Mons - De.segur O Inferno
Mons - De.segur O Inferno
Mons - De.segur O Inferno
Revista
do Instituto de Letras
da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul
Volume 30, Número 59, 2015
INSTITUTO DE LETRAS
Diretora
Jane Fraga Tutikian
Vice-Diretora
Maria Lucia Machado de Lorenci
REVISTA ORGANON
Diretora Apoio
Maria Cristina Leandro Ferreira Programa de Apoio à Editoração
de Periódicos/UFRGS
Comissão Editorial
Rita Lenira de Freitas Bittencourt Capa
Solange Mittman Paulo Antonio da Silveira
Organizadores Impressão
Rafael Brunhara e Leonardo Antunes Gráfica da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul
Editoração
Leandro Roberto Bierhals Bezerra
CONSELHO EDITORIAL
Missão/Política Editorial
ORGANON
Instituto de Letras
Pede-se permuta Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Pídese canje Av. Bento Gonçalves, 9.500 Caixa Postal 15002
On demande échange 91540-000 Porto Alegre, RS
We ask for exchange Fone (51) 3308-6697 Fax (51) 3316-7303
Wir bitten um autausch e-mail: organon@ufrgs.br
Si richiede lo scambio seer.ufrgs.br/organon
Sumário
Editorial /7
Apresentação /9
O tema da justiça e a velha “novidade” da Odisseia / Justice and the old “new
spirit” of the Odyssey
André Malta Campos
Entry-marking ἀλλὰ γάρ in greek tragedy and comedy/ A partícula ἀλλὰ γάρ
como marca de ingresso em cena na tragédia e comédia gregas
José Marcos Macedo
Sulpícia e as elegias amorosas de uma jovem romana/ Sulpicia and the erotic
elegies of a roman girl
João Angelo Oliva Neto
Resenha
Seção livre
Ifigênia em Táurida
Jaa Torrano
Editorial
Apresentação
1 Doutorando em Letras Clássicas pela USP. Professor de Língua e Literatura Grega na UFRGS.
2 Doutor em Letras Clássicas pela USP. Professor de Língua e Literatura Grega na UFRGS.
1 Pós-Doutor em Letras Clássicas pela Brown University. Professor de Língua e Literatura Gre-
ga na FFLCH-USP.
16 André Malta Campos
2 O artigo tratava do fragmento sobre a “Eunomia”, de Sólon, e associava seu conteúdo à supos-
ta “nova” noção presente na Odisseia. Ver R. Friedrich, “Thrinakia and Zeus’ ways to men in
the Odyssey”, Greek, Roman, and Byzantine studies 28 (1987): 373-400, p. 375.
3 B. Snell tornou-se o autor emblemático dessa visão, com o seu A descoberta do espírito (título
original: Die Entdeckung des Geistes), de 1946. Uma postura semelhante, mas mais refinada
e complexa, encontramos no livro clássico de H. Fränkel, Poesia e filosofia na Grécia Arcaica
(título original: Dichtung und Philosophie des frühen Griechentums), cuja primeira edição é de
1951. Veja-se o título do último capítulo da parte referentes à épica homérica: “The new mood
of the Odyssey and the end of epic” (tradução de M. Hadas e J. Willlis).
adiante, essa ideia é expressa através de duas fórmulas retiradas dos proê-
mios de cada poema:
Uma vez admitida essa nova relação entre deuses, destino e mortais,
Rüter chama a atenção para o fato de que não se deve descartar a presença
de ideias mais antigas na Odisseia: o “novo pensamento” que percorre o
poema não foi capaz “de penetrar e remodelar da mesma maneira todas as
partes”, ou seja, não foi capaz de produzir uma renovação verdadeiramente
uniforme, que se faria sentir, “em sua expressão mais acabada, não na épi-
ca, mas na lírica e na filosofia”. Para o autor, o antigo e o novo andam lado a
lado na Odisseia, mas, enquanto este é enfatizado, aquele fica em segundo
plano, o que torna bastante aparente “a perda da unidade que tanto impres-
sionava na Ilíada” (RÜTER, 1999, p. 152)
Ainda que tenha publicado sua obra na década de 60 e trabalhe com o
conceito de poesia tradicional, Rüter se revela, essencialmente, um tribu-
tário do enfoque analista – cuja força jamais arrefeceu completamente no
universo da filologia alemã, onde brotou –, pois trabalha com a possibili-
dade de divergências (e diferentes extratos temporais) não só entre a Ilíada
e a Odisseia, mas no interior do próprio poema sobre Odisseu. Sua pro-
posta, é verdade, é mais rica do que as comumente encontradas, porque,
embora defenda um avanço no nível de responsabilidade humana, como
fazem outros, Rüter não enxerga na Ilíada um quadro moral inconsistente
– pelo contrário, para ele o poema de Aquiles apresenta maior unidade,
com sua engrenagem consistente entre crime e castigo. Esse tipo de leitura,
no entanto, acaba fracionando o poema em diversas camadas, levando o
estudioso a agir como um detetive que tem que juntar as diferentes peças
do processo formativo e tentar dar a elas algum sentido, mesmo que esse
sentido seja a divergência ou dissonância. De qualquer maneira, a partir
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 15-30, jan/jun. 2016.
O tema da justiça e a velha “novidade” da Odisseia 19
4 Não concordo com a leitura que Fenik faz do “kaí” do verso 33. Parece-me que ele funciona
aí como intensivo, “precisamente”, e não como um “também” (ver, por exemplo, Od. 2, 64 e Il.
24, 105). De qualquer maneira, está claro que Zeus relaciona os atrevimentos a dores extras,
“além do quinhão”, e que fica implícito que as dores “normais” fazem parte, inevitavelmente,
do destino humano. O que não está claro é que a perseguição de Posídon a Odisseu faça parte
desse segundo tipo de dor, dada “arbitrariamente” por Zeus, como quer Fenik (p. 211).
Conforme se vê, para Fenik o fator central que justificaria essa contradi-
ção é, como ele mesmo diz, com ênfase, “a funcionalidade de cada visão em
seus respectivos contextos”; para ele, não é possível resolver essa contradição
numa conclusão moral única, ainda que as diferentes visões dos deuses tra-
gam, cada uma, sua “preciosa verdade”; ao fim, elas são escolhidas e apresen-
tadas segundo sua “adequação contextual” (FENIK, 1974, p. 224-225).
Como foi dito mais acima, sua explicação para a incongruência moral
se baseia, de modo plausível, na característica junção de elementos diver-
sos em Homero, que entram a serviço da construção da narrativa. Fenik
admite de bom grado a unidade na estruturação dos poemas, com a repe-
tição de motivos e a variação de padrões narrativos – esse é o núcleo de
todo seu valioso trabalho com a poesia homérica –, mas, quando se trata
do plano ético e teológico, ele acaba abrindo espaço a uma visada de corte
analítico, porque reforça a ideia de um longo e acidentado processo de
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 15-30, jan/jun. 2016.
22 André Malta Campos
5 Embora acredite num avanço da Ilíada para a Odisseia, Segal o aborda com moderação e
destacando afinidades (ver, por exemplo, p. 198 e p. 226).
Nesse sentido, as obras que buscam uma simples linearidade nos poe-
mas, uma férrea lógica moral, mostram-se incapazes de abordar o proble-
ma, como é o caso, a meu ver, do livro de Naoko Yamagata, Moralidade
homérica, de 1994. Embora ofereça, numa escrita límpida e sem grandes
ambições teóricas, um inestimável exame de inúmeras passagens homéri-
cas e seus termos fundamentais, Yamagata fica refém de uma fragmenta-
ção excessiva, segundo a qual diferentes partes dos poemas dificilmente
dialogam entre si. Tomando como ponto de partida o já citado livro de
Lloyd-Jones, junto com outra contribuição fundamental na área, Mérito e
responsabilidade, de Arthur Adkins, de 1960, a estudiosa revela, ao final,
sua predileção pela visão deste último, para quem certa amoralidade era
esperada numa sociedade competitiva como a homérica, em que o sucesso
individual se sobrepõe à cooperação. Nesse tipo de abordagem, nem Zeus
nem os demais deuses encarnam uma concepção de moralidade consis-
tente.7 Mais interessante que essas obras – nas quais se defende que não
existe um freio claro nas relações heroicas, nem um elo moral entre deuses
e heróis – é, segundo penso, o já citado livro de Jenny Clay, A cólera de Ate-
na. Partindo da mesma ideia proposta por Fenik de que há uma aparente
inconsistência moral na Odisseia, Clay chega, no entanto, à conclusão de
que a presença de dois papéis fundamentais atribuídos às divindades – o de
ciosos da justiça e o de perseguidores caprichosos – se deve não a questões
de funcionalidade narrativa, mas sim a uma “dupla teodiceia”.8 Podemos
resumir seu exame destacando os seguintes trechos:
6 Para Redfield, a Ilíada e a Odisseia são mais ou menos contemporâneas (não se podendo
propor entre elas uma grande transformação cultural), mas a Odisseia já revelaria a nova
“ética econômica” do final do século VIII a.C.
7 Para uma crítica à visão de Adkins, ver A. Long, “Morals and values in Homer”, The journal of
Hellenic studies 90 (1970): 121-139.
8 Ver de seu livro as p. 213-239 (que correspondem ao último capítulo do livro); o problema
vem enunciado nas p. 218-219.
Não há, portanto, como negar as diferenças entre os poemas, mas é pre-
ciso vê-las na devida perspectiva. Num artigo recente e bastante lúcido –
em que defende a presença de um sistema ético e teológico comum a toda
a poesia hexamétrica –, William Allan reforçou a continuidade já proposta
por Lloyd-Jones 35 anos antes, com nuances:
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 15-30, jan/jun. 2016.
O tema da justiça e a velha “novidade” da Odisseia 29
Mais adiante, ele ainda afirma, mesmo reconhecendo que “as continui-
dades continuam a ser subestimadas ou obscurecidas”:
BIBLIOGRAFIA
ALLAN, W. “Divine justice and cosmic order in early Greek epic”, The
journal of Hellenic studies 126 (2006): 1-35.
CLAY, J. S. The wrath of Athena. Princeton: Princeton University Press, 1983.
DODDS, E. The Greeks and the irrational. Berkeley: University of
California Press, 1951.
FENIK, B. Studies in the Odyssey. Wiesbaden: Franz Steiner Verlag, 1974.
LESKY, A. “Motivation by gods and men” em I. de Jong (ed.), Homer:
critical assessments. 4 vols. New York: Routledge, 1999.
LLOYD-JONES, H. The justice of Zeus. Berkeley: University of California
Press, 1971.
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 15-30, jan/jun. 2016.
30 André Malta Campos
Christian Werner2
Abstract: this paper contextualizes the proem of Works and days in the
Greek archaic poetic traditions, specially the hexametric, and discusses its
thematic structure and high poeticity, that is also verified in the proem of the
Odyssey. This is another argument for its strong relation to traditional oral
compositions and against readings that defend they were composed later that
the rest of the poem.
Keywords: proem; Works and days; Odyssey; Hesiod.
Introdução
O termo mais comum na crítica para os versos que abrem os poemas homé-
ricos (Il. 1, 1-7; Od. 1, 1-10)3 e hesiódicos (Teog. 1-93; T&d 1-10) é “proêmio”.4
Neste texto, vai-se discutir, num primeiro momento, a concentração temática,
pragmática e poética do proêmio de Trabalhos e dias e, num segundo e de
1 O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvi-
mento Científico e Tecnológico – Brasil. Uma primeira versão foi apresentada na minha tese
de livre-docência defendida na Universidade de São Paulo em 2012.
2 Doutor em Letras Clássicas pela USP. Professor de Língua e Literatura Grega na USP.
3 As siglas (e, entre parênteses, as traduções) utilizadas neste texto são: Il. = Ilíada; Od. = Odisseia
(HOMERO 2014); Teog. = Teogonia (HESÍODO 2013a); T&d = Trabalhos e dias (HESÍODO
2013b; fiz uma alteração no verso 6). Quando não indicado o contrário, as demais traduções
são minhas. Uso H.h. para abreviar “hino homérico”, seguido do número que o poema tem na
coleção e do deus/deuses do qual ele trata; traduzo o texto grego de M. L. West (2003). O texto
grego dos fragmentos épicos é o de A. Bernabé (1996). Todas as datas neste artigo são a.C.
4 Derivado do grego prooimion, talvez usado em sentido técnico no século V (Tucídides 3, 104;
Píndaro, Nemeia 2, 1-3; NAGY, 2010, p. 9-20; CLAY, 2011, p. 237-40).
32 Christian Werner
forma mais resumida, como isso ocorre no da Odisseia. Está em jogo uma
forma de composição que busca dirigir a atenção do público para o proêmio
enquanto tal e que é verificada em diferentes formas poéticas arcaicas. Embo-
ra a alta densidade poética do proêmio não seja corriqueira em composições
hexamétricas gregas,5 ela também se verifica no proêmio da Odisseia.
Por uma questão de economia, uso Hesíodo (sempre sem aspas) como
sinônimo de uma voz poética indissociavelmente ligada a uma tradição,
ou seja, um conjunto de protocolos poéticos e retóricos, e que confere for-
ma e autoridade ao poema apresentado sob determinadas condições de
performance. Para minha argumentação, não será necessário supor-se um
poeta histórico, ou seja, a figura de um autor ligado a um espaço e tempo
específicos que condicionaram a composição. O mesmo valerá, claro, para
Perses, o receptor primeiro do poema, que ocupa, em Trabalhos e dias,
função semelhante àquela de Cirno na poesia de Teógnis (NAGY, 1985).
Por fim, embora eu vá mostrar que, poeticamente, o proêmio da Odisseia
guarda notáveis semelhanças com o de Trabalhos e dias, isso não implica
uma cronologia relativa na minha metodologia de análise.
Trabalhos e dias
5 É possível que ela tenha colaborado para já os antigos defenderem que seu autor não foi He-
síodo. Pausânias conta que os beócios, na proximidade do Hélicon, não só consideravam ex-
clusivamente Trabalhos e dias como genuinamente de Hesíodo (T 42 Most, em MOST, 2006),
mas atetizaram seus 10 primeiros versos, o que também fez Aristarco (T 49 Most, id.).
6 Claude Calame (1996, p. 169-74), todavia, acentua os contrastes entre o proêmio de Trabalhos e
dias e os comparanda. É possível opor-se hino cultual a épico (MILLER, 1986, p. 1-5), mas distin-
ções muito rígidas entre as duas categorias são uma construção moderna (FAULKNER, 2011, p.
21); as funções dos Hinos homéricos, por exemplo, podem ter variado de acordo com a ocasião de
performance (FAULKNER, 2011, p. 16-19; CLAY 2011). Calame (2011, p. 336), por sua vez, tem
uma tese forte acerca da função dos Hinos homéricos como oferenda à divindade: “Independente
do seu tamanho, o Hino homérico, no seu papel como canto hínico endereçado a uma divindade
como oferenda musical, tem a função de introduzir a récita rapsódica na série dos atos rituais que
honram essa divindade. O hino, portanto, torna a performance do próprio canto rapsódico um
ato ritual e uma atividade de culto. Por meio de sua função como um proêmio num nível cúltico,
o Hino homérico, de certa forma, transforma o canto narrativo num canto mélico”.
7 Quando o eu poético escolhe o “eu” para iniciar seu canto, escolhe-se “the most performative
(“a cólera canta, deusa, a do Pelida Aquiles”, Il. 1, 1) e na Odisseia (“do va-
rão me narra, Musa, do muitas-vias” Od. 1, 1),8 bem como em um conjunto
bem menor dos hinos (“Musa, narra-me os feitos de Afrodite muito-ouro”,
H. h. 5 a Afrodite),9 o poeta pede que a Musa (lhe) cante ou narre algo.
Todos os hinos desse segundo grupo têm em comum o tema do poema
ser apresentado no primeiro verso. Com exceção do H. h. 5 a Afrodite,
ele sempre ocupa a primeira metade do verso, geralmente no acusativo,
repetindo-se o padrão da Ilíada e da Odisseia. O mesmo ocorre em diver-
sos poemas cíclicos, como na Tebaida (“A Argos canta, deusa, mui seca, de
onde senhores”, Teb. 1 Bernabé) e na Pequena Ilíada (“Musa, narra-me os
feitos, que nem aconteceram no passado”, Il. Parv. 1 Bernabé).
Na Teogonia, o primeiro termo está no genitivo (mousaÔn helikÔnia-
dÔn arkhÔmeth’ aeiden) e não é apenas complemento do verbo arkhomai
– muito embora a aliteração da vogal longa destacada acima reforce essa
ligação sintática –,10 mas de uma combinação inusual desse verbo com o
infinitvo aeidein (PACHE, 2011, p. 26). O verbo “iniciar”, comum nesse
contexto poético,11 também no H. h. 2 a Deméter vem combinado com
“cantar”, só que aqui são precedidos por um acusativo (RICHARDSON,
1974, p. 136), o tema do poema (Δήμητρ’ ἠΰκομον σεμνὴν θεὰν ἄρχομ’
ἀείδειν: “De Deméter, venerável deusa bela-coma, começo a cantar”).
Dessa forma, ainda que parte da coleção de hinos seja tardia em
relação à épica hesiódica e à homérica (FAULKNER, 2011, p. 7-8), o fato de
que as estruturas mencionadas também se verifiquem na Teogonia, Ilíada e
Odisseia sugere que estamos diante de algo tradicional, o que indica que a
forma do primeiro verso de Trabalhos e dias deve ter sido excepcional: não
se diz quem canta(rá) nem o quê.
Embora as Musas não sejam o tema do canto, o modo como são
evocadas busca torná-las presentes. Uma epifania desse tipo também é
buscada no hino cultual e está implicada nos hinos homéricos (CALA-
ME, 2011, p. 339-41; CLAY, 2011, p. 236). Podemos comparar a passagem
of the three forms of opening known in Homeric poetry” (CALAME, 2011, p. 335).
8 O imperativo implica a presença forte do narrador do poema (CALAME, 2000, p. 59-68).
9 Há diversas semelhanças entre o verso inicial do H. h. 5 a Afrodite e o da Odisseia (FAULK-
NER, 2008, p. 71-72).
10 Assim, além de métrica, uma das razões para o uso do genitivo pode ser fônica, como defende
Pucci (2007: 33), que nota que já os antigos assinalaram o valor da repetição da vogal.
11 Od 8, 499: ὣς φάθ’, ὁ δ’ ὁρμηθεὶς θεοῦ ἤρχετο, φαῖνε δ’ ἀοιδήν (“Isso dito, ele, instigado, pela deusa
começava e exibia o canto”); Teog. 36: τύνη, Μουσάων ἀρχώμεθα, ταὶ Διὶ πατρὶ (“Ei tu, pelas Musas
comecemos, que, para Zeus pai”), H. h. 25 às Musas e Apolo 1: Μουσάων ἄρχωμαι Ἀπόλλωνός τε
Διός τε (“Que eu comece pelas Musas, Apolo e Zeus”); e Epigonoi 1 Bernabé: Νῦν αὖθ’ ὁπλοτέρων
ἀνδρῶν ἀρχώμεθα, Μοῦσαι (“Agora comecemos pelos varões mais jovens, Musas”).
Contudo, dessa coesão sonora na qual está presente a rima, um recurso caro
a Hesíodo (TROXLER, 1964, p. 4), está ausente o tema do canto.
Não é, portanto, a Teogonia o único canto na tradição hesiódica a ser
iniciado por uma invocação às Musas. Mas o que Hesíodo lhes pede? Aoi-
dê, no verso 22 da Teogonia (“então essas a Hesíodo o belo canto ensina-
ram”, Teog. 22),13 deve ser entendido como “a arte do canto” (VERDENIUS
1972: 233; RUDHARDT 1996: 27; PUCCI 2007: 57), e não como um canto
singular, qual seja, a própria Teogonia.14 Nesse caso, a formulação em Tra-
balhos e dias sugere que não se trata apenas de uma homenagem às Musas
de acordo com o que elas exigiram de Hesíodo em sua iniciação – sempre
iniciar seu canto por elas (Teog. 34) –, mas de uma troca de favores entre o
poeta e as deusas (“seguindo sua ordem no passado, começo meu canto por
vocês; em troca, quero que se repita algo que aconteceu na minha inicia-
ção: que vocês se movimentem, ou seja, que nós nos encontremos”), uma
repetição, ou melhor, uma mimesis de algo que aconteceu anteriormente,
ou seja, por ocasião da iniciação do poeta.15 Das Musas, todavia, Hesíodo
não vai mais falar antes da Nautilia (T&d 618-94), e então de uma maneira
que parece antes irônica (ROSEN, 1990; GRAZIOSI, 2002, p. 169-71).
A separação entre as Musas e Zeus começa a se sedimentar verso 3. Ao
longo de seis versos, Hesíodo – e não as Musas –, mimetiza de forma exu-
berante o poder de Zeus por meio de uma plenitude poética. Compare-se
esses versos com passagens semelhantes na Ilíada (sublinhadas as repetições
sonoras); na primeira, quem fala é Heitor, na segunda, Homero, na terceira,
Eneias, num discurso que é um dos mais impressionantes do poema:
13 Para West (1966: 161), o verso 659 de Trabalhos e dias, na Nautilia (“onde no início puseram-
-me na via do canto soante”), “refers to the same event”.
14 O paralelo com a apresentação de Demódoco na Odisseia reforça essa interpretação (Odisseia
8, 43-45): “Fazei chamar o divino cantor (aoidon) / Demódoco; a ele a divindade sobremodo
deu canto (aoidên) / para deleitar por onde o ânimo o incita a cantar (aeidein)”.
15 Novamente, o paralelo com Safo 1 Voigt revela um padrão rito-mitopoético.
16 “The forceful chiasmus ἐγγυαλίξῃ - μινύθῃ - μινύθει - ἀρήγει and the varied constructions
lead up to the emphatic ἄμμι δ’ ἀρήγει” (JANKO, 1992, p. 282). Note também que o verso 493,
que introduz a aplicação presente das sentenças, inicia com dois anapestos, em claro contraste
com o verso anterior, composto somente por dátilos.
17 As personagens disso falam com mais frequência, especialmente usando formas do advér-
bio “fácil” (rhêidiôs; rheia) na primeira posição do hexâmetro: Il. 8, 141-44; 10, 555-57; 16,
844-47. Homero também usa uma forma abreviada do raciocínio ao destacar que um deus
executou algo “bem fácil como um deus” (Il. 20, 444).
18 Além das passagens iliádicas, cf. Teog. 442-43.
Os sons /r/ e /a/ voltam nos dois versos seguintes, que estão estreita-
mente ligados entre si por conta de uma série de recursos sonoros e se-
mânticos, entre eles:
Odisseia
Conclusão
BIBLIOGRAFIA
_____. Hesiod and the didactic double. Synthesis, La Plata, v. 11, p. 31-54,
2004.
_____. Epic as genre. In: FOLEY, John. M. (org.) A Companion to Ancient
Epic. Oxford: Blackwell, 2005. p. 9-19.
MILLER, Andrew M. From Delos to Delphi: a literary study of the
Homeric Hymn to Apollo. Leiden: Brill, 1986.
MOST, Glen W. Hesiod: Theogony, Works and Days, Testimonia. Edição e
tradução. Cambridge, MA-London: Harvard University Press, 2006.
NAGY, Gregory Theognis and Megara: a poet’s vision of his city. In:
FIGUEIRA, Thomas J.; _____. (org.) Theognis of Megara: poetry and the
polis. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1985.
_____. Pindar’s Homer: the lyric possession of an epic past. London:
Johns Hopkins University Press, 1990.
_____. Homer the preclassic. Berkeley/Los Angeles/London: University of
California Press, 2010.
NICOLAI, Walter. Hesiods Erga: Beobachtungen zum Aufbau.
Heidelberg: Carl Winter, 1964.
OLSON, S. Douglas. The Homeric Hymn to Aphrodite and related texts:
text, translation and commentary. Berlin: de Gruyter, 2012.
PACHE, Corinne O. A moment’s ornament: the poetics of nympholepsy in
ancient Greece. Oxford: Oxford University Press, 2011.
PUCCI, Pietro. Inno alle Muse (Esiodo, Teogonia, 1-115): texto,
introduzione, traduzione e commento. Pisa: Fabrizio Serra, 2007.
RAGUSA, Giuliana. Fragmentos de uma deusa: a representação de
Afrodite na lírica de Safo. Campinas: Edunicamp, 2005.
_____. (org.) Safo de Lesbos: “Hino a Afrodite” e outros poemas. São
Paulo: Hedra, 2011.
RICHARDSON, Nicholas J. The Homeric hymn to Demeter. Oxford:
Oxford University Press, 1974.
ROSEN, Ralph M. Poetry and sailing in Hesiod’s Works and days.
Classical Antiquity, Berkeley, v. 9, p. 99-113, 1990.
RUDHARDT, Jean. Le préambule de la Théogonie: la vocation du poete;
le langage des Muses. In: BLAISE, Fabienne; JUDET DE LA COMBE,
Pierre; ROUSSEAU, Philippe. (org.) Le métier du mythe: lectures d’
Hésiode. Lille: Presses Universitaires du Septentrion, 1996. p. 25-40.
TROXLER, Hans. Sprache und Wortschatz Hesiods. Zürich: Juris, 1964.
VERDENIUS, Willem. J. Notes on the proem of Hesiod’s Theogony.
Mnemosyne, Leiden, v. 25, p. 225-60, 1972.
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 31-45, jan/jun. 2016.
Poeticidade em proêmios hexamétricos gregos... 45
Resumo: Neste artigo são examinados os fragmentos 191 e 193 IEG de Ar-
quíloco: traduções, fortuna crítica, e imagens que associam Eros com a morte
e o amante com o guerreiro.
Palavras-chave: Arquíloco; poesia jâmbica grega; Eros.
Abstract: This paper examines translations, the critical fortune and images
that associate Eros with death and the lover with the warrior in Archilochus
191 and 193 IEG.
Keywords: Archilochus; greek iambic poetry; Eros.
1 τοῖως M1
2 Professora de Língua e Literatura Grega na USP.
3 ἐλυσθεὶς Estobeu.
4 ἔχευε Brunck (1772), Liebel (1812, 18182), Gaisford (1823), Hoffmann (1898); ἔχευσεν Fick (1888)
5 ἀταλὰς Meineke in Bergk (18824, 1915), Fick (1888), Hiller (1890), Hoffmann (1898),
Hauvette (1905: 150).
48 Paula da Cunha Corrêa
Mas não só ignoramos quem fala e de quem fala, como nada sabemos
do contexto, embora quase todos relacionem os versos à narrativa de Ar-
quíloco e as filhas de Licambes, supondo que “Arquíloco” declarasse, em 1a
pessoa, seu amor por Neobula10.
Por que o sujeito não poderia ser um homem falando de uma mulher,
ou inclusive uma mulher falando de si? Croiset (19132: 189) e Campbell
(1983: 6) já aventaram a primeira possibilidade11. Se quisermos manter o
cenário geralmente eleito (o da “Saga das Licâmbides”), uma candidata,
nesse caso, seria Neοbula (ou uma de suas irmãs), que “Arquíloco” censura.
Mas nada impede que o falante fosse uma mulher e, nesse caso, os versos
poderiam ser reminiscências da velha Neοbula (cf. 188 IEG2), lamentando
eventos passados.
Em termos de linguagem, apesar de todos reconhecerem nesses versos
vários elementos presentes na épica, as interpretações diferem radicalmen-
te. Para alguns, cada frase seria a imitação de uma fórmula ou de um verso
homérico específico. Por exemplo, segundo Page (1964: 138-9), a lingua-
gem do fragmento é “inteiramente tradicional”, o poema chegando a ser
uma “concatenação de fórmulas épicas adaptadas aos novos metros” e “não
havendo nada de novo no espírito ou no conteúdo dos versos”: “a atualida-
de do tema, se é que ele é atual – não faz diferença alguma no modo ou em
que se diz”12. Para Marzullo (19672: 32), Arquíloco apresenta um realismo
conceitual “severamente inscrito no modelo épico”.
Outros supõem que o fragmento faça novo emprego de material homé-
rico13. Degani e Burzacchini (20052: 32), sem atenuar o “homerismo” dos
versos, alegam que neste poema Arquíloco canta o amor com “novidade
e intensidade de acentos”, “com nítida, essencial imediatez que claramente
antecipa Safo”14, assim como também no fragmento 193 IEG2.
10 Segundo Lasserre (in Lasserre e Bonnard, 1958), o fragmento evoca o tempo em que o poeta era
apaixonado por Neobula. No entanto, para outros, ele expressa amargura (Kirkwood, 1974: 41:
“love turned to bitterness”.) Para Hauvette (1905: 230), “Arquíloco” cogita em vingar-se. Gerber
(1970: 41) lê os versos como crítica que o poeta dirige a se próprio por sua tolice, por ter-se deixa-
do cegar por amor.
