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Atualidade de Carl Schmitt Alain de Benoist PDF

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Título original: Carl Schmitt Actuel, Guerre «Juste»,

Terrorisme, État D’Urgence, «Nomos de la Terre»


© Éditions Krisis, 2007

Tradução: Antagonista, Sociedade Editora Lda.


Concepção de capa, grafismo e paginação: hekiw
antagonistaeditora@gmail.com
http://antagonistaeditora.blogspot.com

ISBN:
Depósito legal:
© Antagonista, Sociedade Editora, 2009
Impressão:
Alain de Benoist
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,
ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»
A Actualidade de Carl Schmitt

antagonista
Para Jerónimo Molina Cano
Índex
Introdução - 6

Da «Guerra Regular» ao Retorno da «Guerra Justa» - 24

Do Guerrilheiro ao Terrorista «Global» - 67

Do «Caso de Urgência»
ao Estado de Excepção Permanente - 108

Da Dualidade Terra/Mar ao Nomos da Terra - 132


Introdução

Foram publicados nestes últimos anos numerosos


trabalhos sobre a influência, real ou suposta, do filósofo
americano de origem alemã Leo Strauss (1899-1973) no
meio “neoconservador” americano1. Segundo uma opinião
expressa muito frequentemente, foi ao entrar em contacto
com, ou ao ler, as obras de Strauss, que a maior parte dos
neoconservadores se teria convencido da excelência de uma
democracia que se confunde aos seus olhos com o sistema
capitalista, da validade «universal» dos princípios dos quais
se reclamam e da necessidade de os exportar para todo o
lado no mundo, se necessário pela força. Alain Franchon
e Daniel Vernet escrevem assim que, «por filiação ou por
capilaridade (…) a filosofia de Strauss serviu de substrato
teórico ao neoconservadorismo»2. O pensamento de Strauss
constituiria assim o «pano de fundo» da acção dos partidários
de George W. Bush. Constituiria prova disto a crítica do
relativismo operada no círculo deste último, o seu recurso
frequente ao vocabulário moral, a sua insistência sobre os
«valores», etc.
Esta influência teria sido exercida, nomeadamente
por intermédio de Allan Bloom, Harvey H. Mansfield,
Henry Jaffa ou Albert Wohlstetter sobre Paul Wolfowitz,
William Kristol, Robert Kagan e Donald Rumsfeld, todos
os quatro membros do Projecto para o Novo Século
Americano, mas também sobre homens tão díspares como
William Bennett, Elliot Abrams, Richard Perle, Michael
Novak, Norman Podhoretz, Dick Cheney, Michael Ledeen,

6
INTRODUÇÃO

Charles Krauthammer, Gary Schmitt, Zalmay Khalizad,


Alan Kayes, Francis Fukuyama, John Ashcroft, Samuel
Huntington, Clarence Thomas, Robert Bork, Leon Kass,
Harvey Mansfield, Lewis Libby, etc. São igualmente citadas
fundações «straussianas» como a Lynd and Harry Bradley
Foundation.
Foi por vezes autoreivindicada, por alguns
neoconservadores3, uma filiação intelectual entre Leo
Strauss e os principais membros ou partidários do governo
actual dos Estados Unidos. Ela foi, não obstante, igualmente
contestada, não somente porque Leo Strauss não pode ser
tido como responsável pela política posta em prática por
alguns dos seus leitores ou discípulos, de qualquer forma
ninguém pode saber como é que o próprio teria julgado as
orientações actuais da Casa Branca, mas também porque
o seu pensamento político, pensamento essencialmente
filosófico, se afasta em pontos essenciais da ideologia
neoconservadora4. A própria filha de Strauss esforçou-
se por desmentir a ideia de que o seu pai, alguma vez,
tivesse sido o «cérebro dos ideólogos neoconservadores
que controlam a política externa dos Estados Unidos»5.
Leo Strauss, filósofo notoriamente anti-historicista6, nunca
evocou nos seus livros as questões internacionais e, de um
modo mais geral, só muito raramente se pronunciou sobre
questões da actualidade. Mas o nosso propósito não é o de
nos obstinarmos neste ponto. Trata-se antes de apreciar a
maneira como, a partir de 2003, se desenvolveu toda uma
polémica que, referindo-se à acção dos neoconservadores,
associou estreitamente os nomes de Leo Strauss e Carl
Schmitt.
Esta polémica, cujo início coincidiu com o 30°
aniversário da morte de Leo Strauss, visava essencialmente
desacreditar os meios neoconservadores, dos quais

7
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

este último teria sido o «guru», fazendo-lhe endossar


perspectivas atribuídas a Carl Schmitt. A ideia geral era a
de que Schmitt teria sido um pensador «nazi», e que Leo
Strauss, cúmplice de Schmitt, teria propagado, depois dele,
as mesmas ideias «nazis» na América, sendo que o círculo
de George W. Bush, influenciado pelo pensamento de Leo
Strauss, se ligaria por seu intermédio às ideias de Schmitt
e consequentemente ao nazismo. Esta tese caricatural é
frequentemente acompanhada de uma representação quase
conspiracionista do pensamento straussiano, que se disse
ser impulsionado por considerações «esotéricas», inspirado
por estratégias visando colocar no círculo do poder em
exercício «conselheiros-filósofos» mais ou menos cínicos e
visando objectivos inconfessados. Leo Strauss pôde assim
ser acusado de ter recomendado a mentira e a duplicidade
aos homens políticos, considerando que a verdade devia ser
reservada para uma elite, o que permitiu denunciá-lo como
«fascista» (Glen Yeadon). De qualquer modo, tratava-se de
instrumentalizar algumas das críticas das quais Schmitt foi
objecto, por causa do seu comprometimento com o regime
nazi (1933-36), para desacreditar, primeiro Leo Strauss, e
através deste os seus supostos discípulos, podendo todos ser,
doravante, suspeitos de opiniões ou de práticas «nazis».
Esta tese foi primeiramente expressa na grande
imprensa por alguns autores isolados7 antes de ser retomada
sistematicamente, de modo ainda mais polémico, nos meios
próximos do muito controverso Lyndon B. LaRouche8.
Seguidamente iríamos encontrá-la nos meios mais diversos.
Particularmente significativo é o artigo do antigo deão
da faculdade de ciência política da New School for Social
Research, Alan Wolfe, «A Fascist Philosopher Help Us
Understand Contemporary Politics», publicado em 2004 na
The Chronicle of Higher Education. Wolfe escreve que para

8
INTRODUÇÃO

compreender a política actual do Partido Republicano, é


preciso conhecer, não somente Leo Strauss, mas Carl Schmitt.
O artigo sublinha, para seu espanto, o interesse que
têm pelo pensamento schmittiano numerosos autores
contemporâneos classificados como de esquerda. Assegura
de seguida que nos Estados Unidos, «os conservadores
absorveram ainda mais profundamente do que os liberais a
concepção schmittiana da política» e que «o modo schmittiano
de pensar a política invadiu o Zeitgeist contemporâneo no
seio do qual floresceu o conservadorismo republicano»9.
Fazendo por seu lado alusão aos comentários
ao livro de Carl Schmitt, O Conceito do Político, que Leo
Strauss redigiu no começo dos anos 30, Anne Norton
escreve: «Strauss fez de O Conceito do Político uma leitura
mais do que benevolente. Strauss, pensava Schmitt, tinha-o
apreendido melhor do que ninguém, talvez mesmo melhor
do que ele próprio o concebera. Tinha integrado no seu
trabalho as apreciações de Strauss. E Strauss iria incorporar
elementos do trabalho de Schmitt na sua própria crítica do
liberalismo»10. Shadia B. Drury apresenta igualmente Leo
Strauss como alguém que teria «radicalizado» (sic) as teses
de Schmitt111. Sébastien Fath, falando de Leo Strauss, evoca
também «o seu professor e colaborador Carl Schmitt»12.
Stanford V. Levinson, professor na Universidade do Texas,
assegura que Carl Schmitt é o verdadeiro inspirador da
política da administração Bush13. Poderíamos citar muitos
outros exemplos.
Todas estas afirmações, que levam a crer que Schmitt
e Strauss pensavam fundamentalmente o mesmo e que
Schmitt é hoje em dia o «mestre secreto» da Casa Branca,
são por sua vez tão assombrosas quanto falsas. Emanam de
autores que frequentemente têm apenas um conhecimento
medíocre do pensamento de Strauss, e que aparentemente

9
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

ignoram a totalidade do de Schmitt14. Em primeiro lugar


nada faz supor que a obra de Schmitt alguma vez tenha
sido verdadeiramente lida nos meios neoconservadores15.
Alan Wolfe e outros cometem, aliás, um contra-senso
absolutamente típico, de pesadas consequências: tendo
Carl Schmitt criticado duramente o liberalismo durante
toda a sua vida, pensam que os neoconservadores poderiam
naturalmente retomar esta crítica, por sua conta. É esquecer-
se que o termo «liberalismo» tem um sentido totalmente
diferente, senão mesmo oposto, na Europa e nos Estados
Unidos. Aquilo a que os Europeus chamam «liberalismo»
está de facto muito mais próximo do «conservadorismo», tal
como ele é entendido na América, do que daquilo que aí se
designa por «liberalismo». Para Schmitt, como para a maioria
dos autores da Europa continental, o «conservadorismo»
implica uma tomada de posição a favor do Estado e uma
concepção pessimista da natureza humana, enquanto que
o «liberalismo» se define pela crença no progresso, adesão
à ideologia dos direitos do homem, confiança no sistema de
livre troca, fé na superioridade do mercado, pela abordagem
individualista do facto social, etc. (Tudo coisas criticadas
como tais por Carl Schmitt). Do ponto de vista europeu,
os grandes teóricos liberais são John Locke e Adam Smith,
sendo os políticos contemporâneos mais liberais, Ronald
Reagan, Margaret Tatcher ou… George W. Bush. Colocando-o
noutros termos, na Europa, «liberal» opõe-se directamente a
«social», enquanto que nos Estados Unidos os «liberals» são
pelo contrário os que são favoráveis a intervenções sociais
do Estado. Desde logo, a partir do momento em que Alan
Wolfe escreve, por exemplo: «A mais importante lição que
Schmitt nos ensina é que a diferença entre os conservadores
e os liberais não incide, somente, sobre as políticas que
aconselham a adoptar, mas também sobre o próprio sentido

10
INTRODUÇÃO

da política», acrescentando: «os liberais vêem na política


um meio, mas os conservadores vêem nela um fim»16,
induz gravemente os seus leitores em erro (e prova de uma
assentada que não compreendeu nada do que Schmitt disse).
Anne Norton comete o mesmo erro quando escreve: «Leo
Strauss associava-se a Carl Schmitt e a Alexandre Kojève
na sua crítica do liberalismo e das instituições liberais»17,
dando assim a entender que estes autores atacavam uma
ideologia que os Americanos situam à esquerda no tabuleiro
político, enquanto que na Europa ela se situa à direita. A
muito justa observação de Francis Fukuyama, segundo a
qual «os neoconservadores (americanos) não querem de
forma nenhuma defender a ordem das coisas fundada sobre
a hierarquia, a tradição e uma visão pessimista da natureza
humana»18, é já suficiente para demonstrar tudo aquilo que
separa esta tendência do pensamento de Carl Schmitt, que
faz pelo contrário, de maneira explícita, duma concepção
«pessimista» da natureza humana uma das pedras angulares
do seu sistema.
Schmitt é de facto tão pouco «conservador» no
sentido americano do termo que chega ao ponto de colocar
a noção de propriedade privada no centro da «polaridade
moral-economia» que denuncia vigorosamente como sendo
o que há de mais alheio à essência do político. Os «conceitos
liberais, escreve, movem-se todos de maneira característica
entre a moral (o espírito) e a economia (os negócios) e,
emanando destes pólos opostos, tendem a aniquilar o
político (…) O centro da esfera é ocupado pelo conceito de
propriedade privada cujos pólos, o ético e o económico, não
são senão emanações antinómicas»19. A conclusão mais
caridosa é portanto, novamente, que Anne Norton nunca leu
uma linha de Carl Schmitt20.
Que é feito pois das relações entre Leo Strauss e

11
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

Carl Schmitt? O dossier é escasso, e o laço entre os dois


homens bastante ténue. Inscreve-se aliás num muito curto
lapso de tempo. Strauss foi, em 1932, um dos primeiros
comentadores da segunda edição do livro de Schmitt sobre
o conceito do político21. Este comentário nada tinha de uma
aprovação incondicional. Tratava-se pelo contrário de uma
apreciação crítica, ainda que esta fosse expressa de forma
muito educada. No seu comentário22, Strauss censura
Schmitt por este permanecer «no horizonte do liberalismo»,
ainda que lhe pretendesse fazer uma crítica radical, e por
não ter compreendido que Hobbes, que é aos seus próprios
olhos o pensador antipolítico por excelência, é precisamente
aquele «que lançou os fundamentos do liberalismo»,
nomeadamente por causa das premissas individualistas da
sua doutrina. Dá por outro lado a entender que o verdadeiro
fundamento da posição de Schmitt face ao liberalismo é o
seu catolicismo. Estas observações levaram Carl Schmitt
a rever certas passagens do seu livro23. Na última edição,
Schmitt reconhece, aliás, que foi levado a reformular alguns
dos seus conceitos e a autocorrigir-se, no seguimento das
críticas formuladas por Leo Strauss, o qual se limita sempre
a qualificar como «leitor atento» da sua obra24.
Durante esse mesmo ano de 1932, Carl Schmitt
escreveu uma carta recomendando Leo Strauss para uma
bolsa (fellowship) junto da Fundação Rockfeller, bolsa essa
que permitiu a este último prosseguir os seus estudos em
França e em Inglaterra, antes de emigrar definitivamente em
1937 para os Estados Unidos (onde ensinou filosofia política
na Universidade de Chicago a partir de 1949). Heinrich
Meier publicou, aliás, o texto de três cartas endereçadas a
Schmitt por Leo Strauss entre 13 de Março de 1932 e 10 de
Julho de 1933. Na primeira dessas cartas, Strauss agradece a
Carl Schmitt a ajuda que lhe deu, limitando-se a exprimir-lhe

12
INTRODUÇÃO

de maneira educada o seu respeito pela sua obra, na verdade


o mínimo que podia fazer em relação a alguém de quem é
então devedor. Na segunda carta, datada de 4 de Setembro de
1932, precisa as críticas expressas no seu artigo. Na terceira,
interroga Schmitt sobre um projecto de edição crítica da obra
de Hobbes, no qual ele se diz desejoso de participar. Este
projecto nunca viu a luz do dia. Schmitt nunca respondeu à
última dessas cartas, e não possuímos o texto da sua resposta
às outras duas, supondo que houve uma. Não conhecemos
outra correspondência entre os dois homens, embora seja
possível que Strauss tenha escrito ainda uma vez a Schmitt
em 1934. As relações entre Leo Strauss e Carl Schmitt não
foram mais longe. Carl Schmitt, que em 1932-33, não podia
ainda conhecer de Strauss senão a primeira parte do seu
trabalho sobre Hobbes, assim como a sua crítica de Spínoza
publicada em 1931, limitar-se-á a citar o seu nome no seu
livro sobre o Léviathan editado em 193825. Strauss nunca
mais publicará nada sobre Carl Schmitt26.
Não insistiremos aqui sobre o conteúdo da filosofia
política de Leo Strauss. Digamos somente que basta ler a
obra deste último para constatar que a sua inspiração se
distingue radicalmente da de Carl Schmitt. Heinrich Meier
é aliás um dos que melhor demonstrou a incompatibilidade
radical existente entre a teologia política de Schmitt e a filosofia
política de Strauss: «Inter auctoritatem et philosophiam nihil
est medium». «É impossível, escreve, preencher o abismo
que separa a teologia política da filosofia política; aparta
Carl Schmitt de Leo Strauss precisamente onde, ambos,
pareciam ter as mesmas posições políticas, mesmo naquilo
em que estão efectivamente de acordo, na crítica política de
um adversário comum»27. «A política tem uma importância
tão central para o pensamento de Leo Strauss, quanto a
questão do inimigo e da hostilidade a têm pouco», lembra

13
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

igualmente, o que demonstra bem o erro das interpretações


que atribuem a Strauss um pensamento governado pela
ideia da inimizade28. Entre os dois homens, para retomar a
expressão de Heinrich Meier, há pois um «abismo». Medimos
por aí a pouca seriedade dos autores que pretendem hoje
em dia ver em Leo Strauss o continuador e o discípulo do
pensamento schmittiano.
A tese da influência exercida por Carl Schmitt sobre
os neoconservadores americanos por intermédio de Leo
Strauss não passa de uma fábula. Mas há, por outro lado,
uma incontestável actualidade do pensamento schmittiano,
actualidade bem discernida por numerosos observadores,
singularmente depois dos atentados do 11 de Setembro de
2001, que a vida internacional, bem como certas iniciativas
do governo americano, não cessaram de nutrir no decurso
destes últimos anos. São os principais aspectos dessa
actualidade que examinaremos neste ensaio.

1
Cf. especialmente Shadia B. Drudy, Leo Strauss and the American
Right, St. Martin’s Press, Nova Iorque 1997 (2ª ed.: MacMillan,
Nova Iorque 1999). Da mesma autora: Political Ideas of Leo Strauss,
MacMillan, Londres, 1988; «Leo Strauss e i neoconservatori», in
Itride, Bolonha, XVII, 42, Maio-Agosto 2004, pp. 291-301; «La
sponda americana: un modello politico? Sterminare il nemico. Leo
Strauss e Carl Schmitt», in Il Ponte, 2005, 2-3, S. 103-117. O melhor
estudo sobre a influência de Strauss nos Estados Unidos continua
a ser contudo o de Kenneth L. Deutsch e John A. Murley (ed.),
Leo Strauss, the Straussians, and the American Regime, Rowman &
Littlefield, 1999. A tese de uma influência de Leo Strauss sobre
os neoconservadores foi igualmente retomada recentemente, de
maneira mais sumária, quando não simplista, por Anne Norton,
Leo Strauss and the Politics of American Empire, Yale University
Press, New Haven 2004 (trad. Fr.: Leo Strauss et la politique de
l’empire américain, Denoël, Paris 2006). Cf. também Benjamin
Barber, «Among the Straussians», in New York Review of Books,

14
INTRODUÇÃO

Nova Iorque, 14 de Abril de 1988; Alfons Söllner, «Leo Strauss.


German Origin and American Impact», in Peter Kielmansegg,
Horst Mewes e Elisabeth Glaser-Schmidt (ed.), Hannah Arendt
and Leo Strauss, Cambridge 1995, pp. 121-137; William Pfaff, «The
Long Reach of Leo Strauss», in International Herald Tribune, Nova
Iorque, 15 de Maio de 2003. Uma abordagem equilibrada: Edward
Skidelsky, «No More Heroes», in Prospect, Londres, Março de
2006.
2
Alain Franchon e Daniel Vernet, «Le stratège et le philosophe»,
in Le Monde, Paris, 16 de Abril de 2003. Cf. também Heinrich
August Winkler, «Wenn die Macht Recht spricht», in Die Zeit, 18
de Junho de 2003.
3
Cf. Carnes Lord, «Thoughts on Strauss and Our Present Dis­
contents», in Kenneth L. Deutsch e John A. Murley (ed.), Leo
Strauss, the Straussians, and the American Regime, op. cit.; Steven
Lenzner e William Kristol, «What Was Leo Strauss Up To?», in The
Public Interest, Washington, Outono de 2003.
4
Cf. especialmente a abordagem de Carole Widmaier, «Leo
Strauss est-il néoconservateur? L’épreuve des textes», in Esprit,
Paris, Novembro de 2003, pp. 23-38. Widmaier contesta que o pen-
samento de Strauss possa ser assimilado a uma teoria política ou
que seja o pensamento de uma cultura particular (o da democracia
americana). A ética straussiana, diz ela, «não é a da política, mas
a do pensamento», e mais especialmente a de um pensamento
estritamente filosófico. Sublinhando de passagem que o uso que
os conservadores fazem do termo «valores» difere fortemente
daquele que dele fazia Leo Strauss, considera que «o messianis-
mo matizado de optimismo dos neoconservadores está ausente
do pensamento de Strauss» e que «a designação de um “Eixo do
Mal” é, mau grado as aparências, propriamente anti-straussiano».
Conclui que «a interpretação neoconservadora das ideias de
Strauss nem sequer a é: trata-se nem mais nem menos de uma
traição» (p. 36), dado que «o objecto de Strauss não é a política,
mas a filosofia» (p. 38). Cf. também Laurence Berns, «Correcting
the Record on Leo Strauss», in Political Science and Politics,
XXVIII, 4, Dezembro de 1995; Heinrich Meier, «Der Philosoph
der Stunde», in Focus, 30 de Junho de 2003, pp. 54-57; Thomas
G. West, «Que dirait Léo Strauss de la politique étrangère améri-
caine?», in Commentaire, Paris, Primavera de 2004, pp. 71-78; e
Mark Lilla, «Leo Strauss: The European», in The New York Review
of Books, Nova Iorque, 21 de Outubro de 2004, pp. 58-60, que real-

15
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

ça que há menos «straussianos» em torno de George W. Bush do


que havia nas administrações de Ronald Reagan e George Bush Sr.
Duas abordagens mais recentes: Heinrich Meier, «Pourquoi Leo
Strauss? Heurs et malheurs de l’école pour l avie philosophique»,
in Commentaire, Verão de 2006, pp. 307-313 ; e sobretudo Daniel
Tanguay, «Néoconservatism et religion démocratique. Leo Strauss
et l’Amérique», ibid., pp. 315-324. «Seria um erro, escreve este úl-
timo, crer que os temas straussianos foram transpostos sem mo-
dificação para o discurso neoconservador. A sua adaptação política
era uma tarefa complexa e infligiu a estes temas modificações pro-
fundas, indo por vezes ao ponto de afectar o seu sentido original»
(p. 317). «A politização a todo o transe de Strauss pelos seus discí-
pulos americanos e pelos neoconservadores, acrescenta, arrisca-se
a ocultar o sentido do movimento do pensamento de Strauss» (p.
322).
5
Jenny Strauss Clay, «The Real Leo Strauss», in The New York
Times, Nova Iorque, 7 de Junho de 2003.
6
Para uma discussão do anti-historicismo straussiano, cf. Claes
G. Ryn, «History and the Moral Order», in Francis Canavan (ed.),
The Ethical Dimension of Political Life, Duke University Press,
Durham 1983; Paul Gottfried, The Search for Historical Meaning,
Northern Illinois Uni­versity Press, DeKalb 1986.
7
Cf. James Atlas, «A Classicist’s Legacy: New Empire Builders»,
in The New York Times, Nova Iorque, 4 de Maio de 2003; Seymour
Hersh, The New Yor­ker, Nova Iorque, 5 de Maio de 2003. Cf. igual-
mente três artigos aparecidos alguns anos antes: Hiram Caton,
«Explaining the Nazis. Leo Strauss Today», in Quadrant, Outubro
de 1986, pp. 61-65; Jacob Weisberg, «The Cult of Leo Strauss. An
Obscure Philosopher’s Washington Disciples», in News-week, 3
de Agosto de 1987, p. 16; Brent Staples, «Undemocratic Vistas:
The Sinis­ter Vogue of Leo Strauss», in The New York Times, Nova
Iorque, 28 de Novembro de 1994.
8
Para melhor «nazificar» os meios neoconservadores america-
nos (praticando aquilo a que Leo Strauss chamava a «reductio ad
hitlerum»), os partidários de LaRouche não hesitaram em recorrer
às afirmações mais extravagantes, exprimidas em termos não so-
mente excessivos, mas por vezes delirantes. Barbara Boyd, num
texto intitulado «Carl Schmitt, Dick Cheney’s Eminence Grise»
(Executive Inteligence Review, 6 de Janeiro de 2006), apresenta as-
sim Carl Schmitt como o teórico do «inimigo absoluto» e autor de
livros cuja promoção teria sido organizada «pelo bando dos ban-

16
INTRODUÇÃO

queiros sinarquistas». Assegura que «a estreita relação entre Carl


Schmitt e Leo Strauss (…) permite pensar que a tomada de posição
de Dick Cheney a favor do Führerprinzip não é uma coincidência»
(sic), e que «as obras de Schmitt se revelaram muito úteis para
o sujo trabalho empreendido nos anos 1970 por George Schultz
e Henry Kissinger, desde logo quando derrubaram o governo de
Allende no Chile»! Num outro texto, publicado alguns meses an-
tes («Leo Strauss y Carl Schmitt, el jurista de Hitler», in EIR –
Resumen Ejecutivo, Março de 2005), afirmava muito seriamente
que os trabalhos de Schmitt foram «em grande parte financiados à
escala internacional pelos straussianos da Fundação Lynde e Harry
Bradley». Qualificando Schmitt simultaneamente como o «padri-
nho intelectual de Strauss» e como o «Hannibal Lecter da política
moderna» (sic), chegaria ao ponto de apresentar Alexandre Kojève
como um «ideólogo do fascismo universal». O primeiro texto de
Barbara Boyd foi reeditado numa brochura publicada em Janeiro
de 2006 (visando contestar a nomeação de Samuel Alito para o
supremo Tribunal): Cheney’s «Schmittlerian» Drive for Dictatorship.
Children of Satan IV, Lyndon LaRouche PAC, Leesburgh 2006. No
seu Executive Intelligence Review, Lyndon B. LaRouche assegura
que Dick Cheney e Paul Wolfowitz são «fascistas», que «Strauss e
Kojève defenderam abertamente a mesma filosofia fascista que foi
a de Carl Schmitt, guru de Strauss», etc.
9
The Chronicle of Higher Education, Washington, 2 de Abril de
2004.
10
Leo Strauss et la politique de l’empire américain, op. cit., pp. 49-
50. Para uma crítica do livro de Anne Norton, cf. Peter Berkowitz,
New York Post Online Edition, 3 de Outubro de 2004. Como muitos
outros autores, Berkowitz apontou numerosos erros factuais neste
livro. Sublinha também o carácter superficial e a incapacidade da
autora em demonstrar o que defende.
11
Leo Strauss and the American Right, op. cit., pp. 65-97 («Strauss’s
German Connection: Schmitt und Heidegger»).

12
Dieu bénisse l’Amérique. La religion de la Maison-Blanche, Seuil,
Paris 2004, p. 206.
13
Daedalus, Verão de 2004.
14
Sébastien Fath, escreve não sem razão, que «o presidente Bush
Jr. não leu provavelmente uma única linha de Strauss» (op. cit.,
p. 219). Podemos, sem corrermos um grande risco de nos en-
ganarmos, pensar que não leu jamais uma única linha de Carl

17
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

Schmitt. Peter Sirk realça por seu lado que seria evidentemente
erróneo presumir «que quem quer que seja que empregue argu-
mentos análogos aos de Schmitt o faça porque foi directamente
influenciado por Schmitt, ou até mesmo indirectamente influen-
ciado por vias complexas, subterrâneas ou conspirativas» (Carl
Schmitt, Crown jurist of the Third Reich. On Preemptive War, Military
Occupation, and World Empire, Edwin Mellen Press, Lewiston
2005, p. 35). Chantal Mouffe chega a conclusões idênticas (On the
Political, Routledge, Abingdon 2005, pp. 77-80). Cf. também Linda
S. Bishai e Andreas Behnke, War, Violence, and the Displacement
of Political, Townson University, Townson [Maryland] 2005; James
O’Connor, Exceptions, Dinstinctions, and Proces­ses of Identification:
The «Concrete Thought» of Carl Schmitt and US Neo­conservatism as
Seen through Readings of Kenneth Burke and Jacques Der­rida, tese de
mestrado, Universidade de Helsinquia, Helsinquia 2006.
15
Lembramos que foi apenas numa data relativamente recente
que as principais obras de Carl Schmitt foram traduzidas para
língua inglesa. Citamos, por ordem de publicação: The Concept
of the Political, Rutgers University Press, New Brunswick 1976
(2e ed.: University of Chi­cago Press, Chicago 1996); Political
Theology. Four Chapters on the Concept of Sovereignty, MIT
Press, Cambridge 1985 (2e ed.: University of Chicago Press,
Chicago 2005); The Crisis of Parliamentary Democracy, MIT Press,
Cambridge 1985; Political Romanticism, MIT Press, Cambridge
1986; «The Plight of European Jurisprudence», in Telos, Nova
Iorque, 83, Primavera de 1990, pp. 35-70; The Leviathan in the
State of Thomas Hobbes. Meaning and Failure of a Political Symbol,
Greenwood Press, Westport 1996; Roman Catholicism and Political
Form, Greenwood Press, Westport 1996; The Tyranny of Values,
Plutarch Press, Washington 1996; Land and See, Plu­tarch Press,
Washington 1997; State, Movement, People. The Triadic Struc­ture of
the Political Unity, Plutarch Press, Corvallis 2001; The «Nomos» of
the Earth in the International Law of the «Jus Publicum Europaeum»,
Telos Press, Nova Iorque 2003 : Legality and Legitimacy, Duke
University Press, Dur­ham 2004; On the Three Types of Juristic
Thought, Praeger Publ., Westport 2004; «Theory of the Partisan.
Intermediate Commentary on the Concept of the Political», in
Telos, Nova Iorque, 127, Primavera de 2004, pp. 11-78 (outra trad.:
«The Theory of the Partisan. A Commentary/Remark on the
Concept of the Political», in The New Centennial Review, East Lan­
sing [Michigan], IV, 2004, 3); War/Non-war? A Dilemma, Plutarch

18
INTRODUÇÃO

Press, Corvallis 2005. Sabemos, aliás, que um certo número de


«schmittianos» anglo-saxónicos se situam claramente à esquer-
da, como são disso testemunha os artigos publicados na revista
nova-iorquina Telos (fundada nos anos 60 pelos discípulos ame-
ricanos de Theodor W. Adorno e de Max Horkheimer, próceres da
Escola de Frankfurt, ou as obras de Joseph W. W. Bendersky, Ellen
Kennedy, Gary L. Ulmen, Chantal Mouffe, Gopal Balakrishnan,
etc.
16
Art. cit.
17
Op. cit., p. 115.
18
The Wall Street Journal, Nova Iorque, 24 de Dezembro de 2002.
19
La notion de politique, Flammarion, Paris 1992, p. 116.
20
Apercebemo-nos novamente disso na p. 155, onde esta faz de
Schmitt uma espécie de apologista dos valores guerreiros (ou da
concepção guerreira da vida), o que é o exacto oposto do seu pen-
samento. «Aos olhos de Carl Schmitt, escreve, como ainda aos de
certos alunos de Leo Strauss, a guerra parecia ser uma actividade
transmissora de veracidade à vida (…) A guerra restauraria igual-
mente a virtude. Sem a guerra, o heroísmo e a coragem, a bravura
e o sacrifício perdem-se», etc. A realidade é exactamente o inverso.
Schmitt rejeita totalmente, por exemplo, os pontos de vista do jo-
vem Ernst Jünger, a sua concepção «agónica» da existência, a sua
percepção, em parte estética, da guerra. A guerra, aos olhos de
Schmitt, não tem nenhum valor intrínseco. Ela não é senão um
meio para atingir um objectivo político ou de restaurar a paz.
21
Der Begriff des Politischen. Mit einer Rede über das Zeitalter der
Neu­tralisierung und Entpolitisierungen, Duncker u. Humblot,
Munique-Leipzig 1932. Trata-se de uma edição revista. A pri-
meira edição data de 1928 e foi precedida de um primeiro es-
boço, tendo como base o texto de uma conferência pronunciada
em Berlim a 10 de Maio de 1927 (Archiv für Sozialwissenschaft
und Sozialpolitik, LVIII, 1, Setembro de 1927, pp. 1-33). (trad.
brasileira: O Conceito do Político (Der Begriff des Politischen),
apresentação de Hans Georg Flickinger, tradução de Alvaro L. M.
Valls, Ed. Vozes, Petrópolis RJ 1992.)
22
Leo Strauss, «Anmerkungen zu Carl Schmitt, “Der Begriff
des Poli­tischen” (1932)», in Archiv für Sozialwissenschaft und
Sozialpolitik, Tübin­gen, LXVII, 6, Agosto-Setembro de 1932,
pp. 732-749; texto reeditado in Leo Strauss, Hobbes’ politische
Wissenschaft (Luchterhand, Neuwied 1965, pp. 161-181, última
edição: in Hobbes’politische Wissenschaft und zugehö­rige Schriften –

19
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

Briefe [= Gesammelte Schriften, vol. 3], J.-B. Metzler, Estugarda-


Weimar 2001, pp. 217-242), assim como no livro de Heinrich
Meier (cf. nota 23). O texto inglês, «Comments on Carl Schmitt’s
“Der Begriff des Politischen”», foi reeditado in Leo Strauss,
Spinoza’s Critique of Religion, Schocken Books, Nova Iorque 1965,
pp. 331-351, depois in Leo Strauss, An Introduction to Political
Philosophy, Wayne State University Press, Detroit 1989. Note-se
que Strauss faz uma leitura do livro de Schmitt muito diferente
daquela efectuada, ao mesmo tempo, por Hans Morgenthau na
sua tese de direito internacional, La notion du politique et la théo-
rie des dif­férends internationaux (Librairie du recueil Sirey, Genébra
1933). Sobre este ponto, cf. Hans-Karl Pichler, «The Weberian
Legacy. The Godfathers of “Truth”: Max Weber and Carl Schmitt in
Morgenthau’s Theory of Power Politics», in Review of International
Studies, Cambridge, XXIV, 2, Abril de 1998, pp. 185-200; Martti
Koskenniemi, «Carl Schmitt, Hans Morgenthau, and the Image
of Law in International Relations», in Michael Byers (ed.), The
Role of Law in International Politics. Essays on International Relations
and International Law, Oxford University Press, Oxford 2000, S.
17-34 (texto reeditado e desenvolvido sob o título «Out of Europe:
Carl Schmitt, Hans Mor­genthau, and the Turn to “International
Relations”» in Martti Kosken­niemi, The Gentle Civilizer of Nations.
The Rise and Fall of International Law 1870-1960, Cambridge
University Press, Cambridge 2001, S. 413-509).
23
Der Begriff der Politischen conheceu uma terceira edição em 1933.
A versão de 1932 foi reeditada em 1963, com um prefácio e três
«corolários» complementares. É esta versão que tem sido constan-
temente reeditada desde então (13ª edição em 2002). As diferen-
tes versões da obra, bem como o texto de Strauss, foram objecto
de um estudo exaustivo por parte de Heinrich Meier (Carl Schmitt,
Leo Strauss und der «Begriff des Politischen». Zu einem Dialog unter
Abwesenden. Mit Leo Strauss Auf­satz über den «Begriff des Politischen»
und drei unveröffentlichten Briefen an Carl Schmitts aus den Jahren
1932-33, J.-B. Metzler, Estugarda 1988, 2e ed. aumentada: J.B. Metzler,
Estugarda-Weimar 1998; trad. fr.: Carl Schmitt, Leo Strauss et la no-
tion de politique. Un dialogue entre absents. Suivi du com­mentaire de
Leo Strauss sur «La notion de politique» et de trois lettres inédi­tes à Carl
Schmitt des années 1932-33, Julliard-Commentaire, Paris 1990; trad.
ingl.: Carl Schmitt and Leo Strauss. The Hidden Dialogue. Including
Strauss’s Notes on Schmitt’s «Concept of the Political» and Three
Letters from Strauss to Schmitt, University of Chicago Press, Chicago

20
INTRODUÇÃO

1995). Para além do texto de Leo Strauss, a obra contém três cartas
tendo como destinatário Carl Schmitt em 1932-33. Em França, para
além da versão constante no livro de Heinrich Meier, o texto de
Strauss foi igualmente traduzido por Jean-Louis Schlegel em ane-
xo ao livro de Carl Schmitt, Parlementarisme et démocratie (Seuil,
Paris 1988, pp. 187-214).
24
La notion de politique, op. cit., pp. 183 et 186.
25
Der Leviathan in der Staatslehre des Thomas Hobbes. Sinn und
Fehl­schlag eines politischen Symbols, Hanseatische Verlagsanstalt,
Hamburgo 1938 (última edição: Hohenheim, Köln-Lövenich 1982, cf.
pp. 20-21; trad. fr.: Le Léviathan dans la doctrine de l’État de Thomas
Hobbes. Sens et échec d’un symbole politique, Seuil, Paris 2002).
26
Sobre as relações entre Schmitt e Strauss, cf. Paul Gottfried,
«Schmitt and Strauss», in Telos, Nova Iorque, 96, Verão de
1993, pp. 167-176; John P. McCormick, «Fear, Technology, and
the State. Carl Schmitt, Leo Strauss and the Revival of Hobbes
in Weimar and National Socialist Ger­many», in Political Theory,
XXII, 1994, 2, pp. 619-652; Robert Howse, «From Legitimacy
to Dictatorship – and Back Again. Leo Strauss’s Cri­tique of the
Anti-Liberalism of Carl Schmitt», in David Dyzenhaus (ed.), Carl
Schmitt’s Challenge to Liberalism, n° especial do The Canadian
Journal of Law and Jurisprudence, Londres [Ontário], X, 1, Janeiro
de 1997, pp. 77­104, texto reeditado in David Dyzenhaus (ed.), Law
as Politics. Carl Schmitt’s Critique of Liberalism, Duke University
Press, Durham 1998, pp. 56-90; e «The Use and Abuse of Leo
Strauss in the Schmitt Revival on the Ger­man Right – The Case
of Heinrich Meier» (texto inédito); Eduardo Her­nando Nieto,
«¿Teología política o filosofía política? La amistosa conver­
sación entre Carl Schmitt y Leo Strauss», in Jorge E. Dotti y Julio
Pinto (ed.), Carl Schmitt. Su época y su pensamiento, Eudeba,
Buenos Aires 2002, pp. 189-209; Claudia Hilb, «Más allá del
liberalismo. Notas sobre las “Anmerkungen” de Leo Strauss al
“Concepto de lo político” de Carl Schmitt», ibid., pp. 211-227;
Miguel E. Vatter, «Strauss and Schmitt as Readers of Hobbes
and Spinoza. On the Relation between Political Theo­logy and
Liberalism», in CR: The New Centennial Review, East Lansing, IV,
3, Inverno de 2004, pp. 161-214; Carlo Altini, La storia della filosofia
come filosofia politica. Carl Schmitt et Leo Strauss lettori di Thomas
Hobbes, ETS, Pisa 2004; D. Janssens, «A Change of Orientation:
Leo Strauss’s “Com­ments” on Carl Schmitt Revisited», in
Interpretation, XXXIII, 2005, 1, pp. 93-104; Reinhard Mehring,

21
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

«Carl Schmitt, Leo Strauss, Thomas Hobbes und die Philosophie»,


in Philosophisches Jahrbuch, Freiburgo i. Br., CXII, 2005, 2, pp. 380-
394; Walter Schmidt, «Politische Theologie III. Anmer­kungen zu
Carl Schmitt und Leo Strauss», in Charlotte Gaitanides (Hrsg.),
Europa und seine Verfassung. Festschrift für Manfred Zuleeg zum sieb­
zigsten Geburtstag, Nomos, Baden-Baden 2005, S. 15-34; Jianhong
Chen, Between Politics and Philosophy. A Study of Leo Strauss in
Dialogue with Carl Schmitt, tese de doutoramento, Universidade
católica de Lovaina, Louvain­-la-Neuve 2006. Cf. também John
Gunnell, «Strauss Before Straussianism. The Weimar Conversation»,
in Review of Politics, LII, 1, Inverno de 1990. Numa entrevista pu-
blicada pelo diário La Repubblica («Il filosofo e la politica», 24 de
Março de 2005, p. 55), Altini lembra, também ele, que Strauss acu-
sava Schmitt de «falta de coerência» na sua crítica do liberalismo
e de, para além disso, «propor uma leitura ideológica de Hobbes».
Precisa na ocasião que «Strauss nunca pensou que o príncipe ti-
nha necessidade de um conselheiro filósofo». Paul Gottfried escre-
ve: «em suma, não existe nada no dossier publicado das relações
entre Schmitt e Strauss que possa indicar o papel que este últi-
mo desempenhará em seguida na fundação de uma escola cujos
membros se tornaram hoje em dia em missionários planetários da
“democracia liberal” americana» (art. cit., p. 173) Para mais, decor-
reu um seminário de mestrado animado pelos professores Heinz
Dieter Kittsteiner e Michael Minkenberg, entre 14 de Abril e 14
de Julho de 2005, na l’Europa-Universität Viadrina de Francfort/
Oder, sobre o tema: «Carl Schmitt, Leo Strauss und die amerika-
nischen Neokon­servativen».
27
Carl Schmitt, Leo Strauss et la notion de politique, op. cit., p. 71.
Cf. também Benjamin Sax, «The Distinction Between Political
Theology and Political Philosophy», in The European Legacy,
Agosto de 2002, pp. 499-502. De Heinrich Meier, que é igual-
mente o director da publicação das obras completas de Leo
Strauss na Alemanha, podemos ainda ler Die Denkbe­wegung
von Leo Strauss. Die Geschichte der Philosophie und die Intention
des Philosophes, J.-B. Metzler, Estugarda-Weimar 1996 e Das
theologisch­politische Problem. Zum Thema Leo Strauss, J.B. Metzler,
Estugarda 2003 (trad. ingl.: Leo Strauss and the Theological-Political
Problem, Cambridge University Press, Cambridge 2006; trad. fr.:
Leo Strauss. Le problème théologico-politique, Bayard, Paris 2006).
Sobre Leo Strauss, cf. também Daniel Tanguay, Leo Strauss. Une
biographie intellectuelle, Grasset, Paris 2003; Park Sung-rae, Leo

22
INTRODUÇÃO

Strauss, Gimm-Young, Seul 2005.


