístico sem
apelo sexual’, segundo sua lógica.
Quando enfim identificou-se como uma cross-dresser, sentia-se uma
adolescente, já que seu cálculo de idade tinha base em ter trinta e dois anos como
um homem de carreira formada, bastante determinado; porém paradoxalmente,
tinha dezesseis como uma mulher imatura e insegura. Alice garante que comprar
roupas é um ato de autoconhecimento permanente. Um dos desafios é reaprender a
identificar seu número de calçado, vestido e sutiã, por exemplo, além de rever
métodos de maquiagem e manutenção do corpo, como a depilação, as artimanhas a
exemplo dos enchimentos, do redutor de cintura, sem contar com o constante
naturalizar dos trejeitos. Demora em média, duas horas para produzir-se para no dia
a dia. Quando se sentiu à vontade para se assumir, ela conheceu muitas pessoas
que a queriam auxiliar nas mais variadas tarefas.
Acredita que toda a cross-dresser adora fotos, justificando que, como a
maioria acaba escondendo sua identidade feminina, a imagem na terceira pessoa
oportuniza tal expressão. E ensina: “Se você quer se parecer como uma mulher, é
melhor apresentar-se com as melhores generalizações que você conseguir e
exagerar tudo o que parece ser de mais comum e distintivo sobre o discurso
feminino14” (NOVIC, 2005, p. 76 – tradução nossa). No terreno da estética aprendida,
significa dizer que seria um desperdício usar calça, blazer, sapato fechado e cabelos

14 Texto original: “If you want to look like a woman, you better present yourself with the best

generalizations that you can get and overdo everything that seems to be regular and distinctive about
female discourse”.
82

curtos, por exemplo. Mas ainda assim, mesmo mais autoconfiante e com amigas
encorajando, por muito tempo entrou em pânico só de pensar como seria
inapropriado entrar em um restaurante que habitualmente preferia frequentar,
usando um vestido. Com o tempo, aprendeu que os observadores não sabem bem o
que pensar quando veem uma cross-dresser. Logo, se passar a impressão de que é
algo habitual e mesmo divertido, os demais tendem a pensar da mesma maneira.
Ainda no tocante à construção da aparência pela identidade de gênero
feminina, a cartunista e atual apresentadora de um programa de entrevistas, Laerte,
também dá seu depoimento. Diz ser um processo permanente de autoconhecimento
conseguir comprar roupas, sendo esse tanto um trabalho encantador quanto
exaustivo. Durante o período de experimentações, fica visível que ela já passou por
fases, por isso confessa:

Vou procurando segundo uma ideia meio confusa de um compromisso entre


as roupas que me apetecem e a ideia que faço do meu corpo. Acabo
compondo um certo figurino, que varia de acordo com a trajetória que venho
fazendo. Já usei coisas bem de vovó, de hippie, de tia louca. Comprar roupa
e me vestir não é exatamente um momento de relaxamento, mas gosto do
desafio e desfruto o resultado, quando chego a ele (COUTINHO, 2014, p.
56).

Assim como foi percebido pessoalmente, no contato com outras praticantes,


quem auxiliou Laerte a se expor inicialmente foi Dudda Nandez, uma profissional
que tem um empreendimento de nome homônimo, onde presta uma espécie de
consultoria para orientar aquelas que estão iniciando nessa experiência. Uma vez
que seus corpos geralmente possuem uma estrutura diferente da modelagem
disponível no mercado nas sessões femininas de lojas de roupas, a estética é
aprendida e adaptada em todos seus âmbitos. Além do mais, para dar sentido à
performance cotidiana, há orientações sobre o que se espera de uma conduta
feminina, como se fosse uma coreografia do cotidiano. No espaço, é possível tomar
emprestados inúmeros acessórios como maquiagens, saltos e perucas, seja com a
vontade de extravasar ao menos naquele momento, para se familiarizar e buscar
coragem e segurança para um dia, expor-se publicamente, ou somente para realizar
sessões de fotos.
Quando Laerte se viu pela primeira vez depilada, confessa que foi como se
estivesse se vendo pela primeira vez. Ficou em completo êxtase, a ponto de ter uma
ereção, assumiu. Filiou-se ao BCC, embora fosse se distanciando até deixar o clube,
83

na medida em que sua autoaceitação foi lhe permitindo sair da clandestinidade,


alega. Hoje, é integrante da Associação Brasileira de Transgêneros – ABRAT e
percebe seu corpo muito mais como uma possibilidade de discussão estética e
política pela narrativa de liberdade de expressão do como um conjunto de barreiras
insanas dos padrões de beleza (ASSIS, 2013).

4.1 CORPO ADESTRADO

Dando sequência ao estudo do corpo e suas manifestações expressivas


como uma extensão da sociabilidade, Breton (2010) em ‘A Sociologia do Corpo’,
auxilia a dar conta de responder sobre as negociações entre os sujeitos pela
subjetividade dos repertórios construídos pela imagem. Mediante o mapeamento de
outros estudiosos na área das ciências sociais, o autor intermedeia a configuração
de sentido sobre a corporeidade, o imaginário e suas práticas sociais. Por vezes,
chega a defender que a apresentação física equivale a um código moral que possui
condicionamentos de critérios para as legitimações.
Ele sinaliza os pensamentos sobre padrões visuais vigentes, a
espetacularização da imagem e o consumo de signos e projeções, ao debater sobre
os procedimentos para conceber a moda, o vestuário e o corpo como um dos
conjuntos de tradução dos anseios da sociedade de uma época e de um local.
Contemporaneamente, a aparência é um laboratório de experiências capaz de
expressar os desejos e as dimensões da identidade. A aparência, assim
considerada, exige um profundo investimento, já que responde pelo modo como o
sujeito vai se apresentar ao coletivo. Por isso: “Moldado pelo contexto social e
cultural em que o ator se insere, o corpo é o vetor semântico pelo qual a evidência
da relação com o mundo é construída [...]”, explica Breton (2010, p. 7). O corpo
passa então, a ser uma dimensão de expressão imediata quando há um significativo
trabalho nele instaurado, método que se potencializa na presença de seus pares.
Em proveito disso, a intersubjetividade de Merleau-Ponty (2014) sobre os
territórios da corporeidade e a presentificação da experiência colabora com os
estudos das essências. Na visão do filósofo, a sexualidade e as dimensões desta
devem ser analisadas como uma dialética da vivência. Suas contribuições
direcionam-se para os estudos da fenomenologia da existência e para a
compreensão de que, nesse processo de existir, vai situar o sujeito e evidenciá-lo
84

como um acontecimento social. Inclusive vai designá-lo como um espaço de


extrema expressividade, com modos anunciados pelo corpo que podem dizer mais
do que palavras.
Em correspondência, ele defende a importância da comunicação corpórea e
a capacidade de significações que implicam no meio social. A corporeidade é esse
algo a mais que uma materialidade biológica: lida como um modo de
experimentação que até define a participação dessa pessoa no mundo. O autor
também alerta para o fato de que o corpo, apesar de não ser autônomo, pode ser
um agente de novos significados e movimentos, impossível de ser descolado de
uma visão de mundo. É a vivência corpórea que o fará presente; e é sempre na
perspectiva do carnal. Ou seja, todas as mediações do sujeito com objetos e todas
as relações com os outros são concretizadas invariavelmente pelo corpo: logo, a
existência se realiza nele. Por essa razão, o corpo pode ser entendido como um
objeto afetivo de permanência que não se afasta; o sujeito assim, não tem, mas é
um corpo em toda a sua espacialidade. É o primeiro plano que se apresenta sempre
pelo mesmo ângulo no reflexo, é uma fisionomia que inaugura a percepção de
mundo; uma estrutura que carrega os valores e reflete uma unidade existencial.
Nesse sentido, a historicidade da experiência é a própria essência da condição
humana, sendo as roupas, um anexo desse espaço carnal. É inesgotável e trata da
consciência dos modos de expressividade do sujeito no mundo. A própria
sexualidade é algo não autônomo, não um mero efeito de processo, mas uma
aderência a todo um complexo sistema.
Essas ideias alinham-se com as de Goldenberg (2010) e com as dos demais
colaboradores de seu grupo de pesquisadores que investigam, mediante uma linha
de estudo nas ciências sociais, o gênero e corpo na cultura brasileira. Os autores
trazem em uma só obra, as visões sobre a centralidade do corpo na sociedade local.
Para eles, o corpo concebe um poderoso capital social, ao mesmo tempo simbólico,
econômico e físico, que precisa ser cultivado, moldado e principalmente, exposto.
Assim, são apresentadas algumas suposições para responder à obsessão que as
pessoas têm pela fisionomia arquetipal que, quando conquistada, faz concretizar-se,
por extensão, um veículo supervalorizado de distinção e ascensão social.
Pelas imposições e pelo controle do uso desse corpo, o indivíduo acaba
sendo contido por uma submissão, em partes voluntária, de normas visuais. Em uma
sociedade como é a atual, exageradamente carregada de referências sobre o ideal a
85

ser alcançado, a informação torna-se uma cobrança. E mais, a aparência


espontânea é sinônimo de desleixo fisiológico e moral, o que reforça o peso dado a
uma preparação da exterioridade pessoal que antecede a exposição pública. O
contrário também vale: uma imagem bem produzida é sinônimo de prestígio,
veracidade e estratégia de projeção.
Quando levada à discussão para o terreno do corpo como um espaço
privilegiado para novos revestimentos, percebe-se que ele é sempre um estado de
estar no mundo, pressupondo que as percepções de um padrão de projeto corporal
são moldadas também pelas influências externas. Inúmeras são as experiências que
fazem alterar o contorno desse corpo quando, por exemplo, estabelece o afinamento
da cintura, ou permite a expansão da gordura, ou faz prevalecer o enrijecimento da
musculatura. E ainda: privilegia o implante de silicone, ou prepara o cabelo em
penteados típicos. Outro aspecto é o interferir somente na parte mais superficial, que
se exemplifica com a mudança da cor da pele, com as marcações de tatuagens,
pinturas nas unhas e no rosto. Com isso em mente, fica evidente que o corpo pode
ser desenhado, literalmente, conforme as vontades de seu portador, sejam elas
permanentes ou temporárias, complexas ou simplórias.
Goffman (2010) nesse ponto, acredita que há um idioma das aparências que
é levado em consideração sempre quando há interação entre os indivíduos, e que tal
comunicação é institucionalizada. Alguns sinais visuais são tão regularizados que só
são empregados quando há testemunhas. E também, essas atividades corporais
aprendidas são tão arbitrárias que mesmo quando acontecem somente no plano da
visão, oportunizam algum tipo de envolvimento. Esse fato baliza a montagem e o
monitoramento permanente da aparência, sempre quando há um ajuntamento
social. Invariavelmente, cada engajamento gera uma situação, pois a mera presença
de outra pessoa já acarreta uma série de informações que interagem mutuamente
quando expostas, mesmo que não declaradas.
Esse ritual de identificação é desencadeado ainda, por um pressuposto que
respeita as exigências da ocasião – isso que o autor chama de orientação da
conduta situacional. Por isso, a roupa é uma parte dessa evidência, da entidade que
delimita uma fronteira de reconhecimento. Todos, de alguma forma, modificam suas
condutas e são orientados normativamente. O que varia é o grau dessa adaptação,
que vai ou não, contrastando com o que é considerado apropriado de acordo com o
contexto. A organização humana se faz dessa forma. A linguagem do corpo é um
86

discurso ininterrupto e normativo, já que há uma responsabilidade em transmitir


certas impressões conforme a expectativa do observador. Mesmo que haja
diferenças de cada um na mesma cultura, “de qualquer forma todos possuirão algum
conhecimento do mesmo vocabulário de símbolos do corpo” (GOFFMAN, 2010, p.
45).
Amarrado a esse percurso crítico sobre a construção social, as ideias de
Mauss (2003) tornam-se essenciais. A partir de sua teoria cristalizada na década de
trinta sobre as técnicas do corpo, ele traz uma perspectiva que percebe movimentos
corporais, sejam estes rotineiros, ou esporádicos, como uma coordenação ritmada
de ensinamentos. Tudo seria parte de um procedimento de adestramento que faz o
ser humano aprender o que e como comer, como dormir, andar, lutar, punir, dar à
luz e inúmeros arranjos que são particulares de cada cultura, até mesmo as dores e
as doenças. Assunto de larga escala, o trabalho desse pesquisador foi precursor na
época, porque foi capaz de perceber tais movimentos corporais como hábitos
convencionados. Ele disseminou a ideia de que muita coisa nasce da ordem da
domesticação, na qual há noções diferentes do ‘eu’, de acordo com cada tipo de
nação. Além do mais, nesses casos, há apropriações do corpo treinado pelas
práticas provenientes do convívio e como um signo que se imprime na vida social.
Para ele, o conjunto desses princípios cria uma consciência coletiva dos
determinismos sobre métodos corporais. Em especial, quando no terreno do gênero,
uma vez que cada criança tem uma educação diferente, esta é estimulada a imitar
desempenhos distintos conforme os adultos equivalente ao seu sexo. Outro aspecto
relevante é que o conjunto desses atos instituídos faz parte de um contexto em que
a pessoa está inserida, com base no qual cada um constrói a sua própria verdade
local. Na perspectiva de que o corpo é o primeiro instrumento humano, o sujeito faz
dele um reflexo condicionante da sua percepção cultural. Há uma base de educação
em todas as atitudes conduzidas, que são então, elaboradas e repassadas pelas
diferentes sociedades.
Interessante é pensar esses conceitos na forma de algo que não se contenta
em ser compreendido como habitual e inerente ao convívio social, mas como um
saber que é adquirido por intermédio da sociabilização. Trata de um conjunto de
procedimento já tão interiorizado que possui a capacidade de dissimular o que na
base é arbitrário, em algo rotineiro, e por isso, em grande medida, inquestionável. A
noção de autoritarismo perde-se quando essas permissões tornam-se algo
87

intrinsecamente cotidiano, ou seja, paradoxalmente, trata-se de um método de que


não se tem consciência como um método. Dito isso, Mauss (2003) ainda questiona
se, de fato existe um modo natural, uma vez que, nesses atos considerados diários,
há uma imposição que é ensinada sobre o que seria o mais adaptado para tal
situação.
Quando se permite pensar sobre essas referências corporais como
possíveis resultados de influências proporcionais às evidências da cultura do tempo,
abre-se uma prerrogativa para trazer, a esta cena de investigação, Rodrigues
(2006). Assim, como complemento, em ‘Tabu do Corpo’, ele também dirige seu
campo de pesquisa para a corporeidade humana concebida como uma forma de
gramática. Esses estudos seguem no entendimento das convenções ligadas às
experiências e concordâncias com certos princípios normativos orientados pela
cultura. Um exemplo são as noções de decência, segundo as quais qualquer ação
humana é provida do social e dessa forma, conta com o corpo como um sistema de
expressão. Muitas vezes, as disposições das estruturas de ordem natural e cultural
são contraditórias e ambíguas, mas vão sempre ordenar as relações sociais. Como
um sistema simbólico de significações, o corpo e respectivos tabus capacitam
mecanismos de estímulos emocionais a que a coletividade reage, de acordo com as
expressões individuais. Sendo autoria da sociedade a criação dessas expectativas e
os ajustamentos dos indivíduos para se enquadrarem em algumas definições:

[...] o fato de um indivíduo ser do sexo masculino ou do sexo feminino não


significa apenas que ele possui uma determinada conformação anatômica e
fisiológica. Significa também que ele possui um status social cujos limites,
direitos e obrigações estão devidamente convencionados e em relação aos
quais a comunidade mostra determinadas expectativas (RODRIGUES,
2006, p. 68-9).

Os marcadores corporais estão, por esse motivo, em correspondência com


as doutrinações que elegem os hábitos de princípios normativos vigentes. Nenhuma
conduta é meramente instrumental, e justamente pelo gosto se submeter ao
intelecto é que o autor reforça constantemente a importância do relativismo cultural,
inclusive para que um pesquisador saiba se afastar da realidade pessoal e não
prejulgue certas universalidades.
Uma vez que a aparência tem o poder de interferir no processo da
identidade, os adereços tornam-se essenciais na transição estética do corpo. A
88

forma como se delimita a condição humana que vai exteriorizar-se no entorno, nessa
perspectiva, passa a ser a própria expansão da mente. Portanto, o estudo social do
corpo se faz essencial para os cientistas sociais, pois é talvez o único concreto
patrimônio legítimo da pessoa, defende o autor.
Sob a rubrica de que, desde os atos gastrointestinais até os distúrbios
mentais são convencionados, o que dizer da aparência, que é um indicador
altamente moldável sob um processo civilizador. E ainda, como pode ocorrer um
desconforto quando alguém possui uma prática muito diferente de alimentação, por
exemplo, bem como, assume a noção de doença e de seus tratamentos, a imagem
pessoal pode causar tormentos na mesma intensidade, ou mesmo maior. Raras são
as práticas meramente instrumentais, pois são antes, doutrinações definidas pela
condição humana. O processo de socialização é permanente durante toda a vida do
sujeito, pois a interação com os demais e a transmissão cultural faz parte do tornar-
se membro de uma sociedade. Agentes ativos, como diria Goffman (2006).

4.2 FAZENDO O GÊNERO – A FABRICAÇÃO DO FEMININO

Diante do que foi posto, aparentemente uma informalidade, a fórmula da


feminilidade também é uma conduta ritualizada. É fundamentada em regras
gestualizadas que asseguram o pertencimento conforme a imitação daquele que é
admirado; neste caso, uma mulher legitimada na sua excelência física. Como
alternativa, há a fabricação de um sujeito mediante um conjunto de valores dentro do
qual a produção visual se inclui. Frases como “Não se nasce mulher, torna-se uma”,
“Não sabendo que era impossível, foi lá e fez” e “Ser cross-dresser é estabelecer
limites e agir com dignidade” fazem parte das assinaturas automáticas de e-mails
geradas do fórum das associadas ao BCC. Isso revela um intuito de lembrar a todas
onde se situa de fato, o campo de disputa.
Sobre isso, Butler (2012) detalha uma teoria sobre a performatividade,
explicando que o performático significa assumir um enredo em que, em alguma
instância, há uma atuação que é crucial ser apresentada ao mundo. Já o
performativo é um pouco diferente, pois significa produzir uma série de efeitos que
consolidam uma impressão. É um conjunto de comportamentos do que é ‘ser um
homem’ ou de ‘ser uma mulher’. Trata de um fenômeno que o reproduz tempo todo,
uma atuação ritualizada que cria sujeitos pelas formulações como o modo de falar,
89

vestir, caminhar, entre outros, que governa e, como consequência, interfere na


existência corporal e nas perspectivas de posicionamento social. Não há uma
naturalidade; é antes, a reprodução viva das considerações culturais, atravessada
por uma estrutura de dominação que também fornece aspecto de existência pelo
hábito da imitação. Diante disso, a autora evidencia a dificuldade de ser uma pessoa
que não se enquadra nessas representações de gênero e por isso, é
constantemente provocada com agressões, ou com intervenções psiquiátricas
consideradas normalizantes, afinal, as demais instituições de poder estão presentes
para garantir que se mantenham sujeitos marcados pela diferença.
A noção que precede a existência de uma identidade original e outra
marginal provoca a depravação da imagem da mulher, minimamente tornando-se
uma representação burlesca de práticas e coerências heterossexuais. Haveria
somente um deslocamento constante sem procedência alguma, apenas o mito de
uma identificação primária. Nessa lógica, sendo esse derivado de uma falha, não é
possível incorporá-lo. Butler (2012, p. 196) esclarece “as três dimensões
contingentes da corporeidade significante: sexo anatômico, identidade de gênero e
performance de gênero”. Seria um apelo a um grande pastiche pós-moderno? A
autora declara as dificuldades que sempre existirão para definir as identidades
baseadas nas categorias da sexualidade, sexo e gênero. Essa fala concentra-se nos
efeitos de instituições que definem o falocentrismo (origem e causa) e a
heterossexualidade compulsória como regimes de poder.
Mesmo no corpo vestido, as diferenças corporais são presumidas pelos
constructos da elaboração de gênero. O mundo social deposita na estética do corpo
as realidades e as divisões sexualizantes. A concepção essencialista percebe o
sexo previamente dado no nascimento como base para a construção do sujeito
mulher e que oferecerá por isso, a referência sobre o que é se apresentar como
alguém do sexo feminino. Nessa linha, o gênero pode também ser compreendido
como um meio discursivo, anterior à cultura, performativamente construída, podendo
assim, questionar a falsa estabilidade do gênero.
As pesquisas dela permitiram uma evolução sobre as resistências e a
política do desejo não limitado ao órgão. Haveriam identidades performativamente
construídas em sujeitos feitos por ideologias e controlados por regimes regulatórios.
Não há uma essência; há uma ideia de gênero que é atribuída e que privilegia
repetir regras e mecanismos performáticos de forma ritualizada. A filósofa americana
90

analisa algumas suposições já impregnadas nos julgamentos sociais de categorias


de gênero como uma existência de identidade pré-concebida, disso, nasce a
sugestão de estabilidade; como se fosse possível uma universalização.
Presumir registros corporais parece arriscado; seria supor universalidades e
isso é sempre trabalhar com algo que se opera como no mínimo, incompleto. Em um
plano convencional, valores que fundamentam certas tradições são questionados,
na tentativa de desnaturalizar algumas noções estáveis. A formação discursiva
implica que exista uma identidade comum sobre o ‘ser mulher’. Não se trata de ser
em si um conjunto, pois não há algo que forma um todo inabalável. Nasce desse
pressuposto, a vontade por um corpo recipiente de leis culturais, revelado
discursivamente como construído, no qual “[...] a representação é a função
normativa de uma linguagem que revelaria ou distorceria o que é tido como
verdadeiro sobre a categoria das mulheres” (BUTLER, 2012, p. 18).
As tentativas de separação teóricas já internalizadas como distintas,
consistem em o sexo ser um acaso do destino no seu sentido biológico. Dessa
concepção original, a fisiologia é naturalmente dada. Por outro lado, o gênero é
parte de um significado socialmente não fixado. Parece sugerir dessa forma, um
atributo variável aberto; porém, se a cultura é a responsável pela construção dessa
genericidade, aquela age como agente fundamental e, por esse motivo, é também
uma compulsão que não é tão livre quanto se prefere acreditar.
De certa forma, existe uma separação simplória para tamanha complexidade
que se erige e restrita, se não levar em consideração toda a ambiguidade que possa
dessa decorrer. Uma dessas obscuridades é considerar a sexualidade não estável,
ou seja, como não só uma anatomia. Assim, o sexo não deve ser inquestionável
uma vez que, ao contrário do conhecimento popular, pode também ser fruto da
construção social. Ao rejeitar a ideia de um sexo natural, é possível colocar em
cheque a heterossexualidade na condição de uma imposição biológica, que nasce
de um sistema de dominação no espaço social, sem acreditar na relação de causa e
efeito sobre o biológico como fundamento da interação cultural. As classificações
vão muito além do gênero, interferem nas políticas normativas. Daí a importância de
questionar presunções frente a essas facetas que vão moldando o sujeito. Logo,
instaura-se a vontade da libertação, ilusória ou não, das formas reguladoras que
convencionam o esperado daquele corpo já pré-concebido de significados. As
possíveis separações dos universos masculino e feminino como arbitrariedades
91

consumadas são assim expostas como agentes muito mais complexos de serem
concebidos.
O gênero não precisa ser resultado do sexo, pode também construir o corpo
quando na interpretação de um significado que assume uma denominação tanto
cultural quanto psíquica. Algo a ser adquirido e declarado por um corpo sexuado em
papéis dinâmicos, podendo ser inclusive mutáveis. Em visão construcionista, para
Butler (2012, p. 209), não há separação do corpo pré-discursivo:

De fato, quando se diz que o sujeito é constituído, isso quer dizer


simplesmente que o sujeito é uma consequência de certos discursos
regidos por regras, os quais governam a invocação inteligível da identidade.
O sujeito não é determinado pelas regras pelas quais é gerado, porque a
significação não é um ato fundador, mas antes um processo regulado de
repetição que tanto se oculta quanto impõe suas regras, precisamente por
meio da produção de efeitos substancializantes.

