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O Que É Gnosticismo - Flavio Gordon

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O que é o gnosticismo?

Flávio Gordon

“A ignorância [agnoia] é um escravo. O conhecimento é liberdade. Se conhecemos a verdade,


devemos colher os seus frutos dentro de nós mesmos. Se nos juntamos a ela, conquistaremos a
plenitude” (Evangelho de Felipe, códice 2 da Biblioteca de Nag Hammadi)

Depois dos meus textos sobre o neo-ateísmo, e porque eu abordasse o movimento segundo uma
tradição intelectual que relaciona fenômenos políticos modernos com o antigo gnosticismo dos
primeiros séculos da Era Cristã, leitores pediram-me mais informações sobre este último. O que foi,
afinal, o gnosticismo, e por que ele nos ajuda a compreender o espírito revolucionário
contemporâneo, calcado naquilo que, em obra por mim citada anteriormente, Albert Camus definiu
como uma “revolta metafísica”? Eis o que pretendo responder a partir do artigo de hoje.

Uma das mais antigas fontes existentes sobre o gnosticismo é o primeiro volume de Sobre a
Detecção e Derrota da Assim Chamada Gnosis, de Santo Irineu, bispo de Lyon. Redigida
originalmente em grego por volta do ano 185 d.C., a obra é mais conhecida como Contra Heresias,
e nela Irineu utiliza a expressão “falsamente chamadas de conhecimento” em referência à passagem
bíblica na qual São Paulo adverte seu discípulo Timóteo para que evitasse “conversas vãs e
profanas” dos adeptos de um “falso conhecimento” que os teria “desviado da fé” (Timóteo, 6: 20-
21). Adotando a terminologia paulina, Irineu dedica esse primeiro volume à exposição metódica das
principais doutrinas heréticas de sua época, enquanto os quatro volumes subsequentes tratam de
refutá-las.

Convém notar que a palavra “gnosticismo” não aparece na obra de Irineu. O termo só viria a ser
cunhado no século 17 pelo filósofo da religião Henry More (1614–87), que o aplicara
especificamente a uma heresia da região de Tiatira, atual Akhisar (Turquia). Formava-se o
neologismo a partir do adjetivo grego gnōstikos (“conhecedor” ou “aquele que conhece”) acrescido
do sufixo substantivador -ismo. Em sua obra, Irineu empregara apenas a forma adjetiva: “heresias
gnósticas”.

Embora, é claro, fosse um defensor apaixonado da doutrina cristã, Irineu agiu de modo puramente
descritivo e objetivo ao adotar o termo “heresia gnóstica” (gnōstikē haerēsis), uma vez que a
palavra grega haerēsis significa tão somente “escola de pensamento”. Irineu referia-se a uma escola
de pensamento específica, formada por pessoas autodenominada “gnósticas”, que, em comum,
tinham a crença na posse de um tipo determinado de conhecimento (gnose). Como afirma Hans
Jonas em The Gnostic Religion: “A ênfase no conhecimento como meio de salvação (ou ainda
como a própria salvação), e o argumento da posse desse conhecimento sob a forma de uma doutrina
articulada, é uma característica comum das várias seitas em que o movimento gnóstico se
manifestou historicamente”.

Na esteira de Irineu, outros Pais da Igreja como Hipólito de Roma (170 d.C.-236 d.C.), Tertuliano
(160 d.C.-220 d.C.), Clemente (150 d.C.-215 d.C.) e Orígenes de Alexandria (185 d.C.-254 d.C.),
Eusébio de Cesareia (265 d.C.-339 d.C.), o próprio Santo Agostinho (354 d.C.-430 d.C.), entre
outros, escreveram obras polêmicas contra os heréticos em geral, e contra os gnósticos em
particular. Embora muito úteis para a compreensão do gnosticismo, todavia, essas primeiras fontes
apresentam o inconveniente da parcialidade de seus autores, que, na condição de críticos, talvez
tenham distorcido o sentido original dessa ou daquela doutrina gnóstica. A dificuldade permaneceu
por muito tempo sem solução, e, até meados do século 20, só conhecíamos o gnosticismo de
maneira indireta, via os textos de seus primeiros opositores, os chamados Pais da Igreja.
Pode-se compreender o gnosticismo como um movimento espiritual parasitário, que introduziu
sutis reinterpretações e graves distorções

Tudo começou a mudar quando, em 1945, num deserto próximo à aldeia de Nag Hammadi, no
Egito, camponeses desenterraram uma jarra de aparência arcaica, dentro da qual encontraram um
conjunto de treze códices de papiro embrulhados em couro. Considerada uma das mais importantes
descobertas arqueológicas do século 20, os manuscritos – que passaram a ser conhecidos como
Biblioteca de Nag Hammadi – totalizavam 52 escritos originais, incluindo textos do Corpus
Hermeticum, uma tradução de A República de Platão e, o que nos interessa, vários textos gnósticos
datados aproximadamente do século 4. Atualmente guardados no Museu Copta da cidade do Cairo,
em 1977 os manuscritos ganharam uma tradução para o inglês.

Escritos em copta – língua egípcia que utiliza formas alteradas do alfabeto grego e incorpora em seu
vocabulário grande número de palavras gregas –, acredita-se que os manuscritos sejam traduções de
versões originais em grego, mas para sempre perdidas. A hipótese histórica corrente para a origem
dos manuscritos sugere que, quando, em 367, Santo Atanásio de Alexandria redigiu uma carta
condenando livros apócrifos e heréticos, um grupo de monges de um monastério situado próximo
ao local da descoberta teria escondido os textos dentro de uma jarra, para que não fossem
queimados ou atirados no Nilo.

Várias correntes do gnosticismo estão representadas nos manuscritos de Nag Hammadi e, de forma
geral, o seu conteúdo confirma o testemunho de Irineu e demais heresiólogos. Alguns escritos
gnósticos referidos por Irineu, por exemplo, correspondem quase que exatamente a partes de um
dos textos cópticos chamado Apócrifo de João (códice 2 da Biblioteca de Nag Hammadi). Mas o
estatuto de “gnósticos” pode ser aplicado perfeitamente a outros textos cópticos, cujo conteúdo
mítico e doutrinal é muito semelhante ao Apócrifo de João. Tomados em conjunto, os textos
integram aquilo que os estudiosos costumam chamar de “gnosticismo clássico” ou “gnosticismo
sethiano” (em referência a Seth, terceiro filho de Adão, que em alguns textos gnósticos assume o
papel de progenitor de uma “raça” de pessoas destinadas à salvação mediante o conhecimento de
sua mensagem).