28
Ibid., p. 120. Carole Widmaier sublinha também ela que «Leo
Strauss não é Carl Schmitt: o antagonismo amigo/inimigo não é o
que define (para Strauss) a relação política» (art. cit., p. 35).

23
Da «Guerra Regular»
ao Retorno da «Guerra Justa»
«Os homens de Estado deveriam ter, antes mais, a capa-
cidade de distinguir os amigos dos inimigos», escreveu
Irving Kristol um dos principais neoconservadores america-
nos, no jornal do seu filho William, The Weekly Standard1.
Carl Schmitt não teria evidentemente desautorizado este
propósito, tanto no seu aspecto descritivo como no seu as-
pecto normativo. A própria essência do político é originá-
ria com efeito, segundo ele, não tanto do factor inimizade
quanto da possibilidade de uma distinção ou de uma dis-
criminação entre o amigo (público) e o inimigo (público),
não da luta, mas da possibilidade de uma luta. A política,
noutros termos, implica a conflitualidade: uma visão es-
tritamente pacificada da vida social é uma visão impolíti-
ca. Desde logo, a incerteza sobre a identidade do inimigo
constitui em política um dos maiores perigos que existem.
Schmitt não adopta contudo a célebre fórmula de
Clausewitz, segundo a qual a guerra não é senão a prosse-
cução da política por outros meios. Sublinha pelo contrário
que esta definição «não esgota a significação da guerra para
quem procura determinar a natureza da política»2. A guerra
é, tal como o Estado de excepção, do qual falaremos em se-
guida, um conceito limite (Grenzbegriff). Prolonga incontes-
tavelmente o político, uma vez que este implica a inimizade,
mas não se reconduz a ele, uma vez que tem a sua própria
essência. Schmitt lembra com efeito que, se a guerra tem a
sua óptica e as suas regras próprias, estas «supõem contudo
que a decisão política, aquela que designa o inimigo, é um

24
DA GUERRA REGULAR AO RETORNO DA GUERRA JUSTA

facto previamente adquirido»3. Sustentando que o político,


mesmo em tempo de paz, possui uma dimensão conflitu-
al, Schmitt adopta uma posição próxima da de Clausewitz,
mas que não se confunde com esta; antes tende a comple-
tá-la e a ultrapassá-la. Clausewitz vê aquilo que há de polí-
tico na guerra, Schmitt o que há de conflitual na política.
Schmitt propõe simultaneamente uma concep-
ção política da inimizade. O inimigo deve, segundo ele,
ser olhado politicamente: deve continuar a ser um ini-
migo político, quer isto dizer um adversário que se com-
bate, certamente, mas com quem se poderá fazer um dia
a paz. Na óptica do jus publicum europaeum, a paz é clara-
mente o propósito da guerra: toda a guerra se conclui na-
turalmente por um tratado de paz. E como é somente
com o inimigo que se pode fazer a paz, tal implica que os
beligerantes se reconheçam mutuamente. Um tal reconhe-
cimento (do Outro, simultaneamente, na sua mesmidade
e na sua alteridade) é a própria condição da possibilidade
de uma paz, uma vez que só pode ser convidado a concluir
um tratado de paz, um beligerante que se tenha previamen-
te reconhecido. É isto que permite a Schmitt afirmar que
uma guerra absoluta, uma guerra total, seria um desastre de
um ponto de vista estritamente político na medida em que,
visando aniquilar o inimigo, resultaria ao mesmo tempo
no desaparecimento do elemento constitutivo do político4.
Carl Schmitt afirma que a «guerra regular», caracte-
rística da ordem westfaliana fundada sobre o jus publicum eu-
ropaeum, que substituiu a antiga respublica christiana, é o con-
flito onde os beligerantes «se respeitam, mesmo na guerra,
enquanto inimigos sem se discriminar mutuamente como
criminosos, de modo que a obtenção de uma paz é possível
e aí reside o desfecho normal e completamente natural da
guerra»5. A guerra conduzida segundo o antigo direito das

25
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

gentes obedece a regras definindo, por exemplo, a conduta


das tropas em relação aos prisioneiros e aos civis, o respeito
pelos neutrais, a imunidade dos embaixadores, as regras de
rendição de uma praça-forte, as modalidades de conclusão de
um tratado de paz. Quase nunca visa depor um soberano ou
mudar o regime de um país, mas mira, muito frequentemen-
te, simples alvos territoriais. Enfim, é uma realidade exclu-
sivamente inter-estatal. O Estado detém simultaneamente o
monopólio da violência legítima (Max Weber) e o monopólio
da decisão política (Schmitt), quer isto dizer que as guerras
privadas e as vendetas familiares são interditas (interdição
que se estenderá progressivamente ao duelo). Tal significa
também que os indivíduos não podem continuar a ser ini-
migos (públicos) senão enquanto membros ou cidadãos de
um Estado, e já não individualmente, por eles mesmos. Na
ordem westfaliana, o jus ad bellum é reconhecido a todo o so-
berano, uma vez que faz parte das liberdades ou dos direitos
constitutivos da soberania dos Estados. Um tal sistema exclui
a própria ideia de uma «polícia internacional». Reconhece
por outro lado a legitimidade da neutralidade de terceiros.
Aos olhos de Schmitt, o grande mérito do jus publicum
europaeum foi substituir a doutrina medieval da «guerra jus-
ta», de inspiração moral, por uma doutrina política da «guerra
segundo as regras» ou «guerra regular» (Vattel). Foi a partir
daí, com a afirmação dos Estados soberanos, nomeadamente
em relação à Igreja romana (posteriormente à «neutraliza-
ção» das guerras de religião que dividiram e devastaram a
Europa), que esta nova doutrina se implantou. Esta evolução
conduziu, em primeiro lugar, ao reconhecimento da persona-
lidade soberana e igual soberania dos Estados, seguidamen-
te levou a que se pusesse a tónica, já não sobre o jus ad bellum
(as condições que autorizam a guerra), mas sobre o jus in bello
(as condições nas quais a guerra se deve desenrolar). A

26
DA GUERRA REGULAR AO RETORNO DA GUERRA JUSTA

partir desse momento, já não é a guerra que é aceite quan-


do declarada justa, mas o inimigo que se torna «justo»
na própria medida em que é reconhecido. A guerra entre
os Estados é, pois, uma guerra fundamentalmente simé-
trica. Decalca-se sobre o modelo do duelo, opondo adver-
sários que reconhecem mutuamente a sua aequalitas e
observam, quer um quer outro, as regras de um mesmo
código. Graças ao conceito formal de justus hostis, de ini-
migo reconhecido, o estatuto de direito público atribuído
à guerra faz dela um enfrentamento regulamentado entre
Estados soberanos formalmente iguais, o que no fundo
«pouco mais é do que um duelo entre homens de honra»6.
Longe de pensar que a guerra liberta das regras do
direito, Schmitt advoga pelo contrário, incansavelmente, que
esta continue submetida aos princípios do jus in bello. Como
escreveu Norbert Campagna, «a noção schmittiana de guer-
ra é uma noção arreigadamente jurídica»7. O jus publicum eu-
ropaeum, instituindo limites a não ultrapassar, impediu que
os conflitos armados degenerassem em guerra total, quer
isto dizer em «exterminação cega e recíproca». Foi assim, es-
creveu Schmitt, que se conseguiu «racionalizar, humanizar
e juridificar, numa palavra: circunscrever a guerra»8, quer
isto dizer, limitá-la. A doutrina da «guerra regular» equivale
a uma limitação da guerra uma vez que ela torna impossível
a guerra de aniquilamento. O jus publicum europaeum foi o
Katechon por excelência, o grande retardador do advento de
um retorno das guerras justas sob o horizonte do universa-
lismo jurídico. A guerra nunca é, pois, para Schmitt, um fim
em si. Para este, ela não tem sequer valor como representa-
ção simbólica (ou estética) da existência humana: «os valores
guerreiros», já o dissemos, são-lhe totalmente alheios. Uma
tal concepção da guerra, embora reconhecendo que ela é ine-
vitável, está claramente ao serviço da paz. Enquanto que a po-

27
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

lítica é definida pelo elemento da conflitualidade que contém,


a guerra é apresentada como excepção, como uma perturba-
ção momentânea da ordem normal das coisas que é a paz.
A guerra total é uma guerra que, por oposição à
guerra regular, não conhece nenhum tipo de limitação. É
este tipo de guerra que encontramos exaltado no monoteís-
mo bíblico, sob a forma da «guerra santa obrigatória» (mi-
lhemit mitzva) levada a cabo contra os inimigos de Deus.
O inimigo já não é pois, mais um simples adversário, com
quem nos podemos reconciliar, mas uma figura do Mal,
que é necessário erradicar. O livro de Josué, nomeada-
mente, descreve longamente a exterminação do inimigo, a
destruição das suas cidades, a execução das mulheres, das
crianças e mesmo dos animais, a mutilação de cadáveres,
etc., tudo coisas que apresenta como um dever sagrado9.
De uma reelaboração pelos teólogos cristãos desta
doutrina bíblica nascerá na Idade Média a doutrina da guerra
justa (bellum justum), que já não é uma guerra explicitamen-
te desejada por Deus, mas que pode ser conduzida legitima-
mente conquanto que obedeça a certas regras e condições.10
As condições clássicas da guerra justa são a justa causa, a
legítima defesa, a proporcionalidade dos meios e o último
recurso. A guerra deve ser conduzida pela autoridade com-
petente, ter por objectivo a paz, corresponder a uma «recta
intenção», obedecer a certas regras na condução das opera-
ções, não fazer vítimas desnecessárias, etc. Como o sublinha
Danilo Zolo, é também uma guerra essencialmente terrestre
pressupondo a presença de uma autorictas spiritualis estável,
na ocorrência, a da Igreja católica romana. Um ponto impor-
tante é que essas regras são apenas válidas para os povos da
respublica christiana, não se aplicando portanto aos pagãos,
aos «infiéis», aos «bárbaros», aos «selvagens», aos piratas,
etc., os quais nunca podem aspirar a beneficiar delas. De tal

28
DA GUERRA REGULAR AO RETORNO DA GUERRA JUSTA

resulta que todas as cruzadas são, ipso facto, guerras justas, va-
lendo os mandatos pontificais como títulos para a conquista
territorial das terras pertencentes a povos não-cristãos. A ini-
mizade sem limites é assim arremessada para fora do mundo
europeu. A teoria da guerra justa introduz pois uma concep-
ção discriminatória da guerra: se há guerras justas, há tam-
bém guerras injustas. Mas divide também a humanidade em
duas: contra os «infiéis» e os «bárbaros», tudo é permitido.
Carl Schmitt, no seu ensaio de 1938 sobre «a vira-
gem em direcção ao conceito discriminatório de guerra»11,
situa o começo da desagregação do antigo direito das gen-
tes por volta de 1890. Este processo concluir-se-á durante
a Primeira Guerra Mundial, que começa sob formas ainda
tradicionais, mas que desemboca a partir de 1917 numa
guerra de novo tipo. A era da guerra justa moderna inicia-
se com a assinatura do Tratado de Versalhes e pela vontade
das potências aliadas em levar perante a justiça o imperador
Guilherme II, sob a acusação principal de «ultraje supremo
à moral internacional e à santidade dos tratados», pelo facto
de ter começado a guerra. Foi assim abandonado um dos
princípios fundadores do jus publicum europaeum, segundo
o qual não existiria sobre a terra potência alguma que tives-
se o direito de julgar o soberano (Hobbes: Non est potestas
super terram quoe comparetur ei). Doravante, aquele que de-
clara uma guerra pode ser encarado como um culpado, que
é necessário julgar e sancionar, como um criminoso. As con-
sequências revelar-se-ão devastadoras. «Schmitt considera,
escreve Norbert Campagna, (…), que as guerras deixaram de
ser, aparentemente, lutas entre adversários que se reconhe-
cem os mesmos direitos e o mesmo estatuto, tendendo cada
vez mais a tornar-se acções policiais, opondo os polícias da
ordem internacional ao Estado julgado agressor. A guerra
torna-se assim uma espécie de luta entre as forças do bem e

29
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

as forças do mal, entre aqueles que se arrogam o direito de


julgar e aqueles que devem ser postos no banco dos réus»12.
A guerra justa dos tempos modernos é uma noção
militar ou política? Podemos pensar que ela extravasa larga-
mente as exigências de uma simples luta armada, mas cons-
tatamos ao mesmo tempo que implica uma representação
do inimigo que vai, também ela, muito para lá da definição
propriamente política que Carl Schmitt dá desse termo. A
guerra justa é de facto uma noção moral, onde o Mal se apre-
senta, de imediato, como um absoluto. Da mesma forma,
é igualmente antipolítica, naquilo em que procura aniqui-
lar o inimigo, que é o elemento constitutivo do político. A
guerra «discriminatória» moderna, dirá Schmitt, equivale a
uma regressão do conceito jurídico de justus hostis para um
conceito de inimigo quase teológico. A apropriação teológica
do conceito de guerra e do princípio do reconhecimento (ou
do não reconhecimento) conduz com efeito infalivelmente à
transformação do inimigo num criminoso ou num fora-da-
lei. «A teoria actual da guerra justa, escreve Schmitt, visa (…)
discriminar o adversário que leva a cabo uma guerra injusta.
A guerra torna-se num crime na acepção penal da palavra. O
agressor é declarado criminoso no sentido extremo que tem
a palavra em direito penal; é declarado outlaw, como o pirata»
Dizer que o inimigo é um criminoso é uma maneira
de lhe negar qualquer pretensão política, logo de o desqualifi-
car politicamente. Não podendo o criminoso reivindicar uma
opinião ou uma ideia, cuja veracidade pudesse vir a ser neces-
sário avaliar; ele é um ser intrinsecamente nocivo. Quando
se combate em nome daquilo que é um valor absoluto, o que
combatemos é absolutamente destituído de valor: é declara-
do não-valor absoluto. A criminalização do inimigo trás pois
consigo o apagamento das limitações (Hegungen) acarreta-
das à guerra pelo direito público europeu. «A introdução (ou

30
DA GUERRA REGULAR AO RETORNO DA GUERRA JUSTA

a reintrodução) duma perspectiva moral no direito, escreve


Jean-François Kervégan, supõe o recurso a um novo conceito
de inimigo, o de inimigo total, culminando na transformação
da guerra “limitada”, a guerra clássica entre potências sobe-
ranas juridicamente iguais, em guerra total»14. De facto, com
a diabolização do adversário, o aniquilamento do inimigo
identificado como Mal absoluto torna-se, mesmo para lá das
condições necessárias à vitória, num imperativo moral. É o
que constata Carl Schmitt quando escreve: «as guerras desse
tipo distinguem-se fatalmente pela sua violência e pela sua
inumanidade já que, transcendendo o político, necessário é
que desacreditem, também, o inimigo nas categorias morais
e noutras fazendo dele um monstro inumano, que não bas-
ta repelir, mas que deve ser definitivamente aniquilado»15.
A guerra justa dos tempos modernos adquire assim,
simultaneamente, um duplo carácter, o de uma guerra emi-
nentemente moral e o de uma operação de polícia destinada
a castigar um inimigo discernido doravante como um crimi-
noso. Esta evolução atingirá o seu apogeu com a desqualifi-
cação radical (provisória) de todo o empreendimento guer-
reiro que não seja defensivo, sendo a guerra de agressão,
declarada unilateralmente, assimilada a um crime penal.
A ideia da supressão definitiva da guerra remonta
pelo menos a Erasmo, que afirma na Querela pacis que «não
há paz, mesmo injusta, que não seja preferível à mais justa
das guerras». A partir da segunda metade do século XVIII,
espalha-se a ideia de que é possível à humanidade encami-
nhar-se, progressivamente, em direcção ao que o abade de
Saint-Pierre e Immanuel Kant chamam «paz perpétua». No
século seguinte, esta convicção instala-se em meios muito
diferentes, mas todos igualmente herdeiros da filosofia das
Luzes. Os liberais pensam então que o «doce comércio» apro-
ximará progressivamente as nações, enquanto que os socia-

31
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

listas imaginam que a sociedade futura verá a abolição de


todas as causas de conflito, uns e outros comungando numa
mesma visão ecuménica e optimista do «progresso». As suas
esperanças serão varridas pela história do século XX, sem
que no entanto a ilusão pacifista desapareça completamente.
Após a Primeira Guerra Mundial, vemos com efeito
persistir uma corrente que continua a militar pela supres-
são e pela criminalização da guerra. É o falhanço patente
desta posição, mas também a persistência do ideal de uma
sociedade onde a guerra desapareceria para sempre, que
conduzem hoje ao reaparecimento da noção de guerra justa,
à legitimação da guerra por uma doutrina moral identifica-
da com a ideologia dos direitos do homem, tornando nova-
mente possível a guerra de aniquilamento, tanto mais que
o desenvolvimento da técnica permite, doravante, o aperfei-
çoamento de armas de destruição de uma amplitude jamais
vista. Já não se trata da guerra justa no sentido medieval,
que conhecia ainda algumas limitações, mas da guerra jus-
ta conduzida em nome da «humanidade», da «liberdade»
e do «direito». Já com o pacto Briand-Kellog de 1928, não
era tanto a guerra, enquanto tal, que se condenava mas o
direito das nações e dos Estados em levá-la a cabo. As guer-
ras nacionais foram assim decretadas injustas, enquanto a
guerra internacional, a guerra levada a cabo em nome da hu-
manidade, se tornava em simultâneo na nova guerra justa.
O perigo desta evolução, «é que ela (…) impõe à política o
engodo mortal de uma paz perpétua que tem todas as con-
dições de se transformar em guerra perpétua»16. Ela resu-
me-se numa fórmula: «Perpetual war for perpetual peace».
É convicção de Carl Schmitt que «o mundo político
não é um universum, mas um pluriversum»17. A razão disto
deve-se ao facto da humanidade ser, quer uma categoria bio-
lógica, quer uma categoria moral; não um conceito político.

32
DA GUERRA REGULAR AO RETORNO DA GUERRA JUSTA

Schmitt cita aqui a célebre frase de Proudhon: «Quem diz


humanidade quer enganar». «Quando um Estado combate
o seu inimigo político em nome da humanidade, explica ele,
não é uma guerra da humanidade, mas antes uma na qual,
um dado Estado, afrontando o adversário, procura açam-
barcar um conceito universal para com ele se identificar a
expensas do seu adversário»18. «O conceito de humanidade,
acrescenta, é um instrumento ideológico particularmen-
te útil às expansões imperialistas». A noção de inimigo da
humanidade é efectivamente uma contradição nos termos
dado que, por definição, a humanidade não pode ter inimi-
gos entre os humanos. É por causa disso que as guerras em
nome da humanidade resultam indubitavelmente na nega-
ção da qualidade de ser humano ao inimigo: bater-se em
nome da humanidade leva necessariamente a pôr os seus
inimigos fora da humanidade. Ora, contra aquele que foi
posto fora da humanidade, tudo se torna permitido. Desde
logo, o inimigo desta não é mais um simples adversário
do momento, que poderia de igual forma transformar-se
amanhã em aliado, mas uma figura do Mal, um «inimi-
go do género humano», um criminoso a punir, podendo
ser empregues todos os meios que permitam subjugá-lo19.
Em França, a 7 de Agosto de 1793, o convencionala
Garnier de Saintes tinha já proposto à Convenção que o esta-
dista inglês William Pitt fosse declarado «inimigo do género
humano», a fim de que toda a gente tivesse o direito de o
assassinar. Combater em nome da humanidade significa, de
facto, colocarmo-nos em posição de decretar quem é huma-
no e quem não o é. Tal é o paradoxo: todo o discurso que
pretende apagar as fronteiras entre os homens para estender
a noção de «nós» à totalidade da espécie humana resulta na
recriação, no próprio seio da humanidade, de uma linha de
fractura e de exclusão mais radical do que as outras. «Com

33
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

efeito não é senão com o homem entendido como humanida-


de absoluta que surge o inverso desse mesmo conceito, o seu
novo inimigo específico, o homem inumano (Unmensch)»,
escreve Schmitt20. A guerra em nome da moral é pois o
exemplo acabado da guerra mais inumana. O universalismo
abstracto faz dos adversários inimigos absolutos e transfor-
ma as guerras «humanitárias» em guerras de extermínio.
A exemplo da França revolucionária, os Estados
Unidos não cessaram de proclamar que as causas que defen-
diam eram conformes aos interesses da humanidade. A ban-
deira dos Estados Unidos, dizia já Woodrow Wilson, «não é
somente a bandeira da América, mas a da humanidade»21.
«Estamos em vias de nos tornarmos rapidamen-
te numa nação de cruzados humanitários», ob-
servava Irving Babbitt em 192422. «O ideal da
América é a esperança da humanidade», afirmaria
ainda George W. Bush num discurso pronunciado em 11 de
Setembro de 2002, um ano depois dos atentados de Nova
Iorque e de Washington.
Em vez de «humanidade», Schmitt poderia, com
igual acerto, ter falado de «liberdade». No decurso da histó-
ria, a liberdade foi, também ela, constantemente alegada pe-
los Estados Unidos para justificar as suas empresas de con-
quista ou de anexação. Foi através do conceito de «império da
liberdade», teorizado por Jefferson, que justificaram as suas
primeiras conquistas territoriais em detrimento da Espanha
(em Cuba) e do México (no Texas). Foi também em nome
da «liberdade» que intervieram no Vietname. Foi ainda em
seu nome que fizeram a guerra no Iraque, mergulhando as-
sim esse país na guerra civil e no caos. No seu discurso so-
bre o Estado da União de 28 de Janeiro de 2003, George W.
Bush dirá: «A liberdade que louvamos não é uma dádiva da
América ao mundo; é uma dádiva de Deus à humanidade».

34
DA GUERRA REGULAR AO RETORNO DA GUERRA JUSTA

Não é indiferente, deste ponto de vista, que a época


em que se proclamou com maior vigor os direitos do ho-
mem fosse também aquela onde as guerras se revelaram,
concretamente, mais desumanas. Esta constatação, segundo
Carl Schmitt, nada tem de paradoxal, dado que quando nos
batemos em nome da humanidade julgamos ter boas razões
para ver os nossos inimigos como inumanos (Unmenschen).
O humanismo proclamado resulta na desumanização de fac-
to. A guerra levada a cabo contra o Kosovo em nome dos
«direitos do homem» traduziu-se por uma violação sistemá-
tica dos direitos dos Sérvios, conjuntamente com um bom
número de «danos colaterais». A guerra conduzida contra
o Iraque em nome da «liberdade» saldou-se por aquilo que
o general Tommy Franks qualificou como «catastrophic suc-
cess». Outra razão aduzida, não pode haver direitos funda-
mentais intemporais, uma vez que aquilo que é fundamen-
tal é sempre determinado por uma dada época ou cultura23.
A guerra total não marca somente um retorno ao
«estado natural» tal como o imaginava Hobbes. As guerras
onde o inimigo é considerado como um criminoso ou um fo-
ra-da-lei traem por isso o seu carácter teológico ou religioso.
Como as cruzadas, as guerras de religião ou as guerras leva-
das a cabo contra os heréticos ou os pagãos, são guerras sem
limites, guerras a todo o transe, porque se ordenam segundo
categorias morais entre as quais não pode haver reconcilia-
ção. «É óbvio, assinala Norbert Campagna, que o mal não
poderia ser “igual em direito” ao bem: as forças que comba-
tem pelo bem arrogam-se todos os direitos, as forças que se
dispuseram do lado do mal vêem-se, por seu lado, privadas
de todos os direitos, uma vez que é inconcebível conceder o
mínimo direito às forças do mal (…) Os “bons” podem lançar
as suas bombas sobre as populações civis, os “maus” não
têm o direito de o fazer (…) Se a causa de uma guerra é justa,

35
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

por pouco cuidado que se tenha em fazê-la de acordo com as


regras, todos os actos de hostilidade que aí se cometam são
justos por eles mesmos»24. A luta em nome do Bem autori-
za, não somente a ingerência nos assuntos internos de um
Estado soberano (em nome da humanidade, da liberdade,
da democracia ou dos direitos do homem), mas também a
restrição das liberdades, a abertura de campos que permitam
o internamento de prisioneiros sem nenhum estatuto jurí-
dico, o bombardeamento de populações civis, a destruição
de infra-estruturas industriais, o recurso à tortura, o uso do
napalm ou do fósforo branco, de projécteis de urânio empo-
brecido, de bombas de fragmentação, de minas anti-pessoal,
etc. Num debate público organizado na CBS em 1996, a an-
tiga secretária de Estado Madeleine Albright viu-se interro-
gada por Leslie Stahl acerca da necessidade que teria havido
em se efectuar um bloqueio contra o Iraque conduzindo à
morte de 500.000 crianças iraquianas («Afirmou-se que
mais de meio milhão de crianças morreram no Iraque. São
mais crianças do que aquelas que morreram em Hiroshima.
Justificava-se um tal preço?»). A sua resposta foi inequívoca:
«Essa foi uma escolha muito difícil, mas nós pensamos que,
sim, o preço justificava-se»25.
As consequências da assimilação de um inimigo a
um culpado, a um criminoso que é necessário castigar, são
pois consideráveis. «Tal leva, escreve Jean-François Kervégan,
a transformar o direito internacional em anexo do direito pe-
nal, e a guerra em acção de polícia destinada a reprimir o
culpado»26. Sendo tradicionalmente a repressão dos crimes
e delitos da alçada das forças policiais, o poder militar toma
então, pouco a pouco, o carácter de uma força policial. Em
1904, Theodore Roosevelt declara que os Estados poderiam
muito bem ver-se forçados no futuro a «exercer um poder
de polícia internacional». Entre as duas guerras, à época do

36
DA GUERRA REGULAR AO RETORNO DA GUERRA JUSTA

pacto Briand-Kellog (1928) a «proscrição da guerra» levará


os beligerantes, para não verem as suas iniciativas crimina-
lizadas, a redefinir as suas intervenções similarmente como
acções de polícia internacional.
Apaga-se simultaneamente a fronteira entre política
interna e política externa, até mesmo entre guerra externa
e guerra civil. Como observa Claude Polin, «As novas guer-
ras são, e não podem deixar de ser senão, universais (mun-
diais), impiedosas (sem quartel), sem limite (totais) e sem
regra (são guerras civis internacionais)»27. A guerra justa,
sublinha Carl Schmitt em bastantes ocasiões, leva inevitavel-
mente à guerra civil pelo simples facto de poder ser levada a
cabo sem consideração pelas formas do jus in bello. De entre
as regras da «guerra regular», a distinção feita entre civil e
militar, ou entre combatente e não-combatente, era com efei-
to essencial. Esta distinção apaga-se automaticamente nas
guerras justas dos tempos modernos, onde se tende a consi-
derar que toda a população inimiga é culpada. O recurso aos
bombardeamentos aéreos indiscriminados, com o seu poder
de destruição e o carácter ao mesmo tempo anónimo e «in-
sensível» do acto de bombardear, é uma das consequências
lógicas desta evolução.
Assistimos por outro lado hoje em dia à proliferação
de actores não estatizados (organizações não-governamen-
tais, fundações privadas, multinacionais, grupos financei-
ros, grupos de pressão, etc.) em todos os domínios da vida
internacional. Esta evolução trás consigo, também ela, uma
redefinição das relações entre o público e o privado, o civil
e o militar. Enquanto os militares se tornam cada vez mais
em «técnicos» ou em «civis de uniforme», assistimos a uma
privatização acelerada de tudo aquilo que tem relação com a
segurança (ou com a prevenção da insegurança). A privatiza-
ção da guerra não resulta somente do facto dos beligerantes

37
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

serem, em muitos teatros de operações, civis que pegaram


em armas, ou de certas organizações criminosas terem, a
dada altura, recorrido a verdadeiros exércitos privados, como
é o caso dos narcotraficantes. Um outro facto notável é a rea-
parição de exércitos privados de mercenários, nomeadamen-
te nos Estados Unidos onde, na ausência de conscrição, os
efectivos do exército regular são relativamente reduzidos em
relação à população total.
As companhias militares privadas (private military
companies ou PMC), independentes ou não do complexo
militar-industrial, ocupam hoje em dia um lugar crescente
na arquitectura militar e de segurança nacional america-
na, visto que a sua utilização permite atenuar as reticências
do Congresso em enviar tropas clássicas para o terreno. O
volume de negócio dessas sociedades, por vezes cotadas
em Bolsa, está em constante alta. As mais conhecidas são
DynCorp Inc., Military Professional Resources Inc. (MPRI),
Kellog Brown & Rott (KBR), Blackwater Security Consulting,
Erinys, Sandline, Titan, Caci international. Etc. A KBR, que
pertence à multinacional Halliburton, onde diversos mem-
bros do governo Bush detêm interesses pessoais, assinou
em 13 de Junho de 2003 com o Pentágono um contrato no
valor de 200 milhões de dólares. A sociedade de segurança
Blackwater formou, apenas ela, cerca de 50.000 mercená-
rios em todo o mundo. Estas sociedades privadas, que estão
sempre à procura de novos mercados em matéria de defe-
sa e de segurança, foram o pivô da reorganização do dispo-
sitivo de combate do poderio americano no Golfo Pérsico.
Estão hoje especialmente activas no Iraque, onde cerca de
20.000 mercenários dão apoio logístico às forças clássicas,
sem preocupação excessiva acerca da escolha dos meios (e
sem que os seus mortos sejam contabilizados nas perdas so-
fridas pelo exército americano). Estes combatentes auxilia-

38
DA GUERRA REGULAR AO RETORNO DA GUERRA JUSTA

res, cujo salário pode chegar aos 1.000 dólares por dia, não
estão submetidos a quaisquer regras, convenção ou restrição
das suas acções. O seu estatuto é eminentemente paradoxal
uma vez que, embora legalmente engajados pelos Estados
Unidos, eles são tidos pelo direito internacional como com-
batentes ilegais28. «As companhias militares privadas, cujos
serviços são pagos pelo Pentágono, a um custo por vezes
excessivamente elevado, escreve Sami Makki, tornaram-se
essenciais a uma nova estratégia intervencionista que assen-
ta sobre a capacidade de projecção rápida das forças sobre
todos os pontos do planeta»29. O «mercado» do mercenário
é hoje em dia estimado em 100 milhões de dólares por ano30.
Paralelamente, mas em sentido inverso, constata-se uma mi-
litarização do humanitário, uma vez que a ajuda ao desen-
volvimento e a ajuda humanitária se tornaram, por si só, em
instrumentos auxiliares da luta contra as ameaças assimé-
tricas, e simultaneamente em multiplicadores de influência
sobre o panorama internacional.
O apagamento das fronteiras entre as categorias
clássicas da beligerância culmina finalmente numa amálga-
ma confusa das próprias noções de guerra e de paz. Com
efeito, quando o inimigo é erigido em figura do Mal, deixa
de ser possível fazer a paz com ele, uma vez que fazer a paz
levaria a negociar, a transigir com o Mal. No antigo direito
das gentes a derrota era considerada como uma «punição»
suficiente. Agora, é necessário acusar perante os tribunais
aqueles que se estigmatiza como «responsáveis» pela guer-
ra. A prossecução indefinida da guerra, inclusive em tempos
de paz, torna-se então num imperativo moral. Carl Schmitt
tinha acertadamente visto que o tratado de Versalhes e o
pacto Briand-Kellog criavam um estado intermédio entre a
guerra e a paz, no qual a paz se tornava uma espécie de pros-
secução da guerra por outros meios31. Desde então esta si-

39
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

tuação não parou de se desenvolver resultando numa quase


indistinção. A «guerra justa» dos tempos modernos já não
se conclui com um tratado de paz em boa e devida forma,
mas perdura, na paz, sob outras formas. Uma vez as armas
silenciadas, os culpados devem ainda ser punidos, enquanto
que as populações devem, eventualmente, ser «reeducadas».
As guerras já não têm fim: tornam-se intermináveis, visto
que se torna cada vez mais difícil pôr-lhes um fim porquanto
prosseguem na paz. «Guerra fria» ou «paz quente»: a belige-
rância torna-se, sob diversas formas, um estado permanente.
Trata-se simultaneamente do apagamento da fronteira entre
a excepção (que é a guerra) e a norma (que é normalmen-
te a paz). Enfim, sendo dado adquirido que, segundo Carl
Schmitt, a política implica o reconhecimento do inimigo,
assistimos também a uma completa inversão da fórmula de
Clausewitz sobre a guerra como continuação da política por
outros meios: a guerra torna-se «a destruição da política por
todos os meios»32.
Esta amálgama da fronteira entre a guerra e a paz é
muito mais danosa para a noção de paz que para a noção de
guerra. Em primeiro lugar porque a primeira não tem a mes-
ma polissemia que a segunda (há quase somente uma for-
ma de paz, enquanto que há numerosas formas de guerra).
Seguidamente porque se faz a guerra para obter a paz e não
a paz visando a guerra, sendo que a finalidade deve sempre
ser mais claramente definida do que os meios para a atingir.
Não há dúvida que a crítica que Carl Schmitt faz da
«guerra justa» dos tempos modernos diz primacialmen-
te respeito aos estados Unidos da América, uma vez que a
imensa maioria das guerras levadas a cabo por esse país não
foram guerras reguladas, «guerras-duelos», mas guerras
conduzidas contra inimigos tratados como criminosos e per-
seguidos até à sua capitulação total. Sabemos que para Carl

