Hermeneutica Alegoria
Hermeneutica Alegoria
Hermeneutica Alegoria
CONSIDERAES
SOBRE
A
ALEGORIA,
A
PARTIR
DE
JOO
ADOLFO
HANSEN
EM
ALEGORIA:
CONSTRUO
E
INTERPRETAO
DA
METFORA
CONSIDERATIONS
ABOUT
ALLEGORY,
FROM
JOO
ADOLFO
HANSEN
IN
ALEGORIA:
CONSTRUO
E
INTERPRETAO
DA
METFORA
Jorge
de
Freitas1
Resumo:
Neste
breve
artigo
pretendemos
apresentar
uma
reconstruo
historiogrfica
e
filosfica
da
alegoria,
partindo
das
consideraes
sobre
o
conceito
tecidas
por
Joo
Adolfo
Hansen
(2006)
em
Alegoria:
construo
e
interpretao
da
metfora.
Palavras-chave:
alegoria;
poetas;
telogos.
Abstract:
In
this
brief
article
we
intend
to
present
a
historiographical
and
philosophical
reconstruction
of
allegory,
based
on
the
considerations
about
the
concept
woven
by
Joo
Adolfo
Hansen
(2006)
in
Alegoria:
construo
e
interpretao
da
metfora.
Keywords:
allegory;
poets;
theologians.
249
Segundo
Cesar
Motta
Rios
(2009),
o
termo
hyponoia,
que
tem
a
sua
origem
etimolgica
hypo
(debaixo)
e
nous
(mente,
inteleco),
alm
do
sentido
especfico
de
sentido
mais
profundo,
[...]
apresenta
um
sentido
mais
amplo
de
conjectura,
suspeita
(RIOS,
2009,
p.
14).
Tanto
a
etimologia
dessa
palavra,
quanto
a
definio
apresentada
por
Compagnon,
revelam
a
aproximao
com
o
conceito
de
alegoria,
etimologicamente
derivado
do
grego
alls
outro;
agourein
falar
(HANSEN,
2006,
p.
7).
Nesse
sentido,
no
que
diz
respeito
hypnoia,
ela
pode
ser
entendida
como
o
fundamento
ou
o
contedo
da
alegoria.
Para
Hansen,
no
se
deve
falar
simplesmente
de
a
alegoria,
pois
existem
duas
vertentes
desse
conceito
que,
embora
se
diferenciem
no
campo
semntico,
so
complementares
e
derivam
do
mesmo
verbo
grego
llegorien,
que
significa
tanto
falar
alegoricamente
quanto
interpretar
alegoricamente
(p.
8).
Desse
modo,
a
alegoria
dos
poetas
uma
maneira
de
falar
e
de
escrever
(p.
8),
vinculada
utilizao
dos
poetas
e
retores
da
Antiguidade.
J
a
alegoria
dos
telogos,
que
diz
respeito
interpretao
das
Escrituras
Sagradas,
deve
ser
vista
como
um
modo
de
entender
e
decifrar
(p.
8).
Dividida
em
duas
vertentes,
a
alegoria
tem
utilizao
distinta
em
tempos
diversos.
Como
alegoria
dos
poetas,
pensada
como
dispositivo
retrico
para
a
expresso,
ela
faz
parte
de
um
conjunto
de
preceitos
tcnicos
que
regulamentam
as
ocasies
em
que
o
discurso
pode
ser
ornamentado
(p.
9),
situando-se
no
mbito
da
Antiguidade
greco-latina
e
aliada
dos
poetas
e
dos
retricos.
J
na
tradio
crist,
vista
como
uma
semntica
de
realidades
supostamente
reveladas
por
coisas,
homens
e
acontecimentos
nomeados
por
palavras
(p.
9),
a
alegoria
dos
telogos
enquadra-se
na
exegese
das
Escrituras
Sagradas.
Assim,
250
Esse
conjunto
de
regras
hermenuticas
tem
como
finalidade
no
a
interpretao
das
palavras
enquanto
leitura
literal
do
texto,
mas,
sim,
a
interpretao
dos
acontecimentos
contados,
das
coisas
e
dos
seres
histricos
que
preenchem
o
discurso.
importante
considerar
que
as
coisas,
os
acontecimentos
e
os
seres
histricos
sujeitos
interpretao
so
aqueles
que
esto
nomeados
nas
Escrituras,
ou
seja,
foram
designados
pela
Palavra
Sagrada
que
cria
e
nomeia.
