Dino Preti Estudos Da Lingua Falada
Dino Preti Estudos Da Lingua Falada
Dino Preti Estudos Da Lingua Falada
variações e confrontos
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Reitor: Prof. Dr. Jacques Marcovitch Vice-Reitor: Prof.
Dr. Adolpho José Melfi FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS Diretor:
Prof. Dr. Francis Henrik Aubert Vice-Diretor: Prof. Dr. Renato da Silva Queiroz
PROJETO DE ESTUDO DA NORMA LINGÜÍSTICA URBANA CULTA DE SÃO PAULO (PROJETO NURC/SP
- NÚCLEO USP)
PUBLICAÇÕES FFLCH/USP
1998
PUBLICAÇÕES FFLCH/USP
Série PROJETOS PARALELOS Vol. 1 ANÁLISE DE TEXTOS ORAIS Vol. 2 O DISCURSO ORAL
CULTO Vol. 3 ESTUDOS DE LÍNGUA FALADA: VARIAÇÕES E
CONFRONTOS
Direitos reservados
Apresentação .....................................................................
...................... 7 Breve notícia sobre os
autores ............................................................... 9 Normas
para transcrição de exemplos ............................................... 12 1.
Atividades de compreensão na interação verbal .......................... 15 Luiz
Antônio Marcuschi 2. Procedimentos e recursos discursivos da
conversação ................. 47 Diana Luz Pessoa de Barros 3. Tipos de frame e
falantes cultos ..................................................... 71 Dino
Preti 4. Elocução formal: o dinamismo da oralidade e as formalidades da
escrita ................................................................... 87
Beth Brait 5. Polidez na interação
professor/aluno ........................................... 109 Luiz Antônio Silva
6. Variedades de planejamento no texto falado e no escrito .......... 131
Hudinilson Urbano 7. Os processos de representação da imagem pública nas
entrevistas ......................................................................
.......... 153 Leonor Lopes Fávero Maria Lúcia da Cunha Victório de Oliveira
Andrade 8. Língua falada: uso e
norma ......................................................... 179 Marli Quadros
Leite 9. O emprego do subjuntivo e de formas alternativas na fala
culta ............................................................................
........ 209 Paulo de Tarso Galembeck
APRESENTAÇÃO
Há um interesse crescente, em todo o mundo, pelo estudo da língua oral e de suas
relações com a escrita. Abandona-se a idéia de atribuir aos textos escritos uma
importância exclusiva nos estudos lingüísticos e a de estudar por seus métodos os
fenômenos da oralidade. Procura-se, hoje, entender as duas modalidades da língua
(falada e escrita) como um continuum em que se observam contrastes e aproximações.
Seu estudo vem sendo feito com novos métodos em várias disciplinas, como a Análise
do Discurso, a Sociolingüística, a Análise da Conversação, a Sociolingüística
Interacional, a Estilística, a Gramática, entre outras linhas de pesquisa. Dentro
desse novo enfoque, a língua falada deve ser vista por métodos próprios de
análise, considerando-se as mais variadas formas de interação verbal. A série
PROJETOS PARALELOS-NURC/SP vem tratando de alguns dos problemas que envolvem as
relações fala/escrita, a partir dos referentes comuns de seus livros: os vários
tipos de materiais gravados na cidade de São Paulo, com falantes cultos, em
situações de comunicação diversas. Em ESTUDOS DA LÍNGUA FALADA: VARIAÇÕES E
CONFRONTOS, terceiro volume da série, temos um grupo de ensaios variados, nos
limites temáticos da coleção: • comparação entre discurso oral e escrito
(“Elocução formal: o dinamismo da oralidade e as formalidades da escrita”, de Beth
Brait; “Variedades de planejamento no texto falado e escrito”, de Hudinilson
Urbano; • características do discurso oral e gêneros discursivos (“Procedimentos e
recursos discursivos da conversação”, de Diana Luz Pessoa de Barros; “Os processos
de representação da imagem pública nas entrevistas”,
de Leonor Lopes Fávero e Maria Lúcia da Cunha Victório de Oliveira Andrade); •
análise de processos de cognição na língua falada (“Atividades de compreensão na
interação verbal”, de Luiz Antônio Marcuschi; “Tipos de frame e falantes cultos”,
de Dino Preti); • aspectos sociolingüísticos revelados na interação verbal
(“Língua falada: uso e norma”, de Marli Quadros Leite; “Polidez na interação
professor/ aluno”, de Luiz Antônio da Silva); • variações sintáticas da língua
falada (“O emprego do subjuntivo e de formas alternativas na fala culta”, de Paulo
de Tarso Galembeck). Os textos desta coleção têm sido sempre de responsabilidade
dos pesquisadores do Núcleo USP do Projeto NURC/SP, grupo constituído por catorze
estudiosos de várias universidades. Mas, a partir deste número da série PROJETOS
PARALELOS – NURC/SP, passamos a incluir a colaboração de um lingüista convidado.
Assim, ESTUDOS DE LÍNGUA FALADA: VARIAÇÕES E CONFRONTOS traz um ensaio de Luiz
Antônio Marcuschi, da Universidade Federal de Pernambuco e do NURC/ RECIFE, um dos
nomes de ponta da lingüística brasileira contemporânea. A aceitação dos volumes
anteriores da série, o primeiro dos quais já em terceira edição, nos permite
pressupor que a coleção vem atingindo seus principais objetivos: divulgar estudos
sobre a língua oral, realizados na linha de uma bibliografia continuamente
atualizada pelos pesquisadores do NURC/SP; provocar a discussão dos assuntos
tratados; e iniciar os leitores que desconhecem essas novas abordagens do fenômeno
da oralidade. D.P.
8
BREVE NOTÍCIA SOBRE OS AUTORES
LUIZ ANTÔNIO MARCUSCHI, professor titular de Lingüística da Universidade Federal
de Pernambuco, doutorou-se em Filosofia da Linguagem na Friendrich Alexander
Universitat de Erlangen, na Alemanha. Tem dado cursos e conferências em vários
países da Europa e da América. Foi o introdutor, no Brasil, dos estudos de Análise
da Conversação e publicou inúmeros artigos, aqui e no exterior, além das obras
Lingüística do texto: o que é e como se faz; Linguagem e classes sociais e Análise
da Conversação. Tem desempenhado papel de relevo junto às sociedades científicas
do País, como ABRALIN, ANPOLL, SBPC etc., bem como na assessoria científica de
entidades oficiais como a CAPES e o CNPq. É, hoje, no Brasil, um dos nomes de
maior prestígio na área de Lingüística. DIANA LUZ PESSOA DE BARROS, professora
titular de Lingüística, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
USP, foi presidente da ABRALIN e tem desenvolvido e orientado pesquisas, bem como
publicado obras, principalmente nas áreas de Teoria e Análise de Textos, Semiótica
Discursiva e estudos de língua falada. Principais livros: Teoria do discurso –
fundamentos semióticos; Teoria semiótica do texto; Dialogismo, polifonia e
intertextualidade: em torno de Bakhtin (em co-autoria com José Luiz Fiorin). DINO
PRETI, professor titular de Língua Portuguesa na USP (aposentado) e, atualmente,
professor de Língua Portuguesa da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, é
Coordenador Científico do Projeto NURC/SP (Núcleo USP) e seus trabalhos se
encontram nas áreas de língua oral, vocabulário popular (principalmente, gíria
urbana) e Sociolingüística Interacional. Tem realizado pesquisas em áreas
interligadas, como a Sociolingüística e Análise da Conversação, a Sociolingüística
e Literatura Brasileira. Principais publicações: Sociolingüística – os níveis de
fala; A linguagem proibida – um estudo sobre a linguagem erótica (prêmio Jabuti,
l984); A gíria e outros temas; A linguagem dos idosos. BETH BRAIT é professora do
programa de pós-graduação da PUC/SP, Departamento de Lingüística Aplicada ao
Ensino de Língua, e 9
professora convidada do programa de pós-graduação da USP, de onde é professora
aposentada. Pela Universidade de São Paulo formou-se, obteve os títulos de doutora
em Letras, em 1981, e o de livre-docente em 1994. É autora de vários livros, entre
eles, A personagem (1985); Ferreira Gullar (1981); Guimarães Rosa (1983);
Gonçalves Dias (1983); Ironia em perspectiva polifônica (1996). É, também, autora
de inúmeros capítulos de livros e artigos publicados em anais de congressos e em
revistas especializadas. LUIZ ANTÔNIO DA SILVA é doutor pela Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, onde leciona na área de Filologia e
Língua Portuguesa. Participa do grupo de pesquisadores do Projeto NURC/SP e tem
desenvolvido pesquisas na área de Análise da Conversação. Também atua no ensino
médio, lecionando no Colégio Bandeirantes em São Paulo. Além de artigos em
revistas especializadas, é autor da obra O nome e seus determinantes, publicada
pela editora Atual. HUDINILSON URBANO é doutor pela Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas da USP, na área de Filologia e Língua Portuguesa. Tem-se
dedicado ao estudo específico da língua falada, com participação ativa dentro do
Projeto NURC/SP (Núcleo USP) e Projeto Nacional de Gramática do Português Falado.
Nos dois projetos realizou e publicou, individualmente ou em co-autoria, pesquisas
sobre estratégias e mecanismos de produção do texto oral. LEONOR LOPES FÁVERO,
doutora pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e livre-docente pela
USP, trabalha como Professora Associada do Departamento de Lingüística da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Sua especialidade
abrange os campos da Lingüística Textual, estudos de língua falada e História das
Idéias Lingüísticas. Principais obras: Coesão e coerência textuais; As concepções
lingüísticas no século XVIII. MARIA LÚCIA DA CUNHA VICTÓRIO DE OLIVEIRA ANDRADE é
professora do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH/USP, onde
leciona Língua Portuguesa, desde 1992. Defendeu Mestrado em Língua Portuguesa, na
PUC/SP, em 1990, sobre o tema Contribuição à gramática do português falado: estudo
dos marcadores conversacionais então, aí, daí. Doutorou-se em Semiótica e
Lingüística pela USP, em 1995, com a tese Digressão: uma estratégia na condução
10
do jogo textual interativo. Tem capítulos e artigos publicados, individualmente e
em co-autoria, sobre a Lingüística Textual e os estudos de língua falada, em
livros, revistas especializadas e anais de congressos nacionais e internacionais.
MARLI QUADROS LEITE é professora do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, onde leciona Língua
Portuguesa. Defendeu Mestrado e Doutorado em Lingüística, na mesma universidade, e
sua especialidade é língua falada. Ocupa o cargo de Secretária Geral do Projeto
NURC/SP ( Núcleo USP). Tem no prelo um livro sobre purismo lingüístico, tema de
sua tese. PAULO DE TARSO GALEMBECK leciona Língua Portuguesa na Faculdade de
Ciências e Letras da UNESP – campus de Araraquara. Defendeu Mestrado na Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo e doutorou-se pela USP, com uma tese sobre Um
estudo dos elementos anafóricos em textos conversacionais – Projeto NURC/SP. Tem
publicado um grande número de artigos sobre problemas conversacionais, em revistas
e coletâneas científicas ligadas a diversas áreas da Lingüística, mais comumente à
da Análise da Conversação.
11
NORMAS PARA TRANSCRIÇÃO OCORRÊNCIAS
Incompreensão de palavras ou segmentos. Hipótese do que se ouviu.
SINAIS
()
EXEMPLIFICAÇÃO
do nível de renda( ) nível de renda nominal (estou) meio preocupado (com o
gravador)
(hipótese)
/ maiúscula
Silabação. Interrogação.
– ? ...
Qualquer pausa.
((minúscula))
12
OCORRÊNCIAS
SINAIS
EXEMPLIFICAÇÃO
--
--
...a demanda de moeda - vamos dar essa notação - demanda de moeda por motivo
ligando as linhas
(...)
“”
OBSERVAÇÕES:
1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. Iniciais maiúsculas: só para nomes próprios ou para siglas
(USP etc.). Fáticos: ah, éh, ahn, ehn, uhn, tá (não por está: tá? você está
brava?). Nomes de obras ou nomes comuns estrangeiros são grifados. Números: por
extenso. Não se indica o ponto de exclamação (frase exclamativa). Não se anota o
cadenciamento da frase. Podem-se combinar sinais. Por exemplo: oh:::...
(alongamento e pausa). Não se utilizam sinais de pausa, típicos da língua escrita,
como ponto-e-vírgula, ponto final, dois pontos, vírgula. As reticências marcam
qualquer tipo de pausa.
13
ATIVIDADES DE COMPREENSÃO NA INTERAÇÃO VERBAL
(1)
(2)
16
• Negociação e produção conjunta são atividades essenciais para a produção de
sentidos em todos encontros sócio-comunicativos em que dois ou mais indivíduos
estiverem engajados e tiverem como um dos objetivos a compreensão mútua.
Embora não pretenda comentar cada uma das premissas enunciadas, vale a pena
retomar brevemente a primeira que diz respeito à noção de língua e se situa em
contexto teórico movediço. A premissa desafia a idéia cartesiana de que a mente e
a sociedade seriam categoricamente distintas (Jacoby & Ochs, 1995:173),
enfatizando a relação entre mente e sociedade, na medida em que as toma como
mutuamente constitutivas. Certamente, há muitos modos de se ver esta relação: para
o socio-construtivismo vigotskiano (Vigostsky, 1984), por exemplo, a mente seria
socialmente constituída; para o cognitivismo (Sweetser & Fauconnier, 1996), de
posição teoricamente diversa, mas de conseqüências similares, persistem estreitas
relações entre cognição humana e contextualização e para o sócio-interacionismo
etnometodológico dos anos 60, a racionalidade como construção de ordem superior
seria um “affair” essencialmente interacional, mediado pela língua em ações
conjuntas praticadas em situações sociais. Como se nota, está se tornando cada vez
mais comum correlacionar cultura e cognição (v. Cole, 1985), assim como pragmática
e cognição (v. Silveira & Feltes, 1997), sendo que tanto cultura como pragmática
envolvem ações interativas sócio-históricas. No seu conjunto, as premissas acima
constituem a base mínima que permite construir os princípios que dariam forma ao
que se poderia chamar de modelo sócio-interacional da compreensão. Para que este
modelo seja desenhado é ainda conveniente considerar que entre suas
características estão: dinamicidade e temporalidade, o que impede que seja montado
como um esqueleto formal. Em todos os casos lidamos com seres humanos concretos em
interação altamente complexa, diferenciada e instável. Identidade e determinação
acontecem como estados finais de um trabalho em que a língua é apenas um dos
fatores essenciais. Em suma, segundo argumenta Wilkes-Gibbs (1995:240),
“para que o discurso opere apropriadamente, os participantes devem coordenar entre
si mais do que a ‘mecânica’ de sua interação. O im-
17
portante para os ouvintes não é imaginar o que uma palavra ou enunciado pode
significar abstratamente, mas o que o falante pretende que se entenda com eles ao
tê-los dito naquela situação e naquele momento do discurso. Para administrar isso,
os participantes precisam mais do que cooperar no sentido de Grice. Eles devem
também coordenar suas ações e o que eles devem entender com essas ações.”
Esta premissa sugere que não podemos confiar apenas nas características
estruturais da interação nem nas propriedades comunicativas da língua, nem nos
contextos situacionais imediatos de produção da interação, mas devemos estar
atentos para o que os falantes fazem com tudo isso, se queremos perceber como eles
se entendem. O importante não é a identificação das regras da estrutura
conversacional, mas a habilidade desenvolvida pelos falantes no uso das
estratégias conversacionais com o objetivo de se entenderem e atingirem metas
comuns em situações sociais de fala. É evidente que em todo esse procedimento
metodológico de recortes e interpretações a compreensão é dada como garantida para
os participantes da interação. Ao analista no entanto parece ser mais pro18
funda a questão e não lhe cabe apenas identificar e admitir que há compreensão.
Ele deve dar conta da seguinte questão: como é que os participantes de uma
interação resolvem suas estratégias e processos de compreensão de forma tão
competente? O presente ensaio é uma tentativa ainda preliminar de responder a esta
questão com algumas análises.
20
O exemplo (1) traz um caso claro de como se constrói coletivamente uma
discordância e como se opera com ela sem resolvê-la. Já que não se negociam
crenças, negocia-se o tópico, ou seja, aborta-se e prossegue-se para outro ponto
como forma de preservar a relação. As linhas 624-625, com uma repetição mútua
lacônica, é indício claro de esgotamento de interesse. A documentadora, que
percebe o fato, soluciona a continuidade da relação com uma proposta alternativa
logo aceita, inclusive em sobreposição de vozes. O aspecto essencial desse caso
reside na consciência de que mais vale sacrificar um tema do que as relações
pessoais, caso se queira continuar interagindo. E esta consciência é sinalizada na
construção progressiva do desinteresse. Além disso, é oportuno não confundir
colaboração com consenso ou concordância, pois a colaboração é apenas uma forma
cooperativa de produzir ações cordenadas e não um procedimento de atingir
consensos.
22
muito por causa da televisão... agora se você pergunta o que eu acho quando eu
entro no cinema eu entro... Doc. não antes de entrar no cinema a senhora... o que
que 555 acontece? o que que a senhora faz? Inf bom adquiro o bilhete para entrar
Doc. uhn Inf 560 entramos... x: a eu acho que éh o:: ... os cinemas... são:: você
vê as poltronas bem acomodadas senta-se assiste-se um filme BEM acomodado os
cinemas que nós ternos em São Paulo não tenho mais ido quase a cinema mas eu acho
que eram::... uns cinemas assim bem::... bem construidos... o:: ... o Marabá o::
éh sentava-se a gente se sentia bem à vontade porque era um... um ambiente:: muito
assim:: 565 requintado hoje já não é mais /…/ DID – Inq. 234, p. 116-7
Note-se que a longa explicação pouco elucidativa da Doc (linhas 536-41) de nada
serviu, pois recebeu uma longa resposta da Inf (linhas 542-53) que divagou sobre
tudo o que se pode imaginar, inclusive com dúvidas sobre sua resposta (linha 552-
3), sem um foco definido e longe do pretendido pela Doc, quando diz (linha 554):
“não”, que contrasta de maneira significativa com a marca de satisfação “uhn”
(linha 557) sinalizando: “agora sim!”. O mais curioso, porém, ouvindo-se o resto
da explanação nos momentos seguintes, é perceber que persistiu a falta de sintonia
cognitiva entre Doc e Inf, dando-se o inverso do caso (1), ou seja, a Doc desiste
de insistir, já que percebe tratar-se de empresa sem futuro e deixa sua
interlocutora falar qualquer coisa. O exemplo (2) mostra que a compreensão é um
processo de sinalização múltipla: referentes comuns, atenção centrada e interesse
construído conjuntamente. Sem esses elementos não só faltará compreensão, como não
haverá engajamento suficiente para o desenvolvimento de atividades cognitivamente
sintonizadas e interativamente coordenadas. Casos como este são possíveis em
interações com papéis assimétricos como as entrevistas, em que o entrevistador
propõe, mas não comanda.
23
4. Demonstração de (des)interesse e (não)partilhamento Dois interlocutores podem
não ter previamente os mesmos interesses nem conhecimentos partilhados, sendo que,
neste caso, devem construí-los dando sinais explícitos de que os construíram, caso
estejam seriamente engajados. Em (2), isto não ocorreu, mas em (3) temos um caso
de nítida mostra de atenção com antecipação/continuidade que revelam partilhamento
construído previamente e sinalizado (linha 384) e atenção (linha 392) bem como
interesse (linhas 402…) que dão continuidade ao tópico. Exemplo (3)
/…/ 372 L1 L2 375 eu não sei eu ouvi parece que o:: eh:: o curso Objetivo né? está
lançando um um ... [curso de:: [existe uma Faculdade Interamericana aí que lançou
dois ou três anos seriam ... cursos vagos ... entende né? ... agora o:: [é eu
quando [ adentrei numa faculdade eu:: para mim foi uma decepção eu esperava um
negócio completamente diferente você o que é que você sentiu? não inclusive eu
estava respondendo para você:: colega o o o:: fato de eu ter escolhido a profissão
do do ... economista ... economista né? ... então realmente :: quando:: ... eu fiz
o ginásio estava fazendo o ginásio ... em algumas ocasiões pensei em ser ... éh
arquiteto depois eu uma ocasião ... ((risos)) fiz a inscrição para o para o no
Objetivo ... depois eu resolvi ser médico ... mas nesse meio tempo eu já estava
trabalhando e procurei realmente uma uma profissão ... que se:: enquadrasse
coadunasse mais (com) aquele tipo de serviço ... enfim também foi em função do
tempo ... porque::não havia
380
L1 L2 ... L1 L2 L1
385
390 L2 L1
24
395
uma possibilidade de perder mais alguns alguns anos enfrentando um vestibular para
uma escola de Medicina ou uma escola de Engenharia ... mas atendeu plenamente e::
hoje estou satisfeito com o curso ... ele realmente pôde me dar assim ... uma
visão ... do global ... e:: está
400 L2
atendendo não sei aconteceu isso no no seu caso também ou não? não o:: eu eu senti
um choque quando eu adentrei a faculdade entende? /…/ D2 – Inq. 62, p. 70
Quando L1 (linha 383) hesita e solicita socorro, L2 (linha 384) não titubeia em
antecipar a palavra chave “economista”, um conhecimento construído em partes
anteriores do diálogo às quais L1 acabara de se referir (linha 382) e que aceita
para prosseguir; no final dessa sua contribuição, L1 (linha 391) hesita novamente
e é outra vez auxiliado por L2 que sugere continuidade, assumida por L1
parafraseadamente na mesma forma verbal. Por fim, o interesse prossegue quando L1
(linha 400-1) entrega o turno na certeza de que seu interlocutor retomaria
topicamente o tema. Em termos estratégicos, o que se observa em (3) é uma tripla
sintonia: cognição, interesse e atenção. Três requisitos para que a compreensão se
dê sem a necessidade de concordância e para que o tópico continue fluindo. Se
observarmos o caso (4), veremos uma situação típica de desinteresse pelo tópico em
andamento. Isto pode ser observado pela rarefação nas contribuições de um dos
parceiros do diálogo e pelo seu baixo engajamento no assunto. Os dois
interlocotures são um engenheiro de 26 anos (L1) e uma psicóloga de 25 anos (L2),
convidados a discorrer sobre o comércio e a cidade de São Paulo. Na realidade,
discorriam sobre seus interesses e eventualmente sobre o tema proposto pela
documentadora do diálogo. Num dado momento falavam sobre compra, valor de troca,
mercadorias e gastos. O tema fluia muito pouco e cheio de digressões sem
engajamento efetivo demonstrado pela lentidão no fluxo da fala e num tom monótono.