O “gnosticismo clássico” refere-se à inclinação cristã tomada pelo gnosticismo, correspondendo à


versão dos Padres da Igreja segundo a qual ele era essencialmente uma heresia cristã. Esses
primeiros heresiólogos restringiram suas investigações e refutações aos sistemas gnósticos que: ou
tivessem brotado diretamente do solo do cristianismo (como o gnosticismo do místico Valentim,
chamado de gnosticismo valentino); ou incorporado a figura de Jesus Cristo em suas doutrinas
(como os Ofitas ou Naassenos, segundo os denominava Hipólito); ou ainda que, graças a um
fundamento judaico comum, estivessem próximos o bastante para serem percebidos como rivais e
deturpadores da mensagem cristã (como a doutrina de Simão Mago de Samaria, a quem Irineu
considerava o pai do gnosticismo clássico). Atualmente, a literatura especializada vem ampliando
esse escopo, ao sugerir a existência de um gnosticismo judeu pré-cristão e de um gnosticismo pagão
(helenista), dando conhecimento também de fontes sobre os mandeanos (o mais notável exemplo de
gnosticismo oriental fora da órbita helenista) e os maniqueístas, discípulos do profeta persa Mani.

Há muita especulação e controvérsia sobre as origens históricas do gnosticismo. Na literatura


especializada, duas grandes hipóteses têm se confrontado. Os primeiros Pais da Igreja – e, de forma
independente, o filósofo neoplatônico Plotino (205 d.C.-270 d.C.) – enfatizaram a influência, sobre
um pensamento cristão ainda não plenamente consolidado, de interpretações supostamente
distorcidas da filosofia de Platão. Já a hipótese alternativa, mais recente, sugere origens helênicas,
babilônicas, egípcias e iranianas, que teriam se combinado, tanto entre si quanto com elementos
judaicos e cristãos, para compor a multiplicidade do gnosticismo.
Estudiosos como Birger A. Pearson, por exemplo, apontam para um solo cultural judaico de onde
teriam brotado o cristianismo e o gnosticismo. Segundo o autor, estudos comparativos sobre o mito
básico contido no manuscrito Apócrifo de João indicam que ele foi composto a partir de uma
interpretação inovadora de tradições bíblicas e judaicas. Escreve Pearson: “É mais provável que o
gnosticismo tenha surgido de um meio judaico, e só depois entrado em contato com o cristianismo,
do que de dentro do cristianismo primitivo. Se se quiser usar o termo heresia nesse contexto, pode-
se dizer que tanto o cristianismo quanto o gnosticismo surgiram como heresias judaicas”.

Por sua vez, Hans Jonas afirma que as descobertas dos textos cópticos em Nag Hammadi sugerem
influências de um ocultismo judaico heterodoxo, sendo possível, inclusive, observar certas
conexões entre o gnosticismo e os primórdios da Cabala. A hipótese histórica avançada por Jonas
abrange um longo escopo temporal, remontando aos tempos do império de Alexandre Magno (356
a.C.-323 a.C.), que expandiu a cultura helênica – no sentido universalista e civilizatório expresso no
conceito de Paideia – aos reinos conquistados do Oriente.

Entre os anos 334 a.C. e 323 a. C., a conquista de Alexandre provocou uma profunda reviravolta na
história do mundo antigo, resultando numa unidade cultural até então inédita por suas proporções,
unidade que durou cerca de mil anos, até ser destruída pela expansão islâmica, e que vinculou
culturalmente o Ocidente (o mundo grego, centralizado em torno do mar Egeu) ao Oriente (a região
das antigas civilizações orientais, do Egito até as fronteiras da Índia). Nas palavras de Jonas: “A
colonização de Alexandre pretendeu desde o início, e como parte de seu próprio programa político,
uma simbiose de um tipo inteiramente novo, que, embora fosse obviamente uma helenização do
Oriente, exigia para o seu sucesso uma certa reciprocidade”.

Portanto, o grande significado da expansão de Alexandre consiste no sentido mesmo da “cultura”


difundida. A universalização da Paideia implicava a percepção de que era possível tornar-se
helênico via educação, e não necessariamente via nascimento. Essa fórmula foi imediatamente
assimilada por homens do Oriente conquistado. Na geração imediatamente seguinte à de Aristóteles,
encontramos já a atuação desses homens no coração mesmo do saber grego. A partir de então, e ao
longo de muitos séculos, o Oriente helênico produziu um contínuo fluxo de homens de origem
semítica, que, com nomes gregos, além de linguagem e espírito gregos, contribuíram para a
civilização dominante. E, embora os antigos centros em torno do mar Egeu continuassem a existir, o
eixo de gravidade da cultura grega universalizada deslocara-se para novas regiões.

Foi do interior dessa metade oriental do mundo helênico que, tempos depois, começaram a surgir
diversos movimentos religiosos cuja característica fundamental era um imenso sincretismo,
constituído sobre um fundo cultural grego bastante homogêneo. De certa forma, esses movimentos
eram uma reação de contracultura tomando corpo no interior de antigas nações conquistadas. Dessa
“onda oriental” fariam parte os diversos sistemas gnósticos vindouros, que representavam a versão
mais radical do sincretismo helenista. Como explica Jonas: “Os sistemas gnósticos incluíam de
tudo: mitologias orientais, doutrinas astrológicas, teologia iraniana, elementos de tradição judaica
(fosse bíblica, rabínica ou ocultista), uma escatologia cristã da salvação, termos e conceitos
platônicos”.