40
DA GUERRA REGULAR AO RETORNO DA GUERRA JUSTA

Schmitt «todos os conceitos seminais da doutrina moderna


do Estado resultam da secularização de antigas noções teoló-
gicas» («Alle prägnanten Begriffe der modernen Staatslehre sind
säkularisierte theologische Begriffe»). De um certo ponto de vis-
ta, a «teologia política» está ainda mais presente nos Estados
Unidos, na medida em que o lugar de primeiro plano que aí
ocupa uma religião civil omnipresente explica largamente o
carácter messiânico da política estrangeira americana, carác-
ter que transcende a clivagem entre republicanos e democra-
tas (ou mesmo entre intervencionistas e isolacionistas).
Hermann Melville, no século XIX, afirmava no seu
romance La vareuse blanche (White-Jacket): «Nós, america-
nos, somos de certa maneira o povo eleito, privilegiado, o
Israel dos nossos tempos. Carregamos a Arca das liberdades
do mundo (…) Deus concedeu-nos, em feição de herança fu-
tura, os vastos domínios dos pagãos políticos (…) o resto do
mundo seguirá bem depressa na nossa esteira». Invocada
nos Estados Unidos durante toda a segunda metade des-
te mesmo século XIX, a doutrina do «Destino manifesto»
(Manifest Destiny), enunciada em 1845 por Sean O’Sullivan
, realiza a fusão do imperialismo e da eleição divina, dan-
do simultaneamente uma legitimidade religiosa e moral à
conquista política, cultural e comercial33. O senador Albert
J. Beveridge dirá: «Deus não preparou desde há mil anos os
povos de língua inglesa para uma vã e fútil admiração e auto-
admiração. Não! Ele fez de nós amos organizadores do mun-
do para estabelecer um sistema lá onde reine o caos»34. Esta
maneira de ver, que remonta aos Pilgrim Fathers e ao mito
da «Cidade sobre a colina», nunca se extinguiu. Poderíamos
citar inumeráveis exemplos. Nova Terra prometida, os
Estados Unidos crêem que os seus valores são universais
e, considerando-se como investidos de uma missão divina,
procuram com toda a boa consciência impô-los ao resto do

41
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

mundo35. Para mais, não declarava Ronald Reagan em 1980:


«podemos nós duvidar que somente uma divina Providência
fez desta terra uma ilha de liberdade?» Bill Clinton afirma-
va, por sua vez, aquando do discurso de inauguração do seu
segundo mandato, que «a América se tornou na única nação
indispensável».
Por influência dos acontecimentos do 11 de Setembro
de 2001, a colusão entre os neoconservadores e as Igrejas
protestantes de filiação evangélica acentuou-se de forma re-
veladora. A visão messiânica, herdada do puritanismo e da
doutrina calvinista da predestinação, que durante longo tem-
po cimentou o consenso da sociedade americana, conheceu
um novo florescimento. O mito da América «nação eleita»
encarregue de impor o Bem por todo o lado no mundo e con-
tra a qual as forças do Mal não conseguiriam prevalecer, uma
vez que a Providência presidiu à sua nascença, foi reactiva-
do, como na época do Grande Despertar (Great Awakening)
dos anos 1730-60, com uma força raramente vista, não so-
mente no domínio político ou diplomático, mas também ge-
opolítico. «O nosso nacionalismo, escrevem William Kristol
e David Brooks, é o de uma nação excepcional fundada sobre
um princípio universal, sobre aquilo a que Lincoln chamava
uma “verdade abstracta, aplicável a todos os homens de todos
os tempos”»36. Esta visão reconforta-se com a certeza de ser
portadora daquilo que de melhor existe em matéria política
e social: «Os Americanos não devem negar que, de todas as
nações do mundo, é a sua que é a mais justa (…) e o melhor
modelo para o futuro»37. «Se os Estados Unidos represen-
tam um povo eleito por Deus, observa Kenneth M. Coleman,
então é quase impossível de conceber uma situação na qual
os interesses da humanidade não sejam altamente similares
aos dos Estados Unidos»38. «Há um sistema de valores dos
quais não podemos abdicar, valores esses dos quais nos re-

42
DA GUERRA REGULAR AO RETORNO DA GUERRA JUSTA

clamamos. E se estes valores são suficientemente bons para


o nosso povo, eles devem também ser suficientemente bons
para os outros», lia-se ainda recentemente no Washington
Post39. Poderíamos, ainda aqui, multiplicar as citações. Uma
tal atmosfera resulta tendencialmente numa fusão de nacio-
nalismo e de messianismo: «De braço armado do messias
cristão, o Tio Sam torna-se, ele próprio, no Messias»40.
Esta certeza messiânica de encarnar o Bem, esta
tendência para estabelecer os princípios americanos como
equivalentes a princípios universais, faz da América um
«império virtuoso», onde Claes G. Ryn pôde ver, paradoxal-
mente, a marca de um «novo jacobinismo»41. Este «jacobi-
nismo» consiste em querer alinhar todas as sociedades pelo
modelo americano, fazendo desaparecer todas as culturas
políticas diferenciadas em proveito de uma «democracia de
mercado» (market democracy) planetária. John Gray crê sub-
sequentemente que a política externa americana se funda
sobre a convicção ideológica que o «Estado de mercado», é
o único modo de governo legítimo, muito embora este seja
apenas uma construção especificamente americana42. De
facto, sublinhámos frequentemente a maneira como um
grande número de Americanos têm tendência a confundir
os Estados Unidos com o mundo, um mundo que é conside-
rado como não podendo tornar-se compreensível senão após
ter sido convenientemente americanizado. Historicamente,
o universalismo sempre favoreceu o expansionismo e o co-
lonialismo. As conquistas coloniais foram oficialmente mo-
tivadas pelo desejo de expandir pelo mundo os princípios da
«civilização» e do «progresso», um e outro identificados com
uma cultura particular caracterizando-se a ela própria como
«universal». Os valores ou as aspirações próprias de uma
potência em particular encontravam-se assim identificados
com as leis morais que se supunha governarem o univer-

43
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

so: um interesse nacional particular era universalizado até


se tornar, teoricamente, no interesse de toda a humanidade.
Deste ponto de vista resulta que os colonizados o são para
seu bem, e que o interesse dos dominados está precisamen-
te em sê-lo. Numa tal perspectiva, toda a recusa de adoptar
um modelo apresentado como o melhor possível, é natural-
mente interpretada como uma manifestação de tontice ou de
hostilidade perversa. Interpretação intrinsecamente polemó-
logab: «A ideologia do império virtuoso implica, não somen-
te a dominação mundial da América, mas a remodelação do
mundo à sua imagem, escreve Ryn, é uma receita para o
conflito e para a guerra perpétua»43.
Na própria medida em que se sentem ameaçados por
tudo o que difere deles, os Estados Unidos aspiram no fundo
a um mundo sem inimigos, sem ameaças, o que equivale
inevitavelmente a um mundo homogéneo. Pensam que não
estarão verdadeiramente em segurança senão quando tudo
o que é arraigadamente diferente tiver sido eliminado, quer
isto dizer assim que o mundo inteiro tiver sido americaniza-
do. O seu unilateralismo, mais ainda que o seu intervencio-
nismo, não se explica de outra forma.1
Desde logo, aquando da assinatura do pacto Briand-
Kellog, os Estados Unidos (que tinham recusado aderir à
Sociedade das Nações) tinham feito saber que se reserva-
b
NDT – A Polemologia é o estudo científico das guerras e seus efeitos,
formas, causas e funções enquanto fenómeno social. O termo foi proposto
em 1946 pelo sociólogo e economista francês Gaston Bouthoul (1896-
1980) no seu livro Cent millions de morts, tendo sido abraçado por múl-
tiplas áreas das ciências militares, das ciências políticas e do estudo das
relações internacionais. A aceitação da polemologia como um ramo de
estudo no campo das ciências políticas pressupõe o abandono da aceita-
ção da guerra como um fenómeno exclusivamente consciente e voluntá-
rio, bem como da noção de que os conflitos bélicos possam ser evitados
utilizando mecanismos jurídicos de regulação das relações entre povos e
Estados.

44
DA GUERRA REGULAR AO RETORNO DA GUERRA JUSTA

vam o direito de serem os únicos juízes daquilo que cons-


tituía uma guerra de agressão ou daquilo que justificava o
reconhecimento ou o não-reconhecimento de um Estado.
Muito mais recentemente, em Abril de 2001, retiraram-se
da comissão dos direitos do homem da ONU. Em Novembro
de 2001, confirmaram a sua recusa em ratificar a conven-
ção internacional, já assinada e ratificada por 144 países,
que interdita o fabrico, a aquisição e o armazenamento de
armas biológicas, por não aceitarem a inspecção ou o con-
trolo dos seus laboratórios e dos seus arsenais. Alguns dias
mais tarde, denunciavam unilateralmente o tratado ABM
de 1972 que limita o desdobramento da defesa antimísseis.
Recusaram também assinar o tratado que proscreve as mi-
nas anti-pessoais, assinado em Fevereiro de 2001 por 123
países, bem como o tratado de Quioto sobre a protecção do
meio ambiente e o aquecimento da atmosfera. Em Maio de
2001, recusaram toda a discussão com os seus parceiros
europeus sobre a rede de espionagem e escuta «Echelon».
Opõem-se ainda ao mundo inteiro sobre a prod s geneti-
camente modificados (OGM) e de carne enriquecida com
hormonas. São igualmente o único país ocidental que nunca
ratificou a convenção sobre a eliminação de todas as formas
de discriminação contra as mulheres adoptada em 1979 pe-
las Nações Unidas, nem a convenção de 1989 sobre os direi-
tos da criança. Fizeram saber que não reconhecem, naquilo
que concerne aos seus expatriados, a autoridade do Tribunal
Penal Internacional (TPI) de Haia, cuja cr iação não obstante
financiaram. Enfim, como se sabe, foi sem o aval da ONU,
e em oposição à vasta maioria dos países da comunidade in-
ternacional, que decidiram atacar, invadir e ocupar o Iraque.
Em todos os dossiers, singularmente depois da che-
gada ao poder de George W. Bush, os Estados Unidos pare-
cem pois decididos a subtrair-se às normas internacionais e

45
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

a isentarem-se a eles próprios das regras que entendem apli-


car, ou fazer aplicar aos outros. Posicionam-se assim como
um país de excepção, como um país que, pela sua própria
natureza, teria a liberdade de não estar adstrito a nenhuma
das regras de direito que pretende, por outro, lado ver ob-
servadas pelos outros. Numa tal óptica, não podem senão
rejeitar como constrangedoras, obsoletas ou sem razão de
ser (irrelevant) as regras que, no melhor dos casos, não obs-
tante, não admitem que lhes sejam aplicadas. É por isso que
adoptam cada vez mais frequentemente uma atitude estri-
tamente unilateral. Não há dúvida que aos seus olhos, é ao
resto do mundo que cabe adaptar-se.
Enquanto que, como acabamos de ver, consideram
que os seus expatriados não podem ser julgados por ne-
nhuma instância penal internacional, os Estados Unidos
afirmam ao mesmo tempo que os cidadãos de outros paí-
ses são, por sua vez, justiçáveis pelas suas próprias leis44.
Transformam assim o direito penal num meio da sua sobe-
rania. «Como todo o Estado nacional, constata Jean-Claude
Paye, os Estados Unidos instauram um duplo sistema jurí-
dico, um Estado de direito para os nacionais e um Estado
vazio de direito para os estrangeiros. Classicamente, para as
outras nações, a distinção entre estas duas ordens jurídicas
articula-se sobre a fronteira. Contudo, para o Estado ameri-
cano, a fronteira não é um dado geográfico. O primado da
nacionalidade americana e a organização das duas ordens
jurídicas não operam sobre um território determinado mas
sobre o mundo inteiro. Trata-se, não só de permitir que os
expatriados americanos escapem aos tribunais internacio-
nais, quer isto dizer às jurisdições comuns, mas também de
fazer reconhecer, pelos outros Estados, o direito das auto-
ridades americanas em julgar os expatriados desses países
por jurisdições de excepção, especialmente criadas para esse

46
DA GUERRA REGULAR AO RETORNO DA GUERRA JUSTA

efeito»45.
Como vimos, os Estados Unidos não hesitam em
designar o inimigo, o que parece incontestavelmente muito
schmittiano. Fazem-no mesmo com uma resolução e com
uma energia que contrastam com a moleza e a indecisão de
que fazem, tão frequentemente, prova os Europeus. Mas esta
designação do inimigo não corresponde de forma alguma
aos critérios enunciados por Carl Schmitt. Não somente não
representa para eles o gesto político por excelência, um gesto
que, como tal, não poderia corresponder a outros critérios
de apreciação que não políticos, mas toma uma dimensão
imediatamente maniqueísta e moral. O inimigo da América
não é um adversário de circunstância, que poderia ocasional-
mente transformar-se em aliado. Confunde-se com o mal.
No seu discurso de 3 de Agosto de 1983, Ronald
Reagan tinha já designado a URSS e os países do bloco de
Leste como o «império do mal» (evil empire). A partir daí,
o sistema soviético cedeu o lugar ao «terrorismo mundial»
e aos «Estados párias» (rogue States), segundo a expressão
cunhada em 1994 por Madeleine Albright, mas o inimigo
continua a ser denunciado nos mesmos termos. Em conse-
quência dos atentados do 11 de Setembro, George W. Bush
optou, de imediato, por apresentar a guerra contra o terro-
rismo como uma «luta entre o Bem e o Mal» («O Bem e o
Mal raramente se manifestaram de forma tão clara»). Pediu
ao resto do mundo para se solidarizar com a sua «cruzada»
(«Juntem-se à nossa cruzada ou então encarem a perspectiva
certa da morte e da destruição»). Evocando os atentados de
Nova Iorque e de Washington, declarou: «Hoje, a nossa na-
ção viu o Diabo». A 29 de Janeiro de 2002, o presidente ame-
ricano empregaria também a expressão, forjada por David
Frum, de «eixo do mal» (axis of evil), que será vastamente
reutilizada daí em diante. Nesta visão, o mundo partilha-se

47
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

entre aqueles que militam pelo Bem e aqueles que se lhe


opõem, ou que são cúmplices do Mal. Não há terceiros, não
há posição de neutralidade possível. «Ou estão connosco, ou
estão com os terroristas», afirmará ainda George W. Bush
perante o Congresso a 20 de Setembro de 2002.46
O que é notável, é que o sistema maniqueísta que
concebe o mundo como um campo de batalha irremedia-
velmente dividido em dois campos, o do Bem e o do Mal,
encontra-se igualmente, hoje em dia, tanto no discurso de
Osama Bin Laden quanto no de Bush, e sem dúvida, nos
dois casos, com a mesma boa consciência. Bin Laden apela à
«jihad» contra o «grande Satã», George W. Bush à «cruzada»
contra o «eixo do Mal». O paralelismo é flagrante. À primei-
ra vista, tanto o presidente americano como o líder terrorista
aderem à ideia de que o mundo e a política só podem ser
compreendidos em termos de amigos e de inimigos47. Mas
ainda aí, enganar-nos-íamos em concluir por uma qualquer
influência do pensamento de Carl Schmitt. O modo como
um e outro encaram a questão da inimizade não é de forma
nenhuma schmittiano, já que a colocam em termos absolu-
tos, eliminando a possibilidade de existência de um terceiro
que poderia permanecer neutro. Noutros termos, eles não
crêem apenas na inevitabilidade de uma dimensão conflitual
da vida política, acreditam que essa conflitualidade coloca em
disputa apenas dois campos, devendo ser levada ao extremo,
o quanto antes. O elemento característico aqui é o elemento
religioso, e o facto deste se encontrar num e noutro discur-
so (cada um dos dois protagonistas negando bem entendido
esta pretensão ao outro, uma vez que para Bush, Bin Laden
não é mais do que um criminoso, sendo que para Bin Laden,
Bush não é mais do que o representante de um mundo ma-
terialista decadente, embora seja também um «cruzado»).
Jacques Derrida viu bem que a confrontação Bush-Bin Laden

48
DA GUERRA REGULAR AO RETORNO DA GUERRA JUSTA

põe fundamentalmente em jogo «duas teologias políticas»48.


Bruno Etienne, especialista no Islão, constatou o mesmo: «A
jihad opõe-se à cruzada, o Bem ao Mal, Alá ao grande Satã,
a fatwah afegã à “fatwah texana”; em súmula, confrontamo-
nos com uma luta fratricida opondo Deus a Deus»49. Carlo
Galli, excelente conhecedor de Carl Schmitt, fala igualmen-
te de «teologia apocalíptica»50. Fundamentalismo islâmico
dum lado, fundamentalismo neoconservador do outro.
Com os atentados do 11 de Setembro, os Estados
Unidos constataram em todo o caso que eram doravante
vulneráveis no seu próprio território. A tomada de consciên-
cia desta vulnerabilidade, contrastando com a sua convicção
(justificada) de possuir «uma força e uma influência inigua-
láveis e sem precedente no mundo»51, levou a uma redefi-
nição dos seus objectivos estratégicos e das suas formas de
acção.
A nova estratégia americana foi oficialmente enun-
ciada num relatório publicado em Setembro de 2002. Nele
se afirma, desde as primeiras páginas, que os Estados Unidos
não mais aceitarão que os seus inimigos possam atacar em
primeiro lugar: «Conforme ao senso comum e às regras
da autodefesa, a América reagirá contra as ameaças emer-
gentes antes que elas sejam plenamente concretizadas»52.
A justificação desta nova doutrina apoia-se sobre a noção,
iminentemente equívoca, de «ameaça iminente». «Devemos
adaptar o conceito de ameaça iminente às capacidades e aos
objectivos dos nossos adversários de hoje em dia», podemos
igualmente ler nesse documento53. Por oposição a toda a es-
tratégia reactiva ou de simples defesa, o ataque preventivo
torna-se então a regra. Já não se trata de esperar que a amea-
ça se concretize, é preciso preveni-la ou antecipá-la, atacando
em primeiro lugar. É isso, aliás, que já tinha indicado George
W. Bush num discurso pronunciado em Junho de 2002 pe-

49
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

rante a Academia Militar de West Point.


Estas orientações foram confirmadas pelo relatório
The National Defense Strategy of the United States of America,
publicado pelo departamento americano da Defesa em Março
de 2005, onde se pode ler: «Bateremos os nossos adversários
quando, onde e da maneira que tivermos escolhido, a fim de
criar as condições da nossa segurança futura»54. O texto real-
ça que «A América é um país em guerra» e que «os ataques
do 11 de Setembro clarificaram os desafios com os quais nos
confrontamos». Precisa-se que a soberania dos países que
representam uma «ameaça» poderá não ser respeitada55. Os
«países problemáticos» (problem States) são definidos como
aqueles que são «hostis aos princípios americanos». O do-
cumento reafirma o princípio da guerra preventiva contra
as «entidades hostis à liberdade, à democracia e aos outros
interesses americanos»56: «Permitir aos nossos adversários
atacar primeiro (…) é inaceitável. Os Estados Unidos devem
fazer face aos desafios mais perigosos de maneira precoce
e a distância segura, sem lhes permitir que se circunstan-
ciem»57. O espaço cibernético, enfim, é definido como um
«novo teatro de operações»58.
O problema é que esta doutrina da «legitima defe-
sa preventiva» contradiz formalmente a Carta das Nações
Unidas, cujo artigo 51 não admite senão legítima defesa em
resposta a um ataque de outro Estado, excluindo pois total-
mente o ataque «preventivo», mesmo quando este se fun-
damente na suposta existência de uma «ameaça iminente».
A interdição do recurso à força fora dos casos de legítima
defesa e da acção colectiva, posta em prática a pedido e/ou
sob a égide do Conselho de Segurança, figura igualmente
no artigo 2 da Carta da ONU. A razão disto é que a guerra
preventiva foi sempre assimilada pelo direito internacional
moderno à guerra de agressão.

50
DA GUERRA REGULAR AO RETORNO DA GUERRA JUSTA

No domínio dos assuntos internacionais, a im-


plementação desta doutrina traduziu-se pela guerra no
Afeganistão, seguida da segunda guerra do Iraque, desenca-
deada a título «preventivo», violando todas as regras do direi-
to internacional e sem o apoio da ONU. Simultaneamente,
os Estados Unidos exerceram as mais fortes pressões sobre
os seus aliados para que «também eles» violassem as dispo-
sições do direito internacional, ou seja os seus próprios prin-
cípios constitucionais, o que, não obstante, a grande maioria
se recusou a fazer, em função do princípio «quem não está
connosco está contra nós».
Sob George W. Bush, o militar parece assim suplan-
tar definitivamente o político, o diplomático e mesmo o eco-
nómico como meio de exercer uma influência ou de impor
uma hegemonia. Tornando-se um meio de uso permanente,
a guerra tende simultaneamente a instituir-se como um fim
em si, fazendo desaparecer a necessidade sociopolítica de
um tratado de paz. Paralelamente, a potência militar ameri-
cana torna-se ubíqua, ou seja susceptível de intervir em todo
o lado e a todo o momento, tendo em conta a globalização
do seu alcance, implicando uma capacidade de projectar o
seu poderio em não importa qual ponto do globo graças a
uma logística sofisticada das suas capacidades expedicioná-
rias (rede de bases aéreas e navais, militarização do espa-
ço, precisão no rastreamentos dos alvos, stocks modulares
pré-posicionados, recurso sistemático à informática, etc.).
A doutrina da guerra preventiva, enfim, revela o soberano.
Para dizê-lo em termos schmittianos: falar de «Estado pária»
(rogue State) reporta-se a dizer que é soberano aquele que
decide unilateralmente quem é um «pária».
A guerra preventiva foi frequentemente apresentada
na América, seja como uma força de legítima defesa por an-
tecipação, seja como uma forma militar do «princípio de pre-

51
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

caução». Resume-se de facto a sancionar um «delito» virtual


ou suposto antes mesmo de ele ter sido cometido, o que abre
a porta a todas as especulações sobre a intenção de o cometer
atribuída aos actores «ameaçadores». Uma das noveletas de
ficção científica de Philip K. Dick, intitulada Minority Report
(adaptada com sucesso ao cinema), imagina uma socieda-
de futura na qual os assassinos poderiam ser detidos antes
mesmo de cometer os seus crimes. A estratégia «preventiva»
dos Estados Unidos, estratégia de tipo profilático, é uma es-
pécie de extensão desse princípio, e choca com as mesmas
aporias que ele, a saber: um assassino ou um terrorista que
se prende antes de passar ao acto é com todo o rigor, se não
um «inocente», pelo menos alguém que ainda não fez nada,
no momento em que se lhe retira a sua liberdade. Esta estra-
tégia traduz-se em colocar fora de combate pessoas que não
infringiram a lei, pelo motivo de se estar convencido de que
tinham a intenção de a infringir. Desde logo, o problema que
se coloca é o da apreciação e da prova: como demonstrar uma
intenção? E como responder àqueles que contestam essa
apreciação? Como o escreveu Francesco Ragazzi, «a única
justificação possível para a intervenção, é o carácter infalível
da previsão»59. Mas como poderia ela sê-lo? Para justificar a
guerra contra o Iraque, alegou-se «armas de destruição mas-
siva» detidas pelo regime de Saddam Hussein, das quais este
teria intenção de se servir. Sabe-se hoje em dia que este argu-
mento não era mais que uma mentira de Estado60.
A adopção pelos Estados Unidos de uma justificação
para os ataques preventivos e do ataque em primeiro lugar,
ao mesmo tempo que marca uma ruptura manifesta com
as regras do direito internacional moderno, parece testemu-
nhar uma vontade de retorno ao modelo da «guerra justa»
medieval61. «O fim do argumentário da Casa Branca, escreve
Francesco Ragazzi, é bem o de fazer passar um acto reco-

52
DA GUERRA REGULAR AO RETORNO DA GUERRA JUSTA

nhecido como ilegal desde sempre por aquilo que seria uma
das características da “guerra justa”»62. Tal é contudo im-
possível, uma vez que a definição clássica da «guerra justa»,
em Grotius por exemplo, exclui formalmente o atacar em
primeiro e a guerra preventiva, desencadeada pelo medo ou
suposição de um ataque63. Para os antigos teóricos da guerra
justa, a guerra é em simultâneo sempre um mal (inevitável)
e um meio (legítimo) de remediar ao mal. A despeito do seu
pano de fundo «moral», a guerra justa, como já vimos aci-
ma, continua a obedecer a certos princípios e a responder
a certas condições. Nem tudo é pois aí permitido: a própria
existência do jus in bello contradiz o adágio Inter arma silent
leges («sob as armas, calam-se as leis»), a legítima defesa é,
ela própria, definida num sentido muito estrito.
A noção de guerra justa remete por outro lado para
a questão de saber estabelecer quem pode declarar que uma
guerra é justa ou não o é. Quem decide da conformidade à
«justiça» na circunstância? Na Idade Média, a decisão cabia
geralmente a um terceiro tido como imparcial. Mas George
W. Bush repele de chofre a ideia de um terceiro (que pode-
riam ser as Nações Unidas), tal como repele por inteiro a
ideia de neutralidade. A partir do momento em que a tarefa
de qualificar a guerra deixa de ser imputada a um terceiro, só
a potência dominante é susceptível de validar, como sendo
ou não justificada, a ideia de um empreendimento militar,
em qualquer dos casos a «guerra justa» não é mais do que
aquela levada a cabo pelo mais forte.
Se a doutrina da guerra justa está de volta, hoje
em dia, apoiada na ideologia dos direitos do homem,
quer isto dizer na versão moderna do direito natural sub-
jectivo, é pois de uma maneira «selvagem», sem levar em
conta o que fazia, na Idade Média, dizer de uma guerra
que ela era «justa» ou «injusta». É suficiente doravante,

53
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

para que uma guerra seja declarada justa (por aqueles que
a fazem), que esta seja conduzida em nome dos grandes
princípios da liberdade, da humanidade ou da democra-
cia, apenas com o inconveniente destes princípios serem
constantemente escarnecidos no decurso das hostilidades.
As outras condições perdem-se de vista. Mais do que às
guerras medievais, este tipo de guerra, com um forte fun-
damento ideológico e moral, reconduz-nos antes às guer-
ras de extermínio cuja descrição encontramos na Bíblia.
A retórica do «eixo do Mal» oposto às forças do Bem recon-
duz-nos, desse ponto de vista, à teologia política mais primi-
tiva. Como o escreveu Danilo Zolo, «a nova guerra é “global”
num sentido que se pode dizer monoteísta, pela referência
constante aos valores universais por parte das potências (oci-
dentais) que a promovem: a guerra já não é mais justificada
em nome de interesses ou de objectivos particulares, mas de
um ponto de vista superior e imparcial, por valores que se
supõe serem partilhados por toda a humanidade. O “polite-
ísmo” weberiano das morais e das crenças religiosas é siste-
maticamente negado pelos teóricos da guerra global. Uma
visão monoteísta do mundo opõe-se, em particular aquela,
bíblica e ardentemente cristã, do actual grupo dirigente dos
Estados Unidos, composto por metodistas, presbíterianos,
episcopalianos e luteranos, ao pluralismo dos valores e à
complexidade do mundo»64.
Este procedimento permite aos Estados Unidos
apresentar a sua soberania como inviolável considerando-se
eles próprios, não obstante, como autorizados a intervir à
sua vontade no resto do mundo, e isto correndo o risco de
serem olhados como o factor principal da brutalização cres-
cente das relações internacionais. «O Estado de excepção
internacional, escreve ainda Francesco Ragazzi, estaria pois
nesta lógica, contido na estratégia americana de suspender

54
DA GUERRA REGULAR AO RETORNO DA GUERRA JUSTA

as normas internacionais, tendo ao mesmo tempo a preten-


são de levar a cabo acções que teriam força de lei (…) trata-se
de submeter os outros Estados a um direito internacional
remodelado sem que eles próprios a ele se submetam»65.
Trata-se para os Estados Unidos, acrescenta, de se arrogarem
o direito de suspender as regras de direito internacional para
lutar contra um inimigo interior, mas interior em relação
aos limites vaporosos desenhados pela hegemonia america-
na, onde o mundo inteiro se torna no conteúdo daquilo que
é interior»66.
A nova estratégia «preventiva» da administração
Bush não prolonga de facto nem o velho wilsonismo mo-
ral nem o «realismo» dos paladinos do equilíbrio de forças.
Decerto vai buscar ao primeiro a sua convicção moral de
uma «missão universal» atribuída à nação eleita, e ao segun-
do a preocupação de uma política orientada para a defesa do
«interesse nacional» dos Estados Unidos, mas constitui so-
bretudo um misto inédito, à base de hegemonia unilateralis-
ta, cuja implementação, equivale à reintrodução de maneira
selectiva do jus ad omnia na política internacional, levando,
não à modificação, mas à completa destruição das regras es-
critas ou não escritas constitutivas do direito internacional67.

1 «The Neoconservative Persuasion», in The Weekly


Standard, 25 de Agosto de 2003.
2 La notion de politique, op. cit., p. 197. Cf. também
Carl Schmitt, «Clau­sewitz als politischer Denker.
Bemerkungen und Hinweise», in Der Staat, Berlim,
VI, 1967, 4, pp. 479-502.
3 Ibid., p. 72.
4 Cf. Mika Ojakangas, A Philosophy of Concrete Life.

55
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

Carl Schmitt and the Political Thought of Late Modernity,


SoPhi, Uvaskula 2004, pp. 71-72.
5 Théorie du partisan, in La notion de politique –
Théorie du partisan, Calmann-Lévy, Paris 1972, 2e ed.:
Flammarion, Paris 1992, p. 212.
6 Ibid., p. 258.
7 Le droit, la politique et la guerre. Deux chapitres sur la
doctrine de Carl Schmitt, Presses de l’Université Laval,
Quebeque 2004, p. 12.
8 Le Nomos de la Terre, Presses universitaires de
France, Paris 2001, p. 101.
9 Cf. D.J. Bederman, International Law in Antiquity,
Cambridge Uni­versity Press, Cambridge 2001; Danilo
Zolo, «Una “guerra globale” monoteistica», in Iride,
2003, 2, pp. 223-240 (reeditado in Trasgressioni,
Florença, 42, Janeiro-Abril 2006, pp. 17-33).
10 Cf. Yves Leroy de la Brière, Le droit de juste
guerre. Tradition théo­logique et adaptations contempo-
raines, Pedone, Paris 1938; Frederick H. Russell, The
Just War in the Middle Ages, Cambridge University
Press, Cambridge 1975; J.T. Johnson, Just War Tradition
and the Restraint of War, Princeton University Press,
Princeton 1981; William Vincent O’Brien, The Conduct
of Just and Limited War, Praeger, Nova Iorque 1981; Jean
Bethke Elsh­tain (ed.), Just War Theory, Basil Blackwell,
Oxford 1991; United States Military Academy (ed.),
Just War Reader, Thomson Learning, Stan ford2004;
Jean-Philippe Schreiber (éd.), Théologies de la guerre,
Editions de l’Université de Bruxelles, Bruxelas 2006.
11 Die Wendung zum diskriminierenden
Kriegsbegriff, Duncker u. Hum-blot, Munique-
Leipzig 1938 (texto reeditado in Carl Schmitt, Frieden
oder Pazifismus? Arbeiten zum Völkerrecht und zur

56
DA GUERRA REGULAR AO RETORNO DA GUERRA JUSTA

Internationalen Politik 1924­1978, ed. por Günter


Maschke, Duncker u. Humblot, Berlim 2005, pp.
518-597).
12 Op. cit, p. 99.
13 Le Nomos de la Terre, op. cit., p. 122.
14 «Carl Schmitt et “l’unité du monde”», in Les
Etudes philosophiques, Paris, Janeiro de 2004, pp. 11-12.
15 La notion de politique, op. cit., p. 75. «Numa
guerra teológica, comenta Norbert Campagna, eu que-
ro pôr fim à existência do outro, numa guerra política,
pelo contrário, não se trata senão de pôr fim ao risco
constituído pelo outro. No primeiro caso, o outro é a
encarnação do mal, enquanto que no segundo, ele não
é senão um risco que eu devo afrontar e com o qual
terei que medir forças» (op. cit., p. 129).
16 Etienne Balibar, «Prolégomènes à la souve-
raineté: la frontière, l’État, le peuple», in Les Temps mo-
dernes, Paris, Novembro de 2000, p. 55. Cf. também
Günter Maschke, «La décomposition du droit interna-
tional», entrevista publicada in Krisis, Paris, Fevereiro
de 2005, pp. 43-66.
17 La notion de politique, op. cit., p. 95.
18 Ibid., p. 96.
19 Cf. Danilo Zolo, Chi dice umanità. Guerra,
diritto e ordine globale, Einaudi, Turim 2000 (trad.
ingl.: Invoking Humanity. War, Law and Glo­bal Order,
Continuum, Londres 2002); La giustizia dei vincitori.
Da Norim­berga a Baghdad, Laterza, Roma-Bari 2006.
20 Le Nomos de la Terre, op. cit., p. 104.
21 Thanksgiving Proclamation, 7 de Novembro
de 1917, citado in Arthur S. Link et al. (ed.), The
Papers of Woodrow Wilson, Princeton University Press,
Princeton 1966-93.