Veja-se, no trecho (4) um exemplo claro dessa situação.
25
Exemplo (4)
663 665 L1 outro dia aí então o (Fábio) contando umas histórias de um::... de um
de um boy barato aí né?... carro envenenadíssinto então temos que quando o cara
vai acelerar assim:: ... ele aGArra a direção assim:: pisa no acelerador:: ... e
faz um movimento assim como estivesse caval/ cavalgando L2 670 L1 L2 L1 L2 675 L1
L2 ahn ((ri)) e agarra a máquina [assim ((ri)) [queria estar num cavalo por quê? …
analogia... ele está cavalgando né? é o::… o:… ((ri)) o rei do oeste ahn não tem
oeste aqui... ((ri)) não tudo bem:: eu sei entendi D2- Inq. 343, p. 33-34
Observe-se que L1 (linhas 663-668) tentava apresentar uma situação para depois
analisá-la em relação com o tópico que introduzia. Ele estava propondo uma
analogia do boy barato com o mundo da selva. Nesse momento, L2 (linha 671) dá uma
demonstração de completa distração e dissintonia tópica ao dizer “queria estar num
cavalo”, o que leva L1 (linhas 672-3) a indagar surpreso “por quê?”, pois só
estava fazendo uma analogia, não sendo conveniente aquela observação. A falta de
engajamento de L2 torna-se mais evidente quando ela associa o boy barato ao “rei
do oeste”, o que não agrada a L1 que retruca “não tem oeste aqui”. Nesse ponto L2
busca dar uma demonstração de que estava entendendo, mas não estava interessada no
assunto. O exemplo (4) mostra como se constroi uma relação de não-colaboração
tópica, quando um dos interolcutores discorre num faixa (faixa séria) e o outro
discorre em outra faixa (faixa não-séria): um toma literalmente o que o outro
propõe como analogia. Trocas deste tipo são utilizadas intencionalmente para
produzir humor ou então construir piadas ou xistes, pois mostram interlocutores
jogando em campos diversos, sem sintonia cognitiva.
26
5. Construindo conhecimento interativamente Situação típica de construção de
conhecimento é a da sala de aula, embora não lhe seja exclusiva, pois ela se dá
também no dia a dia. Contudo, é no contexto de sala de aula que ocorre o exemplo
(5) e ilustra como a compreensão se constroi interativamente numa rede de relações
com espaços cognitivos sobrepostos e interconectados. Em (5) temos o caso de uma
aula de Antropologia dada por um professor de 51 anos que dissertava sobre a
relação “linguagem e pensamento” e se ocupava em mostrar que a percepção é uma
elaboração cognitivamente ativa e não simples sensação passiva do organismo ou dos
sentidos. Na realidade, ele defendia a tese de que os estímulos externos não têm
todos o mesmo peso, nem recebem dos indivíduos a mesma atenção. Sempre procedemos
a uma seleção comandada por condições prévias (uma espécie de conhecimentos-
âncoras) que permitem identificações e manifestação de interesse. Após introduzir
este aspecto teórico, o professor percebe que não está sendo claro o suficiente e
recorre a uma das estratégias mais comuns e indicadas nessas situações: a
exemplificação. Vejamos o caso em (5): Exemplo (5)
/…/ 252 por exemplo... bom... deixe eu dar um exemplo... bom... um exemplo
clássico ... um índio... que foi trazido ... de uma reserva ... do norte do Canadá
... 255 para Otawa se não me engano uma das cidades canadenses ... levaram este
índio a ver tudo pela primeira vez que ele tinha contato com uma cidade ... do
mundo do Ocidente... quer dizer ele passou por aquilo olhando de repente ele parou
embasbacado 260 ficou olhando o quê? um indivíduo subindo num poste elétrico para
consertar… fios… coisa equivalente... esse indivíduo tinha um cinturão de
couro ... não sei se vocês já viram isso nas ruas de São Paulo? ... não é?... tem
um cinturão de couro que 265 tem nos calcanhares uma espécie de esporão então ...
ele finca o esporão no... no - - eu acho que isso
27
270
275
280
285
290
não há mais em São Paulo porque não há mais postes de madeira os postes todos são
de cimento não é?... de concreto... e... de vez em quando... vocês percebem que eu
sou um indivíduo de outra geração já... sou um quadrado mesmo não é?... mas enfim
isso também é um::... é um exemplo bastante antigo... é de Franz Boas não é?...
digamos mil novecentos e vinte... - - ((risos)) então havia o poste de madeira com
esse esporão foi isso que o índio percebeu ... vocês compreendem?... porque... na
cidade de Otawa ... tudo o que existia... era de tal modo novo... que não podia
ser relacionado com a experiência anterior desse índio certo?... quer dizer
imagine que ele visse pela primeira vez a locomotiva. aquela coisa imensa que se
move ... com que ele tinha relacionado com nada de preciso ... a máquina... é um
universo estranho a ele... mas ele viu um indivíduo subindo num poste de uma
maneira muito fácil ora em toda esta região os índios sobem em certas árvores...
por exemplo... certas formas de( )... que chama-se... em português chama-se boldo
parece é uma planta que dá uma seiva açucarada... da qual se faz uma rapadura que
aliás é deliciosa e um ... uma espécie de melado então eles sobem até certa altura
da árvore e talham… subir numa árvore por meios relativamente simples como seja
esporão... furo... e uma correia de couro passada na cintura que o indivíduo se
apóia na árvore... foi qualquer coisa que a experiência anterior do índio permitiu
que ele compreendesse ele tinha um esquema anterior no qual os estímulos novos
podiam ser enquadrados certo?... isto é... para que haja. percepção... é
necessário antes que já haja uma organização do
295
300
campo perceptivo claro? quer dizer é preciso que haja... um certo modo de
estruturar este mundo porque senão as coisas não fazem sentido ... /…/
28
A estratégia da exemplificação foi o recurso interacionalmente eficaz escolhido
pelo professor para ilustrar suas teorias da percepção cognitiva como diversa da
percepção meramente sensorial. E ele o faz situando o problema (linhas 253-56) e
identificando o momento e o fato que despertou o interesse daquele índio perdido
na “selva urbana” (linhas 259-61). Aproveita a oportunidade para estabelecer um
paralelo/ ponte com o momento atual numa auto-ironia bem estudada (linhas 26971)
que leva os alunos ao riso (linha 274), indicando empatia com a sugestão.
Essencial nesta seqüência tópica não é o caso particular do índio, mas a conclusão
que aparece no final (linhas 294-300), verdadeiro objetivo da digressão. O
segmento (5) situa-se parenteticamente no contexto da argumentação e explanação
geral da aula, promovendo nos alunos a compreensão necessária para prosseguir. É
uma ação-muleta praticada como trampolim para a construção das condições de
possibilidade de compreensão com efeitos auto-aplicativos. Depois disso, os alunos
já estavam em condições de saber do que se tratava, ou seja, tinham saído da
condição de ignorância para o conhecimento. O que acabei de mostrar é precisamente
a estratégia mais comum de que nos servimos em todas as situações em que
pretendemos construir no outro condições ideais de recepção de conteúdos futuros.
A exemplificação situada é uma das estratégias mais eficazes para produção de
sentidos pretendidos e estabelecer a compreensão. Ela é comum no dia a dia e nunca
é sentida como digressão do tópico.
A pergunta da Doc (linhas 22-23) foi aparentemente clara, mas poderia ser uma
cilada, já que antes a a Inf havia dito que se preocupava muito com sua linha.
Assim, na dúvida quanto à intenção de sua interlocutora, a Inf precisa de
garantias para aprosseguir. Daí o par inseri30
do (linhas 24-28) entre a pergunta inicial e a resposta final (linhas 29-32).
Quando a Inf diz “eu não estou entendendo BEM aonde você quer chegar…” ela está
ameaçando a face de sua interlocutora, com elevação do tom em “BEM”, o que sugere
“segundas intenções”. Isto obriga a Doc a refazer sua pergunta mudando a expressão
“em cada uma destas refeições” que poderia sugerir “muitas refeições”, para uma
formulação mais adequada e menos ameaçadora “desde o café da manhã até a hora do
jantar”, o que deixa a Inf livre para definir comidas em geral, sem um número de
refeições específicas, tal como se nota na resposta (linhas 29-32). A questão aqui
é muito sutil e revela como uma pergunta, por mais inocente e clara, sempre pode
ser recebida num contexto congnitivo que gera significações tidas como
inadequadas, mesmo que não pretendidas pela indagação. Veja-se o caso (7) que é
muito diferente do anterior. Aqui a Inf (linhas 141-142) pede um esclarecimento
com o objetivo de certificar-se de que compreendeu corretamente a indagação: o
problema é de conteúdo e se trata de construir uma expectativa partilhada. Vejamos
o exemplo: Exemplo (7)
/…/ 138 140 Doc. você disse que gosta de car::ne... que tipo de carne que você
gosta e quais os seus pratos prediletos que são feitos com carne? Inf bom aí o
tipo que você pergunta é a maneira como eles são feitos? Doc. também Inf. bom eu
prefiro carnes assadas... carne de porco... um pernil um lindo dum pernil cheio de
bataTInhas assim em volta é uma delícia né? ((risos)) (então)... lombo de porco...
ahn frango... urn franguinho dum frango assado né? que vocês devem estar
acostumadas também a... Doc. uhn::: ... Inf ((riu)) a saborear por aí né? ...
frangos:: ... carne de vaca bife... bife à milanesa:: bifes ... éh grelhados:: não
é?... são os:: tipos que eu prefiro de carne... DID – Inq. 235, p. 123
145
150
31
A questão era, inicialmente, o esclarecimento da expressão “tipo de carne”, que
poderia ser duas coisas: (a) espécies de carne (bovina, suina, aves etc) ou (b)
modo de cozinhar (tipos de pratos). A Inf dá uma sugestão de interpretação (linhas
141-142) que é aceita pela Doc com a resposta “também”, indicando que esta era uma
possibilidade correta. A partir daí, a Inf descreveu seus pratos prediletos com
uma sugestão de engajamento direto da(s) Doc ao dizer “que vocês devem estar
acostumadas também a …”, recebendo da Doc um sinal de concordância na entoação
típica “hun:::” com alongamento de vogal que levou a Inf à satisfação com
manifestação de riso e prosseguimento com mais pratos saborosos. A diferença entre
a indagação da Inf em (6) e em (7) está precisamente na natureza da certificação
buscada: em (6) trata-se de certificarse de uma intenção e em (7) de um conteúdo.
Isso se revela até mesmo na formulação da pergunta, que num caso leva à repetição
da indagação e no outro apenas à certificação de uma expressão. Em ambos os casos,
as condições do prosseguimento foram construídas mutuamente e não previamente
dadas. Semelhante a (6 e 7), o caso (8) traz elementos novos que ilustram como as
pessoas conseguem construir interesses comuns e condições ideais para suas
contribuições. Em geral, quando uma pergunta genérica é feita e admite muitas
alternativas, somos levados a criar um contexto para o qual construímos nossa
escolha. Este é o caso típico da pergunta da Doc (linhas 330-1): “ se você fosse
preparar (…) pruma visita (…) que tipo (…)?” que é aberta e contém três variáveis.
A primeira reação da Inf foi de estupefação “IH:: meu Deus” indicando dúvida, mas
logo sugerindo uma hipótese de contexto: “vocês por exemplo?” concretizando a
escolha no ambiente imediato. A sugestão gerou risos e tumulto, indicando que não
era prevista, mas aceitável. Este caso é ilustrativo para a construção de regras
de jogo interativas ad hoc. Vejamos o que acontece. Exemplo (8)
/…/ 330 Doc. se você fosse preparar um almoço... pruma visita tal... que tipo de
almoço você faria? Inf IH:: meu Deus (o) que será que eu ia fazer quem seria a
visita? vocês por exemplo? ((riu))
32
335
340
345
350
355
360
Doc. ali é:: pode ser a gente ((vozes superpostas e risos)) Inf. se vocês
(fossem::)... não um jantar já teria um pouquinho de mais sofisticado né? então
vamos fazer um almoço o almoço é mais comunzi::nho assim [(então) Doc. [((risos e
vozes superpostas)) merece Inf não não é questão que mereça nós vamos... vamos
então assim:: ... éh::... conservar o:: protocolo né? um jantar exige:: ... um::
preparo mais sofistica::do à no:::ite né? vocês sabem as companhi::as são
diFEREN::tes agora num jantar vocês (viriam) lá em casa seriam sozi::nhas eu
sozinha assim né? ((risos)) não teriam ((riu)) acompaNHAN::tes nada disso ...
então ((falou rindo)) então o negócio seria diferente ... eu primeiro ia saber o
que é que vocês preferem comer né?... porque não teria cabimento eu che/ convidá-
las pra jan/ pra almoçar em casa e preparar um:: um prato do meu gosto não é?
então teria que saber o que é que vocês preferem... e o que é que vocês preferem?
Doc. não vamos supor que a gente omita a opinião gente:: eduCAda (como eu sou)
((risos)) assim “não:: qualquer coisa ser::ve e tal e não sei que” e o que que
você prepararia se a gente... deixasse... tudo a seu encargo Inf . bom... suponho
que a gente... que eu agora fosse:: fossem dez horas da manhã por exemplo ...
então daqui a pouco estaria na hora de ir embora né? ... então fala “vamo:: vamos
almoçar comigo?” então vocês “Vamos” … eu teria que preparar um negócio bem:: bem
mais rápido né?... então eu iria pra casa... ia dar uma:: vistoria na geladeira
pra ver o que que tinha lá:: e supondo que tivesse... carne né? faria... bife... /
…/ DID – Inq. 235, p. 127-128
Aqui ocorre uma seqüência de negociações bem humoradas que pretendem conduzir a um
objetivo comum com condições contextuais
33
definidas. A Inf assume o jogo e dita as regras, embora a Doc faça algum esforço
para manter uma distância relativa (linhas 353-56) sem conseguir o intento e
entregando a decisão à Inf ao dizer “tudo a seu encargo”. Note-se que a questão
inicial era: “se você fosse preparar um almoço (…)?”. A resposta não foi relativa
à questão mas às condições em que a questão poderia ser respondida com o
engajamento da(s) Doc para a decisão final que vem na forma de uma hipótese
“suponho que a gente (…)” situada num ponto do dia “almoçar comigo” decidido horas
antes “dez horas da manhã”. Daí por diante, tudo fica mais fácil e inicia a
resposta. O exemplo (8) evidencia alguns aspectos muito importantes a respeito do
engajamento dos interlocutores em ações comuns para construção de condições
favoráveis à compreensão na interação. Se compararmos este caso com o exemplo (1),
percebemos com clareza o que significa co-produção de condições interativas. Neste
caso, o prefixo co- na expressão co-produção recobre uma série de processos, tais
como colaboração, coordenação e cooperação que resultam na construção conjunta
(co-construção) de compreensão, sem a necessidade de haver consenso ou
concordância (v. Jacoby & Ochs 1995). Certamente, as repostas da Inf em (8) não
foram as pretendidas pela Doc, mas foram as obtidas num processo colaborativo.
Nesse momento do diálogo a atenção está voltada não mais para o tópico em
andamento e sim para a solução conjunta de dois problemas em que todos os
participantes se angajam vivamente: (a) ou (b) buscar as crianças no colégio?
prosseguir com a gravação por mais tempo?
36
No caso de (a) ter a preferência, encerrar-se-ia o diálogo, mas no caso de (b)
deveria haver uma solução alternativa para (a). É o que a Doc tenta sugerir ao
propor (linha 1604): “uhn::… dez minutos”. Observe-se que a prosódia ocorre aqui
com um marcador de dúvida (um som nasal alongado), como quem diz: “deixa eu pensar
um pouco”, para então propor, num ritmo rápido e uma entoação impositiva, sem
maiores comentários: “dez minutos”. A tomada de turno de L1 se dá com a repetição
da proposta indagativamente, como quem quem diz: “tudo isso?”, acrescentando as
razões da dúvida. Daí por diante, desenvolve-se uma sucessão rápida de turnos
curtos, todos com marcas prosódicas características e repetidas mutuamente,
sugerindo engajamento com o mesmo objetivo.Vejamos a continuidade do diálogo em
(9b): Exemplo (9b)
L2 1610 Doc. L1 1615 L2 pois é onde é que elas estão?... Doc. ahn ahn L1 no Fernão
Dias em [Pinheiros Doc. [eu posso buscá-las para a senhora L1 L1 L2 L1 1625 L1 é?
depois voltaríamos aqui? se ficássemos mais dez minutos já levaria direto [(tudo
direto) [ ah está bom... então está bom... Doc. a senhora acha que... vai criar
problema? tem telefone aqui não? D2 – Inq. 360 p. 175-9 Doc. aqui não Doc. é Doc.
é... não teria possibilidade... dela::... falar um pouco mais… mais uns dois
minutos ou três depois eu complementaria o resto? ... [ou precisa papo mesmo?
[porque)( ) entre vocês duas né?
37
É interessante observar que todas as contribuições de L1, a partir do momento em
que situou seu problema, foram lacônicas ou indagativas:
L1 L1 L1 L1 L1 L1 pois é no Fernão Dias em Pinheiros é? depois voltaríamos aqui?
ah está bom … então está bom tem telefone aqui não?
Com isto estava construindo uma solução negativa para o problema, ou seja,
indicava propensão a não continuar o diálogo. Isto se torna evidente quando L1
coloca mais uma condição: encontrar um telefone para avisar as crianças. Isto
tornava as coisas mais difícieis e apontava para o fim iminente da gravação.
Observe-se como agora L1 aumenta seus turnos com uma dificuldade adicional de cada
vez: Exemplo (9c)
L1 não tem {telefone} é longe lá embaixo tem algum público... não tem? nesse
prédio? 1630 Doc. tem no bê ((vozes superpostas; trecho inintelível)) no cê... L2
L1 L2 Doc. 1635 L2 L2 L1 1640 L2 L1 L2 Doc. é... no cê tem um telefone público...
que horas as crianças saem da escola? eh:: umas saem umas cinco e meia esperariam
as das seis ahn ahn e as das seis iriam se encontrar com as das seis e vinte os
das cinco e meia eu ainda((risos)) ahn ahn no cê lá no [cê tem porque foi de lá [(
) que [eu liguei [( ) é no cê
38
1645 L1
((risos)) então quer dizer que se fossem só os meus não teria problema é que eu
levo ... ah... ah filhas de::: uma vizinha sabe?... daria para esperar [um
minutinho?
L2 1650 L1
[quantos são? eu vou telefonar são dois eu vou telefonar e já venho é público lá
embaixo?
Doc. é não não... a senhora poderia usar... o telefone não é público L1 1655 L1 L2
L1 L2 não? ( )o número do prédio?... eu vou com a senhora... é? então um minutinho
só... D2 – Inq. 360 p. 175-9 Doc. não é:: da secretaria lá da da portaria da
40
L2 L1 210 Doc. L1
220
L2 L1 Doc. L1 L2 L1 L2 L1
42
encontrem na presença imediata um do outro e ela dura até que a penúltima pessoa
saia.”
