LIVRO Jacques-Derrida Otobiografias Zazie
LIVRO Jacques-Derrida Otobiografias Zazie
LIVRO Jacques-Derrida Otobiografias Zazie
JACQUES
DERRIDA
Otobiografias
O ensinamento de Nietzsche e a
política do nome próprio
Tradução
Guilherme Cadaval
Arthur Leão Roder
Rafael Haddock-Lobo
Otobiografias
O ensinamento de Nietzsche e a
política do nome próprio
2021 ©Jacques Derrida
©Zazie Edições
TÍTULO ORIGINAL
Otobiographies; L’Enseignement de
Nietzche et la politique du nom propre
COLEÇÃO
PEQUENA BIBLIOTECA DE ENSAIOS
COORDENAÇÃO EDITORIAL
Laura Erber e Karl Erik Schøllhammer
EDITORAS
Laura Erber e Maria de Andrade
PREPARAÇÃO
Angela Vianna
REVISÃO DE TEXTO
Cecilia Andreo
DESIGN GRÁFICO
Maria Cristaldi
DIAGRAMAÇÃO
Anderson Junqueira
Bibliotek.dk
Dansk bogfortegnelse-Dinamarca
ISBN 978-87-93530-90-4
Zazie Edições
Copenhague / Rio de Janeiro
www.zazie.com.br
PEQUENA BIBLIOTECA DE ENSAIOS
JACQUES
DERRIDA
Otobiografias
O ensinamento de Nietzsche e a
política do nome próprio
Tradução
Guilherme Cadaval
Arthur Leão Roder
Rafael Haddock-Lobo
O ensaio que aqui publicamos é o texto integral de uma con-
ferência pronunciada por Jacques Derrida, em francês, na
Universidade da Virgínia (Charlottesville) em 1976. Publica-
da primeiramente em alemão (Fugen, Deutsch-Französisches
Jahrbuch für Text-Analytik, tr. Friedrich Kittler, Walter, 1980)
sob o título Nietzsches Otobiographie oder Politik des Eigenna-
mens, Die Lehre Nietzsches. Parte da mesma conferência foi
pronunciada uma segunda vez na Universidade de Montreal,
em 1979, por ocasião de um colóquio e de mesas-redondas
cujas atas foram publicadas no Canadá, em 1982 (L’oreille
de l’autre, Otobiographies, transferts, traductions, textes et
débats avec Jacques Derrida, sob a direção e edição de Claude
Lévesque e Christie V. McDonald).
Sumário
Declarações
de Independência
7
Lógica da vivente
21
Do Estado –
O signo autógrafo
45
Omphalos
73
Declarações de Independência
1
“Literatura comparada.” Todas as ocorrências de idiomas diferentes do
original em francês foram mantidas, e a tradução, apresentada em notas
de rodapé. As notas do texto são dos tradutores, a não ser quando houver
indicação em contrário.
2
“Atos de fala”: referência à teoria do filósofo da linguagem britânico
John Austin.
8
elaboradas em outros lugares sobre um corpus apa-
rentemente menos político. E dentre todas essas per-
guntas, esta, a única que reservo para a circunstância,
nesta tarde, numa universidade da Virgínia que veio
a festejar, melhor que qualquer outro lugar, o bicen-
tenário da Declaração de Independência (o que já dá
margem para a celebração de outro aniversário para
o qual nos voltaremos na hora certa): quem assina, e
sob qual nome dito próprio, o ato declarativo que funda
uma instituição?
Esse ato não retoma nenhum discurso de descri-
ção ou de constatação. Ele perfaz, cumpre, faz o que
diz fazer – essa seria, ao menos, sua estrutura inten-
cional. Com seu signatário presumido, com aquele
que, sujeito individual ou coletivo, comprometeu-se a
produzi-lo assim, tal ato não tem a mesma relação de
um texto de tipo “constatativo”, se é que há algum, a
rigor, e se é que se pode encontrá-lo na “ciência”, na
“filosofia” ou na “literatura”. A declaração que fun-
da uma instituição, uma constituição ou um Estado
requer que um signatário esteja com ela comprometi-
do. A assinatura mantém com o ato instituidor, como
ato de linguagem e de escritura, um laço que nada
mais tem de acidente empírico. Essa ligação não se
deixa reduzir, não tão facilmente quanto num texto
científico – cujo valor se separa, sem risco essencial,
do nome do autor, e deve mesmo poder fazê-lo para
pretender a objetividade. Embora, em princípio, uma
instituição deva, na sua história e na sua tradição, na
sua permanência e, logo, na sua própria instituciona-
9
lidade, tornar-se independente dos indivíduos empí-
ricos que tomaram parte em sua produção; ainda que
ela deva, por assim dizer, prestar-lhes luto, mesmo e
sobretudo se ela os comemora, isso se dá em razão
da própria estrutura da linguagem instituidora: o ato
fundador de uma instituição, o ato como arquivo
tanto quanto o ato como performance, deve guardar
em si a assinatura.