57
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

22 Democracy and Leadership (1924), Liberty


Fund, Indianapolis 1979, p. 337.
23 Cf. sobre este ponto Norberto Bobbio, Il
problema della guerra e le vie della pace, Bolonha 1970,
pp. 119-157. Sobre a utilização política da retórica dos
direitos do homem, em relação com o pensamento de
Carl Schmitt, cf. também William Rasch, «Human
Rights as Geopolitics. Carl Schmitt and the Legal
Form of American Supremacy», in Cultural Cri­tique,
54, Primavera de 2003, pp. 120-147.
24 Op. cit., pp. 143 e 151.
25 CBS, emissão do «60 minutes», 12 de Maio
de 1996.
26 Jean-François Kervégan, «Carl Schmitt et “l’unité
du monde”», art. cit., p. 11.
27 «La guerre et ses causes. Essai sur l’his-
toire des formes de la guerre en Occident», in La
guerre. Actes du colloque universitaire du 17 mai 2003,
Association des Amis de Guy Augé, Paris 2004, p. 94.
28 Lembramos que a Convenção de Genebra,
que foi ratificada pelos Estados Unidos, interdita o
recrutamento de mercenários, que não podem pois
beneficiar da protecção concedida aos combatentes re-
gulares pelas convenções de Haia de 1899 e de 1907.
29 Militarisation de l’humanitaire, privatisation du mi-
litaire, et stratégie globale des États-Unis, Centre inter-
disciplinaire de recherches sur la paix et d’études stra-
tégiques (CIRPES), Paris 2004, p. 13. Citando o bole-
tim Foreign Report, publicado pelo Jane’s Information
Group, de um orçamento inicial de 85 biliões de dóla-
res desbloqueado pela administração americana para
as operações militares no Próximo-Oriente, 28 biliões
foram pagos a mercenários ou a indivíduos servindo

58
DA GUERRA REGULAR AO RETORNO DA GUERRA JUSTA

em formações paramilitares.
30 Cf. Peter Singer, Corporate Warriors. The Rise
of the Privatized Mili­tary Industry, Cornell University
Press, Ithaca 2003; Philippe Chapleau, Sociétés mili-
taires privées. Enquête sur les soldats sans armées, Rocher,
Paris 2005; Jean-Jacques Roche (ed.), Insécurités pu-
bliques, sécurité privée? Essais sur les nouveaux merce-
naires, Economica, Paris 2005; Olivier Hubac (ed.),
Mercenaires et polices privées. La privatisation de la vio-
lence armée, Univer­salis, Paris 2006; Xavier Renou, La
privatisation de la violence. Mercenai­res et sociétés privées
au service du marché, Agone, Marselha 2006. Sobre a
privatização da espionagem, cf. Jean-Jacques Cécile,
Espionnage busi­ness. Guerre économique et renseigne-
ment, Ellipses, Paris 2005.
31 «Aí onde já não é possível, escreve Carl
Schmitt, discernir o que é guerra e o que é paz, torna-
se ainda mais difícil de dizer o que é a neutralidade»
(La notion de politique, op. cit., p. 172). Cf. sobre este
assunto Aurélie de Andrade, «A distinção de tempo
de paz/tempo de guerra em direito penal militar: al-
guns elementos de compreensão», in Les Champs de
Mars, Paris, 2º sem. 2001, pp. 155-169, que sublinha a
maneira pela qual a emergência e o desenvolvimento
de um direito penal internacional ainda acentuaram
mais essa tendência. «Impõe-se constatar, escreve, a
ausência da distinção tempo de paz/tempo de guerra
em direito penal internacional. Quer seja nos estatu-
tos e regulamentos de ambos os tribunais penais inter-
nacionais, Haia e Arusha, quer no do Tribunal Penal
Internacional, não há nenhum traço dessa distinção»
(p. 189). A adaptação do direito penal e do direito mi-
litar francês ao estatuto destas novas instâncias judi-

59
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

ciárias não pode desde logo deixar de «acarretar, se-


não o desaparecimento, pelo menos uma atenuação
da distinção tempo de paz/tempo de guerra» (ibid.)
Esta tendência tinha sido assinalada a partir dos anos
setenta por Jules Monnerot: «Não podendo o fim da
luta, fim no duplo sentido da palavra, ser senão a vi-
tória, a distinção oficial entre guerra e paz, com o seu
cortejo de convenções (…) se não foi abolida, não tem
pelo menos a adesão profunda dos novos calvinistas
(NDT: no sentido de zelotas) que a admitem apenas
no plano táctico, e só porque não têm alternativa, não
desarmando moralmente nos intervalos de tempo que
separam duas “guerras limitadas”: a política é a “con-
tinuação da guerra por outros meios”, diremos nós
invertendo Clausewitz» (Inquisitions, José Corti, Paris
1974, pp. 95-96).
32 De defensa, Bruxelles, 25 de Outubro de
2004, p. 19.
33 Cf. Anders Stephenson, Manifest Destiny,
America Expansion and the Empire of Right, Hill &
Wang, Nova Iorque 1995.
34 Citado por Claude G. Bowers, Beveridge and
the Progressive Era, Nova Iorque 1932, p. 121.
35 Cf. Clifford Longley, Chosen People. The
Big Idea that Shapes England and America, Hodder &
Stoughton, Londres 2002; Stephen H. Webb, Ame­
rican Providence. A Nation with a Mission, Continuum,
Nova Iorque-Londres 2004; Fuad Sha’ban, For Zion’s
Sake. The Judeo-Christian Tradition in Ame­rican Culture,
Pluto Press, Londres 2005.
36 The Wall Street Journal, Nova Iorque, 15 de
Setembro 1997.
37 David Rothkopf, «In Praise of Cultural

60
DA GUERRA REGULAR AO RETORNO DA GUERRA JUSTA

Imperialism?», in Foreign Policy, Washington, Verão


de 1997.
38 The Political Mythology of the Monroe Doctrine.
Reflection on the Social Psychology of Domination, s.d., p.
105.
39 Washington Post, Washington, 19 de
Novembro de 2002.
40 Dieu bénisse l’Amérique. La religion de la Maison-
Blanche, op. cit., p. 248. Cf. também Tarek Mitri, Au
nom de la Bible, au nom de l’Amérique, Labor et Fides,
Genebra 2004.
41 America the Virtuous. The Crisis of Democracy
and the Quest for Empire, Transaction Publ., New
Brunswick 2003.
42 Al Qaeda and What it Means to be Modern,
Faber, Londres 2003, p. 95.
43 Op. cit., p. 9.
44 Os acordos de extradição assinados a 25 de Junho
de 2003 entre a União europeia e os Estados Unidos
consagram a integração material dos aparelhos judici-
ários europeus no sistema americano de luta contra o
terrorismo.
45 «Le droit pénal comme un acte constituant.
Une mutation du droit pénal», art. cit., p. 286.
46 Cf. Andrew Norris, «“Us” and “Them”», in
Metaphilosophy, Oxford, XXXV, 3, Abril de 2004, pp.
249-272, que examina a reacção da administração
Bush aos atentados do 11 de Setembro e a sua maneira
de diabolizar o inimigo à luz dos trabalhos publicados
por Schmitt nos anos 20.
47 Acerca deste assunto, cf. Darius Rejali,
«Friend and Enemy, East or West: Political Realism in
the Work of Usama bin Ladin, Carl Schmitt, Niccolo

61
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

Machiavelli and Kai-ka’us ibn Iskandar», in Historical


Reflections – Réflexions historiques, 2004, 3, pp. 425-
443. Cf. também, para aquilo que diz respeito ao Irão,
William O. Beeman, The «Great Satan» vs. the «Mad
Mullahs». How the United States and Iran Demonize
Each Other, Praeger, Greenwood, 2005.
48 «Autoimmunità, suicidi reali e simbolici», en-
trevista de Outubro de 2001 publicada in Giovanna
Borradori, Filosofia del terrore. Dialoghi con Jürgen
Habermas e Jacques Derrida, Laterza, Roma-Bari
2003, p. 126 (trad. ingl.: Philosophy in a Time of Terror.
Dialogues with Jürgen Habermas and Jacques Derrida,
University of Chicago Press, Chicago 2003; trad. fr.:
Le «concept» du 11 septembre. Dialogues à New York, oc-
tobre-décembre 2001, Galilée, Paris 2004).
49 Citado por François Heisbourg, Iperterrorismo.
La nuova guerra, Roma 2002, p. 53.
50 La guerra globale, Laterza, Roma-Bari 2002,
p. 27.
51 Relatório The National Security Strategy, U.S.
Government, Washing­ton 2002, p. 1.
52 Ibid., p. IV.
53 Ibid., p. 15.
54 Relatório The National Defense Strategy
of the United States of Ame­rica, U.S. Government,
Washington 2005, p. IV.
55 Ibid., p. 1
56 Ibid., p. 8.
57 Ibid., p. 9.
58 Ibid., p. 13.
59 «“The National Security Strategy of the USA”
ou la rencontre improbable de Grotius, Carl Schmitt et
Philip K. Dick», in Cultures et conflits, Paris, 18 de Maio

62
DA GUERRA REGULAR AO RETORNO DA GUERRA JUSTA

de 2005. Cf. também Betty Glad et Chris J. Dolan


(ed.), Striking First. The Pre-Emption and Preventive
War Doctrines and the Resha­ping of U.S. Foreign Policy,
Palgrave, Basingstoke 2005.
60 Donald Rumsfeld acabou igualmente por reconhe-
cer que os alegados laços entre a Al-Qaida e o Iraque
de Saddam Hussein eram com efeito pouco evidentes
(The Guardian, 6 de Outubro de 2004).
61 A noção de «guerra justa» foi objecto de
uma redefinição e de uma reavaliação positiva por
parte de Michael Walzer (Just and Unjust Wars. A
Moral Argument with Historical Illustrations, Basic
Books, Nova Iorque 1977, trad. fr.: Guerres justes et in-
justes. Argumentation morale avec exem­ples historiques,
Belin, Paris 1999; Arguing about War, Yale University
Press, New Haven 2003, trad. fr.: De la guerre et du
terrorisme, Bayard, Paris 2004). Esta redefinição está
muito próxima daquela proposta por Monique Canto-
Sperber, in Le Bien, la guerre et la terreur. Pour une mo-
rale interna­tionale (Plon, Paris 2005), que se esforça
por fazer uma distinção entre «guerra justa» e «guer-
ra moral». O manifesto dos intelectuais americanos
(Samuel Huntington, Francis Fukuyama, Michael
Walzer, etc.) favoráveis à guerra no Iraque publicado
a 1 de Outubro de 2002 pelo Institute for American
Values («What We’re Fighting for») inscreve a luta
contra o terrorismo no quadro da guerra justa, mas
sem nunca se interrogar acerca do limite permitido
das operações de guerra nem sobre o equilíbrio a ins-
taurar entre a repressão militar e os meios militares.
Sobre este assunto, cf. também William Rasch, «A
Just War? Or Just a War? Schmitt, Habermas, and the
Cosmopolitan Orthodoxy», in Andreas Kalyvas e Jan

63
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

Müller (ed.), Carl Schmitt: Legacy and Prospects. An


International Confe­rence in New York City, n° especial
da Cardozo Law Review, Nova Iorque, XXI, 5/6, Maio
de 2000, pp. 1665-1684; Slavoj Zizek, «Are We in a
War? Do We Have an Enemy?», in The London Review
of Books, Londres, XXIV, 10, Maio de 2002; Fabio
Vander, Kant, Schmitt e la guerre preventiva. Diritto e
poli­tica nell’epoca del conflitto globale, Manifesto libri,
Roma 2004; Chris Brown, «From Humanised War to
Humanitarian Intervention: Carl Schmitt’s Critique
of the Just War Tradition», comunicação ao colóquio
«The International Thought of Carl Schmitt», Haia,
9-11 de Setembro de 2004; Mark Evans (ed.), Just War
Theory. A Reappraisal, Palgrave Mac­millan, Nova Iorque
2005; S.C. Roach, «Decisionism and Humanitarian
Intervention. Reinterpreting Carl Schmitt and the
Global Political Order», in Alternatives, Boulder
(Colorado), XXX, 2005, 4, pp. 443-460; Sigrid Wei­
gel, «The Critique of Violence Or, The Challenge to
Political Theology of Just Wars and Terrorism with a
Religious Face», in Telos, Nova Iorque, 135, Verão de
2006, pp. 61-76.
62 Art. cit.
63 «Não se deve de maneira nenhuma admi-
tir, escreve Grotius, que segundo o direito das gentes,
seja admissível pegar em armas, para enfraquecer
um príncipe ou um Estado cujo poderio cresça de dia
para dia, com medo de que se o deixarmos crescer
demasiado, este o coloque em posição de nos causar
dano numa dada ocasião» (Traité de la guerre et de la
paix, livro I, cap. 2). Razão pela qual Yaron Brook e
Alex Epstein («“Just War Theory” vs. Ame­rican Self-
Defense», in The Objective Standard, I, 1, Primavera

64
DA GUERRA REGULAR AO RETORNO DA GUERRA JUSTA

de 2006) criticam a noção de «guerra justa»: aos seus


olhos, ela é ainda demasiado restritiva! Citando como
exemplos a imitar os bombardeamentos de terror so-
bre a Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial
e o massacre das populações civis (do Estado ame-
ricano) da Geórgia pelo general nortista William T.
Sherman em 1864, Brook e Epstein rejeitam a própria
noção de «proporcionalidade» entre o ataque e a de-
fesa e vão mesmo ao ponto de taxar de «derrotismo»
a administração Bush por não se ter engajado pronta-
mente numa guerra total contra o islamismo militan-
te. «No Afeganistão e no Iraque, escrevem eles, vimos
as consequências da não-adopção de uma política à
Sherman». Os dois autores, que qualificam, na oca-
sião, o uso da tortura como sendo «moralmente obri-
gatório», reclamam-se da filosofia do «egoísmo racio-
nal» enunciada por Ayn Rand.
64 «Una “guerra globale” monoteistica», portal na
Internet já citado (nota 37) (NDT: arquivo electrónico
da revista Iride, http://tiny.cc/revistairide).
65 Art. cit.
66 Ibid. Geminello Preterossi, que fala, também ele,
dum «estado de excepção global», considera por seu
lado que os Estados Unidos tendem a instituir-se em
«guardiões do mundo» no sentido dado por Schmitt
ao falar de um «guardião da Constituição» (L’Occidente
contro se stesso, Laterza, Roma-Bari 2004, pp. 39-56).
Paul Virilio prefere interpretar o recurso à guerra pre-
ventiva em referência à omnipresença do medo no
seio das sociedades pós-modernas. «A guerra preven-
tiva de George W. Bush, escreve, é um acto de pânico
do Pentágono (…) A guerra preventiva é de facto uma
guerra perdida de antemão. Atacar preventivamente

65
prova que se não está seguro de si. A América e a sua
hiper-potência é com efeito impotente relativamente à
novidade do acontecimento estratégico (…) é uma si-
tuação histérica» («L’état d’urgence permanent», in Le
Nouvel Observateur, Paris, 26 de Fevereiro de 2004, p.
96). Cf. também Armand Clesse, «America’s Classical
Security Dilemma. Search for a New World Order», in
World Affairs, Abril-Junho 2004, pp. 14-20; Frederik
Rosén, «Towards a Theory of Institutio­nalized Judicial
Exceptionalism», in Journal of Scandinavian Studies in
Cri­minology and Crime Prevention, VI, 2, Dezembro de
2005, pp. 147-163.
67 Cf. Carlo Galli, La guerra globale, op. cit.

66
Do Guerrilheiro ao Terrorista «Global»
No final dos anos 1990, Arbatov, conselheiro de Gorbatchev,
disse aos americanos: «Vamos infligir-vos o pior dos golpes:
vamos privar-vos de inimigo». Palavra significativa. O desa-
parecimento do «império do mal» soviético arriscava-se com
efeito a suprimir toda a legitimação ideológica da hegemo-
nia americana sobre os seus aliados. Era necessário, desde
logo, aos americanos encontrar um inimigo de substituição,
cuja ameaça, real ou suposta, lhes permitisse continuar a
impor essa hegemonia a parceiros mais ou menos transfor-
mados em vassalos. Foi o que os Estados Unidos fizeram,
conceptualizando em 2003, dois anos após os atentados do
11 de Setembro, a noção de guerra global contra o terrorismo
(Global War on Terrorism).
Esta nova designação do inimigo explica que,
no decurso destes últimos anos, vários autores tenham
examinado a situação do mundo actual à luz de tal ou tal
aspecto da obra de Carl Schmitt, mais frequentemente
em correlação com as operações de guerra levadas a cabo
pela América e com as medidas tomadas por Washington
para lutar contra o islamismo ou o terrorismo global1. É o
que faremos ao estudar a figura do terrorista «global» por
comparação com a figura do guerrilheiro, tal como Carl
Schmitt a evocou no seu célebre Teoria da Guerrilha2.
Mas é importante lembrar em primeiro lugar que
na origem, a palavra «terror» não designa de forma alguma
a acção do combatente irregular. «O Terror» é o nome
genérico do período, que se estende de Setembro de 1793
a Julho de 1794, durante o qual o poder revolucionário

67
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

francês pôs «o terror na ordem do dia» para suprimir o


seus opositores políticos. No momento em que surge na
cena política, o «terrorista» não é pois um combatente
irregular, opondo a legitimidade da sua acção à legalidade
que combate. É pelo contrário um actor legal. O «Terror»
de 1793 é um fenómeno estatal, que se confunde com um
dos episódios da Revolução francesa. É exercido em nome
do Estado, e assim sendo, supõe o monopólio legal da
violência. A palavra «terrorismo», aparece pela primeira
vez na língua francesa em 1794, para designar o regime de
«terror» político, então no poder. Fará dois anos mais tarde
a sua entrada no dicionário. «Milhares de diabos do Inferno
chamados terroristas estão à solta no mundo», observa então
Edmund Burke. A palavra remete pois, originalmente, para
a acção de um Estado ou de um regime político, quer isto
dizer para uma acção legal (que podemos declarar ilegítima),
não para uma acção ilegal (que podemos declarar legítima).
Não é senão posteriormente, no decorrer do século XIX, que
o «terrorismo» será entendido, antes de mais, como uma
forma ilegal de acção levada a cabo contra um Estado ou um
regime político. Carregar-se-á então de conotações negativas
e cessará de ser utilizado como autodesignação. (Mas a
palavra «terror» continuará a ser empregue para qualificar
certas medidas adoptadas por regimes totalitários, como
o regime nazi ou o regime estalinista. Falar-se-á então de
«terror», mas não de «terrorismo». À data, os dois termos
ter-se-ão dissociado). Esta observação é importante, uma
vez que permite compreender que possa ter existido (e que
ainda exista) um terrorismo de Estado.
É igualmente interessante constatar que o
aparecimento do «Terror» em França vai a par com a
materialização pelos revolucionários franceses, a partir de
Abril de 1792, da primeira guerra da história que pudemos
qualificar como «guerra total», expressão que nunca foi

68
DO GUERRILHEIRO AO TERRORISTA GLOBAL

aplicada, por exemplo, às guerras de religião do século XVI


nem à Guerra dos Trinta Anos, a despeito das numerosas
exacções a que estas possam ter dado lugar3. A guerra total,
como já vimos, caracteriza-se nomeadamente pela abolição
de facto das distinções tradicionais feitas anteriormente em
tempos de guerra. Em 1792, um dos elementos motores
dessa novidade reside no primeiro verdadeiro recrutamento
maciço da história, que criou pela primeira vez regimentos
inteiramente compostos por civis mobilizados de fresco
(«arregimentação» das populações masculinas que, em
seguida, servirá de modelo ao enquadramento da sociedade
civil pelos regimes totalitários). O conflito, por outro lado,
arroga-se desde logo objectivos ilimitados e estende-se a todos
os aspectos da vida em sociedade. Enquanto que o «terrorista»
revolucionário se apresenta como fazendo obra de virtude
(«purifica» a sociedade), a guerra revolucionária toca tanto
aos combatentes como aos não-combatentes. Os que a levam
a cabo falam de «guerra a todo o transe». Jean-Baptiste-Noël
Buchotte, ministro da Guerra, afirma a necessidade de
«levar o terror aos nossos inimigos»4. Robespierre apela a
«aniquilar, exterminar, destruir definitivamente o inimigo»5.
O mesmo objectivo aplica-se aos inimigos internos, o que
significa que a guerra externa e a guerra civil obedecem aos
mesmos princípios: durante a guerra da Vendeia, as tropas
republicanas recebem explicitamente a ordem de não fazer
prisioneiros e de massacrar homens, mulheres e crianças
sem distinção. A guerra total, escreve Jean-Yves Guiomar,
«é a que põe em movimento massas de combatentes jamais
vistas antes animadas pela vontade de vencer até à completa
destruição do inimigo. É pois uma guerra sem quartel, que
rejeita a negociação que vise eliminar o enfrentamento
armado, fazendo-o cessar o mais depressa possível»6. A
ruptura com a «guerra regular» cujos princípios prevaleciam

69
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

antes da revolução é pois total7.


Esta guerra ilimitada apresenta uma outra
característica notável: é levada a cabo em nome da
«liberdade». Os revolucionários que, em Maio de 1790,
tinham solenemente proclamado a sua intenção de
renunciar «para sempre» às guerras de conquista, justificam
a sua acção, e o seu carácter ilimitado, pela sua intenção de
«libertar os povos subjugados», derrubando todo o poder
monárquico, espalhando por todo o mundo os princípios da
Revolução. Se atacam os países vizinhos, é para «exportar
a liberdade»; se massacram é porque um fim moralmente
(e ideologicamente) tão elevado justifica que se empreguem
todos os meios. A relação entre guerra moral e guerra total,
devidamente trazida à luz por Carl Schmitt, encontra aqui
uma nova e impressionante ilustração8.
Em Carl Schmitt, a figura do guerrilheiro é de todo
essencial, uma vez que constitui uma perfeita demonstração
de que o Estado e a política não são necessariamente
sinónimos, mas podem pelo contrário dissociar-se. O
guerrilheiro leva a cabo com efeito uma luta eminentemente
política, mas esta exerce-se fora do controlo do Estado, e
mesmo geralmente contra ele. A acção dos guerrilheiros
mostra que há outras guerras além das guerras inter-estatais
e inimigos que não são Estados.
Schmitt distingue a figura do guerrilheiro, tal como
surge nos combates de guerrilha efectuados no princípio
do século XIX, na Prússia e em Espanha, contra a ocupação
napoleónica, do combatente revolucionário moderno9. Um e
outro são decerto combatentes irregulares, que actuam fora
da legalidade do momento opondo a essa legalidade uma
legitimidade da qual se reclamam e que afirmam encarnar.
Um e outro são «franco-atiradores», que se descrevem
a si próprios como «resistentes», sendo igualmente

70
DO GUERRILHEIRO AO TERRORISTA GLOBAL

estigmatizados, não somente como combatentes «ilegais»,


mas também como combatentes «ilegítimos», pelos poderes
públicos que lhes negam todo o direito de resistência ou de
insurreição. Um e outro (e é evidentemente este ponto que
mais retém a atenção de Schmitt) têm plena consciência do
amigo e do inimigo, uma vez que não têm necessidade que se
lhes designe um inimigo para o combater (da mesma forma,
o terrorista olha como inimigo o que nenhuma autoridade
pública ou legal lhe apresenta como tal). Um e outro, enfim,
estilhaçam pelos seus próprios actos a distinção tradicional
entre civis e militares que, na origem, se associava à de
combatente e não-combatente (o civil era reputado como
não tomando parte da guerra, razão pela qual gozava de uma
protecção particular). Os guerrilheiros, com efeito, não são
necessariamente militares; são-no mesmo raramente. Mais
frequentemente são civis que decidiram pegar em armas. E
estes civis muitas vezes entram em confronto com outros
civis, que consideram como cúmplices ou aliados dos seus
inimigos.
Guerrilheiro e combatente revolucionário
não diferem menos profundamente um do outro. Ao
guerrilheiro, para além da irregularidade e da intensidade
do seu engajamento político, Carl Schmitt atribui como
critério distintivo a flexibilidade ou a mobilidade no combate
activo, mas sobretudo o seu carácter telúrico (tellurisch). O
guerrilheiro tem com efeito objectivos geralmente limitados
ao território que é o seu. Quer queira pôr termo a uma
ocupação estrangeira ou derrubar um regime político que
julga ilegítimo, a sua acção ordena-se em relação a esse
território. Deriva pois da lógica da Terra.
Caso diferente é o do «combatente da revolução»
ou do «activista revolucionário», cujo aparecimento Carl
Schmitt faz remontar a Lenine10, identificando-se com a

71
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

«agressividade absoluta de uma ideologia» ou pretendendo


encarnar o ideal de uma «justiça abstracta». Na sua origem
pode tratar-se de um guerrilheiro de tipo clássico, que se
encontrou «irresistivelmente atraído pelo campo das forças
do progresso técnico e industrial». «A sua mobilidade é
(então) reforçada pela motorização, a tal ponto que corre o
risco de não ter mais nenhuma forma de ligação local (…)
Um guerrilheiro motorizado desta espécie perde o seu
carácter telúrico»11. A perda do seu carácter telúrico advém
do facto do combatente revolucionário não estar ligado de
maneira intrínseca a um só território: virtualmente, a Terra
inteira constitui o seu campo de acção. Mas a ilimitação
opera, também nele, num outro plano. O «combatente da
revolução» exonera-se de todos os limites na escolha dos
meios. Convencido que está de travar uma guerra totalmente
«justa», radicaliza-se num sentido simultaneamente
ideológico e moral. Designa infalivelmente o seu inimigo
como um criminoso e, por sua vez, é ele próprio designado
como tal. Com o combatente revolucionário surge a
hostilidade absoluta. Para Lenine, escreve Carl Schmitt, «o
objectivo é a revolução comunista em todos os países do
mundo; tudo o que serve este objectivo é bom e justo (…)
Somente a guerra revolucionária é uma guerra verdadeira
aos olhos de Lenine, porque ela nasce da hostilidade
absoluta (…) Desde o dia em que o partido se torna em valor
absoluto, o guerrilheiro torna-se ele mesmo absoluto, sendo
promovido ao escalão de representante de uma hostilidade
absoluta»12.
«Aí onde a guerra é travada por ambas as partes
como uma guerra (…) não discriminatória, acrescenta
Schmitt, o guerrilheiro é uma figura marginal que não
estilhaça o quadro da guerra, não modificando a estrutura do
conjunto desse fenómeno político. Mas se a luta comporta a

72
DO GUERRILHEIRO AO TERRORISTA GLOBAL

criminalização do adversário na sua totalidade, se a guerra é,


por exemplo, uma guerra civil travada pelo inimigo de classe
contra um inimigo de classe, se o seu objectivo principal é o
de suprimir o governo do Estado inimigo, a força explosiva
revolucionária dessa criminalização do inimigo tem por
efeito fazer do guerrilheiro um verdadeiro herói da guerra.
Ele é quem executa a sentença de morte pronunciada contra
o criminoso, na qualidade de elemento nocivo. Tal é a
lógica de uma guerra de justa causa que não reconhece o
justus hostis»13. O terrorista de hoje em dia é evidentemente
o herdeiro ou a última encarnação, à data, desta segunda
figura.
Em que medida estas duas figuras do guerrilheiro
coincidem, respectivamente, com a do corsário e com a do
pirata? Julien Freund escrevia há vinte anos que «a guerra
de guerrilha e o terrorismo actual são de alguma forma a
reprodução terrestre do corsário e do pirata (…) a figura
actual do guerrilheiro é por assim dizer a réplica terrestre
do corsário, a do terrorista a réplica do pirata. Sem dúvida
há uma lógica até mesmo na irregularidade, num dado
sentido em que foi por vezes delicado traçar um limite
entre o corsário e o pirata; o mesmo vale para o caso do
guerrilheiro e do terrorista»14. Schmitt vê com efeito na
figura do corsário uma prefiguração da do guerrilheiro.
Fala-nos aqui do corsário que goza de um reconhecimento
público, se bem que aja de maneira irregular, por oposição
ao pirata que, este sim, é considerado como um criminoso,
não sendo reconhecido por ninguém. Contudo, o corsário
age no mar, enquanto que o guerrilheiro, para Schmitt, está
essencialmente ligado à Terra. O terrorista moderno excede,
quanto a ele, todas estas distinções. Não é evidentemente
comparável ao corsário, mas também não o é ao pirata, dado
que as suas motivações, que são eminentemente políticas,

73
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

não têm relação com o proveito ou o lucro. Age além disso


igualmente no espaço, quer isto dizer para lá da Terra e do
Mar.
Schmitt reage contra a ideia de que o progresso
técnico e industrial vá tornar obsoleta a figura do guerrilheiro.
Afirma pelo contrário, com uma assinalável lucidez, que
esse mesmo progresso lhe vai dar uma nova dimensão.
«Que se passará, pergunta ele, se um tipo humano que,
até ao presente, deu origem ao guerrilheiro, conseguir
adaptar-se ao seu meio técnico e industrial, servir-se dos
novos meios e desenvolver uma espécie nova e adaptada
de guerrilheiro? (…) Quem saberá impedir o aparecimento
(…) de novos e inesperados tipos de hostilidade, cujo
desencadeamento engendrará encarnações inesperadas de
um novo guerrilheiro?»15 Schmitt anuncia aqui, de maneira
profética, a era do «guerrilheiro global» (Kosmopartisan).
O terrorismo já não é hoje evidentemente um
fenómeno novo16. O que é em contrapartida novo, é o lugar
central ocupado por este (ou que lhe é atribuído) nos nossos
dias na cena internacional. Mas aqui, somos atingidos pelo
contraste entre a omnipresença da denúncia do «terrorismo»
e a leveza semântica que se associa a este conceito, leveza essa
que não deixa de favorecer as diversas instrumentalizações
do termo.
Uma das primeiras questões que se colocam está
relacionada com a ideia da legitimidade da acção terrorista,
legitimidade que os terroristas afirmam constantemente, mas
que lhe é, bem entendido, negada pelos seus adversários. A
problemática do guerrilheiro levanta desde logo uma questão
sobre a parelha legalidade-legitimidade. Dado que é um
combatente ilegal, o guerrilheiro não pode senão reclamar-
se de uma legitimidade superior à lei positiva decretada
pela autoridade que combate, o que o leva simultaneamente

74
DO GUERRILHEIRO AO TERRORISTA GLOBAL

a contestar que a legalidade e a legitimidade se possam


alguma vez confundir. É ainda aqui um termo Schmittiano
por excelência17.
É inegável que certas formas de «terrorismo»
foram reconhecidas como legítimas num passado recente,
desde logo aquando da Segunda Guerra Mundial, durante
a qual os resistentes eram invariavelmente qualificados de
«terroristas» pelas forças de ocupação alemãs, de seguida
no momento da descolonização, quando numerosos grupos
terroristas se apresentaram como «combatentes pela
liberdade» (freedom fighters) desejosos de arrancar pela luta
armada a sua independência às antigas potências coloniais.
As quatro Convenções de Genebra de 12 de Agosto de 1949,
por exemplo, atribuem aos resistentes a maior parte dos
direitos e privilégios dos combatentes regulares18. Após
1945, à época das lutas anticoloniais, inumeráveis minorias
armadas, movimentos «de libertação» ou guerrilhas,
apresentaram-se, por sua vez, como organizações de
resistência face a aparelhos estatais que os qualificavam
como grupos «subversivos» e «terroristas». Logo que as suas
lutas triunfaram e que obtiveram um certo reconhecimento
internacional, os meios que tinham empregue foram
retrospectivamente justificados. Ganhou assim credibilidade
a ideia de que, em certos casos, o terrorismo poderia ser
legítimo. Bem entendido, afirmava-se também que o
terrorismo não teria justificação onde as reivindicações
políticas e sociais se pudessem exprimir de outro modo. Mas
as opiniões não podiam senão divergir quanto aos critérios
que permitem separar o «bom» e o «mau» terrorismo. A
apreciação do carácter moral ou imoral do terrorismo estava
assim votada a depender, numa certa medida, da propaganda
ou da simples subjectividade19.
A fronteira entre «resistentes» e «terroristas»

75
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

mostrou ser tão mais porosa quanto certos países devem,


em parte, o seu nascimento ou a sua independência a um
recurso ao terrorismo, sendo que certos acontecimentos ou
mudanças de regime trouxeram antigos terroristas ao poder,
transformando-os simultaneamente em interlocutores
válidos ou em representantes respeitados do seu país. Os
antigos terroristas Menahem Begin e Itzhak Shamir, que se
tornaram célebres pelos atentados contra civis árabes antes
da proclamação do Estado de Israel, acederam de seguida
aos mais altos cargos no seu país20. Aconteceu o mesmo
com dirigentes argelinos ou sul-africanos, como Ahmed Ben
Bella ou Nelson Mandela.
Ainda hoje, os «resistentes» de uns são muitas
vezes os «terroristas» dos outros. O uso do termo revela-
se instável, e mesmo reversível. Ao mesmo tempo que
apoiavam os movimentos islamitas a fim de contrabalançar
a influência dos movimentos árabes nacionalistas laicos, os
Estados Unidos, à época da Guerra Fria, nunca hesitaram
em apoiar certos grupos terroristas, nomeadamente na
Nicarágua, em Angola e no Afeganistão, tal como apoiaram,
depois da primeira guerra do Golfo, os grupos de oposição
iraquianos responsáveis por numerosos atentados com
viaturas armadilhadas21. Os mesmos islamitas que eram
qualificados como «combatentes pela liberdade» à época da
invasão do Afeganistão pelo Exército Vermelho tornaram-
se instantaneamente «terroristas» quando começaram a
utilizar os mesmos métodos contra os seus antigos aliados.
Os militantes do UCK, apresentados como «resistentes»
quando as forças da OTAN bombardeavam a Sérvia,
tornaram-se «terroristas» quando entraram em conflito
com a Macedónia, aliada da OTAN e dos Estados Unidos.
Poderíamos multiplicar os exemplos22.
A ilegalidade do terrorismo deve, por outro

76
DO GUERRILHEIRO AO TERRORISTA GLOBAL

lado, ser reenquadrada no âmbito mais geral de uma


desinstitucionalização da vida política em numerosos países
e da rápida extensão de espaços incontrolados (ou «zonas
cinzentas») no mundo: proliferação das selvas urbanas
nas grandes metrópoles do Sul do planeta, tráfico de
estupefacientes à escala planetária, formação de verdadeiros
exércitos privados ao serviço da grande criminalidade,
aparecimento de «guerrilheiros cibernéticos» capazes de
desencadear quedas bolsistas artificiais, adelgaçamento da
fronteira entre as actividades financeiras e as actividades
criminosas, etc.23
A questão do estatuto do terrorismo em conexão
com o binómio legalidade-legitimidade complica-se enfim
com a existência de um terrorismo «legal», na ocorrência de
um terrorismo de Estado. As definições mais correntes do
terrorismo não excluem, por outro lado, esse terrorismo de
Estado, o qual se deve realçar, fez sempre mais vítimas do que
a violência ilegal «sub-estatal»24. Se definirmos, com efeito, o
terrorismo como sendo a maneira de causar o maior número
de danos possíveis ao maior número possível de vítimas
inocentes, como uma maneira de matar deliberadamente
inocentes escolhidos ao acaso a fim de desmoralizar e semear
o medo entre a população, bem como ainda, de forçar a mão
dos seus dirigentes políticos obrigando-os a capitular, então
não há dúvida que os bombardeamentos de terror sobre as
populações civis alemãs ou japonesas da Segunda Guerra
mundial entram nesta categoria, uma vez que, em todos os
casos são não-combatentes que foram tomados como alvo.
Saber se o «hiperterrorismo» ou o «terrorismo
global» actual não difere fundamentalmente do terrorismo
«clássico», ao qual não seria senão necessário aumentar
ou intensificar os elementos mais característicos, ou se
pelo contrário este marca a emergência de uma forma de

77
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

violência verdadeiramente inédita, é uma das questões


mais discutidas hoje em dia. Passemos pois brevemente em
revista certos traços distintivos ou aspectos deste «novo»
terrorismo.
Uma das primeiras características do terrorismo
global é a ilimitação, que era já própria do combatente
revolucionário. O terrorismo é certamente uma violência,
mas a sua violência não é suficiente para o definir. É ainda
necessário precisar que tipo de violência o caracteriza.
Ora, é em primeiro lugar uma violência que se apresenta
como ilimitada: nada pode à priori limitá-la. O terrorista
global empenha-se de imediato numa luta até à morte. Os
terroristas são os primeiros a considerar como destituídas
de pertinência as distinções clássicas entre beligerantes e
neutros, civis e militares, combatentes e não-combatentes,
alvos legítimos e ilegítimos. É nisto que o terrorismo se
assemelha à guerra total. Mas esta forma de acção ilimitada
tem um efeito de espelho, a luta contra o terrorismo
arriscando-se, por sua vez, a justificar o recurso a não
importa qual meio. «É necessário operar como guerrilheiro
em todo o lado onde haja guerrilheiros», dizia já Napoleão
em 1813. Sendo o terrorismo apresentado como um inimigo
absoluto, é tentador pensar que nada pode à priori ser
excluído no que diz respeito aos meios de o vencer, sobretudo
se pensarmos que os meios clássicos (ou democráticos) são
ineficazes diante de uma tal ameaça. O uso da tortura, por
exemplo, foi bastas vezes legitimado pelas necessidades da
luta antiterrorista (obter informações, por exemplo, ou ainda
prevenir um atentado). A tentação é pois grande, a pretexto
da eficácia, de ripostar contra os terroristas com métodos
comparáveis aos que eles próprios empregam.
Outra característica importante é o aumento, ainda
mais acrescido, da desterritorialização. Na época pós-

78
DO GUERRILHEIRO AO TERRORISTA GLOBAL

moderna, que é a do fim das lógicas territoriais, a figura do


guerrilheiro à qual Carl Schmitt atribuía ainda um carácter
eminentemente «telúrico», desterritorializa-se por sua vez.
A guerra contra o terrorismo já não tem bases territoriais. O
inimigo pouco (ou nada) se identifica com um dado território.
Paul Virilio foi ao ponto de falar do «fim da geografia», o que
é sem dúvida excessivo, uma vez que os dados da geopolítica
permanecem. Contudo não restam dúvidas de que a forma
privilegiada da acção terrorista é hoje a rede. Aquilo a que
chamamos «Al-Qaida», por exemplo, não é uma organização
de tipo clássico, localizável e hierarquizada, mas um
conjunto vaporoso de redes confusamente interligadas.
Estas redes terroristas ganham tanto mais importância
quanto a época pós-moderna é, antes de tudo, uma época de
redes, uma época onde as redes transversais se substituem
às organizações piramidais. E estas redes estão dispersas:
os seus membros vivem numa multitude de países, o que
acentua a sua desterritorialização. De resto, se o guerrilheiro
é cada vez menos «telúrico», é porque a forma territorial
de dominação se torna ela mesma obsoleta: é mais rentável
hoje em dia colonizar os espíritos ou controlar os mercados
do que conquistar ou anexar territórios.
O paralelo que foi frequentemente feito entre os
atentados do 11 de Setembro de 2001 e o ataque a Pearl
Harbor em 1941, inclusive pelo presidente Bush25, é deste
ponto de vista perfeitamente enganador. O ataque de 1941
era o acto de um país claramente situável no mapa: o Japão.
O do 11 de Setembro remete para um mundo de redes
transnacionais por natureza. Os Estados Unidos lograram
fazer a guerra ao Afeganistão, acusado de servir de refúgio
ou de «santuário» aos grupos da Al-Qaida, não estando esses
grupos aí domiciliados ou albergados senão em parte, e a
título provisório. A guerra «global» lançada pelos Estados

79
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

Unidos contra o terrorismo põe em conflito, dum lado os


«guerrilheiros» sem enraizamento territorial preciso, uma
vez que essencialmente organizados em redes, e do outro
uma potência que aspira, já não a conquistar territórios,
mas a instaurar uma nova ordem mundial (new world order)
entendida como a condição necessária da sua segurança
nacional, implicando esta nova ordem mundial a abertura
planetária dos mercados, a garantia do acesso aos recursos
energéticos, a supressão das regulações e das fronteiras, o
controlo das comunicações, etc. Em tais condições, já não é
mais a lógica da Terra a caracterizar a acção dos guerrilheiros,
mas a lógica «marítima» da desterritorialização-globalização
a favorecer a emergência de uma nova forma de terrorismo,
ao mesmo tempo que lhe abre novos meios de acção26. Uma
vez que os Estados Unidos, como os definiu Carl Schmitt,
representam a potência do Mar por excelência, e sendo que
a globalização obedece, também ela, a uma forma de lógica
«marítima», podemos dizer que a luta contra o terrorismo
resulta inteiramente da lógica do Mar.
O aparecimento do terrorismo completamente
desterritorializado tem uma outra consequência. Leva à
confusão ou à permutabilidade das tarefas militares e das
tarefas de polícia das quais já falámos. Durante a Segunda
Guerra mundial, para lutar contra a Resistência, as tropas
de ocupação tinham já que se entregar a actividades
tipicamente policiais (busca, detenção e interrogatório de
suspeitos, etc.), ao passo que se assistia simultaneamente a
uma militarização da polícia chamada a colaborar com estas.
Da mesma forma, aquando das guerras coloniais, as forças
regulares eram, também elas, levadas a utilizar métodos
de polícia, uma vez que tinham primeiramente por missão
identificar um inimigo que não envergava uniforme. Na
época da luta contra o terrorismo global, esta confusão de