Pode-se, pois, compreender o gnosticismo como um movimento espiritual parasitário, que


introduziu sutis reinterpretações e graves distorções – “exegeses de protesto”, como sugere Kurt
Rudolph – em sistemas religiosos ou filosóficos preexistentes. Os três principais sistemas
metafísicos parasitados foram a filosofia platônica, o judaísmo e o cristianismo. A partir de uma
combinação sincrética entre elementos provenientes dos três, acrescidos de influências iranianas e
egípcias, e ultrapassando fronteiras étnicas e doutrinais, o gnosticismo introduziu um novo princípio
espiritual, discernível por baixo da variedade de suas escolas. Trata-se de um princípio baseado
numa concepção específica do conhecimento como meio de salvação.
Antes de tudo, convém notar que o conhecimento gnóstico (gnōsis) não se confunde com um
conhecimento de tipo intelectual ou teorético (episteme) característico da filosofia grega ou da
ciência moderna. Gnose significa, em última instância, conhecimento de Deus, a quem, por sua
natureza transcendente, não se pode apreender naturalmente, ou seja, com o simples recurso à razão
natural humana. O objeto da gnose inclui tudo aquilo que pertence à esfera divina do ser: a ordem e
a história dos mundos superiores, o destino do homem, e os meios de sua salvação. Portanto, a
atitude mental subjacente a essa espécie de conhecimento é bem distinta da cognição racional
ordinária.

Por um lado, a gnose apresenta-se como experiência de revelação, de modo que a recepção da
verdade, via erudição secreta ou iluminação interior, substitui argumentos racionais e teoréticos. Por
outro, o conhecimento gnóstico não é apenas informação sobre a realidade, mas, porque transforma
a condição humana, exerce uma função no processo de salvação. Daí que a gnose possua um
sentido eminentemente prático. O objeto último da gnose é Deus, e sua presença na alma transforma
o conhecedor (isto é, o gnóstico), tornando-o parte da existência divina. Há, na gnose, algo como
uma confusão entre o sujeito e o objeto de conhecimento.

Como escreve Hans Jonas: “O conhecimento e a conquista do conhecido pela alma são tidos por
coincidentes – esse, aliás, o argumento de todo verdadeiro misticismo. Também é, decerto, o
argumento da theoria grega, mas num sentido diverso. Aí, o objeto do conhecimento é o universal, e
a relação cognitiva é ‘óptica’, isto é, um análogo da relação visual com a forma objetiva, que resta
inalterada pela relação. Já o conhecimento gnóstico trata do particular (pois a divindade
transcendente ainda é particular), e a relação de conhecimento é mútua, isto é, um ser conhecido ao
mesmo tempo, com ativa autoindulgência por parte do conhecido. Lá, a mente é informada pelas
formas que contempla, e enquanto as contempla (ou as pensa). Aqui, o sujeito é transformado (de
alma para espírito) pela união com uma realidade que, de fato, é ela própria o sujeito supremo, e,
falando estritamente, jamais um objeto”.

De acordo com Kurt Rudolph, o gnosticismo postula um conhecimento redentor que reúne num
mesmo bloco o objeto do conhecimento (a natureza divina), os meios de conhecimento (a gnose) e
o próprio conhecedor (o gnóstico). Sendo assim, a gnose diferencia-se não apenas do conhecimento
teorético da filosofia (episteme), mas também da fé (pistis) no sentido cristão tradicional. Se a
gnose consiste na libertação da centelha divina (pneuma, ou “Deus interior”) aprisionada dentro do
homem – o que implica a ascensão do gnóstico ao princípio divino extramundano –, a fé cristã
depende, ao contrário, da confiança direta no Deus que se fez carne, partilhando com os homens a
condição mundana. Se, no primeiro caso, o homem quer “subir” a um reino divino totalmente alheio
ao mundo (theiosis) – daí o gnóstico desprezar o mundo material e o seu próprio corpo como
prisões –, no segundo, inversamente, é Deus quem “desce” ao mundo (kenosis), misturando-se a ele
e andando por entre os homens. Se, pois, o sentido tradicional da fé cristã implica a humanização do
Deus, a gnose promove uma desumanização (no sentido da autodivinização) do homem.

O Deus gnóstico é absolutamente transmundano, sua natureza estranha a este universo, que ele
não criou e nem tampouco governa

O mito central do Gnosticismo parte de uma ideia igualmente central e básica: há, no homem, a
presença de uma “centelha” divina que, oriunda do mundo superior, “caiu” neste mundo terreno – o
mundo do destino –, devendo ser re-despertada por sua contraparte divina. Essa ideia sustenta-se
sobre uma teologia regressiva, que concebe o divino como algo que, em certo momento, entrou em
crise e começou a degenerar, tendo como efeito colateral a criação deste mundo, não por Deus, mas
por um demiurgo maligno e hostil, ele próprio manifestação suprema da degeneração inicial. Não
podendo deixar de se interessar pelo resultado dessa crise, o Deus extramundano procura recuperar
o resquício inviolável (incorrupto pela matéria) dessa divindade decaída – a “centelha”. Tudo isso,
evidentemente, compõe uma teologia, uma cosmologia, uma antropologia e uma escatologia
específicas.

Um dos atributos principais do pensamento gnóstico é um dualismo radical que informa a relação
de Deus com o mundo e, por derivação, do homem com o mundo. O Deus gnóstico é absolutamente
transmundano, sua natureza estranha a este universo, que ele não criou e nem tampouco governa, e
com o qual mantém uma relação antitética. O reino divino da luz, autocontido e distante, opõe-se ao
cosmos, o domínio da escuridão. O cosmos, por sua vez, é obra de poderes (ou potestades)
inferiores que, embora sejam, de forma mediada, descendentes do Deus transmundano, não mais o
reconhecem e obstruem o seu conhecimento. As potestades, criaturas mesquinhas e ciumentas que
criaram e governam o mundo, são frequentemente chamadas de Archons. Em alguns sistemas
gnósticos, os Archons são liderados por um demiurgo, que é o verdadeiro criador do cosmos. Os
Archons são também concebidos como carcereiros cósmicos, que bloqueiam a comunicação entre
este mundo e o Além.