Mas a assinatura justamente de quem? Quem é
o signatário efetivo de tais atos? E o que quer dizer
efetivo? A mesma questão se propaga em cadeia em
direção a todos os conceitos afetados pelo mesmo
deslocamento: ato, performativo, assinatura, “eu” e
“nós” “presentes” etc.
Aqui a prudência se impõe, e a minúcia. É preci-
so distinguir diversas instâncias no momento de sua
Declaração. Tomem como exemplo Jefferson, o “re-
dator” do projeto da Declaração, do Draft cujo fac-
-símile tenho diante de mim. Ninguém o tomará
pelo verdadeiro signatário da Declaração. Ele escreve
de direito, mas não assina. Jefferson representa os
representantes (representatives) que lhe delegaram a
tarefa de redigir o que eles sabiam querer dizer. Ele
não tinha a responsabilidade de escrever, no sentido
produtor ou iniciador do termo, somente de redigir,
como se diz de um secretário que redige uma carta
cujo espírito lhe é soprado, e até o conteúdo é dita-
do. Além disso, após redigir um projeto ou um ras-
cunho, Jefferson devia submetê-lo aos mesmos que
por um tempo ele representa e que são os próprios
10
representantes, a saber, os “representatives of the Uni-
ted States of America in General Congress assembled”.3
Sabemos que esses representatives, os quais Jefferson
representa como certa pena de caligrafia avançada,
terão o direito de rever, de corrigir e de ratificar o
projeto da Declaração.
Diremos, portanto, que eles são os signatários úl-
timos?
Vocês sabem o que foi o exame dessa carta, da
declaração literal na primeira versão, por quanto tem-
po ela foi protelada e permaneceu em suspenso entre
todas essas instâncias representativas, e quanto sofri-
mento isso custou a Jefferson. Como se ele secreta-
mente tivesse sonhado em assinar sozinho.
Quanto aos próprios representatives, eles tampou-
co assinam. Ao menos em princípio, pois o direito
aqui se divide. De fato, eles assinam; de direito, as-
sinam por eles mesmos, mas também “por” outros.
Eles têm a delegação ou a procuração de assinatu-
ra. Eles falam, “declaram”, declaram-se e assinam in
the name of...: “We, therefore, the representatives of the
United States of America in General Congress assemb-
led, do in the name and by authority of the good people
of these that as free and independent States...”.4
3
“Representantes dos Estados Unidos da América, reunidos em Assem-
bleia Geral”.
4
Derrida suprime aqui alguns trechos da Declaração de Independência
norte-americana; apresentamos a seguir a passagem completa: “Nós, por
conseguinte, os representantes dos Estados Unidos da América, reunidos
em Assembleia Geral, apelando para o Juiz Supremo do Mundo pela retidão
das nossas intenções, em nome e por autoridade do bom povo destas colô-
11
De direito, o signatário é o povo, o “bom” povo
(precisão decisiva, pois garante o valor da intenção e
da assinatura, mas veremos mais adiante sobre o que
se funda essa garantia). É o “bom povo” que se decla-
ra livre e independente por intermédio de seus repre-
sentantes e de seus representantes de representantes.
Não se pode decidir, e se a independência é constatada
ou produzida por esse enunciado, o é pelo interesse,
pela força e pelo golpe de força desse ato declarativo.
Não acabamos de seguir a sequência desses represen-
tantes de representantes; e ela amplifica a necessária
indecidibilidade. Será que o bom povo já se libertou
de fato e apenas toma nota dessa emancipação por
meio da Declaração? Ou se liberta no instante e pela
assinatura da Declaração? Não se trata aqui de uma
obscuridade ou de uma dificuldade de interpretação,
de uma problemática que se encaminha para a solu-
ção. Não se trata de uma análise difícil que falhará
diante da estrutura dos atos implicados e da tempo-
ralidade sobredeterminada dos acontecimentos. Essa
obscuridade, essa indecidibilidade entre, digamos,
uma estrutura performativa e uma estrutura consta-
tativa é requisito para produzir o efeito desejado. Ela
é essencial à própria posição de um direito como tal,
quer se fale aqui de hipocrisia, de equívoco, de inde-
12
cidibilidade ou de ficção. Direi até mesmo que isso
afeta toda assinatura.