80
DO GUERRILHEIRO AO TERRORISTA GLOBAL

tarefas entre a polícia e o exército atinge tais proporções que


faz estilhaçar a distinção entre os assuntos internos e os
assuntos internacionais27.
O terrorismo, enfim, é a guerra em tempo de paz,
sendo portanto, mais uma vez, o símbolo de uma crescente
indistinção entre estas duas noções. Mas esta guerra,
acabámos de o dizer, caracteriza-se, antes de tudo, por um
trabalho policial. Ora, um polícia não olha os seus adversários
como um militar «tradicional» olha os seus. Por definição,
a polícia não se contenta em combater o crime. Procura
fazê-lo desaparecer. Não poderia transigir ou concluir um
«tratado de paz» com os criminosos. É por isto que nada há
de político na actividade da polícia, pelo menos quando lida
com os seus adversários clássicos, criminosos e malfeitores.
Há por contrapartida nela uma evidente dimensão «moral»:
o crime não é somente condenável socialmente, mas também
moralmente. O carácter policial da guerra travada contra o
terrorismo é desse ponto de vista revelador. Sustenta, como o
escreveu Rik Coolsaet, a «mensagem que se quis fazer passar
a partir do século XIX: o terrorismo não é uma actividade
política legítima. Pertence à esfera criminal»28. Mas o que é
ele exactamente? O terrorismo é uma nova forma política de
guerra ou uma nova forma de criminalidade29?
Do lado daqueles que combatem o terrorismo,
as coisas são claras. No discurso público que empregam
para qualificar os seus adversários, os terroristas são
infalivelmente descritos como criminosos. Este fenómeno
também não é novo. Durante a Revolução, os insurgentes
vendeianos eram oficialmente designados sob o nome
de «salteadores». Depois do assassinato em Setembro
de 1901 do presidente americano William Mckinley por
um anarquista, o seu sucessor, Theodore Roosevelt,
tinha já qualificado os anarquistas como «criminosos

81
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

contra a raça humana»30. Mas a equação: terroristas =


criminosos, apoiando-se em geral no carácter violento, cego
e imprevisível das acções cometidas pelos terroristas, foi
também igualmente empregue no passado para qualificar os
membros da Resistência ou os «combatentes pela liberdade»
das lutas anticoloniais. Com base nesta equação foi possível
considerá-los como delinquentes de direito comum, o que
justificava por exemplo, aquando da sua detenção, que
se lhes recusasse o estatuto de prisioneiros políticos. No
campo semântico, escreve Pierre Mannoni, o terrorista
é igualmente designado por termos «como “criminoso”,
“assassino”, “bandido”, rebaixando-o ao nível dos violentos
indesejáveis, perturbadores da ordem e da paz social, ou
como “bárbaro”, “selvagem”, “louco sanguinário”, fazendo-o
pender para o lado da insanidade mental ou para um estado
de natureza brutal, não civilizada»31. Michael Walzer escreve
que «os terroristas evocam esses assassinos excitados que
abatem tudo à sua passagem»32. Os terroristas seriam pois
criminosos ou loucos.
Este tipo de denúncia faz do terrorismo um inimigo
que nada tem em comum com aqueles que ataca. O terrorista
torna-se então Num Outro, num «hostis humani generis». «A
imagem do outro é construída como sendo a de alguém que
não poderá nunca “ser como nós”»33. O discurso político
e mediático afirma-o permanentemente: a causa que o
terrorismo pretende defender é, por si só, «incompreensível».
Nos Estados Unidos, ela é-o ainda menos visto que os
Americanos, convencidos que estão de terem criado a
melhor sociedade possível, entenda-se a única sociedade
aceitável, têm naturalmente tendência a achar inimaginável
a rejeição do modelo que defendem como seu. A ideia tão
difundida na América que esta é o país da liberdade (land

82
DO GUERRILHEIRO AO TERRORISTA GLOBAL

of the free), modelo último na organização das sociedades,


ao mesmo tempo que nação eleita pela Providência, facilita
evidentemente a representação dos terroristas como
doentes, perversos ou loucos: Em Setembro de 2001, como
poderiam as pessoas «normais» não acreditar na «bondade»
dos Americanos? «Como podiam essas pessoas que tinham
menos de tudo aquilo que interessa pensar que aqueles que
mais tinham o deviam a outra coisa que não o seu mérito?»34.
O próprio facto dos terroristas «detestarem os Estados
Unidos e tudo aquilo que representam»35 já faz deles seres à
parte, e como a América se identifica com Bem, encarnações
do Mal. O terrorismo pode a partir daí ser estigmatizado,
simultaneamente, como irracional e criminoso, desprovido
de toda a lógica, e no fundo sem objectivo propriamente
político.
Esta descrição do terrorista, seja como louco, seja
como criminoso, seja ainda mais comummente como
louco criminoso, encontra incontestavelmente eco na
opinião pública, que considera em geral os actos terroristas
simultaneamente injustificáveis e incompreensíveis
(«porque fazem eles isto?», «mas o que é que eles querem?»).
Estas reacções podem compreender-se perfeitamente. Resta
saber se o recurso a tais termos não impede que se analise
a verdadeira natureza do terrorismo e, mais ainda, que se
identifique as suas causas.
A descrição do terrorista como um simples
«criminoso» apoia-se numa lógica que proscreve toda a
aproximação entre assassínio e legitimidade. Esta lógica
contudo claudica no facto do o assassínio ser legítimo em
qualquer guerra, mesmo quando se trate de civis, vítimas
dos bombardeamentos de terror ou de «danos colaterais».
A retórica do terrorismo vai pois consistir em tentar incluir
as suas acções na esfera da legitimidade. De facto, qualquer

83
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

terrorista considera que, como vimos, em primeiro lugar


trava efectivamente uma guerra, em seguida que a sua acção
é eminentemente legítima, sendo a violência dos seus actos
apenas a consequência ou o reflexo de uma outra violência
«legal», justificada pela injustiça de uma situação, uma
reacção no seu todo aceitável a uma situação que é, essa sim,
inaceitável.
Face a esta retórica, denunciada como especiosa, o
terrorista é pelo contrário prontamente descrito, por aqueles
que o combatem, como um criminoso não se admitindo
senão a contragosto que possa ter objectivos políticos.
Sublinha-se que os métodos de que faz uso desqualificam
a sua apresentação como combatente político. Invoca-se
os seus métodos para o rejeitar, criminalizando-o. Mas a
negação do carácter político do terrorismo não se explica
somente pelas reacções emocionais constantes na opinião.
Da parte dos poderes públicos, ela traduz frequentemente
uma acção eminentemente política, fundando-se em reacções
emocionais. «Ela provém de uma vontade deliberada de
onerar a mensagem política inerente ao acto terrorista,
escreve Percy Kemp, assim como de uma negação da verdade
entendida como condição sine qua non da constituição de um
novo ethos. Assim, em Israel, a recusa das autoridades em
reconhecer a especificidade política do terrorismo (e, por
conseguinte, a sua recusa de toda a negociação) encontra os
seus fundamentos na negação da verdade da espoliação dos
Palestinianos. Nos Estados Unidos, uma tal recusa funda-se
na negação oficial da realidade das relações, incestuosas, que
as sucessivas administrações mantiveram com o movimento
islâmico, e do subsequente abandono destes aliados
incómodos desde o fim da Guerra Fria»36.
Admite-se contudo, ao mesmo tempo, que os
terroristas fazem a guerra aos Estados Unidos e que estes

84
DO GUERRILHEIRO AO TERRORISTA GLOBAL

devem por sua vez fazer-lhes a guerra. Mas o recurso a


este termo de «guerra» é ambíguo. As guerras tradicionais
concluem-se por tratados de paz, que aqui são excluídos. O
modelo de guerra que é implicitamente retido é pois o da
guerra total, moral ou «policial», onde não se trata somente
de vencer, mas de fazer desaparecer o inimigo. Carl Schmitt
escreve que «os teólogos tendem a definir o inimigo como
qualquer coisa que deve ser aniquilada»37. É igualmente
deste modo que raciocinam os paladinos da «guerra justa»,
e é ainda assim que raciocinam aqueles que fazem a «guerra
ao terrorismo», o que permite precisamente justificar que
se queira, não somente combatê-lo, mas fazê-lo desaparecer.
Vê-se bem, desde logo, que esta guerra é por natureza
muito diferente das guerras tradicionais, tendo origem
simultaneamente na acção policial e na guerra absoluta38.
Não se negoceia com o terrorismo: é o que repetem
todos os poderes públicos que com ele são confrontados
(mesmo que, na realidade, aconteça que negoceiem
de maneira mais ou menos dissimulada, por exemplo
pagando discretamente um resgate para obter a libertação
de um refém). O terrorismo global, também ele, parece não
querer minimamente negociar, distinguindo-se por isso do
sequestro, com o qual por outro lado tanto se assemelha,
mas somente causar o maior número de danos possíveis.
Contudo, se admitirmos que o seu verdadeiro alvo não é
nunca aquele que os próprios actos terroristas visam, mas
sim o que procura atingir de modo indirecto pelos seus
actos (para o constranger a tal ou tal mudança de atitude,
a tal ou tal modificação da sua política, etc.), então torna-
se necessário admitir que busca pelo contrário uma
«negociação». O terrorismo procura obter alguma coisa: que
a França cesse de dar o seu apoio ao regime argelino, que
os Estados Unidos mudem de política no Próximo Oriente,

85
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

que a Rússia evacue a Chechénia, etc. A afirmação segundo


a qual «não se negoceia com o terrorismo» é então para ser
compreendida como uma simples recusa de ceder a uma
exigência. Bem entendido, é tomando como referência os
meios utilizados para os fazer ceder, meios prontamente
considerados como inaceitáveis porque atingem «inocentes»
ou tomam como «reféns» a população civil, que os poderes
públicos justificam a sua recusa em ceder. Mas é também
evidente que estes, de igual forma, não cederiam se as
mesmas exigências lhes fossem apresentadas de maneira
«razoável», e é muito por causa disso que os terroristas, que
não o ignoram, preferem recorrer aos meios mais extremos,
meios julgados capazes de obter o que não obteriam de outra
forma, enquanto que pelo contrário estes serão utilizados
como pretexto para justificar a recusa em lhes ceder.
Carl Schmitt distingue o guerrilheiro tradicional
do «guerrilheiro absoluto» que, animado pela sua fé
revolucionária, se exime a todas as normas. Mas não faz,
por tal, do guerrilheiro absoluto um criminoso. Reconhece
pelo contrário nele uma figura eminentemente política.
Nota que o «carácter político intensivo do guerrilheiro é de
reter, quanto mais não seja porque é necessário distingui-
lo de um vulgar bandido e criminoso, cujas motivações são
orientadas para um enriquecimento privado»39. Mesmo
quando não parece haver outra finalidade para além do acto
em si, todo o acto terrorista é com efeito portador de uma
mensagem política, que é preciso decifrar. Para o terrorista,
o terror é sempre potencialmente «convertível em capital
político» (Percy Kemp). O terrorista é certamente um hostis,
um inimigo político, no sentido dado por Carl Schmitt, mas
é precisamente esta dimensão propriamente política do
terrorismo que o recurso à retórica policial tende a apagar.
«Quanto mais as democracias ignorarem a mensagem

86
DO GUERRILHEIRO AO TERRORISTA GLOBAL

política veiculada pelo terrorismo, acrescenta Percy Kemp,


mais elas encorajarão uma escalada da violência convidando
o terrorista a transformar-se em anjo vingador»40. Tal não
quer dizer que os actos terroristas não sejam também crimes.
Mas são crimes políticos, que não podem ser reconhecidos
como tais sem tomar em consideração o contexto e as causas
que permitem qualificá-los assim. Noutros termos, um crime
político é político antes de ser criminal, e é por isso que não
deveria ser assimilado a um crime de direito comum.
Os limites da tese segundo a qual o terrorismo não
seria utilizado a não ser em «último recurso», sendo «a arma
dos pobres» e traduzindo somente o «desespero» de certas
populações ou minorias, foram facilmente trazidos à luz por
diferentes autores. Mas a tese segundo a qual a violência
terrorista seria «ilógica», «irracional», «inexplicável»,
puramente «inumana», «criminosa» ou «bárbara», é ainda
menos sustentável. O terrorismo nada tem de «irracional».
Não é mais (ou menos) irracional que a lógica do mercado,
que tem, também ela, os seus fundamentos religiosos, uma
vez que divide o mundo entre «crentes» (na toda poderosa
«mão invisível» e nas regulações económicas espontâneas)
e «incrédulos». Acrescentemos que é tanto mais erróneo
qualificar o terrorismo islâmico de «niilista» quanto o
niilismo é a besta negra do pensamento islâmico. (O que
os muçulmanos mais censuram ao Ocidente é precisamente
o seu niilismo, o que alude ao facto de este não ter senão
valores materiais a propor como exemplo). Nada é pois mais
afastado da realidade do que a representação do terrorismo
como uma sucessão irracional de acções puramente
patológicas ou criminais. O terrorismo inscreve-se num
objectivo político, responde a uma lógica estratégica. Esta
lógica e este objectivo são perdidos de vista pelas condenações
puramente morais ou pela indignação da comunicação

87
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

social. «Mesmo os atentados cegos, escreve Pierre Mannoni,


atingindo vítimas inocentes, são deliberadamente decididos
e obedecem a uma intenção precisa. Tudo é aí calculado para
produzir um certo tipo de efeito, porquanto nada é menos
fantasista, vago ou improvisado que um atentado, onde
tudo é planificado: intervenientes, lugares, modalidades e,
sobretudo, repercussões mediáticas e políticas»41. «Todas
as indignações e as condenações morais, acrescenta, não
conseguem, feitas as contas e apesar delas, senão caucionar
o terrorismo que elas denunciam atestando, pela sua
existência, a sua capacidade em abalar os ânimos»42.
Na época da Guerra Fria, a União Soviética
representava para a América um adversário «simétrico».
Com o terrorismo global, esta encontra-se perante uma
confrontação assimétrica. «A guerra, observa Pierre
Mannoni, admite uma ligação de proporcionalidade
directa entre uma forte extensão espacial, uma intensidade
moderada a forte e uma frequência contínua; o terrorismo é
caracterizado por uma relação de proporcionalidade inversa
entre uma extensão espacial fraca, uma intensidade extrema
e uma frequência descontínua»43. Há pouco, procurava-se
o equilíbrio das forças (ou do «terror»). Doravante, a noção
chave é a de assimetria (e não de dissimetria, que marca
somente uma inegalidade de ordem quantitativa entre as
forças em presença).
A «guerra contra o terrorismo» é uma guerra
assimétrica pela própria natureza do fenómeno: é
precisamente porque o terrorista não dispõe de meios de
confrontação clássicos que recorre ao terrorismo. Esta
assimetria já existia na era do guerrilheiro clássico, o que
suscitava a cólera de Napoleão. Com o terrorismo clássico,
esta assimetria generaliza-se a todos os níveis. Assimetria
dos actores: de um lado estruturas pesadas e Estados, do

88
DO GUERRILHEIRO AO TERRORISTA GLOBAL

outro lógicas fluidas e grupos transnacionais44. Assimetria


dos objectivos: os terroristas sabem onde e como atacarão,
os seus adversários não sabem (ou não sabem senão
imperfeitamente) onde e como lhes responder. Assimetria
dos meios: a 11 de Setembro de 2001, no espaço de poucos
minutos, os navios de guerra, as bombas atómicas, os F-16 e
os mísseis de cruzeiro tornaram-se obsoletos face a algumas
dezenas de «fanáticos» munidos de facas e de cuttersa.
Realizados com meios derrisórios, os atentados de Nova
Iorque e de Washington fizeram vacilar a América e
causaram, directa ou indirectamente, danos avaliados em
mais de 60 biliões de dólares45.
Mas a principal assimetria é de ordem psicológica:
um imenso fosso separa homens para os quais muitas
coisas são piores que a morte de um mundo no qual a
vida individual, puro facto de imanência, é olhada como
um bem que ninguém poderia sobrepujar. Os Ocidentais
vivem nos nossos dias num mundo «desencantado» que
considera que nenhum bem é superior à vida. No decurso
da história, este sentimento foi mais vezes a excepção do que
a regra. Percy Kemp fala aqui muito justamente da «escolha
antropocêntrica que foi feita, a partir da Renascença,
colocando o homem em vez de Deus no centro do universo
e substituindo o medo do Inferno pelo da morte»46. Donde
a assimetria radical existente entre os terroristas prontos a
dar a sua vida suprimindo a vida dos outros, precisamente
porque não têm «medo da morte», e aqueles para quem
este comportamento é propriamente «incompreensível»
porquanto, para eles, a vida vale sempre mais que tudo. É
esta assimetria que tende, do lado das vítimas, a descrever o
terrorismo como consequência de um «niilismo absurdo»: a
racionalidade do mundo ocidental laicizado torna-o incapaz
de compreender as motivações oriundas de uma lógica que

89
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

esse mesmo mundo, contudo, conheceu no passado, a saber


que há causas, boas ou más bem entendido, que valem a
pena que se dê a sua vida por elas. A recusa de sacralizar a
vida existente, a ausência de «medo perante a morte» não
pode provir, numa tal óptica, senão de um «fanatismo»
assimilável à loucura criminosa. Entre aqueles que pensam
no outro mundo e aqueles que pensam na sua reforma, não
há medida comum possível. Para os terroristas, a morte é
eventualmente uma recompensa. Face a esse desejo de morte
erigido em arma absoluta, o Ocidente está inevitavelmente
desarmado. 1
O terrorismo, enfim, é ainda assimétrico no sentido em
que obtém um formidável impacto sobre a opinião matando
não obstante relativamente pouca gente, infinitamente
menos, por exemplo, que os homicídios ou os assassinatos
de tipo «clássico» que se produzem a cada ano no mundo47.
É deste ponto de vista muito comparável à catástrofe aérea,
rara mas da qual falarão todos os media porque terá levado
simultaneamente à morte várias dezenas ou centenas de
pessoas, comparados com os acidentes de carro, que matam
infinitamente mais indivíduos mas dos quais ninguém
fala, porquanto nenhum deles provoca mais do que um
pequeno número de mortes. O terrorismo faz igualmente
muito menos vítimas do que os massacres étnicos, tal
como pudemos ver no Ruanda nomeadamente, mas suscita
reacções mais fortes porque é mais espectacular. Ora, esse
carácter espectacular é indissociável do objectivo a que se
propõe. O seu verdadeiro impacto é de ordem psicológica.
O terrorismo global visa com efeito a fragilização
das estruturas e a desestabilização dos comportamentos.
Evocando as acções terroristas actuais, Pierre Mannoni
escreve a justo título que não se trata tanto, para os seus

NDT – Em inglês no original. X-actos.


a

90
DO GUERRILHEIRO AO TERRORISTA GLOBAL

autores, «de “tirar as massas da sua apatia”, como à época


dos revolucionários históricos, mas de aí as mergulhar,
inibindo as suas faculdades de defesa ou de iniciativa»48.
Por seu lado, Jordan Paust observava, desde os anos
setenta, que o objectivo procurado pelo acto terrorista era
«utilizar o terror e a angústia assim suscitados a fim de
constranger o alvo principal a adoptar uma dada conduta
ou a modificar a sua política no sentido desejado»49. Esta
definição mostra bem que o «alvo principal» não é nunca
aquele que é visado de imediato, mas aquele que se quer
de alguma forma atingir por ricochete (é nisto que o acto
terrorista se assemelha ao sequestro). Desde logo, aquando
dos bombardeamentos de terror sobre as populações civis
alemãs ou japonesas durante a Segunda Guerra Mundial, o
alvo visado, para lá das vítimas em si, era o governo alemão
ou japonês. O mesmo se aplica ao terrorismo global, cujas
acções visam um efeito secundário, mais do que primário:
os atentados são somente meios de condicionar a opinião
pública ou de exercer pressão sobre a política dos governos.
O terrorismo quer assim atingir os espíritos e desarmar as
vontades. O fim procurado, por exemplo, não é tanto o de
destruir as Twin Towers de Nova Iorque quanto o de provocar
na opinião um trauma que seguramente o espectáculo da
sua destruição produzirá. É uma diferença importante em
relação ao partisan, ou guerrilheiro, que procura quase
sempre efeitos directos sobre objectivos imediatos, sendo
então esse efeito primário o efeito procurado.
No mundo actual, esse objectivo é atingido
principalmente por intermédio da comunicação social.
Há com efeito uma ligação evidente entre o seu carácter
espectacular e a repercussão que lhe é dada pela comunicação
social. O terrorismo dá nas vistas tanto quanto impressiona o
imaginário. É o facto de constituir um espectáculo chocante,

91
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

perturbador, suscitante de comoções emocionais e de


reacções viscerais imediatas, que lhe confere o seu poder de
impacto: os atentados do 11 de Setembro foram disto a perfeita
ilustração. O progresso do terrorismo está intimamente
ligado à expansão do sistema mediático mundial que,
dando conta deste «em tempo zero», desmultiplica o seu
impacto. O efeito choque de um atentado não depende tanto
da sua amplitude intrínseca quanto do que dele se dirá: se
nada é dito, é como não tivesse ocorrido. Como o observa
muito bem Paul Virilio, «a arma de comunicação massiva é
estrategicamente superior à arma de destruição massiva»50.
Há aí uma espécie de ligação perversa, mas orgânica, entre
o terrorismo e a comunicação social, uma ligação que faz
lembrar o modo pelo qual a linguagem publicitária se tende
a instaurar como paradigma de todas as linguagens sociais51.
«O terrorismo opera a dois níveis, escreve por seu lado Rüdiger
Safranski: o concreto e o simbólico. A propagação mediática
do terror é tão importante quanto as próprias acções. É por
isso que a comunicação social se torna cúmplice, contra a
sua própria vontade. Uns produzem o terror na expectativa
de que outros o propaguem (…) É da própria essência do
terrorismo moderno utilizar a comunicação social como
serviço de mensagens»52. O terrorismo constitui assim um
jogo a quatro, um jogo assassino cujos quatro elementos são
indissociáveis: os terroristas, as vítimas, o «alvo principal»
(os poderes estabelecidos) e a comunicação social.
Pouco tempo antes da sua morte, Jacques Derrida
colocava esta questão: «O terror organizado, provocado,
instrumentalizado, difere em quê desse medo que toda
uma tradição, de Hobbes a Schmitt e mesmo Benjamin,
tem como condição da autoridade da lei e do exercício do
poder, por condição do próprio político e do Estado?»53. Na
sua generalidade, o propósito era sem dúvida contestável,

92
DO GUERRILHEIRO AO TERRORISTA GLOBAL

mas tinha ao menos o mérito de enfatizar a noção de medo.


No terrorismo global, o medo do perigo é, com efeito, ainda
mais importante que o perigo. O terrorista é um inimigo
reputadamente capaz de tudo, mas «invisível», e como tal
virtualmente omnipresente54. Esta característica serve-lhe na
medida em que contribui para amplificar o efeito de medo
procurado. Não conhecendo nem fronteira nem medida, o
terrorismo destrói todas as referências, porquanto provém
de uma lógica radicalmente distinta da racionalidade
corrente. A sua «invisibilidade», a sua imprevisibilidade,
decuplicam o medo suscitado pela ameaça que constitui,
ao mesmo tempo que favorecem todas as espécies de
representações conspiracionistas. Numa sociedade onde o
risco (omnipresente) tomou o lugar do perigo (identificável
e localizável)55, engendra além disso espectros de suspeição
generalizada, tendentes a legitimar não importa qual
medida de controlo ou de restrição das liberdades no seio
de populações frequentemente prontas a sacrificar essas
liberdades para verem garantida mais segurança.
Já o dissemos acima: o terrorismo, é a guerra em
tempo de paz, entenda-se uma guerra na paz, e é uma
guerra «global», quer isto dizer total. No final de Setembro
de 2001, a Casa Branca tinha dado o nome de código de
«Justiça infinita» (Infinite Justice) ao seu plano de guerra
ao terrorismo. Ora, por definição, a «justiça infinita» não
conhece limites. George W. Bush, dirigindo-se ao Congresso,
afirmava na mesma altura que essa guerra não acabaria
«senão quando todos os grupos terroristas que disponham de
uma capacidade de alcance global tiverem sido descobertos,
presos e vencidos». «Queremos uma vitória total no Iraque,
e teremos uma vitória total», declarou também, o que
significa claramente que tudo o que não se pareça com
uma vitória total será encarado por ele como uma derrota

93
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

total. É o mesmo que dizer que esta guerra, não declarada,


é uma guerra sem fim. Paul Virilio escreveu que «com o
terrorismo entrámos na era da guerra sem fim, nos dois
sentidos da palavra»56. Trata-se com efeito simultaneamente
de uma guerra que não se pode terminar e de uma guerra
sem finalidade precisa ou objectivo determinado57. Ela é sem
fim, para ambos os lados, uma vez que realisticamente os
terroristas não podem esperar vencer os seus adversários,
enquanto que estes últimos não podem seriamente estar à
espera de fazer desaparecer o terrorismo. Por definição, a
guerra contra o terrorismo não pode ser ganha nem perdida.
Quer isto dizer que, como o tinha previsto Carl Schmitt, o
terrorismo global tem ainda belos dias à sua frente.

1
Cf. especialmente Thomas Assheuer, «Geistige
Wiederbewaffnung. Nach den Terroranschlägen erlebt
der Staatsrechtler Carl Schmitt eine Renaissance», in
Die Zeit, Hamburgo, 15 de Novembro de 2001, p. 54;
«Carl Schmitt Revival Designed to Justify Emergency
Rule», in Executive Intel­ligence Review, 2001, 3, pp.
69-72; J. Hacke, «Mit Carl Schmitt in den Krieg –
mit Carl Schmitt gegen den Krieg», in Ästhetik und
Kommunikation, Ber­lim, XXXIII, 2002, 118, pp.
29-32; Frederik Stjernfelt, «Suverænitetens para-
dokser: Schmitt og terrorisme», in Weekendavisen,
10 de Maio de 2002; Nuno Rogeiro, O Inimigo
Público. Carl Schmitt, Bin Laden e o Terrorismo Pós­-
Moderno, Gradiva, Rio de Janeiro 2003; Lon Troyer,
«Counterterrorism. Sovereignty, Law, Subjectivity»,
in Critical Asian Studies, 2003, 2; Ulrich Thiele,
«Der Pate. Carl Schmitt und die Sicherheitsstrategie
der USA», in Blätter für deutsche und internationale

94
DO GUERRILHEIRO AO TERRORISTA GLOBAL

Politik, Agosto de 2004, pp. 992-1000; William


Rasch, «Carl Schmitt and the New World Order», in
South Atlan­tic Quarterly, Durham, 2004, 2, pp. 177-
184; Carsten Bagge Lausten, «Fjender til døden: en
schmittiansk analyse af 11. September og tiden eft-
er», in Grus, 71, 2004, pp. 128-146; Peter Stirk, «Carl
Schmitt, the Law of Occupation, and the Iraq War», in
Constellations, Oxford, 2004, 4, pp. 527-536 (texto re-
editado in Peter Stirk, Carl Schmitt, Crown Jurist of the
Third Reich. On Preemptive War, Military Occupation,
and World Empire, Edwin Mel­len Press, Lewiston
2005, pp. 115-129); Alfred C. Goodson, «“Kosmopi­
raten”, “Kosmopartisanen”: Carl Schmitt’s Prophetic
Partisan», in ABLIS Jahrbuch für europäische Prozesse,
vol. 3: Aufbruch in den rechtsfreien Raum. Normvirulenz
als kulturelle Ressource, 2004, 6 S.; Andreas Behnke,
«9/11 und die Grenzen des Politischen», in Zeitschrift
für internationale Politik, XII, 2005, 1; Francesco
Merlo, «Se questa è una guerra – Sulla “teoria del
partigiano”» di C. Schmitt, in La Repubblica, 21 de
Julho de 2005; William E. Scheuerman, «C. Schmitt
and the Road to Abu Ghraib», in Constella­tions, XIII,
1, Março de 2006, pp. 108-124. William Rasch esfor-
çou-se igualmente por traduzir (NDT: leia-se trans-
por) as teses de Schmitt sobre o conflito em termos
que vai buscar a Luhman e a Lyotard («Conflict as a
Vocation: C. Schmitt and the Possibility of Politics»,
in Theory, Culture and Society, Dezembro de 2000, pp.
1-32). Jacques Derrida pronunciou-se por uma leitura
crítica de Schmitt em relação à situação internacional
actual («Qu’est-ce que le terrorisme?», entrevista com
Giovanna Borradori, in Le Monde diplo­matique, Paris,
Fevereiro de 2004, p. 16). George Corm considera

95
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

que «as derivas às quais assistimos depois dos graves


acontecimentos do 11 de Setembro de 2001 e a energia
guerreira empregue pelos Estados Unidos para gravar
em todas as consciências a necessidade de uma guerra
total ao monstro terrorista» não fazem mais do que
confirmar a «profunda visão» de C. Schmitt (Orient-
Occident. La fracture imaginaire, 2ª ed., Découverte,
Paris 2005, p. 194).
2
Theorie des Partisanen. Zwischenbemerkung zum Begriff
des Politis­chen, Duncker u. Humblot, Berlim 1963, úl-
tima edição: Berlim 2002. (trad. pt.: Teoria da guer-
rilha, Theorie des Partisanen. Zwischenbemerkung zum
Begriff des Politischen, tradução de Clarisse Tavares,
Lisboa, Ed. Arcádia, 1975). (trad. fr.: in La notion de po-
litique – Théorie du partisan, Calmann-Lévy, Paris 1972,
2ª ed.: Flammarion, Paris 1992. A edição francesa in-
clui num só volume as obras O Conceito do Político e
A Teoria da Guerrilha, publicadas separadamente em
língua portuguesa). O livro de Schmitt reúne o texto
de duas conferências pronunciadas em Espanha em
Março de 1962, ou seja alguns meses após a constru-
ção do Muro de Berlim. Vários comentadores consi-
deram não ser um acaso que a atenção de Schmitt se
tenha cristalizado sobre o assunto, aquando da Guerra
Fria. Carl Schmitt desenvolveu em seguida os seus
pontos de vista sobre o guerrilheiro nas suas entre-
vistas com o maoista Joachim Schickel: Gespräche mit
Carl Schmitt, Merve, Berlim 1993. Cf. também Marcus
Llanque, «Ein Träger des Politischen nach dem Ende
der Staatlichkeit: Der Partisan in Carl Schmitts politis­
cher Theorie», in Herfried Münkler (Hrsg.), Der
Partisan. Theorie, Strate­gie, Gestalt, Westdeutscher,
Opladen 1990, S. 61-80; Joachim Klaus Ron­neberger,

96
DO GUERRILHEIRO AO TERRORISTA GLOBAL

«Der Partisan im terroristischen Zeitalter. Vom geheg-


ten Kriegs­raum zum reinen Krieg. Carl Schmitt und
Paul Virilio im Vergleich», ibid., S. 81-97; Ingeborg
Villinger, «Skalpell und Breitschwert. Im glo­balen
Partisanentum droht der Ausnahmezustand zum
Dauerzustand zu werden», in Frankfurter Allgemeine
Zeitung, 1º de Outubro de 2001, p. 53; Teo­doro Klitsche
de La Grange, «The Theory of the Partisan Today», in
Telos, Nova Iorque, 127, Primavera de 2004, pp. 169-
175; Douglas Bulloch, «Carl Schmitt and the Theory
of the Partisan. Articulating the Partisan in Inter­
national relations», comunicação ao colóquio «The
International Thought of Carl Schmitt», Haia, 9-11
Setembro de 2004; Stephan Schlak, «Der Partisan
ganz privat», in Die Tageszeitung, 15 de Março de
2006, p. 15; Matthias Schmoeckel, «Carl Schmitts
Begriff des Partisanen. Fra­gen zur Rechtsgeschichte
des Partisanen und Terroristen», in Forum His­toriae
Iuris (jornal electrónico), 31 de Março de 2006, 29 p.
Note-se por fim a publicação e um número especial
de CR: The New Centennial Review inteiramente con-
sagrada ao exame das teses de Carl Schmitt relativas
ao guerrilheiro: Michaelsen e David E. Johnson (ed.),
Theory of the Partisan, East Lansing, Michigan State
University Press, IV, 3, Inverno de 2004 (textos de Al­
fred Clement Goodson, Rodolphe Gasché, Gil Anidjar,
Alberto Moreiras, Sigrid Weigel, Eva Horn, Miguel E.
Vatter et Werner Hamacher).
3
Cf. por exemplo J.F.C. Fuller, La conduite de la guerre
de 1789 à nos jours, Payot, Paris 1963, p. 27.
4
Citado por Marcel Reinhard, L’armée
et la Révolution pendant la Convention,
Centre de documentation universitaire,

97
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

Paris 1957, p. 141.


5
Citado por Marcel Reinhard, in Le Grand Carnot,
Hachette, Paris 1994, p. 432.
6
Jean-Yves Guiomar, L’invention de la guerre totale,
XVIIIe-XXe siè­cle, Félin, Paris 2004, pp. 13-14.
7
Cf. André Corvisier (ed.), De la guerre réglée à la guerre
totale, 2 vol., CTHS, Paris 1997.
8
Jean-Yves Guiomar, no seu livro, sublinha que «a
análise apresentada por Carl Schmitt é de uma grande
riqueza» (op. cit., p. 313).
9
Schmitt cita aliás um general prussiano, segundo
o qual a campanha conduzida por Napoleão contra a
Prússia em 1806 poderia ser considerada como uma
guerra de guerrilha em grande escala. Cf. Ernesto
Laclau, «On “Real” and “Absolute” Enemies», in CR:
The New Centennial Review, Primavera de 2005, pp.
1-12.
10
Na Nouvelle Gazette rhénane de 7 de Novembro de
1848, Karl Marx citava já o «terrorismo revolucioná-
rio» como um dos meios a pôr em prática para obter
a vitória. Mas é Lenine que fará da violência o ponto
de partida inelutável da conquista do poder pelo pro-
letariado. Com o advento da Rússia dos Sovietes, a pa-
lavra «terror» reencontra aliás durante algum tempo
um certo apreço. Tendo regressado da União soviética,
os comunistas Cachin e Frossard indicavam ter adop-
tado os «métodos de violência e de terror aos quais
é obrigada a recorrer inevitavelmente uma classe que
aspira à tomada do poder» (L’Humanité, 3 de Agosto
de 1920).
11 Théorie du partisan, op. cit., p. 224.
12
Ibid., pp. 257 e 303.
13
Ibid., p. 235.