Como
grandes
exemplos
de
exegetas,
destacam-se
Flon
de
Alexandria2,
Orgenes,
Rbano
Mauro,
So
Boaventura,
Santo
Agostinho,
Beda,
So
Toms
de
Aquino
e
o
Pseudo-Dionsio
Aeropagita.
No
perodo
do
Renascimento,
a
alegoria
passa
a
ser
amplamente
utilizada
em
manifestaes
artsticas
que
se
tornam
tipicamente
alegricas,
no
s
por
aliarem
em
suas
constituies
a
imagem
e
o
discurso,
mas,
principalmente,
por
conterem
um
sentido
oculto
(uma
hypnoia)
por
trs
de
suas
representaes.
Na
maioria
das
vezes,
este
sentido
de
ordem
poltico-moral.
Como
exemplo
dessas
manifestaes,
destacam-se,
sobretudo,
os
emblemas
e
as
divisas.
Na
experincia
do
Renascimento,
de
acordo
com
Hansen
(p.
140),
a
alegoria
deixa
de
ser
pensada
como
a
antiga
instituio
retrica
a
pensara:
traduo
figurada
de
um
sentido
prprio.
Deixa,
tambm,
de
funcionar
como
na
hermenutica
medieval,
que
sob
a
letra
da
Escritura
revelava
a
voz
do
Autor
nas
coisas.
Uma
vez
que
as
produes
poticas
e
artsticas,
2 O exegeta Flon de Alexandria (10 a.C.50 d.C.) destaca o uso da alegoria visando a interpretao
alegrica
da
Torah
judaica.
Operando
na
leitura
e
interpretao
das
figuras
da
Lei
de
Moiss,
Flon,
parecia
entender
a
sua
obra
como
uma
continuao
da
apresentao
da
Lei
para
a
metade
grega
do
mundo
(RIOS,
2009,
p.
25).
Assim,
a
alegoria
em
Flon
situa-se
no
mbito
da
exegese
das
Escrituras
da
Torah
judaica.
Segundo
Hansen,
Flon
de
Alexandria
se
baseava
principalmente
na
tradio
judaica,
realizando
a
sua
interpretao
da
letra
das
Escrituras
segundo
trs
nveis,
num
sentido
que
hoje
se
diria
cosmolgico,
antropolgico
e
mstico
(HANSEN,
2006,
p.
100).
Ademais,
tem-se
como
regra
que
Flon
de
Alexandria
foi
quem
cunhou
o
termo
alegoria.
FREITAS,
J.
de.
Consideraes
sobre
a
alegoria...
251
252
253
gesto
de
interpretao
semntica
de
tropos
atravs
da
sindoque.
Uma
vez
que,
para
Kothe,
a
obra
de
arte
sindoque
do
mundo,
uma
parte
que
est
pelo
todo;
mas,
sendo
uma
parte
em
que
o
todo
se
concentra,
no
propriamente
uma
parte,
assim
como
o
todo
(do
qual
ela
seria
parte)
no
pode
ser
capturado
nunca
em
sua
plenitude
(no
permitindo,
portanto
que,
se
fale
propriamente
em
todo)
(KOTHE,
1986,
p.
14).
FREITAS,
J.
de.
Consideraes
sobre
a
alegoria...
254
a
captura
dos
espectadores
por
meio
do
discurso.
Atravs
do
discurso
breve,
bem
ornamentado
e
de
fcil
assimilao,
o
orador
capaz
de
captar
a
benevolncia
dos
ouvintes
que,
pela
fcil
memorizao
do
discurso,
aceitam
com
facilidade
os
argumentos
do
orador.
O
critrio
da
clareza
situa-se
como
a
regra
central
para
a
classificao
dos
tipos
de
alegoria
retrica.
tambm
atravs
da
regra
de
clareza
do
discurso
que
se
articula,
segundo
Hansen
(p.