O dualismo gnóstico apresenta variações importantes conforme as diferentes escolas. Grosso modo,
dizem respeito à questão da origem do mal, podendo ser agrupadas em dois grandes “tipos” de
dualismo. O primeiro, observado nos sistemas que integram o Gnosticismo clássico (representados,
como vimos, na Biblioteca Nag Hammadi), é chamado por Hans Jonas de “tipo Sírio-Egípcio”.
Trata-se de um dualismo marcado por uma concepção monística do princípio divino – que, como
vimos, gera o cosmos-prisão a partir de uma crise interna degenerativa. Intrínseca a esse “dualismo
sobre fundo monístico” (como o chama Kurt Rudolph) é a doutrina gnóstica do Deus desconhecido,
situado além de tudo o que é visível e sensível, e habitando um domínio transcendente chamado
Pleroma, onde também vivem anjos e outros seres celestiais (sejam ideias personificadas ou
hipóstases). O Pleroma opõe-se ao cosmos-prisão como a luz à escuridão, o corpo (que inclui a
‘alma’, ou psyche) ao espírito (pneuma), a gnose à ignorância.

O outro tipo de dualismo, apelidado por Hans Jonas de “Iraniano”, é ilustrado pelos sistemas
gnósticos identificados como de origem persa (daí o nome), tais como o Maniqueísmo e o
Mandeanismo. Há neles dois princípios básicos e opostos existindo desde sempre, descritos
mitologicamente como o reino da luz e o reino da escuridão, ou o Bem e o Mal. São herdeiros de
uma antiga metafísica persa, cujo representante mais notável é o pensamento dualista do profeta
Zoroastro (ou Zaratustra). Se, para o dualismo “Sírio-Egípcio”, o Mal corresponde a um nível
decaído do Ser, um elemento degradado da divindade, para o dualismo “Iraniano”, ele é um
princípio permanente.

De todo modo, apesar de suas diferenças, há algo de comum nos dualismos gnósticos que os
distinguem de outros sistemas dualistas tradicionais, incluindo o próprio Zoroastrismo. Segundo
este, a oposição entre Bem e Mal não coincide com uma dicotomia entre espiritual e corporal (ou
material), uma vez que os polos opostos se acham misturados no mundo material e corpóreo. Não
há uma disjunção absoluta entre o Bem e o mundo. Da mesma forma, no dualismo platônico entre o
mundo das ideias e o mundo sensível, não encontramos nada parecido com a hostilidade gnóstica à
realidade mundana. Como mostra Voegelin em Science, Politics and Gnosticism, o mundo de Platão
era um cosmos bem-ordenado, onde o homem helênico sentia-se em casa. Assim também, o
dualismo judaico-cristão entre Bem e Mal, ou entre Deus e Diabo, não implica nenhuma associação
inequívoca do mundo (ou do corpo) com o Mal. Ao contrário, o mundo judaico-cristão é aquele
que, como diz o Gênese, Deus criou e achou bom.

Diferente dos anteriores, o dualismo gnóstico tem como característica predominante um radical
anticosmismo, ou seja, uma avaliação radicalmente negativa do mundo visível e de seu criador,
agrupados, ambos, num campo semântico que inclui noções como as de “escuridão”, “crueldade”,
“ignorância”, “envenenamento”, esquecimento”, “desespero”, “solidão”. O mundo criado pelo
demiurgo maligno é completamente apartado do “verdadeiro” Deus.

Esse desprezo gnóstico pelo mundo, decorrente da associação do material com o maligno, chamou a
atenção de Plotino, filósofo neoplatônico que notou aí uma deturpação das ideias originais de
Platão. Em seu tratado contra os Gnósticos – ou “aqueles que afirmam que o Criador do Cosmos e o
próprio Cosmos são malignos” (Enéadas II, 9) –, o filósofo elabora uma crítica contundente ao
anticosmismo, afirmando que a gradação descendente da ordem do Ser (das formas puras às coisas
sensíveis) não justificaria em hipótese alguma a rejeição dos níveis ontológicos inferiores. Em suas
palavras: “Os que reprovam a constituição do cosmos não compreendem o que fazem, ou para onde
os levará a sua audácia. Não entendem haver uma ordem sucessiva de primários, secundários,
terciários, e assim continuamente até as origens. Não percebem que nada pode receber a culpa de
ser inferior aos fundamentos primeiros; que só podemos aceitar, humildemente, a constituição do
todo, e seguir o melhor possível até a causa primeira, recusando o espetáculo trágico, tal como os
gnósticos o enxergam, das esferas cósmicas – que, na verdade, são em tudo suaves e graciosas. E o
que, afinal, há de tão terrível nessas esferas a ponto de assustar pessoas pouco acostumadas a
pensar?... Não temos o direito de pedir que todos os homens sejam bons, ou lamentar que essa
virtude universal seja impossível: isso seria repetir o erro de confundir a nossa esfera de existência
com o Ser Supremo, e tratar o mal como uma espécie de fracasso do conhecimento”.

Plotino faz aí um alerta prévio contra a imaginação utópica. Sua polêmica com os gnósticos é tão
mais significativa na medida em que os elementos da cosmologia gnóstica são muito semelhantes à
nova cosmologia platônica, esboçada no Timeu, e mais tarde desenvolvida por Ptolomeu em
Almagesto. Trata-se do famoso modelo geocêntrico – mais tarde superado pelo heliocentrismo
copernicano – que colocava a Terra no centro do universo, sendo circundada por sete esferas,
ocupadas por Lua, Mercúrio, Vênus, Sol, Marte, Júpiter e Saturno (daí a alusão de Plotino ao
mencionar o terror que elas infligiam aos gnósticos). Acima da sétima esfera, havia ainda uma
oitava, a das estrelas fixas. Foi sobre esse fundo cosmológico comum a toda a antiguidade pré-
copernicana que os gnósticos propuseram a sua interpretação particular.

Na visão tradicional de Platão, o cosmos era uma totalidade perfeitamente ordenada. Segundo a
célebre expressão de Leibniz – que, nesse aspecto, escrevendo séculos mais tarde, manteve-se fiel
ao espírito platônico –, o cosmos atual seria “o melhor dos mundos possíveis”. Para os gnósticos, ao
contrário, as esferas planetárias são habitadas por criaturas demoníacas (os Archons), que,
governando o cosmos de forma tirânica, impediriam a sua transição para o domínio supracósmico e
divino (o Pleroma). O universo gnóstico, o domínio dos Archons, é concebido como uma vasta
prisão, cuja masmorra central é a Terra, cenário onde se desenrola o drama da existência humana.
Nesse esquema, portanto, o homem vê-se encarcerado no mais profundo interior do cosmos. Ao
redor e acima da Terra estão as esferas cósmicas, dispostas em círculos concêntricos cada vez mais
inclusivos.