45
PROCEDIMENTOS E RECURSOS DISCURSIVOS DA CONVERSAÇÃO
Diana Luz Pessoa de Barros
Para Gülich e Kotschi (1987) a função principal dos atos de reformulação, como a
correção ou a paráfrase, é a de garantir a intercompreensão na conversação ou em
qualquer outro tipo de texto. Tais atos, incluídos pelos autores entre os atos de
composição textual, resultam do trabalho de cooperação dos participantes da
conversação, de seu esforço comum de construção do texto falado. Dessa forma, a
competência do falante para produzir textos, principalmente orais, e a do ouvinte
para compreendê-los dependem, em larga medida, do conhecimento dos processos de
reformulação. Essas observações aplicam-se, sem dúvida, a outros processos
discursivos. Nos estudos sobre a reformulação por correção determinamos (Barros e
Melo, 1990) para tais procedimentos as funções gerais de adequação e
intercomprensão e, nesse quadro, especificamos as finalidades de adequação e
compreensão cognitivo-informativa e de bom entendimento das relações
intersubjetivas. No primeiro caso, a reformulação contribui para a precisão
referencial ou anáfórica dos conteúdos, no segundo, para a explicitação dos
desejos, anseios, dúvidas e emoções do falante, em relação a seu interlocutor. A
oposição é clássica entre conteúdos e funções informativas ou referenciais e
conteúdos e funções emotivas e apelativas. Na direção dos estudos de O. Ducrot
preferimos não separar fatos semânticos e pragmáticos e considerar que o uso dos
procedimentos de reformulação (e de outros também, como a inserção, por exemplo) é
sempre argumentativo ou persuasivo-argumentativo. No exemplo que
48
segue, em que se substitui “não fala muito” por “fala muito pouco”, observa-se uma
“correção” também de força e de direção argumentativa:
L2- (...) porque ela não fala muito... ela fala muito pouco (...) (Castilho e
Preti, 1987; INQ 360, p. 146, l. 405).
52
O informante nega e corrige o conteúdo pressuposto da pergunta do entrevistador:
“vocês tiveram apoio”.
b) Doc- então e qual era a dieta de seu regime? Inf- não era nada extraordinário
viu era:: até muito comum... (Preti e Urbano, 1988; INQ 235, p. 122, l. 76-77).
L1- interrompe sua correção da fala de L2 (“só que isso não tem importan/”),
emprega uma fórmula de concordância (“certo”), que atenua a heterocorreção, e só
então retoma a correção. A opção por correções totais ou parciais separa os
diálogos das entrevistas. Os diálogos preferem as correções totais, em que
aparecem explícita ou implicitamente as duas fases da correção, a de negação do
elemento a ser corrigido e a de afirmação do elemento reformulador. Com as
correções totais, reforça-se o ato de correção e o “erro” a ser corrigido e, nas
heterocorreções, a discordância entre os interlocutores, como no caso abaixo:
L2- (...) assim comunicação em cida/ em cidade grande o metrô é uma forma... de
comunicação né? de levar e trazer. L1- transporte né? L2- [pessoas e... L1- não é
bem comunicação é transporte (Castilho e Preti, 1988; INQ.343, p. 27, l. 422-427).
Em outra entrevista (Preti e Urbano, 1987; INQ 235), em que a informante é uma
professora primária, solteira, de trinta e oito anos, com papel social igual ou
“inferior” ao do jovem estudante universitário que a entrevista, quando o
entrevistador repete as mesmas perguntas, em lugar de críticas ou elogios ao fazer
do entrevistador, a entrevistada responde apenas com uma heterocorreção de
precisão anafórica:
a) Doc- você disse que você faz regime não? Inf- não eu JÁ fiz... (Preti e Urbano,
1988; INQ 235, p. 121-122, l. 74-75). b) Doc- desde o café da manhã até a hora do
jantar... o que você costuma comer em cada um deles? Inf- ah como eu já disse né?
(Preti e Urbano, 1988; INQ 235, p. 120, l. 27-29).
56
Doc- não vamos supor que a gente omita a opinião gente:: eduCAda (como eu sou)
((risos)) assim “não:: qualquer coisa serve:: vê e tal e não sei que”... e o que
que você prepararia se a gente... deixasse... tudo a seu encargo? (Preti e Urbano,
1988; INQ 235, p. 128, L. 351-356).
57
L1- foi ... mas esse já é antigo e foi uma co-produção não é? [ L2já antigo já faz
muito tempo é (Castilho e Preti, 1987; INQ 333, p. 250, L. 662-682)
Percebe-se com clareza a tentativa de reparação de L2, que procura ter vez após a
longa fala de L1. Com o mesmo objetivo de reparação das infrações de L1 e de
garantia de espaço a L2, o documentador (que sempre dirige suas perguntas às duas
informantes, usando os verbos na terceira pessoa do plural e o pronome “vocês”, e
recebe respostas apenas ou em primeiro lugar da locutora jornalista, como se lhe
tivessem atribuído o turno diretamente) dirige, em sua última intervenção, sua
questão única e diretamente à locutora escritora (Barros, 1994):
Doc- (...)... e só para terminar vocês acham que no futuro a TV vai realmente
sobrepujar o cinema? ... aqui no nosso caso principalmente L1- olha ... eu não
digo sobrepujar mas (...) (.....) Doc. e a dona I. também ... L2- ah sim
naturalmente nem há nem há dúvida ... nem há dúvida (Castilho e Preti, 1987; INQ
333, p. 263-264, l. 1188-1191, l. 1215-1217)
É preciso mencionar ainda que é também a jornalista quem realiza mais casos de
autocorreção (mais que o dobro das correções efetuadas pela escritora): como fala
mais, “erra” mais, mas também aproveita melhor a atividade verbal de correção,
sobretudo as correções pragmáticas, para seus objetivos comunicativos de precisar
opiniões, confirmar crenças, esclarecer idéias. Além dos papéis conversacionais e
sociais, foram-se construindo no diálogo papéis pessoais, estilos conversacionais
próprios: a jornalista usa as correções (inclusive as heterocorreções) com mais
freqüência, aceita as correções da outra e faz bom uso sobretudo das correções
pragmáticas; a escritora repara implicitamente as infrações conversacionais da
jornalista que fala muito e domina a conversação, não aceita as correções que lhe
são feitas e insiste no “erro” ou nas correções que efetua, e assim por diante.
Minha intenção foi mostrar como os processos discursivos constroem o dispositivo
persuasivo-argumentativo da conversação e, a partir daí, os papéis
conversacionais, sociais e pessoais dos participantes do diálogo e os diferentes
tipos de conversação.
59
O dispositivo persuasivo-argumentativo estabelecido e os diferentes papéis dos
participantes da conversação apontam para uma análise narratológica da enunciação,
nos moldes das teorias pragmáticas ou semióticas. Em outros termos, na “cena”
enunciativa do texto conversacional, cabem aos participantes da conversação os
papéis narrativos de destinador e de destinatário, responsáveis respectivamente
pelos fazeres persuasivo e interpretativo do “espetáculo” em palco. Esses sujeitos
narrativos são investidos dos papéis conversacionais, sociais e pessoais que
constroem por meio dos procedimentos discursivos postos em uso. O item que segue
será dedicado ao estabelecimento da organização modo-passional da conversação,
nesse mesmo “espetáculo” enunciativo. A análise narratológica da enunciação, ou
seja, a análise das relações que vigem entre os participantes da cena enunciativa
leva à determinação dos acordos, compromissos, contratos e laços afetivos ou
passionais que se estabelecem entre eles e dos mecanismos discursivos responsáveis
por tais relacionamentos.
61
né? [ L 2 - já ajudam bem (Castilho e Preti, 1987; INQ 360, p. 140, l. 183-186) b)
L1- há dois anos L2- mil novecentos e sessenta e nove (Castilho e Preti, INQ 360,
p. 147, L. 456 e 457)
Mesmo nesses casos, porém, para corrigir, o falante retoma o “erro” do outro,
produzindo com a repetição efeitos de confiança e de cooperação, mostrando que deu
atenção ao que seu interlocutor disse, que se interessou por sua fala, ainda que
dela discorde.
62
Há na correção, portanto, duas etapas, uma claramente cooperativa e outra que
poderá ser, conforme os recursos usados, contratual ou polêmica. Corrigir é criar
envolvimento, é compartilhar o discurso e, também, discordar do parceiro, exercer
controle sobre ele, brigar pela vez e pelo turno. Apenas o exame dos vários
procedimentos discursivos da conversação determinará os diferentes arranjos de
modalidades e os efeitos de sentido afetivos e passionais que essas organizações
modais produzem, tal como exemplificado anteriormente. Alguns pontos mais gerais,
no entanto, podem ser desde já estabelecidos. Sabe-se que tais efeitos passionais
são paixões decorrentes de relações de contrato entre sujeitos, como a confiança
ou a descrença, e não paixões de objeto, como o desejo, o despreendimento ou a
inveja. Ao utilizar uma repetição, uma correção ou uma paráfrase, o locutor estará
reafirmando o contrato que sustenta a conversação. A confirmação do acordo pode
ser feita de diferentes modos, por meio de arranjos modais diversos. A ameaça de
ruptura do contrato pelas correções agressivas e polêmicas é um desses modos. A
conversação não pode, portanto, prescindir dos processos discursivos que, ao
instaurarem a organização afetivo-passional da conversação, reafirmam e confirmam,
de quando em quando, o contrato sem o qual a conversação não poderia ter começado
e não poderá prosseguir. Os acordos necessários ao jogo interacional de qualquer
tipo de texto conversacional constroem-se nesse vaivém afetivo-passional de
confianças e de decepções, de crenças e de desinteresses. Os papéis passionais dos
participantes da cena enunciativa – sujeitos apaixonados, no sentido semiótico
descrito, – vão-se fazendo, entre outros, pelos procedimentos do discurso
mencionados. Completa-se o espetáculo. Foram, em resumo, apontadas duas das
funções dos procedimentos discursivos na interação verbal: a de constituir o
dispositivo persuasivo-argumentativo e os papéis conversacionais, sociais e
pessoais dos participantes da cena enunciativa; a de estabelecer a organização
afetivopassional desses discursos, com que se confirmam os acordos que sustentam a
conversação. Passa-se agora para a segunda e última parte deste trabalho, em que
se espera poder distinguir, tal como proposto, os recursos lingüísti63
co-discursivos dos procedimentos discursivos de construção da conversação e
apontar a recursividade entre recursos e procedimentos nos textos falados.
b) Prolongamento de vogal:
L1- (...) ela é:: tem um temperamento assim (...) (Castilho e Preti, 1987; INQ
360, p. 141, L. 204-205).
c) Interrupção lexical
L2- (...) e as coisas de casa que a gente aten/ tem que atender (...) (Castilho e
Preti, 1987; INQ 360, p. 148, L. 489-490).
d) Repetição
L1- já tinha curso universitário já já tinha saído da faculdade (...) (Castilho e
Preti, 1987; INQ 360, p. 137, L. 67-68).
A partir do exame desses recursos, pode-se dizer que há, na verdade, dois tipos
diferentes: os elementos prosódicos como a pausa e a inter65
rupção lexical que rompem a continuidade temporal do fluxo da fala; e os que, ao
contrário, não rompem o contínuo, mas desaceleram a fala, fazendo-a “durar”
(aspectualização durativa), como no prolongamento de vogal, ou reiterar-se
(aspectualização iterativa), como na repetição. Essas duas classes de recursos de
produção fabricam afeitos de sentido diferentes: os primeiros expõem o
procedimento utilizado a seguir, como a correção, a paráfrase ou a inserção; os
últimos ocultam, de uma certa forma, o uso desses procedimentos discursivos. Os
diálogos entre informantes, como vimos, empregam predominantemente as pausas,
recursos do primeiro tipo, enquanto as entrevistas utilizam de preferência os
prolongamentos de vogais, recursos do segundo tipo. Além de introduzidos por tais
recursos, os procedimentos discursivos são marcados por determinadas expressões
verbais estereotipadas, tais como “não”, “isto é”, “quer dizer”, etc, que assumem
funções diretamente relacionadas à interpretação: são pistas para que o ouvinte
compreenda e interprete bem o procedimento utilizado. Em outras palavras, um
“não”, um “em termos” ou um “isto é” deverão contribuir para o reconhecimento de
uma correção ou de uma paráfrase do texto. Esses marcadores têm, portanto, a
função de facilitar a interpretação dos procedimentos que assinalam. Distinguiram-
se, assim, os dois tipos de recursos de produção, os pontuais e os durativo-
iterativos, dos recursos de compreensão: os primeiros facilitam a produção, os
últimos a interpretação dos procedimentos discursivos utilizados. Os recursos, de
quaisquer tipos, não se confundem, portanto, com os procedimentos ou processos
para cuja produção e interpretação contribuem, tais como a reformulação por
correção, a paráfrase ou a inserção, que, como vimos, têm funções interacionais na
conversação. Nos recursos, o papel de construção da interação é indireto. É
preciso, porém, ressaltar que a caracterização dos recursos e dos procedimentos e
a relação entre eles é funcionalmente variável: uma repetição, por exemplo, pode
ser considerada como um recurso que facilita a produção de uma reformulação por
correção ou como um procedimento com funções persuasivo-argumentativas e afetivo-
passionais; da mesma forma, um procedimento de correção pode assumir papel de
recurso de produção de uma inserção. Os textos abaixo ilustram essas
possibilidades:
66
a) no inquérito 62 (Castilho e Preti, 1987), um dos locutores (L2) repete com
freqüência a fala de seu interlocutor como um procedimento de construção de
relações cooperativas e de afinidade, como um meio de reafirmar o contrato (a
repetição é um procedimento discursivo):
L1- a gente fica até mais alegre ... você não acha? L2- mais alegre ((risos e
vozes))... o dia que (...) (p. 62, l. 30-32) L1- (...) ... então isso::
realmente:: cooperava assim para aquele:: famoso sereno né? ... São Paulo da garoa
São Paulo é terra boa ... L2- São Paulo da garoa (p 62, l. 63-66). L1- (...) dizem
que é o progresso ... dizem né? sei lá [ dizem né? (é o) L2controlado (p. 63, l.
70-73); progresso mal
67
Considerações finais Em síntese, neste trabalho procurei apontar e explicar duas
funções essenciais dos procedimentos discursivos na construção das relações de
interação verbal entre sujeitos, quais sejam, a de construir o dispositivo
persuasivo-argumentativo e os papéis conversacionais, sociais e pessoais dos
participantes do espetáculo enunciativo e a de estabelecer os laços afetivo-
passionais que se criam entre eles, para, em seguida, distinguir os procedimentos
dos recursos discursivos. A distinção fez-se com base em dois critérios, o das
funções que exercem na conversação e o da hierarquia lógica existente entre
procedimentos e recursos. Em outras palavras, enquanto os procedimentos cumprem
papéis na construção da conversação e no estabelecimento da interação entre
sujeitos, tal como acima mencionado, os recursos têm funções diretamente ligadas à
produção e à compreensão dos procedimentos discursivos e, portanto, apenas
indiretamente relacionadas com a construção da interação. Feitas as reflexões, o
caminho que se apresenta para o estudo da conversação é, a meu ver, o de examinar
recursos e procedimentos no âmbito da organização do texto conversacional e das
funções que esses diferentes mecanismos assumem na construção da interação entre
os participantes da cena enunciativa. Só assim os aspectos que poderiam ser
considerados como “miudezas” ou “acessórios” do discurso assumem os papéis e as
funções que lhes cabem na construção dos sentidos da conversação.
Considerações iniciais No último trabalho que publicamos nesta série (Preti, 1997:
1727), a propósito da linguagem das pessoas cultas documentada pelo NURC/SP,
falamos de um processo de uniformização social da língua, em decorrência dos
contextos interacionais da cidade grande, onde o contato diário entre os mais
diversos tipos de falantes fez com que se perdessem ou se confundissem, nas
interações, os índices de escolaridade, como variável para identificar os
interlocutores, na conversação, de sorte que falantes cultos têm sua linguagem
praticamente igualada à dos falantes comuns, de instrução média. Ambos utilizam
uma linguagem marcada, não apenas pela formação escolar, mas, sobretudo, pela
participação em uma grande variedade de situações de comunicação na vida urbana.
Além disso, sobre esses falantes incide a ação do que denominamos de norma
lingüística da mídia, quer na sua forma oral ( TV, principalmente), quer na sua
forma escrita (jornais e revistas). Este texto pretende mostrar que a presença de
variações, aparentemente inesperadas, na linguagem de falantes cultos (diálogos,
entrevistas ou locuções formais), poderia ser explicada também pelas mudanças
decorrentes dos tipos de frame e do consequënte processo de tensão/ distensão do
ato de fala. Assim, ainda uma vez, procura-se discutir a propósito da linguagem
dos falantes cultos e da forma como estes realizam seu discurso.
(2)
75
depoimento, diálogo para estudo da linguagem”é ativado ao início de cada gravação.
Por isso, às vezes, mesmo quando a conversação está em curso, há exemplos de
interrupção, pelos interlocutores, que alertam para o funcionamento técnico da
gravação, o que demonstra a consciência constante de que se trata de um diálogo
“encomendado” para estudo futuro, o que dá certa responsabilidade aos falantes,
numa situação típica de entrevista, depoimento:
“L2 tenho se bem que eu acho que eu conheço pouco a cidade né?... por exemplo se
eu for comparar com... L1 -- você viu se está gravando direito aí? --
(4)
(5)
76
constitui uma outra comprovação de que os falantes estão atentos a ela, mantendo,
portanto, viva a situação de comunicação previamente instaurada e consciente o
frame de entrevista:
“L2 bem L1 imaginar o futuro é duro L2 ((ri)) ih::... está um pouco aleatório esse
papo... pulando daqui para lá... L1 e você no futuro... como que vai ser? Doc. eu
não posso dar opinião ((ri)) L2 não pode dar opiniões aqui?” (D2 343, 1379-1385)
Esse controle do discurso (muito mais comum em termos formais), embora não possa
ser considerado constante em função da influência dos usos sobre a norma,
justifica-se também pelo fato de ser uma linguagem que está sendo documentada pela
gravação, o que altera, em muitos momentos, o nível de responsabilidade do
depoente e também a sua naturalidade. É certo que há variação de inquérito para
inquérito, mas a própria dificuldade de elaboração e expressão de uma idéia na
dissertação cria uma expectativa de um discurso mais tenso. No frame de
dissertação ocorrem menos sinais, pistas contextuais paralingüísticas como
variações prosódicas (entonações variadas, mudanças de ritmo etc.), recursos de
fonética expressiva (onomatopéias, por exemplo) do que ocorre com certa freqüência
nos frames de narração. Por isso, quando estes se intercalam nos dissertativos,
fica fácil ao ouvinte identificar na interação as mudanças de frame.
78
3.2. Frames de narração e representação
L1 por que? analogia... ele está cavalgando né? então ele é o ::... o::... L2
((ri)) o rei do oeste ahn” (D2 343, 663-674)
O frame de humor também pode ser acionado para intercalar uma frase mais distensa,
durante uma situação em que o falante tem dificuldade em levar o discurso adiante,
configurando-se até mesmo uma perda da face. É uma situação comum em aulas, quando
uma brincadeira, uma frase pronunciada em tom particular, às vezes de confidência,
em voz mais baixa, pode esconder um desconhecimento momentâneo do falante:
“Inf. (...) bom... hoje a gente vai começar... demanda de... moeda... a gente quer
saber agora... quais as razões que faz... que fazem com que... ah... -- estou meio
81
preocupado com o gravador ((risos)) éh... faz fazem... éh::: -- ah quais as razões
que levam as pessoas a... demandarem moeda” (EF 338, 7-14)
não deu certo... ((risos)) L2 filhos da pílula não? ((risos)) L1 não... ((risos))
L2 nem da tabela? ((risos))
82
L1 não justamente porque a tabela não:: não deu certo é que:: ((risos) vieram ao
acaso L2 ahn ahn L1 e:: nós havíamos programado Nove ou dez filhos... não é? L2
(D2 360, 1-18) nossa que chique”
84
grande altitude... e... foi uma palestra de oito minutos não mais do que isso
sobre a a ocupação da Amazônia” (D2 255, 98-129)
O texto chama a atenção, não apenas pelo emprego de um vocabulário bem amplo,
pouco comum num diálogo, mas também pelo uso do discurso indireto.
86
ELOCUÇÃO FORMAL: O DINAMISMO DA ORALIDADE E AS FORMALIDADES DA ESCRITA
Beth Brait
88
bal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua – recursos lexicais,
fraseológicos e gramaticais –, mas também, e sobretudo, por sua construção
composicional. Estes três elementos (conteúdo temático, estilo e construção
composicional) fundem-se indissoluvelmente no todo do enunciado, e todos eles são
marcados pela especificidade de uma esfera de comunicação. Qualquer enunciado
considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da
língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciado, sendo isso que
denominamos gêneros do discurso (Bakhtin, 1992:279).