Eis então o “bom povo” que se compromete, e
compromete somente a si mesmo, ao assinar, ao fazer
assinar sua própria declaração. O “nós” da declaração
fala “em nome do povo”.
Ora, esse povo não existe. Ele não existe antes da
declaração, não como tal. Se ele produz seu nascimen-
to, como sujeito livre e independente, como signa-
tário possível, isso só se dá no ato da assinatura. A
assinatura inventa o signatário. Este só pode se auto-
rizar a assinar uma vez concluída, por assim dizer, a
assinatura, num tipo de retroatividade de fábula. É
sua primeira assinatura que o autoriza a assinar. Isso
ocorre todos os dias, mas é fabuloso, e cada vez que
evoco esse tipo de evento penso na Fábula de Francis
Ponge: “Pela palavra ‘pela’ começa este texto/cuja pri-
meira linha diz a verdade...”.
Ao assinar, o povo diz – e faz o que diz fazer, mas
adiando, pelo recurso a seus representantes, cuja re-
presentatividade só será plenamente legitimada pela
assinatura, portanto, após o feito: doravante tenho
o direito de assinar, na verdade já o terei tido, uma
vez que o pude dar a mim. Terei dado a mim mes-
mo um nome e um “poder”, no sentido de poder-
-assinar por delegação de assinatura. Mas esse fu-
turo anterior, tempo conveniente para o golpe de
direito (como se diria, golpe de força), não deve ser
declarado, mencionado, levado em conta. É como se
ele não existisse.
13
Não havia, antes do texto da Declaração, um
signatário de pleno direito, que fosse simultanea-
mente quem assina e quem garante a sua própria
assinatura. Por esse acontecimento fabuloso, por
essa fábula que implica o rastro e só é possível pela
inadequação a si mesma de um presente, uma as-
sinatura se dá um nome. Ela se arroga um crédito,
seu próprio crédito, dá-o a si mesma. O si surgiu
aqui, em todos os casos (nominativo, dativo, acu-
sativo), desde que uma assinatura se outorga cré-
dito por um único golpe de força, que é também
um golpe de escritura, como direito de escritura.
O golpe de força faz direito, funda o direito, dá à
luz a lei. Dar à luz a lei: leiam A loucura do dia, de
Maurice Blanchot.
Que essa coisa inaudita seja também cotidiana
não deve nos fazer esquecer o contexto singular
do ato. Nesse caso, era necessário apagar uma ou-
tra assinatura de Estado “dissolvendo” os laços de
paternidade ou de maternidade colonial. Como se
vai verificar na leitura, essa “dissolução” compor-
ta, ela também, indissociavelmente misturadas, a
certificação e a performance. Dessa confusão in-
dispensável depende hoje, de fato e de direito, a as-
sinatura de cada cidadão americano. A constitui-
ção e as leis de seu país a garantem de certa forma,
assim como garantem seu passaporte, a circulação
de pessoas e de selos de fora do país, as cartas, as
promessas, os casamentos, os cheques para assegu-
rar localidade, asilo ou direito.
14
E contudo. E contudo uma outra instância se man-
tém por detrás da cena. Uma outra “subjetividade”
vem ainda firmar, para garanti-la, essa produção de
assinatura. Nesse processo, em suma, só há contra-
-assinatura. Há um processo diferencial [differantiel]
porque há contra-assinatura, mas tudo deve concen-
trar-se no simulacro do instante. É ainda “em nome
de” que o “bom povo” americano se autonomeia e se
declara independente, no instante em que ele inven-
ta para si uma identidade assinante. Ele assina em
nome das leis da natureza e em nome de Deus. Ele
baseia suas leis institucionais no fundamento de leis
naturais e, num mesmo golpe (golpe de força da in-
terpretação), no nome de Deus, criador da natureza.
Este vem efetivamente garantir a retidão das inten-
ções populares, a unidade e a bondade do povo. Ele
funda as leis naturais e, logo, todo o jogo que tende a
apresentar enunciados performativos como enuncia-
dos constatativos.