11 Campbell (1983: 6), aparentemente com o intuito de explicar o emprego do epíteto “frágil”, ou
“delicado”, para a “mente” do sujeito no terceiro verso (“frágil juízo”), diz: “if the passage is about a
girl in love, the word may have been chosen as applicable to the weaker sex – her tender wits; …”
12 Cf. Barron e Easterling (1985: 82).
13 Broccia (1969: 92). Para Kirkwood (1974: 42), as frases de Arquíloco, por evocarem incidentes
homéricos, ganham força pelo contraste.
14 Veja também Gentili e Catenacci (20073: 104) para a comparação de Arquíloco 191 IEG2 com
Safo 2 V.
v.1
15 Na prosa, emprega-se antes τοιοῦτος.Veja Page (1964: 138) para τοῖος γὰρ como fórmula épica.
16 Il. 4. 289, 390, 399 etc.
17 Cf. Liebel (1812: 170), Hauvette (1905: 230), Marzullo (19672: 32), Degani e Burzacchini (20052:
32): Il. 6. 25: μίγη φιλότητι καὶ εὐνῇ.
18 Marzullo (19672: 32) nota que, na épica, ἔρος é mais comum que ἔρως, a forma empregada por
Arquíloco.
19 Cf. Gaisford (1823: 300): concubitus cupiditas. Marzullo (19672: 32) repara que o uso de ἔρως torna
mais explícito o aspecto carnal do amor em φιλότης.
20 Cf. Gerber (1970: 41) e Campbell (1983: 6).
21 Kirkwood (1974: 42) e Carson (1986: 47) citam como paralelo a cena da Ilíada 24. 510 na qual
Príamo, suplicante, curvado aos pés de Aquiles (ποδῶν Ἀχιλῆος ἐλυσθεὶς), recorda Heitor.
Assim também, a leitura de Burnett (1983: 80) parece depender desse paralelo.
22 Veja também Marzullo (19672: 32), Broccia (1969: 87), Degani e Burzacchini (20052: 32).
23 Cf. Campbell (1983: 6) e Harvey in Fowler (1987: 26): “Archilochus’ manner throughout is
ironic or, as Harvey says, mock-heroic.”
24 Cf. Marzullo (19672: 32), Broccia (1969: 87), Degani e Burzacchini (20052: 32), Fowler (1987: 26).
25 Marzullo (19672: 32) nota que κραδίη é mais comum na épica homérica, embora καρδίη ocor-
ra em Il. 2. 452, 11. 12, 14. 152.
26 Tradução de Haroldo de Campos (2002), ligeiramente modificada.
v.2
27 Seria fortuita a ambiguidade suscitada pelo adjetivo οὖλος empregado para caracterizar Eros,
uma vez que οὖλος significa “destrutivo”, pernicioso (A), ou “lanoso” (B), como a lã do carnei-
ro (Aristóteles HA 596 b 6), o que pode evocar o episódio da fuga de Odisseu sob o carneiro
do Ciclope (Od. 9)?
28 Tradução de F. Rodrigues Jr. (2005).
29 Marzullo (19672: 32): o substantivo ἀχλύς é geralmente usado no sentido figurado, como aqui,
e significa “névoa” propriamente apenas na Odisseia 7. 41, 19. 357. Arquíloco emprega a for-
ma ὀμμάτων e não ὀφθαλμῶν por motivos métricos, segundo Page (1964: 138).
30 Em contexto diverso, em Il. 20. 321, Poseidon derrama névoa sobre os olhos de Aquiles para
que o herói não veja as suas ações: κατ’ ὀφθαλμῶν χέεν ἀχλύν. Veja também Platão Alc. 150d-
e para a névoa (ἀχλύς) que ofusca a razão. Em Crítias 6. 10-12 IEG2, névoa encobre os olhos,
perde-se a memória e a razão por excesso de vinho e, em Apolônio 3. 725-6 φοινίχθη δ᾿ ἄμυδις
καλὸν χρόα, κὰδ δέ μιν ἀχλὺς | εἷλεν ἰαινομένην, a névoa é efeito da emoção de Medeia.
31 Posteriormente, entre I a. C. - I d. C., em Cáriton, Caliroé 2.4 e 3.3, a névoa (ἀχλύς) encobre
os olhos de Dionísio por efeito de forte emoção.
32 Cf. Page (1964: 138). Marzullo (19672: 32) também cita como homéricos a tmese (κατ’...
ἔχευεν), o emprego de ὄμματα no plural, como em Homero e Hesíodo, e o substantivo ἀχλύς
33 Page (1964: 138) observa o “contexto emocional” de Il. 20. 421 (κάρ ῥά οἱ ὀφθαλμῶν κέχυτ’
ἀχλύς): Heitor vê Polidoro, com as entranhas nas mãos, rolar por terra e morrer. A imagem
da névoa cobrindo os olhos, empregada em associação com a morte em Il. 5. 696, 16. 344, Od.
20. 357, 22. 88, ocorre em Il. 20. 421 para quem contempla a morte.
34 Para a associação de ἀχλύς com a morte, veja ainda o Escudo 264, Ésquilo Pers. 669 e Nono
Dion. 28. 109.
poesia amatória, Arquíloco não apenas acena para a associação entre Eros
e morte, como também evoca o contexto do amor como guerra: Eros age
como um guerreiro que, em emboscada (enrolado sob o coração35), tolhe
a visão e espolia o juízo do peito. A linguagem épica assemelha o/a amante
a um guerreiro que sucumbe. Esse recurso é mais explícito no fragmento
193 IEG2, examinado a seguir.
É notável que, ao narrar na Argonáutica como os olhos de Medeia se
enevoaram (3. 962-3 ὄμματα δ᾿αὔτως ἤχλυσαν), Apolônio não empregou
a imagem em seu contexto épico mais comum, isto é, na ocasião de morte
de guerreiros, mas para descrever os efeitos de uma paixão amorosa, como
o fizera Arquíloco:
v.3
35 Marzullo (19672: 32) compara a frase “enrolado sob o coração” com a imagem do guerreiro
agachado, protegido sob o seu escudo Il. 13. 405, Calino 1. 10 IEG2.
36 Tradução de F. Rodrigues Jr. (2005), ligeiramente alterada.
37 κλέψας ἐκ é inicio de verso no Hino Homérico a Hermes 340.
38 Para Broccia (1969: 89), ao contrário, há simultânea perda de visão e razão, e ele cita como
exemplos homéricos dessa simultaneidade Il. 14. 518, 22. 466.
39 Page (1964: 138) nota que a forma do genitivo plural empregado (στηθέων) é habitualmente
evitada na épica homérica, ocorrendo apenas em Il. 10. 94.
40 Tradução de Haroldo de Campos (2002). É possível que o adjetivo ἁπαλόν qualifique o co-
ração de animais nesses versos homéricos por se tratar de um símile. Termos habitualmente
empregados para os seres humanos também se referem a animais no símile das águias na
Ilíada e no Agamêmnon de Ésquilo (cf. Corrêa 2010: 47-118). Kirkwood (1974: 42) nota que
o adjetivo emprega-se usualmente para as partes externas do corpo e que a transferência ope-
rada por Arquíloco é forte.
41 Segundo Gerber (1970: 41), o adjetivo em Arquíloco 191 IEG2 significa “fraco” ou “frágil”,
não “tenro”. Totalmente diversa é a interpretação de Hauvette (1905: 229) que lê ἀταλάς e o
verte como “vigoroso”. Em diversos passos, o epíteto ἀταλός qualifica como “tenra” a mente
dos jovens, como no símile supracitado (Il. 11. 115). Nesse sentido, veja também Il. 18. 567,
Hesíodo Th. 989: παῖδ’ ἀταλὰ φρονέοντα φιλομμειδὴς Ἀφροδίτη | ὦρτ’ ἀνερειψαμένη ..., e no
Hino Homérico a Deméter 24: Περσαίη θυγάτηρ ἀταλὰ φρονέοντα.
42 Cf. Arquíloco 196 IEG2.
43 Trad. Haroldo de Campos (2002). Veja também a fala de Zeus (Il. 14. 315-6).
“... lá
o amor e o impulso de eros; o enlace de núpcias
e o enlevo sedutor, que mesmo aos sábios faz
perder o juízo.”44
Como bem argumenta Fowler (1987: 25), não se deve supor que esses
versos de Homero fossem o modelo de Arquíloco 191 IEG2, cuja formu-
lação revela diferenças. Fowler (loc. cit.) nota ainda que o verso homérico
é gnômico e que a “capacidade do amor ludibriar suas vítimas já seria tra-
dicional” 45. A freqüência com que a expressão “roubo da mente” (κλέψαι
νόον) ocorre indica um “lugar comum”, presente não apenas em Homero,
mas também na Teogonia hesiódica 61346, Semônides 42 IEG2 47 e nas Coé-
foras 85448 de Ésquilo.
A descrição do amor como algo exterior ao sujeito, que o desmembra,
subtrai a mente e confunde os sentidos, encontra-se na literatura grega
desde Homero. Embora tais elementos sejam apontados como mais tipi-
camente “líricos”49, vimos como o poeta já teria a seu dispor, na tradição
épica jônica, noções e expressões semelhantes a essas. Assim, um efeito do
recurso à linguagem épica no fragmento 191 IEG2 é a associação de Eros
com a morte, e do amante com o guerreiro.
v.1
50 Lasserre (1950: 185) supunha que os versos teriam inspirado Horácio no início de seu Epodo 14,
composto no mesmo esquema métrico e, consequentemente, ele insere esse fragmento em sua
restauração de Arquíloco, Epodo 12, que consistiria apenas desse fragmento e de um testemunho
de Malalas (p. 68.1 Dindorf, fr. 305). Adrados (19903: 52) discorda da interpretação de Lasserre
e sugere que o fragmento talvez fizesse parte do epodo seguinte, no qual o poeta teria amea-
çado os seus rivais com a narrativa da morte de Neso.
51 Page (1964: 141), que considera a fraseologia do fragmento uma “adaptação e extensão de
fórmulas tradicionais”, afirma que δύστηνος é “uma palavra homérica comum”. Trata-se de
um termo poético que qualifica, aqui e em Homero, seres humanos (Marzullo, 19672: 31).
52 Campbell (1983: 5).
53 Page (1964: 141) considera o emprego desse verbo com o dativo como uma das poucas inova-
ções no poema.
54 Para ἔγκειμαι πόθωι, cf. Sófocles Ph. 1318, Eurípides Íon 181, Teócrito Id. 3. 33: ἐγὼ μὲν τὶν
ὅλος ἔγκειμαι. Alguns têm o dativo como causal, mas aqui constrói-se com ἔγκειμαι (cf. Ger-
ber, 1970: 40, e Gentili-Catenacci 20073).
55 Cf. Burnett (1983: 80).
56 Hefestião Ench. 15. 9.
v.2
Essa é a primeira ocorrência de termo ἄψυχος (“sem vida” ou, mais lite-
ralmente, “sem-psykhé”) na literatura supérstite e o segundo epíteto usado
pelo sujeito para se descrever57. Neste fragmento de Arquíloco, mais clara-
mente do que em 191 IEG2, o estado do amante compara-se com a morte,
momento em que a psykhé, o sopro de vida, deixa o corpo pela boca, pelas
narinas ou feridas, e parte para o Hades.
Da tradição épica jônica vem o uso do adjetivo χαλεπός (“atroz”) para
qualificar as dores (ὀδύνηισιν)58 que podem ser tanto físicas59, quanto
mentais60. Que essas dores – efeito do desejo – são enviadas pelos deuses,
evidencia-se pela expressão θεῶν.... ἕκητι (“por vontade dos deuses”61). Em
Álcman 59ª PMGF, Eros atua por vontade (ϝέκατι) da Cípria:
57 O adjetivo ἄψυχος se destaca em início de verso, assim como δύστηνος, o primeiro adjetivo, sen-
do os dois trissílabos que rimam em –os e têm assonância em úpsilon.
58 No Hino Homérico a Apolo 358, atrozes são também as dores da serpente Tifão, trespassada
pela flecha de Apolo: ὀδύνηισιν ... χαλεπῆισι.
59 Od. 9. 440, 17. 567; Il. 11. 398, etc.
60 Il. 15. 25; Od. 1. 242, 2. 79 etc.
61 Cf. Píndaro I. 4.1. Page (1964: 141) nota que ἕκητι ocorre três vezes na Odisseia, duas ve-
zes nos Hinos. ἕκητι emprega-se na Odisseia apenas com referência a divindades (na Ilíada,
ἰότητι), frequentemente posposto, mas na lírica e tragédia refere-se também a objetos. Em
Arquíloco, ἕκητι (forma homérica e jônica) constrói-se com genitivo, como em Homero, mas
o digama não é observado.
v.3
62 Cf. Il. 4. 460, 11. 97: o golpe de Agamêmnon vara seu adversário δι’ ... ὀστέου. Alguns consi-
deram a frase em Arquíloco formular, citando Il. 5. 399 sobre Hades, trespassado por flecha
(ὀδύνηισι πεπαρμένος) e o Hino Homérico a Apolo 358, cf. nota 57 acima.
63 Veja, por exemplo, no Hino Homérico a Apolo 92 ὠδίνεσσι πέπαρτο para as dores de parto
de Leto e, para as dores de Medeia, na Argonáutica de Apolônio de Rodes 1067: πεπαρμένον
ἀμφ᾽ὀδύνῃσιν.
64 As primeiras ocorrências supérstites das flechas de Eros ocorrem no período clássico, em Eurípi-
des, I.A. 548-9, Hipp. 530.
65 Hauvette (1905: 229, 252), Lasserre e Bonnard (1958), Marzullo (19672: 31), Gerber (1970:
40), Campbell (1983: 5) e Fowler (1987: 26).
BIBLIOGRAFIA
Siglas de edições:
IEG2 - WEST, M. L., Iambi et Elegi Graeci ante Alexandrum cantati. Oxford
University Press, Oxford, 1998 (2a edição)
PMGF - DAVIES, M. Poetarum Melicorum Graecorum Fragmenta. Oxford
University Press, New York, 1991.
V - VOIGT, E.-M., Sappho et Alcaeus. Athenaeum-Polak & Van
Gennep, Amsterdam, 1971.
Giuliana Ragusa1
Abstract: This papers turns to one of the many elements of the rich imagery
woven by Bacchylides in his Epinicean 5 (“To Hiero of Syracuse, victor, horse
race, Olympic Games, 476 b.c.”): the plant image that describes Meleager in
Heracles first words to him, in a dialogue that takes place in Hades, where
that hero is just a shadow of a man, and Zeus’s son is very much alive –
though not for long. The aim is to reflect upon such image, considering it in
view of other metaphoric plant images with which archaic Greek poets often
project youth, the promise of life, and human fragility as well.
Keywords: Bacchylides; Epinicean 5; plant imagery; youth; archaic Greek
poetry.
dispersas, como diz o símile dos versos supracitados, a ecoar a Ilíada (VI,
146-9)4 e o poeta elegíaco Mimnermo (Fr. 2 W, 1-5)5. Nessas ocorrências,
o símile das folhas canta a efemeridade humana, sua fragilidade, inerente
à sua natureza mortal; similarmente na ode epinícia, observado o contexto
da passagem que vai do símile à abertura do diálogo entre os heróis, no
Hades (63-78). Nela, Héracles se arma para travar combate (73-6) com
a psykhá (“sombra”, 77) de Meleagro, enfim nomeado, tendo-a visto “re-
luzindo em a[r]mas” (τ[ε]ύχεσι λαμπόμενον, 73). Percebendo essa reação
descabida do filho de Zeus, o Portanida a ele se contrapõe e lhe fala “bem
sapiente” (εὖ εἰδὼς, 78). Essa sapiência diz respeito ao conhecimento so-
bre a morte, adquirido pela experiência de ser mais um entre os que não
contemplam a luz do sol – conhecimento que a Héracles escapa, por ora
apenas, dado que é mortal a quem, todavia, foi concedido descer ao Hades
e voltar aos vivos6. A sapiente fala de Meleagro inicia o diálogo que simul-
taneamente se finda à conclusão da narrativa mítica (71-175), ocupando,
portanto, sua maior parte. Nela, o herói faz ver a Héracles a inutilidade das
armas no Hades: contra as “sombras” (psykhaîsin, 83) que ali vagam, nada
podem; e estas nada podem contra os vivos. Não há o que temer, portanto.
A revelação da imagem de Meleagro, tornada distinta, e de sua cons-
ciência, baseada na concreta experiência da morte, sobre o que significa
habitar o Hades, provocam em Héracles, “admirável herói” (thaumastòs
hērōs, 71), admiração explicitada na forma verbal thámbēsen (84), que de-
signa sua reação. Vale notar a ligação entre o adjetivo dado ao herói e sua
ação, que enfatizam o caráter surpreendente e admirável da cena como um
4 Trad. Lourenço, 2013: “Assim como a linhagem das folhas, assim é a linhagem dos homens. / Às
folhas, atira-as o vento ao chão; mas a floresta no seu viço / faz nascer outras, quando sobrevem
a estação da primavera: / assim nasce uma geração de homens; e outra deixa de existir” (οἵη περ
φύλλων γενεὴ τοίη δὲ καὶ ἀνδρῶν. / φύλλα τὰ μέν τ᾽ ἄνεμος χαμάδις χέει, ἄλλα δέ θ᾽ὕλη /
τηλεθόωσα φύει, ἔαρος δ᾽ἐπιγίγνεται ὥρη: / ὣς ἀνδρῶν γενεὴ ἣ μὲν φύει ἣ δ᾽ἀπολήγει). Cito
sempre a edição Belles Lettres de Mazon (2002).
5 ἡμεῖς δ’, οἷά τε φύλλα φύει πολυάνθεμος ὥρη / ἔαρος, ὅτ’ αἶψ’ αὐγῇς αὔξεται ἠελίου, / τοῖς
ἴκελοι πήχυιον ἐπὶ χρόνον ἄνθεσιν ἥβης / τερπόμεθα, πρὸς θεῶν εἰδότες οὔτε κακόν / οὔτ’
ἀγαθόν· (...). (Nós somos como as folhas que cria a florida estação / da Primavera, quando
crescem depressa sob os raios do sol. / Como elas nos deleitamos num braço de tempo com
as flores / da juventude, sem sabermos o que de mau ou de bom / /nos virá dos deuses. (...).
Trad.: Lourenço, 2006).
6 O grande feito heroico de Héracles contraria a natureza humana e lhe permite conhecer, ainda
que com o distanciamento de sua condição de vivo, o mundo dos mortos. Afinal, para os ho-
mens, como canta o Fr. 395 P de Anacreonte, “terrível é o recesso / de Hades, e atroz a rota / lá
para baixo. É certo a / quem tiver descido não subir” (Ἀίδεω γάρ ἐστι δεινὸς / μυχός, ἀργαλῆ
δ› ἐς αὐτὸν /κάτοδος· καὶ γὰρ ἑτοῖμον/ καταβάντι μὴ ἀναβῆναι.). Ver comentário e tradução
em Ragusa (2013, pp. 190-1)
érnos e na forma verbal de tréphein (“nutrir”) que a ele se associa, tal qual
no Epinício 5 (trépsen, 88), de Baquílides. No passo da epopeia, trata-se da
nutrição da planta jovem abatida – o herói prematuramente abatido; no
da ode, da nutrição ao mesmo tempo real e metafórica não de um broto
de fato, mas de um herói jovem e belo, também morto precocemente. Em
ambos os passos, o páthos da trágica condição humana torna mais pode-
rosa as imagens.
Noutro símile iliádico que usa érnos, Tétis recorda às Nereidas, na cena
de pranto fúnebre por Pátroclo, que seu filho, Aquiles, “cresceu veloz, igual a
um broto” (ὃ δ᾽ ἀνέδραμεν ἔρνεϊ ἶσος, XVIII, 56): há páthos aqui, o da mãe
enlutada que via vicejar o filho de vida breve. Mas alguma distinção deve ser
feita, pois Aquiles não morre precocemente, antes mesmo de deixar prole –
ele deixa um filho, Neoptólemo – e jamais é o herói designado érnos, como
Euforbo e Meleagro. Ademais, sua vida é breve, mas não como a de outros
heróis, já que só o será se ele permanecer lutando na Guerra de Troia, algo
de que tem conhecimento por ser filho de deusa (IX, 410-6). De todo modo,
há que reparar no contexto fúnebre do uso de érnos na Ilíada.
Já na Odisseia10, em discurso elogioso de Odisseu a Nausícaa (6, 149-
87), a princesa, antes comparada a Ártemis (151) e descrita como thálos
(rebento, broto, 157) na dança, é assemelhada a um érnos específico, “broto
viçoso de palmeira” (φοίνικος νέον ἔρνος, 163) que o herói viu “em De-
los, junto ao altar de Apolo” (Δήλῳ δή ποτε τοῖον Ἀπόλλωνος παρὰ βωμῷ,
162). A imagem realça a beleza e a juventude de Nausícaa – Odisseu afirma
jamais ter visto mortal que se lhe compare (160-1) –, ao mesmo tempo em
que expõe o efeito de sua visão sobre o herói que adequadamente se diz
arrebatado por sébas (161), a admiração reverente, que evoca o local sacro
do culto délio a Apolo. Daí o temor em tocar os joelhos de Nausícaa; toca-
-os, contudo, com as palavras que, ditas com tato e sutileza, reconhecem
no gesto tradicional sua importância ritual para a postura assumida diante
da princesa, com a qual espera persuadi-la a ajudá-lo e mostrar-lhe que
não oferece perigo.
Por tudo o que nela está implicado, essa cena “tem sido corretamente
descrita como o mais severo desafio ao discernimento de Odisseu”, recor-
da Nicolas Gross, em Amatory persuasion in antiquity (1985, p. 38). Tanto
mais se considerarmos que seu discurso elogioso a Nausícaa tem dimensão
erótica inerente à concepção da beleza física no imaginário grego, assim
como à juventude da virgem que espera o gámos, a boda aludida sutilmente
10 Cito sempre o texto grego da edição de bolso Belles Lettres, em 3 volumes, de Bérard (2002).
τίῳ σ᾿, ὦ φίλε γάμβρε, καλῶς ἐικάσδω; Ao que de belo te comparo, ó caro noivo?
ὄρπακι βραδίνῳ σε μάλιστ᾿ ἐικάσδω A um ramo esguio mais te comparo...
14 Trad. Ragusa (2013, p. 127), com ligeira alteração: “... ao alto o teto – / Himeneu! – / levan-
tai, vós, carpinteiros! – / Himeneu! – / o noivo chega, igual a Ares – / Himeneu! – / muito
maior do que um grande varão. / Himeneu! – ...” (῎Iψοι δὴ τὸ μέλαθρον·/ ὐμήναον·/ ἀέρρετε,
τέκτονες ἄνδρες·/ ὐμήναον. / γάμβρος †(εἰσ)έρχεται ἴσος Ἄρευι† / <ὐμήναον,> / ἄνδρος
μεγάλω πόλυ μέσδων. / <ὐμήναον,>.).
15 Essa ideia para a leitura do Fr. 115, que se diferencia das usualmente propostas, é central no
estudo do fragmento que Patricia Rosenmeyer (Universidade de Madison) e eu vimos desen-
volvendo, cuja publicação está prevista para 2016.
16 Fr. 407 P (trad. Lourenço, 2006): Oferece-me, meu querido,/ as tuas coxas tão esbeltas. (ἀλλὰ
πρόπινε /ῥαδινοὺς ὦ φίλε μηρούς,).
Fr. 456 P: “esguios potros” (ῥαδινοὺς πώλους).
17 Trad. Ragusa (2013, p. 127), aqui com ligeira alteração: “Ó doce mãe, não posso mais tecer
a trama – / domada pelo desejo de um menino, graças à esguia Afrodite ...” (γλύκηα μᾶτερ,
οὔτοι δύναμαι κρέκην τὸν ἴστον / πόθῳ δάμεισα παῖδος βραδίναν δι᾿ Ἀφροδίταν).
18 Estudado detidamente em Ragusa (2010, pp. 321-61); recupero resumidamente os pontos
pertinentes.
19 Como bem sintetiza Wilkinson (2013, p. 248), tò thálos, assim como hó thállos, significa “um
jovem broto ou ramo”, mas este é mais usado literalmente, e aquele, metaforicamente.
Εὐρύαλε γλαυκέων Χαρίτων θάλος < > ó Euríalo, broto das glaucas Cárites, das [Horas?]
καλλικόμων μελέδημα, σὲ μὲν Κύπρις de belos cabelos o mimo, a ti Cípris
ἅ τ’ ἀγανοβλέφαρος Πει- e ela, a de meigos olhos, Pei-
θὼ ῥοδέοισιν ἐν θρέψαν. tó, entre botões de rosas nutriram ...
Meleagro então reconta sua trágica morte, cujos mecanismos são ativa-
dos pelo erro de seu pai, Eneu, que negligenciou Ártemis nos sacrifícios,
o que a leva à “cólera invencível” (103-4) – o epíteto aníkaton já antes qua-
lificara Héracles, na abertura da narrativa mítica (57) – e à consequente
punição que recai sobre os mortais por duas vezes (111). Primeiro, com
o terrível javali que precisará ser combatido em sangrenta “luta odiosa”
(στυγερὰν δῆριν) por dias a fio, na qual muitos dos “melhores dos helenos”
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 63-83, jan/jun. 2016.
De brotos, vergônteas e que tais: a imagem do jovem meleagro... 73
A lógica da guerra, porém, nada contará para Altaia que se volta contra
o próprio filho, cega que está, tal como as setas de Ares, colérica que está,
tal como a deusa cujo castigo só se amplia no girar das rodas de seu cada
vez mais complexo mecanismo. Sem hesitar, Altaia, a quem Meleagro, em
censura, chama daíphrōn (“feroz”, 137) – epíteto antes atribuído a Ártemis
(122) –, mátēr kakópotmos (“malfadada mãe”, 138) e atárbaktos gyná (“in-
trépida mulher”, 139), mata o filho, acendendo a acha de sua vida, até então
seguramente guardada (141-4). Insciente da ação da mãe, o herói sente
o exaurir-se de sua vida no momento em que matava Clímeno “valente,
corpo irreprochável” (ἄλκιμον (...)/ ἀμώμητον δέμας, 146-7) – qualificação
elogiosa, cujo efeito é destacar, pela beleza, coragem e valentia de quem
é domado, as mesmas qualidades de seu domador, intensificando-as. Ao
fim, a belicamente luzente sombra do guerreiro Meleagro, ali no Hades,
diz (151-4):
são guerreiros bem sucedidos que não hesitam em pegar em armas; Baquí-
lides confere a Meleagro um epíteto (thrasymémnonos, 69) que na Ilíada
apenas a Héracles é conferido; o admirável Héracles sente admiração por
Meleagro. Mas enquanto este realmente chora sua trágica jornada – formas
verbais de dakrýein (94, 153) não deixam dúvidas quanto a isso –, Héra-
cles, nesta única ocasião, tão-somente “molhou os olhos, compadecendo-
-se / do fim do mortal sofredor” (τέγξαι βλέφαρον, ταλαπενθέος / πότμον
οἰκτίροντα φωτός, 157-8). Mais: falando em seguida, afirma a inutilidade
de seguir pranteando o que já é fato, e a necessidade de agir (162-4).
Claro está que o imbatível herói, o maior de todos os heróis, embora
capaz de comover-se e de se revelar humano, sofre em grau diverso do de
Meleagro. Há no mínimo três boas razões para isso. A primeira: muito
embora se solidarize com o fim de um mortal como ele, Héracles ainda
vive; eis um fato que dispensa maiores comentários. A segunda: o “inven-
cível” herói dificilmente imagina que será, como Meleagro, subjugado por
uma mulher. E a terceira: o saqueador de cidades, que do Hades tornará
aos vivos, dificilmente imagina que tão jovem quanto Meleagro aos ínferos
de volta descerá para não mais subir. Lembremos o que o poeta frisou na
canção, ao mostrar o encontro entre os dois heróis, precedente ao diálogo:
Héracles está no Hades, mas mal se dá conta do que isso significa; Mele-
agro fala-lhe “bem sapiente” (εὖ εἰδὼς, 78). A segunda e a terceira razões
estão articuladas na canção, e justamente érnos é um dos elementos dessa
articulação, termo usado por Héracles (86-8) no elogio à imagem de Me-
leagro, tão belo guerreiro que um deus o pode ter nutrido – belo e jovem,
pois que “broto” ainda. Esse ponto fundamental, que mais comovente faz
a figura de Meleagro, é retomado não por acaso pelo próprio herói para
intensificar o páthos da conclusão de sua narrativa sobre a maneira como
veio a descer ao Hades: exatamente no instante em que mata um corajoso
e belo guerreiro – digno oponente –, a vida se esvai de seu corpo, diz ele,
na plenitude de sua “radiante juventude” (aglaàn hēban, 154). Uma das di-
mensões de érnos está, assim, explicitada na expressão; a outra, que projeta
a beleza do destinatário, se revela na possibilidade aventada por Héracles
da nutrição divina de Meleagro, e se reafirma no adjetivo aglaós conferido
ao substantivo hēbē, na expressão citada, pois a luz intensa, o reluzir, o bri-
lhar – essa ideia indica a beleza de seu referente, a “juventude”.