As questões relacionadas à variação serão observadas, portanto, com apoio nos dois
pontos de vista teóricos, tomados em sua complementaridade, de forma a surpreender
as diferentes perspectivas de mobilização da língua e das normas que a constituem
e que configuram seu uso. A hipótese é a de que, pela diversidade da situação de
produção e recepção, o falante, deslocado para a função de “escritor” e tendo de
expor o mesmo tema, aproprie-se de um outro gênero, em função da especificidade da
esfera da atividade humana em que se insere, produzindo um tipo de texto bastante
diferente do primeiro.
1. Uma elocução formal: o inquérito 153 O inquérito 153 (Castilho & Preti, 1986:
90-111), cujo registro data de 16 de fevereiro de1973, está caracterizado como uma
conferência, cujo tema é “O cinema brasileiro da década de trinta”, proferida por
um homem de 56 nos, casado, professor universitário, paulistano, pai nascido em
Tatuí (SP), mãe nascida em Jacareí (SP). Embora a referência básica para este
trabalho seja o texto registrado no livro A linguagem falada culta na cidade de
São Paulo, a fita em que a conferência se acha gravada também foi ouvida,
possibilitando uma maior compreensão, por exemplo, da função de diferentes tipos
de pausa, que não podem ser recuperados inteiramente pela transcrição, mas que são
fundamentais para o reconhecimento das diferenças existentes entre um texto lido e
um texto falado, entre outros aspectos de interesse para a análise dessa elocução.
89
Além disso, é também pela fita que se pode saber que o informante acima
caracterizado é Paulo Emílio Salles Gomes. Crítico e historiador do cinema
brasileiro, Paulo Emílio (São Paulo, 1916/1977) foi professor de História do
Cinema e de Cinema Brasileiro na ECA/USP a partir de 1968, e é autor obras: Jean
Vigo, 1957; Il cinema brasiliano,1961; 70 anos de cinema brasileiro, 1966, em
colaboração com Ademar Gonzaga, republicado em 1970 pela Série “Cinema” sob o
título Panorama do cinema brasileiro: 1896/1966, e em 1980 pela Editora Paz e
Terra, como parte do volume Cinema: trajetória no subdesenvolvimento, que mereceu
uma nova edição em 1996; Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte, 1974, 1980; Paulo
Emílio: Crítica de cinema no Suplemento Literário, São Paulo, Editora Paz e Terra,
1982, 2 vol. O que se pode observar a partir da leitura, ou mesmo da audição do
inquérito 153, é que ele apresenta uma construção composicional bastante regular,
marcada por seqüências formais bem delimitadas, articuladas de forma fortemente
coesiva. Há uma introdução, que se inicia na linha 1 e vai até a linha 44, um
desenvolvimento que se inicia nesta mesma linha 44 e vai até a 816, e uma
conclusão que, iniciada na linha 816, vai até o final (L 916). Assim sendo, tanto
do ponto de vista da exposição do tema principal por meio da articulação cuidadosa
de tópicos e subtópicos quanto da maneira como cada seqüência e cada tópico e
subtópico estão interligados, a característica marcante dessa elocução formal, da
perspectiva da construção composicional, é, como se verá, a evidente proximidade
da estruturação de um texto escrito. Entretanto, há também um conjunto de marcas
“conversacionais”, indicativas da contingência interacional, das condições sine
qua non para a construção do texto oral, que vão se apresentando pela existência
explícita de um locutor em presença de seus ouvintes, pelas evidências textuais de
que esses ouvintes estão instaurados como interlocutores e que atuam no decorrer
da exposição como explícitos co-enunciadores. Se esse texto falado apresenta uma
estrutura organizacional bastante rígida, aproximando-se das características de um
texto escrito, as fortes marcas da oralidade, da interação face a face, distanciam
o conjunto de um texto escrito para a leitura.
90
1.1. Parte introdutória da elocução formal
95
“ah pode servir como introdução ao assunto... uma passagem de uma entrevista da
época... do... ator Jaime –Costa... ele dizia... o nosso público... o carioca
principalmente... vê em tudo e antes de mais nada a parte humorística... e é por
isso que eu penso... que em matéria de cinema... devíamos explorar... essa
tendência... nada de grandes emoções...” (L 791-799)
97
Nesse caso, a audiência dessa exposição oral, dessa conferência ou aula, é um
público formado por interessados em cinema e que, por algumas passagens, como é o
caso de “que nós já vimos outro dia”, demonstra já ter estado anteriormente em
contato com o enunciador. Assim, essa primeira pessoa do plural, que reúne
enunciador e enunciatários, vai sendo preenchida ao longo da exposição de acordo
com os papéis que o enunciador assume e expande interacionalmente a essa
audiência, conforme as conveniências e necessidades do processo interativo. Se,
como marcador das grandes seqüências textuais, essa primeira pessoa envolve
enunciador e enunciatários nessa situação específica, outras vezes esse nós indica
a enunciação construída a partir dos conhecimentos partilhados por professor e
aluno, e aí o enunciador assume o papel daquele que sabe e compartilha
conhecimentos. Em outros momentos, esse nós significa os colonizados ou
“possuídos” pelos americanos, ou mesmo nós os criadores de um cinema brasileiro,
diferenciado do estrangeiro, ou ainda é o nós que engloba os participantes de uma
mesma história, de uma mesma cultura, de um mesmo processo mercadológico e
econômico. Mais de uma vez esse nós é explicitado com a denominação brasileiros ou
público, explicitando os diferentes papéis desempenhados pelos sujeitos dessa
enunciação. Seja qual for o preenchimento, cada uma dessas marcas vai evidenciando
as posições do sujeito enunciador e a maneira como ele traz o enunciatário para
dentro da enunciação, fazendo-o partilhar dessa mesma posição, desse mesmo ponto
de vista por meio do qual o objeto da exposição vai sendo construído. Há momentos,
entretanto, em que o enunciador se enuncia na primeira pessoa do singular, como
acontece nas seguintes passagens: * “com aquelas dificuldades todas a que eu
aludi...”; *“eu penso que... esses filmes a que eu aludi...”; *“eu deixei
propositadamente de lado...”; **“eu tive a oportunidade de examinar alguns
rolos...”; **“e eu fui levado de novo a repensar num problema...”; **“e:: a minha
experiência...”; **“e eu realmente me interesso cada vez mais por esses
filmes...”; **“ah pelo que eu pude ver o interesse de...”; **“eu estou convencido
em suma...; **“me impressionou notadamente...”; * “nesse encontro de hoje eu não
me preocupei com a faceta propriamente estética do cinema brasileiro... se o
fizesse... precisaria abordar ...”. Ao que parece, o abandono da pri98
meira pessoa do plural e a assunção da primeira do singular está diretamente
ligado a dois aspectos: a) o enunciador dispensa a parceria quando faz referência
a informações construídas por ele no decorrer dessa enunciação, como é o caso das
três primeiras passagens, assinaladas com *; b) ou quando as afirmações estão
diretamente ligadas às especificidades de seu fazer crítico, de sua postura diante
desse fazer crítico, como é o caso das seqüências marcadas por **. Nos dois casos,
o enunciador abandona a parceria interativa para assumir-se enquanto sujeito de um
saber e de um fazer que lhe conferem a hierarquia nessa interação assimétrica
representada pela aula, conferência ou palestra. É preciso considerar que essas
marcas de primeira pessoa do singular, se comparadas às de primeira do plural, são
pouco numerosas. Uma outra marca interativa explícita deve ser registrada em duas
passagens do texto, assinalando, pelo imperativo, a interpelação direta: “mas cujo
título é todo um:: programa imaginem que o filme se chamava... O calvário de
Dolores...” e “um grupo de fazendeiros ricos imaginem... resolveu produzir
filmes...”. Se os elementos destacados até aqui, incluindo-se a introdução e o
desenvolvimento, demonstram as especificidades dessa elocução formal no que diz
respeito à organização composicional dos tópicos e subtópicos e às estratégias
interativas marcadas enunciativamente no texto, o que lhe confere um estatuto
intermediário entre o oral e o escrito, é preciso, ainda, fazer referência ao que
Bakhtin chama de “estilo” e que, relacionando-se com as idiossincrasias do
enunciador, também participa das coerções e da natureza específica do gênero.
Assim sendo, há alguns aspectos que podem ser destacados como marcas do estilo
dessa elocução formal que, sendo específicos desse enunciador, não deixam de
apontar para aspectos que constituem marcas da elocução formal realizada em aulas,
conferências e palestras: um deles, mas não o único como foi possível observar, é
cuidadosa escolha lexical, trabalhada sintática e semanticamente para produzir
efeitos bastante diferentes, mas imprescindíveis à natureza desse “gênero
discursivo” . A escolha lexical, feita em nome do rigor e da especificidade do
tema, do assunto a ser tratado, do ponto de vista assumido pelo especialista,
também funciona interativamente, produzindo efeitos de humor, ironia, “ganchos”
estilísticos de passagem entre um tópi99
co e outro, entre subtópicos ou, ainda, como a divisão das grandes seqüências do
texto. Para conferir alguns desses efeitos, basta observar, por exemplo, as
passagens destacadas a seguir. Ainda na introdução, ao fazer referência à
indústria cinematográfica dos países adiantados, utiliza os diminutivos cineminha
(“mas DESde que o cinema virou realmente inDÚStria... nos países adianTAdos...
naturalmente que o nosso cineminha... artesanal... foi liquidado...”) e
filmezinhos (“e começou também a importar filmes... e os nossos filmezinhos feitos
aqui foram postos...”). Esse diminutivo aparece, em contraste com a forma normal
do termo na mesma seqüência, como a incorporação irônica da voz mercadológica. O
efeito humorístico, construído a partir de diferentes estratégias, pode ser
constatado em várias passagens, uma das manifestações dos enunciatários é
registrada por meio da forma ((risos)). Outra é fazer referência explícita a um
domínio de conhecimento do enunciatário, incluindo o ritmo ou a entonação
referencial, como acontece na seguinte passagem: “se o cinema falado penetrou...
foi porque4 uma companhia de terceira categoria uma companhia dos irmãos Warner...
estava à beira da falência...era uma companhia que não tinha mais nada... a única
coisa que eles tinham eram dois atores envelhecidos já sob contrato... um deles
era o John Barrymore... que nós vimos outro dia... no Grande Hotel às voltas com
Greta Garbo coitado... e...(...) tinha o cachorro (ritmo de) Rin-tin-tin... né
((risos)). O efeito de humor pode estar, por exemplo, na forma um tanto dramático-
cômica de narrar comentando o enredo de um filme um tanto sofisticado, em relação
à média dos filmes policiais da época, intitulado O mistério do dominó preto:
“eram dois estudantes que moravam no mesmo quarto... durante o carnaval... um
rapaz chega do baile... abre o armário... e encontra uma mulher fantasiada de
dominó preto... morta...bem... o rapaz se convence... e nós público também ficamos
convencidos... de que foi o amigo... que... matou... a mulher... numa segunda
etapa... os dois rapazes... o tenente... e nós... ficamos convencidos... de
(4)
Embora a palavra porque não esteja na transcrição, a audição da fita mostra que
ela foi dita pelo informante.
100
que quem matou... a dominó... foi a noiva do tenente... e finalmente na
conclusão... éh se esclarece... que o verdadeiro assassino... é... o irmão... da
noiva... do tenente... ((risos)). A maneira de trabalhar a citação também pode
produzir efeitos irônicos e ou humorísticos, como acontece na conclusão do texto,
em dois momentos. No primeiro, o enunciador recorre a uma crônica para evidenciar
a postura de um periódico especializado conservador diante do cinema europeu e
americano, misturando citação e comentário da forma apresentada a seguir.
Inicialmente, a citação é explícita: “O articulista [Cinearte] está comentando
sobretudo... alg6uns filmes europeus (...) um cinema que ensina o fraco a não
respeitar o forte... o servo a não respeitar o patrão... que mostra caras sujas...
barbas crescidas... aspecto sem higiene alguma... sordices... - - sic - -... e um
realismo levado ao extremo... não é cinema...” (L 859-863). Na seqüência, e pela
entonação, o enunciador passa a comentar o restante da crônica, de maneira bem
próxima ao texto do articulista, de forma a não se distinguir onde começa e
termina a fala de um e de outro: “ele imagina um casal de jovens que vão assistir
um filme americano médio... vêem lá um rapaz de cara limpa... bem barbeado...
cabelo penteado... ágil... bom cavaleiro... e a moça bonitinha... corpo bem
feito...rosto meigo... cabelos modernos... aspecto todo fotogênico... depois há o
cômico e o vilão... que também são higiênicos... ((risos)) e também são
distintos... ((risos)) e então uma fazenda moderna... fotogênica...os subordinados
que se submetem aos seus superiores... com alegria e com satisfação... ((risos)) e
um ritmo... que é o ritmo da vida de hoje... ágil... leve... moderna... ((risos))
o parzinho que assistir o filme comentará que já viu aquilo vinte vezes... mas...
sob seus corações que sonham... não cairá... a penumbra... de uma brutalidade
chocante... de uma cara suja... de um aspecto que tira qualquer parcela de poesia
e de encantamento... essa mocidade... não pode aceitar essa arte que ensina a
revolta... a falta de higiene... a luta... a eterna briga... contra os que têm o
direito de mandar... ((risos))” (L 863-883). Na segunda recorrência à citação,
comentando as posições progressistas que existiam ao lado das conservadoras, e que
lutavam pela criação de um cinema nacionalista: “o articulista:: se levanta contra
o
101
cinema americano não é? ... o que para mim seria simpático não é? ( )... mas ... o
argumento principal... é o seguinte... as mulheres brasileiras... vêem cada vez
mais crescer em torno de si... o indiferentismo de seus patrícios... ((risos))
sugestionados pela beleza impeCÁvel dos tipos estandartizados... do écran...
ianque ((risos)) (L 892-900). Nos dois casos, as estratégias sintáticas de
incorporação das falas de outros funcionam em benefício do ponto de vista do
enunciador com a cumplicidade do enunciatário trazido para a enunciação pelas
estratégias interativas do humor e da ironia. Mas há ainda um aspecto ligado ao
“estilo”, no sentido bakhtiniano, que merece ser observado: a forma como o
enunciador articula informação e efeito de humor para finalizar o desenvolvimento.
Ao apresentar os últimos acontecimentos cinematográficos referentes à década de
trinta, narra as peripécias dos fazendeiros ricos que construíram um estúdio,
compraram aparelhagem e reanimaram os velhos cavadores e conclui: “... o resultado
de todo esse esforço... foi um único filme... chamado A última esperança...
((risos)) (L 815). A ironia é feita com o aproveitamento do título do filme em
contraste com as ambições da empreitada.
103
A coexistência do cinema mudo e falado de 1929 a 1933 justifica por certo o fato
extraordinário de terem sido feitas no ano de 1930 cerca de vinte fitas.
Realmente, o cinema falado desempenhou um papel estimulante na nossa produção, mas
isso antes de 1934, quando então houve um colapso quase tão radical quanto o de
1911 u 1921 (Gomes, 1980:54). Esses filmes, bem como mais uns quatro ou cinco
realizados em Belo Horizonte até 1934,não passaram de um esforço sem maior
repercussão, mesmo local. José Silva foi o responsável por três dessas produções,
Boêmios, Perante Deus e Calvário de Dolores (...) (Gomes, 1980:55). Concentra-se a
produção em Porto Alegre, limitando-se até 1933 a meia dúzia de filmes, alguns com
razoável distribuição, sobretudo no interior (Gomes, 1980: 56). Inspirados na
vitória da Revolução de 1930, não tardaram a aparecer filmes cívicos e militares,
como Amor e Patriotismo ou Alvorada de Glória (Gomes, 1980: 60). Isso porém
ocorria em 1928, quando toda a linguagem cinematográfica, laboriosamente
construída durante vinte anos na Europa e na América do Norte, já se encontrava
condenada pela revolução sonora. Entretanto, o Brasil faria ainda cinema mudo
durante cinco anos, até aproximadamente 1933 (Gomes, 1980:62). No começo da década
de 1930, constituiu ela [Carmem Santos]sua própria companhia, a Brasil Vita Film,
e constrói estúdios onde anos depois conseguirá completar seu empreendimento de
maiores proporções: A inconfidência mineira. Humberto Mauro dirigiu três filmes
para Carmem Santos: Favela dos meus amores, Cidade mulher e Argila. Com Favela dos
meus amores volta o nosso cinema aos morros cariocas, não para procurar celerados,
como fez a polícia de A jóia maldita, mas para simplesmente contemplar com
simpatia e lirismo uma parcela do povo (Gomes, 1980:63-64). Wallace Downey,
americano responsável pela repercussão de Cousas nossas*, produzia exclusivamente
filmes musicais, associando-se às vezes à Cinédia... (Gomes, 1980:64).
104
A década de 1930 girou em torno da Cinédia, em cujos estúdios firmou-se uma
fórmula que asseguraria a continuidade do cinema brasileiro durante quase vinte
anos: a comédia musical, tanto na modalidade carnavalesca quanto nas outras que
ficaram conhecidas sob a denominação genérica de “chanchada” (Gomes, 1980:64).
Os trechos da obra utilizada tiveram sua primeira edição em 1966, portanto sete
anos antes da conferência que resultou no inquérito 153. O que se pode observar é
que, naturalmente, muitas das informações que estão no inquérito aparecem no texto
escrito e outras não, havendo inclusive algumas contradições que não são motivo de
análise neste ensaio. Entretanto, a maneira de tratar o tema, a forma
composicional e o estilo evidenciam que, embora tratando-se do mesmo indivíduo, os
textos revelam “autores” diferentes, enunciadores constituídos na especificidade
da situação de enunciação. O texto escrito enquadra-se num gênero mais didático,
no qual a necessidade de apresentar um panorama da história do cinema brasileiro
obriga a síntese da seqüência por épocas, conforme esclarece o próprio título
“panorama do cinema brasileiro: 1896/1966. Assim sendo, a perspectiva histórica e
econômica, uma marca do enunciador também na conferência, está muito mais amarrada
à seqüência cronológica, ao detalhamento cronológico, à enumeração, à localização
e análise das condições de produção e distribuição de cada época do que na
exposição oral. Se os dois tipos de texto revelam um especialista cujas
necessidades didáticas não excluem o excelente crítico, o impecável historiador, a
organização escrita descartou a presença do humor, da ironia, das inserções
narrativas ocasionais, da cumplicidade provocadora instituída na situação de
oralidade. O que o texto escrito guarda das características da elocução formal é,
por exemplo, a expressão nosso cinema, nossa produção, que inclui o enunciatário
enquanto participante de uma dimensão cultural e artística própria do Brasil.
Assim sendo, se em relação a uma conversa espontânea ou a um entrevista a elocução
formal pode ser pensada como muito mais planejada e assimétrica no que diz
respeito às relações interacionais, quanto ao texto escrito ela mostrou-se muito
mais viva,
105
mais interativa, mais aberta para as parcerias entre enunciador e enunciatário.
Até mesmo as questões políticas mais delicadas, como é o caso do Integralismo e do
Estado Novo, foram tratadas, na exposição oral, pelo viés da produção
cinematográfica e a partir de uma memória discursiva histórica e crítica em
relação ao período ditatorial e às posturas radicais, conservadoras e
progressistas.
108
POLIDEZ NA INTERAÇÃO PROFESSOR/ALUNO
Luiz Antônio da Silva
2. Preservação das faces: face negativa e face positiva Sendo uma atividade
puramente interacional, a conversação pressupõe a relação entre, no mínimo, dois
interactantes. Ao pesquisar essas relações interpessoais, Goffman estudou
procedimentos de preservação da face. Para o referido autor, quando se entra em
contato com o outro, tem-se a preocupação de preservar a auto-imagem pública. A
essa autoimagem pública Goffman (1970:13) dá o nome de face:
“Pode definir-se o termo face como o valor social positivo que uma pessoa reclama
efetivamente para si por meio da linha1 que os outros supõem que ela seguiu
durante determinado contato. A face é a imagem da pessoa delineada em termos de
atributos sociais aprovados, ainda que se trate de uma imagem que outros podem
compartilhar,
(1)
111
como quando uma pessoa enaltece sua profissão ou sua religião graças a seus
próprios méritos.”