Em obediência a essa ideia, a figura da mulher não se aplica exclusivamente


ao corpo feminino para uma estabilidade binária. A incompletude estaria em resumir
isso em um significado de identidade diluída conforme as práticas constituídas,
como se houvesse de antemão, preenchimentos para então compor a categoria
mulher. Tudo se torna elaboração de existências e mesmo que estejam diretamente
relacionados e dependentes entre si, podem ser influenciados, consubstanciando os
atributos do gênero, correspondentes a uma performatividade construída pelo tempo
e espaço, institucionalizada por atos repetitivos. Sublinha-se ainda, sem deixar de
lado o predomínio de disputas políticas. Nesse viés, a identidade de gênero é um
efeito, resultante de práticas discursivas que relacionam o sexo, o gênero, prática
sexual e o desejo.
É determinante então, desprender-se da concepção de gênero concebido
em uma inscrição cultural de um sexo previamente dado, para que o papel do
gênero encontre espaço de referência que nem sempre levará às oposições
binárias, como por exemplo, as do macho e da fêmea. Ou seja, é apropriado não
considerar uma condição estática do corpo, e sim, tentar desnaturalizar alguns
registros, como os da sexualidade e do desejo.
Para ela, o gênero é uma representação que lida com a construção da
subjetividade, sustentado por estruturas institucionais. Na medida em que
desestabiliza os determinismos biológicos e culturais, gera conflito especialmente
por causa das constituições de poder e disposições hierárquicas sociais. Seguindo
92

nessa linha, o cross-dressing então, desafia a arbitrariedade de desempenho de


papéis postos como supostamente complementares (macho vs fêmea, subordinado
vs dominador, feminilidade vs masculinidade, gay vs hetero etc.). Na mesma
medida, conflita corpos, sexualidade e vestuário em uma narrativa que ainda
desassocia a ação marginal do travestimento de uma prática visual do cotidiano.
Como pressuposto, talvez seja a identidade que mais incita ruptura da
epistemologia, contrariando as normas condicionadas de uma prática de vida.
Quebrando as fronteiras entre o considerado natural e o cultural, é
interessante pensar como um artifício flutuante, como quando uma entrevistada que
se considerava transexual, explicou que quando criança já se “travestia de homem”,
uma vez que sua autopercepção sempre foi feminina. Ou seja, de que maneira
aquela pessoa nascida com um pênis, já se via como feminina e como sua
concepção de se travestir era a de se simular-se com roupas destinadas
culturalmente ao universo masculino. Inclusive, vale destacar, a interlocutora usou o
termo “mentira” para caracterizar como se apresentava antes. Usava muitas peças
de marcas renomadas para reforçar aquela imagem e render mais segurança no
meio público. “Já hoje, pode ser roupa de brechó”, disse ela, fazendo uma alusão a
sua atual autoestima de identidade de gênero. E mais: “aparentemente eu era um
menino comum que não chamava qualquer atenção”, porém aos seus olhos, estava
interpretando um outro alguém. Em relato, desabafa: “para conseguir transitar na
sociedade, eu precisava exagerar no comportamento masculino para ser aceita.
Cheguei inclusive a fazer teatro!” (DIÁRIO DE CAMPO, 09/11/2012). Sob essa
rubrica, inverte-se a questão sobre as definições de identidade pessoal vista como,
por definição, feita de artifícios internos, quando na verdade, deveria ser perguntado
“[...] em que medida as práticas reguladoras de formação e divisão do gênero
constituem a identidade, a coerência interna do sujeito, e, a rigor, o status auto-
idêntico da pessoa?” (BUTLER, 2012, p. 38).
Também ficou evidente a identidade feminina que já é própria, em outra
praticante, que garante que não se monta mais, embora estivesse de ‘princesa’
enquanto ocorria a entrevista. Essa mesma pessoa que depois em texto, descreveu:
“Eu só me monto de homem de vez em quando” (DIÁRIO DE CAMPO, 22/02/2014).
Nessa declaração, fica evidente sua visão de identidade, pois pelos padrões, a
concepção biológica lhe definiria do sexo masculino e nesse sentido, o ato de ‘se
montar’ deveria ser pelo viés feminino. Essa interlocutora é uma cross-dresser que
93

se apresenta no espaço público somente de ‘princesa’ e que conquistou um livre


trânsito na vida pessoal e profissional, o que lhe proporcionou uma perspectiva dada
como inversa à vivência desses casos.
Dessa lógica, o ‘se montar’ seria então, vestir-se de forma masculina. Ainda
esclareceu a entrevistada que não é qualquer tipo de produção da aparência que a
fará mulher. Uma produção exagerada a levará a uma esfera de gueto e não é esse
tipo de ambiente que ela quer. Como a maioria das cross-dressers, o equilíbrio
visual é o objetivo principal. Aqui, é no sentido da experiência, em atingir uma
expressão arquetípica nesse processo de travessia, no qual o desejo de
reconhecimento passa antes, por processos de legibilidade de corpos. Nessa
perspectiva, produzir-se com elementos extravagantes, “como uma piriguete ou
parecendo uma puta é forçar a barra” (DIÁRIO DE CAMPO, 13/01/2014), observou,
e assim, nunca atingirá a meta que é se parecer com qualquer outra mulher; é
justamente não ser notada ou tratada diferente, é ser alguém que transitar e se
sente integrada nos mais variados ambientes o que constitui seu desejo maior.
Há um cuidado de não extrapolar tais princípios estéticos para não se
aproximar de uma cultura mais underground e dos espaços considerados
específicos do público LGBTTT. Apesar de garantir levar isso em consideração,
concebe-se como uma “perua”, pois gosta de se arrumar muito, explicou.
Interessante de pensar que a locutora dessa fala lembrou, no momento em que
ocorria a conversa, uma outra praticante que também fez parte do campo, mas
somente uma vez em 2012, e que a exemplificou como alguém a não ser seguida.
Depois de detalhar sua elaboração pessoal, que incluía saia curta e justa, meia-
calça arrastão e maquiagem extravagante, e condizer com sua postura da mesma
forma extrapolada, a respondente se deu conta de que então, que tal conhecida não
era uma cross-dresser, mas uma travesti. Fica claro com esse despertar, que uma
das diferenças básicas de acordo com a sua perspectiva, recai muito mais na
aparência e nas atitudes, do que nas práticas sexuais. Apesar de não gostar de
nenhuma rotulação, entende que pratica o travestimento, considera-se uma cross-
dresser, mas no final das contas, prefere enxergar-se como um transgênero. Como
observação a complementar, a cirurgia de redesignação sexual – CRS poderia
trazer uma melhor adequação, mas ela garante que a feminilidade está muito mais
na sua cabeça do que no órgão genital. Todavia, serviria para “adequar o espírito
com o corpo”, explica (DIÁRIO DE CAMPO, 13/01/2014).
94

A roupagem coloca-se como auxiliar na penetração do estilo de vida


feminino, no qual nunca a expressão ‘sair do armário’ fez tanto sentido. É todo um
envolvimento da subjetividade a que se atrela uma grande vontade de expressão
visual, mas que mantém um equilíbrio sobre as escolhas de peças por quais
comumente optam as mulheres. O valor atribuído a esse vestir está na discrição,
tendo como um dos motivos não serem vinculadas a uma drag queen ou mais além,
à imagem popular de uma travesti prostituta marcada popularmente pelos excessos.
Optam assim, por elementos femininos bastante usuais, na intenção de parecerem
só mais uma mulher, uma vez que são elas suas referências para a produção.
Para as cross-dressers que participaram desta pesquisa, a feminilidade
significa alcançar alguns referenciais, no curso dos quais cada uma segue conforme
a sua lógica de percepção. Há atributos bastante árduos nessa tarefa, como usar
cintas para comprimir a barriga, aprender a andar de salto, suportar a depilação,
participar de sessões de fonoaudiologia, tomar hormônios, usar quatro ou cinco
meias-calças para não aparecerem os pelos, entre outros. Somada a essas
artimanhas, há a dificuldade de manter tal processo, ou seja, de achar
estabelecimentos e profissionais que estejam dispostos a proporcionar isso para
elas.
Apesar das etiquetas de conduta implicitamente criadas, as próprias cross-
dressers reconhecem que nem todas asseguram a imagem que uma praticante
supostamente deva passar. Algumas desvirtuam a expectativa criada pelo BCC por
meio de um temperamento depreciativo, ou porque usam roupas muito apelativas,
não coerentes com a sua idade, ou porque expõem uma postura muito
masculinizada e se maquiam com exageros, entre outros aspectos. Todavia,
indiferente à percepção de cada praticante, a relevância dos apetrechos é um
denominador comum para a criação de uma nova aparência. Vale salientar que,
mesmo que a pesquisa de Vencato (2013, p. 210) não tenha como foco central a
temática moda, fez parte de suas conclusões com bases antropológicas o seguinte:

[...] é através do uso de certos objetos e itens, assim como da compra


destes, que essa outra pessoa pode ser concretizada, uma vez que estes
objetos operam na transformação dos sapos em princesas e são, mesmo,
fundamentais nessa passagem.
95

O olhar da autora foca-se nos conflitos, na política e nos direitos sexuais,


com descrições etnográficas detalhadas sobre os eventos organizados durante sua
pesquisa de campo, bem como, no manejo da transitoriedade. Nesse sentido, essa
autora ressalta a diferença que ocorre na personalidade quando uma pessoa ‘se
monta’.
Esse fato ficou bastante perceptível na incursão em campo, pois as
interlocutoras se autorreferem na terceira pessoa do singular masculino quando
‘montadas’; da mesma forma, citam-se pelo nome social feminino quando na
situação de ‘sapo’. Por muitas, foram exemplificadas questões do cotidiano pessoal
como, que ‘ele’ é muito mais contido e sem graça, enquanto ‘ela’ gosta de gastar
muito dinheiro. Diante dessas derivações, é revelador identificar o lugar da
performance da travestilidade. Isso ocorre, pois de fato percebem-se como outra
pessoa. Quando ‘montada’, a pessoa transgênera transgride essa lógica, evitando
inclusive usar o nome de registro ao nascimento. Cria e se apresenta com um
segundo nome, mais de acordo com a imagem recriada e que logo, exalta extrema
feminilidade. E para todas as praticantes entrevistadas havia uma justificativa
pessoal para a escolha do nome: geralmente sua raiz trazia uma homenagem a
alguém querido e que tivesse uma boa sonoridade.
Importante refletir que a aparência interfere diretamente na autopercepção e
no convívio social por incorporar uma identidade de gênero, mesmo que transitória e
situacional. A ação pelo travestimento de criar pseudônimos é fundamental porque
as experiências concedem-lhes expressar e autenticar sua experiência trans,
praticamente criam uma persona motivada pelo visual. O desconforto anatômico, por
assim dizer, dá lugar ao pertencimento psíquico e o seu reflexo no espelho permite-
lhes uma outra forma de se apresentar. Logo, ‘se montar’ implica uma transformação
não somente visual. Esta tem o poder de interferir no interior: no como a pessoa se
vê e é vista.
No próprio campo, quando em contato com as praticantes, também foram
trazidos vários exemplos no teor de que, quando a criança vê a tradicional imagem
de um homem com terno, sapato e barba, condicionalmente o chama de ‘tio’. Após
‘se montar’, este tratamento facilmente altera-se para ‘tia’. A produção assim,
compromete uma orientação para um ato de classificação, quando a pessoa ainda
não foi institucionalizada com parâmetros valorativos sobre todo o sistema que
contempla a binarismo baseada nos preceitos da heteronormatividade. Sobre isso,
96

outra entrevistada relatou que visivelmente é tratada de forma diferente conforme a


produção final de sua aparência. Quando atendia seus clientes no trabalho de
representação comercial e saía para bares, ouvia palavrões e cada um pagava a
sua conta. Depois que descobriram que ela se travestia, especialmente aqueles que
tinham uma preocupação excessiva com manter seu papel de virilidade, pedia para
ser atendido somente pela (nome social da cross-dresser), “[...] e assim, o tapão nas
costas foi virando aos poucos um tapinha; ao final, eu era até convidada para jantar,
com direito a puxar a cadeira pra eu sentar!” (DIÁRIO DE CAMPO, 18/06/2014),
lembra sorridente. Para ela, a reação dos clientes foi dividida em praticamente, três
formas: ou a pessoa solicitava para não ser mais atendida por ela de nenhuma
forma; ou respeitava e a relação pouco se alterou; ou fazia questão de vê-la
‘montada’. Os que queriam ser atendidos somente na condição de ‘princesa’,
resguardavam-se consideravelmente daquele comportamento mais estereotipado
masculino, e na sua presença, evitavam alguns indícios típicos. Ainda na sua visão,
quando iniciou a prática, era “uma travesti no sentido mais desmoralizado possível”
(DIÁRIO DE CAMPO, 18/06/2014), com atitudes másculas e sem discernimento
sobre os distintos arranjos da clássica atribuição de papéis de gênero. Quando
admitiu ao seu chefe que era transgênero, ele, apesar do impacto, apenas solicitou
que “não denegrisse a imagem da empresa”, conforme palavras do gestor, apontou
a respondente. Todavia, depois de seis meses, ela foi afastada do cargo que era
somente um abaixo do mais alto da companhia. Até hoje não sabe se sua
transgeneridade ocasionou isso, embora Goffman (2012) avalie que sempre haverá
um preço a pagar por alguma revelação que seja de fundo desestabilizador de juízos
dominantes, ocasionando certas divisões de lugares nos quais alguns, antes
permitidos, passam a ser censurados para garantir a manutenção das diferenças.
Esses códigos estéticos têm seus valores simbólicos, já que enunciam as
demarcações de gênero. Geralmente as cross-dressers dão pouco caso aos seus
acessórios e vestuários usados rotineiramente, inclusive não há encanto algum nas
peças atribuídas ao sexo masculino; são meras formalidades impostas para um
convívio harmônico. Isso é diferente do que ocorre com as peças femininas, que são
guardadas com muita vigilância, seja pelo ciúme por ter sido difícil de ser adquirida,
seja pelo segredo da experiência. Sobre isso, vale destacar o que é chamado de
‘síndrome da acetona’, ou seja, um período de rejeição e desgosto por precisar ‘se
97

desmontar’, sempre cuidando muito para não deixar resquícios. Vencato (2013, p.
79) explica:

Esta síndrome, que consiste na parte triste de precisar esconder os traços


da montagem quando as atividades do clube terminam, acontece num
momento visto como importante para a preservação do segredo: é preciso
limpar bem todos os traços de feminilidade e tornar aquela pessoa um
homem acima de qualquer suspeita novamente. O momento da
desmontagem é apontado como algo que recoloca a pessoa no seu lugar
cotidiano, num universo em que não é legítimo um homem desejar se vestir
de mulher e é ainda menos válido efetivar este desejo.

Quase como um apego ao desejo, algumas mantém as unhas dos pés


pintadas, já que a meia e o sapato fechado são de uso diário; além disso, as cross-
dresser entrevistadas moram sozinhas ou com pessoas que sabem dos seus hábitos
íntimos. Como ponto de conexão, esse relato vincula-se com uma observação feita
por uma das interlocutoras, que garantiu que naquele exato ambiente onde ocorria o
encontro15, havia muitos homens usando calcinhas por baixo das calças. Isso
converge para a biografia de Novic (2005 – tradução nossa), quando esta também
indicou a certeza de que, antes de ‘se montar’ no espaço público, era habitual por
debaixo de suas roupas másculas, estar usando elementos bastante femininos,
muito em função para que aos poucos, criasse coragem para uma exposição
pública. Assim como, para também não precisar desvincular-se de sua referência
identitária.
Na pesquisa descritiva de Vencato (2013), ela analisa algumas das que
seriam, segundo sua visão, as principais instâncias da vida de uma cross-dresser e
como elas operam nesses espaços. Como resultado de etnografia, a autora
percebeu que a própria conceituação do termo, bem como outros similares, era
nebulosa para as praticantes. Muitas vezes, discussões sobre a sexualidade e
vestimentas são evitadas para não gerar situações embaraçosas e falta de
consensos. Ela reforça a noção de que as praticantes não se consideram mulheres,
uma vez que a ‘montagem’ é algo transitório, quase que uma brincadeira para
muitas. Ou, ao menos é assim que preferem expor a prática. Percebeu também,
uma grande satisfação emocional, da qual o contentamento se origina por ser um
reconhecimento tomado para si e de si.

15 Mercado Público de Porto Alegre, 09/11/2012, sexta-feira, horário de almoço.


98

Para Bento (2014, p. 44), o poder de convencimento é dado, em grande


medida, por alguns parâmetros: “O ato de pôr uma roupa, escolher uma cor,
acessórios, o corte do cabelo, a forma de andar, enfim, a estética e a estilística
corporal são atos que fazem o gênero, que visibilizam e estabilizam os corpos na
ordem dicotomizada dos gêneros”. Há objetos cuidadosamente escolhidos como
parte fundante da apresentação pública para construir um agente de socialização.
Mesmo não existindo um processo específico para essa constituição, a socióloga
defende que são os feitos cotidianos que definem a identidade de gênero. É na
prática que se estabelece essa identidade, uma vez que o reconhecimento é dado
mediante a persistência da repetição que supõe alguns princípios culturalmente
impostos. Não se pode reduzir tudo isso ao conceito de imitação, mas se deve
relacionar essa ação à noção de pertença, pois seguir por identidades genitalizadas
pode fazer parte da performatividade. Como complemento, vale lembrar que o
ativismo queer tem a proposição de ocupar novas estruturas e atormentar o sistema
binário – abordagem a ser tratada na divisão de texto 5.2 desta pesquisa.
Portanto, se o corpo for entendido como uma possibilidade de categoria de
análise, então esse é visto não como uma estrutura passiva, mas como algo que
preserva em linhas divisórias, um conjunto de políticas. Torna-se um espaço
incorporado de uma superficialidade internalizada e transita da expressão
condicionada ao performático comportamento de originar a ideia do gênero. A
manutenção é baseada na reprodução de certos códigos simbólicos que vão
reforçar essa subversão da ordem compulsória, já que esta se situa contra a
coerência social. Logo, quem isso vivencia é marginalizado e sofredor de muitas
tensões que precisa gerenciar.
Disso, nascem algumas interrogações, como: até que ponto a expressão
sexual do corpo é de fato, um elemento que auxilia na construção de espaços de
negociação? Mais importante que as práticas e os discursos, são as repetições para
a manutenção dessa identidade. Trata-se de construções que ultrapassam as
categorias mediante um discurso na esfera social que, por esta, são insistentemente
questionados e que vão delinear a concepção das dimensões de identidade. Aqui, é
relevante colocar, afinal, que da mesma forma, a estética de ser pertencente a um
gênero é, portanto, um efeito das influências de atos. Por esse motivo, também não
existe um sexo na condição de verdade única: esse é culturalmente constituído por
meio da prática do desempenho, permanecendo aberto a ressignificações. Assim,
99

novamente em Butler (1999), desta vez em ‘Corpos que Pesam’, retomam-se alguns
dos principais estudos do ‘Problemas de Gênero’, para certificar que o gênero
também é uma expectativa. É uma ação que se estabelece como um aparato pré-
discursivo, no qual, em resposta às práticas regulatórias, o agente social segue uma
matriz performática como lógica de reconhecimento. É tão somente a repetição
desses atos, porquanto um corpo será sempre decifrado por meio de significados
culturais, pressupondo que nem natureza nem cultura seriam de domínio total do
sujeito.
Os escritos da autora já iniciam com algumas perguntas sobre até que ponto
a pele encapsula os limites do corpo. Há sistemáticos contornos materiais que
atribuem valores a ele. A insistência na justificativa da natureza permanece, quando
bem dizendo, são efeitos de natureza: pensamentos que vão sendo naturalizados ou
desnaturalizados. Esse é o caso da necessidade de vincular a diferença sexual
simplesmente às funções materiais, quando na realidade, essa deve ser entendida
como uma prática discursiva. A categoria sexo é uma demarcação normativa que
perversamente regula os corpos que, embora dominados, são inconformados com a
força regulatória que os controlam. Acima de tudo,

[...] as normas regulatórias do ‘sexo’ trabalham de uma forma performativa


para constituir a materialidade dos corpos e, mais especificamente, para
materializar o sexo do corpo, para materializar a diferença sexual a serviço
da consolidação do imperativo heterossexual (BUTLER, 1999, p. 156).

Convém analisar que a reformulação dessa materialidade no corpo inquieta


as dinâmicas de poder toda vez que o gênero é visto como uma imposição artificial a
partir do sexo como um dado corporal. Isso dá margem para repensar a adoção de
imperativos de identificação do corpo e, ainda, repassar o peso sobre o domínio ao
sujeito autônomo.
Diante disso, por haver um consenso preestabelecido e nem tão oculto que
ordena fórmulas sobre como assegurar a existência do e no grupo, é que as cross-
dressers se veem como minuciosas observadoras do cotidiano. Elas se tornam,
involuntariamente, críticas das condutas, e replicam-nas como algo dado. A base
existencial do ‘ser mulher’ nesse sentido, foi claramente exposta quando a autora
desta pesquisa colocou-se como ouvinte em um grupo com três praticantes. Embora
evidentemente houvesse o interesse nas falas que ali estavam sendo edificadas, o
100

que de fato estava em jogo era o comportamento de uma das que estava em
silêncio. Como mera espectadora, ela observava cuidadosamente a autora desta
tese e espelhava o modo de portar os braços na mesa enquanto o diálogo ocorria
com as demais. Assim como, já na saída, esta mesma pessoa permanece atenta e
levanta vagarosamente para ficar por último, dando a impressão que era para
conseguir perceber o andar ou o vestir da única que ali não se travestia (DIÁRIO DE
CAMPO, 05/07/2013).
Um dos paradoxos é que pode ocorrer uma busca pela naturalidade apoiada
em mecanismos de observação e treino. Por toda sociedade possuir suas
expectativas visuais a respeito das funções sexuais, algumas praticantes do cross-
dressing reforçam os pressupostos mais marcantes do que supostamente é uma
mulher na sociedade em que elas vivem. Percebe-se, por exemplo, uma fragilidade
física simulada em todas as entrevistadas que foram conhecidas pessoalmente
quando feitos os estudos e observação para esta tese. Nessa instância, uma delas,
objetivamente explicou sua preocupação com precisar monitorar constantemente
sua voz, a fim de lembrar-se de falar mais baixo e pausado, evitando usar qualquer
palavrão, uma vez que para ela, é assim que as mulheres conversam. Cuidar para
sempre andar mais lentamente, e quando for sentar, não ficar de pernas abertas são
outros ensaios controlados permanentemente. Também a forma de escrita recebidas
através de e-mails, mensagens e fóruns pode ser um indício que reforça essa
imagem institucionalizada, com expressões infantilizadas e excessivamente
carinhosas (DIÁRIO DE CAMPO, 2012 a 2015).
A ‘princesa’ nesse sentido, vai se construindo em um processo de
subjetividade. Até porque a própria dimensão de gênero é profundamente
arquetípica. E embora haja um grande empenho nessa construção, as declarações
sobre autopercepção são reveladoras: “Mas eu sei que não passo por mulher,
jamais vou” (DIÁRIO DE CAMPO, 09/11/2012). Assim, essa entrevistada admitiu que
mesmo completando aproximadamente dez anos que se apresenta publicamente na
figura feminina, até hoje sente uma grande adrenalina quando sai de casa. Ao
mesmo tempo em que quer ser notada e admirada, sabe que vai causar
estranhamento nas pessoas, até daquelas que depois lhe devotarão respeito.
Segundo o que acredita, é impossível passar despercebida; nenhuma praticante
consegue isso, mesmo sendo essa uma das principais metas.
101

Como ponto de hipótese, tal sustentação se reduz quando confrontada pelo


fato de elas não quererem ‘passar por mulher’, mas a imitação dessa causar uma
angustia criada socialmente, em nome de uma vontade de encaixe. É uma tensa
negociação com uma imagem tomada por modelo em um mecanismo de divisão
para legitimar a sua própria existência. Assim, a aparência é um enorme indício de
interação social e empoderamento da identidade, que incorpora atos acionados
conforme o contexto. Como explica Goffman (2012), os normais16 já são
espontaneamente envolvidos e por isso, não se dão conta de que suas atitudes
servem de códigos de conduta aos que querem alcançar a mesma estratificação.
Para alguns cidadãos, involuntária e temporariamente vinculados com algum
estigma, esse comportamento em busca da legitimação das normas sugere uma
moralidade exacerbada que nem todos estão dispostos a receber. Muitos esperam o
desempenho de um papel fixo que contradiz um sistema comum de valores, já que
assim, facilita reconhecer o lugar também pré-demarcado e que não force as
circunstâncias. E para não ultrapassar os limites cômodos, a clareza nas diferenças
necessita ser determinante.
Com tantas marcas das diferenças, o cross-dressing parece assumir
instintivamente uma expectativa em termos de uma identidade de gênero fixa,
mesmo que não seja esse o objetivo consciente da experiência. Instaura-se uma
espécie de condição de contrato para garantir um pertencimento, uma simulação
nascida pela discriminação histórica e que venera imposições de alternativas com
fundos bastante normativos. Essa vontade, por extensão, manifesta-se pela
aparência, quando Simmel (2008) explica que o ser humano possui uma tendência
psicológica para a imitação. Mostrar-se como uma ‘verdadeira mulher’ consiste em
possuir alguns alicerces no vestir e no temperamento para atingir um sentimento do
fazer apropriado, e como consequência, de não estar sozinho no mundo.
Todo o conhecimento é transmitido, nascendo daí, a questão imitativa mais
primitiva, que aflora quando em grupo, orienta formas básicas de vivência. Quando
um modelo é dado, conduz o indivíduo a percorrê-lo como um exemplo a ser
seguido com base no apoio e na satisfação social. As formas típicas de vida são
sempre eficazes ao uni-los, pois fundam um acordo sólido entre eles, destinado a
ser uma totalidade e a representar um coletivo. Esse fato desobriga das

16Expressão usada pelo próprio autor, ou ao menos, na obra traduzida, para designar as pessoas
não estigmatizadas. Embora revelado esse uso, aqui se acredita que estratifica ainda mais o sujeito.
102

responsabilidades das escolhas, satisfazendo a unidade e, ainda, cria uma marca de


pertença, uma garantia de aceitação.
Essa é a essência do próprio sistema de moda. Ao mesmo tempo, é um
produto de separação, pois na mesma intensidade que conduz ao igual, cria
necessidades de distinções. Distanciando-se de alguns gostos, inevitavelmente se
aproxima de outros. A vontade imitativa realiza-se por uma amostra dada de juízo
estético, sempre na tentativa de adaptação ao social, por causa da necessidade de
apoio cultural. Assim, a aparência aprendida é o resultado de como isso se
manifesta no domínio do outro. Produto de uma reprodução, “o gênero travesti se
constitui através de uma imitação idealizada da (hiper)feminilidade [...], encarnam
um tipo ideal e ficcional de mulher17”, acredita Cabral (2012, p. 4 – tradução nossa).

4.3 APROPRIAÇÃO DO PRÓPRIO CORPO

Na mesma ordem de ideias sobre a formulação de determinados roteiros


sociais, percebe-se que a universalização de normas aprisiona e não permite que o
sujeito se aproprie de seu próprio corpo. Nesse sentido, a impossibilidade de
experimentá-lo como portador de significados é também uma forma de violência,
talvez uma das mais brutais, já que sufoca qualquer possibilidade de autonomia. Os
disciplinamentos descritos na subseção 4.1 desta tese são muito mais complexos
sobre a formação das dimensões da identidade pelo visual, do que popularmente se
prefere acreditar. Da falta de ruptura dos padrões, resulta a asfixia cotidiana de não
poder ensaiá-lo por inteiro. O fora do estabelecido fica condicionado a patologias e
inconsequências morais, como se a pessoa não pudesse transcender os limites do
próprio corpo. A vontade de vivenciá-lo na sua totalidade e não como uma mera
possibilidade já dada, ainda prevalece como um tabu. A cultura ocidental vigente
prefere a escolha mais segura da alienação corporal, incentivando a pensar a
aparência na terceira pessoa ao invés de presentificada. Sendo descolado do ‘eu’,
precisa seguir pelos arquétipos; logo, repercute na ideia reducionista sobre o
considerado natural. Como primeiro espaço de expressão, o corpo visto como um
território aculturado é uma forma de ter controle, um verdadeiro testemunho da

17 Texto original: “[...] el género travesti se constituye a través de una imitación idealizada de la
(hiper)feminina [...] encarnan um tipo ideal y ficcional de mujer [...]”.
103

existência e das experiências no mundo. Nesse sentido, a produção funciona como


uma forma de ritualização.
O interesse maior aqui é compreender o corpo como produtor de
significados, e nesse caso, por meio da moda no sentido de deliberar contornos e de
produzir adereços conforme os modos vigentes de um tempo e local. Curiosamente,
o corpo subversivo, que na atual comunicação de massa coloca-se com um grande
apelo sexual, nada tem de estranho ou de constrangedor. Por outro lado, quando
tratado como um objeto de estudos e percebido na posição de um suporte de
manifestação pessoal, já há uma certa comoção. Na tradição ocidental
contemporânea, Rodrigues (2006, p. 70) redimensiona o sentido erótico em público:

As roupas servem para nos separar dos corpos alheios, mas servem
também para nos separar dos nossos próprios. Mesmo em situações em
que se permite o nudismo (saunas, vestiários coletivos etc), a nudez dos
órgãos genitais é disfarçada e encarada com uma artificial naturalidade.