Ousarei eu aqui, em Charlottesville, lembrar o in-
cipit de sua Declaração?
E, para encerrar:
5
“Quando, no curso dos acontecimentos humanos, se torna necessário
a um povo dissolver os laços políticos que o ligavam a outro, e assumir,
entre os poderes da Terra, posição igual e separada, a que lhe dão direito
as leis da natureza e as do Deus da natureza, o respeito digno para com as
opiniões dos homens exige que se declarem as causas que os levam a essa
separação. Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas,
que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos
direitos inalienáveis...” (David Armitage. Op. cit.).
6
Ver nota 4.
7
“São e juram ser”.
16
mo, é a última instância para dizer o fato e o direito.
Pode-se entender essa Declaração como um vibrante
ato de fé, como uma hipocrisia indispensável a um
golpe de força político-militar-econômico etc., ou,
simplesmente, e em sentido mais econômico, como o
desdobramento analítico e consequente de uma tau-
tologia: para que essa Declaração tenha um sentido e
um efeito, é necessária uma última instância. Deus é
o nome, o melhor deles, para essa instância definitiva
e a assinatura última. Não somente o melhor num
contexto determinado (tal nação, tal religião etc.),
mas o nome do melhor nome em geral. Ora, esse
(melhor) nome deve ser também um nome próprio.
Deus é o melhor nome próprio. Não se poderia subs-
tituir “Deus” por “o melhor nome próprio”.
Jefferson sabia disso.
Secretário e redator, ele representa. Ele representa
os “representatives” que são os representantes do povo
em nome do qual eles falam, o povo ele mesmo auto-
rizando-se e autorizando-os (na retidão de suas inten-
ções) em nome das leis da natureza que se inscrevem
em nome de Deus, juiz e criador.
Se ele sabia de tudo isso, por que sofria? De que
sofria esse representante de representantes que repre-
sentam, eles mesmos, ao infinito, até Deus, outras
instâncias representativas?
Aparentemente, Jefferson sofria porque se apegou
ao seu texto. Tinha dificuldade em vê-lo, em se ver,
corrigido, emendado, “melhorado”, encurtado, sobre-
tudo por seus colegas. Um sentimento de ferida e de
17
mutilação devia ser inconcebível para alguém que sabe
não escrever em seu próprio nome, mas simplesmente
por representação e em lugar de outro. Se a ferida não
se apaga na delegação, é porque as coisas não são tão
simples, nem a estrutura da representação, nem a pro-
curação de assinatura.
Alguém, vamos chamá-lo de Jefferson (mas por
que não Deus?), desejou que a instituição do povo
norte-americano fosse ao mesmo tempo o erigir de
seu próprio nome. Um nome de Estado.
Ele conseguiu? Não me arriscarei a decidir.
Vocês conhecem a história melhor que eu.
Franklin quis consolar Jefferson pela “mutilação” (a
palavra não é minha). Ele lhe conta a história de um
chapeleiro. Este (the hatter) imaginou uma insígnia
(sign-board) para sua loja: a imagem de um chapéu
e, abaixo, uma inscrição: “John Thompson, hatter,
makes and sells hats for ready money”.8 Um amigo
lhe sugere apagar hatter: tanto melhor, efetivamen-
te, visto que makes hats é suficientemente explícito.
Outro lhe propõe suprimir makes hats, pois o com-
prador pouco se importa em saber quem faz os cha-
péus, desde que eles lhe agradem. Essa “deleção” é
particularmente interessante, ela apaga a marca as-
sinante do produtor. O terceiro amigo – são sempre
os amigos que incitam a apagar – convida-o a fazer
a economia de for ready money, pois é habitual que
8
“John Thompson, chapeleiro, faz e vende chapéus por dinheiro em
espécie.”
18
se pague cash; depois, no mesmo movimento, a ris-
car sells hats: seria preciso ser idiota para crer que os
chapéus são doados ou abandonados. Finalmente, a
insígnia comporta apenas uma imagem e, sob o sig-
no icônico em forma de chapéu, um nome próprio,
John Thompson. Nada mais. Seria possível imaginar
outros comércios, e o nome próprio inscrito sob um
guarda-chuva, e até sobre sapatos.
A lenda não diz nada sobre a reação de Jefferson.