Meleagro morre no preciso instante em que, atuando na esfera da guerra,
vai consolidando seu potencial como bravo e belo guerreiro, movido pela
juventude de seu corpo – que torna ainda mais trágico seu fim. Eis uma di-
mensão de sua morte, encarecida pela imagem do érnos. Há outra, todavia:
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 63-83, jan/jun. 2016.
De brotos, vergônteas e que tais: a imagem do jovem meleagro... 75
metafórica que evoca o verdor das plantas jovens, vicejantes, frescas. Nesse
sentido, o uso do adjetivo khlōraúkhena para Dejanira espelha o de érnos
para Meleagro – e isso numa composição profundamente amarrada por es-
pelhamentos como é o Epinício 5 –, sendo, portanto, a terceira imagem vege-
tal forte da narrativa mítica – a primeira é a das folhas como metáforas dos
mortos no Hades de que já falamos. Esse argumento que aqui encareço não se
sustenta em ideias consolidadas impostas à leitura de khlōraúkhena – como a
da palidez feminina –, nem em ideias demasiado flexibilizadas – como a de
que khlōrós qualificaria canto ou voz –, mas nas articulações estabelecidas na
ode de Baquílides antes da introdução de Dejanira e nela própria, não apenas
pelo espelhamento entre a jovem e Meleagro, construído pela metáfora ve-
getal de modo indireto, e, de modo direto, pelo desejo expresso por Héracles
de que, se existir, a irmã de Meleagro, a jovem parthénos, lhe seja “símil na
forma, na aparência” (phyàn alinkía, 168), pois, em sendo assim, dela fará
“reluzente esposa” (liparàn ... ákoitin, 169) – tão reluzente, decerto, quanto
Meleagro, luzente guerreiro (72) que a Héracles impacta no Hades.
No desenho do Epinício 5, Dejanira e Meleagro são similarmente belos,
brilhantes e jovens: a pele khlōrós do pescoço da parthénos revelando-se ju-
venil, vicejante, fresca, vigorosa, espelhando, pelo imaginário vegetal evoca-
do pelo epíteto composto, o termo érnos, que qualifica metaforicamente a
beleza jovem do “broto” Meleagro (86-8), talvez nutrido por deuses, que ao
Hades desceu no auge de sua virilidade, mas sem consolidá-la plenamente,
pois que se prova na guerra, mas não deixa descendência. Aceita essa leitura,
explica-se a tradução que proponho para khlōraúkhena, “de pescoço vicejan-
te” (172)26, com a qual, de um lado, evito o estranhamento que produziria em
nossa língua a mais literal “de pescoço verde” (Cairns e Howie, 2010, pp. 167,
242-3), e mantenho, de outro, a ideia do vicejar – da vitalidade e do frescor
próprios a khlōrós, por consequência27 – que é primordialmente associado às
plantas frescas, jovens, a realizarem seu potencial28.
Conclui-se, pois, que na bem amarrada ode de Baquílides, érnos (87)
26 Similarmente às traduções de Lattimore (1960, p. 75; 1a ed. 1949: “her throat still green with
youth”), Arena (1965, p. 108: “dal florido collo”), Campbell (1998, p. 432, 1ª ed.: 1967; 1992, p.
151: “with the bloom of youth on her neck”), Miller (1996, p. 210: “with youth’s bloom about her
neck”), Gentili e Catenacci (2010, p. 269: “fiorente”), Jesus (2014, p. 76: “viçoso colo”).
27 O frescor está marcado na qualificação do pescoço em Jebb (1905, pp. 20-1: “with the freshness
(the fresh bloom) of youth upon her neck”), Gerber (1970, p. 357: “with the fresh bloom of youth
upon her neck”), Romero (1988, p. 104 – “fresco cuello”), Mulroy (1995, p. 155: “dewy-necked”),
Slavitt (1998, p. 31: “The skin of her neck is smooth as a fresh olive”), Lourenço (2006, p. 89),
Dolfi (2010, p. 147: “dal collo fresco, giovane”).
28 Atentando para a dimensão da juventude, o brilho da pele é marcado na tradução de Fagles
(1998, p. 18: “Her neck glows with the gloss of youth”); a maciez em Desrousseaux (1898, p. 15:
“cou tendre”), Burnett (1984, p. 138: “tender-throated”), Fowler (1992, p. 234: “tender-necked”).
BIBLIOGRAFIA
Abstract: This study aims to determine ways to reference the prose in Antiquity
evaluated for their artistic and literary value in comparison with poetry. We
will evaluate initially considerations in some texts from Lucian of Samosate
(especially Nigrinus) that somehow deal with the poetic and the effects of writ-
ing prose. From the criticism of Luciano and comparison with some quotes
from works of Isocrates (Antidosis and To Nicocles), we intend to analyze sev-
eral passages of the Plato’s Republic, especially Books II and III, in order to
discern a systematic treatment of the prose compared to the poetic discourse.
Keywords: prose in Antiquity; Lucian of Samosate; Plato; Republic
Por outro lado, Platão bem como Isócrates (e Xenofonte de modo mais
restrito) buscaram direta ou indiretamente comparar suas obras, seu tipo
de composição, sua forma de estruturar o discurso assim como a finalidade
e os efeitos pretendidos em relação aos poemas e ao discurso poético. Isó-
crates, nesse sentido, é mais explícito do que Platão em definir e classificar
seus escritos, sob a ótica de parâmetros, a princípio, estéticos (e éticos sob
outros aspectos), similares, correlatos ou mesmo superiores às obras dos
poetas. De uma forma ou de outra, há sempre a indicação de substituição e
de aprimoramento pela sugestão ao leitor ou ouvinte para trocar, em vista
de maior proveito, a poesia por uma espécie de prosa a ela correlata, tendo
por fundamentação diferentes tipos de parâmetros, quer de composição,
quer de avaliação estética e ética, quer por seus efeitos.
Em vista de retomar passagens especificamente na República de Platão
(paralelamente a alguns passos em Isócrates) em que se estabelecem, de
3 Tradução de Ana Maria Valente, edição portuguesa. Cf. BELO, 1994, p. 40-41. Cf. ARISTÓ-
TELES, Retórica, 1417a21-22.
4 Para intertextualidade em Luciano, cf. BRANDÃO, 2001; BRANHAM, 1989; JONES, 1986.
5 Tradução feita em conjunto por Cassiana Lopez Stephan, Priscila Caroline Buse e por mim,
publicada no livro organizado pelo professor Jacyntho Lins Brandão: Biografia literária / Lu-
ciano de Samósata. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015.
inicial, ainda que seja precedido da carta. Na verdade, é para esse aspecto
de impersonificação dramática ligada à mimesis que Luciano parece querer
chamar a atenção no passo seguinte:
Ele, ó meu amigo, uma vez que começou a falar sobre tais ques-
tões e a expor sua forma de pensar, derramou sobre mim em
discursos tamanha quantidade de ambrosia, tal que tanto as fa-
mosas sereias, se é que existiram, quanto os rouxinóis e o lótus
de Homero pareciam antiquados: assim divino se pronunciou.
[Ὁ δὲ ἀπἀρξάμενος, ὦ ἑταῖρε, περὶ τούτων λέγειν καὶ τὴν
ἑαυτοῦ γνώμην διηγεῖσθαι τοσαύτην τινά μου λόγων
ἀμβροσίαν κατεσκέδασεν, ὥστε καὶ τὰς Σειρῆνας ἐκείνας, εἴ
τινες ἄρα ἐγένοντο, καὶ τὰς ἀηδόνας καὶ τὸν Ὁμήρου λωτὸν
ἀρχαῖον ἀποδεῖξαι] (Luciano, Nigrino, 3).
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 85-106, jan/jun. 2016.
Prosa literária em face da poesia na antiguidade: interlocuções... 91
Para esse que é um passo fundamental do livro III, as duas traduções uti-
lizadas são de Jacyntho Lins Brandão e de Eleazar Magalhães Teixeira. Parto
das questões aventadas por Brandão em artigo sobre a questão: este decla-
ra que o ponto de partida da teoria literária em Platão estaria firmemente
estabelecido nesta concepção de diegese. Brandão, embora não diminua o
papel da mímesis na reflexão platônica, advoga a tese de que a teoria literá-
ria na Grécia teria se iniciado com Platão a partir de uma teorização sobre
uma concepção de narrativa, diégesis. Para ele, o centramento da categoria
da mímesis viria a partir da Poética aristotélica e aí residiria sua maior dife-
rença com a perspectiva platônica. Em vista disso, ele faz um levantamento
8 Tradução 1 de Jacyntho Lins Brandão (2010, p. 3); tradução 2 de Eleazar Magalhães Teixeira
(2009, p. 82).
no âmbito público por parte dos poetas e o que é dito no âmbito parti-
cular e pessoal10. O contexto da citação explicita o sentido intencionado,
tomando como exemplo a exortação feita pelos pais aos filhos, ou seja,
indica o sistema pedagógico no nível mais familiar, o que parece evocar a
discussão inicial de Sócrates com Céfalo, o pai de Polemarco, no início do
Livro I sobre questões afins ligadas ao proceder com justiça ou injustiça.
De uma forma ou de outra, a prosa platônica parece configurar na textura
do diálogo aqueles tipos de contexto discursivo que, no âmbito particular,
corresponderia àquele mais publicizável e renomável dos poetas.
Há outra observação importante a fazer ao passo 366d-367e. A fala de
Adimanto faz menção ao caráter encomiástico e de censura dessas espécies
de discursos, além de apontar para a reputação, a fama e outros tipos de
proveito como finalidades buscadas. É irresistível buscar, a partir desse tipo
de critérios avaliativos, em certo sentido desvalorizados no texto platônico,
uma aproximação com a argumentação de Isócrates; ele, por seu turno, vai
elegê-los como categorias formais da prosa escrita que busca definir. Ao con-
trário do que aparece em alguns textos platônicos, Isócrates reiteradamente
concebe e valoriza sua obra como uma composição em prosa escrita.
Na obra Sobre a troca, por exemplo, Isócrates esclarece que o caráter
encomiástico difere sua prosa escrita de outras espécies de prosa. O fato
de elogiar, sobretudo numa acepção panegírica de cunho político, é um
parâmetro composicional, assim como o eudokimeîn, o ser estimado pelo
corpo de cidadãos, é o que deve ser buscado como efeito precípuo deste
gênero de discurso. Adquirir uma boa reputação, passar de uma má dóxa
para uma boa fama é o que objetiva a prosa isocrateana, concebida de for-
ma inovadora a partir de uma perspectiva biográfica. Cito, inicialmente,
a passagem em que tais critérios são referendados relativamente à poesia:
10 Cf. VASSALO, 2011, p. 107-108: “O discurso sobre fontes do mito “poético” levaria, então, a
refletir em especial sobre a advertência platônica a narradores não institucionalizados, mas
pertencentes à dimensão doméstica do educando: amas de leite e mães, as quais poderíamos
acrescentar as próprias gestantes (…).
Quadro 1:
1) 376d-e: Vamos então, como se compuséssemos histórias em forma de um mito (em
mythoi mythologoûntes) e dispuséssemos de tempo, eduquemos os homens pela palavra.
2) 377b: Permitiremos então sem muita reflexão que as crianças ouçam quaisquer fábulas
modeladas (mythous plasthéntas)? (…). Assim, primeiro, ao que parece, devemos vigiar os
que inventam [fabricam] fábulas (toîs mythopoioîs) (…).
3) 378c: Não se deve absolutamente contar-lhes [de modo fabuloso] histórias de combates
de gigantes ou representá-las em tapeçarias (mythologetéon autoîs kaì poikiltéon) (…).
4) 378d: (…) deve-se obrigar os poetas a inventar histórias [fabulosas] mais ou menos des-
se tipo (toùs poietàs (…) logopoieîn).
5) 392a: Resta-nos ainda alguma forma de discursos (eîdos lógon) para nós que estamos
definindo quais devem e quais não devem ser ditos (te lektéon kaì mé;)?
6) 394c: (…) que a respeito de poesia e ficção [afabulação] (tês poiéseos te kaì mythologías),
a tragédia e a comédia como dizes, se fazem totalmente por imitação (dià miméseos) (…).
7) 396c: (…) há uma forma de estilo e narrativa (léxeos te kaì diegéseos) através da qual
narraria (diegoîto) o homem que na realidade é bom e bem educado, quando lhe competisse
expressar (légein) algo (…).
8) 398a-b: (…) nos familiarizemos com um poeta e contador de fábulas (mythológoi) mais
rigoroso e menos agradável, tendo em vista a utilidade (…).
É bem possível que tenhamos terminado por completo a parte da música no que concerne a
discursos e fábulas (lógous te kaì mythous) (…).
1) 376d-e: Ἴθι οὖν, ὥσπερ ἐν μύθῳ μυθολογοῦντές τε καὶ σχολὴν ἄγοντες λόγῳ παιδεύωμεν
τοὺς ἄνδρας.
2) 377b: Ἆρ’ οὖν ῥᾳδίως οὕτω παρήσομεν τοὺς ἐπιτυχόντας ὑπὸ τῶν ἐπιτυχόντων μύθους
πλασθέντας ἀκούειν τοὺς παῖδας (…). Πρῶτον δὴ ἡμῖν, ὡς ἔοικεν, ἐπιστατητέον τοῖς
μυθοποιοῖς (…).
3) 378c: πολλοῦ δεῖ γιγαντομαχίας τε μυθολογητέον αὐτοῖς καὶ ποικιλτέον (…).
4) 378d: (…) τοὺς ποιητὰς ἐγγὺς τούτων ἀναγκαστέον λογοποιεῖν.
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 85-106, jan/jun. 2016.
Prosa literária em face da poesia na antiguidade: interlocuções... 101
5) 392a: Τί οὖν, ἦν δ’ ἐγώ, ἡμῖν ἔτι λοιπὸν εἶδος λόγων πέρι ὁριζομένοις οἵους τε λεκτέον καὶ μή;
6) 394c: (…) ὅτι τῆς ποιήσεώς τε καὶ μυθολογίας ἡ μὲν διὰ μιμήσεως ὅλη ἐστίν, ὥσπερ σὺ
λέγεις, τραγῳδία τε καὶ κωμῳδία (…).
7) 396c: (…) ἔστιν τι εἶδος λέξεώς τε καὶ διηγήσεως ἐν ᾧ ἂν διηγοῖτο ὁ τῷ ὄντι καλὸς
κἀγαθός, ὁπότε τι δέοι αὐτὸν λέγειν (…).
8) 398a-b: (…) αὐτοὶ δ’ ἂν τῷ αὐστηροτέρῳ καὶ ἀηδεστέρῳ ποιητῇ χρῴμεθα καὶ μυθολόγῳ
ὠφελίας ἕνεκα (…).
(…) κινδυνεύει ἡμῖν τῆς μουσικῆς τὸ περὶ λόγους τε καὶ μύθους παντελῶς διαπεπεράνθαι (…).
Quadro 2:
1) 380b-c: (…) mas dizer que Deus, que é bom, é causa de males para alguém, a isso de-
vemos nos opor de qualquer modo, quer alguém diga isso na sua própria cidade (…), quer
ouça alguém dizer, seja ele jovem ou velho, quer narre fábulas em verso ou em prosa (met’
en métroi méte áveu métrou mythologoûnta).
2) 380c: Então, disse eu, essa seria uma das leis e dos modelos relativo aos deuses, de acordo
com a qual será necessário que os que falam façam seus discursos ou os poetas representem
suas ficções (toùs légontas légein kaì toùs poioúntas poieîn) (…).
3) 387c: E na prosa e na poesia (lektéon te kaì poietéon) não se deve criar um modelo con-
trário a esses?
4) 390a: E quantas outras afrontas que têm sido ditas por homens insolentes para seus che-
fes através da prosa e da poesia (en lógoi è en poiései)?
5) 393b: E seria mais ou menos assim; mas explicarei em prosa (áneu métrou), pois não sou
poeta [do tipo que compõe poesia] (poietikós)?
6) 397c: Então todos os poetas e os que narram algo (hoi poietaì kaì hoí ti légontes) não
atingem seu objetivo, ou com o primeiro destes modelos de expressão (typoi tês léxeos), ou
com o segundo, ou com ambos, quando, misturado um ao outro?.
7) 415a: (…) no entanto ouve também o resto da fábula. É que todos vós que habitais na
cidade sois irmãos como diremos para eles contando a fábula (mythologoûntes) (…).
8) 607d-e: E permitiríamos também, pelo menos aos seus defensores, que não sendo poe-
tas, mas fossem amigos da poesia (philopoietaí), que fizessem um discurso em sua defesa,
contanto que em prosa [em discurso sem metro] (áneu métrou lógon hypèr autês légein),
demonstrando que ela não é só agradável, mas útil aos regimes políticos e à vida humana, e
o ouviríamos com boa vontade.
1) 380b-c: (…) κακῶν δὲ αἴτιον φάναι θεόν τινι γίγνεσθαι ἀγαθὸν ὄντα, διαμαχετέον παντὶ
τρόπῳ μήτε τινὰ λέγειν ταῦτα ἐν τῇ αὑτοῦ πόλει (...), μήτε τινὰ ἀκούειν, μήτε νεώτερον μήτε
πρεσβύτερον, μήτ’ ἐν μέτρῳ μήτε ἄνευ μέτρου μυθολογοῦντα (...)
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 85-106, jan/jun. 2016.
102 Pedro Ipiranga Júnior
2) 380c: Οὗτος μὲν τοίνυν, ἦν δ’ ἐγώ, εἷς ἂν εἴη τῶν περὶ θεοὺς νόμων τε καὶ τύπων, ἐν ᾧ δεήσει
τούς τε λέγοντας λέγειν καὶ τοὺς ποιοῦντας ποιεῖν (…).
3) 387c: Τὸν δὲ ἐναντίον τύπον τούτοις λεκτέον τε καὶ ποιητέον;
4) 390a: καὶ ὅσα ἄλλα τις ἐν λόγῳ ἢ ἐν ποιήσει εἴρηκε νεανιεύματα ἰδιωτῶν εἰς ἄρχοντας;
5) 393b: εἶχε δ’ ἂν ὧδε πως – φράσω δὲ ἄνευ μέτρου· οὐ γάρ εἰμι ποιητικός –
6) 397c: Ἆρ’ οὖν πάντες οἱ ποιηταὶ καὶ οἵ τι λέγοντες ἢ τῷ ἑτέρῳ τούτων ἐπιτυγχάνουσιν τύπῳ
τῆς λέξεως ἢ τῷ ἑτέρῳ ἢ ἐξ ἀμφοτέρων τινὶ συγκεραννύντες;
7) 415a: (…) ἀλλ’ ὅμως ἄκουε καὶ τὸ λοιπὸν τοῦ μύθου. ἐστὲ μὲν γὰρ δὴ πάντες οἱ ἐν τῇ πόλει
ἀδελφοί, ὡς φήσομεν πρὸς αὐτοὺς μυθολογοῦντες (…).
8) 607d-e: Δοῖμεν δέ γέ που ἂν καὶ τοῖς προστάταις αὐτῆς, ὅσοι μὴ ποιητικοί, φιλοποιηταὶ δέ,
ἄνευ μέτρου λόγον ὑπὲρ αὐτῆς εἰπεῖν, ὡς οὐ μόνον ἡδεῖα ἀλλὰ καὶ ὠφελίμη πρὸς τὰς πολιτείας
καὶ τὸν βίον τὸν ἀνθρώπινόν ἐστιν· καὶ εὐμενῶς ἀκουσόμεθα. κερδανοῦμεν γάρ που ἐὰν μὴ
μόνον ἡδεῖα φανῇ ἀλλὰ καὶ ὠφελίμη.
16 Quanto ao caráter de ocultamento e reserva nos diálogos platônicos, cf. SZLEZÁK, 1997, p.
28-43.
BIBLIOGRAFIA
γάρ, a “complex” one and a “simple” one. In the “complex” use ἀλλά and
γάρ fulfil their functions independently, ἀλλά going with the main clause
and γάρ with a dependent clause, while in the “simple” use both go with
the main clause, whereby the collocation usually means “but, as matter of
fact” (Denniston 1954: 101).
As regards the “complex” use, the passages where ἀλλὰ γάρ (or ἀλλὰ
… γάρ for that matter) signal an entrance on stage may be readily analyzed
in terms of the PUSH and POP theory as expounded by Slings (1997). Let
us take for instance Euripides Hippolytus 51. Upon seeing Hippolytus ap-
proaching, Aphrodite cuts short her speech and retires in order to shun an
undesired encounter. The goddess marks his arrival by saying:
(1) POP
ἀλλ’ PUSH εἰσορῶ γὰρ τόνδε παῖδα Θησέως
στείχοντα, θήρας μόχθον ἐκλελοιπότα,
Ἱππόλυτον, POP ἔξω τῶνδε βήσομαι τόπων.
‘But now I see Hippolytus coming, finished with the toil of the hunt, and so I shall
leave this place.’2 (E. Hipp. 51-3)
by sentence initial ἀλλά. Helen breaks off upon catching sight of Theocly-
menus, whose entrance on stage she signals thus:
(2) POP
ἀλλ’, PUSH ἐκπερᾶι γὰρ δωμάτων ὁ τοὺς ἐμοὺς
γάμους ἑτοίμους ἐν χεροῖν ἔχειν δοκῶν,
POP
σιγητέον μοι·
‘But since he is coming out, the man who thinks he has me safely in his possession, I
must say nothing.’ (E. Hel. 1385-7)
(3) POP
ἀλλ’ PUSH εἰσορῶ γὰρ τοῦδε δεσπότου δέμας
Ἀγαμέμνονος, POP τοὐνθένδε σιγῶμεν, φίλαι.
‘But since I see Agamemnon, your master, approaching, let us now hold our peace.’
(E. Hec. 724-5)
It is again the chorus leader who makes known the appearance of the
Phrygian in Euripides Orestes 1369 – this time not upon seeing the new
character, but upon hearing noises from inside the skene.4
(4) POP
ἀλλὰ PUSH κτυπεῖ γὰρ κλῆιθρα βασιλείων δόμων,
POP
σιγήσατ’· ἔξω γάρ τις ἐκβαίνει Φρυγῶν,
οὗ πευσόμεσθα τἀν δόμοις ὅπως ἔχει.
‘But the bars of the palace gate are clanging. Hush, here comes one of the Phrygians, from
whom we shall learn how matters stand indoors.’ (E. Or. 1366-8)
The envisaged action within the POP level may comprise either a verbal
adjective in -τέος (σιγητέον [ex. 2]), an exhortative subjunctive (σιγῶμεν
[ex. 3]), an imperative (σιγήσατ’ [ex. 4]), or a first person future (βήσομαι
[ex. 1]). For the sake of thoroughness, let me quote one more example from
the last three complements to POP ἀλλά – first person future, second person
plural imperative, and verbal adjective in -τέος respectively. In all these ex-
amples, it must be borne in mind that the γάρ-clauses provide the reasons
for the course of action to be undertaken: the same particle cluster accounts
for a sudden shift of focus calling for action (POP ἀλλά ... POP [complement])
and furnishes the cause thereof (PUSH γάρ), namely, the perception of a (new)
character on stage.
4 The passage may have been inserted by a later actor, to whom the pattern was familiar. It does
not figure in Denniston’s list of entry-marking ἀλλὰ γάρ.
Following a sorrow-laden choral song, the chorus leader signals the en-
try of Creon in Euripides Phoenician Women 1308 by vowing to put a stop
to her weeping.5
(5) POP
ἀλλὰ PUSH γὰρ Κρέοντα λεύσσω τόνδε δεῦρο συννεφῆ
πρὸς δόμους στείχοντα, POP παύσω τοὺς παρεστῶτας γόους.
‘But I see Creon coming to the palace with clouded brow: I shall cease from my
present lamentations.’ (E. Ph. 1308-9)6
(6) POP
ἀλλ’ PUSH εἰσορῶ γὰρ ἐς δόμους ὁρμωμένην
Πενθέως Ἀγαυὴν μητέρ’ ἐν διαστρόφοις
ὄσσοις, POP δέχεσθ’ ἐς κῶμον εὐίου θεοῦ.
‘But look! I see Pentheus’ mother Agave coming toward the house, her eyes rolling in mad-
ness! Receive her into the reveling band of the blissful god!’ (E. Ba. 1165-7)7
(7) POP
ἀλλ’ PUSH εἰσορῶ γὰρ τήνδε πρόσπολόν τινα
πηγαῖον ἄχθος ἐν κεκαρμένωι κάραι
φέρουσαν, POP ἑζώμεσθα κἀκπυθώμεθα
δούλης γυναικός, ἤν τι δεξώμεσθ’ ἔπος
ἐφ’ οἷσι, Πυλάδη, τήνδ’ ἀφίγμεθα χθόνα.
‘Look! I see a slave woman here carrying her burden of water on her close-
cropped head. Let us crouch down, Pylades, and listen to her on the chance that
we might catch some word to further the purpose that brought us to this land.’
(E. El. 107-11)
(8) [subjunctive]
POP
ἀλλ’ PUSH ἄξιος γὰρ ὅ τε παρὼν ὅ τ’ οὐ παρὼν
Ἀγαμέμνονος παῖς, οὗπερ οὕνεχ’ ἥκομεν,
POP
δεξώμεθ’ οἴκων καταλύσεις.
‘Well, since your present guest and the absent son of Agamemnon, for whose
sake we have come, are his worthy guests, let us accept the lodging this house
affords.’ (E. El. 391-3)9
(9) [imperative]
POP
ἀλλ’ PUSH ἡ βία γὰρ ταῦτ’ ἀναγκάζει με δρᾶν,
POP
σύγγνωτε.
‘but since a hard compulsion forces me to do this, you must bear with me!’ (S.
El. 256-7)10
9 Cf. Ar. Nu. 798 POP ἀλλ’ PUSH οὐκ ἐθέλει γὰρ μανθάνειν, POP τί ἐγὼ πάθω; ‘but he refuses to go to
school, so what can I do?’ (N.G. Wilson prints a period after μανθάνειν; Denniston 1954: 99
prefers a comma, to my mind correctly); V. 318-9 POP ἀλλ’— PUSH οὐ γὰρ οἷός τ’ εἴμ’ ᾄδειν— POP
τί ποιήσω; ‘But since I can’t sing, what am I to do?’. In E. El. 1245-6 σιγῶ may of course be
either indicative or subjunctive: POP ἀλλ’ PUSH ἄναξ γάρ ἐστ’ ἐμός, POP σιγῶ ‘But no, since he is
my lord, I hold my peace [or may I hold my peace]’; compare with example (3).
10 A similar example, although with a different word order (the ἀλλά and γάρ clauses do not
appear intertwined, they follow one another), is Ar. Pax 668-9 POP ἀλλὰ συγγνώμην ἔχε· PUSH
ὁ νοῦς γὰρ ἡμῶν ἦν τότ’ ἐν τοῖς σκύτεσιν ‘but do pardon us: at that time our brains were in
our shoe leather’. Other instances of imperative use (I confine myself to tragedy and comedy):
S. Ant. 148-51 POP ἀλλὰ PUSH γὰρ ἁ μεγαλώνυμος ἦλθε Νίκα …, POP ἐκ μὲν δὴ πολέμων τῶν
νῦν θέσθε (v.l. θέσθαι) λησμοσύναν ‘But since Victory whose name is glorious has come …,
after the recent wars let us be forgetful’ (as in example [5], ἀλλά and γάρ occur side by side,
with no difference whatsoever to the disjoined ἀλλὰ ... γάρ instances); E. Alc. 422-4 POP ἀλλ’,
PUSH
ἐκφορὰν γὰρ τοῦδε θήσομαι νεκροῦ, POP πάρεστε καὶ μένοντες ἀντηχήσατε παιᾶνα τῶι
κάτωθεν ἄσπονδον θεῶι ‘But since I shall conduct the funeral, attend me here, and while
you wait sing a hymn to the god below, a hymn unaccompanied by libations’; E. Med. 1344-6
POP
ἀλλ’ PUSH οὐ γὰρ ἄν σε μυρίοις ὀνείδεσιν δάκοιμι· τοιόνδ’ ἐμπέφυκέ σοι θράσος; POP ἔρρ’,
αἰσχροποιὲ καὶ τέκνων μιαιφόνε ‘But since ten thousand insults of mine would not fail to
sting you – such is your native impudence – be gone, doer of disgraceful deeds and murderer
of your children’; S. OC 624-5 POP ἀλλ’ PUSH οὐ γὰρ αὐδᾶν ἡδὺ τἀκίνητ’ ἔπη, POP ἔα μ’ ἐν οἷσιν
(10) [future]
POP
ἀλλ’ PUSH οὐ γὰρ εἰπεῖν οὔτ’ ἐμοὶ τόδ’ ἀσφαλὲς
πικρόν τε τοῖσι τὴν τύχην κεκτημένοις
πόλει παρασχεῖν φάρμακον σωτηρίας,
POP
ἄπειμι.
‘But it is unsafe for me to speak these words, and it will be galling to those who
are touched by this fate that I should give the city its life-saving medicine: I’m going away.’