Esse tabu se constrói muito em função do fato de que o próprio ser humano
não aceita a nudez, e tampouco aceita qualquer invólucro posto em si. Todavia, na
tomada de consciência de que o corpo é finito, há uma vontade latente de
experimento de algo que é próprio de cada um. Enxergá-lo como algo fluido,
expandido, que permite novas formas de visualidade é de fato viver na plenitude.
Projetá-lo não somente teatralizado para os palcos ou adaptado pelas cirurgias, mas
reconhecido no âmbito político do cotidiano, ultrapassando os prazeres
convencionais de ordem biológica e somar a isso, a oscilante insatisfação com o
corpo faz com que o indivíduo recrie a sua própria aparência. Quaisquer tipos de
manipulações significam interferir na sua estrutura em nome de um modelo de
aparência negociada e atuante na sociedade.
É inegável a noção do corpo como uma entidade material, e dessas
interferências, nascem as inscrições corporais. Essas se revelam como se
preexistissem antes da posse de significado sexuado, logo, não faz sentido admitir
genealogias, já que tal construto é dado como passivo e desprovido de valor.
Ademais, é pertinente lembrar que o ser humano possui um fascínio inerente por
seu corpo, o que foi inicialmente contextualizado por Lacan (1988). Desse fascínio, o
ser humano constitui sua original comunicação e esta funcionará como uma
104

identificação imaginária. É o primeiro local possível de incorporar, um verdadeiro


investimento moral.
A temática de investigação que sugere o corpo como um produto de práticas
também se aplica nos estudos de Pires (2005), que disserta sobre aquele ser uma
importante ferramenta comunicacional, o qual possibilita além da interação social, a
troca visual, passível de identificação e interpretação. A autora dedica suas
pesquisas exclusivamente às possibilidades de exposição do corpo no espaço
público e privado. Suas etnografias nos grupos praticantes de body modification,
articuladas com explicações nas origens antropológicas, auxiliam o entendimento
das transformações da imagem do sujeito que o presentificam pelas dimensões
estéticas dessas manipulações.
Indissociável para sua socialização, as práticas de modificação corporal são
intensificadas graças à sociedade ser cada vez mais visual e às infinitas
possibilidades de interferência, o que torna a aparência a primeira expressão de
identidade. Assim, revestida pela cultura, o corpo passa de um suporte estável,
intocável e definitivo, a algo a ser redesenhado, um bem adquirido que se molda às
vontades de seu proprietário.
Santaella (2004) endossa tal questão sobre a subjetividade e questiona as
fronteiras da estabilidade do corpo. Ela sintetizada sobre os limites e as
multiplicidades de leituras entre o masculino e o feminino, indagando as fronteiras da
corporeidade na esfera cultural. Ao dissertar sobre o poder da fisicalidade da body
art como uma teatralidade, o conceito de arte performática de conteúdo
autobiográfico é trazido à tona. Invólucro do imaginário, o corpo é agenciado como
um objeto de obsessão e como uma das formas de definição da condição humana.
Lembra que, como meio de expressão e sociabilidade, ele é o instrumento central e
as suas marcas, sejam na forma de tatuagens, por exemplo, ou de produtos que
nele sejam colocados, são signos com valor de troca que advêm do imaginário do
sujeito.
Fundamentando esta noção, alguns artistas da contemporaneidade, como a
francesa Orlan e o chipreano Stelarc (2009 – tradução nossa), este último que se
descreve como um “artista performático que tem visualmente explorado e
acusticamente amplificado o seu corpo”, valem como exemplos para os manifestos
artísticos, declarando seus corpos como uma importante ferramenta de visibilidade,
por vezes pouco explorado. A possibilidade de arranjos pessoais, amarrados com a
105

excessiva base de informações, gera o corpo espetaculoso, em que o prazer pode


estar exatamente na provocação causada para o outro. Além disso, antes era a
roupa que o moldava: hoje essa mudança se inverte, resultado de uma mente
inquietante e sobrecarregada de imagens que informam novos aspectos de
existência. Quando o portador entende que sua expressão visual é muito mais do
que os limites físicos da fisionomia, é bastante possível originar a vontade de
questionar, provocar, extrapolando os receituários sociais e assim, vivenciar novos
prazeres de experiência. Ao mesmo tempo em que essas intervenções servem para
exprimir um peculiar repertório, pode demostrar controle sobre si.
Para fins de fechamento deste capítulo, que visou refletir sobre o lugar dado
ao corpo e suas possibilidades de conexão através da visualidade moldada como
uma maneira de dinamizar as interações no coletivo, lança-se não questões
conclusivas, mas uma última ideia para pensar esses diálogos. O estranhamento
vindo pelo senso comum acontece, muito por conta da carga ainda bastante
presente que as pessoas trazem, que remonta a uma visão religiosa do corpo como
um santuário, como algo intocável. Por várias vezes, uma das interlocutoras da
pesquisa reforçava a perspectiva da intolerância vinda prioritariamente de uma visão
histórica religiosa (DIÁRIO DE CAMPO, 09/05/2013). Diante disso, uma possível
conexão é que, uma vez que o corpo representa um presente divino, interferi nele
significa uma heresia com o seu Criador. Esse ponto de vista recusa a aparência
pessoal que transgride o considerado natural. O sujeito insatisfeito estaria
renegando uma oferenda dos deuses, um ingrato que prefere a impureza de uma
estética artificial. Em uma obra escrita por uma devota, a preocupação e a
personalização do corpo tratam de ingratidão, pois essa autora identifica nelas
pessoas que não sabem valorizar um presente divino. No decorrer desse texto,
Mahaney (2005, p. 46) questiona, a fim de doutrinar suas leitoras: “Existe algo em
minha aparência que eu gostaria de mudar, ou sou plenamente grata a Deus pela
forma como me criou?”.
106

5 CONVENÇÕES DE GÊNERO

Conforme referenciado na Introdução deste trabalho, a discussão no Brasil


sobre a temática do cross-dressing ainda é recente, substancialmente mais quando
o enfoque é dado pelo viés do sistema de moda. Este cenário já muda um pouco, se
comparado aos Estados Unidos, local onde se popularizou a expressão ainda na
década de noventa. Através das análises nas biografias literárias aqui referenciadas,
além dos relatos em blogs pessoais e em dados da pesquisa de campo, percebe-se
uma variação grande sobre a iniciação dessa prática, exatamente por não haver
uma regra generalista. Nem mesmo existe uma conotação sobre o despertar da
orientação sexual da praticante. Uma das entrevistadas em contato pessoal,
garantiu que é "algo cromossômico", pois como explicar que aos quatro anos de
idade já se escondia embaixo da cama de sua mãe para poder experimentar os
sutiãs e batons dela, indagou (DIÁRIO DE CAMPO, 18/06/2014). Um dos únicos
sentimentos em comum é a dificuldade de uma autoclassificação, quando dão-se
conta de que há algo diferente nos seus interesses. Por esse motivo, a sua figura
fisiológica pode ser autorrenegada. O ideal seria ter uma vida feminina, porém sem
cirurgias. Foi percebido que, na sua maioria, são contra interferências graves no
corpo, preferem alternativas estéticas menos invasivas como sutiã com enchimento,
cuidados com o cabelo e depilação.
Como um ponto de conexão, por definição o conceito de travesti está
inserido de forma já muito profunda no senso comum como algo estigmatizado.
Carregado de apelo depreciativo, o que consta no imaginário brasileiro sobre a
travesti é uma imagem estereotipada, usuária de recursos – geralmente de caráter
ilícito – para alterar seu corpo, tais como implantes, cirurgias, maquiagens e
hormônios, ganhando sua baixa renda pela prostituição nas ruas à noite.
Esse arquétipo acaba correspondendo aos estudos de Kulick (2008). Apesar
de ser uma pesquisa que corresponde a outro tempo e contexto, e que muitas
questões mudaram deste então, o que vale aqui ressaltar é a noção de produção de
corpos e as rupturas na moralidade do modo de vestir. É lugar comum o grande
número de travestis que se prostituem no país e, sobre essa especificidade, o autor
traz seu olhar de estrangeiro – literalmente – na tentativa de fazer enxergar certos
imaginários originados e mantidos pelos brasileiros. Ele mostra o contexto de
Salvador durante incansáveis oito meses durante os quais morou em um pequeno
107

quarto alugado em uma casa, na perspectiva das mais de trinta travestis prostitutas.
Outro diferencial em sua obra é o fato de o autor ter germinado um relacionamento
próximo e sincero com elas. Em seu livro, estão relatos resultantes de uma vivência
bastante íntima e amigável, no qual ele faz questão de dar voz às próprias.
Para se referir à elas, o autor deu preferência ao pronome feminino, escolha
que para ele não era tão evidente assim, já que no inglês não há tantas distinções
linguísticas. Com o aprendizado, pôde esclarecer aos leitores que é de praxe para
aqueles que querem ofender, conjugar no masculino. No exemplo dado sobre a vida
dessas pessoas no nordeste do país – embora se saiba que não é exclusividade do
local – a intolerância é bastante grande, inclusive com agressões verbais e físicas
vindas dos moradores e até mesmo dos policiais. O que ajuda a pensar no contexto
desta pesquisa, é especialmente porque, na visão do autor, tais interlocutoras usam
roupas femininas muito provocantes em tempo integral, estando no seu período de
trabalho ou não. Assim, é como se carregassem esse fardo de condenação por
decorrência da linguagem visual comunicada, já que denuncia uma correspondência
vinda da produção da aparência, entre outras formas de expressão. Não por
coincidência, a expectativa de vida delas é mais baixa do que do cidadão que segue
os padrões heteronormativo, devido aos inúmeros problemas como doenças e
violência. O autor é enfático, ao narrar as advertências que antecipadamente
recebeu sobre os supostos perigos de andar com elas, o que se agrava quando se
mora junto. Extremamente marginalizadas, ele conta que elas são vistas como
ameaças pela população e pela mídia brasileira, que as apontam por extensão,
como verdadeiras criminosas.
Desses saberes, vale-se ainda de mais ensinamentos pertinentes de Kulick
(2008, p. 28), o qual aponta a possibilidade de suspender as pressuposições do
gênero baseadas em um sexo biológico concentrado na genitália:

Com isso, ressaltou-se a possibilidade de estudar o gênero como conjuntos


de ideias e categorizações que não se restringem às categorias biológicas
de ‘homem’ e ‘mulher’. No que concerne às análises sobre travestis, a
importância desse movimento teórico é que ele nos incita a investigar as
práticas de gênero das travestis sem pressupor que sabemos de antemão o
que são ‘homens’ e ‘mulheres’ (ou mesmo se essas categorias existem
como tais); sem pressupor, portanto, que já conhecemos o ponto de
referência, o objeto deliberado ou o ponto final do projeto travesti. Um
estudo que tome o gênero como um conjunto de ideias, processos,
subjetividades e práticas não necessariamente gerados pelos órgãos
reprodutivos, ou a eles relacionados, distancia-se da abordagem que vê as
108

práticas travestis simplesmente como inversão, desvio ou tentativa vã (e


trágica, errática, agressiva etc.) de homens querendo ser mulher.

Justamente por esse peso na atribuição de significados da palavra travesti, é


que a denominação cross-dressing surgiu e pode ser considerada como sinônimo,
apesar de isso ocorrer de maneira reducionista. Ocorre também a não conformidade
desse conceito com as lógicas normativas, já que se travestem, ou seja, adornam-se
com elementos visuais considerados não correspondentes ao seu sexo físico.
Historicamente, foi um médico alemão chamado Magnus Hirschfeld quem utilizou
como publicação oficial o termo travesti e suas derivações, em 1910, para designar
pessoas que têm interesse em vestir roupas que não condizem com o seu sexo
atribuído no momento do nascimento. Logo, etimologicamente a palavra estaria em
concordância com tal posicionamento; é meramente uma tentativa de afastamento
dessa ordem estabelecida. Segundo o Grande Dizionario Italiano dell´Uso, ‘travestir’
tem registros mesmo antes de 1527; decorre do latim trans no sentido de ‘através
de’ em conjunto com vestitus, ou seja, ‘estar vestido’ (CABRAL, 2012).
As próprias formulações de termos são afetadas local e temporalmente,
como percebeu Haraway (2004), diante do desafio de traduzir palavras como
geschlecht para o dicionário marxista alemão. Em cada dialeto pode haver ou não
possibilidades de desmembramentos a fim de teorizar assuntos que envolvem as
dinâmicas de gênero. Cada verbete possui uma matriz de que invariavelmente
herdam-se determinadas políticas. A partir da problemática linguística, desenrolou-
se a complexa trajetória histórica dos sistemas de diferenciações, juntamente com a
relação do conceito de sexo. A filósofa garante que o debate político fixou um marco
na década de 1980, em especial sob uma visão feminista. Além disso, instaurou-se
a reflexão sobre a vontade de posicionar os corpos e suas naturezas consideradas
inatas em um estado permanente de atuações como sujeitos sexuados. As
ressignificações das categorias analíticas de gênero e sexo interferiram
especialmente nas teorias feministas durante os movimentos do pós-guerra;
verdadeiras palavras que revelam lutas de espaços.
Ademais, o termo ‘identidade de gênero’ foi usado em um congresso
internacional somente em 1963 por Robert Stoller, durante um encontro de
psicanálise em Estocolmo. Sua proposta era conceituá-lo a partir da distinção de
cultura e biologia, e essa foi uma das ações ensejadas por um esforço
epistemológico. Somente em 1975 que a palavra ‘gênero’ foi adotada na
109

antropologia, graças a Gayle Rubin e reforçada na sua expressão social, que


determina convenções em torno dos arranjos sexuais, já que ela se debruçou sobre
o tabu da homossexualidade. No Brasil, os estudos de gênero e toda a sua
complexidade vão se desenhar na década de 1970, uma consequência da segunda
onda do feminismo gerado nos Estados Unidos e Europa alguns anos antes
(VENTUROZA, 2015).
Percebido nas leituras realizadas, embora ‘travestismo’ seja popularmente
mais usado, estudos pautados na área das ciências sociais e da antropologia, além
de simpatizantes e das próprias pessoas trans preferem o termo ‘travestilidade’ ou
‘travestimento’, pois enxergam o ‘ismo’ como um sufixo patologizador (DIÁRIO DE
CAMPO, 13/05/2015). Pesquisas como a da Kogut (2006), com enfoques psíquicos
que pautavam por considerar tal prática como um distúrbio patológico a ser
diagnosticado e remediado, se utilizam da nomenclatura ‘travestismo’. A mesma
questão acontece evitar o termo transexualismo, pois para muitos, este soa como
uma referência a doenças. Como ainda pode ser visto como um transtorno na larga
tradição médica de algumas culturas, a ofensa se equilibra sobre uma linha tênue.
No fórum virtual do BCC que foi monitorado durante o período desta tese,
identificou-se que o termo mais utilizado entre as associadas é o de
‘transgenerismo’, com algumas contradições. Já o ‘transexual’ carrega uma
conotação de dar muita importância à anatomia sexual, mais do que à produção e à
identidade de gênero. Mesmo que o ‘travestimento’ esteja menos atrelado às
características físicas e a seus atritos do que à ‘transexualidade’, de qualquer forma
não há correspondência visual com o sexualmente dado como culturalmente
coerente. Tal motivo, por muito tempo, foi posto no rol da perversão sexual. Diante
disso, nesta pesquisa, a qualificação ‘transexual’ é usada nos casos específicos em
que a interlocutora se denominou assim. A preferência é por ‘transgênero’, já que
esta palavra situa-se na categoria de maior fluidez e que permite um trânsito maior
no universo das expressões identitárias de gênero, mesmo que pelo português,
aparenta estar conjugado no masculino.
Sobre essa questão da necessidade de classificação linguística, percebe-se
que há uma cegueira nas microidentificações, conforme palavras de Bento (2008, p.
58), pois mesmo com tentativas de reconhecimentos, ocorreu que “Nas últimas
décadas, a formulação de um diagnóstico diferenciado para transexualidade
terminou por produzir um sujeito transexual universal e homogêneo”, como se fosse
110

possível generalizar todos que são postos como ‘anormais’ em comparação com os
‘normais’. Assim, o binarismo se apresenta também aqui, ao distinguir somente duas
formas de vivência, e desse processo de rotulagem, os que não seguem os papéis e
negam a adequação nas definições são postos à margem da perversão proposital.
Os ajustados, por sua vez, atuam como agentes da regulação que precisam deixar
claro que não fazem parte daquele grupo.
Vale pensar: querer atribuir condutas de pessoas que possuem uma
mobilidade identitária seria tão irresponsável quanto querer agrupar outros grupos
de sujeitos que por alguma razão se assemelham. É uma tentativa simplista pelo
fato de cada um possuir uma biografia original e peculiar interpretação de mundo. E
sobre a necessidade de criar modelos totalizantes nas pessoas que vivem a
sexualidade em contradição com sua fisionomia, Steele (2013, p. 33 – tradução
nossa) adverte que:

Historicamente, tanto homens como mulheres se travestem por uma série


de razões, que vão desde o lado prático (mulheres tinham uma maior
liberdade quando vestidas de homens) até o erótico. Cross-dressing não é
necessariamente um sinal de homossexualismo, mas tem sido histórica e
literariamente exemplificado o cross-dressing indivíduos que eram gays ou
lésbicas18.

Ampliando o problema, percebe que essas confusões se dão muito em


função do pouco espaço que é dado a este tema no ensino. Os estudos de gênero
são quase nada abordados em profundidade nas escolas como categoria de análise,
que a priori, deveria ser um ambiente de articulação para pensar de modo plural. O
trabalho de Louro (2003) nesse sentido, é referência, ao trazer à tona essa vertente
de pensamento que extrapola as sistematizações tradicionais, provocando na sua
área de atuação, a educação, como parte do processo de universalizar já desde
muito cedo. A autora denuncia que o próprio silenciamento pode demonstrar um
lado opressor, como se não existisse esta questão ou como se não se precisasse
falar sobre.
Mantenedora de valores, a escola compreende uma visão polarizada e
ensina que a anatomia é um destino. Com uma base sexista, não permite visibilizar

18 Texto original: “Historically, both men and women cross dress for a number os reasons, from
practical (women had more freedom in dressed than men) to erotic. Cross-dressing is not necessarily
a signo f homosexuality, but it has been historically and literarily exemplified individuals cross-dressing
as gays or lesbians”.
111

outros grupos que expressam alguma inconformidade com os arranjos tradicionais.


Além disso, abandonar esses preceitos é sempre uma tarefa muito difícil. Depois de
aprendido, superar uma barreira de sentido pode ser um grande desafio, pois:

[...] para que um/a jovem possa vir a se reconhecer como homossexual,
será preciso que ele/ela consiga desvincular gay e lésbica dos significados
a que aprendeu a associá-los, ou seja, será preciso deixar de percebe-los
como desvios, patologias, formas não-naturais e ilegais de sexualidade.
Como se reconhecer em algo que se aprendeu a rejeitar e a desprezar?
Como, estando imerso/a nesses discursos normalizadores, é possível
articular sua (homo)sexualidade com prazer, com erotismo, com algo que
pode ser exercido sem culpa? (LOURO, 2003, p. 83-4).

Sob a temática da diversidade, ela questiona o propósito de separações


simples que são entendidas como naturais, e focaliza criticamente os conceitos
sobre aptidão para cada criança. Assim, aborda o fato de meninas se interessarem
por esportes de contato físico e meninos quererem brincar de se enfeitar sendo
tratados como desvio de comportamento. O determinismo biológico é, desde cedo,
tomado como justificativa para as mais variadas práticas; portanto, cada criança
deve reconhecer o que é considerado adequado para si, não o gênero fazendo parte
indissociável do sujeito. Atravessados pelos discursos repetitivos, os jovens vão se
construindo como masculino ou feminino e aderindo a preceitos ou a determinações
sobre como devem se portar no mundo.
Miskolci (2012), com o seu grupo de pesquisa Corpo, Identidades e
Subjetivações19, alarga essas concepções, versando sobre as expectativas que
rondam o imaginário coletivo sobre o ser considerado um homem ou uma mulher.
No decorrer de sua obra, ele afunila a questão da falta de neutralidade na
construção ideológica da sociedade brasileira. Segundo seu ponto de vista, as
pessoas deveriam aprender pela diferença; além do mais, para ele, a educação
escolar é o campo propício para focar esse princípio fundador. Todavia, o que ocorre
é o oposto: desde o início do aprendizado, são convencionados valores de lógica
reprodutiva para as crianças, utilizando sistemas heteronormativos como uma
demarcação do que é o normal, em contrapartida ao seu antônimo, daquilo que é

19 Grupo fundado em 2004 pelo Departamento e Programa de Pós-Graduação em Sociologia da

UFSCar, em São Carlos/SP, que conta com pesquisadores na equipe como Anna Paula Vencato,
Berenice Bento, Larissa Pelúcio, Flávia Teixeira, Jorge Leite Júnior entre outro. Para saber mais:
www.ufscar.br/cis
112

indesejável. Aqueles que não se encaixam no sistema binário estariam pré-descritos


como pervertidos, subalternos, fora do padrão, ou seja, queer.
Somados a isso, os regimes disciplinares encarregam-se de propagar a
valorização de padrões corporais tidos como ideais, ocasionando o disciplinamento
e a medicalização velada aos comportamentos desviantes. Como características das
outras experiências identitárias ditas como minorias, há os processos de regulação
que ocasionam as mais variadas formas de desigualdades. Seus escritos iniciam
com uma retomada das práticas de resistência no domínio nacional sobre o controle
do corpo e da sexualidade, desdobrando-se por algumas estruturas discriminadas,
ao apontar a origem do debate sobre o gênero como não determinado pela
natureza, mas sim, por uma elaboração cultural. Tais contestações históricas
propiciaram novas reflexões, ao subjetivar as categorias rígidas e desestabilizar as
formas dadas desde o nascimento do indivíduo.
É Simões (2009) quem também faz pensar que pode parecer estranho à
primeira vista, discorrer com bases nas teorias, a sexualidade como uma força da
natureza e como impulsos do corpo biológico, o que a coloca no âmbito das ciências
sociais. Basta perceber em quais disciplinas escolares esta questão é abordada –
quando é, pois parece que nunca haverá um local ou momento propício,
permanecendo eternamente como um tabu. Para ele, esse deve ser um tema
público e político por excelência, mesmo que gere controvérsias, ansiedades e
desconfortos. A ênfase deve ser dada na ideia de que as pessoas vivem em
sociedade e criam valores morais sobre o que consideram importante para a
existência humana. Aqui, incluem-se as representações sobre a sexualidade, já que
esta é uma produção flexível histórica e cultural. O que parece brotar como algo
dado, é uma coordenação entre mente e corpo, resultado de um complexo processo
de socialização.
Fruto de um impacto gigantesco na vida das pessoas, o tema é tratado de
diferentes formas, dependendo da época e das fontes. Religião, consultórios
médicos, política, música, pinturas, televisão, literatura, enfim, mesmo sendo evitado
o contato, e sendo velado seu interesse, nunca deixou de ser uma temática central
que se consubstancia como matéria de reflexão para gerenciar as instituições e as
respectivas condenações. Assim sendo, há razões para Simões (2009, p. 166)
acreditar que “Apelar à natureza é um meio poderoso para afirmar a verdade e a
solidez de qualquer coisa, fato ou argumento, para além de qualquer discussão, de
113

forma supostamente definitiva”, já que encobre as ambiguidades que os sentidos


possam ter.
Dissertando sobre as experimentações, o que para muitos poderia ser
categorizado como perverso ou excêntrico, para outros pode ser entusiasta. Esse
pensamento é amparado por Steele (1997), que assinala questões sobre fetichismo
e comportamento sexual. Para ela, a própria moda consiste em um complexo
sistema simbólico já que trata de um componente importante na representação das
dimensões da identidade de gênero. O diálogo feminista problematiza concepções
sobre o que se entende por aparência natural e artificial, sendo que para a autora,
seria uma falha insistir nessa dicotomia, uma vez que os aspectos da aparência são
construídos culturalmente. E segue: “O discurso acadêmico sobre a moda tem, na
verdade, cada vez mais sugerido que o adorno é intrinsecamente humano,
frequentemente prazeroso e potencialmente subversivo” (STEELE, 1997, p. 194).
Diante disso, o vestuário fornece a possibilidade de questionar das convenções de
gênero. Aqui não estão sendo referenciados somente os uniformes eróticos ou
quaisquer peças fantasiosas, mas a estudiosa assegura que mudar os sentidos
visuais interfere diretamente na identidade do sujeito. Já que o travestimento é um
ritual bastante comum em muitos lugares e que a forma mais gritante desse
questionamento subverte as ideias já convencionadas e cria um self feminino ao
protagonista da prática.
Interessante pensar é na via contrária do recorte de pesquisa, ou seja,
quando a mulher se apropria de roupas convencionadas masculinas, poucas
considerações são feitas. Elas na realidade, utilizam tais vestimentas com bastante
frequência e por motivos variados: tendência, razões práticas, política ou por
satisfação erótica fetichista. Steele (1997, p. 53) analisa os dispositivos de
regulamentação percebidos no cotidiano:

O argumento de que os homens são injustamente estigmatizados como


“pervertidos” enquanto às mulheres se permite que vistam roupas do sexo
oposto é fruto de uma compreensão equivocada. Não é o comportamento
que é significante, mas o significado que o comportamento indica. Uma
mulher num vestido decotado pode ser exibicionista, mas não é uma
exibicionista da mesma forma que um tarado exibicionista – porque seus
sentimentos e motivações são diferentes.

Nesse cenário, são sempre elas que são objetificadas e o homem, o


desejador do fetiche que vai à busca do próprio objeto passivo, logo, a mulher. A
114

autora deriva a compreensão do universo erótico para explicar que muitos dos
ensaios ocorrem da mesma maneira, porém em grau diferente. Há incontáveis locais
onde o ingresso se dá mediante a vestimenta apropriada ao contexto.
A historiadora também se vale de Freud, entre outros pensadores, ao
relacionar algumas peças como substitutos fálicos. Exemplifica como: o salto alto, o
avermelhado brilhoso dos lábios quando pintados, o aperto do espartilho, a
insinuação dos decotes, assim como com a interpretação de preferência de cores e
texturas, tais como o uso de peles e couro. Há sempre uma conexão entre dores e
prazeres ao decorar o próprio corpo em um cenário de construção de desejos.
Possivelmente, o salto fino alto seja o mais fortemente associado a simbologias
sexuais, tornando a quem o usa, uma pessoa indefesa e obrigando-a a tencionar
todo o corpo, mexendo com a estrutura física, que fica muito diferente de quando
estiver relaxada. Assim ocorre com a calcinha, peça que para muitos, é mais
excitante do que o corpo nu, pois conota um embrulho, ou seja, o melhor ainda está
por vir quando desembrulhado. Foi somente no início do século XX que se passou
das anáguas para uma peça menor e mais delicada, bastante próxima do que
conhecemos atualmente. Ainda mais distante do caráter de calça, a feminilidade
estava garantida na história. Nessa relação, é bastante comum essa ser o primeiro
experimento de uma cross-dresser, possivelmente por possuir tal peso simbólico e
por ser algo que pode ser utilizado em público sem que alguém repare. Isso foi
identificado tanto na pesquisa de campo, conforme já mencionado, quanto pelo
reforço de ideias de Steele (1997, p. 128), que comenta: “O entusiasmo por roupas
íntimas femininas está ligado à prática de vestir peças do sexo oposto, e muitos
travestis têm enfatizado o apelo de calcinhas femininas, em contraste com as
características nada atraentes tanto das calças quanto das cuecas masculinas”. No
intento de observar suas palavras, vale acrescentar que a própria concepção de
‘sexo oposto’ já se coloca como binarismo fundante ancorado nas diferenças e
complementariedade sexuais, questão posta nesta investigação.
A autora ainda se vale da ideia de fetichismo das mercadorias, fato cunhado
por Marx, apesar de este ter ficado muito mais preocupado com o aspecto da
produção dessas mercadorias. O conceito retrata a adoração e a forte identificação
por objetos graças à atribuição de um sistema simbólico, segundo o qual, ao mesmo
tempo, se ressalta a importância de entender esses produtos não somente como
peças de roupas, mas como objetos que emprestam um apelo erótico a quem os
115

possui. O repertório de significação do fetiche foi sendo moldado pela gratificação a


um consumo, ato que nem sempre está relacionado com a sexualidade, mas
especialmente, com o poder e a percepção. Então, se poderia pensar que todas as
pessoas, em alguma medida, são fetichistas por roupas e que estímulos são
necessários para as performances sociais, sejam elas quais forem. A
responsabilidade deste ritual de adoração é da moda, que atribui significados de
apelo sexual aos produtos. Para Steele (1997), a moda finca suas raízes nas
distinções de gênero, onde é o homem o detentor do poder e aquele que questiona
a aparência considerada natural e o uso de ornamentos, já que as roupas e demais
aspectos da aparência são culturalmente valorizados para criar uma forma
significativa. À custa disso, ela possibilita zombar das convenções de gênero no
quesito subordinação, por exemplo.
Ainda, argumenta que para as travestis, são escravizantes os detalhes
técnicos como os materiais, as cores e as texturas, descrições que para muitas,
tornam-se banais já que são de uso diário. Em sua obra, cita o Brasil como
referência de expressão popular que associa o número do calçado ao gênero.
Assim, há várias tentativas de explicar o uso do termo ‘sapatão’ para definição
pejorativa de lésbica, termo que está culturalmente amarrado à figura e a ideia de
que uma das mulheres precisa exercer o papel do homem.
Dentro das conceituações, a noção de cross-dressing está em circulação
entre o masculino e o feminino pelas variáveis socioculturais, que vai se estabelecer
na aparência. Mesmo que não haja sempre essa autointitulação – até porque tal
nominação é visto como algo contemporâneo – o objetivo a seguir é uma revisão de
literatura a partir do tema, para colocar em diálogo a expressão como uma
identidade de gênero que marca o corpo, onde as dimensões estão também na
vestimenta.