46),
o
preestabelecimento
da
cognio
do
ouvinte
articulada
na
prpria
ordem
do
discurso,
ou
seja,
o
alto
nvel
de
clareza
do
discurso
do
orador,
que
em
sua
construo
discursiva
trabalha
com
palavras
claras
e
de
fcil
compreenso,
exerce
mais
facilmente
o
efeito
de
compresso
no
ouvinte.
Os
critrios
da
brevidade
e
clareza,
entendidos
por
Hansen
como
virtudes
retricas
(p.
46),
atuam
diretamente
no
processo
construtivo
do
discurso
com
a
finalidade
de
provocar
o
efeito
de
persuaso
no
ouvinte.
Ambas
as
virtudes
retricas
eram
procedimentos
dirigidos
ao
falante
e
ao
ouvinte,
fornecendo-lhes
regras
para
inventar,
dispor,
ornar
e
teatralizar
as
falas,
alm
de
critrios
de
julgamento
(p.
51).
Nesse
sentido,
brevidade
e
clareza
priorizam
a
relao
de
construo
discursiva
levando
em
considerao
os
procedimentos
tcnicos
retricos
,
que
visa
estabelecer
um
alto
grau
de
verossimilhana
com
a
realidade
na
representao
do
discurso.
1.2
ALEGORIA
DOS
TELOGOS/ALEGORIA
HERMENUTICA
A
alegoria
dos
telogos
ou
alegoria
hermenutica
diz
respeito
a
uma
tcnica
interpretativa
apropriada
pelos
padres
e
tericos
da
Igreja
Catlica
na
Idade
Mdia
que
visa
a
decifrao
das
Escrituras
Sagradas.
Diferentemente
da
alegoria
dos
poetas,
que
trabalha
como
uma
transposio
semntica
entre
os
sentidos
discursivos,
a
alegoria
hermenutica
realiza
a
transposio
semntica
entre
os
eventos
da
realidade
terrena
e
as
verdades
bblicas,
depositadas
em
homens,
aes,
acontecimentos
e
255
coisas.
Desse
modo,
o
sentido
espiritual
no
est
alegorizado
nas
palavras,
mas
sim
nas
coisas
que
so
representadas
por
elas.
Segundo
Hansen:
A
interpretao
crist
das
coisas
das
Escrituras
se
faz
segundo
trs
grandes
coordenadas:
considerao
da
presena
de
Deus
nas
coisas
sensveis;
considerao
da
presena
de
Deus
nos
seres
espirituais,
almas
e
puros
espritos;
considerao
da
presena
de
Deus
na
alma
humana,
segundo
grais
de
maior
ou
menor
proximidade
na
maneira
pela
qual
figuram
Deus
(HANSEN,
2006,
p.
92).
[...]
dois
livros
escritos
por
Deus.
Um
o
livro
visvel,
a
Natureza;
o
outro,
quando
Ele
Se
dedica
s
lnguas
e
escreve
em
hebraico,
grego
e
latim,
o
das
Escrituras.
Cada
um
deles
Natureza
e
Bblia
tem
um
dentro
e
um
fora,
havendo,
portanto,
um
sentido
literal
manifesto
e
um
sentido
espiritual
cifrado
[...]
os
telogos
leram
as
marcas
de
Deus
no
mundo
segundo
trs
graus
de
proximidade:
a
sombra,
figurao
distante
e
confusa
de
Deus;
o
vestgio,
figurao
distante,
mas
distinta;
e
a
imagem,
figurao
prxima
e
distinta
(HANSEN,
2006,
p.
95-98).
256
acontecimento
histrico
do
Velho
Testamento
prefiguraria
o
que
est
por
vir
como
Revelao
no
Novo
Testamento,
de
modo
que
esse
personagem
ou
acontecimento
pr-
figurativo
seria
a
figura
tipolgica
do
acontecimento
porvir.
Atravs
da
adoo
do
mtodo
de
interpretao
tipolgica
das
Escrituras,
no
qual,
segundo
Hansen
(p.
102),
o
Novo
Testamento
est
oculto
(latet)
na
histria
do
Velho,
ao
passo
que
o
Velho
Testamento
est
descoberto
(patet)
no
Novo,
os
hermeneutas
cristos
visavam,
sobretudo,
adaptar
as
diversas
correntes
religiosas,
filosficas
e
culturais
ao
combate
s
religies
pags
e
na
propaganda
efusiva
dos
dogmas
da
f
crist.