(E. Ph. 891-4)11
(11) [-τέος]
POP
ἀλλ’ PUSH εὖ γὰρ εἶπας, POP πειστέον·
‘Well, your advice is good, and I must take it.’ (E. IT 118)12
to put something into effect; the reason underlying this call to action –
falling in silence included – is furnished simultaneously, whereby ἀλλά
and γάρ clauses intermingle. Not every example, though, of the “complex”
use of our ἀλλὰ γάρ cluster is so clear-cut, and Denniston himself (1954:
99) includes among them two passages that demand further discussion. In
the first one, Euripides Trojan Women 706, ἀλλὰ γάρ may well have been
taken as an entry mark, for Hecuba interrupts her speech when she sees “a
servant of the Achaeans” approaching (actually Talthybius) and says:
The reason for Polynices seeing Jocasta in such a state is not because
one grief piles upon another. Rather, it is precisely because he has in front
of his eyes the wretched figure of his mother that he is prompted to assert
his distress. He dismisses the account of his personal plights given in the
previous lines, cutting it short to address her. Here, again, ἀλλὰ ... γάρ POP
seems to fulfil this breaking-off function. Both last examples show the use
of ἀλλὰ ... γάρ with almost idiomatic expressions, making up what seem
to be self-contained phrases (ἀλλ’ ἐκ λόγου γὰρ ἄλλος ἐκβαίνει λόγος and
ἀλλ’ ἐκ γὰρ ἄλγους ἄλγος αὖ) followed by independent clauses.13
Yet the picture may be more complicated. Let me quote one last ex-
ample of the ἀλλὰ ... γάρ combination unrelated to entries of characters on
stage. In Euripides Iphigenia at Aulis 506-12 Agamemnon thanks Menel-
aus for his conciliating speech but then breaks off, stressing the necessity
of killing his own offspring:
Two analyzes present themselves. Either ἀλλὰ ... γάρ, as in the last
two examples, is regarded as a single unity at the POP level (POP ἀλλ’ ἥκομεν
γὰρ … φόνον) or each particle fulfils its relevant function in a “complex”
structure (POP ἀλλ’ PUSH ἥκομεν γὰρ … φόνον). In the second alternative,
the return to the ἀλλά POP level after the intervening γάρ PUSH should
be considered as suppressed, entailing a sort of ellipsis or aposiopesis. In-
deed, the whole line 512 stays in apposition to ἀναγκαίας τύχας; strictly
speaking, one might take γάρ as a PUSH particle and translate: “POP But
PUSH
since we have reached the point where necessity rules – necessity, that
13 For a similar use of such expressions, cf. E. Tr. 1118-22: ἰὼ ἰώ, καίν’ ἐκ καινῶν μεταβάλλουσαι
χθονὶ συντυχίαι. λεύσσετε Τρώων τόνδ’ Ἀστυάνακτ’ ἄλοχοι μέλεαι νεκρόν... ‘Ah, ah! Our
land’s fortunes undergo one woeful change after another! Look, unhappy wives of the Tro-
jans, at dead Astyanax!’. Here there is no particle involved, but the lines signal the entrance
on stage of the body of Astyanax, and one may compare λεύσσετε (Tr. 1119) with δέδορκα
(Tr. 707) and δέρκομαι (Ph. 371). Cf. also E. Or. 1503-5 καὶ μὴν ἀμείβει καινὸν ἐκ καινῶν
τόδε· ξιφηφόρον γὰρ εἰσορῶ πρὸ δωμάτων βαίνοντ’ Ὀρέστην ἐπτοημένωι ποδί ‘But see, one
strange thing succeeds another: I see Orestes, armed with a sword, coming out in front of the
house with agitation in his step.’ I shall briefly discuss the relationship of entry-marking ἀλλὰ
γάρ and καὶ μήν in section 3 below.
(i) ἀλλ’ PUSH εἰσορῶ γὰρ τόνδε τὸν Διὸς τρόχιν, τὸν τοῦ τυράννου τοῦ νέου διάκονον· POP
POP
πάντως τι καινὸν ἀγγελῶν ἐλήλυθεν.
(ii) POP ἀλλ’ εἰσορῶ γὰρ τόνδε τὸν Διὸς τρόχιν, τὸν τοῦ τυράννου τοῦ νέου διάκονον· πάντως τι
καινὸν ἀγγελῶν ἐλήλυθεν.
(ii) POP ἀλλ’ PUSH εἰσορῶ γὰρ τόνδε τὸν Διὸς τρόχιν, τὸν τοῦ τυράννου τοῦ νέου διάκονον
POP
Ø…· πάντως τι καινὸν ἀγγελῶν ἐλήλυθεν.
words, when a γάρ clause is present the verb of seeing only furnishes the
reason for the sudden call to action (implied or not).14
Another entry-marking passage in which the cluster may be viewed
either as simple or complex is Euripides Heracles 442. The chorus leader
announces the entry of several characters as follows:
The zero or implied complement (POP ἀλλ’ PUSH ἐσορῶ γὰρ … πατέρ’
Ἡρακλέους. POPØ…) might be justified, on the one hand, by the sprawl-
ing description of the entering characters, at the end of which the ἀλλά
complement would sound unnatural; and, on the other, by the very ex-
clamation of vv. 448-50: the elderly coryphaeus bursts into tears against
his will, and one might suppose that the call to action following POP ἀλλά
would have hypothetically referred to it, e.g. “let me hold my tears in front
of them”.
A case where joy, not grievance, is involved is the following entry mark-
ing announced by Orestes:
14 E. Supp. 794-7 is a somewhat different case; the chorus leader signals the entry of Adrastus
and Theseus in the following way: ἀλλὰ τάδ’ ἤδη σώματα λεύσσω τῶν οἰχομένων παίδων·
μελέα πῶς ἂν ὀλοίμην σὺν τοῖσδε τέκνοις κοινὸν ἐς Ἅιδην καταβᾶσα; ‘But now I behold the
bodies of our perished sons! O how I wish I could die with these children, treading with them
the downward path to Hades!’ Here there is no ἀλλὰ γάρ cluster and no call to action is at
issue: πῶς ἂν ὀλοίμην, to which ἀλλά could be related, is merely a wish.
Pylades’ entry comes as a great surprise to Orestes; his hopes were gone
since Menelaus had left the stage, breaking Orestes’ suppliant grasp in
716.15 Now, putting in the shade his previous fears, he is thrilled at the sight
of his friend, and the comparison in 727-8 might be said to have precluded,
or at least left implicit, a call to action (e.g. “let me welcome him!”) resum-
ing the POP ἀλλά after the intervening γάρ clause (“since I see him…”): POP
ἀλλ’ PUSH εἰσορῶ γὰρ τόνδε φίλτατον βροτῶν Πυλάδην δρόμωι στείχοντα
Φωκέων ἄπο, ἡδεῖαν ὄψιν· POPØ… πιστὸς ἐν κακοῖς ἀνὴρ…
In Euripides’ Heracles a sense of foreboding from the chorus leader
might be expected when he announces the entry of, Lycus, the usurper of
the throne of Thebes:
γάρ and has a different frame of reference from the embedding sequence
marked by the POP particle ἀλλά.18
Other instances of entry-marking ἀλλὰ γάρ that do not display a com-
plement to POP ἀλλά nor a verb of seeing (or hearing) at the γάρ level can be
interchangeably analyzed as examples of either “complex” or “simple” con-
struction (= POP ἀλλὰ PUSH γάρ or POP ἀλλὰ γάρ respectively). Sophocles An-
tigone 155 is a case in point; Creon’s entry is thus announced by the chorus:
These lines come at the end of the choral song, and it would not be
stretching a point to suggest that a complement to POP ἀλλά has been left
implicit (e.g. “but let us put a halt to this song, since here comes Creon…
…”).19 Something similar would hold true for Aeschylus Seven Against The-
bes 861, although the passage is most probably spurious, for Antigone and
Ismene may have been added to the cast at a later date, when a reshaped
ending was created to the play (the mss. usually ascribe to the sisters the
responsive phrases beginning in 961).
18 Cf. examples (12) and (13) where the δέδορκα and δέρκομαι clauses go logically with the ex-
planation provided by the previous γάρ: in (12) it is because Hecuba sees (δέδορκα) a servant
of the Achaeans that she asserts that a new subject arises after the old (PUSH ἐκ λόγου γὰρ ἄλλος
ἐκβαίνει λόγος); in (13) it is because Polynices sees (δέρκομαι) Jocasta that he asserts that one
grief crowns another (PUSH ἐκ γὰρ ἄλγους ἄλγος αὖ). If one is ready to accept this, then αλλὰ γάρ
in example (12) could be regarded as an entry-marking instance with the following schema: POP
ἀλλ’ PUSH ἐκ λόγου γὰρ ἄλλος ἐκβαίνει λόγος. POPØ… (POPØ = σιγητέον μοι, σιγῶμεν vel sim.).
Obviously the possibility of analyzing the sentence as POP ἀλλ’ ἐκ λόγου γὰρ ἄλλος ἐκβαίνει
λόγος (i.e. ἀλλὰ γάρ POP) cannot be ruled out and in my view should be preferred.
19 Wakker (1997: 228) perfectly catches the meaning in her translation of lines 155-6: “but enough
about this for [ἀλλὰ ... γὰρ] here comes – please note [δὴ] – the king of the land, Creon”.
(20) POP
ἀλλὰ PUSH γὰρ ἥκουσ’ αἵδ’ ἐπὶ πρᾶγος
πικρὸν Ἀντιγόνη τ’ ἠδ’ Ἰσμήνη· POPØ…
‘But here come Antigone and Ismene to fulfil a bitter duty.’ (A. Th. 861-2)
The lines are suspect not least for disregarding the use of the entry-
marking ἀλλὰ γάρ cluster as a breaking-off device, which is common to
every other instance in our corpus: the chorus only breaks off a hundred
lines or so afterwards. In Aristophanes we find four times our cluster to
signal the entrance of a character on stage, and in all of them an implicit
“[but] enough of this, [for]…” or “[but] it doesn’t matter, [for]” may be as-
sumed.20 That is to say that an outline such as POP ἀλλὰ … PUSH γάρ … POPØ
may be taken for granted.
In (21) Dicaeopolis signals the entry of the Prytaneis after his introduc-
tory jeremiad on the woes of Athens. In (22) the same Dicaeopolis dis-
misses his sorrow over the loss of a savory dish (174 οἴμοι τάλας, μυττωτὸν
ὅσον ἀπώλεσα ‘Damn it all, what a good salad I’ve lost’) by announcing the
entrance of Amphiteus. In (23) Peisetaerus shrugs off the messenger’s ac-
count of walls so quickly built, which he considers a fish story, upon seeing
the approach of a second messenger. In (24) the Athenian Delegate breaks
off his speech and, baffled as he is, signals the entry of the slaves who were
chased off a few lines before (1224).
20 Denniston (1954: 103) refers also to Ar. Ec. 951, but wrongly so, for this is not really an entry
mark. Epigenes, the young man whose entrance is allegedly signaled, is already on stage: his
appearance was made known by the First Old Woman at 934 (ὁδὶ γὰρ αὐτός ἐστιν ‘In fact,
here he comes now!’).
All in all it seems that every instance of entry-marking ἀλλὰ (...) γάρ
may be viewed as “complex”, whereby the γάρ-clause explains the main
clause introduced by ἀλλά, which in turn may be elliptical or not. Many
instances of ἀλλὰ γάρ not marking an entrance-announcement in tragedy
and comedy follow this “complex” pattern, either with non-elliptical POP
ἀλλά (as seen in examples (8) to (11)) or with ellipsis (e.g. example (14)).21
“Simple” ἀλλὰ (...) γάρ, I suggest, is only found where an entry is not in-
volved, even though it may have a breaking-off function, as in Euripides
Ion 144 where, as far as I can see, there is little possibility of taking γάρ as a
PUSH particle even if one is ready to accept an ellipsis. Rather, the combi-
nation as a whole – as a “replacing” set formula – must be viewed as POP,
for here γάρ hardly retains its explanatory force:
(25) POP
ἀλλ’ ἐκπαύσω γὰρ μόχθους
δάφνας ὁλκοῖς,
χρυσέων δ’ ἐκ τευχέων ῥίψω
γαίας παγάν (...)
But I shall cease my labor of sweeping with these laurel branches, and from a
vessel of gold I shall cast the water the earth produces (…).’ (E. Ion 144-7)
It is also the chorus leader who, again after a strophic choral song, an-
nounces the arrival of Lycus, himself a king – but this time ἀλλὰ γάρ is em-
ployed (see example (18)): ἀλλ’ εἰσορῶ γὰρ τόνδε δωμάτων πέλας Λύκον
περῶντα, τῆσδε κοίρανον χθονός. ‘But I see the country’s ruler, Lycus,
approaching this house’ (E. HF 138-9). What is the pragmatic difference
between both?22
First it must be said that both ἀλλὰ γάρ and καὶ μήν are used by either
chorus leader or character to mark an arrival. But one may note that, at least
in Euripides, when καὶ μήν is used to announce the arrival of a character it
is basically uttered by the chorus leader, and seldom by a character, whereas
the split is not so clear-cut in Sophocles and Aeschylus (in Aristophanes it is
in fact the characters who preferably utter entry-marking καὶ μήν).
The figures for entry-marking ἀλλὰ γάρ in Euripides do not show such
an imbalance, and only characters utter them in Aristophanes.
22 A similar question seems to have puzzled Kamerbeek (1978: 60), who, commenting on S. Ant.
155, prefers not to delve into the problem: “Here the difference with καὶ μὴν is slight”. Cf. also
Webster (1933: 119-20): his account on what he calls “the καὶ μὴν and the ἀλλὰ γὰρ class” is
nevertheless rather chaotic.
23 E. Alc. 507, 611, 1006; Heracl. 118; Hipp. 899, 1151, 1342; Andr. 494, 545, 879, 1166; Hec. 216,
665; Supp. 980, 1031; El. 339; Tr. 230, 1207; IT 236; Ph. 443; Or. 348, 456, 1012; IA 1619; [Rh.]
85; S. El. 1422 (chorus); Ant. 525, 1180, 1257; OC 549; A. Th. 372 (?semi-chorus); Ar. Lys.
1072, 1082.
24 E. Ion 1257 (Creusa); [Rh.] 627 (Athena); S. Aj. 1168 (Teucer); El. 78 (old slave); OC 1249
(Antigone); Ar. Ach. 908 (Dicaeopolis); Eq. 691 (sausage seller); Pl. 332 (Chremylus), 1038
(old woman). Denniston (1954: 586) is somewhat misleading when he says that καὶ μήν is
“often” used as the first words of a character.
nounced entrances following choral songs (55%) using either καὶ μήν or
ἀλλὰ γάρ (in Euripides the percentage is 69%).31
As for the announced entries after strophic choral songs without the
use of ἀλλὰ γάρ and καὶ μήν, apart from the three instances mentioned
above where a break-off does not occur, there are three further instanc-
es where either ἀλλά or μήν is employed: S. Ant. 626 (μήν); E. Hipp. 170
(ἀλλά); E. IT 456 (ἀλλά).34 Most of the remaining cases display different
constructions, of which Sophocles is particularly fond: S. Ant. 376-8, 801-
5; Tr. 962-4; OT 1110-12; OC 1096-8; E. Tro. 1118-21; A. Ag. 489-94. In
all these passages the entry announcement is couched in an explanation
of sorts following upon a sentence. The use of καὶ μήν is hence precluded,
whereas the adversative character of ἀλλὰ γάρ would be out of place.35
31 The previous assertions correct and build upon Wilamowitz’s claim (1895: 38) – rightly chal-
lenged by Bond (1981: 101) – that ἀλλὰ γάρ is customary “bei der überleitung vom gesange
zum dialoge”.
32 E. Alc. 1006; Hipp. 1151; Andr. 494; Supp. 980; Tr. 230; Or. 348, 1012; S. Aj. 1168; OC 1249; A.
Th. 372.
33 E. HF 138, 442; Ph. 1308 (probably spurious); Or. 1366 (probably spurious); S. Ant. 155.
34 The break-off function is common to the three examples, and καί μὴν or ἀλλὰ γάρ might have
been used as well, particularly in the last case, where ἀλλὰ … γάρ would suit the context very
well (*POP ἀλλὰ ... PUSH γὰρ ... POP σιγᾶτε ...). The most interesting example is of course E. Or.
1549-50, combining as it does ἀλλά and μήν: ἀλλὰ μὴν καὶ τόνδε λεύσσω Μενέλεων δόμων
πέλας ὀξύπουν, ἠισθημένον που τὴν τύχην ἣ νῦν πάρα ‘But here I see Menelaus approaching
the house with hurried step: he must have heard about what has happened’. In this exam-
ple one might argue that ἀλλά goes with lines 1551-2: (ἀλλὰ...) οὐκέτ’ ἂν φθάνοιτε κλῆιθρα
συμπεραίνοντες μοχλοῖς, ὦ κατὰ στέγας Ἀτρεῖδαι ‘[But…] [y]ou in the house, Atreus’ de-
scendants, it’s high time you finished bolting the doors with bars!’
35 In A. Ag. 489-94 the announcement of arrival (κήρυκ’ … τόνδ’ ὁρῶ) follows, by way of ex-
planation, the sentence in which the arrival itself is hinted at (τάχ’ εἰσόμεσθα...). Hence the
adversative incision, so to say, that prevails in contexts where entry-marking ἀλλὰ γάρ and καὶ
μήν are used is absent (and καὶ μήν at 493 would be anyway impossible for it would not figure
as the first words spoken by the character (= Clytaemestra), the only place where it is found
among the extant tragedies and comedies (cf. Denniston 1954: 586 and Meridor 1979). See E.
Med. 1116-20, where καὶ δή is used: the context is similar, but Medea is certain of her success
and only waits for confirmation (cf. Erp Taalman Kip 2009: 114), while Aeschylus’ Clytaemes-
tra is not, hence the use of καὶ δή in Agamemnon 493 would be unwarranted. Something
similar also could be said of the following: S. Ant. 376-8 (the announcement explains why the
chorus is at a loss); S. Ant. 801-5 (for the tears that cannot be held in check when announcing
new arrivals upon stage, cf. E. HF 442-50 [ex.16: ἀλλὰ ... γάρ], esp. 449-50); S. Tr. 962-4; and
OC 1096-8. In E. Tr. 1118-21 the announcement explains why the chorus leader asserts that
one woeful change follows another (cf. E. Tr. 706-8 [ex.12]: ἀλλ’ ἐκ λόγου γὰρ ἄλλος ἐκβαίνει
λόγος...), and in S. OT 1110-12 the main clause τὸν βοτῆρ’ ὁρᾶν δοκῶ follows the conditional
clause in which the conditions for its truth are specified, thus precluding any adversative
incision typical of our particles. The case of E. Tr. 568-9 is a unique one: Ἑκάβη, λεύσσεις
τήνδ’ Ἀνδρομάχην ξενικοῖς ἐπ’ ὄχοις πορθμευομένην; ‘Hecuba, do you see Andromache here
carried on an enemy wagon?’ In our corpus, never is a verb of seeing (λεύσσω, ὁρῶ, ε[ἰ]σορῶ,
δέδορκα, δέρκομαι, βλέπω) used in the second person singular with the particles ἀλλὰ γάρ or
καὶ μήν to announce a new arrival. Only the first person singular is attested (11x καὶ μήν, 9x
ἀλλὰ γάρ); the second person λεύσσεις seems to have blocked any possibility of employing
either of the clusters.
Hecuba is the main topic since line 658.36 Her arrival is most suitable,
and this is duly underlined by the chorus leader: she comes “at the right
moment” (ἐς δὲ καιρόν). Characters arriving at the right moment are in-
deed not infrequently announced with the use of καὶ μήν, suggesting that
the topic is being either resumed or carried on. In Euripides Hippolytus
899, Hippolytus is the main topic since line 885 and his arrival simply
moves the topic forward, notwithstanding the break-off function inherent
to καὶ μήν. Again the right time (ἐς καιρόν) is mentioned.
Teucer had sent Tecmessa to fetch the child at 985-9;37 now they make
their entrance ἐς καιρόν, announced by entry-marking καὶ μήν.38 Alterna-
tively, entrances signaled by ἀλλὰ γάρ are never said to happen at the right
time.39
36 The maidservant asks the chorus where Hecuba is at 658 (γυναῖκες, Ἑκάβη ποῦ ποθ’ ἡ
παναθλία ‘women, where is Hecuba the utterly wretched…?’) and explains why she does so at
663 (Ἑκάβηι φέρω τόδ’ ἄλγος ‘it is to Hecuba that I bring this sorrow’).
37 Cf. Erp Taalman Kip 2009: 113; Wakker 1997: 228.
38 Compare also A. Th. 372-3 καὶ μὴν ἄναξ ὅδ’ αὐτὸς Οἰδίπου τόκος (= Eteocles) εἰς ἀρτίκολλον,
ἀγγέλου λόγον μαθεῖν ‘And here is the king himself, the son of Oedipus, just at the precise time
to learn what the messenger has to say’. At 369-71 a voice from the chorus (or the second half-
chorus) had announced the entry of the scout, without particles; now Eteocles’ entry is signaled
alongside the remark that he has come “in the nick of time” to hear what the scout is about to say.
39 Rather, an element of surprise may be felt: the entrance of Amphiteus coming back so soon
from Sparta (Ar. Ach. 175 = example 22) must surely have caused a mild astonishment to
Dicaeopolis, for he had sent him on a diplomatic mission to the city at 130-2, barely forty-five
Here lies one of the main differences between καὶ μήν and καὶ δή: the
character whose arrival is signaled by καὶ μήν may well have been the topic
of the discussion that immediately precedes it, yet the arrival is not pre-
pared for (when it is, καὶ δή is used).40 But the crucial point is that entry-
marking καὶ μήν tend to enhance topic continuity, lending particular cohe-
sion to an arrival on stage. A character arriving of his or her own accord,
for instance, may be explicitly integrated into the plot in the following
examples:
A character may also arrive on stage after being summoned, and here
καὶ μήν may signal that a topic is being resumed.
lines before! In Ar. Ach. 40 (= example 21) the Prytaneis were previously referred to, but the
use of ἀλλὰ γάρ may well be sarcastic: “Look, what a surprise, here they come… at noon!”
(they were expected long before that).
40 Cf. Erp Taalman Kip 2009: 120-1, 128.
41 Cf. Ar. Pl. 1038-9 καὶ μὴν τὸ μειράκιον τοδὶ προσέρχεται, οὗπερ πάλαι κατηγοροῦσα τυγχάνω
(…). ‘But look, here comes the young man now, the very one I’ve been castigating.’ Example
(30) is of course a suitable one as well.
42 Cf. E. IA 1619-20 καὶ μὴν Ἀγαμέμνων ἄναξ στείχει, τούσδ’ αὐτοὺς ἔχων σοι φράζειν μύθους
‘See, here comes lord Agamemnon, who has the same tale to tell you’. Cf. also E. Or. 1549-52
(already mentioned in footnote 34): ἀλλὰ μὴν καὶ τόνδε λεύσσω Μενέλεων δόμων πέλας
ὀξύπουν, ἠισθημένον που τὴν τύχην ἣ νῦν πάρα. ‘But here I see Menelaus approaching the
house with hurried step: he must have heard about what has happened.’
43 Theseus was summoned by Oedipus himself at 455-6; cf. Erp Taalman Kip 2009: 113.
44 Cf. Erp Taalman Kip 2009: 116; 117 (on Eur. Ion 1257-8). In Euripides Andromache 545-6 (καὶ
μὴν δέδορκα τόνδε Πηλέα πέλας, σπουδῆι τιθέντα δεῦρο γηραιὸν πόδα ‘But look, I see Peleus
nearby, hastening his aged steps hither’), Peleus enters accompanied by the maidservant sent
by Andromache some 450 lines before (cf. vv. 79-90)!
45 Ἄδμητον ἐν δόμοισιν ἆρα κιγχάνω;
46 Cf. Erp Taalman Kip 2009: 114.
4. Conclusions
REFERENCES
O Proêmio
15 À exceção do epigrama 14, ver a discussão sobre as espécies dos epigramas votivos e tumula-
res em Rossi 2001: 3-13. Para a alternância entre estas espécies, entre o epigrama 7 e o 12, ver
Gutzwiller 1998: 44, em que apresenta paralelo com outro livro epigramático, P. Köln 5.204,
que contém seis epigramas de Mnasalces.
16 Metro mais frequente no gênero.
17 17 dedicado a Anacreonte, 18 a Epicarmo, 19 a Hipônax, 21 a Arquíloco e 22 a Pisandro. Para
estudo dos epigramas sobre poetas, ver Rossi 2001: 81-106.
18 Ver discussão em Gutzwiller 1996a: 139-142.
19 Como faz, por exemplo, Gutzwiller 1998: 42-45 e Rossi 2001:367-375.
20 Tarditi 1988: 47; Gutzwiller 1998: 43; Rossi 2001: 124-125; 367. Rossi enfatiza tal caráter e
critica a classificação como bucólico.
21 Ver Gow 1952: 527, que considera os três primeiros da mesma maneira.
22 Remeto a Rossi 2001: 65-73.
ἅδιον οὐδὲν ἔρωτος, ἃ δ᾽ ὄλβια, δεύτερα πάντα
ἐστὶν ἀπὸ στόματος δ᾽ ἔπτυσα καὶ τὸ μέλι.
τοῦτο λέγει Νοσσίς: τίνα δ᾽ ἁ Κύπρις οὐκ ἐφίλασεν,
οὐκ οἶδεν κήνα γ᾽ ἄνθεα ποῖα ῥόδα.
ἡδὺ θέρους διψῶντι χιὼν ποτόν ἡδὺ δὲ ναύταις
ἐκ χειμῶνος ἰδεῖν εἰαρινὸν Στέφανον:
ἥδιον δ᾽ ὁπόταν κρύψῃ] μία τοὺς φιλέοντας
χλαῖνα, καὶ αἰνῆται Κύπρις ὑπ᾽ ἀμφοτέρων.
αἵ νύ ποθ᾽ Ἡσίοδον καλὴν ἐδίδαξαν ἀοιδήν,
ἄρνας ποιμαίνονθ᾽ Ἑλικῶνος ὕπο ζαθέοιο.
τόνδε δέ με πρώτιστα θεαὶ πρὸς μῦθον ἔειπον,
Μοῦσαι Ὀλυμπιάδες, κοῦραι Διὸς αἰγιόχοιο: 25
ποιμένες ἄγραυλοι, κάκ᾽ ἐλέγχεα, γαστέρες οἶον,
ἴδμεν ψεύδεα πολλὰ λέγειν ἐτύμοισιν ὁμοῖα,
ἴδμεν δ᾽, εὖτ᾽ ἐθέλωμεν, ἀληθέα γηρύσασθαι.
dedicators. Concerning the figure of Daphnis, then, the composition juxtaposes the Theocri-
tean tradition and that probably derived from a source that followed a different version of the
myth”.
44 Ver discussão em Rossi 2001: 134-137.
45 Ver, por exemplo, Theoc. 3.10; Catul. 65.19; Verg. Ecl. 3.70-71; Prop. 1.3.24. Para outras refe-
rências, ver Hunter 1999: 113-114. Na AP, ver 5.79 e 5.80, os epigramas eróticos atribuídos a
Platão.
46 Gutzwiller (1998: 43) ressalta o tema sexual em 3 e 4: “The fourth poem moves the sexual
theme from the gods to the world of a herdsman, who prays for relief from his passion for
Daphnis”.
47 A tradução dos epigramas 3 e 4 é de João Angelo Oliva Neto. Apud Oliva Neto 2006: 180-183.
48 Rossi 2001: 147: “... the appearance of Priapus, normally present in epigrams that are rural in
context, but completely absent in bucolic ones, is anomalous.” Em seguida (p. 151), procura
entendê-la em referência ao Idílio 1 de Teócrito.
49 Para Priapo no Idílio, ver Hunter 1999: 74-74; 90-94; Oliva Neto 2006: 326; Hasegawa 2012:
178-179.
50 Ver Rossi 2001: 151.
51 Patrologia Graeca (Migne), 36, 34, 1052-1053, a, b, c: apud Oliva Neto 2006: 66-67. Tradução
de João Angelo Oliva Neto; os negritos são meus.
Dáfnis, o Vaqueiro
60 Para esta característica na organização nos Iambi de Calímaco, ver Kerkhecker 1999: 284-
285, em que relaciona os iambos 2 e 4, de um lado, em que se usa o αἶνος, e os iambos 3 e
5, de outro, em que há matéria erótica. Para a relação entre os iambos 2 e 4, ver também
Acosta-Hughes e Scodel 2004: 9-12. Em âmbito latino (ver Nisbet e Hubbard 1978: 5), no
segundo livro das Odes de Horácio, alternam-se estrofes alcaicas e sáficas até 2.11, como é
bem conhecido; nas Bucólicas de Vergílio e Calpúrnio, alternam-se éclogas dramáticas e nar-
rativas; na Priapéia latina, alternam-se (1-14) dísticos elegíacos e hendecassílabos falécios.
Na própria recolha dos epigramas atribuídos a Teócrito, aparece de novo esta marca editorial
(ver nota 12 acima).
61 Embora preocupada com outras questões, a observação é de Rossi 2001: 169: “Therefore,
just as in the case of epigram 3, this composition [epigrama 5] should also be considered not
descriptive, but narrative, since it recounts na episode, enumerating in order the sucession of
its various phases”.