5.1 PARA ALÉM: LEITURAS ANTROPOLÓGICAS

A prática da adoção pelos homens, de adornos atribuídos somente ao


feminino20 tal como conhecemos como um mecanismo histórico, atinge as mais
variadas manifestações de exposição social. Sobre uma perspectiva situacional e

20 Apesar de a terminologia poder indicar as duas vias, reforça-se que a proposta desta pesquisa é
trabalhar somente a direção de categoria do sexo atribuído masculino que se adorna com elementos
de significados femininos, eliminando o caminho contrário para fins de objetivos metodológicos.
116

histórica, o travestimento pode ser interpretado como uma expressão ampla, já que
compreende desde as brincadeiras de carnaval até os ritos nativos locais como o
berdache. É expressão desde quando Shakespeare utilizava esse artifício em seus
personagens para retratar as máscaras sociais de cada cidadão, até quando
aparece na técnica do teatro japonês kabuki21, no qual somente aos homens era
permitido encenar. Por essa razão, eles atuavam também nas figuras dramáticas
femininas. Alguns atores inclusive se especializavam exclusivamente a essas
interpretações, chamados de Onnagata. Markwick (2009, p. 68) lembra que “Só na
década de 1660 os papéis femininos, no palco, passaram a ser regular e
continuamente interpretados por mulheres”. Assim como na Índia, o treinamento de
ator de kathakali era por séculos, dado somente aos meninos, que interpretavam
tanto os personagens quanto as deusas.

Figura 9 – Pintura de um Onnagata datada de 1799 e a direita outro registro, já do


século XX

21A título de curiosidade, o contrário seria o Takarazuka, ou seja, um show de que participavam
somente mulheres e estas, se necessário, trajavam-se masculinamente.
117

Fontes: Metropolitam Museum (2015); National Geographic (2014).

Há também, na subcultura das Lolitas, as brolitas, que são os jovens


japoneses que desafiam as lógicas masculinas, ao usarem figurinos e excesso de
elementos estéticos do grupo. Todavia, observam-se esses exemplos com o caráter
da exceção e/ou que possuem a licença poética da arte, e por isso, não geram tanto
conflitos quanto quando a prática é levada ao cenário cotidiano, no qual se
estabelece como uma estrutura de desejo permanente.
Como acréscimo, para alguns estudiosos como Camati (2009), Shakespeare
teve por função ir muito além da satiriza às trocas de papeis. O escritor inglês
utilizava a linguagem cênica como estratégia para problematizar as noções de
gênero. Fazia isso, em especial porque na época, o teatro era uma importante
instituição política para desafiar ideologias. Este era o caso das hierarquias sexuais
vistas como uma fatalidade biológica, fundadas em um discurso patriarcal. Por meio
118

das representações de seus personagens, Shakespeare forneceu indícios para


subverter as identidades e, por conseguinte, para criticar as relações de poder
mediante as estratégias do travestimento.
E avançando na questão do berdache, Rodrigues (2006) explica que na
tradição etnológica norte-americana, este é também conhecido como pessoa de dois
espíritos. A base dessa ideia é o que o cientista social nomeia como uma gramática
do sexo e nesse sentido, acredita em um desenvolvimento gradual de uma reação
erótica, presente desde o nascimento, que orienta as manifestações da sexualidade.
Além de relativismos e comparações culturais, esse autor evoca que as definições
dos papeis sexuais e das maneiras pelas quais se relaciona esse chaman – para
muitos nativos, esta seria a melhor explicação – se situam afastadas da biologia. Na
visão do grupo, não existiria uma conformação anatômica e fisiológica sobre aquele.
Então, desses ajustamentos, ocorre a criação de uma terceira categoria, conhecida
como berdache, ou seja, um sujeito que transita entre mundos. Na esfera tribal, o
homem assume um comportamento antes restrito às mulheres nativas, como por
exemplo, utilizar as vestimentas características dessas, assumindo suas funções
tradicionais dentro do grupo, simulando inclusive, ciclos menstruais e gravidez. Aqui,
incita um eixo de análise sobre os enfrentamentos ultrapassarem os limites de
deliberação, uma vez que, no grupo, passa a ser alguém incorporado com às suas
simulações. Em uma perspectiva de atravessamento de fronteiras culturais, ele se
crê como mulher e nessa perspectiva, veste-se como ela deve ser, sem haver
qualquer conotação homossexual.
Pelas inscrições tribais, Clastres (1986) também apresenta uma estrutura de
pesquisa relacionada com as sociedades primitivas indígenas, ao identificar as
diferenças das dimensões simbólicas pelas condições sexuais. Ele dedica um
capítulo para desvendar a propriedade bastante distinta do uso de elementos
culturalmente típicos, em que o homem mantém o arco como sua principal
ferramenta; e a mulher, a cesta. Seus estudos sobre a cultura indígena Guaiaqui
também discute a inversão da lógica nas atribuições de sentido do comportamento
de Krembegi, nome de um dos índios nômades que tensionou os princípios das
categorias de gênero. Diferente dos demais da sua tribo, seu corpo era flácido, seu
cabelo era longo e ele negava a encostar-se nos arcos, símbolo material
distintamente masculino e muito respeitado por eles. Em reforço, preferia carregar a
cesta trançada pelas suas próprias mãos, fato interpretado como má sorte,
119

praticamente uma execração, pois era uma das atividades destinadas


exclusivamente às mulheres locais. Por esse hábito endêmico do tímido índio, seus
pares não podiam contar com ele como provedor de carne, principal alimento do
grupo, ofício de caça para o qual os meninos desde muito cedo, eram preparados.
Representação da virilidade, o canto noturno também fazia parte desse ritual na
caça, mas o índio jamais o fez. Em vista de ele ter contado com o acolhimento de
uma família, a partir dali, houve solicitação de algumas ações de esposas, como a
busca de água, o descascamento de raízes e a fabricação de colares. Esta última
atividade era feita com extrema dedicação, sobrepondo-se inclusive, ao capricho das
mulheres que enfiavam os dentes dos animais abatidos que seus maridos traziam
no cordão. Mas não Krembegi. Pela análise etnográfica do pesquisador, este
escolhia cuidadosamente somente os dentes de macaco, e do acúmulo, selecionava
aqueles que tinham tamanho semelhante. Como fazia todos esses afazeres desde o
seu nascimento, em um certo período de sua vida, não chamava mais atenção da
tribo. Seguia respeitosamente todas as regras locais, mesmo que na ordem invertida
de seu sexo.
Diferente do segundo exemplo, Chachubutawachugi já não teve tanta
aceitação. Foi obrigado a morar sozinho e por isso, realizou mais atividades
femininas como somente cozinhar. Também conhecido como o homem portador de
cesta, tinha um porte grande, possuía longa barba e caçava, apesar de não usar
arco. A pane22 o atacou de repente, deixando-o incapaz de ocupar um dos dois
lugares. Ocorreu que tentou preencher os dois espaços, algo ainda mais inaceitável.
Sempre confuso, carregava a cesta, mas do seu jeito: usava a tira de sustentação
no peito e não na testa, como de costume. O que ele achava pelo caminho era
proveitoso para seu adorno corporal, incluindo resquícios de materiais deixados pelo
homem branco. De qualquer forma, “Esse tabu sobre o contato físico com as
insígnias mais evidentes do sexo oposto permite evitar assim toda transgressão da
ordem sócios sexual que regulamente a vida do grupo”, norteia Clastres (1986, p.
75).
Ainda sob um ponto de vista antropológico sobre as normatizações de
atitudes sexualmente ordenadas, Mead (2014) fornece outras evidências. Cruzando
os materiais de análise originados da vivência com três característicos grupos

22 Termo utilizado para reproduzir uma falta de habilidade de caça e demais atividades resguardadas

ao universo masculino dos Guaiaqui, considerada uma maldição (CLASTRES, 1986).


120

étnicos em Nova Guiné, coleta realizada na década de trinta, utiliza-se dos estudos
da produção do caráter sem consideração do sexo e do papel da cultura nesse
processo. Por ter vivenciado de perto o cotidiano daqueles, ela pôde concluir que
havia temperamentos aprovados para homens e outros para mulheres, assim como
atribuídos a ambos. Foram identificadas diferentes prescrição de caráteres sexuais
nos Arapesh e nos Mundugumor. Uma terceira tribo, os Tchambuli, destoava mais
da estrutura cultural graças a alguns papéis que, quando comparados, eram
invertidos. Todavia, nenhuma conclusão foi creditada a bases biológicas, mas sim, a
segregações feitas pela instrução que se estabelece ainda na fase infantil. Como
unidade de análise, essa pesquisadora percebeu que os mecanismos de educação
podem ser formas de adestramento para acentuar as diferenças temperamentais
bastante arbitrárias, pois não se reconhecem dotes genuinamente individuais.
Noções de masculinidade e feminilidade são antes, tidos como potencialidades
rotuladas pela ordem biológica que dependiam de valores assimilados mediante um
condicionamento cultural, que invariavelmente, cria expectativas sobre as atuações.
Assim como em qualquer cultura, há complexidade no conjunto de regras
que visam garantir o poder e equilíbrio. Comumente, há utilização do sexo como
uma forma de organização, para estabelecer traços de personalidade como um
condicionamento social, esclarecendo na mesma instância, o sentido da natureza
humana como algo extremamente maleável quando interage em um dado ambiente.
Esse tipo de planejamento da ordem social sobre as crenças de comportamento
congênito tem bases na complementaridade e é instituído como padrão que evoca
uma grande pressão social. Mead (2014, p. 290) adverte que essas conformações
interferem no curso de toda a vida do sujeito:

Assim, a existência numa dada sociedade de uma dicotomia de


personalidade determinada pelo sexo, limitada pelo sexo, pune em maior ou
menor grau todo indivíduo que nasce em seu âmbito. Aqueles indivíduos
cujos temperamentos são indubitavelmente anômalos não conseguem
ajustar-se aos padrões aceitos, e pela sua própria presença, pela
anormalidade de suas respostas, confundem aqueles cujos temperamentos
são os esperados para o seu sexo.

Sobre esses traços contraditórios, a autora identificou o que ela chama de


‘inadaptados’, e suas implicações nas relações, os quais na sua maioria, são
agrupados desta forma, orientados por um conforto generalista. Os desajustados
seriam aqueles que não percebem uma vazão congenial para os seus dotes e com
121

isso, não se encaixam aos roteiros que lhe seriam reservados. Disso decorre, pois
qualquer membro que desobedece aos juízos aplicados está violando o outro
também, o sujeito dos julgamentos. Em sociedades que se especializam em
comportamentos baseados no sexo, de forma invariável afloram justamente aqueles
impróprios, que não são desejados, e que condenam esses diferentes a enfrentar
desfavor social nas várias esferas de sua vida. Por outro lado, pouco é
compreendido quanto ao conceito de travestimento em culturas que não cultivem
padrões tão enraizados em papeis sexuais; logo, nesse caso, são oferecidas
escolhas conforme os interesses em jogo.
Um homem Mundugumor pode, por exemplo, exercer atividades que têm a
insistência em constituir uma associação feminina, sem ferir a masculinidade. Mas
outras atividades que possuem diferenças padronizadas podem suscitar o que
alguns grupos consideram inatural, como o já mencionado berdache. Qualquer
indício de um filho com tal comportamento implica embaraço e preocupação,
necessitando de atenção redobrada. Pessoas que, sem a variação no
temperamento, inclinam-se para o desajustamento, confrontam-se nas suas
evidências anatômicas, com as especificações decretadas dicotomicamente. E
sempre, para haver tal desajuste, é necessário apresentar formas de organização
que levam a concluir ser indigna a pura e simples classificação pelos padrões
comuns determinados.
Um outro e último exemplo etnográfico antes da abordagem sobre os
estudos queer, que desafia os moldes normativos e conduz a repensar conceitos
universalisantes são as hijras, assim chamadas os transgêneros na Índia. Almeida
(2015) refere-se às comunidades transexuais como parte das tradições indianas há
mais de quatro mil anos, sempre repletas de misticismo. Acredita-se que estas
podem determinar o destino, prevendo, abençoando ou amaldiçoando. Em algumas
regiões indianas que reverenciam o deus Aravan, aquelas são mais conhecidas
como aravani, havendo inclusive, concursos de beleza aravani e um grande festival
transgênero todos os anos, para celebrar o casamento hindu com o deus Krishna.
No período medieval, elas foram inclusive entendidas como líderes hindus, até a
colonização britânica, quando foi decretada prisão perpétua aos que mantivessem
relações sexuais com elas. A criminalização do sexo considerado para eles contra a
natureza, foi por pouco tempo revogada: de 2009 a 2013. Foi somente em 2014 que
as organizações dos direitos humanos permitiram às transexuais portar documentos
122

oficiais, caracterizando um terceiro sexo. Embora ainda marginalizadas, elas têm


espaço por lei, de cotas nas escolas e nos trabalhos públicos.

Figura 10 – Exemplos de hijras

Fontes: Hijras (2015); Third Gender (2014).

5.2 RELAÇÃO DE PODER

Uma breve localização temporal dos estudos queer mostra que, mesmo em
popularização progressiva, é bastante recente e talvez ainda pouco absorvido de
fato no contexto do cotidiano. Miskolci (2009) esclarece que a sexologia clássica não
dava conta de contemplar a dinâmica dos corpos, dos desejos e das sexualidades
das minorias, ao menos não por meio de um método desconstrutivista. Esse debate
começou a ganhar espaço, sobretudo nos Estados Unidos, em meados da década
123

de 1980, provocando novas formas de pensar sobre as expressões de gênero e todo


o complexo da não normatividade, antes inquestionado. A despatologização da
homossexualidade em 1973, já havia sido um importante passo para esse
movimento, quando foi retirada da lista de enfermidades da Sociedade Psiquiátrica
Americana. Mas foi somente em 1990, na Califórnia, pela voz da conferencista
Teresa de Lauretis, que tal necessidade de problematizar as sexualidades não
reprodutivas foi denominada de teoria queer, percebendo-se uma disposição da
política para o exercício dos modelos de vida dados pela moralidade sexual
reguladora que tanto controla os corpos. No âmbito dessas reflexões escritas, a
publicação científica da edição número 28 dos Cadernos Pagu (2007) foi um marco
importante, pois propunha a primeira compilação nacional exclusiva sobre o tema.
De ordem político-social, essa corrente busca enfrentar os rótulos que
regulam a heterossexualidade compulsória em todos os âmbitos da vida daqueles
que estariam em desacordo com as imposições da unidade social limitada pela
genitália. Tema complexo e com muito ainda a ser feito, as perspectivas queer
criticam as definições identitárias radicais e complexificam o que já está
essencializado pela morfologia. À custa disso, desestabiliza o poder normatizador
fundado nas formas anatômicas de nascimento e sexualidade como um processo
que organiza a prática de vida. Nomes como Butler, Sedgwick e mesmo antes, nas
obras de Foucault e Derrida, já ensaiavam essa resposta ao tão necessitado estudo
que rejeita os pressupostos da divisão de gênero centrado no macho e na fêmea. A
teoria queer abastece com ferramentas conceituais esse universo de pesquisas,
para criticar o binarismo do gênero e do sexo e desafia os modelos naturalizados a
partir de uma perspectiva heterossexual, denunciando essas formas de estrutura
interpretativa canalizada pelos genitais. Essa linha de abordagem sugere a
inexistência de papeis sexuais biologicamente complementares e não
necessariamente uma relação condicionante entre o gênero e o sexo (MISKOLCI,
2014).
Na coletânea Fear of a Queer Planet: queer politics and social theory23,
Warner (1993 – tradução nossa) na época, elucidou que a política queer tinha
implicações em uma vasta gama de instituições e ideologias, mas estava recém
estabelecendo sua agenda. Para tanto, buscou um grupo de estudiosos com o

23 Obra sem tradução.


124

intuito de redigir essa proposta no formato de um livro. No início da década, ainda


era mais nebulosa essa corrente, embora seus estudos estivessem sendo
descolados de uma fundamentação heteronormativa – expressão cunhada pelo
autor em 1991. Demorou muito tempo para que a teoria queer deixasse de ser
negligenciada como uma fonte de pesquisa sociológica e para que fosse
compreendida muito além do que sexualidades marginais, de cunho erótico ou
patológico. Para ele, a questão ainda não tinha sido adequadamente teorizada como
um contexto político e possivelmente por esse motivo, sua compilação literária é até
hoje citada em muitos documentos, ao menos os publicados em inglês.
Na concepção do autor, queer é sinônimo de luta permanentemente e aos
poucos, em um processo de disputa para negociação de espaços, que questiona as
identidades essencializadas. Regulamentações que perpassam a noção de gênero,
as reivindicações dizem respeito às consequências do discurso público sobre
liberdade, identidade, violência, saúde, confiança, consumo e todas as demais
normas profundamente culturais da vida íntima e o seu gerenciamento do corpo.
Suportado por uma base de opressão, a generalização da raça humana é
retratada por um casal heterossexual monogâmico jovem, os quais não apenas são
sexualmente diferentes: eles são a própria diferença sexual. O relacionamento deve
ainda resultar na procriação de indivíduos também heterossexuais, constituindo a
realização plena de um sistema de valores muito mais político do que biológico. Para
o nativo da cultura que o produziu, essa imagem caricatural, quase bíblica, é
imediatamente reconhecível. Em um pressuposto heterossexual, isso testemunha
por assim dizer, uma insistência de que humanidade e heterossexualidade são
sinônimas. Como espaço de resistência, Warner (1993 – tradução nossa) ainda diz
que há importantes tentativas de coletivizar os esforços, inclusive com autodefinição
de gay para queer, preferência que representa a noção de grupo e interesse político
em favor de uma oposição mais profunda aos regimes normalizadores.
A própria designação já desconstrói as estruturas demarcatórias. Assim
como crossdressing, a palavra queer se mantém em inglês, visto que sua tradução
seria no mínimo incompleta. O propósito do nome foi justamente ressignificar uma
expressão de carga pejorativa em um sinônimo de militância e transgressão. O
queer nasce da cultura da opressão e assim, subverte a própria ofensa homofóbica
de maneira criativa; revida o xingamento na forma de munição. Louro (2004)
125

entende que é exatamente na subversão que está o contraponto ao saber


dominante, em que a desobediência possibilita abrir a discussão além dos limites.
A autora acredita que os estudos queer provocam perguntas que
usualmente não são feitas, e por isso prefere enxergá-los como uma disposição
política e existencial de um conjunto de saberes que trata de temas fora do sistema
tradicional. Assim, o subversivo está intencionalmente na própria palavra e
permanece, não somente pela incapacidade linguística de tradução na sua
completude, mas também como uma nova apropriação de um adjetivo pejorativo.
Assim: “Para desnaturalizar as identidades e estabelecer as disputas, uma das
estratégias é transformar e incorporar o insulto homofóbico como elemento
identitário”, acrescenta Bento (2008, p. 53). Ao desarmar, a violência potencialmente
se coloca como um caráter ideológico que baliza o terreno de disputas e as
demarcações identitárias. Não esconder, pelo contrário, explicita a ofensa como
manifesto de reconhecimento.
Por tudo isso é que a versão literal da palavra queer para o português
perderia a plenitude da carga política. A expressão no sentido ‘bizarro’ faz parte das
ofensas. Houve então, uma descontinuidade do termo, na qual o próprio produto da
opressão se transforma em uma estratégia de resistência. Como crítica, a política da
representação está em:

[...] reapropriar-se de um termo cujo uso corrente é da ordem do pejorativo,


em um gesto que recupera a possibilidade de uma autodesignação para
estes sujeitos sociais, ao mesmo tempo em que desarma o discurso
homofóbico e heteronormativo através do desmantelamento da carga
semântica negativa de seus itens lexicais fundamentais (ALÓS, 2010, p.
854-5).

Para facilitar o entendimento da concepção queer, o autor acredita que é


preciso antes desnaturalizar alguns lugares comuns sobre o gênero e o sexo. Há
uma heterossexualidade presumida nas menores evidências de convívio, e por isso,
seria imperativo deslocar certas noções tradicionais da composição do sujeito e sua
elaboração estética.
Para ele, a teoria permite uma ruptura epistemológica de tradicionais noções
do sujeito como um ser único, contrariando uma preconcepção baseada em regimes
heteronormativos do gênero que expressam um conjunto de obrigações derivadas
de um pressuposto igualmente heterossexual. Expressão de um conjunto de
126

interesses, ele compreende a identidade como algo inacabado, uma experimentação


da existência, um efeito do discurso e assim, o corpo como sua instância de
representação. Como tal, as identidades sexuais têm como premissa a
complementaridade, com seus códigos de feminilidade e masculinidade e suas
definições se fazem sempre na relação com o outro, sem levar em conta que a
noção de singularidade se dá pelo processo de atos repetitivos, sem privilegiar a
origem. A corrente teórica queer rompeu com a concepção clássica do sujeito no
pós-estruturalismo, ao problematiza-lo como provisório.
O movimento acadêmico e político tenta justamente desnudar a
compreensão de não haver um processo que deva ser considerado natural. Essa
lógica de alegar a noção de natureza não faz sentido quando se pensa que em nada
há uma originalidade. É necessário descolar o entendimento de que corpo é um
dado naturalmente feminino ou masculino, não havendo destino biológico que define
algum papel. Para tal, deve ser visto como uma produção implicada em um discurso
hegemônico. A concepção do casal é resultado de repetições, da mesma forma que
não existe um corpo destituído de significado, mas sim, há imitações das estruturas.
Desde muito cedo, a preparação dos corpos instala-se em ações proibitivas.
Também para Foucault (2011), a lei precede o sujeito, no sentido de que
suas regulações corporizam o gênero e concebem corpos inteligíveis, subalternos
negados de existência, em que por excelência, o julgamento é subproduto de
normas. A classificação pelo corpo é um princípio universal, mesmo que haja
flexibilidade e que esse conceito seja uma narrativa adaptada conforme regiões e
temporalidade. Em seus estudos, o corpo sempre se coloca como uma narrativa.
Por exemplo, em períodos de censura, quando a sexualidade foi reduzida ao silêncio
e os mecanismos de proibição eram postos na fala, o corpo é exaltado através das
roupas íntimas. Na mesma instância, incita ainda mais o desejo proibido, já que o
dissimula por meio de estruturas metálicas nas crinolinas e espartilhos, os quais são
uma forma de trazer à tona o assunto. Já quando o filósofo estuda a loucura, o corpo
é reprimido, impedido de expressar; é a própria negação. De qualquer forma, é o
poder emitindo suas ordens.
Este pensamento político que supera o enquadramento de ordem sexual
arbitrariamente associado a uma das categorias ganha cada vez mais espaço, visto
que atua em várias frentes. Mesmo que ainda tímido, sua visibilidade é crescente
desde a globalização. Constitui um rico campo de pesquisa, pois trabalha de forma
127

transversal em vários saberes e possibilita colocar em pauta as pressuposições


como as de ordem natural a essa hegemonia no que concerne ao gênero,
sexualidade, desejo, e ainda alarga conceitos para as relações de poder.
Um dos motivos para tal visibilidade foi a formulação não de um indivíduo,
mas de uma ‘multidão de anormais’, como ironiza Preciado (2011). Para combater
as culturas anarquistas, foi necessário que a então minoria se aglomerasse e
canalizasse as forças a fim de concebê-los como uma potência política com
propriedade analítica. A autora mencionada cruza a heterossexualidade com um
regime político que administra a normalização dos corpos e não a vê como um mero
efeito de discurso.
Também ganharam terrenos os isolados, aqueles sujeitos que talvez
timidamente, exercessem pequenos atos em nome dessa crítica dos fenótipos
masculinos e femininos. Um deles foi Katz (2013 – tradução nossa), que em pleno
anos 1990, se recusou a usar camisa e blazer conforme as instruções do fotógrafo e
os apelos dos membros da sua família, durante um registro clássico para eternizar
as gerações. A foto, que circulou pelo mundo a contragosto de quem a compunha,
mostra uma família tradicional na qual somente ele está com uma camiseta
vermelha com o dizer queer na frente, estampado em preto. Pela perspectiva
histórica, ele garante que valeu a pena, pois seu manifesto foi uma afirmação literal.
Um ativismo silencioso e individual, ainda assim, muito poderoso. Se na foto ele
estivesse de camisa como todos os demais homens, seguramente ela passaria
despercebida como apenas mais uma. Mas uma simples camiseta de uma só cor e
com uma pequena palavra fez com que ela fosse parte do Museu do Fashion
Institute of Technology – FIT, em New York. Esse é um exemplo de gesto que
articula uma política diferente,

E por política queer, quero dizer um modelo especifico anti-identidade da


dissidência sexual, que não está ligado na declaração de um indivíduo e
‘autêntico’ como lésbica, ou gay, ou bi, ou mesmo trans, mas sim, aquele
que enxergue o queer como uma ampla recusa da sexualidade como um útil
ou socialmente necessário sistema de classificação24 (KATZ, 2013, p. 223 –
tradução nossa).

24 Texto original: “And for queer politics, I mean na anti-identity specific model of sexual dissidence,

which is not connected in the declaration of na individual na ‘authentic’ as lesbian or gay, or bi, or
trans, but the one who sees the queer as a broad rejection os sexuality as a useful or socially
necessary classification system”.
128

Mas em seu discurso, por vezes, ele assume o desânimo nessas ações, já
que, na sua percepção, não importa quantas vezes na história já ocorreram
tentativas de visibilidades, ainda é uma identidade minoria no sentido mais amplo de
conotação sociológica, anexada a uma corrente normativa e, portanto, sempre
dependendo da bondade de estranhos. A política queer é feita para desafiar a
primazia do próprio sistema de classificação, não uma identidade autêntica
incrustada em seus termos básicos, mas que possua uma afinidade profunda com
todos aqueles de qualquer orientação sexual, que se recusam a ligar desejo com
gênero. E mais, para o autor, a sexualidade deva ser vista como não mais
importante do que qualquer outra orientação. Esta é uma declaração, mesmo que
complexa, que poderia ser entendida como algo a ser banalizado, uma realidade do
cotidiano e sem importância, sustentado na ideologia das diferenças.
A teoria queer confronta-se diretamente com os regimes de poder, ao
descaracterizar as normas hegemônicas e ao provocar o convívio de distinção
baseado na vigilância. Como um importante instrumento de transformação, o que
muito se percebe é a falta de um acesso físico igualitário, em espaços
diferentemente atribuídos, conforme se é homem ou mulher. Seria esta uma
discriminação justificada por traços já dados. Decorrente das diferenças fisiológicas,
as distribuições desiguais também são postas como inatas, muitas vezes, conforme
o local de atuação.
Aqueles que desapontam a heterossexualidade como um desejo natural são
postos como agentes sociais que não encontram nas categorias dadas como válidas
no estatuto social, suas referências identitárias, sendo desse modo, condenados a
uma indisponibilidade pelo olhar conservador. Por isso, “A luta principal é pela
destruição do sistema social da heterossexualidade, porque ‘sexo’ é a categoria
política naturalizada que funda a sociedade como heterossexual” (HARAWAY, 2004,
p. 225). Lésbicas, homens gays, transgêneros, intersexuais, todas essas e outras
formulações estariam fora da condição de existência, ausência de posição na
condição de uma definição de sujeito. Sendo o travestimento, a ideia mais
transgressora para questionar as tradições dos significados atribuídos de gênero e
desestabilizar as demarcações pelos artifícios visuais.
Ao historicizar as ambiguidades das relações entre os homens e as
mulheres, a autora resume que por excelência, o gênero é um conceito contestador
das diferenças sexuais nas variadas arenas de luta. Isso inclui algumas
129

propriedades sexuais regulatórias que insistem em que, por exemplo, a maternidade


é natural e a paternidade, cultural. Um dos problemas para ela está em não se levar
em consideração nas análises, os resíduos histórico-epistemológicos da lógica de
diferenciação sobre o sexo e gênero.
Avançando a discussão pela dimensão política do corpo, percebe-se que
termos como ‘magreza curvilínea’ para as meninas e ‘robustez’ para os meninos
demonstram uma tendência universalista para que a subordinação aja como um
esvaziamento de poder do próprio modo de ser, com base nos modos de fazer
gênero. Baseado em uma relação de poder, dificilmente é desfeito o ditame de
mulher objeto e frágil que é dependente e desejada por um homem viril. Nessa
lógica baseada no patriarcado, é necessário que os corpos assumam uma série de
critérios que assegurem as expressões de gênero. Parte-se do pressuposto de que
o substrato fisiológico corresponde ao comportamento para a elaboração de um dos
somente dois gêneros em um roteiro elaborado mediante um processo longo de
socialização.
Com o propósito de fechar esta subseção e iniciar a seguinte sobre a
negação do sujeito, citam-se alguns nomes no meio da body art que intrigam as
estruturas normativas de gênero. Um deles é Fakir Musafar, que detém o título de
popularizar os movimentos das modificações corporais, trazendo o simbolismo de
culturas primitivas ao espaço urbano. Ele usa seu próprio corpo para aplicar as mais
variadas técnicas, intrigando as convenções de gênero por meio dos adereços de
conotação feminina. Já Mr. Pearl, como é conhecido, é criador de espartilhos
contemporâneos e comercializa-os com menos apelo de experimentação cultural e
maior busca de encantamento e elitização. Garante que não os usa pelo sentido de
aproximação de um papel feminino, mas pelo controle corporal já que para ele, as
peças de vestuário deveriam ser mais disciplinadoras e deveriam deixar os corpos
menos vulneráveis. Como complemento, não os tira nem para dormir, assim como
relata detestar andar de pés descalços; prefere estar sempre com seus sapatos de
couro (STEELE, 1997).