Usualmente, como dito acima, as esferas são em número de oito (os sete planetas do sistema solar
(hebdomas) mais a camada das estrelas fixas), mas em muitos sistemas gnósticos há uma tendência
a multiplicar essa estrutura, fazendo o esquema expandir-se notavelmente, até o ponto em que as
esferas, ou “céus”, são contados em centenas. Independentemente do número de esferas, todavia, o
panorama geral é a de uma imensa vastidão que separa o homem do Outro Mundo e de sua
verdadeira natureza divina. Essa vastidão não se mede apenas por uma distância espacial, mas,
sobretudo, pela atuação constante de forças demoníacas. A vastidão e a multiplicidade do sistema
cósmico expressam o quão distante de Deus, e de sua própria essência, está o homem. Daí decorre
toda uma antropologia filosófica e um sistema moral que merecem ser mais bem examinados no
próximo artigo.
“A soteriologia gnóstica é elitista: ela presume que a salvação só está disponível a um segmento
privilegiado da humanidade” (Luciano Pellicani, Revolutionary Apocalypse: Ideological Roots of
Terrorism)

Vimos, que a antiga cosmologia gnóstica era geocêntrica, concebendo a Terra como o centro do
universo, rodeada por esferas governadas pelos Archons – potestades mesquinhas e ciumentas que
criaram e governam o mundo. Prometemos extrair as consequências antropológicas e morais dessa
cosmologia, e é o que faremos a seguir.

As esferas são, portanto, os tronos dos Archons, que dominam o mundo de forma coletiva (e cada
um, individualmente, em sua própria esfera), atuando como carcereiros cósmicos. Seu regime
tirânico (e, por vezes, o cosmos-prisão como um todo) é frequentemente designado como
heimarmenē, palavra grega para “destino”, compreendido especificamente como sujeição humana a
forças incontroláveis e caprichosas. Na condição de guardião de sua esfera, cada Archon bloqueia a
passagem da alma que procura ascender após a morte, assim evitando a sua fuga do mundo, e o
consequente retorno a Deus.

Os Archons são também os criadores do mundo, ainda que, em algumas correntes do gnosticismo,
essa prerrogativa seja reservada a uma liderança única, o demiurgo – artífice do universo, segundo o
Timeu de Platão. No gnosticismo clássico, o demiurgo costuma ser retratado de forma negativa,
com as características pretensamente implacáveis de Javé, o Deus do Antigo Testamento, com quem
os homens mantêm uma relação de rivalidade e hostilidade.

A cosmologia gnóstica é inseparável de uma antropologia para a qual o homem é um prisioneiro por
excelência, primeiro do cosmos, mas também do seu próprio corpo. Segundo essa antropologia, o
homem é feito de carne/matéria corporal (hyle), alma (psyche) e espírito (pneuma). As suas carne e
alma respondem por sua natureza mundana, enquanto o seu espírito é um resquício de sua origem
extramundana, ou, mais precisamente, divina. Assim, tanto o corpo quanto a alma são tidos por
frutos decaídos das potestades cósmicas. E é graças a eles, corpo e alma, que o homem se mantém
preso ao mundo, restando sujeito às forças imprevisíveis do destino.

Encapsulado no corpo e na alma está o espírito (pneuma), também chamado de “centelha” – uma
porção da substância divina que, originária do além, despencou no mundo atual. Foi para nele
manter aprisionada a centelha divina que os Archons criaram o homem. Se, no plano
macrocósmico, o homem acha-se enclausurado pelas esferas celestes, no plano microcósmico, o
pneuma está encarcerado dentro do corpo e alma humanos. Em seu estado não-redimido, o pneuma
está imerso na alma e na carne, inconsciente de si próprio, amortecido, adormecido ou intoxicado
pelo veneno do mundo – em suma, ignorante. O seu despertar e a sua redenção dependem da gnose,
pois o gnóstico só se liberta do cosmos-prisão quando compreende o pneuma como a essência do
seu verdadeiro ser.

A formação de vanguardas é, precisamente, um fenômeno típico dos movimentos


revolucionários, tanto medievais quanto modernos

A natureza radical do dualismo gnóstico também determina a sua escatologia. Se o Deus


transcendente é estranho a este mundo, o pneuma também o é, e todo o esforço gnóstico consiste
em libertar a essência humana das grades do mundo hostil, fazendo-a retornar ao reino originário da
luz. A condição necessária para tanto é que o gnóstico adquira conhecimento do Deus transmundano
e da sua própria situação. O que impede essa tomada de consciência – ou insight gnóstico – é a
ignorância (agnoia), a essência mesma da existência mundana. O Deus transcendente é
desconhecido neste mundo, sendo impossível conhecê-lo por meio deste. Exige-se, para tanto,
alguma forma de revelação, necessidade fundada na própria condição humana perante o cosmos. A
revelação altera essa situação em seu aspecto central – a ignorância. Portanto, já é, ela mesma, parte
decisiva no processo de salvação.

Quem carrega a mensagem de salvação é um mensageiro do reino transcendente da luz, que


atravessa as esferas cósmicas, sobrepuja os Archons, desperta o pneuma de sua letargia mundana e
lhe transmite a gnose sobre o caminho de volta a Deus. Equipada com essa gnose esotérica, e após a
extinção da carne, a alma inicia a sua ascensão, deixando para trás, a cada esfera cósmica
ultrapassada, as “vestimentas” psíquicas responsáveis por seu aprisionamento. Com isso, despido de
todas as amarras mundanas, o pneuma alcança o Deus transmundano, reunindo-se novamente à
substância divina original. De um ponto de vista teológico, o processo faz parte da restauração de
uma totalidade divina perdida, e é a fim de recuperar a “centelha divina” decaída que os
mensageiros supracósmicos intervêm na história.