62 A crítica já em Rossi 2001: 368: n. 32.
63 Ver Rossi 2001: 173-177, para o epigrama 5, e 184-186, para o epigrama 6.
τραχὺς γὰρ χαλαῖς ἀμφεπίαξε λύκος:
αἱ δὲ κύνες κλαγγεῦντι. τί τοι πλέον, ἁνίκα τήνας 5
ὀστίον οὐδὲ τέφρα λείπετ᾽ ἀποιχομένας;
BIBLIOGRAFIA
64 Para a espécie, ver Gorla 1997, que constitui uma seção na AP (7.189-216, com o acréscimo
de 364). Ver também Rossi 2001: 180-184.
65 Para a conclusão como morte, ver Fowler 2000: 247 e Hasegawa 2010: 12. Se, por um lado,
encerra-se a seção com o epigrama fúnebre, alude, por outro, à forma original do gênero, ao
evocar temas funerários.
estrutura formal e narrativa dos idílios V e VI. Como nota o autor dos Pro-
legômenos aos escólios de Teócrito (Σ Prol. Ed), seus poemas se dividem
em narrativos (διηγηματικόν), dramáticos (δραματικόν) e mistos (μικτόν).
Há idílios em que o diálogo entre as personagens é construído sem a me-
diação de um narrador (Id. I, III, IV, V), enquanto em outros a performan-
ce de canções é brevemente anunciada por um narrador extradiegético,
em momento algum conectado à ação (Id. VI e XI). No início do Id. VI o
narrador faz referência ao local onde Dáfnis e Dametas levaram seus reba-
nhos, junto a uma fonte, e descreve de maneira concisa ambos os pastores
antes da performance das canções (vv. 1-5). Assim que Dáfnis termina, o
narrador informa o início do canto de Dametas (vv. 20) e retorna ao final
para anunciar o empate entre os dois (vv. 42-46). O Id. VIII apresenta es-
trutura similar, uma vez que o narrador ocupa um espaço mínimo e tem
como função descrever o cenário, introduzir as personagens e indicar o
início e o fim de cada uma das performances.
Nos idílios de Teócrito Dáfnis dispõe de uma caracterização dupla, re-
presentando ora uma figura mitológica considerada fundadora da tradição
do canto bucólico (Id. I), ora um vaqueiro homônimo cujo contato com o
passado mítico se dá exclusivamente através do canto (Id VI). Em momento
algum essas personagens se mesclam e o Dáfnis mitológico somente é repor-
tado através da performance de pastores “comuns”, como é o caso de Tírsis
(Id, I 64-142) e de Lícidas (Id. VII 71-77). O autor do Id. VIII, ao contrário,
estabelece uma sobreposição de planos ao confundir o Dáfnis herói bucólico
com o vaqueiro homônimo, criando uma figura híbrida que anula a distância
entre um passado mítico que prenuncia sofrimentos futuros (cf. os ἄλγεα
Δάφνιδος narrados por Tírsis) e a tranquilidade presente na qual transcorre
a ação dos poemas de temática pastoral. Durante a performance hexamétri-
ca, Dáfnis relata ter recusado as investidas de uma κόρα que lhe dissera ser
muito belo e explora, por meio de um priamel, a imagem das vacas como
ornamento do pastor, denotando o comprometimento com o ofício ao invés
da fruição do desejo (vv. 72-80). Essa castidade pode ser entendida em cone-
xão com seu comportamento no Id. I, recusando ceder às investidas sexuais
e, consequentemente, definhando até morrer. Ao visitar o pastor moribundo,
Príapo afirma que uma κώρα o procura por toda parte (Id. I 82-85). Ora, é
possível que o autor do Id. VIII tenha feito uma alusão explícita ao Id. I ao
explorar a imagem de Dáfnis esquivando-se do desejo suscitado nas mulhe-
res, independente da motivação que o leva a essa postura.
Semelhante comportamento, todavia, pode ser compreendido como fru-
to da imaturidade do pastor, representado desde o início do poema como
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 149-170, jan/jun. 2016.
O agon bucólico entre Dáfnis e Menalcas no IdílioVIII de Teócrito 153
um infante (cf. ἀνάβω, vv. 3; παῖδες, vv. 28-9; μικκός, vv.64; παιδί, vv. 66,
etc.). A castidade não seria um dado do caráter de Dáfnis nessa idade, ten-
do em vista o narrador frisar, no final do idílio, que, por conta da vitória,
ele teria se tornado o primeiro entre os pastores e desposado a ninfa Nais
(vv. 92-3). Não possuímos muitas informações sobre essa personagem, mas,
de acordo com o escoliasta em 93a, Dáfnis lhe fizera um juramento de fi-
delidade e, por não cumpri-lo, acabou sendo cegado. Apesar do escoliasta
aludir explicitamente ao Id. I, de modo a propor uma explicação aos ἄλγεα
Δάφνιδος narrados por Tírsis, trata-se de uma hipótese sem embasamento
textual, já que Teócrito em nenhum momento revela os motivos do sofri-
mento que culminam na morte do vaqueiro. Podemos, portanto, pressupor
que o autor do Id. VIII opta por apresentar Dáfnis na infância ou no início da
puberdade, num momento anterior a ação descrita no Id. I.9
Ao mesmo tempo o Id. VIII segue, com bastante proximidade, a descri-
ção do processo de disputa travado entre os dois pastores no Id. V, na me-
dida em que há um desafio inicial proposto por um dos competidores (Id.
V 21-2 e VIII 6-7), uma breve discussão sobre o estabelecimento de um
prêmio (Id. V 23-30 e Id. VIII 13-24) e a seleção de um ouvinte externo que
julgará o canto vencedor (Mórson no Id. V 61-71 e um cabreiro anônimo
no Id. VIII 25-9). Ao final das performances, o juiz profere sua única fala
e concede a vitória a um dos antagonistas (Id. V 138-40 e Id. VIII 82-7).
No entanto a extrema rivalidade demonstrada por Comatas e Lácon, evi-
denciada desde o início do Id. V quando ambos lançam acusações mútuas
de furtos cometidos previamente, não se repete no relacionamento entre
Dáfnis e Menalcas, como pode ser notado na primeira parte do agon.
Na primeira estrofe em dístico-elegíaco Menalcas se dirige aos vales e
aos rios solicitando a concessão de bom pasto ao rebanho em retribuição
ao agradável canto entoado no passado (vv. 33-36). Dáfnis, por sua vez,
endereça o mesmo pedido às fontes e aos prados, equiparando sua me-
lodia ao som da andorinha (vv. 37-40). Ambos, contudo, também rogam
pela fertilidade de alimento aos animais apascentados pelo rival, indicando
alguma espécie de proximidade. Após interpelarem a natureza de maneira
a humanizar sua relação com o homem, os pastores se voltam à matéria
erótica. A ausência de Mílon, segundo Menalcas, faz com que o ovelheiro
e os campos acabem por definhar (vv. 45-44)10. Para Dáfnis a presença de
9 Segundo a correção sugerida por Meineke, o nome Ναίς também apareceria em uma das
estrofes entoadas por Dáfnis, na parte do agon em dístico-elegíaco (vv. 43, no lugar de παῖς).
10 Uma personagem intitulada Mílon já havia sido mencionada por Corídon em Id. IV 6, a
qual teria partido com o vaqueiro Égon para participar dos Jogos Olímpicos. O Id. VI não
Nais insufla a primavera, as pastagens e o leite no úbere das vacas (vv. 41-
48). Menalcas lamenta o desprezo de Mílon pelo ofício de pastoreio e a re-
cusa às suas investidas (vv. 49-52). Ao final do desafio em dístico-elegíaco,
Menalcas confessa que anseia por ter nos braços alguém, cuja identificação
não é clara, para contemplar conjuntamente o rebanho, próximo ao mar da
Sicília (vv. 53-56)11, enquanto Dáfnis considera que o desejo por uma deli-
cada virgem é um dano a um varão, ainda que seja um impulso inevitável,
visto o próprio Zeus ser considerado γυναικοφίλας (vv. 57-60).
Todo esse primeiro agon é carregado de incertezas textuais relaciona-
das à discussão sobre a autoria do idílio12. Gow considera ter havido um
equívoco na transmissão do texto ao pressupor a omissão de, ao menos,
uma estrofe em dístico-elegíaco e a permuta entre as falas de Dáfnis e Me-
nalcas. Adotando a correção proposta, teríamos, no canto dos dois pasto-
res, uma oposição entre o desejo direcionado a rapazes, representado pela
relação entre Menalcas e Mílon, e o desejo direcionado a mulheres, no caso
de Dáfnis e Nais. Semelhante leitura é baseada numa suposta coerência
quanto à representação de Dáfnis no corpus bucólico teocritiano, evitando
que seus apelos amorosos sejam dirigidos a Mílon13. No Id. I sua recusa em
esclarece se Mílon seria também um pastor. Estrabão (VI 1. 12) afirma ter vivido em Crotone,
na Magna Grécia, um certo Mílon, famoso por ter sido um atleta dotado de extrema força. O
Id. X também apresenta uma personagem chamada Mílon, associada à agricultura (cf. Hunter
1999: 133). O Mílon do Id. VIII despreza o ofício de Menalcas, mas esse dado não seria argu-
mento suficiente para conectá-lo ao atleta italiota aludido por Estrabão.
11 Não é claro compreender a quem o pronome τυ se refere. Possivelmente seria Mílon, evocado na
última estrofe proferida por Menalcas por meio do vocativo (vv. 51), contudo ele não é descrito
no idílio como um pastor. Outra possibilidade seria a referência a Dáfnis, porém essa hipótese
contradiz sua caracterização como γυναικοφίλας no final da estrofe seguinte (vv. 60).
12 Cf. Gow (1952: 170-84).
13 Na edição dos Bucolici Graeci Gow sugere que no processo de transmissão textual houve uma
permuta entre os versos 41-43 e 45-47, bem como a eliminação de, ao menos, uma estrofe
em dístico-elegíaco entre os versos 52 e 53. Essa hipótese é formulada tendo em vista a coe-
rência interna do idílio, já que a sequência original dos versos preservados nos manuscritos
relaciona o desejo de Menalcas a uma garota anônima (o termo usado para designá-la é παῖς,
no entanto Meineke corrigiu-o por Ναίς), enquanto Dáfnis revela seu afeto por Mílon. Ora, a
associação entre Dáfnis e Mílon é desconhecida em outras fontes literárias e contraditória no
próprio Id. VIII, já que na estrofe seguinte (vv. 49-52) Menalcas envia um bode como mensa-
geiro erótico ao mesmo Mílon. Evidentemente o pastor poderia ter enviado o animal no inte-
resse de Dáfnis, todavia esse relacionamento não é condizente com a união, no final do idílio,
com Nais. A mesma busca de coerência interna é empregada para justificar a ausência de, ao
menos, uma estrofe entre os versos 52 e 53, uma vez que possibilita a associação dos versos
57-60 a Dáfnis, explorando seu desejo por uma virgem (παρθενικᾶς ... πόθος) e conectando-o
a Zeus na condição de γυναικοφίλας (cf, o vocativo Δάφνι γυναικοφίλα em AP VI 78). Para
um posicionamento contrário ao ordenamento dos versos proposto por Gow, cf. White (1981:
181-90).
ANEXO
{ΜΕΝΑΛΚΑΣ}
χρῄσδεις ὦν ἐσιδεῖν; χρῄσδεις καταθεῖναι ἄεθλον;
{ΔΑΦΝΙΣ}
χρῄσδω τοῦτ› ἐσιδεῖν, χρῄσδω καταθεῖναι ἄεθλον.
{ΜΕ.} καὶ τί νυ θησεύμεσθ’ ὅ κεν ἁμῖν ἄρκιον εἴη;
{ΔΑ.} μόσχον ἐγὼ θησῶ, τὺ δὲ θὲς ἰσομάτορα ἀμνόν.
{ΜΕ.} οὐ θησῶ ποκα ἀμνόν, ἐπεὶ χαλεπὸς ὁ πατήρ μευ 15
χἀ μάτηρ, τὰ δὲ μῆλα ποθέσπερα πάντ› ἀριθμεῦντι.
{ΔΑ.} ἀλλὰ τί μὰν θησεῖς; τί δὲ τὸ πλέον ἑξεῖ ὁ νικῶν;
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 149-170, jan/jun. 2016.
164 Fernando Rodrigues Júnior
MENALCAS
Desejas, então, ver? Desejas travar uma disputa?
DÁFNIS
Desejo ver isso, desejo travar uma disputa.
MENALCAS
E o que apostaremos, que seja suficiente para nós?
DÁFNIS
Eu apostarei uma novilha e tu aposta uma ovelha símil à mãe.
MENALCAS
Não apostarei um cordeiro jamais, visto que meu pai 15
e minha mãe são duros e, de tarde, contam todos os cordeiros.
DÁFNIS
Mas o que apostarás? O que o vencedor terá a mais?
MENALCAS
Tenho uma bela siringe de nove canas que fiz,
com cera branca, de modo igual, por cima e por baixo.
Eu a apostaria, mas não apostarei o que pertence a meu pai. 20
DÁFNIS
Eu também tenho, certamente, uma siringe de nove canas,
com cera branca, de modo igual, por cima e por baixo.
Ajustei-a outro dia. E ainda sinto dor nesse dedo,
já que uma cana me cortou quando foi partida.
MENALCAS
Mas quem nos julgará? Quem será nosso ouvinte? 25
DÁFNIS
Olha, chamemos aquele cabreiro que está ali,
cujo cão de manchas brancas ladra para as cabritas.
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 149-170, jan/jun. 2016.
O agon bucólico entre Dáfnis e Menalcas no IdílioVIII de Teócrito 167
MENALCAS
Vales e rios, raça divina, se alguma vez Menalcas,
tocador de siringe, cantou uma amável canção,
concedei, do fundo da alma, pasto às ovelhas. E se vier 35
Dáfnis com suas bezerras, que não tenha nada inferior.
DÁFNIS
Fontes e prados, doce vegetação, se de fato Dáfnis
é um músico semelhante às andorinhas,
engordai esse rebanho. E se Menalcas trouxer para cá
seu oviário, que, alegre, tenha pasto abundante. 40
MENALCAS
Aqui há ovelhas, aqui há cabras que parem gêmeos, aqui 45
abelhas enchem as colmeias e os carvalhos são mais altos, 46
por onde o belo Mílon caminha a pé. Mas se ele parte, 47
o ovelheiro lá definha e os prados também. 44
DÁFNIS
Por toda a parte a primavera, por toda parte pastos, 41
por toda parte os úberes jorram leite e as crias são nutridas, 42
por onde a bela Nais avança. Mas se ela parte, 43
o que apascenta as vacas e as próprias vacas fenecem. 48
MENALCAS
Ó bode, macho das brancas cabras, vai para as profundezas
da floresta - e que as cabritas arrebitadas venham para cá, junto à água -, 50
pois ele está nesse lugar. Vai, ó quadrúpede, e diz: ‘Mílon,
Proteu, mesmo sendo um deus, apascentava focas.’
DÁFNIS
(...)
MENALCAS
Que eu não tenha a terra de Pélops, nem os talentos
de Creso, nem que eu corra antes dos ventos.
Mas, perto dessa pedra, cantarei tendo-te nos braços, 55
observando os carneiros pastando juntos e o mar da Sicília.
DÁFNIS
O inverno é um mal temível às árvores, a seca às águas,
a armadilha aos pássaros, as redes aos animais selvagens,
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 149-170, jan/jun. 2016.
168 Fernando Rodrigues Júnior
MENALCAS
Evita as cabritas, lobo, evita minhas parideiras,
e não me causes prejuízo, porque vigio muitas apesar de pequeno.
Ó cão Lampuro, tu tens um sono assim profundo? 65
Não deves dormir profundamente quando apascentas com um garoto.
E as ovelhas, não hesiteis de vos saciar da delicada
grama, nem vos fatigueis quando ela novamente crescer.
Eia, pastai, pastai e enchei, todas, os úberes,
assim os borregos têm sua parte e eu ponho o resto no cesto. 70
DÁFNIS
Ontem uma garota monocelha, ao ver-me, de sua gruta,
guiando as bezerras, disse que eu era belo belo.
No entanto não lhe respondi nenhuma palavra amarga,
mas segui nosso caminho olhando para baixo. 75
Doce é a voz da vitela e doce seu sopro,
[docemente o novilho muge e docemente também a vaca,]
e doce é, no verão, dormir ao relento junto à água corrente.
As bolotas são ornamento aos carvalhos, as maçãs à macieira,
a novilha à vaca e as próprias vacas ao vaqueiro. 80
BIBLIOGRAFIA
1. Introdução
4. Tradução e notas
(1) O adjetivo πάγκαρπον (à letra “rico em toda a espécie de frutos”) não deve ter esse sentido li-
teral. Embora a grinalda contenha frutos, eles surgem em minoria, pelo que preferimos a tradução
“viçoso”. (2) Deve tratar-se de Diocles da Magnésia, autor de uma História Breve dos Filósofos, mais
do que uma vez citado por Diógenes Laércio. (3) Lilium candidum, uma espécie de açucena. (4) O
termo λείριον é em muitas ocasiões sinónimo de κρίνον (v. 5), designando também várias espécies
de lírios. (5) A rosa é a flor das flores, dita em AP 5.144.3 – onde é imagem de Zenófila – “a flor das
flores primaveris” (ἐν ἄνθεσιν ὥριμον ἄνθος). (6) Meleagro deve estar a aludir ao μύρον ἴρινον,
perfume elaborado a partir das raízes da planta, das quais a melhor é a variante da Ilíria (cf. Thphr.
HP 1.7.2, 9.7.3). Quanto à flor, deve tratar-se da Iris florentina, também ela uma espécie branca de
lírio. (7) Também designado ἀμάρακον (v. 41), trata-se do Origanum majorana. Nos dois passos,
Meleagro recorre a duas plantas a partir das quais se produzia perfume, mesmo que não tivesse
clara a diferença entre ambas. Por isso traduzimos aqui “orégão”, e adiante “manjerona”, espécies
que cabem sob a mesma designação grega. (8) Crocus sativus. O epíteto παρθενόχρωτα (“da cor
das virgens”), podendo aludir à morte prematura da poetisa (vd. supra), pode também supor a
espécie do κρόκος λευκός (“açafrão-branco”) referida por Teofrasto (HP 7.7.4). (9) Podendo estar
implícita uma referência aos epigramas políticos de Alceu, λάληθρον ἐν ὑμνοπόλοις deve aludir à
tradição de que as pétalas da flor continham inscrita a dor de Apolo pela perda do amado, por-
quanto nelas se poderia ler “AI, AI”. Teócrito (10.28) refere-se à flor como ἁ γραπτὰ ὑάκινθος. (10)
O Laurus nobilis, cujas folhas, em AP 9.307 (de Filipo), são igualmente ditas escuras. (11) Um
exemplo de fruto na grinalda. GOW-PAGE, 1965, vol. 2, p. 599 pensou que o adjetivo θαλεροὺς
poderia aludir à produção prolífica de Leónidas, significando assim “vigoroso”. (12) Os ramos de
pinho coroavam os vencedores Ístmicos, pelo que deve haver uma relação entre a espécie escolhi-
da e o perfil de poeta heroico de Mnasalcas. (13) Platanus orientalis. (14) Das várias espécies
mencionadas nos tratados de botânica gregos, todas elas cabem no género da Corylus Avellana.
(15) Deve tratar-se da Mentha aquatica. Dioscórides (2.128) e Teofrasto (HP 6.6.2) referem a sua
flor rosada, pelo que seria a mais adequada para usar em grinaldas. (16) Ambas as palavras da
expressão ἀμμότροφον πάραλον constituem hapaxes, além de significarem algo semelhante (“jun-
to ao mar”). Assumindo que seja a última o substantivo, tem-se admitido que se trata do eurfórbio
(Euphorbia paralias), espécie nativa do sul de Europa que cresce sobretudo nas praias. (17) A
violeta negra era a espécie da flor mais frequentemente referida entre os Gregos. Elemento recor-
rente nas descrições poéticas e em prosa da paisagem grega, revelou-se um rico expediente poéti-
co, intervindo na formação de epítetos, alguns deles já presentes na épica Homérica e depois
amplamente recuperados e renovados por todas as modalidades da poesia grega. Vd. MARTINS
DE JESUS, 2009. (18) A Lychnis coronaria, provavelmente a espécie que Teofrasto (HP 6.8.3) diz
ser adequada para grinaldas. (19) O texto do Palatinus é, neste ponto, corrupto (ἐν Μούσῃσιν
ἄμεινον). Foram sugeridas as correções ἄμωμον (Nepal cardamum, Amomum subulatum – Thphr.
HP 9.7.2) e κινάμωμον (Cinnamomum cassia), mas para ambas haveria que supor a sua utilização
depois de secas, o que não parece quadrar com o resto do texto. Preferimos a solução de GOW-
-PAGE, 1965, vol. 2, p. 601 (εὔμουσον κυκλάμινον); se por um lado opta por uma flor fresca e
aparentemente adequada para uma grinalda (Lonicera caprifolium, a madressilva), resolve o pro-
blema do sintagma ἐν Μούσῃσιν do manuscrito, ao corrigi-lo para um epíteto. (20) O poeta é
Dioscórides, cujo nome deriva de Dioscuros (à letra, “os filhos de Zeus”). Cf. semelhante forma de
nomear um poeta infra, v. 44. (21) O Cymbopogon schoenanthus, do qual Teofrasto (CP 6.18.1)
menciona uma variedade muito odorífera originária da Síria. (22) Pyrus praecox, também conhe-
cida como “maçã-de-verão” (cf. Diosc. 1.115.3), era o resultado do enxerto entre a macieira e o
marmeleiro, constituindo assim mais uma espécie de fruto a formar parte da grinalda. (23) Teo-
frasto (HP 1.13.5) designa esta flor da romãzeira de κύτινος. (24) A Balsamodendron myrrha, es-
pécie muito usada para fazer resina. Pese embora a referência seja às folhas dessa árvore, não deixa
de ser mais uma notação olfativa da grinalda. (25) Pistacia terebinthus, como a anterior fonte de
resina, que Teofrasto (HP 9.2.2) diz ser “muito perfumada e agradável ao cheiro”. (26) Deve estar
em causa a flor (esbranquiçada e com androceus rosáceos) da Pyrus amygdaliformis, popularmen-
te conhecida como “pereira-de-folhas-de-amendoeira”. Outra espécie possível, bastante seme-
lhante à anterior, seria a Pyrus bourgaeana. (27) O adjetivo ἀμωμήτοιο (“irrepreensível”, “sem
mácula”) deve referir-se à qualidade do poeta. (28) Não se conservam na Antologia Grega epigra-
mas atribuídos a tal autor, nem este é referido por qualquer outra fonte. Não é sequer claro que se
trate de um nome feminino ou masculino. (29) Ou seja, apenas uma parte (os epigramas a ele
atribuídos) da vastíssima produção poética de Baquílides, de quem apenas em finais do século
XIX se descobriram, num único papiro, mais de vinte composições praticamente completas. (30)
Não significa isto que a antologia de Meleagro incluía composições em metro lírico. Dada a fama
de poeta lírico de Anacreonte, o antologista sentiu necessidade de referir ditas composições, para
só no verso seguinte mencionar as elegias a ele atribuídas (as composições que lhe interessavam),
que deviam circular em antologias independentes desde cedo. (31) O termo ἄκανθα designava um
vasto conjunto de plantas, arbustos e mesmo árvores com espinhos, o elemento que claramente
simboliza poesia invetiva de Arquíloco. Deve, no caso, referir-se ao Eryngium campestre (cardo-
-de-palma), referido entre as flores do campo por Teócrito (1.132), cujas flores têm forma esférica
(semelhante a uma cabeça) e estão rodeadas de espinhos. (32) Consciente da produção variada de
Arquíloco, Meleagro refere uma vez mais ter apenas coligido uma pequena parte, os epigramas
que lhe eram atribuídos. (33) Não se compreende bem o sentido da expressão πορφύρεον κύαμον,
se de fato o verso se refere à fava. Não obstante, devem estar em causa as flores do arbusto que a
produz, a Vicia faba, que podem ser brancas ou rosadas. O termo κύαμος também designa, em
Teofrasto (HP 4.8.7), outra espécie completamente distinta, o assim chamado κύαμος Αἰγύπτιος,
que deve corresponder à Nelumbium speciosum (vulgarmente a flor-de-lótus), que igualmente
pode ser rosada. A correta identificação da espécie muito ganharia se soubéssemos algo acerca do
poeta à qual vem associada, Policleito, mas dele não conservamos qualquer composição ou refe-
rência antiga. (34) Vd. supra, nota (7). (35) A flor é escolhida pela proveniência geográfica de
Antípatro, de Sídon, e por isso é dita φοίνισσάν τε νέην κύπρον. Trata-se da Lawsonia inermis,
arbusto com florescências brancas e de cujas folhas secas e tronco se extrai um colorante ainda
hoje em dia muito usado na cultura árabe. O adjetivo νέην, aplicado à flor, deve aludir à antigui-
dade recente de Antípatro ao tempo de Meleagro, ele que estava ativo na segunda metade do sécu-
lo II a.C. (36) O Nardostachys jatamansi, que Dioscórides (1.7) esclarece denominar-se “Sírio” não
por crescer na Síria, mas numa montanha virada para a Síria. (37) Como a propósito de Dioscóri-
des (supra, vv. 23-24), o nome do poeta, Hermodoro, surge desdobrado numa perífrase. (38)
GOW-PAGE, 1965, vol. 2, p. 604 sugere as papoilas, não mencionadas ainda no Proémio. Mas
nada em concreto permite a sua identificação segura. (39) Asclepíades. (40) Desta feita, é a flor
que vê desdobrado o seu nome: a anémona. (41) Como bem reparou GOW-PAGE, 1965, vol. 2, p.
604, o termo κλῶνα (“galho”) sugere mais uma árvore ou arbusto do que uma flor. Parece-nos
coerente a identificação já antiga de EINARSON, 1943, p. 260-261 com o Sempervivum arboreum
(“saião”, em Português), uma planta com flor que Meleagro teria associado à teoria da imortalida-
de da alma e, segundo o autor, seria igualmente uma reminiscência, repetida noutras fontes, do
“galho dourado” do livro VI da Eneida. Cf. também MICHELS, 1945, p. 59-63. (42) Phoinix dac-
tylifera, que o poeta conheceria bem da sua Síria nativa. (43) O termo λωτός designa várias espé-
cies, sendo as mais prováveis a Nymphaea lotus (nenúfar-branco) ou a Trigonella foenum-graecum
(feno-grego). (44) O Cheiranthus cheiri, cujo forte aroma é destacado por Teofrasto (HP 6.6.2).
(45) “Olho-de-boi”, em Português, é um nome popular dado à flor do Leucanthemum (ou Chry-
santhemum) vulgare ou do Leucanthemum sylvaticum, mais conhecidas por malmequeres. Desig-
na também a semente da Mucuna urens. A última, por tratar-se de uma planta trepadeira, seria à
partida mais coincidente com o adjetivo εὔστροφος elegido por Meleagro, não fosse uma espécie
encontrada principalmente em florestas de clima tropical, como no Caribe e em África. As duas
primeiras, por outro lado, encontram relação com a descrição de Dioscórides (4.8.5), que dá como
sinónimo de βούφθαλμον o termo χρυσάνθεμον. GOW-PAGE, 1965, vol. 2, p. 605 sugeriu, a título
de hipótese, uma espécie de Convolvulus, e.g o C. arvensis (popularmente conhecida em Portu-
guês como “corriola” ou “engatadeira”), ou mesmo o girassol, em grego dito ἡλιοτρόπιον. LAI,
1997, p. 119-124 analisou a referência de Meleagro a Antágoras, concluindo que o adjetivo
εὔστροφος, à semelhança do que acontece com outros casos no Proémio, deve em simultâneo
referir-se à planta e ao poeta. E recordava, a propósito, o sentido da expressão “língua bem tornea-
da” (γλῶσσα εὔστροφος) que encontramos em autores como Melézio (de nat. hom. 9) ou Gregorio
de Nazianzo (in patr. tac. 35.936; carm. de se ipso 1411), que poderia assim aludir à capacidade
desse poeta, anedoticamente confirmada, de se defender de ataques. Mais em concreto, o autor
citado menciona a anedota segundo a qual Antágoras, estando em Tebas para uma leitura da sua
Tebaida, perante o público que se aborrecia e abandonava a sala, fechou o livro e disse: “com justi-
ça vos chamam Beócios, pois tendes orelhas de boi” (Max. Conf. 15.580; Apost. 5.13 = Arsen.
13.28; Gnom. Vat. 109). (46) Não temos notícia de que o tomilho (Thymus sibthorpii ou Thymus
atticus) fosse usado como tempero do vinho, pelo que o epíteto φιλάκρητον deve referir-se ao seu
uso nas grinaldas do simpósio, informação confirmada por Dioscórides (3.38), que designa a
variante cultivável da planta de στεφανωματτικός. (47) Não é possível uma identificação segura da
espécie implícita no termo κυάνος, que parece apenas aludir à cor azul. Plínio (NH 21.48) fala do
cyanus como um dos elementos muito usados em grinaldas. Tem-se sugerido a Centaurea cyanus
(em Português “centáurea” ou “lóio”), uma pequena planta de flor azulada nativa da Europa e co-
nhecida, em algumas línguas, como “mirtilo-dos-campos” (embora não produza qualquer fruto).