Figura 11 – Entusiastas do espartilho masculino: Fakir Musafar e Mr. Pearl


130

Fontes: Fakir (2013); Corset (2013).

5.3 IDENTIDADES PERIFÉRICAS E DIREITOS

Conforme exposto, a sociedade tem uma comodidade, ao mesmo tempo que


impositiva, de criar e seguir imperativos de categorização para acomodar as
pessoas em algo predefinido. Com esse carimbo na mão, trata as pessoas de
acordo com a ordem estabelecida de sua condenação. O contrassenso chega a um
ponto em que, para se ter direitos, é preciso ser antes, reconhecido, mesmo que
seja pela manutenção da diferença, do estranho, do inaceitável. Não resta dúvida de
que este é um terreno bastante delicado, pois reivindicar visibilidade onde não há
uma identidade pré-agendada como é a heterossexualidade, implica instaurar a
outra forma de violência simbólica. Nesse efeito do destino, todos aqueles que
131

contrariam o determinismo biológico são limitados ao grupo dos ‘demais’, em


oposição aos ‘normais’.
Para pôr em pauta a questão de invisibilidade, é prudente trazer notas sobre
os direitos nas experiências trans. Nesse âmbito, Bento (2013) sintetiza que os que
vivem nesse universo ainda são atravessados por um processo patologizante, que
decide pela própria pessoa se ela pode ou não mudar seu corpo, por exemplo. E
ainda, determina se ela tem ou não acesso a espaços sociais. Quando negado,
ocorre a própria morte do sujeito, pois quando falta amparo legal, é como se dizer
que ela não existe. O respeito pela autodeterminação de gênero na criação de um
nome social seria uma forma de produzir cidadania, mesmo que em partes. Diante
disso, a professora citada provoca discussão sobre quem de fato tem direito aos
direitos humanos, já que no cotidiano, as ações mostram outras realidades. A mãe
que expulsa o filho quando ele assume sua prática trans, o empregador que recusa
contratá-la, o namorado que a esconde para manter seu status de marido
heterossexual, até chegar ao assassino. Guardadas as devidas proporções, tudo
são variantes resultantes de percepção de anomalia e vergonha, em que todos são
agentes. Aquela pessoa que se diz não preconceituosa e para tanto, usa o receio da
reação dos outros, inclui-se nesse ciclo de reprodução que insiste em demarcar a
diferença sexual pelo binarismo. Essas interpelações são veladamente autorizadas,
e, no limite, demostram concordar com o fato de não haver um reconhecimento de
humanidade em pessoas com identidades não convencionais.
Há mudanças, embora pequenas, em diversas áreas de conhecimento,
como a ocorrida em novembro de 2013, graças a uma decisão judicial, quando o
Ministério da Saúde pelo âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS, publicou a
Portaria n.° 2.803 que orienta os profissionais da saúde a aprimorar o serviço aos
usuários transexuais e travestis do sistema, acolhendo, integrando e humanizando a
atenção no atendimento. Este decreto, intitulado Processo Transexualizador,
determina, dentre várias exigências, desde a garantia da cirurgia de
transgenitalização e readequação sexual, até o atendimento pelo nome social
desses pacientes (DIARIO OFICIAL DA UNIÃO, 2013).
Na esfera da designação, Benedetti (2005) defende a gramática no feminino
não somente para respeitar o termo êmico, ou seja, as identificações e
apresentações internas próprias, mas, sobretudo, para delinear um ato político.
Aquele que se engaja nessa prática social aparentemente simplória, está
132

contribuindo para afirmar a identidade de gênero tão reivindicada, em que para isso,
submetem-se a transformar seu corpo e a enfrentar cotidianamente desafios.
Quando essa visibilidade não acontece, os conflitos – isso inclui os internos
também – são inevitáveis. Para que os transgêneros consigam enxergar-se na
esfera da cidadania, eles podem querer acabar com o problema na sua origem,
literalmente. Para serem reconhecidos como cidadãos de direitos, aprendem que
devem se enquadrar como alguém legítimo, apresentando-se então ‘como uma
mulher deve ser’. Essas pessoas consideradas com gêneros inteligíveis criam uma
coletividade e trazem para a cena o reconhecimento de humanidade, levando em
conta suposições de temperamento e aparência. Ou próteses identitárias conforme o
autor chama.
No contexto desta pesquisa, o trabalho de campo revelou questões sobre
situações embaraçosas. Não só ocorrem os preconceitos esporádicos, os olhares
agressivos ou os sussurros entre os observadores, mas também ocorrem momentos
delicados com a justiça inclusive, já que a aparência e o nome social não condizem
com os documentos oficiais. Em um dos encontros para as entrevistas, uma
colaboradora explicou que já foi barrada algumas vezes em aeroportos, embora
geralmente seja liberada de forma respeitosa pela Polícia Federal quando eles se
dão conta de que não existe algo ilícito. Ela alega, pela lógica, que, assim como
praticamente todas as mulheres, ela usa artifícios para se embelezar e que, por isso,
dificilmente tem o mesmo rosto do que em alguma foto 3x4cm. Trata-se meramente
de uma proporcionalidade, acredita (DIÁRIO DE CAMPO, 13/01/2014).
Pela interpretação dicotômica de que há somente duas possibilidades opostas
e complementares de disposições corporais, logo, o órgão definidor para a
constatação de uma mulher tem na sua função, a heterossexualidade e a
reprodução. E ainda, conduz a um imperativo de comportamento específico. Dessa
radicalidade de concepção, muitos sujeitos que não se encaixam nesta dinâmica
que genitaliza as sexualidades, estarão sempre na sua incompletude,
impossibilitando a própria existência. A noção simplista da inteligibilidade do gênero
no corpo não permite espaço para espontaneidades, uma vez que já está
profundamente circunscrita a convenções históricas. Poucos ousam publicamente,
ultrapassar esses delimitadores, e quando os confrontam, são deslocados para um
terreno subjetivo capaz de incitar a intolerância e medicalização. Fixa-se um ato
cruel porque o sujeito vai problematizar em si e buscar explicações como uma falta
133

ou um erro que é interno. Tais sujeitos, assim, levam a acreditar em uma visão
depreciativa de si próprios. A inferioridade é imposta para ser adotada a cada vez
que eles se olham no espelho. Invariavelmente, há muita dor nesse processo para
aqueles corpos não categorizáveis que vivenciam de forma contraditória ao seu
gênero dado.
Diante disso, a demanda por uma cirurgia reparadora é muito mais voltada
para a seguridade de humanidade do que para algum prazer sexual. Ensinadas que,
se o problema está na não correspondência entre o sexo atribuído ao nascimento, o
desejo e a identidade de gênero, então o melhor a fazer é adequar a sua genitália e
postura corporal a algo já pré-existente. Ali, portanto, poderia estar o
reconhecimento, muito em correspondência com a autoaceitação. Esse circuito é um
verdadeiro quadro de angústia que origina um interesse pela transgenitalização em
nome de uma norma de gênero, a percepção de uma anomalia que precisa ser
corrigida. Sem dúvida, a dimensão do desejo pode interferir na tomada de decisão
delas, mas a cirurgia demanda algo muito mais profundo, pois toda vez que se fala
em se aceitar, a visão do outro é fundante nesse processo aflito de ajuste social. Em
concordância, na visão de Prost e Vincent (1992), a transexual está muito mais em
busca de um sentido de pertença do que de uma situação reversível, uma correção.
Pelo que vai ser por esses autores chamado de princípio da indisponibilidade,
dificilmente há um discernimento a ponto de conseguirem enxergar isso.
Fica claro então, que a insatisfação da aparência pessoal vem depois de um
padrão institucionalizado, exigindo comparações a ponto de conceber a opção de
um ‘corpo errado’. A bem dizer, quando é recorrido a uma simplificação, a
explicação de uma pessoa transexual é posta como alguém nascida desta forma,
inclusive nas interações das entrevistas informais, foi notável essa expressão, com
base em modelos normalizantes. Entretanto é uma resposta delicada que força a
pensar que existe então um ‘corpo correto’. Se for considerada uma ação corretiva,
onde está o erro? E mais, quem o impôs? Para haver a negação sobre si ou sobre
os outros, é necessário seguir por critérios de normalidade. Muito da rejeição desse
trânsito identitário pode ser o resultado de uma derivação médica sobre o imperativo
de se precisar corrigir clinicamente. Nestes casos, há uma busca por se afirmar
como mulher, sendo esse sentimento uma via de mão única, pois elas não ficam
transitando nessa vontade por conta de ser algo bastante claro na sua identidade de
gênero.
134

Sugere-se assim, que a genitalização é uma das formas mais arbitrárias de


juízo. Ao exigir condutas baseadas em pressupostos sobre aspectos da existência
do sujeito, há uma reprodução dissimulada do sistema binário, que orienta o lugar do
corpo a partir das estruturas biológicas. Com base em um princípio de divisão que
estabelece que haja somente dois gêneros em correspondência, há conjuntos de
atributos pertencentes somente a uma ordem de sujeitos e que possuem o poder de
revelar o masculino do feminino, por exemplo. O ‘ser mulher’ é muito mais do que
nascer com uma vagina, embora seja o primeiro e principal veredito. Ainda no
ventre, o ultrassom institui um corpo no mundo, com subjetividades na dimensão de
gênero que serão permanentemente constituintes pelas expectativas biológicas de
sua espécie.
Sempre haverá corpos inadequados porque sempre haverá padrões de
normalidade embasados em imperativos midiáticos, que desde a infância, percorrem
todos os lados. Notadamente, aqueles são sufocados por uma vigilância sobre seus
limites, e postos os seus lugares desde o nascimento, ou mesmo antes, pois são
originados em um discurso oprimido. A ritualização inicia ainda na barriga da mãe,
quando o momento mais aguardado da gravidez é o de saber o sexo da criança. A
partir dessa revelação, o corpo de um humano que não existe ainda na esfera
cotidiana começa a ter uma forma que vai surtir expectativas dos principais
indicadores sobre sua vida, tais como a escolha profissional e os relacionamentos
pessoais. Mas também existem critérios físicos fundados na atribuição biológica,
restringindo qualquer transgressão identitária. Bento (2008, p. 35-6) segue inquieta
com isso:

Como afirmar que existe um referente natural, original para se vivenciar o


gênero, se ao nascermos já encontramos as estruturas funcionando e
determinados o certo e o errado, o normal e o patológico? O original já
nasce ‘contaminado’ pela cultura. Antes de nascer, o corpo já está inscrito
em um campo discursivo.

Nesse balizador, o diagnóstico médico é inquestionável, quando condiciona


a genitália à produção de um corpo. Isto atesta uma forma de vivência humana por
meio de uma interpretação redutora e confirma a visão universalista segundo a qual
a elaboração de gênero está presumida na correspondência entre o corpo e o
desejo estabelecido pelo seu oposto, ordenando corpos e prazeres.
135

Para garantir o estatuto das diferenças, as estruturas de dominação


começam desde muito cedo, com específicos protocolos a serem mantidos
permanentemente. Um simples uso de esmalte em mãos destituídas de uma
autorização de ordem sexual já mostra a fragilidade dessas constituições. Em
estratégias de observação e manutenção, a sociedade produz e reproduz
estereótipos, consoantes os quais a violência do controle está enraizada em muitos
níveis e na maioria das vezes, invisível, embora mandatório. Foucault (2011)
debruça seus estudos a procurar explicar nas proximidades entre sexualidade,
conhecimento e poder, a possibilidade de influenciar a organização de uma
sociedade que necessita da ordenação marcada pela divisão heterossexual.
As concepções tradicionais não apenas são coercitivas, negando ou
coibindo, como também induzem a fabricação de um sujeito obediente. E nesse
corpo generificado, é considerada uma afronta qualquer sexualidade fora da norma.
Ele se constrói tanto por mecanismos de censuras quanto na produção. Campo
fértil, o conceito de biopoder proposto pelo filósofo atesta o controle sobre os corpos
mediante certas estratégicas de disposições ancoradas em regulamentações sobre
um modo de ser. Produto de uma dominação a partir de uma administração
calculista, o corpo e suas relações sempre foram alvos de regimes de poder.
Nessa instância, o debate torna-se um grande potencial político, quando põe
em pauta abordagens delicadamente enraizadas na lógica existencial de vida, como
o binarismo macho e fêmea e a sexualidade exercida pelo seu respectivo
complementar. Além disso, a noção de que não somente o gênero, mas o sexo
também é resultado do social, já que esta corrente teórica visa analisar a
sexualidade como uma regulação social de poder.
Em sua obra ‘História da Sexualidade – A vontade de saber’, Foucault
(2011) debate algumas das que ele considera as principais noções sobre a
sexualidade no decorrer de um vasto levantamento histórico. Logo no início de seus
escritos, é sustentado que, para compreender a sexualidade de uma sociedade, é
imprescindível basear-se no discurso dado conforme o momento histórico. Suas
ponderações concentram-se prioritariamente sobre como a sexualidade era posta
para os cidadãos. Inicialmente, como uma recorrência sem disfarces, o século XVII
trazia uma tolerância quase que obscena, se for observada através de um olhar
contemporâneo. Entretanto, em meados do advento do capitalismo, inicia-se uma
certa repressão, e se percebe na realidade, uma obrigação não de esconder, mas
136

de confessar o sexo nos mais variados âmbitos, e serão as instituições que farão o
papel tanto de ouvinte quanto de controladora. A ascensão da família burguesa
vitoriana confisca esta pauta para dentro de casa e a reduz à função de reprodução.
Essa fase de repressão sexual, a qual o filósofo irá denunciar como prioritariamente
hipócrita, faz silenciá-lo por muito tempo. Foi somente dois séculos depois que o
assunto sexo se reverteu a um conteúdo censurado, embora existente. Atitude
potencializada em ambiente na presença de criança – diferente dos períodos
anteriores. O autor acredita que a negação possui uma função local de ser
moralmente aceito na tentativa de regular, jamais proibir. Por vezes, questiona a
ironia dessa coibição, quando lembra que a liberdade sexual chega a um ponto em
que possui um valor de mercado. Assim, ironicamente, passa como um momento de
inversão, no qual essa repressão pode ser lida como transgressora.
Facilmente, cria-se a necessidade de uma produção discursiva, na qual o
sexo começa a ter uma conotação científica, chegando até mesmo a interagir com
as áreas da saúde e da religião, por exemplo – ou forçadamente sendo assim
compreendida, em uma tentativa de criar um imperativo nato dos cidadãos para a
confissão. São instruções quase de uma estratégia de vigilância, já que quando há o
ato de se confessar, origina-se uma relação de poder, ou seja, a exposição de quem
declara e a autoridade a quem escuta. Entretanto, há um poder não imposto e
opressivo, muito mais relacionado ao processo de desejo, que inclusive é
normatizado dessa forma. Internaliza-se no sentido de não ser uma libertação, mas
uma estratégia de controle. Logo, a propagação de discurso sobre o assunto é dada
pela manifestação dos poderes que visava controlar a prática sexual: prazer de falar
e de ouvir sobre, originada na confissão na forma de consultas médicas,
psicanálises, biografias e afins. Assim, o discurso então científico começa a
ocasionar algumas justificativas para saber das verdades, baseada na produção de
observações e na formação de uma espécie de sentença.
Até hoje permanece esse resquício de uma certa desordem da lei quando se
fala sobre esse universo, aparentando uma esfera transgressora pelo simples ato de
trazê-la a tona: “Há dezenas de anos que nós só falamos de sexo fazendo pose:
consciência de desafiar a ordem estabelecida [...]” diz Foucalt (2011, p. 13) sobre o
regime de opressão e a solenidade por trás da evocação.
Em concordância, na biografia de Alice, ela explica que só depois de muitos
anos se aceitou; isso aconteceu quando enfim entendeu que primeiro era necessário
137

despir-se dos conceitos que ela mesma tinha sobre transgeneridade. Em especial
porque não compreendia o que ocorria, pois não era gay, já que permanecia
desejando as mulheres. Mas também queria ser uma, embora soubesse que jamais
o seria. Na sua visão, de início todas sentem muito medo do que está acontecendo,
já que há um treino social bastante enraizado a negar isso. Foi depois, com a idade,
que ela entendeu que tinha o melhor dos dois mundos e enfim não se deixou mais
governar pelas regras do machismo (NOVIC, 2005 – tradução nossa).
O chamado heteroterrorismo é cunhado justamente na tentativa de explicar
esses pequenos e constantes procedimentos punitivos da sociedade como resposta
a um ato de alguém quando não condiz com as expectativas, a começar pela
criança. Coibir de imediato um menino que se maquia porque lhe causou
curiosidade infantil em experimentar assim que viu sua colega fazer, é uma forma de
garantir a invisibilidade de uma identidade conflitante com as normas e inibir a
mobilidade de trânsitos de gênero. Há um controle das performances para proteger
a estabilidade da crença de que o corpo supostamente precisa refletir o sexo
designado. Ao patologizar a experiência, inferioriza a pessoa, que passa a não mais
se corresponder na condição humana. Ou que sofre a completa exclusão social
como medida punitiva, por desobedecer às lógicas instituídas para reforçar as
fronteiras e assim não contaminar mais gente. Pela interpretação de Foucault
(2001), o discurso religioso de ontem permanece nas entranhas de hoje, porém
mediante o discurso médico da ressignificância do anormal. Ele entende que um
corpo é investido de significado somente no discurso. Ou seja, não é sexuado e
dotado de sentido, sem antes haver uma determinação em um discurso sobre a
ideia de um sexo essencial. O autor também percebe os prazeres não redutíveis às
especificações pretendidas pelo sexo, mas interpretáveis como signo; nesse sentido,
o sexo seria o efeito, e não a origem.
Por uma vontade de esclarecimento teórico, vale colocar que por
heteronormatividade, seguindo a descrição de Bento (2008, p. 51), define-se:

[...] a capacidade da heterossexualidade apresentar-se como norma, a lei


que regula e determina a impossibilidade de vida fora dos seus marcos. É
um lugar que designa a base de inteligibilidade cultural através da qual se
naturaliza corpos/gêneros/desejos e definirá o modelo hegemônico de
inteligibilidade de gênero, no qual supõe que para o corpo ter coerência e
sentido deve haver um sexo estável expresso mediante o gênero estável
(masculino expressa homem, feminino expressa mulher).
138

Importante ressaltar que há maneiras mediante as quais a opressão se


apresenta. São hostilizações que fazem parte de um processo de contestação para
deixar inconfundível que o não nomeado não deve fazer parte do espaço. É um
corpo desobediente que não segue propriamente as imposições estabelecidas das
lógicas identitárias, e por isso, é punido por certas estratégias de socialização.
Indo além, o que é negado na falta de reconhecimento de pessoas que
confrontam com o corpo estabelecido e arriscam a mobilidade de gênero é a
imagem que se constrói. Não é o sujeito, mas a presentificação de uma
possibilidade de trânsito que deve ser eliminada em nome da manutenção da
conformidade. É o que aconteceu com Andy Warhol, ícone do movimento da pop art,
quando perdeu seu amigo próximo, Gregory Battcock, esfaqueado 102 vezes. Uma
facada é o suficiente para matar alguém; todas as outras 101 significam a pura
negação à imagem transgressora que este representava, teria dito o artista. Douglas
(2010) explica que o desprezível contamina e por isso, não basta ignorá-lo. Melhor
então, que seja eliminado de vez. Para o ser humano, na condição de um animal
ritual, a impureza é desordem, é algo que está fora de seu lugar; logo, distanciá-la é
um gesto de restabelecer a ordem e unidade do código moral. Até porque é
importante sempre ter em mente que os agentes de poluição nunca têm razão.
Ainda sobre o artista pop, vale lembrar que ele ficou conhecido por transitar
livremente entre a classe alta e a cultura de massa por intermédio de manifestações
de arte. Mas o que foi pouco explorado é que essa vontade de questionar a
dualidade ocorreu também no âmbito dos gêneros. Em 1981, por exemplo, em
conjunto com o amigo e fotógrafo Christopher Makos, resolveram fazer uma sessão
de fotos sobre essa quebra de barreiras que os atormentavam nas suas vidas. A
séria nomeada de ‘Imagem Alterada’, foi revitalizada e esteve em São Paulo no
Museu de Arte Moderna – MAM (2013).
139

Figura 12 – Lady Warhol

Fonte: Folha de São Paulo (2013).

Em associação com esta abordagem, desde um ponto de vista da


autenticidade e opressão dada pela invisibilidade, vale trazer as perspectivas de
Taylor (1998) sobre a teoria de reconhecimento e o reforço sobre o caráter relacional
da identidade. Os seus debates filosóficos são atravessados pela antropologia
porque propõem pensar os desafios por meio de uma visão multicultural. Suas
ponderações sobre ética consideram as diferenças culturais, ainda que dessas
singularidades, seja possível pensar em uma ética pelo contexto.
Para o autor, a necessidade de reconhecimento se realiza em decorrência
de uma afinidade com a lógica da identidade, que também está intimamente
relacionada com a luta das diferenças. Sem elas, são inatingíveis quaisquer ações
políticas concretas na esfera pública, ou seja, o sujeito precisa existir como cidadão
140

antes disso. E ainda, essa negligência interfere também na identidade íntima, pela
falta de completude e autenticidade na construção do self, prejudicando a pessoa
que não se sente representada, já que o processo de interação e sua negociação
permanente são determinantes na construção da identidade. Em grande medida,
isso significa que a dinâmica do reconhecimento é uma necessidade humana, pois é
só com isso que há a completa existência moral de um cidadão digno de direitos. Os
grupos subalternos, conforme expressão do próprio autor, devem ser
compreendidos na sua diferença e por extensão, realizados consigo próprios.
Quando os minoritários são verdadeiros com eles mesmos, então é possível falar de
dignidade.
Paradoxal torna-se pensar que, ao passo que a fundação do sujeito se
desenvolve pelo contexto dialógico com os demais, ao mesmo tempo, uma
sociedade com valores pluralista não enxerga o caráter singular de cada indivíduo.
Na esfera pública, a política de diferença sugere um reconhecimento de cada
identidade, não abafada por uma concepção universalizante que está preocupado
em atender a maioria. É justamente a singularidade que está sendo contida pela
dominante que não permite espaço para um caráter individual. Sem isso, os direitos
podem se transformar em metas coletivas que não atendem às particularidades. É
só quando os objetivos coletivos são capazes de respeitar a diversidade, que se
tornam liberais. O pluralismo identitário atinge objetivos de naturezas variadas, visto
que prioriza uma política totalitária. Assim, retirando a condição de indivíduo com
todas as suas referências que o faz único e na sua maioria, são inerentes a ele, visto
pela soberania da massificação, surge a noção de cidadania. É justamente nesse
cenário que nasce a política de reconhecimento, tendo como pauta o resgate
heterogeneidade, respeitando a pluralidade dos cidadãos.
Muito além de somente tolerar, os estudos do filósofo que, por
consequência, envolvem a expressão da ética, propõem apresentar as diferenças e
orientar as condutas com bases no respeito desses valores subjacentes. Importante
destacar que esse desafio mostra-se cada vez mais urgente, haja vista a acelerada
globalização e as conexões online que facilitam o trânsito multicultural nos dias de
hoje.
Serve de critério o fato de que a identidade é temporária, pois dada em
correspondência com o outro, garante a sobrevivência da dinâmica interna de
movimentos. A atribuição da identidade de gênero e seus demarcadores configuram
141

as diferenças por meio do processo de socialização, conforme o qual a conduta vai


se estabelecer. É algo incorporado nas relações, no seio das quais o sujeito
apropria-se dos aspectos criados no contexto social. Facchini (2005, p. 29) ampara-
se em outros autores para oferecer um ponto de convergência sobre identidade, ao
defender que esta será sempre definida a partir da relação:

[...] ou seja, pelos limites que um determinado agrupamento humano


constrói, num determinado contexto, para se diferenciar de outro(s)
agrupamento(s) humano(s), e não por uma característica essencial que o
grupo se auto atribui independentemente de qualquer situação.