Como nota Hans Jonas, a cosmovisão gnóstica tem implicações profundas sobre o campo da
moralidade. Em sua vida mundana, o pneumático (ou seja, o portador da gnose) vê-se como um ser
apartado do conjunto da humanidade. A moralidade gnóstica é marcada pela hostilidade ao mundo,
bem como por um profundo desprezo por todo vínculo mundano. Desse princípio geral costumam
derivar duas atitudes existenciais opostas, mas no fundo complementares: o ascetismo e a
permissividade.

O gnóstico ascético deduz da posse da gnose a necessidade de evitar a contaminação pelo mundo,
procurando reduzir ao mínimo o seu contato com a realidade atual. Do mesmo princípio, o gnóstico
permissivo deriva o privilégio autoconcedido da liberdade absoluta. Não é mero acaso que, no
decorrer da história, diversas correntes gnósticas tenham lançado ataques frontais aos mandamentos
mosaicos, com suas conhecidas fórmulas imperativas do tipo “Farás” e “Não farás”,
compreendidas, nessa perspectiva, como manifestações da tirania cósmica. Para o gnóstico, as
sanções associadas à transgressão desses mandamentos só podem afetar o corpo e a alma, ou seja,
os elementos mundanos da natureza humana. Todavia, uma vez que o pneumático não está
submetido ao heimarmenē (o “destino”), ele se sente liberto do jugo da lei moral. A ele, diria
Dostoievski, tudo é permitido, pois o pneuma desperto torna-o imune aos cruéis desígnios dos
Archons.

É o tipo permissivo, mais que o ascético, quem revela com nitidez o aspecto niilístico presente na
negação gnóstica do mundo. De todo modo, ascese e permissividade são duas faces de uma mesma
moeda, cunhada na forja do anticosmismo. Odiando o mundo atual, o ascético pretende fugir para
um outro; odiando-o não menos, o permissivo só é mais impaciente, pretendendo transformá-lo por
completo, à imagem de uma realidade futura que ele imaginar conhecer, e à qual crê pertencer de
antemão.

Em The Pursuit of the Millennium, Norman Cohn – que não trata diretamente do gnosticismo, mas
do milenarismo medieval – parece dar razão a Hans Jonas. Escrevendo sobre uma heresia cristã dos
séculos 13 e 14 conhecida como “Espírito Livre”, o autor ressalta o seu caráter gnóstico,
conferindo-lhe um lugar de destaque no conjunto das escatologias revolucionárias que, dali em
diante, viriam a se alastrar por toda a Europa.

Os heréticos do “Espírito Livre” eram místicos anárquicos, propondo uma afirmação tão impetuosa
da liberdade que, nas palavras de Cohn, acabou resultando na “negação total de qualquer tipo de
comedimento ou limitação”. De certa forma, podem ser considerados precursores remotos de
Bakunin e Nietzsche. Nas palavras de Cohn: “Individualistas extremos como esses podem
facilmente se converter em revolucionários sociais – e assaz efetivos – quando em face de uma
situação potencialmente revolucionária. O Super-Homem de Nietzsche, não importa o quão
vulgarizado, certamente povoou a imaginação de muitos dos ‘boêmios armados’ que fizeram a
revolução nacional-socialista; e vários dos expoentes da revolução mundial contemporânea devem
mais a Bakunin do que a Marx. Na baixa Idade Média, foram os adeptos do Espírito Livre que
conservaram, como parte de seu credo na emancipação total, a única doutrina revolucionária então
existente. E foi a partir de suas ideias que surgiram doutrinários para inspirar a tentativa mais
ambiciosa de revolução social que a Europa medieval já havia testemunhado”.

A descrição dos livre-espiritualistas oferecida por Cohn ilustra exemplarmente o tipo permissivo de
gnóstico descrito por Jonas. Os adeptos do “Espírito Livre” eram extremamente subjetivistas, não
reconhecendo outra autoridade que não a de suas próprias experiências pessoais. Em sua visão, a
Igreja era um obstáculo à salvação, quando não um inimigo tirânico, instituição ultrapassada que
deveria ser substituída por uma comunidade dos “santos”, concebida como um vaso ou receptáculo
para o Espírito Santo.

Observando a autoimagem dos livre-espiritualistas, é possível compreender melhor a persona do


moderno revolucionário ocidental. Como explica Cohn: “O núcleo da heresia do Espírito Livre está
na atitude do adepto para consigo mesmo: ele acredita ter alcançado um estado tão absoluto de
perfeição que passa a se ver como incapaz de pecar. Embora as consequências práticas dessa crença
possam variar, uma delas é certamente o antinomianismo ou o repúdio a normas morais. O ‘homem
perfeito’ pode sempre concluir que lhe é permitido, ou mesmo mandatório, fazer tudo aquilo
comumente proibido aos demais”.

Cohn nota ainda que, para os heréticos do “Livre Espírito”, não há realmente uma oposição entre
ascese e permissividade, já que ambas as atitudes constituem etapas diferentes de um contínuo
progresso espiritual: a ascese prepara o caminho para a mais completa permissividade moral. Para
os livre-espiritualistas, a fase final de desenvolvimento do espírito era a união completa do homem
com Deus, sendo que, a partir de então, os seus atos estariam acima de todo juízo humano, tidos por
manifestações diretas do princípio divino. Como escreve o autor: “Essa deificação da alma é
possível porque a alma existiu em Deus por toda a eternidade. A alma é indistinta de Deus, assim
como a chama, do fogo. Ela provém de Deus, e a ele retorna como uma gota d’água vem e retorna
ao mar. Com efeito, Deus é tudo o que há. Assim, ao ser aniquilada em Deus, a alma é reintegrada
ao seu ser verdadeiro e originário”.

A formulação de Cohn sobre os livre-espiritualistas corresponde também à criação dostoievskiana


do “homem-ideia”, pela qual o romancista russo buscava descrever a autopermissividade dos
niilistas e revolucionários do século 19. E remete também, é claro, àquela sensação quase auto-
hipnótica conferida pela posse do pneuma, sobre a qual falava Hans Jonas ao escrever sobre a
moralidade gnóstica.