(48) A flor que simboliza a arte poética do autor-editor surge noutros epigramas seus, acima tra-
duzidos (AP 5.144.1, 5.147.1). Pode tratar-se da Galanthus nivalis (em inglês “snowdrop”) ou da
Matthiola incana (o “goivo”). A primeira hipótese parece-nos preferível, posto que se trata de uma
planta de florescência precoce, como implítico na adjetivação de Meleagro e no testemunho de
Teofrasto (HP 6.8.1). De alguma maneira, poderia isto significar que Meleagro incluia composi-
ções suas de juventude ou, no mínimo, prévias à organização da antologia.
BIBLIOGRAFIA
Introdução
1 Doutoranda do programa de pós-graduação em Letras Clássicas da FFLCH-USP.
188 Flávia Vasconcellos Amaral
Marcial IV.23
Enquanto, indecisa, por longo tempo te perguntas
qual será, para ti, o primeiro e qual o segundo
dos poetas rivais na composição o epigrama grego,
Calímaco, por vontade sua, Talia, a palma
entregou ele mesmo ao facundo Brutiano.
E se este, saciado da graça de Cécrope,
quiser jogar com o sal da romana Minerva,
peço-te que segundo me faças depois dele.
Marcial, o braço mais notável de sua poesia4, muito embora ele não tenha
sido enunciado explicitamente.
Sullivan, em sua obra “Martial: the unexpected classic” (1991), anexa ao
final de seu livro um apêndice (APPENDIX II) de título “Martial and the
Greek epigram”- p. 322-327, no qual ele faz um levantamento de epigramas
de Marcial e os respectivos epigramas gregos aos quais os do poeta latino
estariam aludindo. No total são 176 epigramas gregos que possuem relação
de imitação/emulação com 90 epigramas de Marcial.
Pode-se observar no referido anexo de SULLIVAN (1991), que os auto-
res gregos mais aludidos por Marcial são Lucílio (29 epigramas), Meleagro
e Estratão (13 epigramas cada) e Crinágoras (11). É preciso ressaltar que
tais dados derivam da identificação das redes de alusão que Sullivan teceu,
ou seja, ela pode não ser exaustiva. De qualquer maneira, até onde Sullivan
conseguiu chegar, a referência aos números de epigramas acima comprova
a predominância também já mencionada de Lucílio e traz à tona outros três
poetas significativos para uma análise tópica entre Marcial e os epigramatis-
tas gregos.
Já que Sullivan apenas compila o anexo não explorando os tópoi que es-
tariam por trás da feitura dessa lista de epigramas, o presente texto faz um
recorte a partir de tal anexo e visa analisar os epigramas de Marcial e os de
Meleagro de Gadara, epigramatista do século I a.C., no intuito de apontar
quais tópoi são comuns a ambos. Para tal, serão utilizadas as traduções de
AMARAL (2009) para os epigramas de Meleagro e as traduções de LEÃO,
BRANDÃO e FERREIRA5 dos epigramas de Marcial6. Para os originais do
poeta latino foi utilizada a edição de BAILEY (1993) e para os textos gregos
GOW & PAGE (1965)7.
Marcial Meleagro
I. 71 XLII - A.P. V. 136; XLIII - A.P. V. 137
V. 34 CXXIV - A.P. VII. 461
VI. 28 II - A.P. VII. 417
VI. 52 CXXIV - A.P. VII. 461
VI. 68 CXXIV - A.P. VII. 461
X. 14 LXXIII - A.P. V. 191
XI. 87 IX - A.P. V. 208; XCIV - A.P. XII. 41
XIV. 39 LII - A.P. V. 166; LXXIII - A.P. V. 191;
XXIII - A.P. V. 197 e XI - A.P. VI. 162
Figura 1. Correspondência entre os epigramas de Marcial e Meleagro11.
3 Da temática amorosa
Marcial I. 71
Toca a beber seis copos por Laeuia, sete por Justina,
cinco por Licas, por Lide quatro, por Ida três.
Contem-se as amantes todas pelo falerno vertido
e já que nenhuma vem, vem a mim tu, ó Sono.
15 CESILA (2003, p.151-152) aponta que um dos mecanismos de produção de humor em Mar-
cial é o fecho cômico-espirituoso, o qual muito foi discutido atualmente, embora já tivesse
feito parte da teoria da bipartição do epigrama elaborada por Lessing no século XVIII. Se-
gundo tal teoria, o epigrama “seria composto de uma primeira parte mais extensa, que expõe,
explica, desenvolve o tema do poema, criando uma tensão e uma expectativa no leitor, e uma
segunda parte, em geral correspondente ao último verso ou às últimas palavras do poema,
que contém a frase picante, o dito mordaz, o comentário inteligente e espirituoso, os elemen-
tos, enfim, responsáveis pelo humor e pela graça do epigrama”.
3.2 Umbral
Marcial X. 14 (13)
Embora um carro cheio de assentos transporte teus besuntados favoritos
e em longa nuvem de pó sue teu líbio cavaleiro,
e a púrpura de teus ataviados leitos se não limite apenas a uma casa em Baias
e Tétis empalideça, untada de teus perfumes,
e as taças de setino façam estalar seus lúcidos cristais,
e nem Vénus durma em pena de melhor qualidade:
contudo passas as noites estendido no limiar de uma altiva rameira
e uma surda porta, ai! Está banhada das tuas lágrimas,
e não cessam os suspiros de queimar teu infeliz coração.
Queres que te diga qual é o teu mal, Cota? É o teu bem.
Marcial XI. 87
Dantes eras rico: e nessa altura enrabador tu foste
e por longo tempo não conheceste mulher alguma.
Agora persegues as velhas. Oh pobreza, a quanto obrigas!
Ela fez de ti, Caridemo, um fodilhão.
16 GUIDORIZZI (1992, p. 126 nota 75) afirma que este instrumento é a flauta.
17 Segundo LIDDELL & SCOTT, esse é o único registro do verbo androbatéin e seu correspon-
dente latino é paedico.
3.3 Candeeiro
Marcial XIV. 39
Sou uma lucerna, confidente de teu doce leito.
Podes fazer o que quiseres, eu ficarei calada.
4 Da temática funerária
Marcial V. 34
A ti, Frontão meu pai, a ti, mãe Flacila, esta donzela
confio, os beijos e delícias minhas:
não vá a pequenina Erócion temer as negras sombras
e as fauces prodigiosas do cão Tártaro.
Estava agora a ponto de completar os frios do sexto inverno,
não tivesse ela vivido precisamente outros tantos dias menos.
Possa ela, jovial, brincar entre tão velhos patronos,
e o meu nome galrejar na sua língua de trapos.
Que um enregelado torrão não cubra seus delicados ossos, nem para ela,
ó terra, sejas pesada: também ela o não foi para ti.
Marcial VI. 52
À infância arrebatado, neste túmulo jaz
Pantágato, de seu senhor cuidados e dolor.
Com leve toque de lâmina, a cortar cabelos errantes
e a escanhoar faces peludas, ele era um primor.
Por muito que sejas, ó terra, como deves, suave e leve,
mais leve não podes ser que a sua mão de artista.
Marcial VI. 68
Chorai vossa impiedade, mas chorai no Lucrino inteiro,
ó Náiades, e que mesmo Tétis vossos lamentos sinta.
Arrebatado entre as águas de Baias, um menino morreu,
aquele teu Êutico, Cástrico, teu doce braço direito.
Ele, companheiro de teus trabalhos e meiga consolação,
ele, a dedicação, ele, do nosso vate, era o Aléxis.
Acaso, nu, sob as águas cristalinas, com os olhos lascivos,
a ninfa te viu e a Alcides devolveu Hilas?
Será que a deusa já desdenha o Hermafrodito feminil,
Seduzida pelo abraço de um varão de tenra idade?
Seja lá o que for, qualquer que seja a causa deste repentino rapto,
suave te seja, eu rogo, quer a terra, quer a água.
4.2 Transeunte
Marcial VI. 28
O liberto de Mélior, aquele tão conhecido,
que faleceu para dor de Roma inteira,
breves delícias do patrono querido,
Gláucias, sob este mármore inumado,
jaz no sepulcro ao lado da via Flamínia.
Casto de costumes, imaculado no pudor,
sagaz de inteligência, de beleza bem feliz.
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 187-204, jan/jun. 2016.
200 Flávia Vasconcellos Amaral
qual é um pedido ao transeunte para ele ser saudado. Ora, saudado geral-
mente é aquele que está vivo. Assim, pode-se entender que ele se exime da
condição de morto ao se colocar como ancião loquaz que deve ser sauda-
do, pois o que se está lendo é um epigrama escrito por ele já velho, o que
o eterniza nessa condição, mesmo que o transeunte saiba que ele já está
morto. O transeunte, portanto, é convidado a saudar o morto e este deseja
que aquele seja tão longevo quanto ele próprio.
Por fim, embora o teor dos epigramas de Marcial e Meleagro sejam di-
versos, dirigir-se ao transeunte é uma das marcas dos epigramas funerários
helenísticos, e é uma referência significativa de leitura e ao mesmo tempo
diálogo entre o texto escrito e o leitor, seja ele de fato transeunte ou não.
5 Considerações finais
BIBLIOGRAFIA
Paulo Martins2
Abstract: Besides the obvious correlation between Propertius’ elegies 1.2 and
2.1 that is determined by their position in their respective books, there are
other correlations between these two elegies that are less obvious, which, in
my view, are concerned with poetic program. More specifically, I intend to ob-
serve some programmatic statements in elegy 1.2 which are either reiterated
or subverted in book 2. Therefore, my aim is both to demonstrate the impor-
tance of these programmatic elegies in the scope of the book, and to show that
Propertius’ poetic programme is highly volatile, being molded and adapted to
new circumstances and new aspects of poetic enunciation throughout time.
Keywords: Latin elegy; Propertius; elegy 1.2; elegy 2.1; poetic correlations;
metapoetry.
1 Este artigo é resultado parcial de pesquisa realizada junto Classics Department na Yale University
com o financiamento da FAPESP. Agradeço ao amigo Kirk Freudenburg e, aos demais colegas,
Thomas Biggs, Niek Jenssen, Benjamin Jerue, Collin McCaffrey e Mike Zimm do staff de Yale.
2 Livre-docente em Língua e Literatura Latina pela USP, Pós-Doutor pela Yale University e
Pesquisador do CNPq. Professor de Língua e Literatura Latina da USP.
206 Paulo Martins
Não há, pois, como negar a óbvia indicação, presente em munus pere-
grinum, e a ideia de filiação poética a Filetas de Cós.25 Esta indicação ainda
apresenta mais um elemento importante: a ideia de Propércio ir beber da
23 Jurado (2001, 85-89).
24 Martins (2015)d.
25 Cf. Colaizzi (1993, 132-133).
"Eu já não temo que eu te seja mais vil que esses./ Se a menina agrada
a um, ela é bastante adornada.” Ou adornada, ou “montada” com a vênia
para o baixo da gíria. O suposto paradoxo deste poema se esclarece nesse
dístico. Devemos observar que o ego-elegíaco não se preocupa em ser infe-
rior aos exemplos míticos masculinos e, assim, liberta a uita, Cíntia, a ser
comum, vulgar, sem pudicícia alguma, de maneira que se ela o agrada, ela
já é suficientemente culta. Tal termo põe à luz mais uma relação com a po-
esia helenística de Filetas e de Calímaco, já que, a meu ver, ocupa o espaço
semântico de docta. O termo culta, do verbo colo, colere, em seu aspecto
verbal, isto é, na forma participial, nessa elegia, poderia, de acordo com o
OLD, ser observado como se nos apresenta o senso 5: to adorn, embellish,
ou seja, suficientemente adornada ou embelezada; ou o senso 10, e daí,
poderíamos pensar numa Cíntia, desenvolvida quanto à sua sofisticação,
já que o verbete oferece: to promote the growth or advancement of, deve-
lop, foster (an activity, occupation, study, etc.). Em sua natureza nominal,
o termo culta, portanto observado como adjetivo de primeira classe, cuja
origem é o mesmo verbo colo, oferecem-se duas possibilidades que dispu-
tam. Ainda que o dicionarista tenha abonado a passagem na entrada 3: (of
persons) smart in apparence, neat, spruce, a entrada 4: refined, sophisticated
é extremamente pertinente. Parece-me claro que devemos ler no senso 3,
observando a possibilidade referencial, ou no senso 4, tendo em vista a
leitura metafórica. Fato é que nem uma ou outra está fora de propósito. A
bem da verdade as duas sempre devem ser observadas a fim de garantir-
mos a ambiguidade do latim.31
O fechamento da elegia apresenta o abono poético dos deuses, uma vez
que propõe: “Especialmente se Febo te concede seus poemas/ E Calíope com
prazer a lira aônia e/ Uma Graça não faltou a teus agradáveis poemas,/ E tudo
de que gostam Vênus e Minerva.” Nesse sentido, o campo poético está lauta-
mente referendado pelos deuses, que concorrem tanto na arte de amar como
na arte da poesia, elemento que irá ser explicitamente alterado no livro 2.
recusa da épica aqui é dissimulada, ou, pelo menos modalizada, uma vez
que não cantando, o poeta canta. Entretanto sua forma não é narrativa,
antes surge evidenciada por enunciados paratáticos que não possuem uma
estrutura de história contada, sendo apenas um rol de eventos sucessivos
que haveriam de ser cantados caso o enunciador estivesse imbuído da in-
tenção de realizar poesia épica e seu ingenium fosse suficiente. Dessa ma-
neira, Propércio nos oferece nesses poucos versos um gênero limite entre
épica, elegia e encômio.
Mas toda esta estrutura construída no início do segundo livro, ao contrá-
rio do que se pode pensar, a meu ver, serve menos à adulação política e mais
ao programa poético, uma vez que vem sucedida pelos seguintes versos:
que o poeta nos oferece sua filiação poética pela primeira vez de forma
explícita e, talvez, a primeira vez na poesia latina após a experiência po-
ética de Catulo nos poemas 6535 e 66. Duas considerações devemos fazer
com relação a este dístico (vv. 48-49). Uma primeira é a repedida e curiosa
utilização36 do tema da gigantomaquia, o que me permite associar por con-
tiguidade a imagem de Júpiter a de Augusto, já que assim como em todas as
batalhas apresentadas, Otávio se saiu vencedor, da mesma maneira Júpiter
domou os gigantes. Uma segunda é a apresentação da incapacidade poé-
tica de Calímaco: “Calímaco não elevaria [a luta de Júpiter com o gigante]
com angusto peito,/ tampouco meus sentimentos convêm ao verso grave/
para cantar o nome de César entre os antepassados frígios.” Tal referência
apresenta-se formalmente amparada em elementos importantes: a) a gi-
gantomaquia, ainda que seja digna da poesia épica, há que se lembrar, é
tema hesiódico, portanto não pode ser apartada do universo alexandrino
de Calímaco;37 b) construção de uma analogia poética entre Propércio e
Calímaco, fundada na equivalência das expressões: intonare angusto pecto
e condere duro uersu; c) apresentação do projeto poético dentro de um
rol de adequações de arte: angusto uersamus proelia lecto e d) resumo da
matéria do livro: laus in amore mori e fruar o solus amore meo (vv.47-48).
Ao propor a gigantomaquia como possibilidade épica, Propércio rea-
firma não uma recusa à épica de maneira geral, ele a poderia admitir caso
fosse de molde hesiódico, de sorte que, em certa medida, a contenda se
dá, pelo que entendo, na matriz épica a ser seguida. Evita-se, portanto,
a copiosidade homérica em nome da concisão de Hesíodo. Se fizermos
uma leitura atenta dos versos que antecedem esta afirmação, a coloração
do encômio a Mecenas, vez por outra apresenta matizes do poeta de Ascra.
Hollis, por outro viés, indica que “Enceladus too had appeared in the Aetia
prologue – representing, however, not the grandiloquent epic theme of Gigan-
tomachia (war between the Giants and the Olympian gods) but the burden
of old age that bears down upon the poet.”38 Álvarez Hernández entende
que esse viés hesiódico apresentado nesta elegia representa uma resposta
a Virgílio da 6a Écloga, já que neste haveria uma hierarquização da poesia
e naquele “el bosque heliconio es un espacio horizontal, en el que todas las
35 Cf. Martins (2012, 315-330).
36 2.1.19-20 já faz referência a esse evento mítico.
37 Cf. Fedeli (2005, 77).
38 Hollis (2006, 110-111).
BIBLIOGRAFIA
MILLER, J. F. Propertius 2.1 and the New Gallus Papyrus. Zeitschrift für
Papyrologie und Epigraphik, v. 44, p.173-6. Bonn : Habelt. [DOI:10.1017/
S0009838810000170]. 1981.
MITCHELL, R. N. Propertius on poetry and poets: tradition and the
individual erotic talent. Ramus: Critical Studies in Greek and Roman
Literature, v. 14, p. 46-58. Victoria (Australia): Aureal Publications, 1985.
NEWMAN, J. K. Augustan Propertius. The Recapitulation of a Genre.
Zürich: Geor Olms Verlag Hildeshein. 1997.
ROSS, Jr., Backgrounds to Augustan Poetry: Gallus Elegy and Rome.
Cambridge: Cambridge University Press. 1975.
WEST, M. L. Dating Corinna. Classical Quarterly, v.40, n.2, p. 553-7.
Oxford: Oxford University Press. [DOI: 10.1017/S0009838800043172]. 1970.
WIGGERS, N. Reconsideration of Propertius II. 1. The Classical Journal,
v. 72, p. 334-41. Ashland (Va.): Randolph-Macon College, Department of
Classics, Classical Association of the Middle West and South. 1977.
ZETZEL, J. E. G. Poetic Baldness and its Cure. Materiali e Discussioni per
l’analisi dei Testi Classici, v. 36, p. 73-100. Pisa: Istituti Editoriali e Poligrafici
Internazionali. [DOI: 10.11606/issn.2358-3150.v0i3p181-210]. 1996.
Outras vezes nos lembra, tal qual Horácio, que não devemos procurar
saber do dia de nossa morte nem a forma como virá:
6 Calipso reinava na ilha Ogígia na qual Ulisses aportou. Apaixonou-se pelo herói e lhe prome-
teu a imortalidade se se casasse com ela. Mas Ulisses preferiu regressar a sua pátria, para os
braços de sua fiel esposa Penélope.
7 Ulisses.
8 Era filha de Toas, rei de Lemnos. Conta a lenda que como as mulheres de Lemnos não pres-
tavam culto a Vênus, a deusa as castigou com um fedor tão intenso que seus maridos as
abandonaram. Estas, então, mataram seus pais e esposos. Hipsípila perdoou seu pai e o salvou
o que lhe garantiu o reinado deste lugar destituído de homens. Quando a embarcação dos
argonautas chegou em Lemnos, Hipsípila se apaixonou por Jasão de quem teve dois filhos.
Jasão a abandonou dois anos depois.
9 Jasão.
10 Pelo termo “emônio” pode-se designar poeticamente toda a região setentrional da Grécia.
Eu serei assim para ti; mas antes suplico que sejas tu quem
me lamentes com os cabelos em desalinho e o peito nu.
ter mais motivo para viver. Este poema é quase todo centrado no sofrimen-
to que o envolve por causa da indiferença da mulher amada. Seus pensa-
mentos de morte traduzem, na verdade, o desejo malogrado de vivenciar
sua paixão amorosa, e teme não a morte, mas a possibilidade de ela não
realizar as devidas exéquias. O sentimento que o abrasa é tão violento que
perdurará depois da morte:
é seu sofrimento. Suplica ainda aos Amores que apressem este fim inevitável,
qualquer que seja o caminho para encontrá-lo –
Na elegia 16 do livro III, seu amor por Cíntia se mostra tão forte que o
leva a desafiar a morte. Tendo recebido uma carta de Cíntia intimando-o
a visitá-la altas horas da noite, convence-se de que de nenhum perigo po-
derá ser vítima (III,16,18): huic generi quouis tempore tuta uia est // “a esta
espécie de amante o caminho em qualquer tempo é seguro”. Pelo contrário,
o amante “de escasso sangue” deverá inspirar compaixão, e não ódio dos
possíveis salteadores noturnos:
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 229-249, jan/jun. 2016.
240 Roberto Arruda de Oliveira
Sente-se protegido pelo Amor, mas, ainda que a morte lhe sobrevies-
se, poderia transformar o coração da amada e vê-la junto ao seu túmulo.
Marca sua poesia com todos os elementos de seu imaginário relacionados
à morte: unguentum, serta, sepulcrum, bustum.
A fidelidade do poeta por sua amada firma-se não apenas na vida, mas
perdura para além da morte, a qual, em vez de rompê-la, prolonga esta
união: ambos una fides auferet, una dies (II,20,18) // “um só juramento, um
só dia levará nós dois ao mesmo tempo”. Esta ideia é reforçada pelo mito
das esposas irrepreensíveis, imortalizadas nos Infernos e que lá prorrogam
sua fidelidade sentida em vida:
15 Tovar (1963, p 167) é o único comentarista que nos dá uma explicação acerca dessa estranha
referência: “O amante, pálido e exangue de desejo, inspira compaixão” // El amante, pálido y
exangüe por el deseo, inspira compasión.
16 Cassiopéia, mãe de Andrômeda, muito orgulhosa da própria beleza, queria rivalizar com as Ninfas
e até mesmo com Hera. Essas pedem a Poseidon um castigo pela presunção e o deus manda um
monstro marinho. O oráculo de Ámon, interrogado pelo rei da Etiópia, Cefeu, predisse que aquele
país só estaria livre do monstro se Andrômeda, sua filha, fosse exposta como vítima expiatória. Os
etíopes, então, obrigaram o rei a prender a filha a um rochedo. Perseu, voltando de uma expedição
contra a Górgona, apaixona-se por ela e promete a Cefeu que a libertaria, caso ele consentisse esta
união. Tendo Cefeu aceitado, Perseu mata o monstro e a desposa.
17 Era uma das Danaides, cinqüenta filhas de Dânao, rei de Argos. Com o consentimento de seu
pai, casaram-se com seus primos, os quais haveriam de matar por ordem dele, a quem um
oráculo havia predito que teria por assassino os genros. Somente Hipermnestra recusou-se a
matar seu marido, Linceu, que a respeitaria, mas que, depois, assassinaria o sogro.
18 tries precisely to maintain the belief that love can overcome death (LYNE,1998,p.209).
Tal qual a Cíntia da elegia 3 do livro I, tal qual Élia Gala, Aretusa é
outra Lucrécia, ideal de esposa romana, eternamente fiel a um só homem.
Retoma ainda este mesmo tema na elegia 11 do livro IV: elogia Cornélia,
que em vida havia sido uma esposa irrepreensível e eternamente fiel ao seu
marido Paulo Emílio Lépido. Todos os temas ligados à separação, doença
e morte, presentes na última de suas elegias, prestam-se para intensificar
ainda mais o sentimento de fidelidade que é confirmado pelo próprio dis-
curso desta dama, a qual dos Infernos fala ao seu marido, consolando-o e
assegurando-lhe sua fidelidade em vida:
por isso jura, num poema em que Cíntia é quem o recrimina e protesta,
amor eterno, e afirma que seu coração será somente dela:
De ti, o que quer que seja, é dito aos meus ouvidos surdos:
que tu apenas não duvides de minha constância. Juro a ti
pelos ossos de minha mãe e pelos ossos de meu pai (ah! se
minto, que ambas as cinzas me sejam funestas!)
Por meio deste juramento o poeta confere a sua relação com Cíntia
uma certa atmosfera familiar. Há uma intenção de estabelecer nesta alian-
ça um caráter legal, pois está certo de que este amor é verdadeiro, aben-
çoado. Ainda que este juramento denuncie sua consciência dos limites da
vida, ele voltaria, ainda que “morto”, contrariando as leis naturais da vida,
se por ela fosse chamado:
20 A respeito deste remador nos diz Scarcia (1993, p.231): o morto, que segundo a tradição grega,
deve colaborar remando com o barqueiro Caronte, toma o remo (diz-se aqui) quando a “barca
infernal” ainda se encontra nos baixios da margem // il morto, che secondo la tradizione greca,
deve collaborare remando col nocchiero Caronte, prende posto (si dice qui) agli scalmi quando
ancora la “barca infernale” poggia mezzo a secco sulla riva.
21 Scarcia (1993, p.231), referindo-se ao Estige, informa-nos ainda: o rio que se encontra na entrada
dos Infernos –possui um aspecto de pântano e suas margens são orladas de caniços altos // l’acqua
che introduce agli inferi – ha caratteri di palude e le sue sponde sono orlate di alti canneti.
Que tu, viva, pudesses sentir isso por minhas cinzas. Então a
morte não me seria amarga em nenhum lugar. Como temo,
Cíntia, que, uma vez desprezada minha pira, o injusto Amor
te afaste de minhas cinzas, e te obrigue, contra tua vontade,
a secar as lágrimas que caem: através de constantes ameaças
se dobra a amante fiel.
22 As opiniões dos comentaristas a respeito desses rombos giratórios divergem um pouco: Scar-
cia (1993, p. 234) nos diz:
No verdadeiro sentido, o fuso que, quando envolvido pela lã, assume o formato da conhecida
figura geométrica; daí, por comparação, o cone (lat. turbo), o pião que gira desenrolando
velozmente uma correia que a envolve em espiral. Como as rodas, e outros objetos rotativos,
peça essencial de muitos rituais de magia. Aqui os presságios tentados são negativos (o pião
pára, o fogo não queima muito as folhas de louro, a lua não participa do rito).
In senso proprio, il fuso con avvolta la lana che assume il profilo della nota figura
geometrica; quindi – per comparazione – il “paléo” (lat. turbo), la trottola che si la frullare
srotolando velocemente una frusta che l’avvolge a spirale (cfr. 3,6,26). Come le ruote, e
altri oggetti rotanti, suppellettile essenziale di molti atti magici. Qui i presagi tentati con
la magia sono negativi (la trottola si ferma, il fuoco non arde bene le foglie di alloro, la
luna non partecipa al rito).
Nisard (1839,p.560), por sua vez, diz-nos:
O rombo que tira sua etimologia imitativamente de seu barulho, do verbo grego r(ombein
(volvere), era, segundo uns, um pião ou carrapeta, que girava com a ajuda de uma tira
de couro; segundo outros, era uma veloz máquina à roda. Os rombos só eram usados em
cerimônias de magia [...] ; ele forçava a lua a descer sobre a terra. Quanto ao loureiro, se
as folhas desta árvore vaticinadora não crepitavam nas chamas, tirava-se disto um péssimo
presságio.
Le rhombe, qui tire son étymologie très-imitative de son bruit, du verbe grec r(ombein
(volvere), était, sélon les uns, un sabot, ou toupie, tournant à l’aide de lanières, ou
bandelettes; selon les autres, c’éait un rouet rapide. Le rhombe n’était d’usage que dans
les cérémonies magiques [...]; il forçait la lune à descendre sur la terre. Quant au laurier,
si les feuilles de cet arbre fatidique ne pétillaient pas dans les flammes, on en tirait un
très-mauvais présage.
Tovar (1963,p.105), por outro lado, explica-nos acrescentando uma outra ideia a esse
instrumento:
O rombo era um elemento da magia grega e romana. Eram peças de madeira com uma cor-
da num extremo através da qual as mesmas giravam produzindo um zumbido. Era usado
como sortilégio pelas magas ou pelos que estavam apaixonados. Acreditavam que girando o
rombo e pronunciando palavras mágicas, fariam vir o homem amado.
El rombo era un elemento de la magia griega y romana. Eran piezas de madera con una
cuerda en un extremo con la que se les hacía girar produciendo un zumbido. Era usado
A morte de Cíntia não pode ser aceita pelo poeta, pois sem a amada ele
não sobreviverá. Sente-se completamente dependente, pois nutre a certe-
za de tê-la no futuro ao seu lado, e, por isso, pede pelos dois. A morte da
amante determina consequentemente a “morte” do amor que mantém vivo
o poeta, daí a simbologia da barca que leva aos Infernos nostros amores.
Manifesta assim na relação com Cíntia um sentimento baseado na fides,
capaz de se manter inalterável, ainda que esta chegue à velhice:
O mesmo juramento é feito, numa outra elegia, a 24 do livro II, na qual lhe
certifica de que ele – ao contrário do seu rival no amor por Cíntia – não dei-
xará de estar ao seu lado, de lhe ser fiel, nem na velhice ou no além-túmulo –
pois, ela, como afirma na elegia 3 do livro II, junta à sua beleza, seme-
lhante à de Helena, seus dotes na dança, na música e no verso. Que ele
como sortilegio por las magas o las enamoradas. Creían que girando el rombo y pronun-
ciando palabras mágicas, harían venir al hombre amado.