É mais prudente então, segundo esta perspectiva de sentido, situá-la como


um processo construído pelo contexto que se estabelece e por isso, de caráter
relacional e não fixo, muito menos completa. Essa visão formata a possibilidade de
identidade coletiva que a autora percorre em toda sua obra, e cria com isso, um
sujeito de discurso daqueles grupos que escapam do padrão de legibilidade. Uma
das características da teoria queer é justamente definir a identidade como um efeito
de discurso, como algo que se reitera permanentemente.
Uma das premissas do quadro teórico que dá conta da discussão sobre o processo
da construção da identidade é a respeito da noção de pertencimento que envolve
reinvindicações, tanto por quem faz parte de um determinado grupo identitário,
quanto por aqueles que não o fazem. Diante disso, há lutas para afirmar as
diferenças estabelecidas por marcações simbólicas, que são relativas a outras
identidades; são o que dão sentido para as práticas e que definirá, por exemplo,
quem é o incluído e quem é o excluído. A identidade é marcada pela diferença, e os
processos de exclusão são assim, colocados em contraste, pois estabelecem
oposições. Para existir, esta depende de algo externo para fornecer condições de
existência a partir do lugar do outro. Nessa relação de poder pela perspectiva
identitária, assim mesmo, pode operar contradição no interior desses grupos, como
novas demandas entre os níveis individual e coletivo, que precisam ser
permanentemente negociadas. As pessoas se identificam e assumem as posições
de identidade, sendo o corpo, um dos locais que estabelece as fronteiras de
definições sobre quem se é. Amparado esse pensamento em Hall (2014, p. 106), é
possível dizer que “a abordagem discursiva vê a identificação como uma construção,
142

como um processo nunca completo”, na qual a identificação é condicional e jamais


estará completamente determinada.
Importante lembrar que, em tese, pelos direitos humanos, todos as
identidades são iguais, embora seja evidente a distinção de tratamento ao público
LGBTTT. Isso significa dizer que eles precisam primeiro ser reconhecidos como
cidadãos, pois “Ninguém pode ser discriminado ou deixar de usufruir algum direito
em virtude de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero”, contesta
Rodrigues (2011, p. 27). Atualmente, a maioria é destituída de direitos, parecem ter
uma existência que não conta. Mesmo que tenha avançado a justiça de tal situação,
o autor garante que no Brasil, o legislativo é bastante enfraquecido no combate e na
regulamentação da homofobia de toda a ordem, mesmo que os fatos originados de
preconceitos sejam alarmantes. Tratar uma pessoa transgênera como cidadã com
direitos ainda é bastante recente na discussão pública da nossa história.
Muito se fala sobre a homofobia no país e esta é um fato concreto,
entretanto Ramires (2011) problematiza que antes de uma conduta homofóbica, a
sociedade brasileira possui um posicionamento heteronormativo, que traz
concepções de ordem binária e complementar, segundo o qual há mecanismos, por
vezes sutis, que determinam, por exemplo, quais elementos devem ser masculinos e
quais atributos são femininos. Podem ser normas bem claras e enraizadas em
concepções que ele vai chamar de biologizantes, ou seja, suposições binárias do
que separa o macho e a fêmea baseados nas constituições fisiológicas. Até mesmo
muitos atos ofensivos podem ser profundamente relativizados devido a um discurso
tido como correto na instância política, que abafa a vontade de externar um
preconceito, o que provocaria um número ainda mais alarmante desse tipo de fobia
social. E mesmo não levando em consideração os registros não oficiais e posturas
discriminatórias mais veladas, como o simples fato de ignorar a escolha da
autodeterminação pelo uso do artigo feminino na conjugação na língua portuguesa,
Mendes (2011) recorre a um dado alarmante: o Brasil é líder em assassinatos com
justificativa de algum tipo de intolerância sobre identidades de gênero ou orientação
sexual.
Essas análises de dados aprofundadas por cada autor, estão em uma só
obra organizada por Venturi e Bokany (2011), feito pela Fundação Perseu Abramo e
que contou com o apoio da fundação alemã Rosa Luxemburgo Stiftung e teve como
intuito maior, compreender o fenômeno discriminatório nacional. Uma das
143

constatações é que a população geral tem dificuldade em distinguir categorias


identitárias não convencionais; acaba por criar uma distinção arbitrária, o que
estimula um entendimento generalista que enxerga somente dois enquadramentos:
os heterossexuais, ou seja, aqueles que seguem suas disposições corporais
enraizadas nos órgãos sexuais, e o restante, desviantes morais. Digno de nota, o
estudo aponta para a rejeição espontânea, ou seja, perguntas que não apresentam
opções de respostas, que mostram claramente que a população brasileira não
distingue muito bem as diferentes identidades de gênero. Conforme o gráfico
disponível neste trabalho (ANEXO A), percebe-se que os ‘gays’, ‘lésbicas’, ‘travestis’,
‘transexuais’ e ‘bissexuais’ estão entre aquelas pessoas que os outros menos
gostam de encontrar. Pela falta de informação, provoca-se um sentimento de
precisar encaixilhar-se em alguma classificação já estabelecida, que seja
moralmente desviante, incitando sentimentos de antipatia, repulsa e ódio, em
especial pelos homens.
Desviantes são todos aqueles que se sentem ou são colocados para fora
dos moldes. São ameaçadores, fugitivos, porque estão constituídos fora do sistema
de controle e rompem com os propósitos culturais. Sua orientação de conduta
representa um risco ao estabelecimento das normas, pois desta violação, instabiliza
as expectativas de uma sociedade. Ou ainda, incomoda pela resistência a uma
suposta subordinação essencializada, que é fundamentada por valores autoritários.
Este grupo dos ‘anormais’, gigantesco em sua concepção, seria integrado pelas
pessoas com algum comportamento, raça, aparência, crença, enfim, que não
atingem a expectativa padrão, pois são pressuposto de rotulação socialmente
impraticável que contemplaria em um efeito marginal.
De ordem similar, Goffman (2012) define o estigmado como um indivíduo
que não está habilitado a uma plena aceitação social por algum motivo. Como
estrutura estigmatizante, a travestilidade é posta como uma delas, pois além da
condição sexual que por si só já é um tabu, usa recursos visuais e corporais, não
sendo possível disfarçar sua diferença quando ‘montada’. A própria sociedade
facilmente estabelece quais serão os atributos a serem considerados para
categorizar as pessoas como aceitas e comuns para uma vida dentro dos padrões
naturais. Assim que apresentado alguém diferente, há uma prévia atribuição para
classificar qual é a sua identidade social. O estranho, assim, exige muito mais na
difícil tarefa de ser ocupado nas expectativas normativas que, a priori, são
144

concepções claras e rigorosas em cada relação social. Ele faz pensar sobre a
construção de exigências que cada um inventa para explicar a inferioridade de outro:

Caracteristicamente, ignoramos que fizemos tais exigências ou o que elas


significam até que surge uma questão efetiva. Essas exigências são
preenchidas? É nesse ponto, provavelmente, que percebemos que durante
todo o tempo estivemos fazendo algumas afirmativas em relação àquilo que
o indivíduo que está à nossa frente deveria ser (GOFFMAN, 2012, p. 12).

As evidências do diferente são culturalmente criadas e antecipadamente não


desejadas, são o que ele vai chamar de efeito de descrédito. Isso tudo é
estabelecido como se todas as pessoas que não tivessem os atributos da
normalidade se encaixassem em uma só outra categoria e assim, inerentemente já
fossem reduzidas nas avaliações depreciativas preestabelecidas pelos outros.
Ocorre inclusive, que de qualquer incapacidade que a pessoa possa ter, seja
atribuída à tal característica atípica da maioria.
Nas análises do campo para esta pesquisa, todas as participantes que
situaram-se em locais públicos e movimentados, foi visível a reação dos transeuntes
onde ocorriam os encontros, na sua maioria, em restaurantes e cafeterias nas
cidades gaúchas de Porto Alegre e Novo Hamburgo. Aos atendentes, ocorria
angústia de mostrar a normalidade, mesmo que esse sentimento não fosse genuíno.
As interlocutoras apresentavam-se com muita cautela nas suas atitudes e na
aparência, evidenciadas como mecanismos de adaptação. Em poucas palavras,
Goffman (2012, p. 43) resume: “[...] o que está envolvido é uma sistemática
exposição ao perigo” e garante que a visibilidade é crucial, derivando das questões
do encobrimento e/ou revelação, uma vez que o simples fato de aparecer pode
ocasionar tensões por causa de uma expectativa normativa de conduta pela
aparência.
O conjunto de regras é dado socialmente. Diante disso, alguém, geralmente
grupos, define em ação coletiva e em resultado de consenso, o que é errado, para
então, mais pessoas aderirem a esses códigos e se necessário, imporem e tomarem
certas medidas punitivas. Com isso, a rejeição é formada quando identificam um
outsider, conforme a sociologia do desvio proposta por Becker (2008). Esse sujeito
dissidente é condenado como um criminoso, no sentido mais amplo da palavra. E
quem o rejeita, afinal, está preocupado com a estabilidade social, rotulando o fora do
comum como um agressor ao sintoma de organização. Embora os estudos queer
145

tratem de não reduzir as identidades periféricas como uma teoria de rotulação, pelo
contrário, ainda sim, essas são consideradas minorias e são sexualmente
estigmatizadas por romperem normas.
A aplicação de uma moralidade depende do contexto, conforme é essa
situação transgressora e quem são os envolvidos. O desvio é baseado na interação
e reação das demais pessoas ao um dado comportamento. Em grande medida,
nasce o conceito de identidade pública que o autor sugere. O transgressor só será
rotulado como tal quando houver o flagrante. Tanto ele quanto os demais, serão
moldados pela imagem que a concebe. O tratamento será feito de acordo com o
diagnóstico que popularmente lhe é dado, situando-o a partir de tal repertório de
análises:

O comportamento é uma consequência da reação pública ao desvio, não


um efeito das qualidades inerentes ao ato desviante. [...] a questão é que o
tratamento dos desviantes lhes nega os meios comuns de levar adiante as
rotinas da vida cotidiana acessíveis à maioria das pessoas. Em razão dessa
negação, o desviante deve necessariamente desenvolver rotinas ilegítimas
(BECKER, 2008. p. 45).

Ou seja, esses controles afetam diretamente os hábitos dos outsiders. As


ações acontecem desde uma punição severa baseada em regimes legais, até
mecanismos mais sutis. Há acordos informais em que nem sempre a lei é passível
de ser levada em conta, o que não significa que haverá impunidade. O sofrimento de
quem infringe esses códigos não formalizados, por vezes, é mais doloroso, pois a
subjetividade é mais difícil de combater.
Em concordância com isso e exemplificando o dito, todas as vezes em que
eram marcadas as entrevistas para esta pesquisa, as interlocutoras eram quem
escolhiam o lugar. Depois de aproximações, algumas vezes foi aberta essa escolha
para sugestões, desde que levados em conta alguns critérios, dentre os quais, o
principal era sempre ser um ambiente discreto. Em dois momentos, o encontro foi
em um restaurante nas proximidades de ruas conhecidas pela prostituição. Como
que em um prenúncio, antes houve o envio virtual do aviso: “O local é muito simples,
mas é tradicional e de respeito. Não se assuste...rss” (MENSAGEM PRIVADA,
02/05/2015). Em avaliação do ocorrido, a aparência criada pode restringir as
possibilidades de circulação, pois esta as tornam predispostas à punição, advinda de
um imperativo das convenções morais.
146

Sob um outro ponto de vista, os desviantes servem, por que não, para
conscientizar-se de que é inviável insistir em um roteiro sobre o cotidiano e suas
articulações de vontades. Eles são informantes de novos comportamentos,
instigando uma inquietante readequação do observador da massa. O diferente não
fica só no espaço privado; ele exerce uma função pública. Mas, instiga Rodrigues
(2006, p. 25), “[...] a sociedade necessita dos fenômenos que rejeita, porque, por
oposição, exprime-se positivamente por meio deles, em uma expressão em que
seus conteúdos adquirem sentido através do que repelem – e através da qual ela
faz-se significar a si própria”. É uma relação paradoxal, pois ao mesmo tempo em
que as pessoas não se conformam com o diferente, são essas as que mais deste
necessitam para delimitar claramente os contornos de diferenciação, da qual não
fazem parte. Ao se submeterem pela comparação, surge o elemento balizador
intuitivo, sem uma ordem concreta, mas talvez muito mais pessoal.
Estudiosos que focam seu tema sobre a perspectiva do desvio chamam a
atenção de Simões (2009, p. 181) para um fato:

Para os sociólogos interacionistas, qualquer pessoa teria alguma


probabilidade de ser desviante de uma determinada forma, e quase todo
mundo poderia ser um desviante sexual. A questão central não estava, pois,
nas características dos indivíduos, mas sim no modo como a percepção
social dessas características levava determinados indivíduos a perseguir
determinadas trajetórias de vida.

Esse ponto de partida deu maior ênfase ao percurso para ser rotulado como
desviante e às maneiras de negociação com os convencionalismos de modelos
hierárquicos de classificações de identidades de gênero. Todavia, a falta de simetria
sempre estará presente, seja de caráter sexual, seja de outro tipo de inconformismo
que desestrutura modelos de existências.
Para Butler (2012), há uma demasiada cobrança em tratar o corpo como um
discurso coerente – leia-se heteronormativo – visto que essa ordem pode ser
entendida como uma estrutura de poder. A autora vai chamar de ordem compulsória
a proposta de desmembrar as compreensões sobre gênero, desejo e sexo,
exatamente para não ocorrer esse aprisionamento de dimensões identitárias, uma
vez que é fato que a normatização tem a capacidade de criar excluídos. Esta é a
necessidade de uma lógica na matriz cultural, uma condição que cria expectativa à
adequação forçada das identidades. Como se certos corpos, na condição de
147

linguagem, não pudessem jamais atingir sua legitimação de existência, algo


inatingível, a chamada inteligibilidade cultural. Porém, vale lembrar que, ao mesmo
tempo em que possuem uma carga de inexistência, os excluídos são a
representação do limite.
Além da aparência desviante tornada a priori um padrão inválido, há os
tabus de ordem sexual sancionados e mantidos contra as praticantes do
travestimento. Mesmo que essa relação não seja obrigatoriamente uma verdade,
leva-se em conta, inconscientemente, que esses desejos são resquícios de
incontáveis proibições sexuais já internalizadas ao longo da história. Assim:

[...] os espectros de descontinuidade e incoerência, eles próprios só são


concebíveis em relação a normas existentes de continuidade e coerência,
são constantemente proibidos e produzidos pelas próprias leis que buscam
estabelecer linhas causais ou expressivas de ligação entre o sexo biológico,
o gênero culturalmente constituído e a ‘expressão’ ou ‘efeito’ de ambos na
manifestação do desejo sexual por meio da prática sexual (BUTLER, 2012,
p. 38).

Essas são meramente elaborações de uma fantasia sustentada por um


corpo naturalizado. Convém levar em consideração que, se os prazeres emanam
dos genitais, é como se determinadas partes corporais fossem equivalentes a um
prazer normativo. O fator determinante para definir o que será estimulado está nas
representações de ideais de gênero, que se legitimam pela prática. Como ponto de
convergência, os prazeres sexuais são assim, descompassados em relação as
partes corporais, inspirando novas agregações ou supressão de certos artifícios para
então, tornar-se condizentes com os desejos. A então participação imaginária não
será restringida, muito menos revelará o desejo pelo corpo, mas sim, pela sua
ocasião. É sugerida a ideia de um ego corporal alterado, conceito freudiano25 que
remete às exigências do imaginário de um corpo físico passível de desejo, assim
como se remete à internalização da fisicalidade heterossexual. Isso ocorre como se
estivesse na anatomia a obrigatoriedade da correspondência com o desejo literal,
bem como estariam suas restrições físicas. Como área de manobra, esse fato é uma
falha constitutiva na divisão da configuração de gênero, pois uma é considerada a
autêntica e outra, a derivada, já que ambas são efeitos.

25 Processo de simbolização, onde o corpo é a primeira extrapolação da mente. Freud (1923) garantia

que antes de um ego, haveria um ego corporal interessado em experiências sobre o existir, expondo
evidências de aprendizados.
148

Como telos das práticas reguladoras, essas asseguram de acordo com as


conformidades sob o domínio patriarcal, através de características instituídas para
distinguir o macho e a fêmea. Uma identidade de gênero inteligível é aquela que
deveria inexistir, instaurando-se a partir de uma categoria decorrente dos
regulamentos das leis culturais postas como desordens.
Diante desses fatos, a consequência é, na sua maioria, uma postura retraída
pelas cross-dressers. Como ponto de convergência, basicamente o único motivo de
não ficarem ininterruptamente com seus apetrechos femininos reside no medo da
repercussão que tal uso poderia causar, já que raramente estão em uma profissão
ou em um ambiente familiar que lhes permitam isso. Sendo que em tese, o
desempenho de seus deveres profissionais pode não se alterar em absoluto. Porém,
o tratamento que elas receberão, estes sim sofre modificações. As imposições
estéticas mantidas pela sociedade podem criar a consequência de determinados
mecanismos de defesa natural, como o isolamento social, a culpa e os sintomas de
depressão. Por esse motivo, a prática nem sempre é feita durante as ações
cotidianas, fazendo com que geralmente elas fiquem ainda mais na defensiva,
alimentando uma atitude condenatória.
Esse comportamento pode fazer com que os estigmatizados tenham uma
predisposição à vitimização ou a uma resposta antecipadamente defensiva, já que a
incerteza é constante nas interações sociais a cada novo conhecido. Eles preveem
uma receptividade negativa, mesmo que velada. No caso específico desta tese, as
pessoas que se travestem não passam despercebidas quando ‘montadas’, o que
sugere uma superexposição quando estão em contato misto26. Há uma terceira
opção que são aqueles bastante confiantes e que ironicamente por isso, acabam
deixando os demais desconfortáveis, situação que Goffman (2012) vai nomear como
moralidade excessiva.
Essa desconfiança da rejeição ficou bastante clara nas tentativas de contato
para esta pesquisa que ficaram somente no plano virtual por decorrência de
distâncias geográficas. Como a receptividade vai sendo adquirida presencialmente,
as tentativas online foram infortunas e então, foram deixadas de lado, mesmo que
isso tenha representado uma diminuição considerável do grupo. Aparentemente, há
uma desconfiança nas palavras; esta é gerada de acordo com a interpretação de

26O autor usa essa expressão para designar interações ou somente um amontoado de pessoas em
que há membros estigmatizados e outros não.
149

leitura de cada um, ocasionando uma grande facilidade de ofensa mediante os


termos utilizados pelas próprias áreas de estudos teóricos. Potencializa-se ainda
como ponto negativo, a demora no tempo de perguntas e de respostas, bem como
na conciliação de disponibilidades27. Estas e outras vivências valeram a pena para
validar o que posteriormente, três entrevistadas em momentos diferentes e que não
se conhecem, explicaram: que a maioria é bastante perturbada com sua autoestima
devido ao contexto em que são obrigadas a viver, canalizando suas aflições aos
outros. A reação era prevista, até porque são também obrigadas a receber algumas
mensagens de cunho sexual e/ou intolerante, explicaram (DIÁRIO DE CAMPO, 10 a
12/2012).
O receio do preconceito pode falar mais alto do que a vontade de se
expressar visualmente. Mesmo sob a lei 10.948/01 que proíbe a discriminação
(JUSBRASIL, 2001), é notório e concreto esse estranhamento no cotidiano. Essas
pessoas são demonizadas dependendo do contexto, pois se apropriam de atributos
que socialmente não correspondem ao esperado. Na pesquisa de campo realizada,
uma praticante desabafou que só queria ser feliz, e não entendia por que tamanha
comoção, se não estava fazendo mal a ninguém. Queria poder ser igual a pessoas
ao redor que naquele momento estavam a cercando (DIÁRIO DE CAMPO,
09/11/2012).
É útil pensar que para muitos, inclusive para as interlocutoras desta
pesquisa, alguns juízos de valores podem se encontrar no próprio grupo. Isso
ocorre, uma vez que nem mesmo as praticantes de categorias já preexistentes têm
bem claras quem se encaixa em que, pois qualquer demanda com novas
reivindicações de inclusão pode incitar uma nova perspectiva. Ao mesmo tempo em
que há uma vontade de visibilidade e de emancipação, muito disso se faz
paradoxalmente se apropriando de um sistema classificatório segregacionista que
tanto é negado. Ressaltar as especificidades e nomeá-las seria uma das formas de
dar suporte a essas diferenciações, pois as pessoas buscam uma identificação
social conforme os estilos de vida já disponíveis. Há um confronto social por causa
da obrigação de fazer escolhas para então, seguir naqueles objetivos determinados,

27A título de exemplificação mais detalhada, uma das interessadas que prontamente retornou sobre a
solicitação do primeiro contato pelo BCC, sentiu-se extremamente ofendida porque a autora desta
pesquisa não respondeu no mesmo dia. Registrou a cada dia, descontentamento pela falta de
atenção. Quando houve a primeira verificação pela doutoranda, no final de semana, das mensagens
de mídias sociais, havia um acúmulo de desagrados gerados crescentemente.
150

produzindo uma identidade coletiva. Com isso, nem todo grupo está aberto para
novos membros que não possuem certos padrões de atributos, pois até os militantes
se submetem a situações de opressão, e por isso, estão dispostos a uma postura e
a ações mais inclusivas. No entanto, questionam-se se de fato querem uma
convivência com o diferente, e ainda, perguntam-se se isso é associado a sua
imagem. Diante disso, seria uma ilusória pretensão querer:

[...] abranger um coletivo de pessoas que se encontra disperso e, mais que


isso, separado, na prática, em diferentes segmentos, que não costumam
sequer frequentar os mesmos espaços, e menos ainda se reconhecer como
compartilhando uma mesma situação de exclusão (FACCHINI, 2005, p.
225).

Ao que tudo indica, as que se autodenominam cross-dressers não se


disporiam em passeatas que as tornem visíveis e de possível identificação,
justamente porque elas querem passar despercebidas, como qualquer outra pessoa
que não estaria dentro das minorias. E também, cuidam para não serem
confundidas com a imagem de possíveis habituais participantes desses movimentos
em modelo de atuação já existente. Por exemplo, diante do discurso: “Olhem ali,
acabou de entrar uns traveco” (DIÁRIO DE CAMPO, 13/05/2015), em que uma delas
prontamente expôs sua insatisfação com um misto de curiosidade em um dos
encontros feito em um bar de Porto Alegre, de noite, como que na intenção de
reforçar essas estruturas de regulação, isso como forma de proteção e legitimação
da existência. Tratam-se de identificações que são realizadas por contrastes, na
intenção de criar distinções entre as identidades.
A naturalização quanto à existência de uma regra regida pela
heterossexualidade subjuga o próprio caráter a uma inferiorização. Tendo o modelo
de masculinidade como única possibilidade, elas se silenciam ou se encontram em
uma posição de defesa como resposta ao que lhe é compelido a acreditar na
condição de uma das categorias identitárias atravessadas. A relação de poder torna-
se visível quando essas pessoas transgêneras as são contestadas nas hierarquias
sociais, e com isso, em busca de uma suposta normalidade, recorrem a imitar
comportamentos típicos da exclusão.
Para isso ocorrer, o processo de exclusão é permanente; inicia desde a
primeira tentativa de usar uma peça de roupa que não esteja em conformidade com
as divisões tradicionais de gênero. A família pode iniciar a vergonha, que vai se
151

estender na desistência da escola, quando nem mesmo o professor decide pelo


pronome feminino. Mesmo que na vida adulta consiga se estabelecer em âmbitos
não periféricos, a tentativa de se fincar em estruturas profissionais dadas como
desejadas são raras. Prova disso é o irrisório número de transgêneros defendendo
seu cliente em tribunais, salvando vidas em hospitais, palestrando ou exercendo
uma profissão de gestão em alguma empresa de grande porte. A falta do
acolhimento e de políticas públicas eficazes resulta em um juízo dominante de
subalternização, no qual a noção de inferior pelo viés da relação de poder torna-se
autoatribuída (FACCHINI, 2005).
Essas falhas nas ocupações condicionantes, em que o comportamento e a
estética não correspondem às atribuições biológicas e por isso, os tornam sujeitos
inadequados, constituem o motivo principal para evitar a exposição pública. Algumas
alternativas de interferências corporais são um grande desafio para as cross-
dressers que não se expõem. Um dos exemplos fundamentais são os pelos. Tirá-los
ou no mínimo, amenizá-los pode gerar desconfiança para a condição de ‘sapo’. Por
vezes há mentiras para gerenciar esse ocultamento, como pela higiene ou em nome
de um melhor desempenho na natação. Alternativas para melhorar a estética
pessoal são um tópico continuamente abordado em encontros. Goffman (2012)
nesse sentido, acredita que é previsível para reduzir a tensão, o desacreditado
aprender e empregar técnicas adaptativas nos mais variados âmbitos de sua vida.
Talvez não o acobertamento completo, mas o uso de artimanhas para um convívio
mais pacífico, justamente para evitar as tensões apresentadas anteriormente. Por
isso é que também, o travestimento pode ser realizado somente no segredo de um
espaço privado, e isso gera um sentimento de impropriedade e segregação, a ponto
de precisarem manter uma vida dupla, com biografias próprias:

A descoberta prejudica não só a situação social corrente mas ainda as


relações sociais estabelecidas; não apenas a imagem corrente que as
outras pessoas têm dele mas também a que terão no futuro; não só as
aparências, mas ainda a reputação. O estigma e o esforço para escondê-lo
ou consertá-lo fixam-se como parte da identidade pessoal (GOFFMAN,
2012, p. 76).

Como ponto de convergência, Simmel (1999) trabalha com a função do


segredo e sua combinação com a revelação na vida das pessoas, desmembrando
sobre aquilo que é respeitado, seja de forma intencional ou não, e ainda, se os
152

motivos são considerados positivos ou negativos. Sob o pressuposto da proteção do


segredo, o autor afirma que ele dá uma nova ampliação na concepção de vida,
diferentemente dos assuntos conscientes, pois estes se estabelecem
mecanicamente na rotina, sem muito sobre o que pensar. O sociólogo parte da
premissa de que o âmago da vida privada, em contrapartida com a pública, é
precisamente isso. Mesmo que possa não parecer, o ocultamento é fundamental
para a interação humana. Por extensão, o indivíduo apenas mostrará o que lhe é
recompensador, deixando somente para si alguns pudores, no intuito de não gerar
repulsa coletiva, por exemplo, ou de evitar qualquer outro sentimento que não é
desejado criar. Não raramente, guardar algo pode gerar um sentimento de privilégio
da posse, embora no âmbito dos estudos de gênero não seja tanto uma questão
sobre a vantagem de propriedade ou sobre os ciúmes de algum conhecimento
exclusivo, ou mesmo sobre a subordinação aos que não têm acesso aos produtos
com signos femininos. Em certa medida, pode até haver um prazer pelo mistério,
mas quando ocorre uma conduta secreta, prioritariamente essa acontece pelo receio
da rejeição.
O que cabe ressaltar é que, em qualquer relação pressupõe-se
minimamente que há um saber prévio sobre o outro, havendo na mesma medida,
uma apreensão recíproca. Mas uma peculiaridade é imutável: o segredo é de
natureza individual; é algo próprio, de patrimônio pessoal que faz alguém único e,
além disso, torna-se notável por meio do que esconde. Simmel (1999) sustenta que
todo ser humano possui conteúdos íntimos, sendo o corpo a maior propriedade.
Revelar forçosamente esse âmbito é uma das piores violações, uma pesada
intromissão ao reservado. Cada um cria a sua fronteira e estabelece o limite dos
outros, conforme vão se dando as relações. Neste caso, a discrição de respeitar o
que voluntariamente o outro não revela e não querer persistir em decodificar tudo
que lhe é ou não apresentado. O autor fala sobre a importância de a socialização
evitar interferir nessas decisões de esconder fragilidades, pois obter por imposição
essas informações de interioridades, geralmente ocasiona um mau uso destas. A
reciprocidade na compreensão sobre a intimidade deve ser plena; também não resta
dúvida de que é necessário tentar não associar a reserva a um sentido negativo,
como se tal sempre tivesse como objetivo encobrir uma maldade.
O que se nota é que alguns transgêneros iniciam a ‘montagem’ de maneira
eventual, mantida em grande segredo. Após alguns atos públicos, aos poucos é que
153

há a exposição total em assumir, e quem sabe, isso não ser mais algo transitório.
Porém, muitas jamais se mostrarão no cotidiano; preferem o resguardo da
clandestinidade. Esse fato foi facilmente perceptível na pesquisa de campo, que
demonstrou nos meios estudados, que algumas informantes nunca expuseram sua
identidade de gênero feminina nos lugares de encontro comunitário, mesmo que
deixando sempre claro a preferência pela condição de ‘princesa’. Goffman (2012, p.
91) explora mais essa exposição de algum segredo que possui atributos
censuráveis:

Observa-se que quando se tenta o encobrimento quase completo, o


indivíduo algumas vezes, conscientemente, organiza seu próprio rito de
passagem indo para outra cidade, escondendo-se num quarto por alguns
dias com roupas e cosméticos previamente escolhidos e trazidos por ele e
então, como uma borboleta, emergindo para provar suas novas asas. Em
qualquer fase, é claro, pode haver uma queda no ciclo e um retorno ao
invólucro.