Eu o imagino muito indeciso. O relato refletia sua
infelicidade, mas também seu maior desejo. Afinal,
mais interessava um apagamento integral de seu tex-
to que deixasse no lugar, sob um mapa dos Estados
Unidos, somente a nudez de seu nome próprio: texto
instituidor, ato fundador e energia assinante. Preci-
samente no lugar da última instância, em que Deus,
que não dava a mínima para nada disso e sem dúvi-
da zombava de ter representado deus-sabe-quem-ou-
-o-quê no interesse de toda essa boa gente, somente
Deus terá assinado. Sua própria declaração de inde-
pendência. Para atestá-la, nem mais nem menos.
A questão persiste. Como se faz ou se funda um
Estado? E uma independência? E a autonomia de
quem se dá e assina sua própria lei? Quem assina to-
das essas autorizações de assinar?
Apesar da minha promessa, não seguirei por esse
caminho.
Cedendo à facilidade, voltando-me para assuntos
que me são mais próximos, senão mais familiares, fa-
larei de Nietzsche: de seus nomes, de suas assinaturas,
19
dos pensamentos que teve acerca da instituição, do
Estado, dos aparelhos acadêmicos e estatais, da “li-
berdade acadêmica”, das declarações de independên-
cia, dos signos, insígnias e ensinamentos. Nietzsche
hoje, enfim, em Charlottesville, para festejar alguns
aniversários.
20
Lógica da vivente
9
Derrida frequentemente utiliza o idioma original quando faz citações,
querendo, com isso, dar destaque a questão da tradução, que sempre está
em jogo nas suas leituras. Desse modo, optamos por conservar as passa-
gens em alemão tal como aparecem no original.
21
que oscilava no caule. E o povo me disse que a grande
orelha não só era um homem mas um grande homem,
um gênio. Mas eu jamais acreditei no povo, quando ele
falava de grandes homens – e conservei minha crença de
que era um aleijado às avessas, que tinha muito pouco de
tudo e demasiado de uma coisa só.”
Depois que Zaratustra assim falou ao corcunda e
àqueles dos quais era porta-voz e advogado, voltou-se
para seus discípulos, profundamente desanimado, e disse:
“Em verdade, meus amigos, eu caminho entre os
homens como entre pedaços e membros de homens
[Bruchstücken und Gliedmassen]!
“Isso é o mais terrível para meus olhos, encontrar
o homem destroçado [zerstrümmert] e disperso [zers-
treut] como sobre um campo de batalha e matadouro
[Schlacht – und Schlächterfeld].”
— “Da redenção”10
22
ra absoluta; mas que, ao serem rigorosamente acom-
panhados, logo reduzi-los ao silêncio, à tautologia, à
repetição excessiva.
Proponho a vocês, portanto, meu compromisso.
Nos termos da liberdade acadêmica, da li-ber-da-de
a-ca-dê-mi-ca, todo mundo sabe que é pegar ou largar.
Levando em conta o tempo de que disponho, o tédio
do qual quero também me poupar, a liberdade de que
sou capaz e a qual quero preservar, procederei de uma
forma que alguns julgarão aforística e inadmissível,
enquanto outros aceitarão como a lei, e outros ainda
irão julgar não suficientemente aforística, ouvindo-
-me com tais ouvidos (tudo se resume ao ouvido com
o qual vocês podem me escutar11) que a coerência e
a continuidade de meu trajeto lhes terá sido evidente
desde as primeiras palavras, desde o próprio título.
De qualquer maneira, que fique entendido: quem
não quiser mais me seguir está livre. Eu não ensino a
verdade enquanto tal, eu não me transformo no por-
ta-voz diáfano da eterna pedagogia. Eu acerto contas
11
Derrida utiliza dois verbos aqui: écouter, que traduzimos por “ouvir”,
e entendre, que traduzimos por “escutar”. Está em jogo, pois, o sentido
mais comum de audição como possibilidade de “perceber um som pelo
ouvido”, mas também o sentido de “testemunhar, prestar testemunho de
um acontecimento” – por exemplo, uma conferência sobre Nietzsche.
Desse modo, a passagem da “autobiografia” à “otobiografia” implica que
uma escuta, um testemunho, e, portanto, uma interpretação, marcam até
aquela que seria a relação mais imediata e mais pura, a relação a si, suposta
no prefixo “auto”. Essa escuta, ou este ouvido – oto – problematiza a co-
municação como mera transmissão de sentido, rasurando os limites que
separam o “eu” e o “outro”, o “autor” e o “leitor” etc., e fazendo com que
o sentido se enrede em um labirinto – o do ouvido.