23 Paganelli (1929,p.74) afirma ser “o mocho, pássaro da noite e de mau augúrio” // le hibou,
oiseau de nuit et de mauvais augure.
então permaneça sob seu império e que a morte o leve se não cumprir o
juramento:
BIBLIOGRAFIA
NISARD. “Notes sur Properce”. In: Collection des Auteurs Latins. Publiée
sous la direction de M. Nisard. Paris: J.-J. Dubochet et compagnie, 1839.
OVIDE. Héroïdes. Texte établi par H. Bornecque et traduit par M.
Prévost. Paris: Les Belles Lettres,1989.
PAGANELLI, D. “Introduction”. In: PROPERCE. Élégies. Paris: Les Belles
Lettres, 1929.
PROPERCE. “Elegies”. In: Collection des AUTEURS LATINS. Publiée
sous la direction de M. Nisard. Paris: J.-J. Dubochet et compagnie, 1839.
PROPERCIO. Elegías. Edición, tradución, introdución y notas de
António Tovar e María T. Belfiore Mártire. Barcelona: Ediciones Alma
Mater, 1963.
PROPERZIO, Sesto. Elegie. 2. ed. Traduzione di Luca Canali.
Introduzione di Paolo Fedeli. Commento di Riccardo Scarcia. Milano:
Biblioteca Universale Rizzoli, 1993.
SCARCIA, Riccardo. “Commento”. In: PROPERZIO. Elegie. 2. ed.
Milano: Biblioteca Universale Rizzoli, 1993.
TOVAR, Antonio. “Notas”. In: PROPERCIO. Elegías. Edición, tradución,
introdución y notas de António Tovar e María T. Belfiore Mártire.
Barcelona: Ediciones Alma Mater,1963.
Cleópatra foi imortalizada pelos poetas do século I a.C. como uma rai-
nha sedutora e de ousadia desenfreada. Ela é tradicionalmente representa-
da como uma verdadeira vilã dentro da literatura augustana devido ao seu
conflito contra Otávio, que culminou na Batalha de Ácio (31 a.C.) e na con-
quista do Egito. Ainda que Marco Antônio tenha também sido rival do prin-
ceps, Otávio, em busca da legalidade de suas ações, bem como pretendendo
afastar a ideia de guerra civil (execrada pelos romanos), declarou sua guerra
contra Cleópatra e somente a ela (SHEPPARD, 2009, p. 33). Uma vez que
a literatura é composta na intertextualidade com todos os tipos de textos e
discursos disponíveis ao autor, que busca explorar os efeitos de sentido mais
variados, a versão de Otávio vai aparecer também nas obras pós-Ácio.
Dessa forma, Propércio (Elegia, 3.11.39-42) representará Cleópatra como
alguém fruto de relações incestuosas, que ousou desafiar os deuses romanos
com seu reino e deuses decadentes. Esse poeta a imortaliza como meretrix
regina, rainha prostituta. Já Horácio (Carmen 1.37.6-12), constrói Cleópatra
como alguém que preparava a destruição de Roma, insana e embriagada.
Virgílio (Eneida, 8.696) coloca a rainha em cena como uma mulher atípi-
ca em relação ao que era esperado de uma matrona romana, por exemplo,
ao comandar um exército. Esses três autores mantiveram relações boas com
o imperador Augusto, e, como cidadãos romanos escrevendo e publican-
do suas obras após a vitória do princeps, a versão deste prevaleceu em suas
obras. Cleópatra só pôde aparecer como vilã nas obras desses três autores,
ainda que eles tenham escrito em gêneros tão diferentes. Mesmo Propércio,
que escreveu elegias, e de quem, por isso, poderíamos esperar uma constru-
ção menos deteriorante da rainha, não o faz. Não podemos esquecer, como
nos lembra Maingueneau (2006, p. 43-4), da relação entre texto e contexto,
e como os mais diferentes tipos de discursos se inter-relacionam de acordo
com as condições de produção – a obra compõe o mundo.
Apesar de ter começado a compor sua obra mais de cinquenta anos
após a morte de Augusto, Lucano também segue a tendência dos poetas
augustanos na construção da sua Cleópatra. De fato, a própria represen-
tação do Egito em De Bello Ciuili já segue uma tradição literária anterior,
como podemos notar nos trechos a seguir:
caeli neque fulminis iram/nec metuunt ullas tuta atque aeterna ruinas;/ invenies illic incisa ada-
mante perenni/ fata tui generis: legi ipse animoque notavi/ et referam, ne sis etiamnum ignara
futuri.”. “Então Jove lhe disse: Com que intentas/Filha [Vênus], a força vencer do invicto Fado?
Das três fatais Irmãs entra na casa,/ E lá verás escrita em ferro, e bronze/ A sorte dos Mortais.
Estes Decretos/ Nem os choques dos Céus apagar podem,/ Nem dos Raios os ímpetos mais
fortes,/ Nem ruínas quaisquer: firmes, eternos,/ Invioláveis presistem. Lá o destino/ Verás dos
teus Romanos Descendentes/ Esculpido em diamante:” Tradução de Predebon (2006).
15 Tradução de Predebon (2006).
social masculina era o centro das atenções, e a guerra era o foco principal;
tanto na Grécia como em Roma, tratava-se de uma literatura elaborada
por homens, que serviria de exemplo para tal grupo (KEITH, 2004, p. 2).
Assim, Cleópatra ousar introduzir César em sua disputa de trono, induzin-
do o futuro dictator a esquecer-se de suas obrigações referentes à Roma (e
Lucano o tempo todo lamenta o fato de César não ter submetido o Egito a
Roma de pronto),20 é uma forma dela ser triplamente altera na poesia épica
romana, por ser uma rainha, estrangeira e mulher. Em 10.70-81, Lucano
demonstra sua impaciência com César e seu rancor com Cleópatra, e no
trecho fica evidente o quão vil é a rainha:
20 Como podemos ver nos versos iniciais do livro dez: “Vt primum terras Pompei colla secutus/
attigit et diras calcauit Caesar harenas,/ pugnauit fortuna ducis fatumque nocentis/ Aegypti,
regnum Lagi Romana sub arma/ iret, an eriperet mundo Memphiticus ensis/ uictoris uictique
caput.”, “Tão logo como César, seguindo a cabeça de Pompeu, alcançou a terra e pisou naque-
las areais fatais, sua fortuna e o destino do culpado Egito entraram em contenda, a ver se o
reino do Lago se renderia às armas romanas ou se a espada de Mênfis deveria livrar o mundo
da cabeça do vencedor junto com a do vencido.” (v. 1-6).
Considerações finais
23 “politically structured and resonant even when the poets who make them seem only to be talking
about their aesthetic commitments, and nothing else.”
REFERÊNCIAS
Fontes primárias
ARISTÓTELES. Retórica. Prefácio e introdução de Manuel Alexandre Júnior.
Tradução e notas de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e
Abel do Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 2005.
HOMERO. Odisseia. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2011.
HORACIO. Odes, Epodos e Poema Secular. Tradução de Francisco
Antonio Picot. Paris: Librairies-Imprimeries Réunies, 1893.
LUCAN. The Civil War. Trans. James D. Duff. Cambridge: Harvard
University, 1952.
LUCANO. Farsalia. Tradução de Antonio Holgado Redondo. Madri:
Gredos, 1984.
PROPÉRCIO. Elegias. Tradução de Guilherme Gontijo Flores. Belo
Horizonte: Autêntica, 2014.
QUINTILIAN. Institutio Oratoria, vol 1. Trans. H. E. Butler. Cambridge:
Harvard University,1920.
SILIUS ITALICUS. Punica. Trans. James D. Duff. London: Heinemann,
1934. 2v.
STATIUS. Silvae. Ed. and trans. Shackleton Bailey. Cambridge: Harvard
University, 2003.
STATIUS. Thebaid. Achilleid. Ed. and trans. D.R. Shackleton Bailey.
Cambridge, Massachussets: Harvard University, 2004. 2v.
STRABO. The Geography, vol. 8. Trans. Horace L. Jones. Cambridge:
Harvard University, 1932.
SUETONIUS. Vita Lucani. In: SUETONIUS. Lives of the Caesars, vol 2.
Trans. John Carew Rolfe. Cambridge: Harvard University, 1914.
TACITUS. Annals, vol. 5. Trans. John E. Jackon. Cambridge: Harvard
University, 1937.
VALÉRIO FLACO. Cantos Argonáuticos. Tradução de Márcio Meirelles
Gouvêa Júnior. Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 2010.
VIRGÍLIO. Eneida. Tradução de Carlos Alberto Nunes. São Paulo:
Editora 34, 2014.
Obras gerais
BELCHIOR, Ygor Klain. Nero: bom ou mau imperador? Retórica, política
e sociedade em Tácito (54 a 69 d.C.). Curitiba: Prismas, 2015.
DINTER, Martin T. Sententiae na épica latina. Letras Clássicas, n. 14, p.
51-62, 2010.
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 251-266, jan/jun. 2016.
266 Leni Ribeiro Leite & Camilla F. da Silva
1. seis elegias cujo autor, conforme se lê numa delas (3, 29), é certo
Lígdamo, que as dedica a amada Neéra;
2. um anônimo “Panegírico de Messala”, escrito em 211 hexâmetros
datílicos;
3. as 11 elegias de Sulpícia, que tratam do amor que ela tem por um
jovem chamado Cerinto.
três hexassílabos, o ouvido – por causa tripla ocorrência, que lhe soa como
padrão – espera ouvir mais um hexassílabo, mas ouve algo diferente, no
caso um tetrassílabo: eis aí a variação por abreviação, que neste tipo de
versos, como já afirmei, pressupõe que o primeiro verso seja alexandrino
perfeito e o segundo decassílabo heroico.
Acredito que Péricles Eugênio tenha assim procedido na tradução do
poema de Propércio. Se porventura não procedeu, decidi eu, por causa do
efeito que acredito existir, assim proceder sistematicamente para traduzir
as elegias de Sulpícia.
Elegias de Sulpícia11
Phoebe, faue: laus magna tibi tribuetur in uno Febo, ajuda! Hás de ter grande louvor se tu,
corpore seruato restituisse duos. curando um ser, salvares duas vidas
Iam celeber, iam laetus eris, cum debita reddet 23 e insigne e ledo então serás quando disputem
certatim sanctis laetus uterque focis. ledos no altar quem mais te mostra gratidão.
Tum te felicem dicet pia turba deorum, 25 “Feliz” dirá de ti o bando pio dos deuses,
optabunt artes et sibi quisque tuas. cada qual desejando as tuas artes.
nec, liceat quamuis, sana fuisse uelit. e, bem que possa, não quer ser curada.
Sis iuueni grata: ueniet cum proximus annus, Sê propícia ao rapaz: no ano que vem, já velho
hic idem uotis iam uetus extet amor. 20 brilhe este amor nos votos que ela faça.
optarim, quam te si quoque uelle putem. de vez, se eu visse que também quisesses.
At mihi quid prosit morbos euincere, si tu 5 Que vale o mal vencer se tens um coração
nostra potes lento pectore ferre mala? insensível à minha enfermidade?
1 Teu dia: tuis calendis; é o dia 1o de março, as chamadas “calendas de março”. O dia e o mês são
dedicados a Marte, mas também era o dia das Matronalia (“mães”) , dedicado a Juno Lucina,
protetora das esposas, das mães e puérperas.
2 Vertumno: Vertumnus; deus romano das estações; o nome é ligado ao verbo vertere, “mudar”.
3 Eoas: orientais.
4 Piérias: as Musas, assim chamadas por causa da fonte situada na Piéria, região do monte
Olimpo, onde as Musas brincaram assim que nasceram.
5 Cascosa lira: testudinea lyra. A lira é feita com a carapaça da tartaruga (testudo).
6 Délia: epíteto de Diana, deusa da caça e dos lugares ermos e virgens como ela.
7 Cerinto: “Cerinthus é, portanto, um vocábulo cujas ligações às abelhas, ao mel e, por conse-
guinte, à cera são bem evidentes, não sendo de forma alguma surpreendente que κήρινθος
derive de κηρός, ‘cera’. Quanto a esta substância, é amplamente conhecida a extrema impor-
tância que assume para os elegíacos romanos, já que eram as tabuinhas de cera o meio de
comunicação com a amada. Desta forma, deparamo-nos com uma forte identificação entre a
cera e a escrita”. (FILIPE, 2002, p. 61); cf. elegia sexta, v. 7, nota.
8 Senhora: domina. No código elegíaco amoroso o amante, afetado pelo mal de amor, submete-
-se como escravo a sua amada, que, assim, é chamada domina; cf elegia quarta, v. 4, serui-
tium, “escravidão”, e v. 13, seruiat, do verbo servire, “ser escravo”, que traduzi por “aceita dois
escravos”.
9 Parcas: Parcae. As três deusas do destino, equivalentes às Moiras gregas.
10 Gênio: genium; espírito divino que regia o destino de um indivíduo, de um lugar e até de um
dia festivo, como aqui, o dia do aniversário.
11 Lares: divindades protetoras da casa.
12 Não sê: saiba o leitor severo que para esta forma licenciosa tomo a liberdade de me apoiar no
exemplo de Chico Buarque de Holanda, que na canção “Fado Tropical” diz: “Mas não sê tão
ingrata, / Não esquece quem te amou / E em tua densa mata / Se perdeu e se encontrou”;
itálicos meus. Lembro que principalmente em poesia, mas não apenas nela, os autores latinos
formam imperativo negativo antepondo ne à forma do imperativo afirmativo, como em ne
timete (Liv. 3, 2, 9).
13 Natal: Natalis, é o Gênio, o espírito divino que rege o dia do nascimento de Cerinto; ver nota
seguinte.
14 Natalícia Juno: Natalis Iuno. Como Juno, sob o epíteto de Lucina (“aquela que assiste a quem
dá à luz”), preside ao parto, preside também ao dia do aniversário.
15 Citereia: Cytherea, epíteto de Vênus. Citera é ilha grega onde havia santuário de Vênus.
16 Camenas: Camenis. as Musas. Camena é palavra latina ligada ao verbo canere, “cantar”.
17 Tabuinhas: as tabuinhas enceradas em que se escreviam bilhetes, rascunhos de composições
e até documentos. Mas neste verso, seladas, signatis, indicaria, ao contrário do verso seguinte,
que os escritos seriam secretos, protegidos, à semelhança do que fazia nos codicilos, que é
uma emenda ao testamento: Sulpícia não esconde nada.
18 Terra Arícia: Arretino agro. É a atual Arezzo, na Toscana.
19 Tio: propinque, vocativo de propinquus, “parente”.
BIBLIOGRAFIA
As personagens do drama:
Ifigênia.
Orestes.
Pílades.
Coro de cativas gregas.
Boiadeiro.
Toas.
Mensageiro.
Atena.
PRÓLOGO 1-125
IFIGÊNIA:
Pélops Tantâlida foi a Pisa com éguas
velozes e desposa a filha de Enômao,
dela floriu Atreu e de Atreu os filhos
Menelau e Agamêmnon, e deste nasci
eu, Ifigênia, a filha da filha de Tindáreo, 5
que perto dos vórtices que Euripo vário
revolve com vento forte no mar escuro
o pai ao que parece imolou a Ártemis
por Helena no ínclito vale de Áulida.
Aí mesmo o rei Agamêmnon reuniu 10
a expedição grega de dez mil navios,
querendo obter coroa de bela vitória
em Ílion com aqueus e punir núpcias
ultrajadas de Helena, grato a Menelau.
Na terrível calmaria sem lograr ventos 15
consultou a pira e Calcas lhe diz isto:
1 Doutor em Letras Clássicas pela USP. Professor titular de Língua e Literatura Grega
na USP.
282 Jaa Torrano
IFIGÊNIA:
Guardai silêncio,
ó habitantes das duas pedras
convergentes do Mar Inóspito! 125
[PÁRODO (126-235)]
CORO:
Ó filha de Leto
caçadora montesa
perante teu templo de belas
colunas com áureos frisos
levo o pio pé virgíneo 130
serva de pia guardiã, além
das torres gregas de belas éguas
e dos muros de hortos arborosos,
além de Europa, 135
sede da casa paterna.
Vim. Que é novo? Que te inquieta?
Por que me trouxeste, trouxeste ao templo,
ó filha de quem foi às torres troianas
com ínclito remo 140
de mil marujos de dez mil armas
de ínclitos Atridas.
IFIGÊNIA:
Iò, servas,
em que pranto de difícil pranto
estamos, com nênias sem lira 145
da dança de não boa Musa, aiaî,
em fúnebres lamúrias!
Ruínas, ruínas me vêm
quando choro meu irmão
por sua vida, que visão 150
de sonhos vi
à noite de pretéritas trevas!
Sucumbi, sucumbi,
não há casa paterna,
oímoi, a prole se foi! 155
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 281-330, jan/jun. 2016.
286 Jaa Torrano
CORO:
Cantos responsórios e clamor
bárbaro de hinos asiáticos a ti, 180
ó senhora, cantarei esta Musa
mísera lastimosa dos mortos,
hineia-a nas danças de Hades
além de peãs. 185
Oímoi, que casa de Atridas!
Oímoi, perecem luz e cetro
da casa paterna!
O poder de prósperos reis
argivos cabe a quem? 190
Dor irrompe de dores
nos giros das éguas aladas.
O Sol mudou de sede
a sacra vista do clarão.
Outros tetos têm outras 195
dores por áureo tosão,
morte por morte, dor por dor.
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 281-330, jan/jun. 2016.
Eurípedes: Ifigênia em Táurida 287
IFIGÊNIA:
Tenho, desde sempre,
Nume de difícil Nume,
desde a cintura da mãe
e da Noite, desde sempre 205
parteiras as Deusas Partes
impelem a dura educação. 207
No tálamo a filha de Leda 209
mísera broto primogênito 210
vítima de ultraje paterno
e de sacrifício não grato
gerou, criou a oferenda.
Em carros equinos levaram
às areias de Áulida a noiva 215
de noivado difícil, oímoi,
para o filho da Nereida, aiaî!
Hóspede de inóspito mar
habito agora inculta casa, inupta
sem filho nem pátria nem parente 220
a cortejada dos gregos, 208
sem cantar a Hera em Argos 221
nem nos teares de belas vozes
com naveta bordar imagens
de Palas Atena e Titãs, mas
cruenta no altar ruína sem lira 225
dos ensanguentados hóspedes,
e mísera voz dos lamuriosos
e mísero pranto dos chorosos.
Esquecendo-me deles agora
pranteio o irmão em Argos 230
morto, que deixei lactente
ainda bebê, ainda nenê, ainda novo
nos braços da mãe junto aos seios,
e dono de cetro em Argos, Orestes. 235
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 281-330, jan/jun. 2016.
288 Jaa Torrano
CORO:
Está vindo da borda do mar este
boiadeiro para te dizer que nova.
BOIADEIRO:
Filha de Agamêmnon e Clitemnestra,
ouve de mim uma nova comunicação.
IFIGÊNIA:
O que perturba a presente questão? 240
BOIADEIRO:
Vieram à terra, evitando com remo
as negras Simplégades, dois jovens,
imolação e sacrifício grato à Deusa
Ártemis. Lustração e consagração
logo tu poderias fazer apropriadas. 245
IFIGÊNIA:
Quem? Donde parecem vindos?
BOIADEIRO:
Gregos, sei só isso e nada mais.
IFIGÊNIA:
Ouviste e sabes dizer o nome?
BOIADEIRO:
Pílades, um chamava ao outro.
IFIGÊNIA:
Qual o nome do parceiro dele? 250
BOIADEIRO:
Isso não se sabe, não ouvimos.
IFIGÊNIA:
Onde os vistes e capturastes?
BOIADEIRO:
Na altas fragas do mar inóspito.
IFIGÊNIA:
Que faz um boiadeiro no mar?
BOIADEIRO:
Fomos lavar bois na orla salina. 255
IFIGÊNIA:
Retorna lá: como os capturastes
e de que modo, isso quero saber.
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 281-330, jan/jun. 2016.
Eurípedes: Ifigênia em Táurida 289
CORO:
Estes dois de mãos atadas
vêm juntos, novo sacrifício
à Deusa. Calai-vos, pares!
As primícias dos gregos
aproximam-se do templo, 460
não fez falso anúncio
aquele boiadeiro.
Senhora, se esta urbe assim
te faz grata, aceita as ofertas
que a nós, gregos, 465
a lei declara ilícitas.
IFIGÊNIA:
Seja!
Devo primeiro cuidar que o da Deusa
esteja bem. Soltai mãos de forasteiros
que consagrados não tenham cadeias.
Entrai no templo e fazei o necessário 470
e usual nestas presentes circunstâncias.
Pheû!
Ora, quem é a mãe a qual vos gerou,
quem o pai, quem a irmã, se há irmã?
De que moços a duplamente tolhida
irmã será carente? Quem sabe a sorte 475
qual será? Tudo o que vem dos Deuses
segue invisível, e não se prevê o mal,
pois a sorte seduz para a difícil lição.
Donde viestes, ó míseros forasteiros?
Por longo tempo navegastes a este solo, 480
longo tempo longe de casa estareis sob!
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 281-330, jan/jun. 2016.
Eurípedes: Ifigênia em Táurida 295
ORESTES:
Por que choras e com os nossos futuros
males te afliges, quem sejas, ó mulher?
Não julgo sábio quem prestes a morrer
quer vencer com ais o medo da morte, 485
nem quem perto de Hades se lamenta
desesperado de salvação, porque faz
de um dois males e incorre em tolice
e igualmente morre. Necessária sorte.
Não nos pranteies, pois os sacrifícios 490
daqui nós bem sabemos e conhecemos.
IFIGÊNIA:
Ora, qual de vós aqui com o nome
Pílades se chama? Quero saber isso.
ORESTES:
Este, se isso assim te apraz saber.
IFIGÊNIA:
Cidadão nato de que pátria grega? 495
ORESTES:
Que terias, se soubesses, mulher?
IFIGÊNIA:
Sois dois irmãos de uma só mãe?
ORESTES:
Somos sócios, não irmãos, mulher.
IFIGÊNIA:
Que nome o teu pai genitor te pôs?
ORESTES:
Justo nome seria “O-de-má-sorte”. 500
IFIGÊNIA:
Não indago isso. Dá isso à sorte.
ORESTES:
Não rirão de nós, mortos sem nome.
IFIGÊNIA:
Por que o negas? Tens tanta soberba?
ORESTES:
Sacrificarás meu corpo, não o nome.
IFIGÊNIA:
Não me dirias nem qual é tua urbe? 505
ORESTES:
Não buscas lucro para futuro morto.
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 281-330, jan/jun. 2016.
296 Jaa Torrano
IFIGÊNIA:
Que te impede de fazer este favor?
ORESTES:
Prezo ter a ínclita Argos por pátria.
IFIGÊNIA:
Deuses! És mesmo de lá, forasteiro?
ORESTES:
De Micenas, que outrora foi próspera. 510
IFIGÊNIA:
Saudoso vieste, se vieste de Argos. 515
ORESTES:
Não por mim. Se por ti, vê tu isso! 516
IFIGÊNIA:
Banido saíste da pátria ou por quê? 511
ORESTES:
Banido, sim, de mau e bom grado.
IFIGÊNIA:
Ora, que me dirias do que eu quero?
ORESTES:
Como acréscimo a meu infortúnio. 514
IFIGÊNIA:
Talvez conheças a renomada Troia. 517
ORESTES:
Não tivesse visto nem em sonho!
IFIGÊNIA:
Dizem ida de lança não mais viva.
ORESTES:
Pois é assim e não ouvistes em vão. 520
IFIGÊNIA:
Helena retornou à casa de Menelau?
ORESTES:
Está lá, mal vinda a um dos meus.
IFIGÊNIA:
E onde está? Antes me devia um mal.
ORESTES:
Habita Esparta com o antigo esposo.
IFIGÊNIA:
Ó odiada dos gregos, não só de mim. 525
ORESTES:
Fruí, sim, eu, algo de suas núpcias.
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 281-330, jan/jun. 2016.
Eurípedes: Ifigênia em Táurida 297
IFIGÊNIA:
Retornaram os aqueus como se diz?
ORESTES:
Tudo resumido de uma vez me indagas.
IFIGÊNIA:
Antes de tua morte, quero colher isto.
ORESTES:
Pergunta, já que o queres! Eu direi. 530
IFIGÊNIA:
Calcas, o adivinho, voltou de Troia?
ORESTES:
Morreu, ao que diziam os micênios.
IFIGÊNIA:
Ó rainha, que bom! E o Laercíada?
ORESTES:
Ainda não retornou, mas vive, dizem.
IFIGÊNIA:
Morra, não retorne ele nunca à pátria! 535
ORESTES:
Não impreques, todos os dele sofrem.
IFIGÊNIA:
Ainda vive o filho da Nereida Tétis?
ORESTES:
Não. Convolou núpcias vãs em Áulida.
IFIGÊNIA:
Dolosas, como sabem os que sofreram.
ORESTES:
Quem és tu? Tão bem sabes da Grécia! 540
IFIGÊNIA:
Sou de lá, perdi-me quando ainda nova.
ORESTES:
Mulher, com razão queres saber de lá.
IFIGÊNIA:
E o estratego que dizem ter bom Nume?
ORESTES:
Quem? Não sei qual dos de bom Nume.
IFIGÊNIA:
Atrida se dizia um certo rei Agamêmnon. 545
ORESTES:
Mulher, não sei, deixa tu desse assunto.
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 281-330, jan/jun. 2016.
298 Jaa Torrano
IFIGÊNIA:
Não, Deuses! Diz que praza, forasteiro!
ORESTES:
Está morto o mísero, morto por alguém.
IFIGÊNIA:
Está morto? Por quê? Mísera de mim!
ORESTES:
Por que o lamentas? Era teu parente? 550
IFIGÊNIA:
A opulência que outrora teve lamento.
ORESTES:
Que terrível morte imolado da mulher!
IFIGÊNIA:
Ó lastimáveis a matadora e o morto!
ORESTES:
Para aí! Não me perguntes nada mais!
IFIGÊNIA:
Só isto: se a esposa desse mísero vive. 555
ORESTES:
Não vive, o filho que ela teve a matou.
IFIGÊNIA:
Ó conturbada casa! Com que intenção?
ORESTES:
Punindo-a ele assim pela morte do pai.
IFIGÊNIA:
Pheû!
Tão bem com justiça executou o mal!
ORESTES:
Mas justo não teve a divina boa sorte. 560
IFIGÊNIA:
Agamêmnon deixa em casa outro filho?
ORESTES:
Deixou sua única filha Electra solteira.
IFIGÊNIA:
Diz-me, conta-se algo da filha imolada?
ORESTES:
Só se conta que a morta não vê a luz.
IFIGÊNIA:
Mísera, ela e o pai dela que a matou. 565
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 281-330, jan/jun. 2016.
Eurípedes: Ifigênia em Táurida 299
ORESTES:
Desgraçado morto graças à má mulher.
IFIGÊNIA:
O filho do falecido pai vive em Argos?
ORESTES:
Mísero vive em toda parte e nenhures.
IFIGÊNIA:
Salve, sonhos falsos! Ora, éreis nada!
ORESTES:
Nem os assim ditos sábios Numes 570
mentem menos que sonhos alados.
Há muita turvação entre os Deuses
e entre os mortais, mas só dói que
não néscio persuadido por adivinhos
morreu como morreu aos que sabem. 575
CORO:
Pheû! Pheû! E nós? Os nossos pais
vivem? Ou não vivem? Quem diria?
IFIGÊNIA:
Escutai vós, chegamos a uma palavra,
busquei vosso proveito, ó forasteiros,
e o meu. Máxime assim vem o bem, 580
se a todos satisfaz o mesmo resultado.
Irias a Argos, se eu te salvasse, e serias
meu mensageiro a meus amigos de lá,
portador de carta, que por dó de mim
um prisioneiro escreveu, por não crer 585
homicida a minha mão, mas que a lei
o mata, por ter a Deusa isso por justo?
Eu não tinha quem de volta a Argos
salvo fosse mensageiro e portador
de minha missiva a algum dos meus. 590
Tu, ao que parece, não és mal nato
e conheces Micenas e meus amigos,
sejas tu salvo lá, com paga não vil,
a salvação devida às leves letras.
Ele, porque a urbe assim obriga, 595
seja sacrificado à Deusa, sem ti.
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 281-330, jan/jun. 2016.
300 Jaa Torrano
ORESTES:
Bem disseste o mais, ó forasteira,
mas imolá-lo me seria muito grave.
O navegador sou eu na conjuntura,
ele viaja comigo por meus males. 600
Não é justo que eu com sua perda
tenha a graça e safe-me dos males.
Mas que seja assim: dá-lhe a carta;
envia-o a Argos, que te seja bem.
Quem quiser nos mate. É vilíssimo 605
quem traindo amigos no infortúnio
se salva, e este é por sorte amigo,
não quero que veja menos a luz.
IFIGÊNIA:
Ó nobre coração, tu és de origem
nobre e o amigo certo dos amigos! 610
De meus consanguíneos, tal fosse
o que resta, eu não sou sem irmão,
forasteiros, exceto por não o ver.
Já que assim queres, ele nos será
o portador da carta, e morrerás tu, 615
um grande zelo por ele te empolga.