98
DO GUERRILHEIRO AO TERRORISTA GLOBAL

14
Posfácio a Carl Schmitt, Terre et Mer. Un point de
vue sur l’histoire mondiale, Labyrinthe, Paris 1985, pp.
108-109.
15
Théorie du partisan, op. cit., pp. 287 e 305.
16
David C. Rapoport, professor na Universidade
da Califórnia em Los Angeles e fundador da revista
Terrorism and Political Violence, distingue na história
moderna quatro grandes vagas de terrorismo. A pri-
meira, que começa na Rússia nos anos 1880 e se es-
palha rapidamente nos Balcãs e na Europa ocidental, é
sobretudo obra de anarquistas. A passagem do século
XIX ao XX será a «idade de ouro do assassinato políti-
co». Essas primeiras acções terroristas dos tempos mo-
dernos são associadas ao desenvolvimento da impren-
sa quotidiana, ao progresso dos meios de transporte e
à invenção do telégrafo (cf. «Terrorisme et médiatis-
me», in De defensa, Bruxelas, 25 de Maio de 1998, pp.
16-19). A segunda vaga é a vaga anticolonialista, que
começa por volta de 1920 e prossegue durante uma
quarentena de anos, culminando por volta dos anos
1960. É esta que dará crédito à ideia de que os ter-
roristas são antes de tudo «combatentes pela liberda-
de». A terceira vaga, de uma menor amplitude, é a das
organizações de extrema-esquerda que, após a morte
de «Che» Guevara, preconizam a guerrilha urbana:
Brigadas vermelhas (Itália), Acção Directa (França),
Fracção do Exército Vermelho (Alemanha) mas tam-
bém Tupamaros (Uruguai), Montoneros (Argentina),
etc. Esta vaga, hoje em dia enfraquecida na maior par-
te dos países ocidentais, sobrevive ainda no Nepal, no
Peru, na Colômbia, etc. A última, é a actual vaga de um
terrorismo global predominantemente «islamita». Vê
generalizarem-se as acções suicidas, muito impropria-

99
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

mente chamadas «kamikazes» (uma vez que os kami-


kazes japoneses da Segunda Guerra mundial eram tro-
pas perfeitamente regulares, que nunca para cúmulo
visaram alvos civis), sem todavia os ter inventado (no
século XIX, o dinamiteiro era já frequentemente mor-
to com a sua bomba). Certos autores fazem remon-
tar esta última vaga ao Verão de 1968, data na qual a
Frente Popular de Libertação da Palestina (FPLP) de
Georges Habache desviou dois aviões da companhia
israelita «El Al». Contudo, não se pode ainda nessa
data falar de «terrorismo global». O ano de 1979 em
contrapartida marcou uma viragem essencial, uma
vez que assistiu (para além do começo de um novo
século da era islâmica) quer à revolução iraniana quer
à invasão do Afeganistão pelos Soviéticos. A revolução
islâmica de Teerão foi essencialmente anti-americana,
mas os Estados Unidos não hesitaram em apoiar e fi-
nanciar os combatentes islâmicos afegãos, cuja acção
iria resultar dez anos mais tarde, em 1989, na retira-
da do Exército Vermelho. Após a queda do Muro de
Berlim e do desmantelamento do sistema soviético,
certos combatentes islamitas formados no Afeganistão
prosseguiram a sua luta na Argélia e nas antigas re-
públicas soviéticas com forte população muçulmana
(Chechénia, Uzbequistão, Quirguistão, Tajiquistão,
Azerbaijão, etc.) depois no Iraque e noutros locais. Na
época da guerra fria, os grupos terroristas eram fre-
quentemente considerados como sendo manipulados
pelo KGB soviético. O desaparecimento do KGB não
fez contudo regredir o terrorismo, bem pelo contrário.
Acerca da história do terrorismo, cf. também Joachim
Schickel, Guerilleros, Partisanen. Theo­rie und Praxis,
Carl Hanser, Munique 1970 (que dá um grande des-

100
DO GUERRILHEIRO AO TERRORISTA GLOBAL

taque às teses de Carl Schmitt); Walter Laqueur, The


Age of Terrorism, Little Brown, Boston 1987; Alex P.
Schmid e Albert J. Jongman (ed.), Political Terro­rism.
A New Guide to Actors, Authors, Concepts, Theories,
Data Bases, and Literature, Transaction Books, New
Brunswick 1988.
17
Cf. Carl Schmitt, Legalität und Legitimität, Duncker
u. Humblot, Munique-Leipzig 1932, última edição:
Berlim 2006 (trad. fr.: Légalité – légitimité, Librairie
générale de droit et de jurisprudence, Paris 1936,
2ª ed.: «Légalité et légitimité», in Carl Schmitt, Du
politique. «Légalité et légitimité» et autres essais, Pardès,
Puiseaux 1990, pp. 39-79).
18
É necessário contudo notar que, em teoria, os guer-
rilheiros, embora combatentes irregulares, se consi-
deram a si próprios, como portadores de armamento
visível, e de símbolos distintivos o que, normalmente,
obriga os Estados a tratá-los como soldados.
19
A expressão de «combatente pela liberdade» (free-
dom fighter), muito em voga na época das lutas antico-
loniais, não começou senão a sair de uso muito recen-
temente. Foi somente no decorrer dos anos 1970 que
a ONU adoptou as suas primeiras Convenções inter-
nacionais «tendo em vista a supressão dos atentados
terroristas».
20
O grupo terrorista judeu Irgun, animado por
Menahem Begin, foi o primeiro a descrever-se a si
próprio como um «combatente pela liberdade» lutan-
do contra o «terror governamental», contrariamente
ao grupo concorrente Lehi (grupo Stern) que reivindi-
cava a etiqueta de «terrorista».
21
Cf. Patrick Cockburn, «Clinton Backed Baghdad
Bombers», in The Independent, Londres, 26 de Março

101
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

1996; Alain Gresh, «Croisade anti­terroriste», in Le


Monde diplomatique, Paris, Setembro de 1996.
22
O desacordo entre Americanos e Europeus acerca da
questão da qualificação aplicável a movimentos como
o Hamas palestiniano ou o Hezbollah libanês é uma
outra ilustração da dificuldade em estabelecer uma
fronteira estanque entre «resistência» e «terrorismo».
Segundo a lei israelita, as acções violentas cometidas
pelos Palestinianos são crimes ou delitos, cujos auto-
res não podem beneficiar do enquadramento legal que
se aplica aos prisioneiros de guerra. Mas ao mesmo
tempo, as represálias levadas a cabo contra eles são ofi-
cialmente qualificadas como actos de guerra, não en-
trando pois no campo da aplicação de indemnizações
em caso de danos causados a terceiros, e não como
actos de polícia que, no caso de tais danos, poderiam
dar direito a indemnizações. Cf. a este respeito Henry
Laurens, «La poudrière proche-orientale entre ter­
rorisme classique et violence graduée du Hezbollah»,
in Esprit, Paris, Maio de 2005, pp. 141-149.
23
As organizações político-criminais transnacionais
movimentariam a cada ano cerca de 70 biliões de dó-
lares, e reciclariam metade na economia mundial.
24
Cf. Gérard Chaliand, «La mesure du terrorisme», in
Stratégique, Paris, 1997, 2-3, p. 10.
25
Segundo Bob Woodward, George W. Bush teria des-
crito os atentados do 11 de Setembro, no seu diário
pessoal, como «o Pearl Har­bor do século XX» (cf. Bob
Woodward, Plan of Attack, Simon & Schus­ter, Nova
Iorque 2004, p. 24).
26
Acerca da relação entre terrorismo e globalização,
e o fosso (gap) que esta última cria entre os países co-
nectados a um «centro» globalizado e funcionando

102
DO GUERRILHEIRO AO TERRORISTA GLOBAL

em rede (functioning core) e os outros, cf. especialmen-


te Tho­mas P.M. Barnett, The Pentagon’s New Map. War
and Peace in the Twenty-first Century, Putnam, Nova
Iorque 2004.
27
A partir do ano 2000, a «mistura» (blending) do sis-
tema de segurança interno e das estratégias militares
foi apresentado nos Estados Unidos como o quadro
global ideal da luta contra as ameaças terroristas (cf.
Caro­lyn Pumphrey, ed., Transnational Threats. Blending
Law Enforcement and Military Strategies, US Army War
College, Novembro de 2000). O relatório de 2002 inti-
tulado The National Security Strategy constata que «hoje
em dia, a distinção entre os assuntos internos e os as-
suntos internacionais diminui» (p. 29). Os especialis-
tas da luta contra o terrorismo recorrem por seu lado,
e cada vez mais, aos conselhos de criminólogos (cf.
Xavier Raufer, «Géopolitique et criminologie. Une fé-
conde alliance face aux dangers du monde», in Défense
nationale et sécurité collective, Maio de 2005). Acerca da
noção de polícia internacional («Globo-Cop»), cf. Ales­
sandro Dal Lago, Polizia globale. Guerra e conflitti dopo
l’11 settembre, Ombre corta, Verona 2003.
28
Rik Coolsaet, Le mythe Al-Qaida. Le terrorisme, symp-
tôme d’une société malade, Mols, Bierges 2004, p. 113.
29
Sobre este ponto, cf. Christopher Daase, «Terrorismus
und Krieg. Zukunftsszenarien politischer Gewalt nach
dem 11. September 2001», in Rüdiger Voigt (Hrsg.),
Krieg – Instrument der Politik? Bewaffnete Konflikte
im Übergang vom 20. zum 21. Jahrhundert, Nomos,
Baden-Baden 2002, pp. 365-389. Cf. também Richard
Falk, «Thinking About Terrorism», in The Nation, 28
de Junho de 1986; Teodoro Klitsche de la Grange,
«Osservazioni sul terrorismo post-moderno», in

103
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

Behemoth, Roma, 30, 2001; Jörg Friedrichs, «Defining


the International Public Enemy: The Political Struggle
behind the Legal Debate on International Terrorism»,
in Leiden Journal of Inter­national Law, Leiden, XIX,
2006, 1, pp. 69-91.
30
Mais de um século depois, o procurador-geral do
presidente Woodrow Wilson pôs em marcha uma pro-
posta visando expulsar por barco todos os anarquis-
tas, independentemente mesmo da sua eventual im-
plicação numa acção de tipo criminoso. Esta decisão
provocou em 1920 um atentado à bomba contra Wall
Street, no seguimento da qual as autoridades america-
nas adoptaram uma lei muito restritiva sobre as cotas
de imigração concernentes aos cidadãos da Europa
oriental e central.
31
Pierre Mannoni, Les logiques du terrorisme, In Press,
Paris 2004, p. 41. Após os atentados de 7 de Julho de
2005 em Londres, a BBC tinha aconselhado os seus
jornalistas a nem sequer se referirem mais a «terro-
rists», mas a «bombers».
32
127. Michael Walzer, De la guerre et du terrorisme, op.
cit., p. 80.
33
Francesco Ragazzi, «“The National Security Strategy
of the USA” ou la rencontre improbable de Grotius,
Carl Schmitt et Philip K. Dick», art. cit.
34
Immanuel Wallenstein, Sortir du monde états-unien,
Liana Levi, Paris 2004, p. 66.
35
Relatório The National Security Strategy, op. cit., p. 14.
36
Percy Kemp, «Terroristes, ou anges vengeurs», in
Esprit, Paris, Maio de 2004, pp. 21-22.
37
Ex captivitate salus, Greven, Köln 1950, p. 89 (última
edição: Duncker u. Humblot, Berlin 2002, trad. fr.:
Ex captivitate salus. Expérien­ces des années 1945-1947, J.

104
DO GUERRILHEIRO AO TERRORISTA GLOBAL

Vrin, Paris 2003).


38
Gilles Andréani, num texto intitulado «A guerra
contra o terrorismo. A armadilha das palavras» (docu-
mento electrónico, 2004), mostra, também ele, que na
expressão «guerra ao terrorismo», a palavra «guerra»
não deixa de ser equivoca. Realça que o emprego desta
palavra empola paradoxalmente o inimigo ao qual nos
opomos, conferindo-lhe uma certa legitimidade, que é
radicalmente contraditada pelo tratamento que lhe re-
servamos quando já o pusemos fora de combate, dado
que não é considerado como prisioneiro de guerra,
mas como um «combatente ilegal» sem uniforme, não
sendo originário nem de um território preciso nem
de um comando organizado. Outras dúvidas foram
expressas por Michael Howard («What’s in a Name.
How to Fight Terrorism», in Foreign Affairs, Janeiro-
Fevereiro 2002). Michael Walzer realça por seu lado,
muito justamente, que a «guerra contra o terrorismo»
é antes de tudo um «trabalho de polícia», mas que ao
mesmo tempo faz uso de meios militares, enquanto
que a polícia, salvo em casos de legítima defesa, «não
está autorizada a matar civis, mesmo tratando-se de
criminosos». «Se reflectirem, acrescenta ele, as regras
do trabalho de polícia concernentes aos danos colate-
rais são muito mais constrangedoras do que aquelas
que utilizam os soldados» («Terrorisme, morale et
guerre juste», entrevista com Jean-Marc Flükiger, site
< terrorisme. net >, 30 de Abril de 2006).
39
Théorie du partisan, op. cit., p. 218.
40
Art. cit., p. 20.
41
Op. cit., p. 8.
42
Ibid., p. 17.
43
Op. cit., p. 29.

105
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

44
«Os participantes de conflitos assimétricos são to-
dos em definitivo “transnacionais”, constata Zygmunt
Bauman. Eles são-no também no seu comportamen-
to: móveis, pertencentes a lugar nenhum, mudam
facilmente de alvo e não reconhecem nenhuma fron-
teira» (La société assiégée, Le Rouergue/Chambon,
Rodez 2005, p. 142, trad. de: Society Under Siege,
Polity, Cambridge 2002). Ele acrescenta: «As guerras
verdadeiramente assimétricas são um acontecimento
concomitante do processo de globalização. Talhadas à
medida para o espaço global e lev unt Bauman, «Wars
of Globalization Era», in European Jour­nal of Social
Theory, IV, 2001, 1, pp. 11-28.
45
Acerca da noção de guerra assimétrica, cf. Jorge
Verstrynge, La guerra periférica y el islam revolucionario.
Orígenes, reglas y ética de la guerra asimétrica, El Viejo
Topo, Madrid 2005.
46
Art. cit., p. 19. Zygmunt Bauman nota igualmente
que o caminho percorrido pela civilização ocidental é
constatável, entre outras coisas, «pela rapidez com que
a vontade de sacrificar a sua vida por uma causa se viu
condenada e classificada como sintoma de fanatismo
religioso, atraso cultural ou barbárie, por países que,
durante muitos séculos, apresentaram o martírio por
uma causa como sendo prova de santidade e dando di-
reito à beatificação» (La société assiégée, op. cit., p. 148).
47
No espaço de três decénios, o terrorismo causou a
morte de pouco menos de 20 000 pessoas.
48
Op. cit., p. 10.
49
«A Definitional Focus», in Yonah Alexander
e Seymour Max­well Finger (ed.), Terrorism.
Interdisciplinary Perspectives, John Jay Press, Nova
Iorque 1977, p. 21.

106
DO GUERRILHEIRO AO TERRORISTA GLOBAL

50
«L’état d’urgence permanent», art. cit., p. 96.
51
Cf. Yonah Alexander e Richard Latter (ed.), Terrorism
and the Media. Dilemmas for Government, Journalists
and the Public, Brassey’s, Washington 1990; Pierre
Mannoni, Un laboratoire de la peur: terrorisme et médias,
Hommes et perspectives, Marselha 1992.
52
Rüdiger Safranski, Quelle dose de mondialisation
l’homme peut-il supporter?, Actes Sud, Arles 2005, p.
84.
53
«Qu’est-ce que le terrorisme?», entr. cit., p. 16.
54
George W. Bush, escreve François-Bernard Huyghe,
«é o primeiro a conduzir o seu principal combate con-
tra um perigo que não reside no poderio do império
adverso, mas na perversidade moral de um grupo in-
visível» («Le terrorisme, le mal et la démocratie», in Le
Monde, Paris, 18 de Fevereiro de 2005).
55
Cf. Ulrich Beck, Risikogesellschaft. Auf dem Weg in
eine andere Moderne, Suhrkamp, Frankfurt/M. 1986
(trad. fr.: La société du risque, Aubier, Paris 2001). Cf.
também Jane Franklin (ed.), The Politics of the Risk
Society, Polity Press, Oxford 1998; Corey Robin, La
peur. Histoire d’une idée politique, Armand Colin, Paris
2006.
56
Art. cit., p. 97. Cf. também Enrique Dussel, «Estado
de guerra per­manente y razón cinica», in Herramienta.
Revista de debate y crítica mar­xista, 21, Inverno-
Primavera 2002-03.
57
«O terrorismo global leva ao extremo dois aspectos,
observa por seu lado Jürgen Habermas: a ausência de
objectivos realistas e a capacidade de tirar benefícios
da vulnerabilidade de sistemas complexos, (entrevista
com Giovanna Borradori, in Le Monde diplomatique,
Paris, Fevereiro de 2004, p. 17).

107
Do «Caso de Urgência» ao Estado de Excepção
Permanente
Face ao terrorismo, a velha doutrina do «containment» tor-
nou-se obsoleta. A luta contra o terrorismo tornou-se numa
luta ofensiva e preventiva. Implica um direito de perseguição
ilimitada que, ao autorizar o perseguidor a transpor as fron-
teiras, lhe permite simultaneamente afirmar a sua hegemo-
nia no mundo1. Mas ela decorre também da urgência, e de-
semboca por esse facto no estado de excepção. Característica
dos «tempos de aflição», o estado de excepção assemelha-se
a esse «estado de necessidade» que o historiador Theodor
Mommsen punha em paralelo com a legítima defesa. No es-
tado de excepção, um Estado encontra-se subitamente con-
frontado com um perigo extremo, com uma ameaça mortal
à qual não pode fazer face senão recorrendo a meios que se-
riam injustificáveis em tempo normal, por comparação com
as suas próprias normas. A situação de urgência ou estado
de excepção define-se por outros termos como a ocorrência
brutal de acontecimentos raros ou de situações imprevisí-
veis que, dado o facto do seu carácter ameaçador, exigem que
se lhes faça face imediatamente por meio de medidas, elas
mesmo excepcionais (restrição das liberdades, lei marcial,
estado de sítio, etc.), consideradas como as únicas adaptadas
à situação.
Ora, a noção de «caso de urgência» (Ernstfall) ou de
estado de excepção (Ausnahmezaustand) desempenha um pa-
pel central na teoria política e constitucional de Carl Schmitt,
onde se liga à sua crítica do liberalismo2. Para Schmitt sendo
a excepção imprevisível, é vão acreditar que se possa previa-

108
DO CASO DE URGÊNCIA AO ESTADO DE EXCEPÇÃO GLOBAL

mente determinar os meios que permitirão responder-lhe. O


liberalismo, quer se inspire no formalismo neokantiano ou
no positivismo kelseniano, não pode compreender a nature-
za da excepção nem fazer-lhe face sem se trair a si próprio
porque adere a uma concepção estritamente procedimental
ou jurídico-formal da ordem social, que pretende que uma
regra ou uma norma pré-estabelecida se possa aplicar a não
importa qual situação, o que desmente a experiência histórica.
Suspendendo a norma legal, acrescenta Carl Schmitt,
a excepção ajuda a melhor compreender a natureza do polí-
tico, no sentido em que demonstra onde reside a soberania,
significando tal a capacidade, concreta, de decidir face a uma
situação. O Estado de excepção revela simultaneamente a
instância e o lugar da soberania, ao mesmo tempo que faz
aparecer a decisão (Entscheidung) na sua «pureza absolu-
ta». Ora, constatamos, ainda aqui, que a instância política
soberana não se confunde automaticamente com o Estado.
«Souverän ist, wer über den Ausnahmezustand entscheidet»,
escreve Carl Schmitt. Esta fórmula doravante célebre pode
compreender-se de duas maneiras: é soberano aquele que
decide em caso de excepção, mas é soberano igualmente
aquele que decide acerca da própria excepção, quer isto dizer
quem decide que se saiu de uma situação normal e que a re-
gra já não se pode aplicar. Há pois uma ligação estreita entre
a excepção e a decisão, que Schmitt identifica com a «causa
primeira» de toda a sociedade ou entidade política. Schmitt
vê na decisão em caso de excepção (ou de urgência) a mais
pura expressão do acto político: a suspensão das normas le-
gais em caso de excepção constitui a manifestação última da
soberania política. A soberania, sublinha, não é com efeito
tanto o poder de fazer a lei quanto o poder de a suspender.
Mas enganar-nos-íamos ao interpretar esta afirmação como
uma apologia do arbitrário. Por um lado, Schmitt sublinha

109
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

que decidindo num caso de excepção, o soberano não é de


forma nenhuma tornado livre pelas circunstâncias para agir
a seu bel-prazer, mas que é, pelo contrário, obrigado a agir de
maneira conforme às responsabilidades que são as suas. Por
outro lado, afirma que a excepção define a regra no sentido
em que não se pode compreender uma regra sem ter em
consideração os seus limites, quer isto dizer as circunstân-
cias que a podem tornar inaplicável. Noutros termos: quem
decide da derrogação da norma fixa igualmente a norma. «A
excepção é mais interessante que a regra, escreve Schmitt
na sua Teologia Política. A regra não prova nada; a excepção
prova tudo: ela confirma não somente a regra mas tam-
bém a sua existência, a qual não deriva senão da excepção».
O estado de excepção é igualmente importante por-
que faz sobressair o carácter originalmente não normativo
da lei. Aliás não é o direito (Recht) enquanto tal que é sus-
penso no estado de excepção, mas somente o elemento nor-
mativo da lei (Gesetz). O estado de excepção revela por tal o
carácter existencial da lei. A excepção é essencial, não porque
ela é rara, mas porque é imprevisível. Tal como o próprio
inimigo, que não pode ser determinado à priori por uma
norma geral pré existente, dado que a inimizade está sem-
pre ligada ao contexto concreto do momento, esta não pode
pois ser codificada previamente. Religando o direito à sua
fonte não jurídica, na ocorrência a decisão soberana, Schmitt
contesta toda a forma de racionalismo constitucional, nome-
adamente a teoria do Estado de direito ou a teoria positivista,
segundo as quais o soberano deve ser, em todas as circuns-
tâncias, respeitador das regras do direito. A sobrevinda de
uma situação de excepção, com aquilo que implica, mostra
que isto não é simplesmente possível de todo, uma vez que
a norma não pode prever a excepção. Uma Constituição

110
DO CASO DE URGÊNCIA AO ESTADO DE EXCEPÇÃO GLOBAL

fica neste sentido sempre incompleta. No melhor dos casos


pode prever uma situação na qual ela não mais se aplicaria.
Mas Schmitt realça também que a excepção é por de-
finição excepcional, quer isto dizer que ela não poderia trans-
formar-se num estado, de facto, permanente. A excepção é
para a regra ou para a norma o que a guerra é para a paz. Tal
como na antiga ditadura romana, a suspensão da norma pelo
soberano não pode ser senão provisória. Ela pode, também,
abrir um novo círculo de direito. No seu livro sobre La dic-
tature3, Schmitt diz aliás claramente que a ditadura, que se
pode justificar em certos casos de excepção, suspende as nor-
mas em vigor mas não altera a ordem legal, ou a natureza do
Estado, o que significa que não tem legitimidade senão en-
quanto, não obstante, visar restaurar a ordem legal existente
anteriormente. A ditadura permanece assim constitucional:
a suspensão da ordem legal não significa a sua abolição4. Na
situação excepcional, se o Estado suspende as regras do direi-
to, é porque tem em vista a sua conservação. A decisão sobre
a excepção resulta da decisão acerca das condições concretas
de aplicação da norma. «É preciso que uma situação nor-
mal seja criada, escreve Schmitt, e é soberano quem decide
definitivamente se essa situação normal existe realmente»5.
A teoria do caso de excepção mostra o carácter sem-
pre eminentemente concreto do pensamento schmittiano:
se recusa as teorias formais abstractas, é porque é em pri-
meiro lugar escrupuloso com o contexto (e aqui, é neces-
sário recordarmo-nos que Schmitt enunciou primeiramente
a sua doutrina tomando em consideração as circunstâncias
perturbadoras atravessadas pelo seu próprio país, a partir de
1917-19). Na Constituição de 1919 da República de Weimar,
é o célebre artigo 48, ao qual Schmitt consagrou numerosos
escritos, que define o estado de urgência no sentido consti-
tucional do termo. Este artigo, bastante comparável ao artigo

111
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

16° da Constituição da V República francesa, atribui ao pre-


sidente poderes extraordinários para fazer face a situações
de excepção, inclusive o direito de apelar às forças armadas
para conjurara uma grave perturbação ou desordem interna.
Este artigo 48 foi invocado mais de 250 vezes em Weimar6!
Mas a noção de estado de excepção não é evidente-
mente própria da Alemanha (ou da França). Um estudo pu-
blicado em 1978 estimava que pelo menos 30 países viviam,
à data, em regime de estado de urgência7. 1A Constituição
Americana prevê a suspensão do habeas corpus «no momen-
to que, em caso de rebelião ou invasão, a segurança pública o
possa exigir» (art. I, § 9, cl. 2), mas em vez de fazer dele um
privilégio do poder executivo, atribui o poder suspensivo ao
Congresso. Durante a guerra da secessão, Abraham Lincoln
decidiu suspender o habeas corpus, sem mesmo o requerer ao
Congresso, tal como, após o ataque a Pearl Harbor, Franklin
D. Roosevelt fez internar em campos, a título preventivo, os
Americanos de origem japonesa. Na época da Guerra Fria,
a confrontação com a União Soviética levou igualmente os
Estados Unidos a adoptar certas medidas de excepção tidas
como justificadas por exigências de «segurança nacional».
Podemos citar aqui o National Security Act de 1947 que,
desde então, coloca a noção de «segurança nacional» no
centro das preocupações americanas em matéria de políti-
ca externa. Os efeitos constitucionais da Guerra Fria foram
bastas vezes estudados8. Devemos referir que se exerceram
também no domínio da política interna, na época do mac-
carthismo, tendo como consequência uma reinterpretação
sistemática dos direitos dos cidadãos americanos e a adop-
ção de procedimentos de vigilância visando, no seio destes,
os que eram suspeitos de simpatias comunistas. O Internal
Security Act de 1950 previa mesmo a criação de seis campos
a
NDT: No preciso sentido de evitar, afastar ou desviar um mal iminente.

112
DO CASO DE URGÊNCIA AO ESTADO DE EXCEPÇÃO GLOBAL

de internamento provisórios utilizáveis em caso de urgên-


cia (que não foram nunca empregues com esse fim). Entre
1950 e 1970, o Congresso adoptou não menos de 470 dispo-
sições destinadas a reforçar o poder executivo para fazer face
a situações excepcionais. Nenhuma destas disposições foi
ab-rogada depois do desmantelamento do poder soviético.
As medidas tomadas pelo gover-
no americano no seguimento dos atentados de
11 de Setembro de 2001 têm pois precedentes.
Mas têm também características particulares, que as afas-
tam radicalmente do «modelo» schmittiano. Na medida
em que pretendem fazer face a um perigo, o terrorismo
global, ao qual as autoridades dos Estados Unidos declara-
ram uma guerra que, vimos anteriormente, se arrisca for-
temente a não ter fim, tendem perante toda a evidência a
institucionalizar-se de maneira definitiva, quer isto dizer
a perdurarem indefinidamente. O estado de excepção dei-
xa então de ser excepcional para se tornar permanente.
Para certos autores, o desenvolvimento do terroris-
mo podia, desde antes do 11 de Setembro, justificar que fos-
se decretado o estado de excepção9. Depois desta data, em
todo o caso, as coisas aceleraram-se. Imediatamente após
os atentados, George W. Bush decretou estado de urgên-
cia, enquanto que o Congresso dos Estados Unidos adop-
tava uma resolução autorizando o presidente «a fazer uso
de toda a força necessária e apropriada contra as nações,
as organizações ou as pessoas que se viesse a averiguar te-
rem planificado, permitido, realizado ou facilitado os ata-
ques terroristas que se produziram a 11 de Setembro de
2001, ou que tivessem dado refúgio a essas organizações
ou a essas pessoas, a fim de prevenir todo o acto de terro-
rismo internacional contra os Estados Unidos, cometidos

113
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

por tais nações, organizações ou pessoas»10. Um mês mais


tarde, a 24 de Outubro de 2001, o USA Patriot Act (acróni-
mo para «Uniting and Strengthening America by Providing
Appropriate Tools Required to Intercept and Obstruct
Terrorism») foi aprovado por uma esmagadora maioria pela
Câmara dos Representantes. Este autorizava nomeadamente
o FBI a efectuar investigações secretas sobre a vida priva-
da das pessoas suspeitas de terrorismo, a vasculhar, igno-
rando-o estes, os seus computadores graças a software de
vigilância, a conservar indefinidamente os registos das suas
navegações na Internet. Autorizava também o ministério da
Justiça a prender e a colocar em detenção todo o estrangeiro
suspeito de colocar em perigo a segurança nacional11. Enfim,
a 13 de Novembro de 2001, o presidente Bush assinava igual-
mente uma ordem («Military Order») prevendo o julgamen-
to dos presumidos terroristas por um tribunal militar espe-
cial e a manutenção dos suspeitos em detenção ilimitada.
Estas diferentes leis de excepção permitiram pren-
der e deter suspeitos por tempo indeterminado, deportá-los,
aprisioná-los em celas de isolamento sem inculpação nem
processo, e efectuar buscas no seu domicílio sem a sua au-
torização. Resultaram na criação de zonas de não-direito e
na supressão do estatuto jurídico de certas pessoas. O FBI e
a National Security Agency (NSA) viram ser-lhes com efei-
to outorgadas competências ilimitadas, escapando a todo o
controlo judiciário, em matéria de vigilância de comunica-
ções tanto no território nacional como no estrangeiro. Mais
de 1200 estrangeiros puderam assim ser presos por mera
suspeição. Quatro meses mais tarde, 900 deles estavam ain-
da encarcerados, sem que nenhuma acusação precisa fosse
deduzida contra eles, sem nunca terem sido presentes a um
juiz nem terem tido a possibilidade de se fazerem assistir por
um advogado12. A «Military Order» de 13 de Novembro previa

114
DO CASO DE URGÊNCIA AO ESTADO DE EXCEPÇÃO GLOBAL

por seu lado que as fontes da acusação se pudessem man-


ter secretas, não dispondo os acusados de qualquer recurso
e sendo os direitos da defesa «severamente limitados». Os
processos desenrolar-se-iam à porta fechada, em bases mili-
tares ou em navios de guerra. A sentença seria pronunciada
por uma comissão composta unicamente por oficiais, já não
sendo necessária a unanimidade para condenar os acusados
à morte, e o veredicto inapelável. O procedimento judicial
seria mantido secreto, e as conversações do acusado com
o seu advogado poderiam ser gravadas clandestinamente.
Uma das consequências mais chocantes deste leque
de medidas foi o internamento num campo situado na base
militar de Guantanamo, em Cuba, de várias centenas de
detidos (de mais de 40 nacionalidades diferentes) suscep-
tíveis de aí serem confinados indefinidamente sem inculpa-
ção, sem nem mesmo saberem do que eram acusados, não
podendo ter acesso a um advogado nem beneficiar das dis-
posições da Convenção de Genebra relativas ao tratamento
dos prisioneiros de guerra13. Para estes detidos, feitos pri-
sioneiros no Afeganistão, no Iraque ou noutro lado, foi cria-
do um estatuto de «inimigos combatentes ilegais» destitu-
ído de todo o valor ou conteúdo jurídico. Internados sem
julgamento, os prisioneiros de Guantanamo não são, com
efeito, nem detidos de direito comum, nem prisioneiros
políticos, nem prisioneiros de guerra. Muitos de entre eles
foram vítimas de maus-tratos e de brutalidades. Alguns de-
les foram de seguida transferidos para países aliados pouco
observadores dos direitos do homem para aí serem siste-
maticamente torturados24. O campo de Guantanamo é com
efeito, do ponto de vista jurídico, uma «zona cinzenta» de
toda a forma comparável às «zonas cinzentas» onde agem
os narcotraficantes. O relatório anual de 2005 da Amnesty
b
NDT- Em inglês no original.

115
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

Internationalb tornado público a 25 de Maio de 2005, não


hesitou em descrevê-lo como «o Gulag da nossa época»15.
Em nome da luta contra o terrorismo e da união
sagrada contra um perigo eminente comum, numero-
sas liberdades públicas foram pois suspensas na América.
«As liberdades civis foram limitadas, escreve Jean-Claude
Marguerie, presidente do Tribunal de grande instância de
Paris, e as garantias contra as violações dos direitos funda-
mentais consideravelmente reduzidas. Milhares de suspei-
tos, Americanos e ainda mais estrangeiros, encontraram-se
privados de toda a defesa, de todo o direito, de todo o julga-
mento»16. De seguida, não deixou de ser mantido um clima
de medo, favorecendo, em muitas ocasiões, novos atentados
às liberdades das pessoas. Da parte dos poderes públicos, a
alegação mais corrente foi a das «ameaças» que pesam so-
bre a «segurança nacional», dois conceitos que evocam, é
certo, a urgência ou a excepção, mas que permanecem tanto
um como o outro igualmente fluidos, o que facilita a sua
instrumentalização política e jurídica, assim como a sua
utilização como um pretexto para restringir as liberdades.
Constatamos, aliás, o alargamento constante deste conceito
de «segurança nacional», que possuía no início uma resso-
nância essencialmente militar, mas que gradualmente veio a
englobar todos os domínios da vida social ou internacional.
A luta antiterrorista faz, para mais, ressurgir infa-
livelmente a questão de saber se as democracias podem, a
título excepcional, utilizar contra os terroristas métodos que
reprovam em tempo normal. O primeiro desses métodos
é evidentemente a tortura17. As torturas da prisão de Abu
Ghraib não decorrem com efeito somente da «cultura do im-
pudor» denunciada por Susan Sontag. Disso dão testemu-
nho os debates que se seguiram à publicação dos livros de
Paul Berman, Terror and Liberalism, e de Michael Ignatieff,

116
DO CASO DE URGÊNCIA AO ESTADO DE EXCEPÇÃO GLOBAL

The Lesser Evil18. Ignatieff, director do Carr Center for Human


Rights da Universidade de Harvard, traz bem à luz a maneira
pela qual o terrorismo leva muita gente a considerar propor-
cionalmente como fraquezas os traços característicos das de-
mocracias liberais, na mesma medida em que deles anterior-
mente mostravam ter o maior orgulho (tolerância, pluralis-
mo, respeito das liberdades, etc.). Observando que «os direi-
tos do homem não são um sistema de absolutos indivisíveis»,
sublinha que as democracias devem certamente proteger os
direitos individuais, mas também garantir a sua existência
colectiva, tarefas que não se conciliam sempre facilmente19.
Kim Lane Scheppele mostra por seu lado que as me-
didas de excepção decididas pela administração Bush foram
tomadas, não somente, tendo em consideração um estado de
excepção à escala nacional, mas também à escala internacio-
nal, e sobretudo, que essas medidas não cessaram de prolife-
rar. O ponto importante é evidentemente este. Enquanto que
no caso de excepção do tipo «clássico», tal como o definia
Carl Schmitt, as medidas adoptadas para fazer face a uma si-
tuação de urgência são geralmente de curta duração, de ma-
neira a permitir um retorno progressivo à normalidade, no
caso das medidas tomadas no seguimento do 11 de Setembro,
vimos, pelo contrário, instalar-se todo um dispositivo de
excepção que de seguida se reforçou constantemente. «Os
maiores abusos, escreve Scheppele, produziram-se quando
nos afastávamos do 11 de Setembro, com excepções consti-
tucionais cada vez mais consideráveis, que beneficiaram da
aprovação activa quer do Congresso quer dos tribunais»20.
Esta conclusão é partilhada por numerosos observa-
dores21. Estes constatam em primeiro lugar que a definição
de terrorismo dada pelos poderes públicos é muito exten-
siva, dado que leva em conta tanto os actos como as inten-
ções. Esta indeterminação permite criminalizar facilmente

117
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

certos comportamentos, generalizar a suspeição, justificar


as medidas de detenção preventiva, limitar a comunicação
entre os acusados e os seus advogados, etc. Na medida em
que visa em primeiro lugar qualquer suspeito, a legislação
antiterrorista aplica-se por inerência a toda a população, o
que acarreta uma verdadeira subversão do direito penal.
Mas a luta do «Bem» contra o «Mal», temática tão frequen-
te do discurso público dos Estados Unidos, tem também
uma função de derivação. Mascara a insegurança social e
projecta para o exterior as contradições internas do país que
dela se reclama. O discurso sobre a «segurança interna» é
um prolongamento do discurso sobre a «segurança nacio-
nal» sendo como tal apresentado à sociedade civil. A utili-
zação da palavra «segurança» num sentido cada vez mais
amplo é acompanhada duma tendência para subtrair ao
debate público todos os problemas que lhe são referentes,
terminando assim numa nova forma de «despolitização».
Os ataques às liberdades são tornados possíveis pela ex-
pectativa dos cidadãos em matéria de segurança: o desejo
de segurança prima sobre o desejo de liberdade. E prima
tanto mais quanto vivemos num mundo onde as amea-
ças são simultaneamente omnipresentes e pouco iden-
tificáveis. Paralelamente, a luta contra o terrorismo per-
mite, à escala internacional, reforçar a autoridade da po-
tência dominante americana, apresentada como a mais
bem colocada para assegurar uma «protecção global»22.
Enfim, o terrorismo volta a dar ao Estado, que pare-
cia cada vez mais ferido de impotência face aos empreendi-
mentos globais e aos desafios planetários ligados à mundia-
lização, uma legitimidade e um papel novos. Não nos alon-
garemos sobre este assunto, mas podemos perguntar-nos
se o Estado, o qual Carl Schmitt já tinha claramente visto,
desde os anos 30, que deixaria de ser no futuro o lugar privi-

118
DO CASO DE URGÊNCIA AO ESTADO DE EXCEPÇÃO GLOBAL

legiado do político, não está em vias de encontrar uma nova


legitimidade enviesada através da sua suposta aptidão para
assegurar a segurança e nomeadamente em lutar contra o
terrorismo. É nesse quadro que é preciso situar as medidas
de excepção adoptadas recentemente nos Estados Unidos e
noutros lados. Estas têm, por um lado, evidentes prolonga-
mentos à escala internacional, exigindo a luta contra o ter-
rorismo uma cooperação transnacional das forças de polícia
e dos serviços de informação (e desse ponto de vista, a luta
antiterrorista inscreve-se perfeitamente no quadro da glo-
balização). Mas por outro lado, voltam a dar incontestavel-
mente um papel a uma estrutura estatal que se encontrava
em vias de se tornar cada vez mais obsoleta, encontrando
as elites nacionais «na guerra antiterrorista uma via de elei-
ção para eternizarem o seu poder e introduzirem um lar-
go leque de leis que lhes permita impor-se tanto aos seus
inimigos quanto à sua própria sociedade civil»23. O Estado,
noutros termos, já não é legitimado senão pela segurança
e, ao mesmo tempo, apoia-se sobre o irreprimível desejo de
segurança para reforçar o seu ascendente restringindo as li-
berdades. Como bem o notou Jean Baudrillard, a verdadei-
ra vitória do terrorismo é ter precipitado o Ocidente inteiro
num clima de medo e na obsessão da segurança, que não
é mais do que uma forma velada de terror permanente24.
Em todo o caso não nos espanta que o nome de Carl
Schmitt tenha sido frequentemente citado nestes comentá-
rios ou nestas críticas. «O atentado de 11 de Setembro de
2001, observa Jean-Claude Monod, confirma talvez a li-
gação pressentida por Schmitt entre a compreensão, lite-
ralmente, teológica do inimigo e a figura do “guerrilheiro
motorizado”, que consegue, na ocorrência, voltar contra
a potência emblemática o próprio elemento do seu poder,
o ar»25. Embora hostil às ideias de Schmitt, o autor não re-

119
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

alça menos por isso que a crítica do jurista alemão toma


«uma actualidade particularmente gritante quando a Casa
Branca decreta a doutrina da “guerra preventiva”, transgre-
dindo as regras do direito internacional para travar uma
“guerra pela paz” que se enuncia em termos teológicos
como “cruzada” e afrontamento contra o “Eixo do mal”»26.
As legislações antiterroristas, escreve por seu lado
Jean-Claude Paye, «asseguram o domínio do procedimento
de excepção. Assim, o papel tradicional do procedimento pe-
nal é invertido. Em lugar de ser o quadro protector das dife-
rentes liberdades públicas e privadas, torna-se no meio pelo
qual estas são sistematicamente violadas. Neutralizando as
diferentes garantias constitucionais, procede a uma suspen-
são do direito (…) a mutação é tão significativa que conduz
à subversão da norma, as derrogações tornam-se a regra. O
procedimento de excepção substitui-se à Constituição e à
lei»27. «O quadro da luta antiterrorista, acrescenta, dá uma
nova força à teoria schmittiana da soberania, fundada sobre
a decisão acerca daquilo em que consiste a excepção (…) a
luta antiterrorista faz da suspensão do direito um acto fun-
dador de uma Constituição imperial. A instalação de uma tal
ordem jurídica dá uma nova dimensão à tese fundamental
de Schmitt: a decisão sobre a excepção como acto constituti-
vo da soberania. As recentes medidas antiterroristas dão-lhe
razão na sua caracterização do estado de excepção como ins-
crição da derrogação no direito. Podemos mesmo dizer que
elas dão a sua verdadeira dimensão à tese schmittiana da ma-
nutenção da ordem jurídica através da decisão concernente
à excepção (…) a luta antiterrorista é o ponto mais avançado
na instalação de um estado de excepção ao nível mundial»28.
Segundo Schmitt, a separação entre exterior e interior
opera-se normalmente pela instância que constitui o Estado.
No exterior, o Estado tem a possibilidade de fazer a guerra,

120
DO CASO DE URGÊNCIA AO ESTADO DE EXCEPÇÃO GLOBAL

enquanto que no interior ele deve instaurar a concórdia e


um modo de vida social regulado pelo direito. Poderíamos
dizer desse ponto de vista que a distinção interior/exterior
corresponde, pelo menos em parte, à da norma e à da excep-
ção. Quando essa distinção é abolida, a excepção pode igual-
mente bem ser instaurada no interior. É o que se passa cada
vez que se designa um «inimigo interno» ou que se acusa
cidadãos de serem os cúmplices de um inimigo externo. O
estado de excepção consiste aqui em importar a lógica da
guerra, que não reina normalmente senão no exterior, para
o interior da sociedade, suspendendo as regras do direito.
Mas a doutrina do estado de excepção pode tam-
bém ser utilizada para apresentar a «normalidade» polí-
tico-jurídica como uma espécie de excepção continuada. É
esta dimensão crítica da ordem jurídica liberal como por-
tadora de uma desordem reprimida ou de uma violência
repressiva mascarada que foi sobretudo retida por autores
como Giorgio Agamben, Tonio Negri ou Etienne Balibar29.
Desemboca na ideia de excepção como norma permanente:
para Agamben, a prática de governação fundada em procedi-
mentos de excepção já se substituiu aos procedimentos de-
mocráticos e às normas do Estado de direito30. O actual esta-
do de excepção não seria então mais do que a revelação, à ple-
na luz do dia, de uma tendência latente anterior, que já tinha
sido bem estudada por Louis Althusser ou Michel Foucault.
Contudo o estado de excepção, a partir do momento
em que se generaliza ou se torna permanente, perde simulta-
neamente o seu carácter de excepção. Pierre Hassner escreve
que «distinguimos (…) os governos tirânicos dos outros se-
gundo a maneira pela qual utilizam a situação excepcional
para a tornar permanente em lugar de visar o retorno à nor-
malidade e ao respeito do direito»31. Se a adopção de medi-
das de excepção pelos Estados Unidos parece responder ao

121
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

modelo schmittiano, desmentindo paradoxalmente a ideia,


igualmente sustentada por Carl Schmitt, que os regimes «li-
berais» são por natureza incapazes de fazer face ao estado de
excepção, o facto de nos encaminharmos em direcção ao es-
tado de excepção permanente, afasta-se consideravelmente
deste modelo. A permanência do estado de excepção, a excep-
ção sem excepção, não é schmittiana32. Mas é ainda o pensa-
mento de Schmitt que permite compreender como se opera a
sua instauração, na ocorrência por uma concepção de inimi-
zade oriunda da teologia e da «moral». A lição que é preciso
tirar daí é que os regimes liberais são perfeitamente capazes
de tomar medidas de excepção, mas que tendem a transfor-
mar a excepção em regra sob a influência da sua concepção
do inimigo (e também, bem entendido, devido às condições
de beligerância do momento). Agamben cita a este propósi-
to a opinião visionária de Walter Benjamin, segundo o qual
«o que é doravante efectivo, é o estado de excepção em que
vivemos, não sabendo já distingui-lo da regra»33. «O que, no
passado, provinha da excepção torna-se hoje o estado normal
ou permanente», escreve no mesmo espírito Robert Kurz34.