Uma consequência importante dessa percepção gnóstica deve ser destacada. Como nota Jonas, há
no gnosticismo a ideia de um insight que separa o seu portador (ou portadores) do resto da
humanidade. Trata-se, portanto, de uma percepção da realidade que conduz à formação de elites ou
vanguardas revolucionárias, abrangendo todos os porta-vozes do futuro transfigurado. A formação
de vanguardas é, precisamente, um fenômeno típico dos movimentos revolucionários, tanto
medievais quanto modernos. E, como veremos, reside aí a diferença crucial entre a mística
gnóstico-milenarista-revolucionária e a doutrina cristã, que rasgou o véu do templo, desafiou o
farisaísmo e rejeitou o tipo de soteriologia elitista característica do gnosticismo.

“Falei abertamente ao mundo; sempre ensinei nas sinagogas e no templo, onde todos os judeus se
reúnem. Nada disse em segredo” (João 18:20)

Terminamos apontando para o caráter essencialmente elitista e antropocêntrico da soteriologia (isto


é, a doutrina da salvação) gnóstica, uma característica que, de alguma maneira, foi herdada pelo
milenarismo medieval e, mais tarde, secularizada, pelas religiões políticas revolucionárias da
modernidade. Trata-se de uma soteriologia fundamentalmente distinta da tradicional doutrina cristã
da salvação, essencialmente teofânica e universalista. Como explica, em obra clássica, o historiador
judeu J. L. Talmon: “Neste respeito, todas as tendências messiânicas consideraram o cristianismo, e
por vezes a religião como tal, mas sempre a forma histórica do cristianismo, como seu arqui-
inimigo. De fato, sempre se proclamaram seus substitutos. Suas próprias mensagens de salvação
eram agudamente incompatíveis com a doutrina básica cristã, a do pecado original, com sua visão
da História como a história da queda e a negação do poder humano de obter salvação por seu
próprio esforço”.

A diferença entre o conhecimento (gnosis) e a fé (pistis), que havíamos visto de passagem


anteriormente, ajuda-nos a perceber a distinção. A gnosis é sempre um conhecimento iniciático,
secreto, restrito a um grupo seleto de pessoas: os gnósticos, ou pneumáticos. A pistis, ao contrário,
representa a experiência do senso comum, a fé na verdade revelada, em forma carnal, aos homens
de “todas as nações, tribos, povos e línguas” (Apocalipse 7:9).

Comentando sobre a oposição, oriunda dos primórdios do cristianismo, quando a nova religião
começava a se definir doutrinariamente, o filósofo Jerry S. Clegg explica: “Todos os participantes
nas disputas teológicas nos primeiros séculos da era cristã concordavam sobre quem era Jesus…
Não concordavam, todavia, sobre o modo como a salvação seria alcançada. Com efeito, o debate da
época girava em torno da questão sobre que tipo de religião era o cristianismo. O caminho
percorrido pelo cristão devoto seria o dá fé (pistis) ou o do conhecimento (gnosis)? No primeiro
caso, o cristão teria de ser um bom crente – alguém convicto de que a lealdade devocional a uma
divindade pessoal capaz de responder à prece, ouvir a confissão e garantir o perdão dos pecados é a
chave para a salvação. No segundo, o cristão deveria ser um bom conhecedor – alguém com a
fórmula correta de como salvar a si mesmo. Naquele, é Jesus quem salva. Neste, é o conhecimento
da verdade”.

A negação da fé em nome de um conhecimento de Deus que se confunde, no fim das contas, com
um autoconhecimento (afinal, no gnosticismo, se autoconhecer é descobrir a existência de um Deus
interior, a “centelha” ou pneuma) constitui o trajeto que liga, num primeiro momento, o gnosticismo
ascético ao gnosticismo político e, num segundo momento, o gnosticismo como um todo aos
milenarismos medieval e moderno. E é justo essa negação que diferencia o gnosticismo e o
milenarismo do cristianismo, do qual são, no sentido mais técnico do termo, heresias.

Ao contrário do dualismo gnóstico-milenarista-revolucionário, o dualismo cristão não é radical,


mas, por assim dizer, paradoxal

A disjunção absoluta entre a imanência e a transcendência, entre o tempo e a eternidade (tal como
proposta pelos sistemas gnósticos mais radicalmente dualistas), é a contrapartida da conjunção
absoluta entre o tempo e a eternidade (tal como proposta pelo milenarismo). Ambos os casos
representam extremos opostos à escatologia cristã, que, nesse sentido, propõe uma tensão
permanente entre o tempo e a eternidade, mantendo a matéria e o espírito, por assim dizer, a uma
boa distância: nem irremediavelmente apartados, nem absolutamente confundidos. O cristianismo
não propõe uma fuga do tempo em direção à eternidade, nem tampouco uma realização da
eternidade no tempo. Em lugar disso, sugere uma relativização do tempo a partir da eternidade.
Como na célebre fórmula latina, trata-se de encarar o tempo sub specie aeternitatis, ou da
perspectiva da eternidade.

Ao contrário do dualismo gnóstico-milenarista-revolucionário, o dualismo cristão não é radical,


mas, por assim dizer, paradoxal. A antropologia daí resultante é realista, não utópica. A encarnação
de Cristo é a materialização dessa tensão cristã entre a transcendência e a imanência. Como explica
o teólogo Joe E. Morris: “A heresia implica uma falta de tensão dialética. O dualismo, ou heresia,
destrói a tensão. Nesse sentido, é irrealista e dado à fantasia. O dualismo reflete uma simplificação
extrema da realidade. Fala do bem sem falar do mal, do divino sem falar do humano, da alma sem o
corpo, do espírito sem a matéria. A encarnação significa, e mantém, a tensão dialética. Rejeita a
fantasia, o sentimentalismo, a superficialidade e o wishful thinking. Aceitar a encarnação significa
deixar de ver o mundo como gostaríamos que fosse, e passar e vê-lo como é. Significa ser capaz de
balancear ou pesar o bem e o mal, o espírito e a carne, a luz e a escuridão, a alma e o corpo. Com a
encarnação, podemos falar das polaridades normais da vida, porque fazem parte do todo. A
demanda definitiva dessa unidade de contrários, o desafio último da fé, é o Deus feito homem, Jesus
Cristo. Porque se baseia no conhecimento e na ausência de tensão dialética, o dualismo não requer
um salto de fé. Já a encarnação, sim. Com ela, já não temos respostas claras. Eis a demanda e o
desafio da encarnação, da fé. É uma aventura arriscada, uma peregrinação pelo mundo, cuja única
garantia é Emanuel, Deus conosco. Trata-se de um envolvimento com o mundo, e não de uma fuga
fantasmagórica do mundo”.