ORESTES:
Quem me imolará e terá o terrível?
IFIGÊNIA:
Eu. Tenho da Deusa este encargo.
ORESTES:
Triste e não de bom Nume, jovem!
IFIGÊNIA:
Mas temos a coerção da obrigação. 620
ORESTES:
Tu, mulher, imolas varões na faca?
IFIGÊNIA:
Não, mas aspergirei em teu cabelo.
ORESTES:
Quem imola, se o devo perguntar?
IFIGÊNIA:
No templo há quem disso incumbido.
ORESTES:
Que tumba me terá quando morrer? 625
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 281-330, jan/jun. 2016.
Eurípedes: Ifigênia em Táurida 301
IFIGÊNIA:
Fogo sagrado e vasta fenda de pedra.
ORESTES:
Pheû!
Como a mão da irmã me sepultaria?
IFIGÊNIA:
Ó mísero, quem sejas, fizeste a prece
em vão, reside longe da terra bárbara.
Todavia, porque por sorte és argivo, 630
eu não omitirei uma graça possível.
Porei muito adorno em teu funeral,
extinguirei teu corpo em óleo loiro
e verterei o brilho haurido de flores
da fulva abelha montesa em tua pira. 635
Mas irei e trarei a carta do santuário
da Deusa. Não me tenhais inimizade.
Ó servos, guardai-os, sem as cadeias!
Talvez inesperada a um de meus caros
enviarei a quem eu mais amo em Argos 640
a carta, que anunciará incríveis alegrias
ao dizer que vive quem é tido por morto.
CORO:
Choro por ti que és o cuidado EST.
das sangrentas gotas lustrais. 645
ORESTES:
Não choreis! Ó forasteiras, salve!
CORO:
A ti, que pela sorte venturosa ANT.
vais à pátria, nós te felicitamos.
PÍLADES:
Ingrato a amigos, morto o amigo. 650
CORO:
Ó tristes partidas! – Pheû! Pheû! – EPODO
Duas de destruir! – Aiaî! –
Qual dos dois há de ser?
Resta ainda dúbio dúplice espírito, 655
a ti ou a ti prantear antes com ais.
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 281-330, jan/jun. 2016.
302 Jaa Torrano
ORESTES:
Pílades, pensas – oh Deuses! – o mesmo?
PÍLADES:
Não sei, perguntas-me incapaz de dizer.
ORESTES:
Quem é a moça? Como na voz grega 660
nos perguntou das fadigas em Ílion,
do retorno dos aqueus, do sábio áuspice
Calcas, do nome de Aquiles, e como
chorou pobre Agamêmnon e indagou
da mulher e dos filhos! Esta forasteira 665
é uma argiva nata de lá ou não enviaria
carta jamais, nem se informaria assim
como se fosse comum o bem de Argos.
PÍLADES:
Tu o dizes por um triz antes de mim,
exceto que dos padecimentos do rei 670
sabem todos com quem se conversou.
No entanto tenho ainda outra palavra.
ORESTES:
Qual? Se a comunicas, saberias mais.
PÍLADES:
Avilta-nos vermos a luz, se tu morres.
Naveguei junto, devo morrer contigo.
Terei conquistado covardia e vilania
em Argos e no solo rugoso da Fócida
e parecerá à turba, pois a turba é má,
que eu te traí e em casa me salvei só,
ou que ainda o matei por turvo palácio 680
e urdi a tua morte por causa da realeza,
herdeiro por ser casado com tua irmã.
Disso eu tenho pavor e sinto vergonha.
Não há como não deva morrer contigo,
ser imolado junto e o corpo cremado, 685
por ter sido amigo e por temer desonra.
ORESTES:
Guarda silêncio! Devo suportar males,
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 281-330, jan/jun. 2016.
Eurípedes: Ifigênia em Táurida 303
IFIGÊNIA:
Retirai-vos, e lá dentro preparai 725
com os que presidem à imolação.
Forasteiros, eis múltiplas dobras
da carta. O que, além disso, quero,
escutai! Não é o mesmo em males
e ao cair-se do pavor em ousadia. 730
Temo que, ao regressar deste solo,
não faça conta de minha missiva
quem for levar esta carta a Argos.
ORESTES:
Que queres, então? Que te falta?
IFIGÊNIA:
Jura-me que levarás estes escritos 735
a Argos, aos amigos a quem envio.
ORESTES:
Jurarás por tua vez do mesmo modo?
IFIGÊNIA:
Que farei ou não farei o quê? Diz!
ORESTES:
Que o deixarás ir vivo da terra bárbara.
IFIGÊNIA:
Dizes bem. Como seria mensageiro? 740
ORESTES:
Será que o rei concordará com isso?
IFIGÊNIA:
Sim,
persuadirei e farei que ele embarque.
ORESTES:
Jura! Inicia tu jura que seja reverente.
IFIGÊNIA:
Levarei, deves dizer, isto a teus amigos.
PÍLADES:
A teus amigos entregarei estes escritos. 745
IFIGÊNIA:
Também te salvarei das pedras negras.
PÍLADES:
Por qual dos Deuses tu juras esta jura?
IFIGÊNIA:
Ártemis, em cujo templo tenho honra.
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 281-330, jan/jun. 2016.
Eurípedes: Ifigênia em Táurida 305
PÍLADES:
Eu juro pelo rei do céu Zeus venerável!
IFIGÊNIA:
E se quebrares a jura e me fores injusto? 750
PÍLADES:
Não regresse! E tu, se não me salvares?
IFIGÊNIA:
Nunca possa viva pôr os pés em Argos!
PÍLADES:
Ouve, então, a palavra que omitimos!
IFIGÊNIA:
Mas se por bem, que já se comunique!
PÍLADES:
Faz-me a ressalva: se o navio sofrer 755
algo e a carta desaparecer nas ondas
com os haveres, e salvar eu só a vida,
este juramento não terá mais validade.
IFIGÊNIA:
Sabes que farei? Muitos têm muitos.
O que há escrito nas dobras da carta 760
te direi para anunciares tudo aos meus.
Se conservares em segurança a escrita,
ela dirá em silêncio o que está escrito.
Se estas letras desaparecerem no mar,
se salvares a vida, salvarás minha fala. 765
PÍLADES:
Bem falaste em favor de ti e de mim.
Diz-me a quem devo levar a mensagem
em Argos e o que ouvir de ti e dizer!
IFIGÊNIA:
Anuncia a Orestes, filho de Agamêmnon:
a imolada em Áulida faz saber o seguinte: 770
viva Ifigênia, mas aos de lá não viva ainda.
ORESTES:
Onde está ela? Morreu e de novo regressa?
IFIGÊNIA:
Esta que tu vês. Não me cortes a palavra!
Leva-me a Argos, irmão, antes da morte,
tira-me da terra bárbara e das imolações 775
à Deusa, onde me honra matar forasteiro.
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 281-330, jan/jun. 2016.
306 Jaa Torrano
ORESTES:
Pílades, que direi? Onde nos achamos?
IFIGÊNIA:
Ou precatória a tua casa me tornarei,
Orestes! Ouve outra vez o nome, sabe!
ORESTES:
Ó Deuses!
IFIGÊNIA:
Por que me clamas Deuses? 780
ORESTES:
Nada! Prossegue! Perambulei alhures.
IFIGÊNIA:
Talvez ao te inquirir consiga o incrível.
Diz-lhe que a Deusa me trocou por corça,
Ártemis me salvou, vítima de meu pai
na crença de ferir-me com aguda faca, 785
e instalou nesta terra. Eis a mensagem,
isso é o que está escrito aí nessa carta!
PÍLADES:
Ó prendendo-me com o juramento fácil,
o melhor juramento, em não muito tempo
eu confirmarei esse juramento que jurei. 790
Olha, trago-te esta carta que te entrego,
Orestes, vindo da parte desta tua irmã!
ORESTES:
Recebo. Deixando as dobras de letras
prefiro primeiro o prazer não verbal.
Ó minha caríssima irmã, surpreso, 795
cingindo-te com o braço incrédulo,
sinto o júbilo, ao saber do milagre!
IFIGÊNIA:
Forasteiro, sujas sem justiça a serva
da Deusa, abraçando véus intocáveis.
ORESTES:
Ó minha irmã e filha do mesmo pai 800
Agamêmnon, não me desconsideres
tendo o irmão sem crer tê-lo afinal!
IFIGÊNIA:
És tu o meu irmão? Não te calarás?
Argos e Náuplia estão cheias dele.
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 281-330, jan/jun. 2016.
Eurípedes: Ifigênia em Táurida 307
ORESTES:
Não está lá, ó mísera, o teu irmão. 805
IFIGÊNIA:
Mas a lacônia Tindárida te gerou?
ORESTES:
Sim, com o filho do filho de Pélops.
IFIGÊNIA:
Que dizes? Podes me provar isso?
ORESTES:
Posso. Pergunta algo da casa paterna.
IFIGÊNIA:
Não deves tu dizer e eu saber de ti? 810
ORESTES:
Diria primeiro o que ouvi de Electra:
conheces a rixa entre Atreu e Tieste?
IFIGÊNIA:
Ouvi: houve litígio por anho de ouro.
ORESTES:
Sabes que isso teceste em rico tecido?
IFIGÊNIA:
Ó caríssimo, alcanças o meu coração. 815
ORESTES:
Figura no tecido a mudança do sol.
IFIGÊNIA:
Teci ainda essa forma no tecido fino.
ORESTES:
E banhos que a mãe te deu em Áulida?
IFIGÊNIA:
Sei, não me raptaram por boas núpcias.
ORESTES:
Sabes que deste as mechas à tua mãe? 820
IFIGÊNIA:
Lembranças de meu corpo ao túmulo.
ORESTES:
O que eu mesmo vi, direi como prova.
Na casa do pai Pélops, a antiga lança
– com que ganhou a virgem de Pisa
Hipodamia, quando matou Enômao – 825
era ocultada em teu quarto de virgem.
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 281-330, jan/jun. 2016.
308 Jaa Torrano
[KOMMÓS (827-899)]
IFIGÊNIA:
Ó caríssimo, nada mais, pois caríssimo és,
tenho-te, Orestes, vindo da longínqua pátria
vindo de Argos, ó meu caro! 830
ORESTES:
E eu a ti, a que morreu, como se imagina.
IFIGÊNIA:
As lágrimas e gemidos de alegria
te umedecem os olhos e aos meus.
Este menino
deixei nos braços da nutriz, novo, 835
novo, em casa.
Ó boa sorte maior que a palavra, vida
minha, que dizer? Mais que admirável
e além das palavras assim aconteceu! 840
ORESTES:
Tenhamos boa sorte juntos no porvir!
IFIGÊNIA:
Tenho insólito prazer, ó amigas!
Temo que fuja de meus braços
em voo para o céu fulgente.
Ió, ciclópico lar! Ió, pátria 845
minha Micenas,
graça pela vida, graça pela criação,
tenho-te por me criares este irmão,
a luz da casa!
ORESTES:
Somos de boa sorte, mas por revés, 850
ó irmã, nossa vida foi de má sorte.
IFIGÊNIA:
Mísera soube, soube, quando o pai
mísero me pôs a espada no pescoço.
ORESTES:
Oímoi! Ausente imagino te ver lá! 855
IFIGÊNIA:
Sem himeneu, ó irmão, fui levada
à dolosa tenda nupcial de Aquiles.
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 281-330, jan/jun. 2016.
Eurípedes: Ifigênia em Táurida 309
CORO:
Entre milagres e além das palavras isto 900
eu mesma vi, não ouvi de mensageiros.
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 281-330, jan/jun. 2016.
310 Jaa Torrano
PÍLADES:
Quando amigos vão à vista de amigos,
é o esperado receber abraços, Orestes,
mas é preciso que cessemos o pranto
para com a ínclita visão da salvação 905
tratarmos de sair desta terra bárbara.
Pertence aos sábios não sair da sorte,
colher a ocasião e ter outros prazeres.
ORESTES:
Tens razão. Creio que a sorte cuida
disto conosco. Se o ânimo se adianta, 910
parece que o divino tem mais força.
IFIGÊNIA:
Não me detenhas nem afastes a fala
antes que eu saiba que sorte Electra
teve na vida, ela sempre me será cara.
ORESTES:
Com este ela vive e tem bom Nume. 915
IFIGÊNIA:
De onde ele vem e de quem é filho?
ORESTES:
Estrófio da Fócida se diz o seu pai.
IFIGÊNIA:
Ele é filho da Atrida, meu parente?
ORESTES:
Primo teu, meu único amigo certo.
IFIGÊNIA:
Não vivia, quando o pai me matou. 920
ORESTES:
Não. Estrófio então não tinha filho.
IFIGÊNIA:
Salve, caro marido de minha irmã!
ORESTES:
E meu salvador, não apenas parente.
IFIGÊNIA:
Como ousaste ato terrível da mãe?
ORESTES:
Calemos isso, eu honrava meu pai. 925
IFIGÊNIA:
Ela por que causa matou o marido?
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 281-330, jan/jun. 2016.
Eurípedes: Ifigênia em Táurida 311
ORESTES:
Esquece a mãe, não te é bom ouvir.
IFIGÊNIA:
Calo-me. E Argos agora te admira?
ORESTES:
Menelau manda; estamos exilados.
IFIGÊNIA:
O tio usurpou a casa no distúrbio? 930
ORESTES:
Não, o medo de Erínies me baniu. 931
IFIGÊNIA:
Sei, pela mãe as Deusas te banem. 934
ORESTES:
Enfiando na boca freio sangrento. 935
IFIGÊNIA:
Relatou-se teu delírio aqui na orla. 932
ORESTES:
Não agora primeiro me viram mal. 933
IFIGÊNIA:
Por que afinal vieste a esta terra? 936
ORESTES:
Instruído por oráculo de Febo vim.
IFIGÊNIA:
A fazer o quê? Podes dizer ou não?
ORESTES:
Direi. Foi-me o início de muitas dores.
Quando os males da mãe, que calamos, 940
vieram às mãos, nas caçadas de Erínies
exilamo-nos banidos, desde que Lóxias
pôs-me o passo a caminho de Atenas,
para fazer justiça às anônimas Deusas.
Há sagrada votação, que Zeus instituiu 945
um dia para Ares por poluência da mão.
Lá, primeiro, ninguém quis me receber,
considerando-me hediondo aos Deuses,
mas tiveram pudor, e ofereceram-me
hóspeda mesa a sós, sob o mesmo teto, 950
e em silêncio me fizeram sem palavra,
para ter pasto e bebida separado deles.
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 281-330, jan/jun. 2016.
312 Jaa Torrano
IFIGÊNIA:
Eu não poderia, mas aprovo o empenho.
ORESTES:
E se neste templo tu me ocultasses?
IFIGÊNIA:
Como nas trevas estaríamos salvos ? 1025
ORESTES:
A noite é furtiva, a luz é da verdade.
IFIGÊNIA:
No templo há guardas que nos verão.
ORESTES:
Oímoi, ruímos! Como nos salvaríamos?
IFIGÊNIA:
Creio que tenho uma nova invenção.
ORESTES:
Qual? Diz que pensas para eu saber! 1030
IFIGÊNIA:
Usarei os teus tormentos com mestria.
ORESTES:
Mulheres são hábeis em inventar artes.
IFIGÊNIA:
Direi que tu, matricida, vens de Argos.
ORESTES:
Usa de meus males, se te for lucrativo.
IFIGÊNIA:
Direi que é ilícito sacrificar-te à Deusa. 1035
ORESTES:
Por que motivo? Tenho uma suspeita.
IFIGÊNIA:
Não estás puro. Darei licitude à morte.
ORESTES:
E mais bem se leva a estátua da Deusa?
IFIGÊNIA:
Quererei purificar-te com água do mar.
ORESTES:
Ainda no templo o ícone por que viemos. 1040
IFIGÊNIA:
Direi que vou lavá-lo, porque o tocaste.
ORESTES:
Onde? Irás à úmida rebentação do mar?
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 281-330, jan/jun. 2016.
Eurípedes: Ifigênia em Táurida 315
IFIGÊNIA:
Onde teu navio fundeia com líneo freio.
ORESTES:
Tu levarás o ícone nas mãos, ou outrem?
IFIGÊNIA:
Eu, pois somente a mim é lícito tocá-lo. 1045e
ORESTES:
Onde colocaremos este Pílades na ação?
IFIGÊNIA:
Dirá que tem as mãos poluídas como tu.
ORESTES:
Agirás oculta ao rei ou sendo ele ciente?
IFIGÊNIA:
Por persuadir. Não me poderia ocultar. 1049
Deves cuidar que o restante esteja bem. 1051
ORESTES:
Sim, o remo do navio está disponível. 1050
Só quero que elas guardem sigilo disto. 1052
Mas prossegue e inventa as persuasivas
palavras! Mulher sabe como comover.
Tudo o mais talvez pudesse correr bem! 1055
IFIGÊNIA:
Ó caríssimas mulheres, eu vos vejo
e tenho em vossas mãos o bem estar
ou ser anulada e espoliada da pátria
e do caro irmão e da caríssima irmã!
Primeiro assim principie minha fala: 1060
somos mulheres, gente amiga mútua
e de manter seguro interesse comum.
Guardai silêncio conosco e cooperai
na fuga. Bela é a língua quando fiel.
Vedes três amigos com só uma sorte: 1065
ou retornar à terra pátria ou ser morto.
Na Grécia, para tu partilhares a sorte,
se salva, eu te salvarei. Eu te suplico
por tua destra, a ti, por tua face amiga,
a ti, por teus joelhos e os mais amigos 1070
da casa, a mãe, o pai e os filhos, se há.
Que dizeis? Quem condiz, quem não?
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 281-330, jan/jun. 2016.
316 Jaa Torrano
TOAS:
A mulher grega guardiã deste templo
onde está? Já consagrou os forasteiros?
No ádito santo brilham corpos ígneos? 1155
CORO:
Aí está ela que tudo te dirá claro, ó rei.
TOAS:
Éa!
Por que trazes da base imóvel nas mãos
o ícone da Deusa, ó filha de Agamêmnon?
IFIGÊNIA:
Ó rei, detém o teu passo aí na entrada.
TOAS:
Ó Ifigênia, que novidade há no templo? 1160
IFIGÊNIA:
Cuspi, pois dou esta palavra à Licitude.
TOAS:
Por que esse proêmio novo? Diz claro!
IFIGÊNIA:
Prendestes as vítimas impuras, ó rei!
TOAS:
O que te mostrou isso? Ou tu opinas?
IFIGÊNIA:
O ícone da Deusa revirou-se da base. 1165
TOAS:
Por si só ou tremor de terra revirou?
IFIGÊNIA:
Por si só e fechou a vista dos olhos.
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 281-330, jan/jun. 2016.
Eurípedes: Ifigênia em Táurida 319
TOAS:
Por quê? Impureza dos forasteiros?
IFIGÊNIA:
Isso mesmo, terrível ato de ambos.
TOAS:
Mas matou algum bárbaro na orla? 1170
IFIGÊNIA:
Vieram ao cometer morte doméstica.
TOAS:
Qual? Caímos no desejo de saber.
IFIGÊNIA:
Mataram a mãe com espada ambos.
TOAS:
Ó Apolo, nenhum bárbaro ousaria!
IFIGÊNIA:
Expulsos banidos de toda a Grécia. 1175
TOAS:
Tu por isso trazes o ícone para fora?
IFIGÊNIA:
Santo sob o céu, para afastar sangue.
TOAS:
Como soubeste poluídos os forasteiros?
IFIGÊNIA:
Inquiri como se virou ícone da Deusa.
TOAS:
Sábia te fez a Grécia, pois viste bem. 1180
IFIGÊNIA:
Lançaram doce engodo a meu espírito.
TOAS:
Anunciam-te algo grato dos de Argos?
IFIGÊNIA:
Orestes meu único irmão tem boa sorte.
TOAS:
Para que os salves por doces anúncios?
IFIGÊNIA:
E meu pai está vivo e se encontra bem. 1185
TOAS:
Tu naturalmente propendeste à Deusa.
IFIGÊNIA:
Por ódio à Grécia toda, que me matou.
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 281-330, jan/jun. 2016.
320 Jaa Torrano
TOAS:
Dize-me que fazer com os forasteiros!
IFIGÊNIA:
É necessário venerar a lei estabelecida.
TOAS:
Não tens prontas lustrações e tua faca? 1190
IFIGÊNIA:
Quero antes lavar com sacra purificação.
TOAS:
Na água da fonte ou na água do mar?
IFIGÊNIA:
O mar lava todos os males dos homens.
TOAS:
Mais puros seriam eles para a Deusa.
IFIGÊNIA:
E assim meu ofício estaria mais bem. 1195
TOAS:
Então não cai a onda junto ao templo?
IFIGÊNIA:
Pede solidão, pois faremos outros ritos.
TOAS:
Vai aonde pedes, não amo ver segredo.
IFIGÊNIA:
Tenho que purificar o ícone da Deusa.
TOAS:
Se é que nódoa de matricídio o tocou. 1200
IFIGÊNIA:
Pois não o tiraria nunca do pedestal.
TOAS:
É justa essa veneração e providência.
IFIGÊNIA:
Sabes o que devo ter?
TOAS:
Cabe-te dizer.
IFIGÊNIA:
Algema os forasteiros.
TOAS:
Aonde fugiriam?
IFIGÊNIA:
Grego não tem fé.
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 281-330, jan/jun. 2016.
Eurípedes: Ifigênia em Táurida 321
TOAS:
Ide atá-los, guardas! 1205
IFIGÊNIA:
Reconduze-os para cá!
TOAS:
Assim será!
IFIGÊNIA:
Oculta-os com mantos!
TOAS:
Da luz do Sol!
IFIGÊNIA:
Dá-me tua escolta!
TOAS:
Eles te seguirão.
IFIGÊNIA:
Envia à urbe quem diga...
TOAS:
O quê?
IFIGÊNIA:
Fiquem todos em casa.
TOAS:
Não vejam morte. 1210
IFIGÊNIA:
Tais são abomináveis.
TOAS:
Vai e diz tu!
IFIGÊNIA:
Ninguém venha ver.
TOAS:
Bem cuidas da urbe.
IFIGÊNIA:
E dos que mais devo.
TOAS:
Disseste-o de mim.
IFIGÊNIA:
Sim.
TOAS:
Toda a urbe por certo te admira!
IFIGÊNIA:
Tu, ante o templo da Deusa...
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 281-330, jan/jun. 2016.
322 Jaa Torrano
TOAS:
Que farei? 1215
IFIGÊNIA:
Purifica-o com tocha.
TOAS:
Puro, ao voltares.
IFIGÊNIA:
Ao saírem os forasteiros...
TOAS:
O que fazer?
IFIGÊNIA:
Pôr o manto nos olhos.
TOAS:
Não seja poluído!
IFIGÊNIA:
Se parecer que tardo...
TOAS:
Até quando espero?
IFIGÊNIA:
Não admires.
TOAS:
Faz bons ritos com tempo. 1220
IFIGÊNIA:
Sejam puros, como quero!
TOAS:
Faço votos.
IFIGÊNIA:
Vejo que já saem do templo os forasteiros,
adornos da Deusa, tenras ovelhas para lavar
com sangue o sangue sujo, o brilho de tochas
e o mais para purificar forasteiros e Deusa. 1225
Digo aos cidadãos: afastem-se da poluência!
Tem mãos puras ante os Deuses, se for servo
do templo, ou for se casar, ou estiver grávida!
Evitai! Afastai-vos! Não caia aqui poluência!
Ó rainha virgem de Zeus e Leto, se eu lavar 1230
o sangue e fizer o necessário, terás casa pura
e teremos boa sorte. Sem falar mais, porém,
falo a ti e aos Deuses cientes do mais, Deusa!
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 281-330, jan/jun. 2016.
Eurípedes: Ifigênia em Táurida 323
[ÊXODO (1284-1499)]
MENSAGEIRO:
Ó vigia-templo e servos de altares,
Toas, o rei desta terra, onde está? 1285
Abertas as sólidas portas, chamai
fora de casa o soberano desta terra.
CORO:
Que há, se devo falar sem convite?
MENSAGEIRO:
Foram-se os dois jovens a caminho
por decisão da filha de Agamêmnon 1290
em fuga desta terra, com o venerável
ícone no regaço de um navio grego.
CORO:
É incrível o que dizes. O rei da terra,
que desejas ver, saiu do templo e foi.
MENSAGEIRO:
Aonde? Ele tem que saber dos fatos. 1295
CORO:
Ignoramos, mas anda e procura-o
onde o encontres e faças o anúncio!
MENSAGEIRO:
Vede que incrível gênero feminino!
Vós também tendes parte nos fatos.
CORO:
Deliras? Que temos com a fuga deles? 1300
Não irás o mais rápido às portas reais?
MENSAGEIRO:
Não, antes que o intérprete diga isto,
se está dentro ou não o rei desta terra.
Oé! Soltai trincos, digo aos de dentro,
dizei ao senhor do palácio que à porta 1305
estou portador do fardo de más novas!
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 281-330, jan/jun. 2016.
Eurípedes: Ifigênia em Táurida 325
TOAS:
Quem ante o templo da Deusa grita,
a golpear a porta e perturbar dentro?
MENSAGEIRO:
Elas mentiam que te foste e de casa
me afastavam, mas estavas em casa! 1310
TOAS:
Que lucro esperavam, ou caçavam?
MENSAGEIRO:
Delas falo depois. Ouve o que mais
importa! A jovem que aqui presidia
os altares, Ifigênia, se foi deste solo
com os forasteiros, com o venerável 1315
ícone da Deusa. Purificação era dolo.
TOAS:
Que dizes? Que sopro teve da sorte?
MENSAGEIRO:
Para salvar Orestes. Isso admirarás.
TOAS:
Quem? O que a Tindárida gerou?
MENSAGEIRO:
O que a Deusa sagrou a este altar. 1320
TOAS:
Ó milagre! Que nome mais te dar?
MENSAGEIRO:
Não penses nisso, mas ouve-me,
examina e escuta claro, e planeja
operação de caça aos forasteiros!
TOAS:
Diz! Tens razão, não curta viagem 1325
fazem até escaparem de meu navio.
MENSAGEIRO:
Quando fomos às falésias marinhas,
onde Orestes aportava navio oculto
a nós, que tu envias com as algemas
dos forasteiros, a filha de Agamêmnon 1330
acenou-nos sairmos, como sacrificando
secreta chama e purificação procurada,
ela ia atrás dos forasteiros com algemas
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 281-330, jan/jun. 2016.
326 Jaa Torrano
ATENA:
Louvo. Vence o dever a ti e aos Deuses.
Ide, ó ventos, levai o Agamemnônida
a Atenas! Eu acompanharei o percurso,
salvando o ícone augusto de minha irmã.
CORO:
Ide, vós que sois por boa sorte 1490
com bons Numes de salva parte!
Ó venerável entre imortais
e entre mortais Palas Atena,
faremos assim como ordenas!
Acabo de escutar anúncio 1495
muito grato e inesperado.
Ó grande augusta Vitória,
residas em minha vida
e não cesses de coroar!
Palavras-chave:
O termo PALAVRAS-CHAVE deve ser inserido duas linhas após o resumo no
idioma do artigo, em maiúsculas, itálico e negrito, seguido de dois pontos e de
até quatro (4) palavras-chave no idioma do artigo, em letras minúsculas, sem
itálico e sem negrito, separadas com ponto e vírgula.
Fazer o mesmo com as palavras-chave em inglês (keywords), duas linhas após
o abstract.
Corpo do texto:
Dispor o texto em forma sequencial, sem espaços ociosos, nem quebra de
página.
Iniciar o texto a 2 linhas das palavras-chave.
Inserir figuras e tabelas no próprio texto (e não, ao final do documento, como
anexos).
Títulos das seções:
Inserir os títulos das seções sempre à margem esquerda, sem adentramento,
a um espaço do parágrafo anterior e posterior. Somente a primeira letra deve
estar em maiúscula.
a) Títulos de seções primárias: itálico e negrito;
b) Títulos de seções secundárias: negrito;
c) Títulos de seções terciárias: itálico.
Citação:
Com até 3 linhas, incorporar ao texto, entre aspas, seguida da referência bi-
bliográfica entre parênteses: sobrenome do autor em maiúsculas, ano da obra
e página.
Com mais de 3 linhas, em parágrafo próprio, com uma linha de espaço antes e
depois. Com recuo de 4 cm à esquerda, sem adentramento na primeira linha,
espaçamento simples, corpo 10, seguida da referência entre parênteses.
Notas de rodapé:
As notas de rodapé devem ser exclusivamente explicativas, numeradas de
modo sequencial, em algarismos arábicos e apresentadas em espaçamento
simples, fonte Times New Roman, corpo 9. As referências devem constar ao
final do artigo, na seção correspondente.
Referências:
A palavra REFERÊNCIAS deve ser digitada duas linhas abaixo da última li-
nha textual, alinhada à esquerda, em maiúsculas e negrito.
As referências devem ser ordenadas alfabeticamente, em espaçamento simples,
Organon, Porto Alegre, v. 31, n. 60, p. 1-340, jan/jun. 2016.
339