Para Brown e Levinson, todo ser social possui duas faces: face negativa e face
positiva: a) face negativa: envolve a contestação básica aos territórios, reservas
pessoais e direitos; em outras palavras, a liberdade de ação e liberdade de sofrer
imposição. É o desejo de não ser impedido em suas ações, por isso a preservação da
face negativa implica a não-imposição do outro; b) face positiva: representa a
auto-imagem definida ou personalidade (incluindo principalmente o desejo de que
esta auto-imagem possa ser aprovada e apreciada) de que os interlocutores
necessitam. É o desejo de aprovação social e de auto-estima. Marcuschi (1989:284)
apresenta um resumo de atos que ameaçam as faces:
113
1. atos que ameaçam a face positiva do ouvinte: desaprovação, insultos, acusações;
2. atos que ameaçam a face negativa do ouvinte: pedidos, ordens, elogios; 3. atos
que ameaçam a face positiva do falante: auto-humilhação, auto-confissões; 4. atos
que ameaçam a face negativa do falante: agradecimentos, excusas, aceitação de
ofertas. Para ilustrar, veja-se o exemplo a seguir:
Exemplo 1
PROF.: (...) mais um tipo de equilíbrio... pra terminar por completo... então a
nossa... estudo de cinética química... vocês imaginem se nós tivermos... é isso
que eu vou ( )... isso com um pouquinho de paciência a gente chega lá... a idéia
básica é a seguinte... nada vai ser diferente... nada vai ser realmente diferente
em cima desse troço que nós estudamos... tentei chamar a atenção ontem... eu
tentei chamar a atenção de vocês... para este tipo de equação aqui... e eu não sei
se fui suficientemente feliz... tá? Não sei se fui suficientemente feliz... pra
que vocês me entendessem de uma maneira ... TOTAL... inclusive extrapolando pra
outras matérias... a PROFUNDIDADE deste troço... bom... na hora em que vocês
conseguirem sacar a profundidade deste troço... até que ponto a gente é capaz...
(NURC/RJ, Inq. 251, p.13)2
(2)
A indicação dos exemplos será feita da seguinte maneira: cidade (Rio de Janeiro ou
São Paulo), número do inquérito, página constante na publicação.
114
Em geral, na sala de aula, como em toda conversação, há um acordo tácito entre
professor e alunos. Enquanto um não coloca em risco a face do outro, não há
ameaças à face de ninguém. O exemplo acima ilustra o fato de uma ameaça
desencadear outras. Ao enunciar a pergunta – “que produtos foram utilizados?”-, o
aluno ameaça a face negativa do professor, pois lhe tira a liberdade de ação, ao
interromper as explicações. Em seguida, o professor ameaça a face negativa do
aluno, ao deixar claro, por meio de um ato de fala que mostra polidez negativa (“é
isso que eu vou ( )... isso com um pouquinho de paciência a gente chega lá...”),
que a pergunta foi inadequada, pois as explicações do professor ainda não haviam
terminado. A resposta do professor também indica que o aluno avançou o sinal e
deveria ter tido paciência, ter aguardado, não ter sido precipitado. Por outro
lado, ao não responder, prontamente, à pergunta do aluno, o professor coloca em
risco a própria face. Não respondendo, ele pode dar a entender que não sabe a
resposta. Embora o professor tenha dito “com um pouquinho de paciência a gente
chega lá”, ele não chegou lá, isto é, ele não deu a resposta ao aluno. Na
seqüência, há nova ameaça à face do professor. Este ameaça a própria face
positiva, afirmando que seus alunos ainda não haviam entendido. No processo
ensino/ aprendizado, a responsabilidade do professor é grande, por isso, se os
alunos não entenderam, o professor pode ter parte da culpa. Observe-se que há a
intenção de o professor preservar a própria face. O professor manifesta essa
preocupação, ao enunciar “tentei chamar a atenção ontem... eu tentei chamar a
atenção de vocês.” Ele, pelo menos, tentou, fez a parte dele. Se o objetivo não
foi alcançado, a culpa não é dele. Em seguida, o professor procura verificar como
está sua imagem. Ele fez a parte dele, ainda que não saiba se teve sucesso: “não
sei se fui suficientemente feliz... tá?”. Ainda que a pergunta seja indireta,
deseja resposta e resposta positiva. Como não houve, depois da pausa, há um
marcador “tá?” e a repetição do enunciado para reiterar a verificação: “não sei se
fui suficientemente feliz...”.
Exemplo 2
PROF.: (...) Lévi-Strauss em La Pensée Sauvage... diz o seguinte... “por que nós
supomos que o nosso modo... de interpretar o mundo... é o modo verdadeiro?”...
alguma coisa que está mais de acordo... com a física atômica... compreende?...
115
porque eu acho... eu não não estou de acordo com isto eu não andei pichando muito
Lévi-Strauss para vocês porque senão... vocês não conhecem mas3 eu há anos que
eu... me bato contra o Estruturalismo... em todo o caso... neste nível de
análise... eu creio que nós podemos utilizarmos desta reflexão... (NURC/SP, Inq.
124, p.62)
(3)
116
face dos interlocutores envolvidos na interação. Ainda que não fique tão claro,
Fraser (1980) distingue entre polidez e atenuação. Para ele, atenuação implica
polidez, mas esta não implica aquela. A polidez é um fenômeno mais vasto que a
atenuação, cujo objetivo é modificar um ato de fala que visa à redução dos efeitos
indesejados que possa ter para o interlocutor. Durante a conversação, há atos que
são contrários aos desejos do outro e ameaçam a face. Esses atos de fala que
ameaçam a face são chamados por Brown e Levinson (1978) de atos ameaçadores da
face (Em inglês: face threatening acts ou FTAs). Podem ser ordens, pedidos,
conselhos, oferecimentos, promessas, elogios, expressões de ódio, críticas, etc. A
partir dessa constatação, Brown e Levinson também utilizaram o termo face-work
como um mecanismo de organização das faces e responsável pela organização dos
processos de polidez na interação conversacional. Esse sistema de polidez serve
como mecanismo para a administração das faces. Com efeito, os autores procuraram
identificar estratégias de polidez utilizadas pelos interlocutores, visando à
manutenção da face quando houver um FTA. Assim como o Princípio da Cooperação4 tem
como meta assegurar uma transmissão eficaz da informação,
(4)
117
a polidez tem por meta a melhoria das relações sociais. Polidez diz respeito a
técnicas para bem viver em sociedade por meio da satisfação das faces dos
interlocutores numa interação verbal. Num estudo semelhante ao de Brown e
Levinson, Leech (1983) estabelece a distinção entre polidez relativa e polidez
absoluta. A primeira depende decisivamente das posições sociais dos
interlocutores, que impõem uma série de seleções que determinam a forma do
enunciado e matizam seu significado. A segunda implica uma tendência em associar
determinados atos de fala com a polidez, “pois alguns atos ilocucionários (por
exemplo as ordens) são intrinsecamente descorteses; e outros são intrinsecamente
corteses” (Cf. Leech, 1983:83). Ao comentar essa posição de Leech, Beltzer
(1996:2) afirma que “essa perspectiva supõe que a polidez seja uma qualidade
abstrata que reside em algumas expressões individuais, em itens lexicais ou
morfemas, sem considerar as circunstâncias particulares que integram seu emprego”.
Ressalta, ainda, que essa idéia também está presente na teoria de Brown e Levinson
na fórmula para determinar o risco potencial dos atos ameaçadores da imagem do
falante e do ouvinte. Esse risco é determinado por três fatores de natureza
social: 1. a distância social ou dimensão horizontal, que inclui o grau de
familiaridade e contato entre os interlocutores; 2. o poder relativo do ouvinte
sobre o falante, ou poder vertical; 3. o grau de imposição de um ato sobre a
imagem do falante e do ouvinte. Dessa forma, Beltzer (1996:02) lembra que o termo
polidez está carregado de conotações várias e o considera uma expressão vazia, que
encobre a tendência a equiparar a polidez com determinados marcadores lexicais ou
gramaticais e com a excessiva ênfase posta na imagem do ouvinte em detrimento da
imagem do falante. Propõe que se empregue o termo polidez, baseando-se na noção de
“adequação”, que permite descrevê-lo em termos de fazer o que socialmente é
aceitável. Isso implica inscrever a polidez dentro de um marco bem amplo da
interação social, isto é, como uma norma externa ao comportamento lingüístico, mas
118
interagindo com ele. Assim, conclui que não se pode falar em polidez em termos
absolutos, pois a polidez “só deve ser considerada em relação a um contexto
particular, de acordo com as expectativas de um interlocutor particular e com sua
interpretação concomitante. Uma desculpa ou qualquer outro ato de fala,
supostamente próprio de polidez, pode muito bem ser inadequado (descortês), tanto
em virtude de sua ocorrência desacertada em uma situação particular, como pelo
modo em que se realiza.” Haverkate (1994:15) lembra que as normas de polidez
funcionam como “regras que regulam formas de comportamento humano que existiam
antes de as regras serem criadas. Por esse motivo, a comunicação verbal poderia
dar-se perfeitamente sem aplicar as normas de polidez. Uma pessoa que atuasse como
se essas regras não existissem, violaria as convenções inerentes à boa educação,
mas seria compreendida sem qualquer dificuldade”. Dessa forma, a compreensão diz
respeito às normas constitutivas do texto, enquanto a polidez, às normas
regulativas do texto conversacional.
ALUNO: aquele negócio que você falou que tem que ser... muito solúvel... quer
dizer... a gente...às vezes não é questão da gente de ( ) PROF.: PROF.: não... mas
nós não acabamos de ver que... imagine o HCl... o NaCl não é... você não usa um?
você não usa álcool igual a um? se botar uma massa de ( ) você entrou ( )... se
ele fosse sempre toda vida solúvel não tinha ALUNO: nem o álcool com água... por
exemplo? Ele continua...
120
salina ( )... certo? Tudo tem um produto de solubilidade... todas as coisas têm um
produto de solubilidade... só que uns têm tão grande que você pode ( ) ALUNO: quer
dizer que a evaporação é você exprimir a concentração que evapore a... PROF: é::
não é que evapore a água toda... não... poxa... vou esperar... se você fosse
evaporar a água toda... o nosso sal não prestava... ia precipitar o cloreto de
potássio... (NURC/RJ, Inq. 251, p.29-30)
ALUNO 2 (Gélson): estava PROF.: PROF.: ALUNO 2 (Gélson): eles fizeram a Assembléia
Nacional...
122
ALUNO 3 (Michel): ( ) PROF.: PROF.: muito bem... muito bem... olha o Michel tá
ficando... tá ficando um “expert” em História... começou... no princípio foi
ótimo... não ter ido muito bem na primeira prova... não foi? Foi ótimo porque ele
se interessou de tal maneira... que agora dá aula... (NURC/RJ, Inq. 382, p.103-
104) ALUNO 3 (Michel): ( )
124
ALUNO 1: é claro... PROF.: ninguém discute que o Fittipaldi é um excelente
piloto... todos continuam... hã... acreditando tecnicamente no Fittipaldi... mas o
carro não ajuda né? O carro não passa ninguém... passa quando os outros quebram...
o carro é bom? é bom?
ALUNO 1: é que tem desnível no motor... ((risos)) não... porque todo carro de For/
de Fórmula Um tem o mesmo motor... PROF.: PROF.: hum? Só que o dele ele não
conseguiu ajustar? enfim... (NURC/RJ, Inq. 364, p.72-73) ALUNO 1: é... por causa
do... ALUNO 1: é... não interessa...
No exemplo acima, percebe-se uma disputa entre professor e aluno acerca do carro
de Fórmula Um dirigido por Émerson Fittipaldi. Na época, Émerson Fittipaldi era um
piloto consagrado que resolveu guiar um Fórmula Um brasileiro. O piloto era bom,
mas o carro não correspondia ao condutor. O professor defende essa idéia, mas o
aluno afirma que o carro era bom, porém o motor era ruim. Nesse aspecto, o
professor chega a ameaçar a face negativa do aluno várias vezes, por meio de
sintagmas interrogativos que colocam em dúvida a afirmação do aluno: “o carro é
bom?” e “é bom?”. Esses sintagmas interrogativos representam formas de polidez
negativa, à medida que o professor, em vez de ser direto e afirmar que o carro não
era bom, recorre a formas indiretas, a fim de atenuar o FTA (atos ameaçadores da
face).
125
O aluno também ameaça a face negativa do professor, insistindo na idéia de que o
carro era bom: “o carro é bom...”; “é lógico”; “o carro é bom”. Como o professor
está convicto do que está dizendo, ainda mais que era opinião corrente na época,
chega a alterar a voz. Nesse momento, o professor deixa sua relação de cortesia e
não se importa de produzir FTAs. O enunciado “então o carro não é bom... pô...”,
produzido de forma conclusiva e direta, representa a estratégia em que se ameaça a
face sem qualquer intenção de ser polido, pois o professor não deseja preservar a
face do aluno, mesmo porque a dele, professor, já estava ameaçada pela posição do
aluno. Quando o aluno procura explicar seu argumento, chega a provocar risos nos
colegas, ameaçando a própria face (“é que tem desnível no motor... (risos)”). Na
intervenção seguinte, o professor reage de forma irônica ao argumento apresentado
pelo aluno. O enunciado “hum? Só que o dele não conseguiu ajustar?” é uma
estratégia em que se emprega a ironia, violando a máxima da qualidade (no dizer de
Grice), ameaçando a face do interlocutor. O contexto partilhado pelos
interlocutores leva o aluno a entender a ironia. No turno seguinte, diante da
reação irônica do professor, o aluno procura explicar sua posição e, talvez, pela
situação delicada em que se encontra, não consegue completar o enunciado. O
professor intervém e, mais uma vez, ameaça a face do aluno, enunciando um FTA (ato
ameaçador da face) – “enfim” –, que deixa claro que é para o interlocutor dizer
qual era a referida causa. Finalmente, o aluno reconhece que não vale a pena
insistir na discussão – “é... não interessa...”, preservando a face positiva do
professor. Podemos, inclusive, supor que essa expressão do aluno (“é... não
interessa...”) traga também certo aspecto agressivo ou de desprezo. Pode-se supor
que ele deseja indicar que, como o professor é a voz de comando na sala de aula,
resolve não ficar insistindo na posição assumida, pois o professor não se dobrará
diante dos argumentos de um simples aluno.
Exemplo 6 PROF.: (...) vejam bem a pergunta... hein... tá? Vocês não estão
(entendendo) aqui dentro nada... eu só digo pra vocês... aqui dentro tem uma
solução de cloreto de prata... e digo pra vocês... que... o produto de
solubilidade do cloreto de prata... faz de conta... tá? Só de brincadeira...
aqui... é sete... e eu digo que lá dentro eu tenho dois... uma concentração igual
a
126
dois de prata e uma concentração igual a três de cloro... e pergunto... lá dentro
eu tenho uma ou duas fases? ALUNO 1: uma... ALUNO 2: tem duas fases... PROF.:
ALUNO: PROF.: ALUNO: bom... vamos ver... o que é que significa... como é que vai
saber? Se perguntando... vamos se perguntar... agora... duas fases... por quê?
porque ela devia dissociar o produto sete... né? Pelo que eu sei isso é alguma
coisa assim... ao contrário... né? Tem menos do que sete... tem menos que sete...
(NURC/RJ, Inq. 251, p.19)
130
VARIEDADES DE PLANEJAMENTO NO TEXTO FALADO E NO ESCRITO
Hudinilson Urbano
(1)
Entre as outras razões está a situação de comunicação, que determina, por exemplo,
atitudes lingüísticas menos ou mais formais. Entre os vários fatores, citam-se,
por exemplo, a escolaridade, e o uso continuado e profissional da escrita. Para
informações esclarecedoras, v. neste livro Parte 1. Os diálogos do NURC/SP, do
artigo “Tipos de frame nos falantes131 cultos”.
(2)
1. Características básicas externas do texto falado e do texto escrito Muitos são
os fenômenos que, pela tipicidade ou freqüência, caracterizam, externa ou
internamente, ambas as modalidades. Consideramos aqui, a título de ilustração e
suporte, inicialmente, apenas algumas características que interessam diretamente
ao presente estudo. A mais clara evidência é a língua falada ser realizada oral e
auditivamente, num continuum sonoro3 , e a língua escrita apresentar-se gráfica e
visualmente em seqüências de vocábulos claramente delimitados por espaços em
branco. O continuum do material sonoro é responsável, no texto falado, pelas suas
mais sensíveis propriedades: entonação, ritmo, intensidade, dinâmica e qualidade
da voz, que são reproduzidas na escrita, direta ou indiretamente, pelas letras,
pontuação, sinais diacríticos e por descrições lingüísticas específicas, como, por
exemplo, a explicitação da maneira de falar em “falou apressadamente”. Outra
característica da expressão oral, além do material sonoro, é o uso de vários meios
auxiliares, como a expressividade facial (incluindo olhar e gestos), a postura e
as características situacionais, que na escrita só podem ser manifestadas também
indiretamente pelo canal estritamente lingüístico.
132
zação praticamente sobreposta à ativação das idéias. Ademais, emerge dentro de uma
dupla atividade de produção discursiva, isto é, dentro de uma co-produção do
falante e seu interlocutor. Pelo contrário, a produção do texto escrito subdivide-
se em duas etapas e dois tempos: o tempo da atividade mental (geração ou busca de
idéias) e o tempo da prática verbal (realização lingüística efetiva). E o texto
assim produzido é transmitido a posteriori. Disso decorre que no texto falado, na
falta de intervalo temporal entre a produção cognitiva e a oral, não há, em
princípio, como planejar previamente o texto, sendo ele planejado apenas
localmente, durante sua própria produção, de forma geralmente imperceptível ao
ouvinte, enquanto, em relação ao texto escrito, havendo um intervalo de duração
teoricamente opcional, há suficiente possibilidade de planejamento prévio do texto
antes da sua execução. Salientamos no conceito de planejamento a capacidade de
previsão e projeção; a atividade que prepara e projeta outra, possibilitando a
previsão dos riscos da execução e a tomada antecipada de decisões. Ele se
caracteriza como uma atividade consciente e complexa. Nesse sentido “planejamento
prévio” pode parecer pleonasmo, mas o adjetivo, na composição da expressão,
procura ressaltar que se trata de um intervalo temporal “de duração razoável e
suficiente” para a produção do empreendimento textual. Sem entrar em
aprofundamentos, que o presente artigo não comporta, registramos a contribuição de
Martins e Ochs para a compreensão do assunto. Martins (1983) considera
explicitamente os dois tipos de planejamento: a) o que ocorre antes da realização
efetiva e b) o que ocorre quase simultaneamente à atividade da execução
lingüística. Na visão dessa autora, o primeiro tipo está voltado para a
organização das idéias e de sua formalização lingüística, enquanto o segundo se
caracteriza como um mecanismo que cria soluções para um produto em processo de
construção. Ochs (1979) esclarece que a noção de planejamento coincide com a idéia
de “planificação”, sendo o discurso nãoplanejado aquele que não foi considerado
antes de ser expresso; por outro lado, essa noção envolve a idéia de
“organização”. Nesse sentido, o texto falado, em princípio, não é nem planejado,
enquanto produto, nem planejável, enquanto algo a ser produzido, isto é, não pode
ser planejado suficientemente a priori, ao passo que o texto escrito não só é
planejado
133
como também planejável. Pode-se mesmo acrescentar que no texto falado, em
particular na conversa espontânea, o planejamento prévio é improvável,
desnecessário4 e até certo ponto incompatível com a espontaneidade da fala, que é
um processo natural em relação à escrita, que é artificial. Ele “se caracteriza
como um mecanismo que cria soluções para um produto em processo de construção”
(Martins). Por outro lado, sendo a produção desse tipo de texto reconhecida como
uma realização coletiva dos parceiros, o planejamento dele terá de ser também
coletivo e realizado obviamente durante o ato de produção, com todos os lucros e
perdas que essa condição evidentemente acarreta. Por outro lado, além do
planejamento prévio e local, podemos considerar, em outra dimensão, vários outros
níveis de planejamento. Referimo-nos ao planejamento temático ou de conteúdo,
planejamento verbal (lexical, gramatical, prosódico), planejamento rítmico,
planejamento de formas e modos de utilização do discurso (narração, descrição,
dissertação, crônica, carta, entrevista etc.), planejamento estilístico (estilo
coloquial ou oral; por exemplo, uma oralidade conscientemente planejada no texto
escrito), planejamento pragmático (maior ou menor atenção ao contexto, adequação à
audiência) etc. É como resume Ochs, dizendo que o planejamento de um discurso pode
se dar em relação às funções referencial e não referenciais. Podemos pensar até em
preparação psicológica. Esses níveis, considerados de modo geral sob a perspectiva
do texto falado, podem, com exceção talvez dos níveis prosódico e psicológico,
aplicar-se perfeitamente ao planejamento do texto escrito. Vale a pena ter em
mente ainda que o planejamento prévio pode ser global, isto é, prevendo-se e
planejando-se previamente o texto todo, ou parcelado, ou seja, planejando-se e
replanejando-se o texto por partes. Naturalmente a espécie desse procedimento
depende muito do tipo e dimensão do texto a ser produzido. Por natureza, todo
planejamento é flexível, do que decorre ser difícil que qualquer texto seja
planejado prévia e cabalmente de maneira definitiva e irreversível. Em muitos
casos, geram-se as idéias e se faz um planejamento cognitivo superficial geral.
(4)
Isso, entre outras razões, talvez explique por que falar é “mecânica e
psicologicamente mais fácil do que escrever”. HOROWITZ e NEUMAN, apud AKINNASO,
1982).