Como nota Norman Cohn em obra já citada por mim, o milenarismo pode assumir as mais
diferentes feições, que variam do ascetismo pacifista e absolutamente espiritualizado ao
militantismo mais agressivo e materialista. A despeito de suas diferenças, contudo, todas estão
enraizadas numa percepção essencialmente negativa do mundo e, consequentemente, num conceito
particular de salvação. Segundo Cohn, a salvação milenarista deve ser: 1) coletiva, destinada à
comunidade dos “eleitos” ou “ungidos”; 2) mundana, prevista para se realizar neste mundo, e não
no outro; 3) iminente, uma vez que se dará num tempo próximo e de forma súbita; 4) total, na
medida em que promoverá uma transformação completa da vida na terra, visando não apenas ao
aperfeiçoamento do presente, mas nada menos que à própria perfeição; e, por último, 5) miraculosa,
no sentido de ser realizada com o auxílio de agentes sobrenaturais.

Segundo Eric Voegelin, uma tensão entre duas visões antagônicas surge já nos primórdios do
cristianismo, ainda indefinido entre uma nova religião e um movimento messiânico judeu. As
primeiras comunidades cristãs oscilavam entre a expectativa escatológica da Parousia – a “segunda
vinda de Cristo”, que instauraria o Reino de Deus na terra – e a concepção da Igreja como a
realização histórica do Apocalipse. Uma vez que a Parousia não ocorreu naquele momento, a Igreja
evoluiu de uma escatologia do Reino de Deus na história para uma escatologia fundamentalmente
transmundana e trans-histórica. Para Voegelin, essa evolução significou a separação entre a essência
religiosa do cristianismo e a sua origem histórica

O grande problema do cristianismo primitivo foi o de como conciliar os movimentos quiliastas com
a ideia de uma existência permanente da Igreja. Afinal, se o cristianismo fosse assentado sobre o
desejo de libertação desse mundo, se os cristãos vivessem na expectativa constante do fim da
história e da instauração iminente do Reino de Deus sobre a terra, a Igreja estaria reduzida a uma
comunidade efêmera de homens eternamente à espera, aguardando ansiosos que o grande evento
pudesse ocorrer durante o curso de suas vidas.

A principal solução teórica para a questão foi proposta por Santo Agostinho em A Cidade de Deus,
obra que representa um verdadeiro tour de force na história da exegese cristã. No capítulo 7 do
Livro 20, Agostinho escreve sobre as “duas ressurreições” referidas nas Sagradas Escrituras: a da
alma, que tem lugar no tempo histórico; e a do corpo, que ocorrerá no Fim dos Tempos, com o Juízo
Final. Diz o filho de Santa Mônica: “No livro do Apocalipse, João, o evangelista, também falava
dessas duas ressurreições; mas falava de tal modo que a primeira delas foi mal compreendida por
algumas pessoas, sendo, ademais, convertida em fábulas ridículas… A partir dessa passagem,
alguns entenderam que a primeira seria uma ressurreição corporal. Ficaram particularmente
excitados, entre outras razões, pela referência aos mil anos”.
Agostinho tinha em mente a passagem no livro do Apocalipse em que o apóstolo João cita os
homens (em especial, os mártires) cujas almas reinariam com Jesus “durante mil anos”. O bispo de
Hipona propõe, então, uma interpretação perspicaz para o sentido da expressão “mil anos”.
Agostinho sugere que o número deve ser entendido como representando a totalidade do tempo
histórico, simbolizada, como é usual nas Sagradas Escrituras, por um número inteiro. Portanto, ao
falar em “mil anos”, João estaria se referindo ao reino de Cristo em sua Igreja no presente
saeculum, que duraria até o Juízo Final.

Agostinho formulava o sentido especificamente cristão da relação entre tempo e eternidade, pois, ao
contrário do que postula a escatologia gnóstico-milenarista-revolucionária, o Juízo Final cristão não
é concebido como um evento do tempo histórico, mas como a contemplação da temporalidade
inteira (os “mil anos”) pela Eternidade. Mais tarde, no século 4, essa interpretação seria elaborada
por Boécio, que definiu a eternidade como “a posse plena e simultânea de todos os momentos do
tempo”. Ou seja, a eternidade é a estrutura da possibilidade universal do tempo. Quando São Paulo
diz que “n’Ele vivemos, nos movemos e somos” (Atos, 17: 28), está descrevendo precisamente a
relação metafísica entre tempo e eternidade, na qual Deus aparece como moldura das ações
humanas na história.

Diante disso, percebe-se o quão distante a escatologia cristã está das heresias que o parasitaram,
cujas manifestações intelectuais modernas são exemplificadas pelas mais variadas filosofias da
história – seja a de Hegel, a de Comte, a de Marx, ou a de Fukuyama –, que, independente de suas
orientações ideológicas e teóricas específicas, buscam apreender um sentido da história imanente a
essa mesma história. Mas como uma criatura histórica, para quem a história é totalmente aberta e
indefinida, poderia apreender, de dentro dela, o seu sentido integral? A única resposta possível é:
projetando uma Utopia e julgando-a mais real do que a realidade atual. Nada mais gnóstico:
incerteza e angústia em relação ao estado presente de coisas, convicção e júbilo em relação ao outro
mundo, seja ele metafísico e permanente (como nos dualismos gnósticos clássicos), ou localizado
num futuro histórico iminente (como nas utopias milenaristas e revolucionárias).

Se o Juízo Final bíblico sinaliza a passagem do tempo à Eternidade, o Apocalipse revolucionário é


descrito como um momento do tempo histórico, momento singular, sem dúvida, pois considerado o
ponto culminante de toda a história passada. Se, na escatologia cristã tradicional, os homens são
iguais nesse mundo e serão separados apenas na Eternidade, na escatologia gnóstico-milenarista-
revolucionária, os homens são separados aqui e agora, pois os “eleitos” agem de antemão como
juízes da história, em razão de terem vislumbrado, por sobre os ombros do restante da humanidade
impura, a luz que vem de Utopia.

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