23
como posso com certo número de problemas, com vo-
cês e comigo ou comigo e, através de vocês, comigo e
com mim mesmo, com um certo número de instâncias
aqui representadas. Não pretendo subtrair à exibição
ou à cena o lugar que aqui ocupo. Nem mesmo isso
que chamarei rapidamente, pedindo a vocês que deslo-
quem um pouco o seu sentido e o escutem com outros
ouvidos, a demonstração auto-biográfica com a qual eu
gostaria de ter certo prazer, como se eu desejasse que
vocês aprendessem comigo esse prazer.
A chamada “liberdade acadêmica”, o ouvido e a
autobiografia, eis meus objetos – para esta tarde.
Um discurso sobre a vida-a-morte deve ocupar
certo espaço entre o logos e o grama, a analogia e o
programa, os diferentes sentidos do programa e da
reprodução. E, uma vez que a vida está em jogo, o
traço que relaciona o lógico ao gráfico deve também
operar entre o biológico e o biográfico, o tanatológico
e o tanatográfico.
Sabe-se que tudo isso se encontra hoje submetido
a reavaliação, tudo isso, quer dizer, o biográfico e o
autos do autobiográfico.
Não consideramos mais a biografia de um “fi-
lósofo” – como um corpus de acidentes empíricos
que deixam um nome e uma assinatura fora de um
sistema que seria oferecido a uma leitura filosófica
imanente – a única considerada filosoficamente le-
gítima: toda uma incompreensão acadêmica acerca
da exigência textual ajustada aos limites mais tradi-
cionais do escrito, inclusive da “publicação”. Desse
24
modo, pode-se, por outro lado, escrever as “vidas-
-dos-filósofos”, romances filosóficos em estilo orna-
mental e estereotipado aos quais se resignam às vezes
grandes historiadores da filosofia. Romances biográ-
ficos ou psicobiografias que pretendem dar conta da
gênese do sistema segundo os processos empíricos de
tipo psicologista, mesmo psicanalicista, historicista
ou sociologista. Não, uma nova problemática do bio-
gráfico em geral, da biografia dos filósofos em par-
ticular, deve mobilizar outros recursos, e ao menos
uma nova análise do nome próprio e da assinatura.
Nem as leituras “imanentistas” dos sistemas filosó-
ficos, quer sejam estruturais ou não, nem as leituras
empírico-genéticas externas jamais, enquanto tais,
interrogaram a dynamis dessa beira entre a “obra” e a
“vida”, o sistema e o “sujeito” do sistema. Essa beira
– eu a chamo dynamis por sua força, seu poder, sua
potência virtual e também móvel – não é ativa nem
passiva, nem fora nem dentro. Sobretudo, ela não é
uma linha tênue, um traço invisível ou indivisível
entre o invólucro dos filosofemas de um lado, e do
outro lado a “vida” de um autor já identificável sob
seu nome. A beira divisível atravessa os dois “corpos”,
o corpus e o corpo, segundo leis que nós apenas co-
meçamos a entrever.
Isso a que chamamos vida – coisa ou objeto da
biologia e da biografia – não defronta, e é a primeira
complicação, algo que seja para ela um objeto opo-
nível, a morte, o tanatológico ou o tanatográfico. A
“vida” também sofre ao se tornar objeto de uma ciên-
25
cia, no sentido que a filosofia e a ciência sempre de-
ram a essa palavra, como ao estatuto legal da cientifi-
cidade. O sofrimento, os atrasos que ele implica, tudo
isso considera particularmente o fato de que uma fi-
losofia da vida sempre tem uma morada preparada na
ciência da vida. Esse não é o caso de todas as outras
ciências, ciências da não vida, em outras palavras, de
mortos. Daí decorreria que todas as ciências que con-
quistam sua cientificidade sem atraso nem resíduo
são ciências do morto; e que há entre o morto e o
estatuto de objeto científico uma coimplicação que
nos interessa, e que interessa ao desejo de saber. Se
assim for, o sujeito dito vivo do discurso biológico faz
parte, parte interessada ou parte preconceituada, do
campo investido, com a enorme aquisição filosófica,
ideológica, política, com todas as forças que nele tra-
balham, com tudo aquilo que se potencializa na sub-
jetividade de um biólogo ou de uma comunidade de
biólogos. Todas essas avaliações marcam a assinatura
douta e inscrevem o bio-gráfico no biológico.