134
O desenvolvimento, porém, será planejado e executado por partes, numa forma e
ritmo muito ao estilo de cada um. Como se conclui, a geração/busca/seleção de
idéias de um lado, e o respectivo planejamento do outro, constituem procedimentos,
em tese, separados, mas procedimentos que freqüentemente se confundem ou mesmo se
fundem num só amálgama. Daí, normalmente, podermos considerar a produção cognitiva
e seu respectivo planejamento como primeira e única etapa, e os outros vários
níveis de planejamento, outra. Levadas em conta as condições de produção e
construção do texto escrito e do falado, inferem-se as possibilidades dos vários
tipos de planejamento para um ou outro tipo de texto. Grosso modo, o texto
escrito, sobretudo o mais formal, recebe um planejamento prévio geral, temático e
verbal, enquanto o texto falado é, em regra, não planejado previamente, nem
temática nem verbalmente, sendo a atividade da sua construção administrada e
controlada passo a passo, ao sabor das circunstâncias interacionais concretas.
Antes de prosseguirmos, cabe, porém, ressalvar, com Ochs, uma impressão que as
considerações anteriores possam ter deixado: a de que estaríamos polarizando o
conceito de planejamento. Na verdade, como acontece em quase tudo na relação
língua falada/língua escrita, temos que aceitar um continuum. Daí a preferência em
se utilizar freqüentemente as expressões “relativamente não-planejado” /
“relativamente planejado”.
136
1
Doc. Dona Isa e Dona Helena gostaríamos que dessem as L1 suas opiniões a respeito
de televisão (3) Olha Isa... eu (1,5) como você sabe (2) u::ma pessoa/ um diretor
lá da Folha (1,5) certa feita me chamou (1,5) e m’incumbiu d’escrever sobre
televisão (1,5) o que me parece é que na ocasião (1) quand’ele m’incumbiu disso
(1) ele pensou/ (1) que ele ia:: (1,5) ficar em face de uma recusa (2) e qu’eu
ia... esnoBAR ((ri)) – agora vamos usar um termo (1) qu’eu uso bastante e que todo
mundo
10
15
então a minha fuga (1) era me deitar na cama (1) ligar o:: o receptor e ficar
vendo... ficar vendo (1,5) I:: aí eu vi (1) não só que já se fazia muita coisa boa
e também muita coisa ruim é claro (2) mas:: vi também todas as possibilidades...
que aquele veículo... ensejava
20
e qu’istavam ali laTENtes para serem aproveitados (1,5) agora voCÊ (2) foi dos
tempos heróicos (1) da mencionada luta
137
No caso, televisão era a especialidade temática de L1, o que explica tenha L1
tomado a iniciativa e a incumbência da resposta, não, porém, sem alguma hesitação,
denunciada pela pausa de mais ou menos três segundos, entre a proposta e o início
da resposta. A hesitação pode ser explicada, na verdade, não só pela ordem e
perspectiva temáticas não planejadas, como também pelo arranjo das idéias iniciais
e por uma preocupação de ordem pragmática ante a expectativa de que a parceira
pudesse preferencialmente tomar a palavra. Aliás, no lugar de se dirigir
diretamente à documentadora interpelante, L1 dirige-se a L2, assumindo também a
orientação do Projeto NURC, no sentido de que os informantes procurassem
estabelecer um verdadeiro diálogo entre si, abstração feita da documentadora. Dada
a vaguidade do tema, L1, antes de tentar expor sua opinião, recorda, socorrendo-se
de uma narrativa introdutória, o começo de sua atuação no jornal Folha de S.
Paulo. (L. 3-16) O trecho é caracterizado por marcas de planejamento local e de
ausência de planejamento prévio. Assim, logo de início, L1 muda a direção
discursiva sugerida pela documentadora, começando por um relato de fatos em lugar
da exposição de opiniões sugerida. Há, pois, mudança do plano inicial proposto,
naturalmente possível graças ao não comprometimento dos parceiros com um
planejamento prévio. Embora o plano proposto não envolvesse a dificuldade de uma
dissertação de caráter conceitual, o relato, implicando fatos concretos e
conhecimento partilhado vivenciado com a interlocutora, facilita a construção de
um texto não planejado. Apesar da mudança de plano, L1 mantém-se dentro do
assunto. Mas essa variação e a improvisação da ordem temática, imposta “de fora
para dentro” (Rodrigues, 1997:20), sinalizam a falta de planejamento prévio,
portanto, presença de um planejamento ad hoc, de controle igualmente local. Sob
esse aspecto, o trecho abaixo, extraído do mesmo Inquérito, exemplifica com mais
evidência um diálogo que só prossegue graças a um replanejamento da perspectiva
tópica, negociado localmente durante o processo interacional:
L1 (...) agora... o lado discutível... escapa à televisão... que é aquele
lamentável lado do Baú que de certo era isso que você ia...
138
L2 L1 L2 L2
L1 L2
140
e) falso começo ou abandono prematuro do enunciado: “eu (1,5)”; f) a referência à
“mencionada luta” no fechamento do turno. Tanto “luta” quanto “mencionada” parecem
idéias estranhas e inexplicáveis sob o ponto de vista do desenvolvimento tópico.
Pressuposta, porém, a coerência textual, a referência a essas idéias tem aceitação
e explicação no conhecimento partilhado das parceiras. Com efeito, sabe-se que L1
e L2 são parentes com convivência intensa, como, aliás, se percebe claramente no
desenrolar da seqüência do Inquérito. Ademais, logo no início do trecho sob
análise, como já referimos anteriormente, L1 acena para esse aspecto, ao dizer:
“olha Isa... eu (1,5) como você sabe”. Admitir que o trecho analisado denuncia
elementos de não planejamento prévio e de pouca elaboração não significa, porém,
que ele não esteja, de forma evidente, estruturado e articulado temática e
textualmente. De fato, L1: a) toma a iniciativa da resposta, dirigindo-se
diretamente a L2; b) inicia uma narração introdutória da resposta propriamente
dita: c) insere, na seqüência, uma explicação sobre um termo usado (inserção
explicativa); d) retoma a narração; e) fornece finalmente, ainda em tom de relato
(“vi”), sua opinião muito genérica e superficial sobre o tema; f) entrega
explicitamente o turno a L2. O que queremos dizer é que as partes seqüencialmente
estruturadas – mas topicamente dispersas – não o foram, porém, segundo um
planejamento prévio. Parece-nos claro perceber que essa seqüência não atende a um
planejamento prévio, mas sim a um planejamento local, ao sabor da proposta
genérica da documentadora, da lembrança ativada da falante e da presença
interativa de L2. Por outro lado, na perspectiva contrária, certas construções,
palavras e cuidados compatíveis com a atividade de um planejamento prévio podem
ser observados: a) estruturas oracionais e frásicas típicas da língua escrita: “um
diretor lá da Folha certa feita me chamou e me incumbiu d’escrever sobre
televisão”, “acontece qu’eu já tinha visto durante muito tempo televisão
por::que:: houv’uma época na minha vida que a literatura me fazia prestar
atenção”7;
(7)
141
b) o já referido futuro do pretérito “iria” (letra d acima); c) o verbo haver,
igual a “existir”, em lugar do coloquial “ter”; d) neologismo culto (“esnobar”);
e) termos ou expressões usados normalmente dentro da linguagem culta: “incumbir”,
“ensejar”, “latentes”, “tempos heróicos”; f) cuidada e ostensiva articulação do r
final em escrever, usar, ligar, prestar, ficar, conforme se ouve claramente na
gravação. Essas constatações poderiam levar a crer, ingenuamente, ter havido um
planejamento prévio. Na realidade, esses fenômenos não podem nem devem ser
atribuídos a isso. São hábitos lingüísticos de uma pessoa com larga experiência da
escrita culta, que se transferem, naturalmente, para sua fala, ainda que informal
e espontânea8 .
142
mesmo tamanho do trecho transcrito do NURC (mais ou menos 180 palavras), mas, como
fizemos em relação ao texto falado, utilizamos eventualmente outro trecho da
crônica: Os muitos cardápios da crítica
5 Fico feliz quando vejo eruditos sistematizarem em teorias o que sempre realizei
no arroz com feijão cotidiano em meu mister de escriba. Assim, Roland Barthes não
vê a crítica no sentido de juízo de valores. Pensa, e muitos com ele, que deverá
haver umareformulação na crítica. Ela passaria a ser uma criação sobre a
criação... Creio que só os egocêntricos ou incuravelmente narcisistas podem se
postar diante do fato artístico e decidir: é ou não arte, é ou não uma realização
que se completou. 10 A linguagem da ciência, em seus comunicados, é cheia de
“parece-nos”, “supomos”. Porque (sic) no terreno movediço das artes, sofismável,
mutável, indefinível, as afirmativas de valores seriam “a palavra de Deus na voz
da História”? repetindo o nosso amável imperador amante do poeta, D. Pedro II ?
Não faz muito tempo, em um programa de TV, um jovem se defrontou comigo e,
cuidando me agredir, sentenciou: – Na minha casa, jamais entrará um receptor de
televisão. Redargui: – E ela, a televisão, vai se incomodar muito com isso ? 20 O
piche, nada mais. Estou fazendo essas considerações porque, com freqüência, me
cobram o piche pelo piche.
15
Outra constatação é o emprego bem apropriado do termo “sentenciar”, usado uma vez
aqui e duas vezes durante o desenrolar do depoimento todo do Inquérito 333 do
Projeto NURC/SP:
Doc. e problemas co L1 mo o Sílvio Santos vocês entendem?
(9)
146
“eu acho que a nossa televisão está: : é muito difícil prever a... o fuTUro
dela... ela está se construindo... na medida que o país está se construindo...”
(Inquérito, 1. 938/940)
Vale a pena transcrever aqui o pensamento de PARISI (1977: 181-182) sobre o ritmo
autônomo e heterônomo respectivamente nas produções escritas e faladas: “O ritmo
do comunicar é simplesmente o ritmo das produções da unidade de comunicação, (...)
o ritmo pode ser heterônomo, isto é, imposto de fora, ou autônomo, isto é, um
critério de quem comunica. Naturalmente, na fala, a velocidade com que se produzem
as mensagens é imposta de fora, isto é, pela presença do ouvinte, ao qual é
147
“Não faz muito tempo, em um programa de TV, um jovem se defrontou comigo e,
cuidando me agredir, sentenciou:” (L. 15/16)
148
c) a parcimônia no emprego do “que” (quatro vezes, enquanto no texto falado foi de
onze) e do “e” (quatro vezes, enquanto no texto falado foi de oito); d) a
introdução do discurso direto com “sentenciou” como verbo dicendi. Na verdade,
“sentenciar” é semanticamente mais complexo e comunicativamente mais
caracterizador do que simplesmente dizer, que é de uso recorrente e sistemático na
introdução das citações de fala que ocorrem no discursos falados. Rastreando o
próprio inquérito sob enfoque, constatamos que o verbo dizer é empregado vinte e
oito vezes (90%) enquanto, os verbos “responder”, “falar” e “testemunhar”, apenas
uma vez.
151
OS PROCESSOS DE REPRESENTAÇÃO DA IMAGEM PÚBLICA NAS ENTREVISTAS
Leonor Lopes Fávero Maria Lúcia da Cunha Victório de Oliveira Andrade
156
traços permitem elaborar um horizonte de expectativas que condicionam o evento.
Entrevistador e entrevistado têm a tarefa de informar e convencer o público.
Desempenham, portanto, um duplo papel na interação: são cúmplices, no que diz
respeito à comunicação, e oponentes, quanto à conquista desse mesmo público. Dessa
forma, as entrevistas ora tendem para o pólo do contrato ora para o da polêmica.
No primeiro caso, os interlocutores buscam causar boa impressão na audiência, para
isso tentam respeitar a fala do outro, costumam ceder o turno, evitam traços que
demonstrem agressividade. Já no estilo polêmico, a interação pode apresentar
inclusive a desqualificação de um dos interlocutores. Segundo Barros, ambos os
estilos instauram-se a partir de procedimentos que visam a um mesmo objetivo:
“persuadir o público e com ele estabelecer uma relação interacional unilateral”
(p. 255-256). Em quaisquer tipos de entrevista, contratual ou polêmica,
entrevistador e entrevistado buscam somente interagir com o destinatário desse
jogo interacional que é a audiência, por isso os laços que os envolve são
considerados frouxos, sejam eles cúmplices ou oponentes. Vejam-se os exemplos
colocados a seguir, em que o entrevistado revela claramente sua preocupação com o
público e não tanto com o entrevistador:
(1) L1: eu fiz um “show” lá no teatro Quitandinha... que foi...ótimo... aliás eu
vou fazer uma apresentação... no Rio de Janeiro... não falei isso ainda... vou
falar... no Metropolitan... casa do Ricardo Amaral... vou fazer dia oito de
dezembro... vou fazer uma apresentação lá com o meu espetáculo... inédito no Rio
de Janeiro... ... O Gordo em Concerto... já aproveitei... já encaixei L2: tá
certo... ((risos)) (Programa Jô Soares Onze e Meia, com Zezé de Camargo e Luciano,
Corpus, p. 13)
157
(2) L2: ((...)) nós teremos que buscar formas de defesa... o Itamaraty tem o seu
ramo cultural... [ L4: é muito ruim... né? [ L2: eu não... eu não... [ L4 L2:
jornalista... [ L4: é... o senhor não pode... [ L2: ((risos)) [ L4: superego...
((risos)) L2: o jornalista Luís Nassif tem a sua liberdade de julgar um ramo da
administração de uma maneira muito direta... eu não sei... eu preciso ter
contatos... eu preciso aprender... não é? (Programa Entrevista Coletiva, com
Francisco Weffort, Corpus, p.99) eu sou o seu Luís Nassif de julgar um ramo da
administração... esse esquema de ( )... [ essa é a liberdade que tem o
159
Isso equivale a dizer que essa situação única não é estabelecida previamente, mas
é algo que se constrói a partir da negociação entre os interlocutores e que
depende diretamente das competências e intenções de cada um deles, bem como do
modo como essa atividade se instaura e se desenvolve no intercurso conversacional.
As entrevistas pertencentes ao material do Projeto NURC/SP permitem um bom
trabalho relativo às especificidades do texto oral; entretanto, não contêm, em
suas transcrições, os aspectos referentes aos gestos, visto que as gravações foram
feitas apenas em áudio. Assim, a dimensão abrangida pelo olhar, a interferência
que esse aspecto poderia executar no texto lingüístico e as supostas conseqüências
para a situação interacional somente serão trabalhadas no material relativo às
entrevistas de televisão, cuja transcrição menciona alguns aspectos referentes aos
gestos e ao olhar, significativos para a atividade conversacional. O estudo da
gestualidade é impulsionado tanto pela desvalorização de sua função social, já que
a verbalização é dominante, como pela possibilidade prática de sua extensão,
através dos meios de comunicação visual. Entretanto, cabe lembrar que os gestos
são sempre expressivos, constituem uma linguagem original, universal e verdadeira.
Elemento básico nos processo de comunicação, o gesto é uma das primeiras
expressões de sentimento que a natureza deu ao homem e a expressividade é a sua
função primordial: “fala-se melhor aos olhos do que aos ouvidos” (Rousseau). Na
verdade, um gesto dirige-se sempre a um outro (real ou maginário), revelando uma
situação de interlocução que não é redutível à comunicação, mas o significado de
um gesto não depende da intenção e o que se descreve não é tanto o gesto como o
contexto. Cada gesto é sempre a cena silenciosa que integra a atividade verbal.
Para Jean-Loup Rivière (1987), “é no silêncio e no não-sentido que o gesto
propicia aquilo que a palavra cumpre”. Neste sentido, pode-se afirmar que o gesto
tenta restabelecer um elo que a linguagem rompeu. Veja-se o exemplo a seguir:
160
(3) L2: vou mostrar a roupa pra vocês... posso fazer um desfile pequeno pra
mostrar.... [ L1: L2: L1: L2: eu sempre faço alguma coisa aqui... né? L1:
sempre... várias... ((Luís Fernando desfila o modelo; há risos e aplausos da
platéia)) (Programa Jô Onze e Meia – Luiz Fernando Guimarães, p. 2) (4) L2: É... o
retrato do Brasil... é o retrato... daquele pessoal que tava reclamando ali... na
saída do presidente da república do Copacabana Palace quando lá estava o
presidente da Argentina Menem... o presidente... vendo a polícia baixar o pau nos
caras que estavam lá... e sorri... PÔ onde é que nós estamos? o pau dele só na
nossa meu Deus do CÉU ((batidas na mesa))... o que é isso?... ((batidas na mesa))
o aposentado... que vai ganhar agora?... ENTÃO... (Programa Juca Kfouri, com
Sílvio Luiz, Corpus, p. 160) deve... [ pode ter um fundo musical pra mim aí...
[ música... por favor...
L2:
163
(11) L2: L1: L2: L1: L2: L1: L2: você é conselheiro olha aqui... ((impaciência))
você veio aqui pra ser entrevistado ou pra me entrevistar?... não... eu não estou
te entrevistando ahn:: eu estou... realmente... sabe?... ahn:: hoje é dia... dia
de aniversário de Fausto... Fausto Silva faz aniversário... ele faz aniversário
hoje? faz (Programa Juca Kfouri, com Sílvio Luiz, Corpus, p.162)
(15) Inf: é o que eu fa/ o que eu falei... agó/ na gravação não eu falei fora da
gravação pra vocês... o que::: o brasileiro tem um mal muito grande ele gosta de
imitar... o que eu falei... é atingir diretamente ao o público... a:: ao qual ela
foi destinada... o que eu falei... pra atingir realmente o público... ela precisa
ter eh:: (SP DID 161: 265-268; 324-325; 492-493; p. 44-49)
Inf: Inf:
166
Outro ponto a destacar em relação aos materiais do NURC é que, de modo geral (cf.
DID 242, 250, entre outros), após fazer o bloco de perguntas iniciais, o
entrevistador se limita a participar da interação apenas emitindo marcas de
assentimento ou monitoração, tais como: ah é, certo, uhn uhn.
(16) Doc. certo (17) Doc. uhn uhn (18) Doc. ahn ahn (SP DID 161: 115, 221, 400, p.
40, 43 e 47)
Nesse exemplo, o locutor talvez para não parecer indelicado hesita, escolhe as
palavras (ahn... ahn...), emprega o futuro do pretérito (gostaria). Entretanto,
quando o jornalista percebe que para obter uma certa resposta, precisará ser de
certa forma indelicada, usa a estratégia de anunciar o que vai fazer, deixando
claro ao interlocutor qual é o seu papel:
(21) L4 é... dando uma de advogado do diabo aqui... ministro... em relação ao
papel do intelectual... em geral... a imagem que se tem é o seguinte... quando um
intelectual tá à frente de um empreendimento... tem-se clareza nos conceitos e nas
teses... mas tem pouco comprometimento com resultdos e pouca experiência com a
gerência... qual a garantia.... quer dizer... qual a estrutura que o senhor vai
montar... pra que realmente os conceitos e as idéias se transformem em
resultados... efetivos... (Programa Entrevista Coletiva, com Francisco Weffort,
Corpus, p. 102-103
172
Na entrevista com Débora Bloch, ao formular uma pergunta, Jô Soares reveste-a de
elementos lingüísticos que amenizam a interação (sem querer ser indiscreto),
resguardando sua face e possibilitando a organização de um contexto em que a
distensão é matiz principal:
(23) L1 L2 L1 L2 L1 L2 L1 L2 eu sou uma mãe de família... [ L1 ué... e mãe de
família não toma café não? ((risos)) e depois... nesse jantar já... já rolou um
romance... já começou um clima assim... gostoso? dia seguinte... dia seguinte já
teve almoço... já teve almoço... ((risos)) mas Débora... sem querer ser
indiscreto... no dia seguinte já teve café da manhã? ((risos)) ahn... ah... cê tá
sendo muito indiscreto... eu vou ficar com vergonha... [ então teve ... ((risos))
Nas entrevistas do NURC/SP que constituem corpus deste trabalho (DID161, 242 e
250), a Documentadora as inicia sempre com uma pergunta que implica resposta
pessoal, invasão da privacidade do outro, atenuando-a com o emprego do futuro do
pretérito.
(24) Doc. C.A. ... você estava dizendo pra gente sobre umas representações
teatrais... daria para você contar alguma coisa assim sobre essas representações
que você fez... (SP DID 161: 1-3, p. 38) (25) Doc. professor R. ... nós
gostaríamos primeiramente que o senhor nos dissesse assim... tudo o que O senhor
souber.... (SP DID 250: 1-3, p. 133)
173
(26) Doc. bem dona H. eu gostaria de saber... éh... como a senhora entrou pra
esco::la e com que ida::de Por exemplo? (SP DID 242: 1-2, p. 148)
177
LÍNGUA FALADA: USO E NORMA
(1)
Cf. Goffman (1998: 13) “O falante está conversando com alguém do seu próprio sexo
ou do sexo oposto, subordinado ou superior, com um ouvinte ou com muitos, alguém
ali mesmo ou ao telefone; está lendo um script ou falando espontaneamente; a
ocasião é formal ou informal, de rotina ou de emergência? Note-se que não são os
atributos da estrutura social que estão sendo levados em conta aqui, tais como
idade e sexo, mas sim os valores agregados a estes atributos na forma que são
reconhecidos na situação imediata enquanto ela 179 acontece.”
tantes, quando constituiriam casos de norma, ou variáveis, quando seriam apenas
usos. Isto é, partimos do pressuposto de que certas expressões selecionadas, mas
presentes em baixa freqüência (menos de 50% do total realizado) no texto falado,
caracterizam usos; outras, selecionadas e com freqüência alta (50% ou mais do
total realizado) no texto falado caracterizam a norma lingüística.