1
«Recolhendo o testemunho de outras formas de in-
gerência menos consensuais ou menos eficazes (hu-
manitária, direitos do homem, guerra contra a droga
ou o crime organizado), (a luta antiterrorista) permite
encarar, de novo, uma expansão à escala planetária, es-
creve Percy Kemp. Neste sentido, ela faz figura de con-
traponto guerreiro ao mercado económico mundial»
2
Esta noção é particularmente estudada no primeiro
dos quatro capítulos da Théologie politique de 1922:
Politische Theologie. Vier Kapitel zur Lehre von der

122
DO CASO DE URGÊNCIA AO ESTADO DE EXCEPÇÃO GLOBAL

Souveränität, Duncker u. Humblot, Munique-Leipzig


1922 (última edição: Berlim 2004, trad. fr.: «Théologie
poli­tique. Quatre chapitres sur la théorie de la souve-
raineté», in Théologie politique 1922, 1969, Gallimard,
Paris 1988, pp. 9-75). Para uma critica apoiando-se
na realidade recente cf. Tom Sorell, «Schmitt’s and
Hob­besian Politics of Emergencey», in Luc Foisneau,
Jean-Christophe Merle e Tom Sorell (Hrsg.), Leviathan
Between the Wars. Hobbe’s Impact on Early Twentieth
Century Political Philosophy, Peter Lang, Frankfurt/M.
2005, S. 95­-107. Para uma abordagem geral da questão
no quadro do direito constitucional alemão, cf. András
Jakab, «German Constitutional Law and Doctrine on
State of Emergency – Paradigms and Dilemmas of a
Traditional (Continental) Discourse», in German Law
Journal, Maio de 2006, pp. 453-477.
3
Die Diktatur. Von den Anfängen des modernen
Souveränitätsgedan­kens bis zum proletarischen
Klassenkampf, Duncker u. Humblot, München-Leipzig
1921 (última edição: Berlim 1994, trad. fr.: La dictatu-
re, Seuil, Paris 2000).
4
Encontramos a mesma ideia em Maquiavel (quando
cita o exemplo de Cincinnatus) e, na época moderna,
na célebre obra de Clinton L. Rossiter, Constitutional
Dictatorship. Crisis Govern­ment in the Modern
Democracies, Princeton University Press, Princeton
1948.
5
Théologie politique, op. cit., p. 23.
6
Notar-se-á todavia que as condições de aplicação
deste artigo permaneceram sempre nebulosas, visto
que o artigo 48 estipulava que a declaração de estado
de urgência pelo presidente devia ser ratificada pelo
Parlamento, enquanto que o artigo 25 dava ao presi-

123
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

dente o direito de dissolver o parlamento…


7
John Ferejohn e Pasquale Pasquino, «The Law of
the Excep­tion. A Typology of Emergency Powers»,
in International Journal of Cons­titutional Law, 2004,
2, pp. 210-239, vão ao ponto de fazer da possibilida-
de constitucional de suspender a lei um traço carac-
terístico da «tradição jurídica ocidental não absolu-
tista». Em 1948, Clinton L. Rossiter, escreve no seu
livro Constitutional Dictatorship: «Nenhum sacrifício
é demasiado grande para a nossa democracia, nem
mesmo o sacrifício temporário da própria democra-
cia» (op. cit., p. 134). Enumera, de seguida, onze con-
dições para que uma ditadura temporária permaneça
constitucional. Estas opiniões foram recentemente
discutidas por David Dyzenhaus num texto intitulado
«Schmitt v Dicey: Are States of Emergency Inside or
Outside the Legal Order?». Cf. também G.L. Negretto
e J.A.A. Rivera, «Liberalism and Emergency Powers
in Latin America. Reflections on Carl Schmitt and the
Theory of Constitutional Dictatorship», in Cardozo
Law Review, Nova Iorque, 2000, 5-6, pp. 1797-1824;
Bruce Ackerman, «The Emergency Constitu­tion», in
Yale Law Journal, CXIII, 2004, pp. 1029-1076.
8
Cf. especialmente Daniel Yergin, Shattered Peace.
The Origins of the Cold War and the National Security
State, Houghton Mifflin, Boston 1977.
9
Cf. William B. Scheuerman, «Globalization
and Exceptional Powers. The Erosion of Liberal
Democracy», in Radical Philosophy, 1999; Oren
Gross, «On Terrorism and Other Criminals. States of
Emergency and the Criminal Legal System», in Eliezer
Lederman (ed.), New Trends in Criminal Law, 2000.
10
War Powers Resolutions, proclamação n° 7463, 14 de

124
DO CASO DE URGÊNCIA AO ESTADO DE EXCEPÇÃO GLOBAL

Setembro de 2001.
11
Em Novembro de 2003, o Congresso votou uma
emenda ao Patriot Act («Patriot II») que permite às
agências federais exigir dos fornecedores de acessos
à Internet informações pessoais sobre qualquer inter-
nauta sem serem submetidas a nenhum controlo ju-
dicial. Além disso, o «Domestic Security Enhancement
Act» de 2003 permite retirar a nacionalidade america-
na a todo o cidadão acusado de terrorismo, conceden-
do assim às autoridades um poder discricionário no
que ao reconhecimento da cidadania diz respeito. As
disposições previstas pelo Patriot Act foram renovadas
em 2005. Para ver estas medidas em detalhe cf. Kim
Lane Scheppele, «Law in a Time of Emergency: States
of Exception and the Temptations of 9/11», in Journal
of Constitutional Law, Maio de 2004, pp. 1­75 (texto re-
publicado em Outubro 2004 sob forma de brochura,
University of Pennsylvania Law School, Scholarship at
Penn Law, Paper 55). O autor precisa que examinou as
circunstâncias nas quais estas medidas foram toma-
das «à luz dos escritos de Carl Schmitt sobre a nature-
za do estado de excepção».
12
Em Inglaterra, a Anti-Terrorism Crime and Security
Act de 2001 permitia também encarcerar indefinida-
mente os estrangeiros suspeitos de terrorismo. Um
acórdão dos «Lords judges» (NDT: em Inglaterra e na
Commonwealth juízes de tribunais de instâncias su-
periores) declarou em seguida ilegal a sua detenção
sem inculpação ou processo.
13
As convenções de Haia e de Genebra estipulam es-
pecialmente que as populações civis não devem nunca
ser tomadas como alvos, que os prisioneiros devem
ser assistidos e bem tratados, que certas armas são

125
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

proibidas, etc. No que concerne às pessoas suspeitas


de terrorismo, estas posições foram oficialmente de-
cretadas «obsoletas» por Alberto Gonzalez, conselhei-
ro da Casa Branca, que de seguida se tornaria ministro
da Justiça. A propósito da guerra no Iraque, Michael
Walzer nota que «o Pentágono de Rumsfeld entregou
prisioneiros iraquianos a reservistas que nunca ouvi-
ram falar da Convenção de Genebra» (De la guerre et
du terrorisme, op. cit., p. 216).
14
Cf. Stephen Grey, «Délocalisation de la torture», in
Le Monde diplomatique, Paris, Abril de 2005, pp. 1 e
10-11.
15
Sobre a prisão de Guantanamo, cf. Emmanuelle
Bribosia e Anne Weyembergh, Lutte contre le terro-
risme et droits fondamentaux, Bruylant, Bruxelas 2003;
David Abraham, «The Bush Regime from Elections
to Detentions: A Moral Economy of Carl Schmitt and
Human Rights», Uni­versity of Miami, Outubro de
2006; David P. Forsythe, «United States Policy to-
ward Enemy Detaines in the “War on Terrrorism”»,
in Human Rights Quarterly, Baltimore, 2006, pp.
465-491; Moazzam Begg e Victoria Brit­tain, Enemy
Combatant, Pocket Books, Londres 2006. Cf. tam-
bém Erik Saar e Viveca Novak, Inside the Wire. A
Military Intelligence Soldier’s Eyewitness Acount of Life at
Guantánamo, Penguin Press, Londres 2005. Erik Saar
é um jovem sargento do exército americano que fez
parte, durante seis meses, do pessoal de Guantanamo.
Por seu lado Fleur Johns, «Guantánamo Bay and the
Annihilation of the Exception», in European Journal
of International Law, XVI, 4, Setembro de 2005, pp.
613-635, sustenta paradoxalmente que esta prisão re-
sulta da norma e não da excepção, propondo uma lei-

126
DO CASO DE URGÊNCIA AO ESTADO DE EXCEPÇÃO GLOBAL

tura muito heterodoxa das teses de Carl Schmitt. Em


Novembro de 2003, o supremo Tribunal dos Estados
Unidos aceitou estatuir sobre a legalidade da detenção
de estrangeiros internados em Guantanamo. A 28 de
Junho de 2004, declarou que a base de Guantanamo
estava devidamente colocada sob a jurisdição dos
Estados Unidos e concedeu aos detidos o direito de
contestar o seu encarceramento perante um tribunal
americano. O supremo Tribunal não se pronunciou,
com efeito, sobre as condições de detenção dos inter-
nados. Como o faz notar Jean-Claude Paye, «dá sim-
plesmente aos prisioneiros o direito de apelar a um
juiz federal, sem lhes garantir formalmente o acesso a
um advogado. Legitima assim os procedimentos der-
rogatórios nos estádios da detenção e do julgamento.
Neste último nível instaura um verdadeiro sistema de
inversão da responsabilidade na constituição da prova,
uma vez que são os prisioneiros que deverão conven-
cer os juízes que essas incriminações ilegais não lhes
dizem respeito («Le droit pénal comme un acte consti-
tuant. Une mutation du droit pénal», art. cit., p. 282).
16
«Terrorisme et droits de l’homme», in Le Monde,
Paris, 1º de Março de 2005.
17
Dispomos hoje de muitas informações e testemu-
nhos indicadores de que, no quadro da guerra no
Iraque e da luta contra o terrorismo, o recurso à tor-
tura foi constante. Cf. Sanford Levin­son, «Torture in
Iraq and the Rule of Law in America», in Daedalus,
2004, 3, pp. 5-9.
18
Paul Berman, Terror and Liberalism, W.W. Norton,
Nova Iorque 2003; Michael Ignatieff, The Lesser
Evil. Politics and Ethics in an Age of Ter­ror, Princeton
University Press, Princeton 2004.

127
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

19
Cf. também Susie Linfield, «La danse des civilisa-
tions: l’Orient, l’Oc­cident et Abu Ghraib», in Esprit,
Paris, Junho de 2005, pp. 66-84,que se pergunta se
um país pode «lutar eficazmente contra grupos terro-
ristas sem, mais dia, menos dia, recorrer a técnicas
extrajudiciárias no estrangeiro ou sem ser levado a li-
mitar as liberdades no seu próprio território» (p. 78).
20
Kim L. Scheppele, art. cit., p. 3. O autor analisa con-
sequentemente as razões pelas quais os países euro-
peus, embora confrontados, eles próprios, com a ame-
aça do terrorismo, não se empenharam na mesma via.
A sua conclusão, que podemos discutir, é a de que «a
concepção schmittiana de excepção já não é considera-
da como um quadro de resposta aceitável por um gran-
de número dos nossos aliados, em particular pelos eu-
ropeus» (ibid.). Sobre este ponto, cf. Alexandre Adam,
La lutte contre le terrorisme. Etude comparative Union
européenne/États-Unis, L’Harmattan, Paris 2005.
21
Cf. Adrien Masset, «Terrorisme et libertés pu-
bliques», in Quen­tin Michel (ed.), Terrorisme –
Terrorism. Regards croisés – Cross Analysis, Peter Lang,
Pieterlen 2005. Sobre as consequências da adopção
do Patriot Act para os cidadãos dos Estados Unidos,
cf. George Steinmetz, «The State of Emer­gency and
the Revival of Modern American Imperialism. Toward
an Authoritarian Post-Fordism», in Public Culture,
Primavera 2003, pp. 323­345; M.C. Williams, «Words,
Images, Enemies. Securitization and Inter­national
Politics», in International Studies Quarterly, XLVII, 4,
Dezembro de 2003, pp. 511-531; Andrew Norris, «“Us”
and “Them”», art. cit.; Bernd Hamm (ed.), Devastating
Society. The Neo-Conservative Assault on Democracy and
Justice, Pluto Press, Londres 2005; Robert Harvey e

128
DO CASO DE URGÊNCIA AO ESTADO DE EXCEPÇÃO GLOBAL

Hélène Volat, USA Patriot Act. De l’exception à la règle,


Lignes-Manifestes, Paris 2006; David Keen, Endless
War? Hidden Functions of the War on Terror, Pluto
Press, Londres 2006. Para uma leitura (de inspiração
deleuziana) da «guerra contra o terrorismo» como
«intensificação hipermoderna das lógicas tecnológicas
e militarizadas da modernidade» cf. John Armitage,
«On Ernst Jünger’s “Total Mobilization”: A Re-evalua­
tion in the Era of the War on Terrorism», in Body &
Society, 2003, 4, pp. 191-213.
22
A vontade de alistar sob o estandarte da luta mundial
aliados cada vez mais reticentes, após o fim da guerra
fria, em aceitar o líder americano, remonta pelo me-
nos a Bill Clinton, senão mesmo a Ronald Reagan.
23
Percy Kemp, «Terroristes, ou anges vengeurs», art.
cit., p. 22.
24
Cf. Jean Baudrillard, L’esprit du terrorisme, Galilée,
Paris 2001. «A táctica do terrorista, escreve Baudrillard,
consiste em provocar um excesso de realidade fazendo,
desmoronar o sistema sob esse excesso de realidade».
25
«La déstabilisation humanitaire du droit internatio-
nal et le retour de la “guerre juste”: une lecture critique
du “Nomos de la Terre”», in Les Etudes philosophiques,
Paris, Janeiro de 2004, p. 55. Cf. também Jean-Claude
Monod, Penser l’ennemi, affronter l’exception. Réflexions
critiques sur l’actualité de Carl Schmitt, Découverte,
Paris 2007.
26
Ibid., p. 56.
27
«O direito como um acto constitutivo. Uma mutação
do direito penal», art. cit., p. 276.
28
Ibid., pp. 282 et 287-288.
29
Cf. Jean-Claude Monod, «La radicalité constituante
(Negri, Bali­bar, Agamben) ou peut-on lire Schmitt de

129
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

droite à gauche?», in Mou­vements, Paris, 37, Janeiro-


Fevereiro 2005, pp. 80-88.
30
Cf. Giorgio Agamben, «L’état d’exception», in
Le Monde, Paris, 12 de Dezembro de 2002; «Der
Gewahrsam: Ausnahmezustand als Weltord­nung», in
Frankfurter Allegemeine Zeitung, 19 de Abril de 2003.
31
La terreur et l’empire, Seuil, Paris 2003, p. 200.
32
Carl Schmitt foi, contudo, por vezes acusado, es-
pecialmente por William B. Scheuerman e por Oren
Gross («The Normless and Excep­tionless Exception:
Carl Schmitt’s Theory of Emergency Powers and
the, “Norm-Exception” Dichotomy», in Cardozo Law
Review, XXI, 2000, pp. 1825-1867), de generalizar
o estado de excepção. Em alguns dos seus escritos,
Schmitt daria tanta importância à excepção que esta
acabaria, nele, por se substituir à regra, tal como uma
ditadura «à romana», que não deveria ser senão de
curta duração (para fazer face, precisamente a uma si-
tuação de excepção), pode, em certas circunstâncias,
transformar-se em poder despótico permanente. Na
Teologia política, a ditadura limitada transforma-se com
efeito em ditadura soberana. O que mais caracteriza
a excepção, escreve então Schmitt, «é principalmen-
te a autoridade ilimitada, o que significa a suspensão
de toda a ordem existente». O ditador não tem pois,
necessariamente, por objectivo restabelecer a ordem
legal anterior, pode igualmente bem instaurar uma
nova. Contudo, Schmitt acrescenta logo em seguida:
«numa tal situação, é claro que o Estado permanece,
enquanto que a lei é suspendida. Sendo a excepção di-
ferente da anarquia ou do caos, a ordem no sentido ju-
rídico do termo continua a prevalecer, mesmo se não é
sob a sua forma ordinária». O estado de excepção con-

130
DO CASO DE URGÊNCIA AO ESTADO DE EXCEPÇÃO GLOBAL

tinua a ser para Schmitt um meio para restabelecer ou


estabelecer uma ordem legal normal. Existe para além
disso uma grande diferença entre dizer que a excepção
define a norma, e não o inverso, e dizer que a verda-
deira norma é a excepção. Num espírito semelhante,
Marcello Montanari escreve que, para Schmitt, não
importa qual circunstância política pode, à discrição
do soberano, ser decretada «de excepção». («Note sul-
la crisi e la critica della democrazia negli anni venti»,
in Giuseppe Duso, éd., La politica oltre lo Stato: Carl
Schmitt, Arsenal Cooperativa, Veneza 1981, p. 159).
Esta afirmação parece-nos igualmente excessiva.
33
Giorgio Agamben, Stato di eccezione, Bollati
Boringhieri, Turim 2003 (trad. fr.: L’état d’exception,
Seuil, Paris 2003, p. 144).
34
Avis aux naufragés. Chroniques du capitalisme mon-
dialisé en crise, Lignes et Manifestes-Léo Scheer, Paris
2005, p. 79.

131
Da Dualidade Terra/Mar
ao Novo «Nomos da Terra»
Carl Schmitt escreve que «a história mundial é a história da
luta das potências marítimas contra as potências continen-
tais e das potências continentais contra as potências maríti-
mas»1. Acrescenta que «toda a transformação histórica im-
portante implica na maior parte das vezes uma nova percep-
ção do espaço»2. Esta oposição entre a Terra e o Mar não lhe
é própria, uma vez que a encontramos em numerosos espe-
cialistas militares, geopolíticos ou especialistas de geoestra-
tégia. Contudo, em Carl Schmitt, a «lógica da Terra» e a «ló-
gica do Mar» têm um alcance mais extensivo. A Terra é para
Schmitt um elemento histórico mais ainda do que geográfi-
co. É também um elemento antropológico: o homem é antes
de tudo um animal terrestre, um «terrestre». Vimos antes
que Schmitt, falando do guerrilheiro, lhe atribui um carácter
«telúrico». Este elemento «telúrico» (das Tellurische) está in-
trinsecamente associado, na sua obra, simultaneamente ao
político, à instância estatal e ao «grande espaço» europeu3.
A lógica da Terra repousa sobre delimitações espa-
ciais, quer isto dizer numa repartição da Terra em espaços
claramente distintos. Esta lógica é fundamentalmente polí-
tica, no sentido em que não há forma política que não esteja
ligada a um espaço terrestre, mesmo que existam tradições
políticas «terrestres» e tradições «marítimas», a Terra de-
termina a liberdade concreta, que é sempre uma liberdade
localizada, por oposição à liberdade «líquida» e «informe»
do Mar. A Terra constitui o substrato do pensamento da or-
dem concreta. A lógica do Mar é pelo contrário intrinseca-

132
DA DUALIDADE TERRA - MAR AO NOVO NOMOS DA TERRA

mente flutuante e caótica, dado que ignora as delimitações.


No oceano, não existem nem barreiras nem fronteiras, nem
lei nem propriedade. É neste sentido que se pode afirmar
que o Mar é «livre». Enquanto elemento líquido, o Mar não
está submetido a nenhuma soberania estatal ou territorial
fixa. Não pode ser propriedade de ninguém, uma vez que
é igualmente propriedade de todos: é necessariamente res
nullius ou res omnius. É por isso que é o lugar privilegiado
das trocas que se operam em todos os sentidos: liberdade
dos mares e liberdade do comércio mundial foram cons-
tantemente associados na história. Schmitt cita aqui o dito
de Sir Walter Raleygh, segundo o qual «todo o comércio é
comércio mundial, todo o comércio mundial é comércio
marítimo»4. A lógica do Mar é a dos fluxos e dos refluxos.
À distinção Terra-Mar corresponde também uma dis-
tinção entre duas formas de guerra. Na guerra terrestre, «os
adversários em presença são os exércitos: a população civil,
não combatente, fica de fora das hostilidades. Ela não é o ini-
migo, e não é, aliás, tratada como tal enquanto não participar
dos combates. A guerra no Mar, pelo contrário, repousa so-
bre a ideia de que é preciso atingir o comércio e a economia do
adversário. A partir daí, o inimigo, já não é apenas o adversá-
rio em armas, mas tudo o que seja oriundo da nação adversá-
ria e mesmo, por fim, todo o indivíduo ou Estado neutro que
comerceie com o inimigo ou que com ele mantenha relações
económicas. A guerra terrestre tende ao afrontamento deci-
sivo em campo aberto. A guerra marítima não exclui o com-
bate naval, mas os seus métodos privilegiados são o bom-
bardeamento e o bloqueio das costas inimigas e a captura de
navios de comércio inimigos, e neutros, segundo o direito
de presa. Por essência, os meios privilegiados da guerra no
Mar são dirigidos tanto contra os combatentes quanto contra
os não-combatentes. Um bloqueio, por exemplo, atinge sem

133
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

distinção toda a população de um território visado»5. Na sua


Teoria da Guerrilha, Schmitt acrescenta que «a guerra no Mar
é em larga medida uma guerra comercial; no que diz respei-
to à guerra em Terra, esta dispõe do seu próprio espaço e dos
seus conceitos próprios de inimigo e de despojo»6. O bom-
bardeamento aéreo visando as populações civis é o equivalen-
te moderno do bloqueio, ao qual muitas vezes se vem juntar.
Schmitt lembra como a Inglaterra se assenhoreou
nos séculos XVII e XVIII, desde os Actos de Navegação de
1651 e 1660, decretados por Cromwell, da dominação dos
oceanos, atacando a potência espanhola e apoderando-se das
riquezas dos impérios português e holandês. Desde essa épo-
ca, a Inglaterra enceta uma «existência marítima». Mas hoje
em dia são os Estados Unidos que substituíram a Inglaterra
como potência talassocrática mundial. São, diz Schmitt, «a
ilha perfeitamente adaptada à sua época (…) A América é
“a ilha maior”, aquela a partir da qual o domínio britâni-
co dos mares se perpetuará, numa escala mais vasta, sob
a forma de um condomínio marítimo anglo-americano»7.
A célebre doutrina enunciada pelo presiden-
te James Monroe na sua declaração de 2 de Setembro de
1823 traduzia uma vontade de não-intervenção nos assun-
tos europeus, mas sobretudo o desejo de fazer do conjun-
to geopolítico do continente americano uma coutada dos
Estados Unidos. Condenava toda a intervenção europeia
em qualquer parte do hemisfério americano. Os países da
América Latina, ao verem ser-lhes negado qualquer inte-
resse nacional distinto do interesse nacional dos Estados
Unidos, cessavam por isso de existir politicamente para
se tornarem tendencialmente em simples protectorados.
Em 1845, a doutrina do Destino Manifesto (Manifest Destiny)
precisa que «a colonização e a posse do continente ameri-
cano pertencem ao destino evidente dos Estados Unidos».

134
DA DUALIDADE TERRA - MAR AO NOVO NOMOS DA TERRA

As ideias herdadas dessas duas «doutrinas» farão nascer um


conjunto de princípios postos em prática pela primeira vez de
forma sistemática sob a presidência de Theodore Roosevelt,
antes de serem levadas à escala mundial por Woodrow
Wilson. Schmitt mostra como, à época de Wilson, o que não
era, no início, senão um princípio de não-intervenção num
dado grande espaço, o hemisfério ocidental, se transformou
progressivamente em justificação de um intervencionis-
mo sem limites. Esta transformação de um objectivo legí-
timo de santuarização de um grande espaço concreto num
princípio universal, voltando a dar uma legitimação quase
religiosa a um imperialismo particular, marca segundo ele
o início da «teologização» da política externa americana8.
A ideia que a «Terra» e o «Mar» são entidades distin-
tas cujo afrontamento pode ajudar a compreender a história
destes últimos séculos encontra-se em vários geopolíticos,
não somente franceses ou alemães, mas também anglo-sa-
xónicos. Desde o fim do século XIX, o almirante americano
Alfred Thayer Maham (1840-1914) apresenta, em dois livros
que ficaram célebres9, o vector marítimo como o factor cha-
ve na consolidação da potência americana. Mostra aos seus
compatriotas que a potência marítima não se circunscreve a
uma estratégia militar puramente defensiva, fundada sobre
a protecção e a segurança dos espaços costeiros, mas implica
a extensão ultramarina dos interesses, o domínio dos mares,
podendo tornar-se assim a chave de uma estratégia militar
renovada e a fonte de uma verdadeira potência internacional.
Realçando que os Estados Unidos, já protegidos ao sul pela
doutrina Monroe, constituem uma «ilha» do ponto de vista
geopolítico, lembra o exemplo da potência naval britânica a
partir do século XVII e recomenda aos americanos que se as-
sociem à Inglaterra para conter a Alemanha. Criando bases
no estrangeiro, assegurando posições sólidas nos estreitos e

135
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

rotas de comércio, dispondo de uma marinha omnipresen-


te capaz de se projectar em todo o lado no mundo, de ma-
neira a assegurar a liberdade mundial do comércio e a pra-
ticar o bloqueio marítimo dos países inimigos, a América,
vaticina Mahan, pode atingir a dominação mundial10. De
facto, a partir de 1922, data da assinatura do tratado de de-
sarmamento naval, os Estados Unidos deterão a primeira
frota de combate mundial. Hoje em dia, ainda, o seu po-
derio aeronaval não tem equivalente nos oceanos do globo.
Posteriormente a Mahan, o almirante britânico
Halford J. Mackinder (1861-1947) teoriza, também ele, o
afrontamento da Terra e do Mar. A sua tese central, defen-
dida desde 190411, define o epicentro dos fenómenos geopo-
líticos a partir do conceito de centro geográfico do mundo.
Este pivô central, que ele qualifica de «ilha mundial» (World
Island) é, aos seus olhos, o continente eurasiático, cujo co-
ração íntimo é constituído pela Alemanha e pela Rússia.
Mackinder defende a ideia que o essencial das apostas geo-
políticas se explica pela luta entre o heartland continental e as
potências extracontinentais que o cercam. Esta análise será
em parte retomada, mas também reelaborada, por Nicholas
J. Spykman (1893-1943), conhecido sobretudo por ter formu-
lado a doutrina americana de «contenção» (containment) que
será aplicada pelos Estados Unidos contra a Rússia no início
da Guerra Fria. Para Spykman, o pivô geopolítico mundial já
não é contudo o heartland, mas o rimland, zona intermediá-
ria entre o heartland e os mares ribeirinhos. Nessa perspec-
tiva, o controlo das zonas estratégicas do Próximo Oriente
e Sudeste Asiático adquire uma importância central12.
Com o aparecimento da aviação, um novo elemento
se veio juntar à Terra e ao Mar: o Ar. Schmitt notou bem
a importância crescente do Ar, na qual vê o aparecimento
«de uma dimensão nova, acarretando consigo a modificação

136
DA DUALIDADE TERRA - MAR AO NOVO NOMOS DA TERRA

simultânea, na estrutura do seu espaço, dos antigos teatros


da Terra e do Mar»13. Em Terra e Mar, define o Ar como uma
«nova esfera elementar da existência humana»14. De facto,
bem vistas as coisas, o Ar tem muitos pontos em comum
com o Mar. As suas características principais são a amplitu-
de, a ubiquidade, a vacuidade e a fluidez: não estando sub-
metido a nenhuma «aderência», o espaço aéreo favorece a
rápida deslocação de um ponto ao outro da superfície terres-
tre. Tem igualmente em comum com o Mar o não ser um
espaço submetido a fronteiras, no sentido clássico do termo,
sendo um vector de transporte e de comunicação, constituin-
do por fim, um instrumento de projecção de força e de poder.
O Ar é hoje em dia um dos elementos determinan-
tes da estratégia militar, mas também da acção terrorista. A
utilização estratégica do espaço extra-atmosférico, que não
é uma simples extensão do espaço aéreo, já foi, aliás, en-
cetada em larga escala. Esta utilização exerce-se tanto no
domínio estritamente militar (identificação e localização
de alvos, escuta, observação e vigilância, etc.) como no das
informações, telecomunicações, meteorologia, tele-detec-
ção, telefonia móvel, etc. As grandes características do es-
paço extra-atmosférico são: a imensidão, a hiper-altitude, a
vacuidade, a (relativa) invulnerabilidade. A sua utilização
militar, por intermédio dos engenhos espaciais, deverá, a
termo, não somente permitir novas estratégias ofensivas,
mas acarretar uma mutação radical da utilização das forças
terrestres, sendo o espaço chamado a impor-se como su-
porte privilegiado da dimensão informativa das operações15.
Os Estados Unidos consideram já o espaço como
um teatro estratégico potencial, o que significa que a supre-
macia espacial já faz presentemente parte dos seus objec-
tivos militares. Após a época da Guerra Fria, não cessaram
de consagrar ao domínio do espaço orçamentos cada vez

137
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

mais importantes. Na sua óptica, o espaço não é somente


considerado como um multiplicador de potência, mas tam-
bém como uma arma de pleno direito. É disto testemunha
o projecto do escudo espacial anti-mísseis, reanimado em
Dezembro de 2002 por George W. Bush, projecto herdado
do conceito reaganista da «guerra das estrelas», que tem
como principal aspecto estratégico, não somente a capacida-
de de intersecção cinética dos mísseis intercontinentais, mas
a colocação no espaço circunterrestre de baterias laser a fim
de dotar a América de uma capacidade de ataque preventi-
vo de novo tipo. É igualmente significativo que o Pentágono
encare, desde já, a diminuição progressiva das suas bases no
ultramar, que os engenhos espaciais podem vir a substituir
em certas funções16. Podemo-nos pois questionar, escreve
Christian Malis, «se o meio espacial não está destinado a
desempenhar um papel análogo ao do Mar na geopolítica
mackinderiana». «Se o meio oceânico, acrescenta, consti-
tuiu durante muito tempo para os Estados Unidos o suporte
privilegiado e o espaço de protecção de uma economia in-
dustrial conquistadora, sem dúvida o meio espacial é cha-
mado a juntar-se ao meio marítimo para apoiar e proteger
uma economia que assenta igualmente na informação»17
Após 1945, o tema essencial dos escritos de
Schmitt é o do «Nomos da Terra». Schmitt constata que a
época moderna é a do desaparecimento do antigo Nomos
e interroga-se sobre aquilo que é chamado a suceder-lhe.
Uma das questões essenciais que coloca é a de saber se a
história se orienta em direcção a uma unificação políti-
ca do mundo e quais podem ser as consequências, tanto
para o mundo quanto para o próprio conceito do político.
Tal como já vimos, foi a partir de 1890 que, segun-
do Schmitt, a antiga ordem westefalliana do jus publicum
europaeum, nascida no final da Guerra dos Trinta Anos

138
DA DUALIDADE TERRA - MAR AO NOVO NOMOS DA TERRA

(1648), se começou a dissolver num «universalismo sem


espaço» e no «normativismo vazio» e abstracto duma le-
galidade internacional, na qual nenhum acordo se pode
estabelecer, abandonando a sua centralidade europeia sem
conseguir encontrar um fundamento substituto em maté-
ria de legitimidade. Carl Schmitt dá, nessa perspectiva, um
lugar essencial ao Tratado de Versalhes, que não só humi-
lhou a Alemanha, substituindo a legitimidade das antigas
dinastias pelo princípio das nacionalidades, mas que repre-
sentou também o momento no qual a Europa se viu ver-
dadeiramente destituida das suas antigas prerrogativas18.
Schmitt vê no Nomos da Terra, termo que utilizou
pela primeira vez em 1934, no momento em que abandona
em parte o seu antigo decisionismo para aderir a um «pen-
samento da ordem concreta» (konkretes Ordnungsdenken)
oriundo em grande parte do institucionalismo de Maurice
Hauriou ou de Santi Romano, o conjunto ordenado das
entidades políticas ligadas por regras comuns. O Nomos
não é compreendido por ele no sentido da lei (Gesetz) quer
isto dizer como simples produto da ordem legislativa, mas
como uma «medida (Messung) primeira», uma repartição
ou partilha original do espaço. O erro da modernidade oci-
dental, segundo Schmitt, foi precisamente o de substituir a
lei como ordem concreta (Nomos) pela lei como simples re-
gra (Gesetz). O Nomos resulta, bem entendido, da lógica da
Terra, na medida em que tudo aí respeita as delimitações.
Sem delimitações, sem limites espaciais, nenhuma ordem é
possível: toda a ordem fundamental (Grundordnung) é uma
ordem espacial (Raumordnung). O próprio direito, sublinha
Schmitt, tem um fundamento telúrico «onde coincidem es-
paço e direito, ordem e localização»19. Do ponto de vista do
pensamento da ordem concreta, todo o nomos resulta da uni-
dade da ordem espacial (Ordnung) e da localização (Ortung),