Ora, o nome de Nietzsche talvez seja, para nós,
no Ocidente, o daquele que foi o único (talvez com
Kierkegaard, e com Freud, mas de outro modo) a tra-
tar a filosofia e a vida, a ciência e a filosofia da vida
com seu nome, em seu nome. O único, talvez, a pôr em
jogo seu nome – seus nomes – e suas biografias. Com
quase todos os riscos que isso implica: para “ele”, para
“eles”, para suas vidas, seus nomes e seu porvir, e sin-
gularmente para o porvir político disso que ele dei-
xou por assinar.
26
Como não levar em conta esse aspecto ao lê-lo? Só
é possível lê-lo levando isso em conta.
Pôr em jogo seu nome (com tudo o que nele está
comprometido e que não se resume a um eu), pôr em
cena as assinaturas, fazer de tudo o que se escreveu
sobre a vida ou a morte uma imensa rubrica biográ-
fica, eis o que ele teria feito, e é disso que devemos
tomar nota. Não para lhe devolver o benefício: em
primeiro lugar, ele está morto, ele, evidência trivial,
mas no fundo um tanto incrível, e o gênio do nome
está lá para nos fazer esquecê-la. Estar morto signi-
fica, ao menos, que nenhum benefício ou malefício,
calculado ou não, jamais retorna ao portador do
nome, mas unicamente ao nome, por isso o nome,
que não é o portador, é sempre e a priori um nome de
morte. Isso que retorna ao nome não retorna jamais
ao vivo, nada retorna ao vivo. Em seguida nós não
lhe concederemos o benefício porque o que ele legou,
em seu nome, se parece, como todo legado (escutem
esta palavra com o ouvido que quiserem), com um
leite envenenado que se misturou de antemão – nós
vamos recordá-lo em um instante – com o pior de
nossos tempos. E não se misturou por acaso.
Eu não lerei Nietzsche – que se diga isso antes de
abrir qualquer um de seus escritos – nem como um fi-
lósofo (do ser, da vida ou da morte), nem como um eru-
dito, nem como um biólogo, se esses três tipos têm em
comum a abstração do bio-gráfico, e a pretensão de não
comprometer sua vida e seu nome em seus escritos. Por
ora, lerei Nietzsche a partir de Ecce Homo. Ele põe seu
27
corpo e seu nome em destaque, mesmo quando avança
sob máscaras e pseudônimos sem nomes próprios, más-
caras ou nomes plurais que só podem se oferecer ou se
produzir, como toda máscara e mesmo toda teoria do
simulacro, ao render sempre um benefício de proteção,
uma mais-valia em que se reconhece ainda a artimanha
da vida. Artimanha perdedora desde o momento em
que a mais-valia não retorna mais ao vivo, mas ao nome
dos nomes e à comunidade de máscaras.
Eu o lerei a partir do que diz ou se diz Ecce Homo
(citação), e “Wie man wird, was man ist”, como se
tornar o que se é. Eu o lerei a partir do prefácio a Ecce
Homo sobre o qual vocês podem dizer ser coextensivo
a toda a obra, se bem que toda a obra prefacia tam-
bém Ecce Homo e se encontra repetida no que é cha-
mado, em sentido estrito, o Prefácio de tantas páginas
à obra intitulada Ecce Homo. Vocês conhecem de cor
as primeiras linhas:
28
grandeza de minha tarefa e a pequenez de meus contem-
porâneos manifestou-se no fato de que não me ouviram,
sequer me viram. Vivo de meu próprio crédito [eu estou
vivendo sobre meu próprio crédito, sobre o crédito que
abro e concedo a mim mesmo: Ich lebe auf meinen eig-
nen Kredit hin]; seria um mero preconceito [Vielleicht
bloss ein Vorurteil] que eu viva [dass ich lebe]?
29
contemporâneos lhe abriram ou lhe recusaram sob
o nome de F.N. Esse nome é já um falso nome, um
pseudônimo e um homônimo que viriam dissimular,
sob a impostura, o outro Friedrich Nietzsche. Ligado
a esses tenebrosos assuntos de contrato, de dívida e
crédito, a pseudonímia nos induz a desconfiar desme-
didamente quando nós acreditamos ler a assinatura,
o autógrafo ou a rubrica de Nietzsche, a cada vez que
ele declara: eu, o que subscreve, F.N.