No nível das representações, o processo de subjetivização é ao mesmo


tempo, um projeto de sujeição, em que o indivíduo busca semelhanças em uma
identidade. Sobre isso, em sua obra ‘A Epistemologia do Armário’, Sedgwick (1990 –
tradução nossa) já traz no título a constituição do sigilo e da revelação como um
dispositivo de regulação de vida das pessoas homossexuais ou mesmo
heterossexuais, já que aborda tanto a privacidade involuntária quanto os privilégios
da visibilidade autorizada. A noção do silêncio imposto seria uma estrutura de
opressão, segundo a qual, inclusive as pessoas assumidas na sua identidade de
gênero possuem seus ‘armários’. Desse modo, a cada novo contato, exige-se uma
nova demanda deste segredo ou exposição, quando é levado em conta se o
interlocutor sabe ou não, se isso é importante, se há consequências e assim por
diante. Nas vidas das participantes desta investigação, esse é um procedimento
exaustivo e fundante que codifica os limites da existência regulada pela posição
pública. Por outro lado, isso lhes dá uma forma distorcida de liberdade, pois a
homofobia predomina somente quando a orientação de gênero se torna visível. Sem
esse reconhecimento, o caráter de estigma pode ser resguardado pelo próprio
sujeito, se assim ele desejar.
Esse processo de resguardo é em certa medida involuntário, pois tem uma
negociação relacional. A subjetividade da prática para aqueles que ‘não saem do
armário’ já sugere uma organização do que pode ser público e do que deve ser
154

mantido no espaço privado. Aqui é ainda mais verdadeiro, pois é realmente pelo
guarda-roupa que muito da identidade trans é construída, dado pelo regime de
visibilidade.
Sedgwick (1990 – tradução nossa) sugere a necessidade de reconsiderar
pelos estudos queer ser o ponto de partida e não ser tratado como exceção,
limitando-se aos problemas específicos de ordem sexual. A imagem marginal sobre
essa questão é dada pela dominação heterossexual, fundamentada pelo repúdio a
relações entre pessoas do mesmo sexo; assim, para ela, a simples tolerância não é
o suficiente, pois já demostra uma forma de violência. Enquanto não for incorporada
uma análise crítica da definição moderna da sexualidade, tal compreensão será
sempre incompleta.
Na contramão dessas ideias, é interessante de se pensar que a roupagem e
suas composições começam a intrinsecamente fazer parte da vida, no sentido de
demonstrar que algumas não mais exibirão sua existência privada. As vestes, como
símbolos sociológicos, passam a confundir o que é privado e o que é público nesse
processo de construção da identidade de gênero. Há pessoas transgêneras que
preferem ser vistas somente já ‘montadas’. Em campo, uma praticante falou que
sempre sugere para as demais associadas do BCC que, se for para divulgar fotos
em perfis de redes sociais, que sejam com a produção completa. Defende que isso
jamais seja feito durante o processo. Caso contrário, a magia se perde (DIÁRIO DE
CAMPO, 09/11/2012). A aparência final permanece como função pública, e o
procedimento até chegar ao objetivo final parece somente pertencer à ordem do
particular.
Para criar um paralelo sobre a dimensão do privado e do travestimento, vale
acrescentar que as drag queen também veem como essencial o segredo na sua
transformação, embora por motivos diferentes. Nos shows, os camarins são de
acesso restrito, já que é justamente o ocultamento que assegura o aspecto lúdico. O
mistério faz parte desse território restrito e é naquele que reside toda a inquietude do
processo de transformação. Possivelmente se houvesse a facilidade da exposição
para que as pessoas pudessem acompanhar uma drag queen ‘se montar’, se
adquiriria uma fragilidade da perspectiva da aparência. É o produto final por assim
dizer, que está em jogo para possibilitar a crença da fantasia. Ocorre um esforço
visível nessa produção pessoal, podendo chegar à profissionalização por meio de
remuneração, sendo então, um aspecto essencial a discrição para depois vir o
155

deslumbre. O privado deve ser preservado, sendo na instância pública o auge da


notoriedade. Trata-se de um momento único que materializa a fantasia de uma
mudança externa de teor artístico (VENCATO, 2005).
Essa maneira de ver o mistério que envolve toda a ‘montagem’ se deve ao
fato de que, em especial nos espetáculos, essas pessoas dramatizam a figura da
mulher na forma de um deboche e por isso elaboram sua aparência de uma forma
propositalmente teatral. Buscam os elementos mais característicos e então, exaltam-
no, entretanto no intuito de fazer uma sátira. Por essa razão, pode quem faz tal
produção, ser considerado um artista, até porque sua performance é baseada na
criação de um personagem, muito graças a vestimentas, a acessórios e a
maquiagens exacerbadas. Essa teatralização só ocorre quando justamente se tem
um público, caso contrário, não há razão de ser. Objetivamente trata-se de uma
brincadeira com caráter de experiência temporária, demarcando o corpo do
performista com o gênero performado, como diria Butler (2012). Nesse sentido, as
regulações sexuais são materializadas nesse corpo para produzir diferenças.
Gadelha (2008) entende essa transformação como algo ambíguo e que
possui um tempo de vida na sociedade, já que nasce – ou expressão do meio:
‘estreia’ – somente quando a produção estética estiver completa, para então haver a
aparição pública. Assim que se descaracteriza, a pessoa que ali estava, agora não
‘montada’, não existe mais; resta somente seu intérprete. Logicamente que um
depende do outro, porém essas personas não coexistem. Trata-se da experiência da
metamorfose, mesmo que passageira, na qual o antes, então masculino, é tomado
pela personificação de signos femininos. Essa produção possui um apelo caricato
que conta com o auxílio de muitas estratégias estéticas para servir de
entretenimento, principalmente em lugares noturnos.
As pessoas performáticas tratam essa transformação com humor,
sentimento que conseguem fazer com que os demais também compartilhem e
possam ver tudo dessa forma. Visam assim, apresentar uma paródia na tentativa de
mostrar um personagem feminino com um nome condizente com o personagem que
criam, e imediatamente quando ‘se desmontam’, voltam com os pertences do
universo masculino novamente. Ou seja, são claramente duas personas e por isso,
cientes da importância de resguardar cada uma delas em seus espaços. Preferem
que sejam realmente duas vidas diferentes, e na sua maioria, não desejam ser
reconhecidos no seu cotidiano quando não estão ‘montadas’. Possivelmente é por
156

isso que a produção seja tão extravagante, para que de fato o sujeito seja
irreconhecível e possa expor-se sem receios. Assim, utiliza muitos adornos e gestos
carnavalescos, sem nutrir expectativas de ser confundido de fato com uma mulher.
Kogut (2006, p. 105) explica que “Uma drag queen não deixa de ser um tipo de
transformista, pois o uso das roupas pode estar ligado a questões artísticas – a
diferença é que a produção focaliza, em geral o humor, o exagero e não implica uma
excitação do tipo encontrado no travestismo”. Sendo assim, os recursos que utiliza
orientam-se para fins artísticos.
Já para Chidiac e Oltramari (2004), que em sua pesquisa de campo
objetivaram estudar o processo para a configuração da identidade drag e a relação
do personagem com o sujeito, consideram que a manifestação do feminino é
bastante explícita. E nesse sentido, a identidade é percebida como uma
metamorfose, a saber, como algo não fixo que possui uma fronteira flutuante. É nos
espaços artísticos específicos de atuação que são expostas características próprias
da personagem, como um nome, uma forma de andar, uma dublagem de cantoras
etc.
Como ponto de convergência, há inúmeros trabalhos que descrevem o
processo de ‘se montar’ uma drag queen, e vale observar que é recorrente a
simplificação da explicação, que é ‘quando um homem está de mulher’. Este simples
fato que a curta definição expressa já demonstra uma arbitrariedade. Os próprios
autores, a priori estudantes das áreas afins de comportamento, naturalizaram essa
dicotomia na sua forma de se expressar textualmente. Mesmo sem essa
prerrogativa, acabam por disseminar tal tipo de parâmetro universalista.
Reforçando a ideia trazida sobre a noção do segredo, este é seguramente
um dos motivos de o tema desta tese ser um objeto de estudo ainda pouco
explorado e com números inexatos. Uma frase inicial do site oficial do grupo de
cross-dressing no Brasil traduz o que aqui se discute: “sou mulher quando posso”
(BCC, 2013). Essa observação vai ao encontro de um testemunho de uma
entrevistada para esta pesquisa, que explicou como foram árduas suas tentativas de
expor sua aparência final, não só para o público como também para si. Como o
cargo dela exigia viajar muito, com isso, aproveitava para experimentar suas roupas
femininas na solidão de um quarto de hotel. Aos poucos, saía para o pátio e voltava
correndo, depois estendia essa experiência para o estacionamento e quando lhe
vinha coragem, até passeava de carro de noite ‘montada’. Foi depois de muitos
157

ensaios de aceitação que então conseguiu expor-se (DIÁRIO DE CAMPO,


09/11/2012).
Esses momentos são restritos e a vontade é grande e acumulativa. Nesta
condição, a análise aponta para uma dinâmica de tempo versus oportunidade,
questão levantada pelas próprias entrevistadas sobre a consciência do excesso.
Quando ocorre uma oportunidade, o desejo é latente para aproveitar ao máximo
aqueles limitados momentos, já que não sabem quando conseguirão vive-lo
novamente. Uma das entrevistadas explicou que é por este motivo que no início da
experiência, elas se produzem excessivamente, sem parâmetros de discernimento
para avaliar a aparência pessoal feminina. O anseio é gradual e por isso acabam se
excedendo, já que querem usar praticamente todos os apetrechos que estão à
disposição, em uma só vez. É somente com a vivência social que a simplicidade
visual vai ganhando credibilidade na sua identidade de gênero. Como resposta a
essa sucessão sistemática, são vistas ‘montadas’ no espaço público somente
aquelas que já estão mais confiantes (DIÁRIO DE CAMPO, 09/11/2012).
Durante um almoço com três praticantes, em um restaurante bastante
conhecido em Porto Alegre, uma delas expressou que jamais conseguiria chegar a
se expor à outra, apontando para a única pessoa que estava ‘montada’
publicamente. O senhor de 51 anos, de aspecto muito amigável, pós-graduado,
usando camisa e suéter azul, com cabelo e barba bem feitos, assim que chegou na
mesa, tratou de tirar da carteira uma identidade visivelmente falsa. Na foto 3x4,
estava uma mulher muito maquiada, rosto magro, com cabelos longos e franja na
frente de um dos olhos. Respondeu prontamente que ‘sim’ para a indagação sobre
se preferiria aquela de fato ser a sua identidade, inclusive com o nome social
feminino. Mas apesar das restrições, manifestou que estava satisfeito com o que
conquistara até então. Especialmente por sua esposa hoje aceitar essa prática,
diferentemente dos filhos adolescentes, que não sabem nada sobre isso (DIÁRIO
DE CAMPO, 05/07/2013).
Apesar das discriminações, nem em todos os lugares elas correm o risco de
serem hostilizadas. Junto de seus pares, há uma zona de conforto, já que todas
estão ali pelo reconhecimento a partir de uma identidade de gênero, não pela
anatomia. Gera-se no entorno, um reconhecimento de pertença, o que talvez sejam
realizados tantos encontros fechados somente para os grupos. Nesses espaços, a
conformidade é posta como um instrumento de integração, não ocorrem julgamentos
158

ou perguntas constrangedoras, muito menos vergonha ou obrigações em precisar


explicar algo. É o relato de Alice (NOVIC, 2005 – tradução nossa) ao Tri-Ess, que,
ao que tudo indica, é um lugar americano semelhante ao Dudda Nandez no Brasil.
Trata de um ambiente acolhedor que possibilita a experiência do travestimento e a
socialização com demais praticantes, que graças a isso, começaram a se entender e
a se aceitar melhor. Quando teve coragem de ‘se montar’ publicamente, garante que
seu pior pesadelo transformou-se no seu mais incrível sonho.
Por isso, os transgêneros tendem a se agrupar ou mesmo a criar bases
territoriais com o intuito de uma segurança mútua. Como um forte elemento de
grupo, nem sempre os demais serão bem-vindos nesses grupos fechados para que
não as apontem como desacreditadas, já que em momentos, pode ser assim vistas
no lado externo. Somente será permitido ao simpatizante que deixar claras suas
intenções e seu respeito pela não convencionalidade.
A busca por algum encaixe coletivo concretiza-se pela ordem do
pertencimento, pela qual ocorre uma certa reprodução na regra de comportamento.
O reconhecimento do outro como pertencente a alguma instância da mesma
condição, evoca na mesma intensidade, a questão da responsabilidade de ordem
cívica, assim como cria aconchego e segurança: “Quando esta relação de
informação se estabelece entre duas pessoas, parece, com certas exceções, criar
uma vinculação social, colocando ambos os indivíduos em uma base nova em
relação ao outro [...]” (GOFFMAN, 2010, p. 126). O autor nomeia essas
pressuposições com fundamento na aparência semelhante de ritual de identificação,
quando indivíduos possuem uma espécie de permissão previamente dada para
abordar o outro, inclusive com algum grau de intimidade.
Sobre a experiência subjetiva da performance de feminilidade, a tese de
Duque (2013) estuda o assunto, a partir de regras de visibilidade na agência
identitária que são postas como marcadores sociais. Assim, a fluidez nas
percepções de si é o que ele vai chamar de ‘passar por’, quando busca entender o
que as pessoas querem revelar ou desconstruir na ordem do sexo e do gênero, nem
sempre já dados e visíveis. Querer ‘passar por’ uma mulher significa buscar por
padrões generificados, supostamente naturais e suficientemente convincentes, e
performatizá-los dentro de contextos sociais. Através de uma perspectiva
desconstrutivista, o autor ressalta a ideia da produção de corpos dada pela rotina
dos dispositivos sobre que se espera de um homem ou de uma mulher, sendo um
159

destes, o seu revestimento. Nessa dinâmica de assumir determinados regimes sobre


o que usar durante o transito de identificação, Duque (2013, p. 140) certifica que:

Além do comportamento ao estar devidamente vestido e do contexto da


interação na hora da compra das roupas, outro acontecimento importante
para a reflexão é a decisão do que abandonar ou incorporar no vestuário.
Essa decisão passa necessariamente pela compreensão de que a mesma
peça pode gerar efeitos diferentes segundo as características de quem a
veste, e por isso, não se trata pura e simplesmente de escolher uma peça
com a qual se julgue ficar bem vestido.

Todavia, dentro desta perspectiva, ao mesmo tempo em que o movimento


gregário proporciona um vínculo identitário, a socialização com pessoas externas ao
coletivo pode trazer aproximação com a expectativa social do senso comum. Sobre
isso, vale expor de maneira literal uma parte de um texto enviado por e-mail para
esta pesquisa, para conferir inclusive a apropriação de certos termos por uma cross-
dresser, que descreve:

É difícil uma mulher genética entender a nossa angústia de alma feminina


presa num corpo masculino, e tu entendes isso. Me sinto muito bem quando
estou contigo e até esqueço a minha origem masculina. Tu me tratas com
tanta naturalidade, como mulher mesmo. Isso me dá um imenso prazer e
me faz feliz. Não é a mesma coisa quando estou num grupo de
transgêneros (MENSAGEM PRIVADA, 06/06/2014).

Algo a se considerar também é que, com tanta repressão, muitas vezes


escapam os princípios dominantes que acabam sendo praticados pelos próprios
oprimidos, quando reproduzem as divisões heteronormativa de forma militante.
Bourdieu (1999) aponta para o fato de que é exatamente nas ações reivindicatórias
pelas existências coletivas que os movimentos se mostram ordinariamente
estigmatizados. Isso é falar de discursos hierarquizantes de dominação, mesmo que
subversivamente, já que se invertem os pontos de vista, pois a bem dizer, o
dominado assume as evidências que o dominante tem dele. O objetivo é aproveitar
o particularismo de seu capital cultural para tirar vantagem nas lutas simbólicas,
destituindo pré-avaliações de categorias.
160

Figura 13 – Uso de estigmas como reinvindicação de visibilidade

Fontes: Gay Parade (2014); Pride Parade (2009).

Em teoria, não há regras de conduta para definir o que universalmente é ser


uma mulher ou o que melhor se apresenta como um homem. Todavia, é bastante
evidente um uso subordinado do corpo mediante princípios de visão essencialista e
um forte mecanismo histórico responsável por um trabalho de eternização de
estruturas. É deste padrão que, paradoxalmente, em nome de uma disposição
extrema para tentar ser aceito, esse encaixe social se vê como uma agressão
subjetiva, construída tanto pela própria pessoa quanto pela visão do outro. Em
161

grande medida, o medo pela noção da diferença aprisiona e perpetua ainda mais as
mesmas imposições de princípios contra os quais fundamentalmente essas pessoas
lutam. Usam assim, as próprias opções pré-existentes e a constituição da
sexualidade que tentam combater, como base para disputa e negociações. Tudo
isso, até o ponto de gerar sentimento de surpresa quando, por exemplo, um
homossexual tem trejeitos viris como de um heterossexual, já que a atribuição
simbólica se constrói mais para a figura da mulher. Como se houvesse a compulsão
de, como membro de um casal, haver uma manutenção da diferença sobre os
papeis de cada membro. Se ambos são homossexuais, então ao menos um precisa
preencher o espaço vazio da mulher que ali não está. Nesse sentido, a própria
concepção de pertencimento mostra-se incompleta e segmentadora, pois reivindica
o aceite de um lugar já estabelecido, mesmo que não haja com ele a familiaridade.
Mais do que promover novas aberturas, há uma luta em reconhecer com
pertencente a grupos já existentes. Isso desencoraja condutas próprias, pois o modo
de existência acaba por ser somente um produto de incorporação.
Seguindo nessa lógica, há uma linha tênue e bastante desafiadora para as
cross-dressers conseguirem chegar a um ponto de equilíbrio da credibilidade de sua
aparência pela visão do outro, que já possui fortes disposições incorporadas de
discriminações que são históricas. A gestão da sua imagem pública está em fina
sintonia com um sacrilégio da masculinidade e afronta o sistema básico de
diferenciação. Ao inverter o contrato universalista, é condenada a dar justificativas,
mesmo que pouco ou nada eficazes.
Assim, diante de tudo que até então, neste capítulo foi exposto, vale o
questionamento sobre o que são e de onde vêm essas percepções sobre os
padrões do belo e do aceito, que orientam os corpos e constroem suas narrativas.
Tais conceitos serão levantados a seguir.

5.4 PADRÕES DE CORPOS PELA CULTURA DE MASSA

Na intenção de fechamento da tese, convém uma ressalva a ser levada em


consideração sobre o relativismo do conceito de beleza e as fontes que privilegiam o
lugar da imagem como cobrança e nivelamento da aparência cultural. Todo o
planejamento estético diário, antes de se expor ao público, aponta para o fato de
existir um grande esmero. É inegável que, além do valor compensatório dessa
162

estetização, há um empenho visível de tempo e dinheiro. E o peso atribuído da


plasticidade pessoal é de responsabilidade única do esforço de seu portador, que se
sente no dever de dar conta do seu resultado. A preocupação com a beleza seria
uma preocupação com o ser aceito, e está nos detalhes do cotidiano, como se olhar
toda vez em que há um espelho, ou seja, é priorizar alguma porcentagem de tempo
para pensar nas melhores possibilidades da autoimagem.
Vale a reflexão: criando um paralelo com os relatos aqui já citados de Kulick
(2008), percebe-se claramente como, no meio do grupo focal delimitado para a
pesquisa dele, esse é um assunto permanente. Desconstruindo a noção de beleza
como uma imagem corporal feminina respaldada pela mídia, a preparação que elas
têm nas suas produções é também algo impressionante. Para conseguir mais
clientes, as travestis buscam constantemente por artifícios de beleza, como tingir e
alisar o cabelo com recursos caseiros, retirar os pelos no rosto, disfarçar a barba
com maquiagem e suportar a dor na hora de injetar silicone industrial para reforçar
algumas curvas. Isso são investimentos também da ordem moral, mesmo que
possam não condizer com as percepções criadas pelo senso comum. A seguir, na
descrição detalhada que o autor faz observando um roteiro diário que uma delas faz
para ir trabalhar, é possível delinear uma dimensão melhor sobre a importância de
relativizar o conceito de belo e os procedimentos para atingi-lo:

Postando-se de pé, puxou a calcinha até a altura dos joelhos e depois se


agachou com as pernas afastadas para manter a peça no lugar. Nessa
posição, levou a mão atrás das costas, e daí por baixo das pernas, até
conseguir alcançar o pênis e o saco escrotal. Puxando-os para trás, Banana
pressionou-os firmemente contra o períneo, ao mesmo tempo que se punha
de pé, ajeitando a calcinha para cima com a outra mão. Esticando a
calcinha pela frente e puxando o pênis por trás, ela desloca o peso do corpo
de uma perna para a outra, até que a calcinha estivesse ajustada e o pênis
acomodado segura e confortavelmente sob o períneo. Banana finalizou a
operação alisando a calcinha com as duas mãos, certificando-se de que a
parte da frente apresentava-se agora como uma superfície bem lisa e plana
(KULICK, 2008, p. 19).

Marwick (2009) garante que o ser humano é obcecado pela aparência e


possivelmente por essa razão, estabelece uma confusão proposital ao associar
beleza física com o caráter. Isso era verdade nos séculos passados muito mais do
que na visão moderna, mas de qualquer forma, ainda é creditada a feiura ao
nefasto. Além do mais, traz a finitude do corpo e há uma conexão com o desleixo
moral. Os concursos de beleza persistem até hoje e comprovam que os heróis
163

precisam ser bonitos. Sem considerar a variedade de tratamentos que a sociedade


faz questão de lembrar constantemente para não negligenciar a aparência. Aquele
que não possui a fisionomia agradável aos padrões da época pode ser deslocado e
torna-se alvo de desconfiança alheia.
Os levantamentos históricos do autor mostram que houve épocas nas quais
a população culpava a moda por possibilitar mascarar mulheres feias e, portanto,
ludibriar homens, já que se acreditava que eles originalmente eram atraídos pela
fisionomia. Em várias épocas, o uso de artifícios estéticos ao extremo possuía uma
intencionalidade de enganação, como as prostitutas faziam para seduzir seus
clientes com uma aparência que lá não existia. Tanto era verdade que os noivos
comumente decretavam uma inspeção visual do corpo nu de sua pretendente antes
do casamento, para não cair nas artimanhas de uma concepção irreal.
O entendimento do belo é creditado a uma atração da maioria e de forma
imediata. Para o pesquisador em foco, a percepção decorre de um consenso
segundo o qual, mesmo com dificuldade de ser descrito, todos sabem identificar
quando alguém é belo. Não resta dúvida também de que a beleza fascina, excita, é
símbolo de poder e nunca é o suficiente. Na mesma instância, a cobrança do capital
físico é destinada muito mais à mulher. O homem deve antes, ter outros traços
considerados indispensáveis, por exemplo, o sucesso profissional. Embora a história
tenha evidenciado que, conforme a mulher vem ganhando mais independência
econômica e social, tende a julgar os homens assim como eles fazem com elas: pela
aparência. Na sua obra, ele se apropria de ideias dos demais estudiosos como
Naomi Wolf, para explicar que a avaliação se constituiu como uma ferramenta
prioritariamente de construção masculina, com o intuito de propagar este domínio
sobre o feminino e em estado contínuo de opressão, interferindo nos critérios:

É possível que aqui se justifique a ideia de que aquilo que a mulher percebe
como beleza no homem coincide com a aparente capacidade de executar
tarefas ‘masculinas’, enquanto aquilo que o homem percebe como beleza
na mulher corresponde à aparente qualificação para representar papéis
‘femininos’ (MARWICK, 2009, p. 279).

Por definição, a beleza está associada ao cuidado do corpo por meio de


recursos. As artimanhas para reforçá-la, ou mesmo fabricá-la, impõe-se de uma
forma ou de outra. A questão central aqui, é que o excesso causa um sentimento de
incredibilidade, uma desconfiança moral como diria Vigarello (2006).
164

Este historiador ainda adverte sobre o nascimento de uma instituição no


início do século XX que mudou o rumo das aparências: o mercado da beleza. Inicia
um comércio sobre os cuidados para evitar rugas, exercícios em academias,
tratamentos, cosméticos, cirurgias, enfim, ensinando o conceito do feio e dando as
possibilidades de corrigi-lo. As tecnologias nos estudos cosméticos fazem abrir
sistematicamente salões de beleza e seus mais mirabolantes recursos. Para
gerenciar todos eles, nasce o esteticista, um desdobramento da profissão de
cirurgião, embora não mais reparador destinado aos soldados da guerra, e sim com
tarefas de fins estéticos puros. O progresso da beleza traz uma visão unificada e
atingível sobre o corpo belo, mostrando a possibilidade de qualquer pessoa poder
consumir aquela imagem da mídia. Canaliza dessa forma, um aprendizado estético
universal e como consequência, a intolerância à imperfeições. Em obediência a esse
padrão, agora acessível, a beleza se eleva ao máximo em seu valor social. O
cinema intensifica a níveis críticos a vigilância para a aparência perfeita, que se
manifesta ainda hoje, acrescido da expansão estrondosa ao acesso da vida de todos
por meio das mídias pessoais.
Essa ferramenta faz o saber tornar-se uma responsabilidade a se adquirir; a
informação transforma-se em obrigação, fazendo do corpo um objeto de consumo
imediato e descartável. Essa cobrança é ainda mais exigida no universo trans. Na
articulação em campo, uma delas lamentou o reforço à intolerância na medida em
que passa o tempo, porque elas são ainda mais cobradas em sua imagem pessoal
na velhice do que comumente as mulheres o são. Com a idade, “alguns traços de
feiura são compreensíveis, mas não para um cross-dresser, pois depois de uma
certa idade, a gente vira piada” (DIÁRIO DE CAMPO, 09/05/2013).
Requisitos corporais são na sua maioria, originados pela mídia de massa.
Há cada vez mais, uma quantidade infindável de informações que vem ao encontro
do observador, sendo entre tantas, questões de normas gênero e padrões de
beleza. A vigência das imagens cria perversas comparações incessantes onde
invariavelmente “Usamos o espelho para verificar nosso lugar nesta narrativa”
(HOLLANDER, 2003, p. 43). Toda vez que se submete a um arquétipo de corpo
perfeito, enfatiza o sujeito enquanto uma mercadoria que como tal, será trocada por
outra mais nova. Uma novidade é por extensão melhor pelo simples fato de ser
novidade. Via de regra, a própria moda entendida como um efeito social se sustenta
desta forma, pois esta é:
165

[...] é irracional no sentido de que busca a mudança pela mudança, não


para aperfeiçoar o objeto, tornando-o, por exemplo, mais funcional. Ela
busca mudanças superficiais que na realidade não têm outra finalidade
senão tornar o objeto supérfluo com base em qualidades não essenciais
(SVENDSEN, 2010, p. 31).