139
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

quer isto dizer da possibilidade de orientação no mundo de


uma dada comunidade. O Nomos, finalmente, é a forma ime-
diata (unmittelbare Gestalt) pela qual a ordem social e políti-
ca de um povo se torna espacialmente visível. É na própria
medida em que constitui uma ordem territorial e espacial
concreta que o Nomos representa a ordem geral da Terra.
A questão do «novo Nomos da Terra» coloca-se sob
a forma de uma alternativa, da qual Carl Schmitt definiu os
termos desde o final dos anos trinta: o mundo do futuro será
quer unipolar, quer multipolar. Se for unipolar, será inevita-
velmente submisso à hegemonia da potência dominante, que
não pode deixar de ser, hoje em dia, senão os Estados Unidos.
Será então o advento de um mundo unificado que Schmitt
assimila ao fim do político, uma vez que a essência do político
implica que se possa sempre determinar, em relação à plura-
lidade dos actores, quem é o amigo e quem é o inimigo (não
há político se contudo não existirem pelo menos duas polis
diferentes). Se o mundo continuar a ser, pelo contrário, um
mundo «político», será também, necessariamente um mun-
do multipolar, composto por «grandes espaços» (Grossräume)
,espaços culturais e cadinhos de civilização, mas também es-
paços geopolíticos, os únicos que poderão desempenhar um
papel de regulação e de diversificação em relação ao vasto
movimento da globalização. Schmitt resume esta alterna-
tiva na fórmula: «Grande Espaço contra Universalismo»20.
Carl Schmitt expôs primeiramente os seus pontos de
vista sobre o «grande espaço» (Grossgräum) num pequeno
livro publicado em 1939, contendo o texto de uma confe-
rência pronunciada, no mesmo ano, em Kiel21. Não hesita
em ver, no «grande espaço», uma nova categoria da ciên-
cia do direito internacional, e sublinha explicitamente que
essa categoria, que apresenta como uma «noção contempo-
rânea concreta tanto do ponto de vista histórico como po-

140
DA DUALIDADE TERRA - MAR AO NOVO NOMOS DA TERRA

lítico» (konkreten geschichtlich-politischen Gegenwartsbegriff),


é chamada a substituir a antiga ordem estatal nacional,
em crise desde os anos trinta e actualmente obsoleta22.
Os «grandes espaços», acrescenta Schmitt, e é este o
ponto mais importante, devem assegurar a sua auto-
nomia e a sua liberdade de movimento dotando-se, as-
sim como o fizeram os Estados Unidos com a doutrina
Monroe, duma «doutrina» interditando toda a intervenção
de potências estrangeiras no espaço que lhe é próprio23.
Ao mesmo tempo que substitui o Estado pelo «gran-
de espaço», Schmitt opera uma transição correlativa da noção
de território, corolário do conceito clássico de Estado-nação,
pela de espaço com limites flexíveis, não determinados pre-
viamente. Provido de dimensões tão aéreas como terrestres
ou marítimas, o «espaço» não é um simples território alarga-
do. Enquanto que o território é uma noção estática, este cor-
responde a uma realidade dinâmica. Como o escreveu Jean-
François Kervégan, «a passagem da problemática do Estado
e do território fechado à da potência imperial e do grande
espaço traduz, segundo Schmitt, a perempção da ordem jurí-
dica e política da Europa moderna, perempção da qual o de-
senvolvimento do Estado total (…) seria o sintoma precursor
no plano externo»24. Mas Schmitt cria também, de maneira
significativa, um novo lugar para a noção de Império (Reich)
que, na história, representou durante muito tempo a grande
alternativa ao modelo do Estado-nação. Considera que cada
«grande espaço», se deveria centrar em redor de um império,
que regularia as relações dos países membros e permitiria ao
«grande espaço» desenvolver uma ideia política que lhe seja
própria. Mas sublinha também que o Grossräum não se deve
confundir com o Reich, cuja missão é somente a de organi-
zar o «grande espaço» e de o proteger de toda a intervenção
externa. Definitivamente, admite que os «impérios», e já não

141
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

as nações, possam mesmo vir a tornar-se nos principais acto-


res das relações internacionais, mantendo-nos, não obstante,
de sobreaviso contra a simples extensão mecânica da ideia
de soberania nacional aplicada à dimensão do Grossräum25.
A questão de saber se a actual União europeia cons-
titui um «grande espaço», no sentido que lhe dava Carl
Schmitt, ou se podemos estabelecer uma relação entre o
ponto de vista de Schmitt e uma ou outra forma da dou-
trina federalista, foi objecto nos últimos anos de um certo
número de discussões26. Estas contêm sempre uma par-
te de especulação na medida em que Schmitt, se bem que
tenha morrido em 1985, cerca de trinta anos depois da as-
sinatura do tratado de Roma, nunca publicou nada acerca
da natureza das Comunidades Europeias. Certos autores
desejosos de fazer da Europa uma potência autónoma, no-
meadamente em matéria de política estrangeira e de defe-
sa, nem por isso se referiram, contudo, de forma menos
explícita, ao modelo schmittiano do «grande espaço» e à
sua ideia de um novo Nomos da Terra27, bem como igual-
mente à ideia de Império por oposição à de Estado-nação.
Em contrapartida, certos adversários da construção europeia
tentaram justificar a sua oposição a esse projecto referindo-
se aos pontos de vista desenvolvidos por Schmitt, que se
encarregaram de apresentar sob o aspecto mais negativo28.
Carl Schmitt não aborda a questão da federação
(Bund) senão nos capítulos 29 e 30 da sua Vefassungslehre de
192829. A definição que dá mostra que esta não se confunde,
nele, com o Estado federal (Bundesstaat) clássico nem com
o Estado confederativo ou com a confederação de Estados
(Staatenbund). A federação, escreve, é «uma união durável,
repousando sobre uma livre convenção, servindo o objectivo
comum da conservação política de todos os membros da fe-
deração; ela modifica o status político global de cada membro

142
DA DUALIDADE TERRA - MAR AO NOVO NOMOS DA TERRA

da federação em função desse objectivo comum»30. A entrada


numa federação acarreta pois para os Estados uma modifica-
ção da sua Constituição. O pacto federativo (Bundesvertrag) é
um «pacto estatutário inter-estatal»31, cuja conclusão repre-
senta um acto do poder constituinte. Toda a federação possui
enquanto tal uma existência política munida de um jus belli
que lhe é próprio. É simultâneamente um sujeito de direito
internacional e um sujeito de direito interno. Schmitt realça
assim os paradoxos ou as antinomias da federação. Uma das
mais evidentes é a de que os Estados membros subscrevem
normalmente o pacto federativo para preservar a sua autono-
mia política, ainda que entrando na federação devam aí aban-
donar uma parte dela32. Mas a mais importante é esta: «uma
federação justapõe dois géneros de existência política: a exis-
tência global da federação e a existência particular do Estado
membro (…) Dos dois lados, são possíveis gradações, mas o
caso extremo conduz sempre, seja à dissolução da federação
que não deixa senão em cena os Estados isolados, seja ao
desaparecimento dos Estados membros o que não deixa sub-
sistir mais do que um Estado único»33. Estas antinomias não
são solucionáveis, acrescenta Carl Schmitt, senão na condi-
ção de uma homogeneidade substancial de todos os mem-
bros da federação, somente esta homogeneidade podendo
fundar entre eles um acordo concreto (Überreinstimmung).
Com a noção de «grande espaço», à qual Schmitt opõe
explicitamente a de «universalismo», surge em todo o caso
uma alternativa das mais actuais: unidade ou pluralidade do
mundo, universo ou «pluriverso», globalização homogénea
ou globalização conforme à diversidade das culturas e dos po-
vos? Schmitt mostra que a ordem antiga, que foi a da moder-
nidade, já não pode ser eurocêntrica, implicando, na era pós
moderna, um rearranjo geral das relações internacionais em
torno de uma alternativa simples: unipolaridade ou multipo-

143
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

laridade. A unipolaridade que poderíamos apodar de «mo-


noteísta», consagra a hegemonia da potência dominante; a
multipolaridade, conforme ao «politeísmo dos valores» (Max
Weber), funda-se sobre o reconhecimento mútuo de conjun-
tos político-culturais de igual valor. A «evolução planetária»,
escreve Schmitt, «conduziu desde há já muito tempo a um
claro dilema entre o universo e o pluriverso, entre monopólio
e multipólio, quer isto dizer à questão de saber se o planeta
(está) maduro para o monopólio global de uma só potência,
ou se é um pluralismo de grandes espaços, de esferas de in-
tervenção e de zonas culturais, auto-reguladas, e coexistentes
que (vai) determinar um novo direito das gentes da Terra»34.
Schmitt não esconde a sua preferência, que corres-
ponde à coexistência de «vários grandes espaços ou blocos
autónomos que estabeleceriam, entre eles, um equilíbrio
e, através deste, uma ordem da Terra»35. Desde os anos cin-
quenta, prevê que a divisão binária do mundo herdado de
Ialta entre o «mundo livre» e o bloco soviético, não anun-
cia tanto uma unificação do mundo quanto uma «tran-
sição para uma nova pluralidade». A Europa continua a
ser, para ele, o espaço territorial «no qual se desenvolveu
o arranjo geopolítico mais favorável à paz mundial»36.
A alternativa entre mundo unipolar e mundo mul-
tipolar junta-se à oposição entre o Mar e a Terra, dado que
um mundo multipolar implica a noção territorial de fron-
teira. No mundo actual, a lógica da Terra confunde-se, para
além disso, mais do que nunca com uma lógica continen-
tal, a da Europa inteira (ou da Eurásia), enquanto que a ló-
gica marítima, encarnada há pouco tempo pela Inglaterra,
é hoje a da América. Do mesmo modo, poderíamos dizê-
lo, a alternativa entre a construção da União europeia como
simples espaço transatlântico de livre troca e a sua constru-
ção como potência continental autónoma resulta ainda des-

144
DA DUALIDADE TERRA - MAR AO NOVO NOMOS DA TERRA

ta mesma oposição, na medida em que o Mar está do lado


do comércio, enquanto que a Terra está do lado do político
discernido na sua essência. É bem por isto que os Estados
Unidos exprimem tão frequentemente a sua adesão ao mo-
delo unipolar, que consagraria a sua hegemonia planetária.
Em 1991, Charles Krauthammer já escrevia: «Nós vivemos
num mundo unipolar. Nós, os Americanos, deveríamos
amá-lo, e explorá-lo»37. «Os Americanos, constata Thierry de
Montbrial, rejeitam categoricamente a noção de um mundo
multipolar, cujos dois componentes são inaceitáveis aos seus
olhos. Por um lado, quem diz mundo multipolar subenten-
de um equilíbrio das potências, e como tal, justamente, a
necessidade de um contrapeso aos Estados Unidos (…) Eles
não aceitam, por outro lado, que um qualquer equilíbrio
possa ser garantido pela organização das Nações Unidas,
quer isto dizer na prática pelo Conselho de segurança e mais
precisamente pelos seus cinco membros permanentes»38.
Desde então, o objectivo geopolítico maior dos
Estados Unidos é o de evitar a formação de um heartland
continental ou eurasiático que possa rivalizar com o seu
próprio poderio, ou seja, tudo fazer para evitar a emergên-
cia de uma potência rival na Europa ocidental, na Ásia ou
no território do antigo império russo. Daí a redefinição
das missões da OTAN e o largamento do seu conceito es-
tratégico, se bem que essa organização, ao princípio pura-
mente defensiva, tenha objectivamente ficado sem razão
de existir depois do desmoronamento do sistema sovié-
tico. O lugar crescente do oceano Pacífico nos assuntos
do mundo, e o facto dos Estados Unidos cada vez mais se
virarem nessa direcção, caminham no mesmo sentido.
Na medida em que se caracteriza pela proliferação
das redes e dos fluxos de todas as espécies (comerciais, fi-
nanceiros, tecnológicos, comunicacionais, etc.), a globaliza-

145
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

ção deriva, também ela, da lógica do Mar, que não conhece


nem fronteiras nem territórios fechados. Por um hábito de
linguagem, que é por si próprio revelador, diz-se da glo-
balização que ela unifica a Terra, mas de facto, ao unificá-
la, submete a Terra à lógica do Mar, que é a da abolição
das fronteiras e da supremacia dos fluxos e dos refluxos.
Depois de ter posto fim à bipolaridade mundial, a
globalização acarreta uma desterritorialização generalizada
das relações militares, políticas, económicas e financeiras.
Abolindo o espaço territorial, abole também a temporalidade
instaurando um «tempo zero», por força da sua ubiquidade
e da sua instantaneidade. Com a mundialização do capitalis-
mo, tal como com o neoterrorismo global, entramos nesse
«espaço liso» que Gilles Deleuze e Félix Guattari opunham,
há pouco tempo, ao «espaço estriado». Enquanto que o es-
paço «estriado» é pensado a partir do modelo do tecido, com
a sua estrutura, a sua trama e a sua finitude, o espaço «liso»
é pensado a partir do o modelo do feltro, que não implica
nenhuma fricção, nenhum entrecruzamento, mas somen-
te uma confusa mistura de fibras homogéneas que podem
propagar-se em todos os sentidos para o infinito. O espaço
«liso» não é situado, mas «nómada»; é um espaço sem pro-
fundidade, um espaço imediatizado e de contacto por todos
os azimutes, que não contém nem formas nem conteúdos,
mas somente fluxos sem ancoragem nem polarização. «Ao
nível complementar e dominante de um capitalismo mun-
dial integrado (ou antes integrante), escreviam Deleuze e
Guattari, é produzido um novo espaço liso onde o capital
atinge a sua velocidade “absoluta” (…) as multinacionais fa-
bricam uma espécie de espaço liso desterritorializado onde
os pontos de ocupação como os pólos de troca se tornam
muito independentes das vias clássicas de estriagem»39.
No seu diário, Carl Schmitt exprimiu o seu horror

146
DA DUALIDADE TERRA - MAR AO NOVO NOMOS DA TERRA

perante a perspectiva daquilo que Paul Virilio chamou o


«globalitarismo», quer isto dizer o advento de um mundo
globalizado que, por definição, seria um mundo sem exte-
rior, e como tal sem político possível: «Como é horrendo,
o mundo onde já não há estrangeiro, mas somente o inte-
rior»40. O mesmo sentimento encontra-se igualmente nas
suas obras. No Conceito de Político, por exemplo, Schmitt
exprime várias vezes o seu receio de que nasça um «plane-
ta definitivamente pacificado», que «seria um mundo sem
discriminação do amigo e do inimigo e por consequência
um mundo sem política»41. A «criação de uma aliança das
nações englobando a humanidade inteira», o advento de
um Estado mundial ou de uma sociedade universal, con-
sidera, «significaria a despolitização total»42. Schmitt diz
mesmo explicitamente que talvez venha a existir um dia
um estádio totalmente despolitizado da humanidade, limi-
tando-se a acrescentar que «por enquanto, não existe»43.
Este receio é bastante estranho do próprio ponto de
vista da sua definição do político , visto que Carl Schmitt diz
também que o mundo unificado seria um mundo onde as
guerras não desapareceriam, mas no qual todas derivariam
do modelo da guerra civil. Se, com efeito, o político «não
designa um domínio de actividade próprio, mas somente o
grau de intensidade de uma associação ou de uma dissocia-
ção de seres humanos»44, se ele pode «extrair a sua força dos
mais diferentes domínios da vida», se «todo o domínio ima-
ginável da actividade humana é potencialmente político e se
torna imediatamente político no momento em que os confli-
tos fundamentais e as questões fundamentais são transpor-
tados para esse domínio»45, então não conseguimos vislum-
brar como é que o político poderia desaparecer, e o que é que,
no fundo, motiva o pessimismo ou pelo menos a inquietude
de Carl Schmitt. Se o político é bem aquilo que Schmitt diz

147
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

dele, a saber uma dimensão característica da existência hu-


mana, e se todo o conflito, seja de que natureza for, se torna
automaticamente político quando atinge um certo grau de
intensidade, é antes necessário concluir pela permanência e
pela inevitabilidade do político»46. A globalização não é pois
um sinónimo de fim do político, e é-o tanto menos quanto a
tendência para a unificação do mundo acarreta por reacção,
e de maneira simétrica, novas fragmentações ou divisões no
seu seio. Um mundo globalizado não é necessariamente um
mundo pacificado, bem pelo contrário. Embora distinga cla-
ramente Estado e político e tendo sido um dos primeiros a
constatar a desagregação do Estado-nação de tipo clássico, Carl
Schmitt pode, talvez, simplesmente ter tido dificuldade em
imaginar formas não estatais positivas de existência política.
No final deste breve panorama, resta concluir. George
W. Bush e o seu círculo não são evidentemente homens po-
líticos «schmittianos». Senhores da potência do Mar, recla-
mam-se de um modelo político ideológico que Schmitt não
cessou de criticar. O seu liberalismo (no sentido europeu
do termo) e o seu optimismo messiânico são tão alheios às
ideias schmittianas quanto a maneira pela qual concebem a
guerra como uma guerra «justa», onde o inimigo não é nun-
ca reconhecido, mas designado como uma figura do Mal que
é preciso erradicar, ou o modo como fazem uso da noção de
urgência para instaurar o estado de excepção permanente.
Mas é em contrapartida incontestável que graças à política
posta em prática há alguns anos pela administração america-
na, temáticas, estas, propriamente, schmittianas retornaram
ao primeiro plano da actualidade internacional e que essas
temáticas são tantas mais chaves hermenêuticas que podem
ajudar à compreensão do facto. Esperamos ter demonstrado
quer a actualidade dos temas principais do pensamento de
Carl Schmitt quer a inanidade da ideia segundo a qual os

148
DA DUALIDADE TERRA - MAR AO NOVO NOMOS DA TERRA

neoconservadores seriam fiéis adeptos deste pensamento.

1 Terre et Mer. Un point de vue sur l’histoire mondiale,


Labyrinthe, Paris 1985, p. 23. A obra foi publicada pela
primeira vez em 1942: Land und Meer. Eine weltge-
schichtliche Betrachtung, Reclam, Leipzig 1942 (última
edição: Klett-Cotta, Estugarda 2001). Sobre esta pro-
blemática, cf. Peter Schmidt, Kontinentalmächte und
Seemächte im weltpolitischen Den-ken Carl Schmitts,
Universität Mannheim, Mannheim 1980.
2 Ibid., p. 52.
3 Acerca deste assunto cf. Jerónimo Molina, «Carl
Schmitt y lo telúrico», in Razón española, Madrid,
Maio-Junho de 2005, pp. 263-276.
4 No seu célebre discurso de despedida de 1796,
George Washington tinha deixado esta instrução: «O
mais possível de comércio, o menos possível de po-
lítica». Razão pela qual, no decurso dos dois últimos
séculos, o imperialismo americano foi mais amíude, e
em primeiro lugar, um imperialismo económico. Mas
Schmitt viu bem que a economia, ao procurar elimi-
nar tudo o que constitui um obstáculo ao seu domí-
nio, atinge, a partir daí, um tal nível de intensidade
que adquire as características do político: «A econo-
mia tornou-se um fenómeno político e, consequen-
temente, destino» (La notion de politique, op. cit., p.
125). O exemplo do imperialismo americano inverte
igualmente o velho adágio segundo o qual o controlo
da economia passa pela conquista do território: dora-
vante é quem controla a economia que controla o ter-

149
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

ritório. Cf. Le Nomos de la Terre, op. cit., introdução, pp.


33-34.
5 Terre et Mer, op. cit., p. 75.
6 Théorie du partisan, op. cit., p. 233.
7 Terre et Mer, op. cit., p. 85.
8 Cf. Carl Schmitt, «Großraum gegen Universalismus.
Der völ­kerrechtliche Kampf um die Monroedokrin»,
in Zeitschrift der Akademie für Deutsches Recht, VI, 7,
Maio de 1939, pp. 333-337 (trad. fr.: «Grand espace contre
universalisme. Le conflit sur la doctrine Monroe en droit
inter­national», in Carl Schmitt, Du politique, op. cit., pp.
127-136).
9 The Influence of Sea Power Upon History, 1660-1783,
Little Brown & Co., Boston 1890 (trad. fr.: Influence de
la puissance maritime dans l’his­toire, 1660-1783, Claude
Tchou, Paris 2001); The Interest of America in Sea
Power, Little Brown & Co., Boston 1897.
10 Cf. Christopher Leigh Connery, «Ideologies
of Land and Sea. Alfred Thayer Mahan, Carl Schmit,
and the Shaping of Global Myth Ele­ments», in
Boundary 2, Verão de 2001, pp. 173-201.
11 Halford J. Mackinder expôs pela primeira
vez a sua doutrina aquando de uma conferência («The
Geographical Pivot of History») pronunciada a 25 de
Janeiro de 1904 perante a Royal Geographical Society
de Londres.
12 Cf. Aymeric Chauprade, Géopolitique.
Constantes et changements dans l’histoire, Ellipses, Paris
2001.
13 Théorie du partisan, op. cit., p. 277.
14 Carl Schmitt foi mesmo descrito como um
«profeta do espaço» (Arturo Colombo, «Schmitt, stra-
no profeta dello spazio», in Corriere della Sera, 8 de

150
DA DUALIDADE TERRA - MAR AO NOVO NOMOS DA TERRA

Abril de 2005).
15 Acerca do papel do espaço, e mais especial-
mente do espaço extra-atmosférico, no pensamento
estratégico actual, cf. Serge Grouard, la guerre en orbi-
te. Essai de politique et de stratégie spatiales, Economica-
FEDN, Paris 1994; Benoît d’Albion, «L’emploi des
armes aériennes dans les conflits modernes», in Revue
de défense nationale, Paris, Janeiro de 1996.
16 Cf. acerca deste assunto Thierry Garcin,
«L’espace, outil géopolitique des États-Unis», in
Aymeric Chauprade (ed.), Géopolitique des États-Unis.
Cul­ture, intérêts, stratégies, Ellipses, Paris 2004, pp. 69-
74, que sublinha que «a vontade americana de exercer
uma predominância ou uma hegemonia repousando
em parte sobre o espaço é (igualmente) evidente no
domínio civil, a começar pela rede terrestre de esta-
ções de recepção» (p. 72). A 6 de Outubro de 2006,
a Casa Branca publicou um novo documento sobre a
sua política espacial (New Space Policy). O texto subli-
nha que «a segurança nacional dos Estados Unidos
depende de maneira crítica da sua capacidade espa-
cial, e que essa dependência continuará a crescer»,
opondo-se a qualquer tratado que interdite as armas
espaciais («a liberdade de acção no espaço é tão im-
portante para os Estados Unidos como a sua potên-
cia aérea e marítima. Os Estados Unidos opor-se-ão a
todo o novo regime jurídico ou a qualquer outra res-
trição que vise a interdição ou a limitação da sua uti-
lização do espaço») e precisa que os Estados Unidos
«Impedirão, se necessário, aos adversários a utiliza-
ção de uma capacidade espacial hostil ao interesse
nacional americano». Cf. também Peter Hayes (ed.),
Space Power Interests, Westview Press, Boulder 1996;

151
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

Jean-Michel Valantin, «Militarisation de l’espace et puis-


sance américaine», in Diplomatie, Janeiro-Fevereiro de
2003, pp. 50-52; e Eduardo Mendieta, «War the School
of Space: The Space of War and the War for Space», in
Ethics, Place and Environment, IX, 2, Junho de 2006,
pp. 207-229, que compara o pensamento geoestraté-
gico de Carl Schmitt com os de Friedrich Ratzel, A.T.
Mahan, Halford Mackinder e Guilio Duohet.
17 «L’espace extra-atmosphérique, enjeu straté-
gique et conflictua­lité de demain», texto disponível no
site < www.stratisc.org >.
18 Cf. Carl Schmitt, «Die Auflösung der eu-
ropäischen Ordnung im “International Law”, 1890-
1939», in Deutsche Rechtswissenschaft, V, 4, 9 de
Novembro de 1940, p. 267-278 (texto reeditado in
Staat, Großraum, Nomos. Arbeiten aus den Jahren 1916-
1969, ed. por Günter Maschke, Duncker u. Humblot,
Berlim 1995, pp. 372-387). «A substituição de um sis-
tema eurocêntrico, singular, de soberanias de direito
público por relações de direito privado, governando o
livre mercado mundial, e a instauração de uma ordem
imperial, moralmente fundamentada, que não vê na
guerra mais do que uma relação entre polícia e crimi-
nosos, raramente foi analisada com mais acuidade»,
escreve Martti Koskenniemi («International Law as
Political Theology: How to Read “Nomos der Erde”?»,
in Constella­tions, Oxford, XI, 2004, 4, p. 500).
19 Le Nomos de la Terre, op. cit., p. 52.
20 «Großraum gegen Universalismus», art. cit. Talvez
seja necessário contudo sublinhar que o «universalis-
mo» de que fala o católico Carl Schmitt não é qualquer
universalismo, mas aquele que o próprio apelida de
«falso universalismo», de essência niilista. Sobre este

152
DA DUALIDADE TERRA - MAR AO NOVO NOMOS DA TERRA

ponto cf. Martti Koskenniemi, «International Law as


Political Theology: How to Read “Nomos der Erde”?»,
art. cit., que considera que, em Schmitt, esse «falso
universalismo» se opõe a um universalismo fundado
na fé. A tradução em língua inglesa do Nomos de la
Terre já abriu, aliás, um debate nos países anglo-sa-
xónicos Cf. Mitchell Dean, «Nomos and the Politics
of World Order», in Wendy Larner e William Walters
(ed.), Global Governmentality, Routledge, Londres
2004; Mika Ojakangas, «A Terrifying World without
an Exterior: Carl Schmitt and the Metaphy­sics of
International (Dis)order», comunicação no colóquio
«The Inter­national Thought of Carl Schmitt», Haia,
9-11 de Setembro de 2004; Alz­beta Dufferová, «The
Historical Thinking of Carl Schmitt and its Signi­
fication for the World Orders», comunicação ao mes-
mo colóquio; World Orders. Confronting Carl Schmitt’s
«The Nomos of the Earth», n° especial da revista The
South Atlantic Quarterly, Durham, Primavera de
2005, pp. 177­392; Christoph Burchard, «Interlinking
the Domestic with the Interna­tional: Carl Schmitt
on Democracy and International Relations», in Lei-
den Journal of International Law, Leiden, XIX, 2006,
1, pp. 9-40; Thalin Zarmanian, «Carl Schmitt and
the Problem of Legal Order: From Domes­tic to
International», ibid., pp. 41-67.
21 Völkerrechtliche Grossraumordnung mit
Interventionsverbot für raum­fremde Mächte. Ein
Beitrag zum Reichsbegriff im Völkerrecht, Deutscher
Rechtsverlag, Berlim-Viena-Leipzig 1939. A obra co-
nheceu quatro edições sucessivas entre 1939 e 1942,
com aperfeiçoamentos em cada uma delas. Foi ree-
ditada na recolha publicada sob a direcção de Günter

153
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

Maschke, Staat, Grossraum, Nomos, op. cit., pp. 269-


371. No III Reich, foi objecto de violentas críticas por
parte de certos juristas ou teóricos nazis, nomeada-
mente Werner Best, Reinhard Höhn e Wilhelm Stu­
ckart. Cf. também Joseph H. Kaiser, «Europäiches
Großraumdenken. Die Steigerung geschichtlicher
Größen als Rechtsproblem», in Hans Barion, Ernst
Wolfgang Böckenförde, Ernst Forsthoff e E. Weber
(Hrsg.), Epirrho­sis. Festgabe für Carl Schmitt, Duncker
u. Humblot, Berlim 1968, vol. 2, pp. 319-331; Matthias
Schmoeckel, Die Grossraumtheorie. Ein Beitrag zur
Geschichte der Völkerrechtswissenschaft im Dritten Reich,
insbesondere der Kriegszeit, Duncker u. Humblot,
Berlim 1994. Acerca dos aspectos estratégicos actuais
da noção de grande espaço, cf. Adolfo Sergio Spadoni,
Nomos e tecnica. Ragion strategica e pensiero filosofico-
giuridico nell’Ordinamento dei grandi spazi, Edizione
Scientifiche italiane, Napoles 2005 (principalmente o
cap. 1, «Dall’idrosofia alla cosmosofia. Considerazioni
sul “Grossraumdenken” di Carl Schmitt», S. 11-70).
22 Schmitt constata a partir de 1932: «A era
do Estado está no seu declínio (…) O Estado, mode-
lo da unidade política, e investido de um monopólio
admirável entre todos, o da decisão política, o Estado,
essa obra-prima da forma europeia e do racionalismo
ocidental, está destronado» (La notion de politique, op.
cit., pp. 42-43). Embora sendo profundamente esta-
tista, Schmitt tomou a precaução de nunca confundir
Estado e político. A antítese de amigo e de inimigo,
que é, segundo ele, o fundamento do político, é his-
toricamente e ontologicamente anterior ao apareci-
mento do Estado. Inversamente, logo que o político
abandona a sua instância clássica, a instância estatal,

154
DA DUALIDADE TERRA - MAR AO NOVO NOMOS DA TERRA

é para se manifestar sob outras formas e por outros


meios. O Estado-nação, noutros termos, não é senão
uma entidade política entre outras possíveis. Estado e
político sobrepuseram-se durante muito tempo, mas
nunca se confundiram.
23 No seu livro Carl Schmitt expõe a manei-
ra pela qual, a partir do momento em que a doutrina
Monroe foi enunciada, os Estados Unidos constante-
mente reclamaram em seu benefício um direito de in-
tervenção permitindo-lhes assumir-se como «árbitro
da Terra». Segundo ele, os Estados Unidos domina-
ram o direito internacional a partir de 1919, e esse pro-
cesso culminou no momento do pacto Briand-Kellog
de 1928.
24 «Carl Schmitt et “l’unité du monde”», art.
cit., p. 13.
25 Acerca da maneira como Carl Schmitt es-
tabelece uma ligação entre o espaço e o Império, cf.
também o seu texto de 1951, «Raum und Rom. Zur
Phonetik des Wortes Raum», in Universitas, Estugarda,
VI, 9, Setembro de 1951, pp. 963­968 (texto reedita-
do in Staat, Grossraum, Nomos, op. cit., pp. 491-495),
onde se entrega a uma comparação entre a denomi-
nação alemã de espaço, Raum, e o nome da cidade de
Roma.
26 tCf. especialmente Olivier Beaud, «Fédéralisme et
souveraineté, notes pour une théorie constitutionnelle
de la Fédération», in Revue de droit public, Paris, 1998,
1, pp. 86 ff.; Jerónimo Molina, «¿Unión euro­pea o
gran espacio?», in Razón española, Madrid, Setembro-
Outubro 2002, pp. 161-182; Constantin Houchard,
Carl Schmitt, la Fédération et l’Union européenne, co-
municação, Seminário de teoria geral do Estado e de

155
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

história das ideias políticas, Universidade católica de


Lovaina, Lou­vain-la-Neuve 2002. A tese segundo a
qual o Tribunal constitucional da Alemanha federal
fez assentar o seu julgamento a propósito do tratado
de Maastricht em critérios originários de uma con-
cepção schmittiana da democracia foi defendida por
Joseph H. Weiler, «Does Europe Need a Constitution?
Demos, Telos, and the German Decision», in European
Law Journal, 1995, 1, pp. 219 ff. (cf. também, do mes-
mo autor, «The State “über alles”: Demos, Telos and
the German Decision», in Ole Due, Mar­cus Lutter e
Jürgen Schwarze, Hrsg., Festschrift für Ulrich Everling,
Nomos, Baden-Baden 1995, vol. 2, pp. 1651 ff.). Essa
tese foi objecto de um exame crítico: Peter L. Lindseth,
The Maastricht Decision Ten Years Later. Parliamentary
Democracy, Separation of Powers, and the Schmittian
Interpre­tation Reconsidered, European University
Institute, San Domenico di Fie-sole 2003.
27 Cf. por exemplo Carlo Masala, «Europa soll-
te ein Reich wer­den. Carl Schmitts Großraumtheorie
könnte helfen, dem imperialen Uni­ versalismus der
Vereinigten Staaten auf kluge Weise zu entkommen»,
in Frankfurter Allgemeine Zeitung, Frankfurt/M., 10 de
Outubro de 2004, p. 15. Cf. também Carmelo Jiménez
Segado, «Carl Schmitt and the “Grossraum” of the
“Reich”. A Revival of the Idea of Empire», comunica-
ção no colóquio «The International Thought of Carl
Schmitt», Haia, 9-11 Setembro de 2004.
28 John Laughland, grande adversário da
construção europeia, também publicou um livro po-
lémico (The Tainted Source. The Unde­mocratic Origins
of the European Idea, Warner, Londres 1997) no qual
relaciona este projecto com as ideias de Carl Schmitt

156
DA DUALIDADE TERRA - MAR AO NOVO NOMOS DA TERRA

em matéria de «grande espaço», confundindo siste-


maticamente as suas ideias com as dos planos nazis
de organização e de rearrumação da Europa. A obra,
que se esforça com efeito por reconduzir o projecto
de construção europeia à ideia que os nazis faziam da
futura Europa, foi objecto de uma réplica e de uma
precisão: Alexander Proelss, «Nationalsozialis­tische
Baupläne für das europäische Haus? John Laughland’s
“The Tain­ted Source” vor dem Hintergrund der
Grossraumtheorie Carl Schmitts», in Forum historiae
juris, 12 de Maio de 2003. Proelss mostra no que a
noção de Grossraum em Schmitt se diferencia radical-
mente da concepção de espaço europeu tal como foi
exposta nos anos 1940 por teóricos SS como Werner
Best ou Reinhard Höhn, que opunham sistemati-
camente a ideia de völkische Großraumordnung à de
völkerrechtliche Großraumordnung. O mesmo assunto
deu lugar, a 29 e 30 de Setembro de 2000 no Instituto
Europeu de Florença, a um colóquio cujas actas foram
publicadas: Christian Joerges u. Navraj Singh Ghaleigh
1955», pp. 133-141), Christian Joerges («Europe a
“Grossraum”? Shif­ting Legal Conceptualisations of
the Integration Project», pp. 167-191) e Neil Walker
(«From “Grossraum” to Condominium. A Comment»,
pp. 193-203). Sobre o projecto de construção euro-
peia, cf. também Ben Rosa­mond, Theories of European
Integration, Macmillan, Basingstoke 2000; Dimitris
N. Chryssochoou, Theorizing European Integration,
Sage, Londres 2001.
29 Verfassungslehre, Duncker u. Humblot, Munique-
Leipzig 1928 (última edição: Berlim 2003, trad. fr.:
Théorie de la Constitution, Pres­ses universitaires de
France, Paris 1993). Estas passagens foram reunidas

157
«GUERRA JUSTA», TERRORISMO,ESTADO DE URGÊNCIA E «NOMOS DA TERRA»

e traduzidas em inglês, com um comentário de Gary


L. Ulmen: «The Cons­titutional Theory of Federation»,
in Telos, Nova Iorque, 91, primavera 1992, pp. 26-56.
30 Théorie de la Constitution, op. cit., p. 512.
31 Ibid., p. 513.
32 «O direito federativo prevalece sempre sobre
o direito do Estado-membro enquanto a federação agir
no quadro das suas competências face aos Estados-
membros» (ibid., p. 529).
33 Ibid., p. 518.
34 Le Nomos de la Terre, op. cit., p. 241.
35 «Der neue Nomos der Erde», in Gemeinschaft
und Politik, III, 1, Janeiro de 1955, pp. 7-10 (texto ree-
ditado in Staat, Großraum, Nomos, op. cit., pp. 518-522).
36 John P. McCormick, «Carl Schmitt’s Europe.
Cultural, Imperial and Spatial Proposals for European
Integration, 1923-1955», art. cit.
37 The Washington Post, Washington, 22 de
Março de 1991.
38 La guerre et la diversité du monde. Les États-
Unis contre l’Europe puis­sance, L’Aube, La Tour d’Aigues
2004, p. 120.
39 Capitalisme et schizophrénie. 2: Mille plateaux,
Minuit, Paris 1980, p. 614. «Poderíamos questionar-
mo-nos, comenta Mireille Buydens, se o liso não é um
modelo útil para pensar o pós-capitalismo financeiro,
cujos fluxos se concentram, se desvanecem ou desli-
zam, deslocando-se e aglutinando-se sobre os valores,
segundo a conveniência de “leis” que têm mais afini-
dades com as necessidades misteriosas de uma me-
teorologia da tempestade que com uma ciência pre-
ditiva» («Espace lisse/Espace strié», in Robert Sasso
e Arnaud Villani, ed., Le vocabulaire de Gilles Deleuze,

158
DA DUALIDADE TERRA - MAR AO NOVO NOMOS DA TERRA

nº especial da Cahiers de Noesis, 3, Primavera de


2003, p. 135). Ndt.: A análise deleuziana recorre de so-
bremaneira aos fenómenos naturais como ilustração.
A tempestade reveste aqui o significado de um modelo
de turbulência.
40 Glossarium. Aufzeichnungen der Jahre 1947-1951,
Duncker u. Humblot, Berlim 1991, à data de 5 de
Novembro de 1947.
41 La notion de politique, op. cit., p. 73.
42 Ibid., p. 98.
43 Ibid., p. 18.
44cIbid., p. 77.
45 Der Hüter der Verfassung, J.C.B. Mohr-Paul
Siebeck, Tübingen 1931 (última edição: Duncker u.
Humblot, Berlim 1996), p. 111.
46 S. Parvez Manzoor, «The Sovereignty of the Political.
Carl Schmitt and the Nemesis of Liberalism», in The
Muslim World Book Review, Leicester, Outono de 1999.

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