181
Hjemslev (op. cit. : 87) exprimiu a sua compreensão sobre o funcionamento da
língua, em termos da interrelação dos fenômenos ato/ uso/norma frente ao esquema
(sistema) lingüístico do seguinte modo: Norma Esquema Uso Ato
NORMA
é possível a representação:
NORMA
SISTEMA
(3)
“Se a norma contém tudo o que é fato de realização tradicional, o sistema contém
as oposições funcionais: tudo aquilo que na técnica lingüística é distintivo e
que, se fosse diferente, teria (ou seria) uma outra função de língua, ou não teria
(nem seria) nenhuma função na língua respectiva, podendo, eventualmente, tornar-se
irreconhecível (ou incompreensível). Portanto, todos os traços que assinalamos
como distintivos pertencem ao sistema.” (op. cit.) “A norma é, em certo sentido,
mais ampla do que o sistema: com efeito ela encerra também traços não funcionais,
enquanto o sistema contém só os traços distintivos necessários para que uma
unidade da língua (quer no plano da expressão, quer no do conteúdo) não se
confunda com outra.” (op. cit.)
(4)
183
Para exemplificar, poderíamos recorrer ao caso em que, no português, o par
poça(ô)-poças(ó) perde a distintividade da oposição vocálica fechada/aberta para o
singular/plural, respectivamente, em favor da pronúncia aberta tanto para o
singular quanto para o plural, como se ouve com freqüência5 . Outros exemplos
poderiam ser citados, como a fixação do masculino para a palavra fim, antes do
gênero feminino, e do feminino para a palavra senhora (com ó, no Brasil). Ao acaso
seria possível arrolar não somente exemplos nos campos da fonologia e morfologia
mas também nos da sintaxe e semântica. No entanto, preferimos explorar dados
presentes nos diálogos do Projeto NURC, que constituem nosso corpus. Embora a
mudança seja um fato normal na língua6 , não deixa de incomodar os falantes de uma
determinada sincronia. Surge, assim, o sentimento de que a língua está entrando em
processo de decadência, e aparecem manuais em que se aconselha como “falar
corretamente”7. Mas, como diz Aitchison (1993:11), “a mudança não afeta a
linguagem em termos de progresso ou decadência”, o que ocorre é simplesmente um
jogo de forças opostas, um fluxo conservador vs. outro inovador, que co-ocorrem e,
assim, permitem à língua manter um ‘equilíbrio entre o avanço e o retrocesso’.” A
comprovação desse movimento pode-se dar por meio do cotejo de textos de diversas
épocas e, também, como é o nosso objetivo neste artigo, por meio do confronto
entre uso e norma, na língua falada. Esses são os dois métodos descritos por
Aitchison (op. cit.:23-36) para explicar como os pesquisadores recolhem pistas com
o fito de comprovar a mudança lingüística. Falar sobre essa variação é sempre um
trabalho complexo porque o analista tem de estar atento para uma coleção de
fatores que interferem nas escolhas dos falantes. Nossa tarefa aqui, contudo, não
é tão incômoda, pois temos o objetivo de, a partir de um corpus em que as
variáveis sociolingüísticas estão controladas, e as sócio-interacionais observadas
e
(5) (6)
Pelo menos na fala urbana culta da cidade de São Paulo. “Não pode haver nunca um
momento de verdadeira quietude na linguagem, como tampouco no pensamento dos
homens, sempre em movimento. Por natureza, está em contínuo processo de
desenvolvimento.” Humbold, W. Apud Jean Aitchison (1993: 9). E, especialmente,
escrever.
(7)
184
consideradas, apresentar a existência da variação na fala culta. Isto é, nosso
intento é mostrar que escolhas, em certos casos, os falantes cultos fazem quando
põem a língua em funcionamento. É claro que se o nosso corpus está delimitado, é
um diálogo gravado com o conhecimento dos interactantes, e a situação de
comunicação está previamente delineada, os falantes procurarão adaptar-se a ela.
Mesmo assim, poderíamos encontrar, dentro de cada diálogo, ou entre um diálogo e
outro, maior ou menor formalidade. Preti (1997:21) explicou que mesmo num diálogo
em que os falantes assumiram uma postura mais formal, em decorrência de fatores
sócio-interacionais, os locutores não apresentaram, em cem por cento dos casos,
escolhas sintáticas coincidentes com a a norma explícita. Desse modo, o locutor
n.2 (L2) de um dos diálogos entre dois informantes, o D2-255, tanto usou:
“L2 (...) então a gente fica junto assiste a esse filme... mas em termos de
assim...” (linhas 498-99)
quanto:
“L2 (...) então a gente procura ir... assistir assim os filmes que a gente
considera melhor...” (linhas 39-40)
185
A publicação anterior do Projeto NURC/SP9 traz quatro artigos em que se discute o
problema da norma culta e se tenta conceituá-la e caracterizá-la. Há entre todos
esses textos um ponto em comum: a afirmação de que os falantes cultos tanto
apresentam realizações lingüísticas em acordo quanto com em desacordo com a norma
explícita. Vejamos, pelo menos em dois desses artigos, o que dizem os autores.
Afirma Preti (1997:26):
“Em síntese, o que o corpus do Projeto NURC/SP tem-nos mostrado (e isso já na
década de 70) é que os falantes cultos, por influência de transformações sociais
contemporâneas a que aludimos antes (fundamentalmente, o processo de
democratização da cultura urbana), o uso lingüístico comum (principalmente, a ação
da norma empregada pela mídia), além de problemas tipicamente interacionais,
utilizam praticamente o mesmo discurso dos falantes urbanos comuns, de
escolaridade média, até em gravações conscientes, e, portanto, de menor
espontaneidade.”
A conclusão a que Barros (1997:42) chega sobre o tema vai nesse mesmo sentido,
vejamos:
“O último aspecto a ser apontado sobre a imagem que os falantes do Projeto
constroem da norma é o de que muitos usos que não são aceitos pelas gramáticas
aparecem nas falas examinadas e não são corrigidos ou, ao contrário, ‘bons usos’,
segundo a gramática, são ‘consertados’. Algumas hipóteses explicativas podem ser
apresentadas para o primeiro caso: esses usos estão dentro das possibilidades da
norma culta na fala, ainda que não estejam aceitos na norma explícita da escrita;
esses usos assinalam, em sincronia, que mudanças lingüísticas estão ocorrendo, tal
como ensinam Jakobson e Labov; os erros são idiossincrasias do falantes. Por sua
vez, as correções de ‘bons usos gramaticais’, do segundo caso, entram no rol da
hipercorreções e mostram, uma vez mais, a preocupação do usuário em ‘falar bem’.”
Essa amostra, recortada do pensamento dos autores citados, permite afirmar que, é
claro, ao tempo em que há grande material lingüístico
(9)
186
na fala do usuário culto perfeitamente de acordo com a norma explícita10 , há,
também, uma porção que dela diverge. Passaremos a examinar, então, certas
expressões que ora aparecem de um modo, ora de outro, na fala de pessoas cultas,
para verificar qual delas pode configurar uma norma e qual configura um uso. Para
tanto, faremos por amostragem um levantamento estatístico das ocorrências.
Entendemos que certa realização só poderá ser considerada como caso de norma se
atingir, pelo menos, 50% de ocorrências; aquela que estiver abaixo desse
percentual configurará o uso. Para análise, escolhemos algumas expressões que vêm
sendo abordadas na literatura lingüística. São elas: emprego das expressões a
gente e nós; emprego do verbo chamar com regência direta e indireta, na acepção de
“dar/ter nome”; emprego do verbo ir, acompanhado das preposições a, para e em, ou
com preposição e adjunto adverbial implícitos, na acepção de “movimentar-se de um
lugar para outro”; emprego do verbo chegar, acompanhado das preposições a e em nas
acepções de “ir ao ponto de” e “atingir o lugar visado”; emprego da expressão
através de e do vocábulo detalhe; e, finalmente, emprego do pronome sujeito
(ele/ela) na posição de objeto.
(10) (11)
Para conceito de norma na fala urbana culta, cf. Barros (op. cit.) e Brait (1997).
A distribuição de cada informante por faixa etária é a seguinte: D2 343: Locutor 1
– homem, 26 anos, solteiro, engenheiro, paulistano, pais paulistanos; Locutor 2 –
mulher, 25 anos, psicóloga, solteira, paulistana, pais paulistanos. D2 255:
Locutor 1 – homem, 37 anos, casado, professor, paulistano, pais paulistanos;
Locutor 2 – ho-
187
car que ao lado da atitude lingüística conservadora dos falantes mais idosos, o
que é fartamente comprovado nas pesquisas, há também uma atitude, em certos casos,
até inovadora quando esses adotam usos lingüísticos que, em tese, seriam dos
falantes mais jovens. Primeiramente, vejamos em que medida a expressão a gente é
empregada pelos falantes, nos diálogos escolhidos para análise. De cada inquérito,
traremos apenas um exemplo de cada caso, dada a alta freqüência das expressões
analisadas: (01)
120 mão-de-obra barata... então isso CHAma... um fluxo de gente para São Paulo...
que muita gente quer poDAR... para não crescer mais... ((tossiu)) que a gente não
importa ricaço essas coisas né? ricaço vai para o Rio sei lá qualquer outro lugar
certo? ... então ... (D2 343, linhas 120-24)
(02)
L2 20 agora de:: uniforme de escola era saia azul mari::nho blusa branca sapato
preto... costume a gente andava de costume... não é? (D2 396, linhas 18-20)
(03)
passagem ... ahn eu quero crer que uma viagem São Paulo 65 e Manaus ... ou São
Paulo a Belém ... a gente costuma ser
188
MUIto bem atendido e regiamente tratado ...de maneira assim ... toda especial ...
em termos:: particulares eu (D2 255, linhas 64-7)
1525 surgir alguma coisa que dê colapso total... vê começa a (D2 343, linhas 1522-
25)
(05)
L2 eu normalmente em fim de semana ... ahn vou para o clube ... nós temos aí um
Clube ... Pinheiros aqui em São Paulo ... que nós somos sócios entende? ... então
eu geralmente jogo voleibol ... no sábado de manhã no (D2 255, linhas 367-70)
370
(06)
1295 segui para Lindóia... e::... e nós na na na nossa família (não sei:: eu
que)apanhei essa gripe quando vim a São Paulo...mas eu eu vim estive um ou dois
dias em São Paulo só apanhei fui não... (D2 396, linhas 1295-98)
O levantamento das ocorrências das duas expressões, nós e a gente, mostra haver
equilíbrio de emprego entre ambas, com vantagem para a atualização de a gente.
Esse é um dado significativo no âmbito da linguagem culta, ainda mais se
consideramos ser o D2 255 um dos mais formais dos diálogos transcritos pelo
Projeto NURC/SP, e o D2 396, um diálogo ocorrido entre informantes idosos, que, em
princípio, seriam resistentes a inovações. Vejamos o que diz o gráfico:
189
Gráfico 1
100% 80% 60% 40% 20% 0% D2 343 D2 222 D2 396 T OT AL A GENT E NÓS
Não há como negar, tendo em vista os percentuais, em torno de 50% para ambos os
casos, que a gente é uma expressão normal na fala culta, adotada pelos falantes de
todas as três faixas etárias. Não se pode dizer, portanto, que há preferência pelo
pronome pessoal nós, em lugar da expressão substantiva a gente, no discurso dos
falantes do Projeto NURC/SP; pode-se dizer que as duas expressões fazem parte da
norma. No campo da sintaxe, verificaremos alguns casos de regência verbal, como as
dos verbos chamar e ir. O verbo chamar, na acepção de “dar ou pôr a (alguém) o
nome de” deve, segundo a recomendação da norma explícita, realizar-se por meio,
por exemplo, da seguinte estrutura: verbo + objeto direto + (predicativo). No
Brasil, porém, há estruturas paralelas a essa em que aparece a preposição de entre
o verbo e o objeto direto, ou entre o objeto e o predicativo, ficando, assim, as
estruturas: verbo + de + objeto direto ou verbo + objeto direto + de +
predicativo. Em princípio, a primeira estrutura deveria ser própria do discurso
culto, oral ou escrito e, assim, constituir a norma; as segundas seriam
características do discurso popular e, por isso, poderiam constituir apenas
possíveis usos brasileiros dessa sintaxe. O que observamos, entretanto, por
amostragem, é estarem as três estruturas presentes na fala culta, embora a
primeira seja predominante. No corpus analisado, o verbo chamar foi enunciado em
várias acepções, por exemplo: “convocar”, “atrair”, “invocar o nome de”, “avocar”,
“ter o nome de” e “dar o nome a”, das quais selecionamos apenas as duas últimas.
Os excertos, a seguir transcritos, exemplificam o emprego de chamar a partir da
estrutura.
190
I. verbo + de + objeto: (07)
L1 nós estamos com o metrô muito::... sei lá... a gente está acostumado já de
ouvir falar de metrô porque está muito mas... não não temos metrô ainda metrô tem
que ser uma malha... certo? nós temos uma linha... coitadinha não sei se dá para
chamar ela de metrô... L2 ((riu)) é ((tosse)) (D2 343, linhas 396-400)
400
(08)
345 até pouco tempo atrás quando eu mudei para Vale do Cerilu ... isto porque eu
tenho um filho ... que nós o:: chamamos de Ceri e o outro de Lu ... como eu sou
geógrafo né? (D2 255, linhas 344-66)
(9)
315 um bocadinho... (mais) ((buzina))... mais expansivo lá vinha algum... naquele
tempo nós chamávamos de macamBÉ... macambé era um s/ era um nós dizíamos que::...
ah s/ s/ Portugal exportava para o Brasil duas coisas... bacalhau... e macambé...
macambé era a (D2 396, linhas 315-19)
Os dados mostram que o verbo chamar seguido de objeto preposicionado não é norma
na fala culta, por ter ficado aquém de 50% da freqüência, conforme se pode
comprovar no gráfico. Mesmo assim, temos de afirmar que a freqüência da estrutura
é significativa, embora configure apenas um uso. A seguir, apresentamos alguns
exemplos em que há as seguintes estruturas: II. verbo + objeto (10)
L1 L2 genial né? da sociedade entende? então ... eu ahn ... assisti filmes
191
540
dele muito bons entende? Férias de Monsieur Hullot e:: o Trânsito Traffic né? ...
que eles chamavam ... [ L1 L2 Meu Tio Mon Oncle né? Meu Tio ... enfim gosto então
de comédias assim BOAS entende? que apresente uma certa (D255, linhas 540-44)
(11)
40 L2 L1 jornalista::... jornalista:: o apelido dele que era doutor... [ doutor
Guandê...o apelido dele... isto era o Alexandre Marcondes Machado... que era um
jornalista... dO Pirralho neste tempo existia aqui um jornaleco chamado
Pirralho... entre outros jornais... então ESte usava isto mas o coMUM::... não (D2
396, linhas 40-6)
45
2005
192
Gráfico 2
100% 80% 60% 40% 20% 0% D2 343 D2 255 D2 396 TOT TOTAL AL
V + DE + Pred. V + DE + OD V + OD
(12)
193
do projeto NURC/SP se pode confirmar ser tal emprego uso ou, ainda, norma. Em
primeiro lugar, analisemos o verbo ir, apenas na acepção de “movimentar-se de um
lugar para outro”. I. Ir a
(13) linha artística séria de cinema entende? e assistimos uma ... média aí de
uns:: três por mês entende? ( ) geralmente o dia que a gente vai ao cinema é
sexta-feira à noite ...então a gente procura ir ... assistir assim os filmes que
440 a gente considera melhor teatro MEnos que cinema ... (D2 255, linhas 436-40)
(14)
Doc. mas::... o senhor não ia também a Santos 1775 L1 assim à:: pra::ia? [ a
Santos (viemos) uma umas duas vezes... algumas vezes eu fui a Santos (D2 396,
linhas 1774-78)
[
é quando eu pego o carro... e:: também é horrível o aspecto... (parece) assim
montoeira de concreto... sem nenhum aspecto humano certo? Os (D2 343, linhas 20-
33)
(16)
L2 eu normalmente em fim de semana ... ahn vou para o clube ... nós temos aí um
Clube ... Pinheiros aqui em São Paulo ... que nós somos sócios entende? ... então
eu
194
370
(17)
640 todos se conheciam... depois de quarenta não agora ( ) a gente vai para a
cidade não conhece mais ninguém:: em absoluto... porque::: foi TANta gente vindo
de fora tanto... tantos advenas... L2 estran:: estrangeiros não é? (D2 396, linhas
640-44)
III. Ir em (18)
ele já sabe o caminhozinho saidazinhas especiais ou:: ... não vai de carro até
lá... vai de metrô e... anda três 480 quarteirões... quer dizer eu não vou na
cidade de carro... (D2 343, linhas 474-80)
(19)
Doc. uhn uhn 775 L2 essas ( ) nós combinávamos de ir na rua Santa Ifigênia...
tinha ( )... (D2 396, linhas 775-6) IV. Ir (com preposição e adjunto adverbial
implícitos)
(20)
L1 385 quando eu era noivo ... há dez onze anos atrás ... íamos ao teatro ...
QUAse que sistematicamente a ponto de às vezes optar pelo cinema ... por falta de
peças ... novas em cartaz né? ... mas depois com o:: nascimento dos filhos e com a
dificuldade em deixá-los ...ahn nós abrimos um:: espaço de tempo muito grande ...
sem realmente poder freqüentar teatro ... e isto acabou:: tirando o hábito embora
não tivesse tirado o gosto pelo teatro ... de maneira que:: hoje em dia
freqüentamos
390
195
assim ... com MUIta raridade sobretudo porque neste ... espaço de tempo ...
sobreveio a compra do sítio ... 395 e através dessa compra naturalmente uma outra
forma de motivação ... ahn e conseqüentemente vamos:: ... MUIto pouco embora::
tanto eu como minha esposa tenhamos assim uma grande admiração um grande gosto
pelo teatro ... o cinema:: ... ahn já acaba sendo uma (D2 255, linhas 384-399)
(21)
1765 Doc. ( )...lá em Santos... L1 L2 L1 1770 L2 L1 ( )vocês não foram... (D2 396,
linhas 1765-74) para Santos::... houve uma recepção um baile lá em Santos... você
não foi é Ana que foi... eu não fui foi Ana ( )... ( )... [ foi Ana... Ana
(Malaide) a Benedita minha cunhada foi também... [ foi e:: e Cassiano também...
( )... [ Cassiano é (o tal)
196
Gráfico 3
100% 80% 60% 40% 20% 0% TOT TOTAL D2 343 D2 255 D2 396 AL Sem prep./adj. EM A/PARA
(23)
de outra linha ... então neste aspecto ... a imprensa escrita já cheGOU a este
RAmo de sofisticação ... a este ideAL de sofisticação que pode fazer com que o
público 975 venha optar por este ou por aquele órgão ... dos papéis:: (D2 255,
linhas 972-75)
(24)
500 subdesenvolvido e diz-se também que ele está crescendo... se desenvolvendo...
parece que está saindo de uma... condição de subdesenvolvimento para chegar sei lá
numa de desenvolvido... okay?... uma:: um caminho (D2 343, linhas .500-03)
(25)
se funciona o:: ao mesmo nível sabe... o cara procura terapia ou digamos a
cida::de... procurar uma terapia porque chegou um ponto assim porque aí é:::...
215 L1 L2 não não não não é bem tribal né? (D2 343, linhas 212-16)
(13)
198
Na acepção (2), “atingir o lugar visado”, entre outros, temos os seguintes
exemplos: (26)
L2 410 L1 depois quando chegava em casa :: tirava fora porque:: [ (espera aí)...
( )... (D2 396, linhas 409-10)
(27)
perto de Ribeirão Preto... e ele dedicou-se MUIto... cansou exauriu-se...então
embarcou para Ribeirão Preto... com a mulher... chegou em Ribeirão chegou em
Cresciuma... e ele caiu com a gripe ele e a mulher... 1385 os dois... e ele:: era
um sujeito forte(bonito) forte inteligente... (e gastador)... RIco... e ele não
queria tomar remédio... não queria nem por nada tomar remédio “EU (D2 396, linhas
1381-87)
199
Gráfico 4 (acepção 1)
100% 80% 60% 40% 20% 0% D2 343 D2 255 D2 396
Gráfico 5 (acepção 2)
100% 80% 60% 40% 20% 0% TOT TOTAL AL D2 343 D2 255 D2 396
TOTAL TOT AL
Prep. EM Prep. A
(29)
L2 eu:: ... e minha mulher nós costumamos ir ao cinema ... assim umas duas ou três
vezes por mês né? a gente escolhe assim ... os filmes melhores:: ... se não ...
não tanto por exemplo os que têm maior propaganda como é o caso do Exorcista agora
... até pelo contrário esse tipo de propaganda assim ... eu:: ... para eu assistir
um filme desse tipo como o Exorcista mesmo é preciso que:: (D2 255, linhas 417-23)
420
(30)
410 L1 L2 (espera aí)...( )... tantas horas ali de aulas... não é? vinha um
lente... dava::...ah ah::... dava uma matéria (por exemplo) História vinha outro
né?...