A
este
mtodo
tipolgico
de
interpretao
dos
acontecimentos
e
figuras
bblicas
como
repeties
entre
os
Testamentos,
alia-se,
na
Idade
Mdia,
a
leitura
das
Escrituras
por
meio
de
quatro
nveis
interpretativos,
conforme
tematizado
pelo
telogo
medieval
Rbano
Mauro,
a
saber:
o
nvel
histrico
ou
a
leitura
do
sentido
literal;
o
nvel
alegrico
ou
eclesiolgico,
onde
uma
coisa
ou
acontecimento
possui
um
sentido
espiritual
oculto;
o
nvel
tropolgico
ou
moral,
onde
alguma
coisa
ou
acontecimento
referem-se
a
um
aspecto
moralizante;
e
o
nvel
anaggico
ou
escatolgico,
que
diz
respeito
interpretao
dos
fins
ltimos
dos
homens.
Tambm
na
Idade
Mdia
que
acontece
a
distino
entre
alegoria
e
tipologia,
onde
a
alegoria
passa
a
ser
pensada,
de
acordo
com
Hansen,
257
258
nesse
sentido,
at
o
povo
e
o
filho
escolhidos
por
Deus
devem
passar
para
que,
aps
esses
eventos,
o
Messias
conduza-os
plenitude
da
Salvao.
No
Renascimento,
a
tcnica
alegrica
no
utilizada
somente
na
interpretao
das
Escrituras
como
na
Idade
Mdia.
Nesse
perodo
de
efuso
cultural,
a
alegoria
passa
a
ser
amplamente
utilizada
na
leitura
de
obras
da
Antiguidade
Clssica
e
na
construo
de
obras
de
arte.
Destacando
o
procedimento
alegrico,
Hansen
caracteriza
a
alegoria
no
Renascimento
como
tcnica
da
inveno
e
da
interpretao
de
enigmas,
ela
ocorre
tambm
como
composio
de
emblemas,
divisas
e
rebus;
como
arte
combinatria
mgica;
como
ornamentao
verbal
e
plstica,
etc.
(HANSEN,
2006,
p.
140).
Desse
modo,
a
tradio
alegrica
afasta-se
da
rigidez
de
procedimentos
que
viam
Deus
como
Causa
e
Efeito
de
todas
as
coisas,
escapando
do
movimento
circular
que
sempre
retornaria
a
um
final
Divino.
Assim,
a
tcnica
alegrica
adota
a
liberdade
artstica
de
submeter-se
aos
diversos
procedimentos
da
inveno
engenhosa
do
artista
e,
portanto,
a
alegoria
beneficiada
como
mtodo
de
interpretao
e
construo
artstica
pela
torrente
de
influncias
culturais
e
msticas
que
inundou
o
mundo
do
Renascimento.
A
ttulo
de
finalizao,
cabem
algumas
consideraes
rpidas
sobre
a
alegoria
no
sentido
de
permanncia
do
conceito,
sobretudo,
a
partir
das
consideraes
do
filsofo
Walter
Benjamin,
o
qual,
por
sua
vez,
procurou
realizar
duas
reabilitaes
do
conceito
de
alegoria.
A
primeira
dessas
reabilitaes
ocorre
com
a
teoria
benjaminiana
sobre
a
alegoria
barroca,
onde
o
filsofo
procede
atravs
de
uma
leitura
alegrica
das
produes
do
teatro
barroco
alemo
destacando,
sobretudo,
a
primazia
da
histria
na
constituio
dessas
peas
e
o
confronto
entre
imanncia
e
transcendncia,
confronto
tpico
da
poca
e
do
homem
barroco.
Ocorre
uma
segunda
reabilitao
da
figura
alegrica
realizada
por
Benjamin
ao
interpretar
a
poesia
baudelairiana,
considerando
Baudelaire
como
um
verdadeiro
alegorista,
que
destrua
alguns
de
seus
poemas
com
a
finalidade
de
construir
outros
a
partir
de
suas
runas.
Nesse
sentido,
a
interpretao
259
260