Sua lógica do impulso consiste em recusar o antigo para aderir ao novo, em


um ciclo de superação permanente que substitui, não acumula, e no qual não carece
da concepção de progresso. O tédio é o pior insulto para este sistema, deve antes,
se preocupar com a manutenção do desejo e satisfação, mas por pouco tempo para
dar espaço a uma nova vontade. Porque o transitório por si só é sedutor, é moderno.
Como um ideal de mudança visual permanente, “[...] o amor pela aparência é
suficiente” (HOLLANDER, 2003, p. 41) nesse fluxo subversivo que nem espera o
cansado do velho para querer o novo. E assim como o corpo, sendo só mais um
produto, um produto novo é sempre mais prazeroso. Apresentadoras, ancoras de
jornais, protagonistas de novelas, até mesmo líderes políticos têm mais prestígio e
credibilidade quando sua aparência lhes proporciona maior credibilidade sob os
olhares classificatórios. Objeto de regulações, o corpo como produto de consumo,
precisa sustentar claramente certas expectativas. Pouco é visto em um contexto
corriqueiro, pessoas consideradas fora das convenções. Até mesmo em programas
de televisão, a visibilidade quando ocorre, é burlesca e pelo viés do entretenimento
para promover o riso subversivo. A cultura de massa veicula o que é esperado
enquanto feminilidade e masculinidade, sendo por vezes, através de representações
caricatas quando é levado para o lado do humor.
O senso comum que personifica um arquétipo e cobra como requisito de
beleza aceita é, na sua maioria, replicado pelos meios de comunicação em massa,
em especial a partir de filmes. Sobre isso, ‘The Celluloid Closet’28 (1995 – tradução
nossa) traz importantes indícios sobre esse debate no âmbito do cinema como uma
lúdica perspectiva da própria vida. Sintetizando os principais pontos, o documentário
discorre sobre a forma como Hollywood retrata as pessoas consideradas fora do
padrão nas dimensões de gênero, desde o surgimento da atração cinematográfica
até o momento em que o documentário foi finalizado. Trata também de como essa
leitura se dissemina rápida e facilmente no cotidiano. Os dados de como o social
deveria se comportar são levantados especialmente por meio de entrevistas

28 No Brasil, este filme ganhou o título de ‘O outro lado de Hollywood’.


166

realizadas com roteiristas, atores, diretores e demais profissionais do ramo, sempre


exemplificado por uma série de pedaços de filmes. A pesquisa processa-se
cronologicamente e com uma lógica que pontua os principais marcos de mudança
de pensamento identificados nestes.
O mote evidenciado é que, em mais de cem anos da arte cinematográfica,
pouquíssimo foi tratado a fundo sobre o tema como se deveria, levando em
consideração que sempre existiram sujeitos considerados descontextualizados das
normas sexuais. Quando havia qualquer menção a esses temas, o intuito maior era
para introduzir um alívio cômico na trama, ou então fazer a audiência sentir pena, ou
mesmo incitar os sentimentos de medo e ódio. Esse efeito de discurso deixou um
pesado legado sobre o que a população deveria pensar sobre as facetas dos
gêneros em desacordo com o heteronormativo. Inclusive o que os próprios
envolvidos deveriam pensar sobre eles mesmos, incrustrados nos paradigmas
estabelecidos imageticamente. Uma vez que Hollywood era a representação
máxima da cultura de massa e a fabricação da vida perfeita, muitos espectadores se
baseavam nos personagens para saber como pensar e agir no cotidiano. Desse
modo, os filmes acabaram sendo a fundamentação da boa conduta, pois as pessoas
aprendiam entre outras coisas, a identificar e a reproduzir identidades
essencializadas.
Mesmo no cinema mudo, é curioso analisar que o público presumia por
intermédio dos clichês de trejeitos efeminados, que um homem era homossexual,
por exemplo. Isso não era discutido abertamente nem mesmo entre os membros da
equipe, mas em suma, todos se conscientizavam do que se tratava. Era detectado
um estereótipo na conduta e no trajar que todos reconheciam, e basicamente com o
intuito da veia humorística. Como não havia pecado maior do que ser gay, melhor
então que virasse logo uma piada. Contudo, isso ocorria somente em uma via, ou
seja, quando era o homem que se apropriava dos adereços femininos. Percebe-se
claramente isso no ‘Call her savage’29, primeiro filme que mostrava um bar gay com
personagens efeminados, que cantarolavam canções sobre paixões e diversão.
Todos que ali estavam, riam e se divertiam com isso. Ao passo que em ‘Morocco30’,
Marlene Dietrich usa um smoking, chapéu e sapato também em um momento
semelhante de show, todavia muitos ali se apaixonam por ela, que demostra uma

29 Filme de 1930, traduzido no Brasil como ‘Marrocos’.


30 Filme de 1932, traduzido no Brasil como ‘Sangue Vermelho’.
167

atitude elegante e austera. Para vários cinéfilos, até hoje é considerada uma das
imagens mais sensuais da sétima arte, pois subliminarmente parecia que ela estava
querendo encantar a todos, homens e mulheres. Sobre essa via de mão única, o
escritor Quentin Crisp tenta explicar: “Quando um homem se veste como mulher, o
público ri. Quando uma mulher se veste como um homem, ninguém ri.31” (CLOSET,
1995, 10min 48seg – tradução nossa).

Figura 14 – Captura de telas dos filmes Call her Savage e Morocco, respectivamente

Fontes: Savage (1932); Morocco (1930).

Uma vez que as identidades periféricas de gênero praticamente não eram


abordadas nas tramas, os telespectadores considerados desviantes julgavam que
deveria então, haver algo de errado com eles. Sentiam-se isolados, não
representados claramente nos filmes, ou ao menos não como gostariam. Pelos
inúmeros relatos no documentário, essa audiência partilha um sentimento de
precisar mendigar a qualquer custo, uma identificação nos filmes, mesmo que
irrisória ou até imaginativa.
Analisando historicamente, foi em meados das décadas de 1920 e 1930 que
os filmes começaram a ficar muito atrevidos e picantes para os padrões da época.
Considerados perversos, esses provocaram muitas críticas negativas, especialmente
vindas da Igreja Católica e de protestantes fundamentalistas. Como resposta, em
1934 houve um severo código moral que estabeleceu regras invioláveis a
Hollywood, obrigando que as produções fossem ponderadas previamente para

31Texto original: “When a man dresses as a woman, the audience laughed. When a woman dresses
as a man, no one laughs”.
168

garantir que não houvesse nenhum apelo sexual ou outras condutas consideradas
indecentes. Assim, criou-se o Código Hays, liderado por Will Hays, um padrão de
análise que iria definir modelos de moral aos produtores. A Legião da Decência,
como ficaram conhecidos, denunciava o que seria profano, sendo estabelecida a
letra ‘A’ para considerar algo aceitável; ‘B’ significava que havia algumas objeções
morais no filme e por fim ‘C’ que estava fadado a ser condenado. E se Hollywood
não prometesse seguir as regras, a Igreja ameaçava com boicotes em massa.
E assim o fez. Por mais de vinte anos, o diretor do Code Enforcement
Officer, Joseph Breen, comandava as censuras e tinha a autorização plena para
modificar o que fosse considerado de mau costume para o período. Incontáveis
filmes foram forçadamente adaptados ou inteiramente negados. Em pronunciamento
oficial, evoca sem piedade: “Pessoas decentes não gostam de ver esse tipo de
coisa. E é nosso dever fazer com que elas não se deparem com isso32” (CLOSET,
1995, 16min 27seg – tradução nossa).
Todavia, apesar dessa severa restrição, os personagens sexualmente
atípicos não foram deixados completamente de lado. O que ocorreu foi eles terem
ficado mais difíceis de serem identificados. Jamais eram citadas determinadas
palavras, somente apareciam sutis atitudes e aparências. Por causa dessa restrição,
os diretores aprenderam a driblar os profissionais que censuravam e o público
aprendeu a decifrar imagens. Os personagens não convencionais então, foram
camuflados por detrás de uma característica de pessoalidade de um vilão, por
exemplo. Nas entrelinhas da tela, a expressão da homossexualidade era indireta, e
ironicamente foi assim que na vida real ficou também: instaurada uma expressão
não declarada, uma imagem codificada.
Quando havia personagens em qualquer nível de desconformidade entre
sua anatomia e identidade de gênero, eram em núcleos diferentes e com uma veia
cômica, como no filme ‘Some like it hot’33, jamais como um usual estilo de vida, muito
menos respeitado. Mesmo quando era mais visível, pouco era falado sobre esse
fato. Nem os próprios atores na época recebiam explicitamente a descrição de seus
personagens, embora todos soubessem do que se tratava, pois aprenderam a
associar tal ideia com algum trejeito, ou se expressavam pelo gosto e uso de roupas

32 Texto original: “Decent people don’t like this sort of stuff. And it’s our job to that they get non of
them”.
33 Filme de 1959, traduzido no Brasil como ‘Quanto mais quente melhor’.
169

diferentes, ou por uma indireta no olhar e claro, por muitos rodeios nas falas. Era
necessário todo esse disfarce para não chamar a atenção da Legião da Decência,
pois quando o assunto sexo de alguma forma ficasse explícito e mais sério, era
imediatamente cortado.
Entretanto, no percurso cinematográfico, gradualmente os códigos foram
sendo abolidos e cada vez menos esse assunto foi encarado como um grande tabu.
Contudo, mesmo não sendo mais uma imposição, por muitos anos – e há quem diga
que até hoje, porém em graus diferentes – esse tipo de pensamento de opressão
ainda persistiu. Isso era percebido nas figuras dramáticas que jamais lutavam para
afirmar suas identidades de gênero, uma vez que elas mesmas se denegriam e se
consideravam pecadoras. O que ocorria nos filmes era a representação de um
monstro que estava com o seu destino já terrivelmente predefinido. No documentário
analisado, há uma compilação só de mortes trágicas, algumas inclusive comparadas
com filmes de terror, como ocorreu a emboscada morte de Frankstein, no qual a
semelhança é inegável. Hollywood concretizou o tema como sendo um segredo sujo
e motivo de culpa e fracasso, consequentemente de tristeza, desculpas e punição.
Qualquer um que não se encaixasse nos padrões, fazia parte de um contexto
repugnante com vidas infelizes, marginais que viviam em subúrbio ou na sombra,
sendo rejeitados pela família e à mercê de perigos. Isso era extremamente
amedrontador para os espectadores que se reconheciam nesses protagonistas, já
que era uma simulação e preparação da vida o que se ensinava no cinema. Vale
lembrar que na época, praticamente não se tinha outras fontes de aprendizado pelo
exemplo, que não fosse o cinema (CLOSET, 1995 – tradução nossa).
Foi somente em 1970, a partir do longa-metragem ‘The Boys in the Band’34
que Hollywood popularmente mostrou pela primeira vez, um grupo de gays que
enfrentava as dificuldades, que se impunham e defendiam aquilo em que
acreditavam, sem perder a diversão e camaradagem. Pelo menos em partes, pois
ainda era muito cedo não ter absolutamente nenhuma cena depreciativa. Mas o
principal era que não havia um final trágico para nenhum deles. Enfim, o filme que
de fato celebrou as diferenças foi o ‘Cabaret’35, dando passagem para vários outros,
como ‘Car Wash’36 o qual propunha um protagonista negro, alto e teoricamente viril

34 Filme de 1970, traduzido no Brasil como ‘Os Rapazes da Banda’.


35 Filme de 1972, traduzido no Brasil com o mesmo nome.
36 Filme de 1976, traduzido no Brasil como ‘Car Wahs – Onde acontece de tudo’.
170

pela sua estrutura física, que se vestia e se comportava como uma mulher. Iniciava
ali uma visibilidade ao comportamento travéstico, ainda que distorcida, mas ao
menos já mais discutido. Em ‘Vanishing Point’37 por exemplo, um dos atores
interpretava uma figura dramática com calças e camisas bastante justas e de cores
consideradas femininas, além de usar bolsa. Eram essas suficientemente as
prerrogativas para apontá-lo como ‘não homem’ e consequentemente, para chamá-
lo a responder por isso.
Nesse viés, um roteirista chamado Ron Nyswaner relata que assistia no
cinema o ‘Freebie and the Bean’38 e de repente, apareceu-lhe uma figura travestida,
quando esta é morta pelo herói principal. No mesmo instante, toda a plateia
aplaudiu, visivelmente concordando com aquela cena, o que segundo a intepretação
dele, mais do que acabar com aquele vilão, a intenção era uma representação de
acabar com o conceito de travesti. Não bastava o seu simples fim; era necessário
um brutal assassinato, com muitos tiros e encenações exageradas. Em
complemento, os espectadores acabaram se acostumando com que os piores
xingamentos eram aqueles que vinham com uma carga sexualmente estereotipada.
Ao passo que outras ofensas de caráter também pessoal e/ou físico que possuem
um pudor filtrado da corrente do politicamente correto, o ‘bixa’, ‘viado’, ‘puto’,
‘traveco’ e afins apareceram em qualquer filme, logo, em qualquer conversa do
cotidiano. Assim, as pessoas se condicionaram a relacionar e a significar esses
termos com uma postura depreciativa.
Havia uma permissão velada ao não convencionalismo, como no filme ‘The
Rocky Horror Picture Show’39 no qual o personagem principal, interpretado pelo ator
Tim Curry, é chamado Dr. Frank-N-Furter, um cientista maluco, promíscuo e que
vivia em um castelo. No sentido de dar ênfase à excentricidade ou mesmo ao horror,
ele ainda se travestia. Estava completa a exotização. Em uma mistura de musical,
comédia e estilo trash, a adaptação foi banida em alguns países, já que provocações
não faltavam: cinta-liga, muita maquiagem e trejeitos performáticos sedutores.
Através de suas canções, as letras lembravam que ninguém deve julgar um livro
pela capa; apresentava-se ele como uma simples e doce travesti vinda do Planeta
Transexual (SWEET TRANSVESTITE, 2015).

37 Filme de 1971, traduzido no Brasil como ‘Corrida contra o destino’.


38 Filme de 1974, traduzido no Brasil como ‘Duas Ovelhas Negras’.
39 Filme de 1975, traduzido no Brasil com o mesmo nome.
171

Como resultado dessa postura, Hollywood finalmente estreou na década de


oitenta, um filme que falava sobre um verdadeiro amor entre dois homens,
desvinculado de qualquer conotação de insulto ou marginalizado que até então
existia. ‘Making Love’40 foi tão atípico, a ponto de precisar alertar já no início do
vídeo, através de um texto de abertura, que a sua graciosidade poderia ser muito
pesada para algumas pessoas:

Twentieth Century-Fox tem a honra de apresentar um dos filmes mais


honestos e controversos que já lançamos. Nós acreditamos que ‘Making
Love’ é pioneiro através do retrato sensível de uma jovem mulher executiva
que descobre que seu marido experimenta uma crise sobre sua identidade
sexual. ‘Making Love’ trata aberta e levemente um tema delicado. Não é
sexualmente explícito, mas pode ser demasiadamente forte para algumas
pessoas. ‘Making Love’ é ousado mas delicado. Estamos orgulhosos de sua
honestidade. Aplaudimos sua coragem41 (CLOSET, 1995, 1h12min –
tradução nossa).

O produtor Daniel Melnick conta que na época, foi uma tarefa muito difícil
montar o elenco. Os atores eram alertados a não aceitar os papeis, pois justificava-
se, iriam destruir para sempre suas carreiras. Na estreia, as pessoas visivelmente se
mostravam incomodadas a ponto de saírem da sala no meio do filme, demostrando
rejeição pela intimidade entre dois homens. Já o diretor John Schlesinger aponta
que o público americano está preparado para assistir a qualquer tipo de violência,
mas possui no tema da sexualidade o seu maior medo; nesse sentido, melhor fingir
que não existe. Isso se relaciona especialmente à homossexualidade masculina,
pois somente um ano depois foi lançado o ‘The Hunger’42 em que duas mulheres
eram apaixonadas. Com este filme, não houve tanta comoção; pelo contrário, para
muitos, foi tratado até com entusiasmo, entendido pelos homens como a garantia de
mostrar sua virilidade ao incentivar esse tipo de relação.
Em suma, fica evidente que o poder de persuasão do cinema está
justamente em conseguir mediar a compreensão do mundo e dessa incorporação,
representando os sonhos e produzindo necessidades. Ele consegue criar arquétipos
de como as pessoas devem comportar-se e romanticamente, impõe um modelo
40 Filme de 1982, traduzido no Brasil com o mesmo nome.
41 Texto original: “Twentieth Century-Fox is proud to presente one of the most honest and
controversial films we have ever released. We believe Making Love breaks new ground in its sensitive
portrayal of a Young woman executive who learns that her husband is experiencing a crisis about his
sexual identity. Making Love delas openly and candidly with a delicate issue. It is not sexually explicit.
But it may be too Strong dor some people. Making Love is bold but gentle. We are proud of its
honesty. We applaud its courage”.
42 Filme de 1983, traduzido no Brasil como ‘Fome de Viver’.
172

desejável e vendido como ideal. E nos que não se encaixam nesse construtor de
realidade, desperta uma vontade latente de traduzir aquelas histórias para a sua
própria vida.
173

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sem a intenção de propor uma visão totalizante, este estudo teve como
pretensão colocar em diálogo temas costumeiramente diferentes e permitir reflexões
multidisciplinares. Partindo da premissa de que o ato de cobrir o corpo tange
inúmeros arranjos simbólicos pertencentes a uma comunicação não verbal, qualquer
escolha de vestimenta manifesta uma interferência estilística na imagem pessoal, a
qual é revestida de significados dados pela cultura. Nessa perspectiva, a dinâmica
do gênero coloca-se como o pano de fundo teórico, quando se concentra no
entendimento do sistema de moda como um fenômeno que abarca a estética, o
vestuário, o corpo, o comportamento e os demais signos dessa prática, refletindo o
modo de ser por meio de suas específicas ferramentas visuais. Para a elaboração
textual, foi adotado um escopo de pesquisa que regeu os principais pontos
norteadores, para o qual foi levado em conta o cross-dressing como uma prática
discursiva.
Assim, com base no aporte de premissa teórica realizado, identificou-se que
os objetivos foram alcançados, embora talvez, de forma parcial, já que lidar com
comportamento como objeto de pesquisa é sempre algo volúvel. Foi possível
investigar os convencionalismos sociais e os processos de negação dos
observadores que resultam na intolerância visual. Na mesma intensidade,
possibilitou-se perceber os conflitos e dar visibilidade à compreensão dessa
experiência.
Entre observação de campo, levantamento de fatos contemporâneos e
fontes imagéticas, sempre com ênfase nos recursos bibliográficos, percebeu-se que
a orientação sexual transita inclusive pela dimensão da aparência, pois também se
gerencia pelas convenções de atributos. Nesse sentido, a relevância desta
investigação está na sua possível contribuição para os campos de estudos
correlacionados, já que o trabalho buscou aproximações de outros campos do saber
para as ciências sócias, ao expõe o uso de adereços corporais e da compreensão
de si pela imagem pessoal. Como efeito, a pesquisa buscou colocar o hábito do
enfeite corpóreo como fornecedor de um padrão de referência. Sob essa regência,
pretendeu-se enriquecer a bibliografia nacional para um campo ainda tão recente e
carente de articulações, com intenções de ser interessante a diversos pesquisadores
174

e profissionais dos ramos que creditam seus aportes teóricos ao comportamento


humano e a suas relações sociais, articulados aos estudos de gênero.
Para que isso fosse possível, realizou-se uma explanação literária,
objetivando como apresentação inicial sobre possibilidade da moda como um
aspecto do social e a contextualização histórica a partir de alguns marcos estéticos,
já evidenciando as diferenças de gênero. Importante veículo da interação social, a
aquisição de bens foi entendida como um complexo ritual de consumo, ao questiona
o papel dos objetos na vida das pessoas como uma forma de biografia pessoal.
Optou-se por não trabalhar somente com um viés de leitura, especialmente
pensando em ser uma fonte de pesquisa para estudantes desses segmentos
apontados. Além disso, para permitir enxergar a moda como uma possibilidade
teórica nas suas relações científicas, as visões de outros ramos de conhecimento
mostraram-se imprescindíveis. O esforço maior foi dar conta de um debate que
ainda ocupa um espaço pouco privilegiado no campo do saber, especialmente pelo
viés da moda.
Partindo das premissas anteriores, as abordagens são articuladas com a
questão de posicionamento crítico mediante o confronto do antagonismo identificado
no corpo dado como masculino acima de uma construção da aparência e conduta
femininas. Sempre disso, levando em conta o fundamento da prática em uma
sociedade ocidental contemporânea ainda com normatizações enraizadas sobre a
classificação marcada pelo binarismo.
Sem nenhuma pretensão à literatura clínica, optou-se pelo nicho de pessoas
que complexificam as categorias e desordenam os modelos estabelecidos ao sexo
designado no nascimento instituindo-o como uma categoria de análise. Foi
presumível assim, investigar os convencionalismos sociais e as construções
identitárias na perspectiva do gênero, e a aparência pessoal como produto da
existência. Em uma perspectiva situacional, as imagens arquetípicas da mídia
concretizam a experiência identitária, que é provisória e por isso, ocorre
ressignificações para além do binarismo sexual. Assim, a moda também foi vista
como um sistema simbólico que permite negociá-la por meio da cultura material
trazida pela visão cultural e que possibilita, fundada nessa linguagem, produzir
efeitos nos espaços privado e público.
Considerando que somente quando há a imersão no universo do público-
alvo é que a compreensão se estabelece por completo, a ida ao campo serviu para
175

intensificar algumas problemáticas de pesquisa. Sendo a autora uma pessoa


cisgênera, foi necessária empatia para conseguir sentir o que as pessoas
transgêneras sentem, e pensar como elas pensam. Sem o interesse de ser
quantitativa ou nominal, os resultados qualitativos exploratórios, provenientes de
observação de campo, traduziram-se na forma de relatos informais, já que foram
levadas em consideração as palavras do pesquisador Yin (2001), que defende que a
entrevista é uma fonte insubstituível de estudos, quando bem utilizada e respeitada
na sua essência. Por esse motivo, as principais implicações foram intercaladas com
referenciais teóricos em nome de uma reflexão crítica. Optou-se por agregar os
dados no decorrer de toda a pesquisa, e não em separado em um capítulo destinado
exclusivamente, para evitar cair em descrições desconectadas da elaboração
teórica.
Quando se acredita em normas gerais de condutas, a tendência a rotular um
dado como excepcional é grande, embora sem sentido, uma vez que um quadro de
comportamento na realidade pode fazer parte da mesma ordem social. Por isso,
permitir-se uma espécie de descolamento de convicções para não procurar pela
homogeneidade um método de coleta assumido, segundo o qual foi essencial
imergir nesse universo de comportamentos sem supor estabilidades. Em especial,
por tratar de um grupo que dificilmente se encaixa em algum modelo, mesmo que de
gênero, já que o cross-dressing não precisa estar relacionado com a orientação
sexual, a classe social, a idade, as vontades ou a qualquer outro direcionamento
preexistente. Claramente, há princípios dominantes, como foi o caso desta
investigação, mas da mesma forma, há ressalvas, e por isso, foi imprescindível
prestar atenção, já que:

[...] a ênfase é dada à uniformidade dos dados, possivelmente entremeada


por exceções. Porém, em todas as sociedades existem incongruências e
contradições entre os vários conjuntos de normas nos diferentes campos de
ação. Um problema que os membros de qualquer sociedade devem resolver
é o de viver com estas incongruências através da manipulação de normas,
de forma que as pessoas possam continuar a viver juntas numa ordem
social. Por esta razão, isto constitui um problema que também merece ser
estudado pelo antropólogo (VELSEN, 1987, p. 349).

Conseguir transportar as realidades locais e registrar no Diário de Campo é


desmembrar os princípios sob a égide dos quais as pessoas convivem. Diferente da
análise estrutural, a situacional fornece material que constitui suas abstratas
176

formulações e leva em conta os processos sociais, objetivando compreender uma


sociedade que não é homogênea, muito menos estável. Justamente pela realidade
ser imponderável, é que deve integrar a análise ao registrar as ações das
informantes numa perspectiva específica, na qual foi preservada a criticidade para
avaliar se prescrevia uma regularidade geral ou um comportamento excepcional em
seu contexto situacional.
Vale colocar que o método exploratório refutou, já nos seus primeiros meses
de aplicação, uma das principais hipóteses que a investigação tinha no seu início,
que supunha dificuldade em conseguir ingressar no meio. Todas as conversas
pessoais foram bastante francas, amigáveis e divertidas, prezando pelo respeito e
bom senso recíproco. Houve um interesse mútuo em a autora ouvir e a vontade
delas em falar. Talvez uma possível justificativa a este retorno positivo tenha sido o
fato da pesquisadora vir da moda, área de interesse delas. Possivelmente, a moda
tenha feito com que elas enxergassem um ambiente acolhedor, e (porque não?) fútil,
garantindo momentos despretensiosos. Ao mesmo tempo em que esta tese teve
como intenção abordar a aparência como uma referência identitária, seria simplista
deixar-se levar por tamanha leviandade, ou seja, analisar uma pessoa somente pela
exterioridade, ainda que a use como uma das expressões, a fim de,
paradoxalmente, gerenciar sua identidade.
Por fim, pontuam-se os principais desafios que foram enfrentados no
desenvolvimento da pesquisa doutoral. Uma delas foi um esforço teórico para haver
a familiarização com as bibliografias clássicas do universo das ciências sociais e
aproximações da antropologia e filosofia – historicamente consagradas e
intensamente teorizadas em extensão universal – que, na sua maioria, eram de fato
o primeiro contato. Como se não bastasse, em seguida outro desafio foi articular
isso com o tema de pesquisa por meio dos saberes disciplinar pela moda – um
campo de compreensão científica recente, que se mostra um tanto quanto poético e
que toma de empréstimo inúmeras expressões linguísticas, permitindo
constantemente novas possibilidades de interlocução.
Possivelmente a forma de escrita sucinta e a vontade de trazer mais e mais
autores possa ter contribuído para uma pesquisa de caráter dinâmico. Ademais, pela
autora vir da área de moda, a fundamentação do método de investigação se faz pelo
pastiche de ideia, como é por excelência, o campo, e porque poucos são os
pensadores que buscam nela mesma suas explicações. No entanto, como pode
177

ocorrer de leitores serem advindos de variadas áreas, em alguma medida, isso


acaba por contribuir para a aproximação com diferentes teorias e para instigar o
leitor a buscar novos conhecimentos pelos seus próprios aprofundamentos, com
base neste escopo teórico.
Também, invariavelmente, os autores aqui trazidos, foram lidos por meio da
percepção sobre a corporeidade e suas amarrações comunicacionais, uma vez que
permaneceu esse viés como recorte de pesquisa. Assim, possivelmente deve haver
interferências, entretanto não houve o propósito de limitá-los a essa perspectiva,
apenas foram direcionados em nome de uma coerência metodológica entre eles
para o desenvolvimento elucidativo deste trabalho. Por uma questão de tamanho do
texto e foco de interesse, criou-se uma síntese de olhares bem pontual desses
autores. Ressalta-se, no entanto, que o objetivo não foi criar um consenso de certas
correntes de pensamentos, mas sim, gerar discussões férteis com possibilidades de
intercâmbios entre estas, respeitando a esfera de interesse de cada crítica teórica.
No que tange à investigação, a retomada possibilita reflexões que servirão para
futuras novas investigações. Mais do que respostas liquidadas, são as indagações
que ficam no final desta investigação.
Como última contribuição, merece atenção o fato de o interesse pelo tema ter
aumentado progressivamente. Por isso, esta pesquisa não se esgota aqui. A
sensação de estar na companhia do inacabado foi permanente, ao mesmo tempo,
motivadora. É seguro dizer que esta investigação será continuada, em especial por
decorrência de novas descobertas e oportunidades de campo que extrapolam a
exigência do cronograma do PPGCS. Seria até irresponsável acabar por aqui,
depois de tanto esclarecimento pessoal sobre o tema não proporcionar um
compromisso social. Mesmo podendo soar ilusório, no desenvolvimento desta tese,
bem como no próprio caminhar durante todo o Doutorado, houve um grande
incentivo para um modo de pensar diferente, talvez mais empático, mais ponderado,
mais embasado. Mais humano. E por causa disso, a gratidão será eterna.
178

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ANEXO A – PESSOAS QUE MENOS GOSTA DE ENCONTRAR

Fonte: Venturi; Bokany (2011, p. 198).

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