415
[ Doc. uhn uhn L2 Fí::sica e a gente ficava ali:: assistindo tomando apontamentos
não é?((riso)) L1 apertada (na cadeira)... (D2 396, linhas 410-17)
201
Percentualmente, o que se observou nos inquéritos analisados foi o seguinte:
Gráfico 6
100% V + OD 50% 0% D2 343 D2 396 V + A + OI
A representação gráfica das ocorrências deixa claro que tanto os falantes jovens
quanto os idosos realizam sem problemas a estrutura direta do verbo. No D2 343, os
falantes empregaram apenas duas vezes esse verbo, cada uma de modo diferente, uma
direta e uma indireta, o que, mesmo assim, não infirma a nossa idéia de estar
normalizada na fala culta a estrutura direta. Nesse caso, também, vemos que as
duas estruturas existem igualmente, o que aponta para o fato de, nem sempre, a
mudança implicar apagamento da estrutura antiga; simplesmente, uma estrutura nova
ganha maior espaço no paradigma (no âmbito da fala culta). A estrutura antes
aceita como norma passa a integrar o uso lingüístico. Em relação ao léxico, entre
tantas possibilidades, escolhemos, por questão de espaço, apenas dois casos: o
emprego de através de e detalhes, ambas ainda objeto de reclamações por quem exige
o “bom uso” do português14 . A expressão através de, no discurso da norma
prescritiva, ainda aparece com restrições para o emprego, como nos exemplos
abaixo, no sentido de por meio de ou pelo, sendo a recomendação a de que se
selecione uma dessas expressões em vez daquela.
(14)
202
TOTAL TOT AL
D2 255
(40)
L2 1360 mais fácil mostrar::... sabe não podia mostrar::... oralmente::... a coisa
o que estava sentindo mostrava através do corpo... e o hoje o isolamento é tal que
a pessoa ...sabe esquiza... é é é mais sério você esquizar do que você (D2 343,
linhas 135-63)
(41)
ahn ... única e exclusivamente é dar aula ... então ele pediu ... que:: ... eu
preparasse uma aula para ... apresentar aos passageiros através do ... do
microfone de:: ... de bordo ... ahn numa grande altitude ... e (D2 255, linhas
121-25)
É curioso observar que mesmo sendo essa uma expressão muito freqüente no português
do Brasil, não é registrada no dicionário de usos nos sentidos acima comentados.
Ferreira (1986) anota as seguintes acepções: “Através de. 1. De um para outro lado
de. (...) 2. Por entre. (...) 3. No decurso de. (...)”, deixando de arrolar
aqueles sentidos presentes, por exemplo, em todos os diálogos do corpus ora
analisado. Segundo a prescrição tradicional, uma das restrições ao emprego de
através de em substituição a pelo/pela é o fato de não se admitir que o agente da
passiva seja introduzido por essa expressão15. A palavra detalhe é também, de
certo modo, rejeitada no discurso da tradição gramatical. Ferreira (op. cit.) traz
o verbete sem apresentarlhe restrições; outros dicionaristas, todavia, registram o
baixo prestígio por que passou a palavra em certa época. Aulete (1968), por
exemplo diz: “DETALHE, s. m. [gal. condenado pelos puristas mas de grande
vulgaridade na língua] Ação ou efeito de detalhar, // Minudência, circunstância
muito especial, particularidade, pormenor. // Do fr. Détail”. Também Silva (1987)
anota a restrição à palavra: “DETALHE, s.m. Gal. Pormenor, minúcia.” Nos diálogos,
o falante selecionou, para em(15)
203
pregar o sentido “pormenores, minúcias”, a palavra detalhe, não restando dúvida de
que é norma empregá-la, nos contextos em que se exigem tais sentidos. Vejamos dois
exemplos desse emprego: (42)
1050 publicações realmente impressas ... até algumas com alguma riqueza assim de
detalhes ... mas o:: o ciclo colegial é um ciclo marcado assim por uma rapidez
muito (D2 255, linhas 1050-52)
(43)
Doc. o senhor lembra de algum detalhe assim:: de terno que o senhor gosta::(va)
muito? [ L1 bom... nós tivemos aqui entre outros::... figurinistas ou:: ou
alfaiates... o (Canicceli) e o Vieira Pinto... eram especialistas e::... então::
digamos( )... aI já existia um (D2 396, linhas 909-13)
910
204
esse processo né? porque às vezes eu vejo assim pontes enormes que:: se gastam...
fábulas para construí-la... desde o projeto até::... a entrega da obra... mas às
vezes
590
400
1270
(47)
L2 por exemplo... o que fizeram com o Reich você conhece ele Wilhelm Reich que
foi:: pre::so nos Estados Unidos e tal... mas as experiências que eles fizeram...
ele dizia que a caixa funcionava... só que... nas bases da coisa (D2 343, linhas
1636-39)
No D2 255, por sete vezes os falantes escolheram construir a frase com o pronome
oblíquo na posição do objeto, quando apenas uma vez
205
com pronome reto. Note-se, ainda, que no caso dos exemplos 46 e 48 a estrutura
sintática apresenta-se com o verbo deixar no infinitivo e poderia ser interpretada
como uma oração reduzida de infinitivo, que, em nível profundo, equivaleria a “
não deixar que ele se repita” e a “não deixaram que ele comprasse”,
respectivamente, na qual ele é o sujeito da oração. Os exemplos, porém, são
pertinentes ao nosso estudo tendo em vista a entonação dos falantes estar conforme
a nossa primeira interpretação, ou seja, verbo e complemento são enunciados de
modo tão solidário que até formam um vocábulo fonológico. Leia-se o exemplo: (48)
660 como Sílvio Santos por exemplo ... que hoje quase é DOno de um canal de
televisão ... só não é dono parece que à última hora não deixaram ele comprar um
canal de televisão ... mas ele no fim é MAIS do que dono porque ele domingo
inteiro ele tem um programa num (D2 255, linhas 660-64)
206
Considerações finais Os conceitos de uso/norma mostram-se úteis para a análise da
língua falada, por possibilitar que se expliquem certas opções lingüísticas do
usuário. Os casos de norma são aqueles de alta freqüência, selecionados
naturalmente pelos falantes, como: a. a expressão substantiva a gente, com valor
pronominal; b. o pronome nós, ao lado de a gente; c. o verbo assistir empregado
com regência indireta; d. o verbo chegar acompanhado da preposição em, na acepção
de “atingir o lugar visado”; e. a expressão através de e do vocábulo detalhes; f.
o verbo chamar na estrutura chamar + objeto direto; g. o verbo ir acompanhado das
preposições a e para. Os casos de uso foram observados em relação: a. ao verbo
assistir com regência indireta; b. ao verbo chamar nas estruturas chamar + de +
objeto e chamar + objeto + de + predicativo; c. do verbo chegar, na acepção de
“atingir o lugar visado”, acompanhado da preposição a; d. ao emprego do pronome
sujeito na posição de objeto. Esse recorte do discurso dos falantes cultos mostra
que, em certos pontos, a linguagem de jovens e idosos é coincidente quanto a
empregos considerados “inovadores”. Vimos aqui, por exemplo, que em relação ao uso
de nós/agente todos os falantes recorreram igualmente às duas formas, e em relação
ao verbo chamar a preferência dos idosos foi pela regência indireta, e, quanto a
chegar, a opção desses foi pelo emprego da preposição em para compor o adjunto
adverbial, o que, de certo modo, rompe a expectativa de que o idoso culto está
sempre mais próximo do considerado “bom uso”, e o jovem, distante. Uma pesquisa
maior sobre o tema poderá demonstrar, diacronicamente, como um uso é adotado,
generaliza-se, alcança a norma e provoca a mudança lingüística ao alterar o
sistema. Por enquanto, o nosso objetivo foi apenas o de demonstrar possível
diferenção entre uso e norma, em uma amostra da linguagem culta paulistana.
(1)
• Finais: (07)
“Expus-lhe minhas razões, a fim de que ele pudesse julgá-las.”
• Consecutivas, que exprimem não um fato real, mas uma finalidade ou meta:
(12) “Vou contratar um auxiliar, de modo que possamos dar contas dos pedidos.” 210
• Proporcionais, com valor de eventualidade:
(13) “À medida que você receber os pagamentos, liqüide as faturas em aberto.”
213
Tabela I Emprego do subjuntivo, de acordo com a modalidade de oração
S
Tipo de Oração 1. Adverbiais causais comparativas concessivas condicionais
conformativas consecutivas finais proporcionais temporais 2. Adjetivas 3.
Substantivas subjetivas objetivas diretas objetivas indiretas compl. nominais
predicativas apositivas 4. Independentes Com valor de dúvida Total 27 67 22 04 06
01 67 60 61 09 86 100 13 44 14 39 01 0 33 40 39 91 14 – 40 113 36 43 07 01 07 05
35 109 14 04 21 0 10 98 100 100 80 63 93 80 11 48 54 0 0 09 64 01 01 175 01 11 84
– – 20 37 07 20 89 100 52 46 07 05 43 173 15 05 196 100 2 182 N % N
NS
% Total
33 463
100 51
33
446
49
909
.
(02) (...) sou bastante independente... em matéria de religião... embora eu seja
uma pessoa de muita... crença (...) (NURC/SP, 242, L. 365-366)
O indicativo é empregado porque a oração se bem que ele já está caindo exprime
antes ressalva – valor próprio das adversativas – que concessão. Além disso, essa
oração representa uma digressão baseada no enunciado (Dascal e Katriel, 1982),
como tal entendido o enunciado digressivo que apresenta algum tipo de relação de
conteúdo (semântico ou pragmático) com o enunciado principal. Trata-se de um
acréscimo ou observação paralela, com a qual o informante procura demonstrar
conhecimento da situação, e não constitui um enunciado que esteja, relacionado com
a expressão da realidade.
216
1.1.2 – CONDICIONAIS: constroem-se com o subjuntivo as orações condicionais que
exprimem hipótese ou irrealidade:
(24) (...) se houver algum problema de incêndio só tem uma escada... né? (NURC/RJ,
84, L. 520-521) (25) (...) se você quiser que eu descreva essa casa... eu também
descrevo (...) (NURC/RJ, 233, L. 97-98)
Mira Mateus et alii (1983) consideram o fato expresso pela condicional de valor
real uma condição suficiente para que se realize o que é expresso na oração
principal. Trata-se, pois, da expressão da realidade: o fato de alguém ler Machado
de Assis é tido como algo que conduz, necessariamente, à percepção de que o Rio de
Janeiro não podia ser uma cidade muito quente. Ainda a esse respeito, Gili y Gaya
(1972) admite que as orações condicionais construídas com verbo no indicativo
exprimem, por sua vez, a condição real, enquanto aquelas que tem o verbo no
subjuntivo indicam a condição irreal2 .
(2)
217
Com orações condicionais de valor modal (introduzidas por sem/ sem que), é mais
freqüente o uso de infinitivo, pois nelas não é nítida a expressão da hipótese:
(27) (...) eu não podia fazer a primeira comunhão sem saber algo da doutrina (...)
(NURC/RJ, 261, L. 635-636)
1.1.3 – SUBSTANTIVAS: não foi feita a distinção entre as várias funções das
orações substantivas (com exceção das completivas nominais), pois o que determina
o emprego do subjuntivo não é o tipo da oração, mas o valor do verbo, nome ou
expressão que “pede” a subordinada. Com verbos, nomes e expressões que indicam
ordem, pedido, suposição, possibilidade, apreciação é de regra o emprego do
subjuntivo, uma vez que, nesse caso, não há expressão da realidade, mas da
suposição ou da possibilidade. As completivas nominais serão discutidas no item
1.2.2, já que nelas predominam (9% das ocorrências) construções infinitivas.
(28) (...) e é possível que ele esteja próximo do fim, né? (NURC/SSA, 100, L. 631-
632) (29) (...) ele me pediu que eu trocasse os títulos (...) (NURC/SP, 242, L.
95-96) (30) (...) então eu falei para minhas crianças que absolutamente não
acreditassem nessas histórias (...) (NURC/RJ, 84, L. 411-412)
218
Nos três exemplos anteriores, a presença do subjuntivo decorre de verbos e
locuções indicativas de possibilidade ou pedido. É preciso ressaltar, porém, que
além da presença desse traço semântico, o emprego do subjuntivo decorre, em
caráter subsidiário, da presença de um sujeito explícito (exemplos 08 e 09) ou
elíptico (exemplo 10, no qual o termo minhas crianças não figura na oração
subordinada. Nos casos de sujeito indeterminado, porém, predominam as ocorrências
de infinitivo (85% dos casos), como é ilustrado pelos três exemplos seguintes:
(31) (..) é realmente necessário fazer o metrô (...) (NURC/SP, 100, L. 315-316)
(32) (...) e acho até IMpoSSível uma pessoa... ... de uma inteligência... normal
duvidar... de uma força superior (...) (NURC/SP, 242, L. 367-368) (33) (...) mas
acho válido você botar a criança o mais cedo possível na escola (...)3 (NURC/SSA,
231, L. 302-303)
(3)
Você, no citado exemplo, não é empregado como pronome de tratamento, mas como
recurso para indeterminação do sujeito.
219
(35) (...) não vou dizer que ela [a Justiça do Trabalho] falha sempre (...)
(NURC/SP, 250, L. 91)
Nos dois exemplos citados, o emprego do subjuntivo é possível (“Não posso dizer
que eu tenha praticado esporte”; “Não vou dizer que ela falhe sempre”), mas os
informantes utilizam o indicativo como forma de assinalar que nas respectivas
asserções o valor de dúvida ou possibilidade acha-se atenuado ou diminuído. Por
isso mesmo, nos exemplos 14 e 15, não há como falar em expressão da realidade ou
da fatualidade oposta à dúvida ou a hipótese; aliás, só é possível falar em
expressão da realidade quando ocorre – junto do verbo no indicativo – modalizador
de certeza ou afirmação:
(34a) (...) não posso dizer propriamente que eu de fato pratiquei esporte (...)
(35a) (...) não vou dizer que ela realmente falha sempre (...)
220
(37) (...) quer dizer pelo menos pra nós é mais novo né? talvez num outro país
mais adiantado... não seja (...) (NURC/SP, 251, L. 326-328)
Essa é a única ocorrência desse tipo de oração, fato que, por si, impede
considerações mais aprofundadas a esse respeito. 1.1.5. TEMPORAIS: nas orações
adverbiais temporais e nas adjetivas existe equilíbrio entre o emprego de
subjuntivo e de outras formas de expressão (tempos do indicativo e formas
nominais). As orações temporais que normalmente se constroem com o subjuntivo são
as que exprimem um fato futuro, não realizado ou eventual:
(39) (...) e é um camarada que eu posso ter confiança e quando ele me disser “eu
fiz o serviço”, fez mesmo (...) (NURC/SSA, 277, L. 465-467) (40) (...) depois que
ele ga/ganhar uma certa velocidade... eu vou passando a segunda... terceira (...)
(NURC/RJ, 112, L.519-521)
(4)
O que não tem função sintática, pois é expletivo: “os meus amigos mineiros me
desculpem”.
221
Verifica-se, no entanto, que a eventualidade ou possibilidade também podem ser
expressas também por orações infinitivas:
(41) (...) ele tem condição de vir em vôo planado muito... muitos quilômetros...
até conseguir um lugar ideal para pousar (...) (NURC/SSA, 277, L. 590-592)
No corpus foi localizada apenas uma outra ocorrência análoga à anterior. O pequeno
número de ocorrências representa, por si, um fato que impede considerações mais
consistentes a esse respeito. O indicativo é empregado nos casos em que o falante
exprime um fato futuro tido como real ou certo:
(42) (...) [esses produtos você] compra quando termina ou quando quebra (...)
(NURC/RJ, 84, L. 644)
Esta particularidade foi ressaltada pelo Prof. Dr. Ataliba Teixeira de Castilho,
durante a apresentação da comunicação. “O subjuntivo em elocuções formais
(Projetos NURC/ SP e NURC/RJ)” (I Congresso Internacional da ABRALIN, Salvador,
setembro de 1994).
222
(44) (...) quem faz teatro qualquer papel que lhe seja conferido ele deve saber
interpretar (...) (NURC/SP, 161, L. 90-93)
Nos exemplos anteriores, esse modo é possível de ser empregado (“a gente tenha”;
“ele fosse estudar”) , mas os informantes optam pelo indicativo, como forma de
assinalar que se trata de um evento certo e real. As orações examinadas neste item
1.1 correspondem aos dois valores básicos assinalados por Gili y Gaya (1972) para
o subjuntivo: subjuntivo potencial (relacionado com a expressão da dúvida, da
contingência, da possibilidade) e subjuntivo optativo (referente à manifestação de
desejos e necessidades). Incluem-se nos casos de subjuntivo potencial as orações
condicionais, as concessivas, as temporais (particularmente as que manifestam
fatos que se projetam para o futuro), as substantivas
223
(ligadas a verbos e nomes que exprimem dúvida ou desconhecimento, emoção ou temor,
possibilidade), as adjetivas, relacionadas à expressão da dúvida ou da
possibilidade, as orações independentes de valor hipotético ou introduzidas por
talvez). Já o subjuntivo optativo manifesta-se particularmente nas substantivas
ligadas a verbos e nomes que exprimem desejo ou necessidade. Esses dois valores
básicos manifestados pelo subjuntivo não estão claramente manifestados nas orações
finais, nem em certas substantivas completivas nominais; desse modo, prevalece
nessas orações o emprego do indicativo ou do infinitivo.
224
assim dizer... para que... os alunos tivessem uma ba::se para aquela cadeira (...)
(NURC/SP, 242, L. 61-65)
07 58 110 48
2. Adjetivas
32 62
20 38
27 57
20 43
39 47
44 53
98 54
84 46
02 100 03 11 0 – 10 100
18 100
OBS: I – 1ª. faixa etária; II – 2ª. faixa etária; III – 3ª. faixa etária
227
A tabela anterior revela que, como regra geral, os percentuais de cada faixa
etária acompanham – com alguma variação para mais ou para menos – as tendências
gerais já apresentadas. Há três exceções (apresentadas a seguir), devidas a
desvios apresentados por informantes isolados: a) Na primeira faixa etária, as
orações condicionais apresentam desvios em relação ao total geral (1ª. faixa: 50%
– S; 50% – NS; total geral: 63% – S e 37% – NS). Esse desvio é devido ao
informante do Inq. 161 (NURC/SP), que emprega o indicativo em 71% das ocorrências:
(53) (...) não adiantam... infinitos recursos técnicos... se eles não são bem
aproveitados (...) (NURC/SP, 161, L. 334-335)
11 27 109 63 71 89 02 33 21 11 10 48
2. Adjetivas
34 52
32 48
21 41
30 59
43 66
22 34
98 54
84 46
23 100 01 09 0 – 11 100
18 100
230
4. Emprego do subjuntivo e das formas alternativas, de acordo com a variável sexo
dos informantes Como já foi discutido nos dois itens anteriores, existe,
geralmente, uma correspondência entre o percentual obtido no total das ocorrências
e aquele que se verifica na linguagem de homens e mulheres. É o que pode ser
verificado na Tabela IV, que expõe o emprego do subjuntivo em cada tipo de oração
em estudo, de acordo com a distribuição nos grupos masculino e feminino.
Tabela IV Emprego do subjuntivo em cada tipo de oração, de acordo com a variável
sexo. SEXO
M TIPO DE ORAÇÃO 1. Adverbiais – concessiva – condicional – final – temporal 2.
Adjetivas 3. Substantivas – subjetiva – obj. direta – obj. indireta – compl. nom.
4. Independente 16 30 13 04 59 73 72 25 11 11 05 12 0 41 27 28 75 – 11 37 09 0 85
53 50 – 02 33 09 15 47 50 27 67 22 04 67 60 61 09 13 33 44 40 14 39 39 91 0 – 17
49 13 06 60 77 73 14 40 59 05 18 79 09 41 23 27 86 60 41 18 60 08 04 38 82 57 08
67 47 04 46 96 02 43 19 43 92 33 53 35 80 09 20 64 37 175 8 9 11 52 84 46 S S % S
NS % S S % S F NS % S S % S TO TA L NS %
109 6 3 21 10 98 11 48 54
27 100 0 –
1 1 100
2 2 100
3 3 100
234