Ele nunca sabe no presente, com um saber presente, e
mesmo do presente de Ecce Homo, se o crédito desmesu-
rado que abre para si mesmo, em seu nome, mas também
necessariamente em nome de um outro, será honrado.
Logo se prevê o resultado: se a vida que ele vive e conta
para si mesmo (“autobiografia”, dizem eles) é, antes de
tudo, sua vida apenas sob o efeito de um contrato secre-
to, de um crédito aberto e codificado, de um endivida-
mento, de uma aliança ou de um anel, então, enquanto
o contrato não for honrado, e ele só o será pelo outro, por
exemplo, você, Nietzsche pode escrever que sua vida tal-
vez não passe de um preconceito, “es ist Vielleicht ein Vo-
rurteil dass ich lebe...”. Um preconceito, a vida, ou, mais
que a vida, a minha vida, este “que eu vivo”, o “eu-vivo”
no presente. É um pré-conceito, uma sentença, uma pa-
rada precipitada, uma antecipação arriscada; ela só pode-
rá ser verificada no momento que o portador do nome,
aquele a que se chama por preconceito um vivente, esteja
morto. Depois ou durante a sentença de morte. E, se a
vida retorna, ela retorna ao nome, e não ao vivente, ao
nome do vivente como nome do morto.
30
“Ele” tem a prova de que o “eu vivo” é um pre-
conceito (e, portanto, pelo efeito de assassinato que
se segue a priori, um prejuízo) ligado ao porte do
nome, à estrutura de todo nome próprio. Ele disse
que tem a prova: a cada vez que interroga qualquer
“pessoa culta” (Gebildeten) vinda à Alta Engadina. O
nome de Nietzsche lhes é desconhecido; aquele que
se chama “Nietzsche” detém então a prova de que ele
não vive presentemente:
13
Ecce Homo, “Prólogo”, p. 17.
31
Ao dizer “ich bin der und der”, ele vai, ao que parece,
contra o instinto de dissimulação. Isso nos faria pen-
sar, por um lado, que seu contrato contraria sua natu-
reza; ao se violentar ele se compromete a honrar um
crédito em nome do nome, em seu nome e em nome
do outro. Mas, por outro lado, essa exibição autoapre-
sentativa do “ich bin der und der” poderia bem conti-
nuar sendo uma artimanha da dissimulação. Ela nos
enganaria outra vez se a entendêssemos como uma
simples apresentação de identidade, supondo que já
saibamos o que está envolvido em uma apresentação
de si e em uma declaração de identidade (“Eu, fula-
no”, “eu, fulana”, sujeito individual ou coletivo, “Eu,
a psicanálise”, “Eu, a metafísica”).
Tudo o que se dirá em seguida sobre a verdade deve-
rá ser reavaliado a partir dessa questão e dessa inquieta-
ção. Não basta abalar nossas seguranças teóricas sobre
a identidade e sobre o que acreditamos saber acerca de
um nome próprio. Muito depressa, na página seguin-
te, Nietzsche apela para sua “experiência” e suas “an-
danças pelo proibido” (Wanderung im Verbotenen): elas
o ensinaram a considerar de forma muito diferente as
causas (Ursache) da idealização e da moralização; e ele
acompanhou a revelação da “história oculta” (verborge-
ne Geschichte) dos filósofos – ele não diz da filosofia – e
a “psicologia de seus grandes nomes”.
Que o “eu vivo” seja garantido por um contrato
nominal cujo termo supõe a morte daquele que diz
“eu vivo” no presente; que a relação de um filóso-
fo com seu “grande nome”, ou seja, com o que mar-
32
geia um sistema de sua assinatura, participe de uma
psicologia, e uma psicologia tão nova que não pode
mais ser lida no sistema da filosofia como uma de
suas partes, nem na psicologia como região da enci-
clopédia filosófica; que isso seja enunciado no prefá-
cio assinado “Friedrich Nietzsche” de um livro inti-
tulado Ecce Homo e cujas últimas palavras são “Fui
compreendido? – Dioniso contra o crucificado” (gegen
den Gekreuzigten), Nietzsche, Ecce Homo, o Cristo,
mas não o Cristo, nem sequer Dioniso, mas antes o
nome do contra, o contranome, o combate travado
entre os dois nomes, eis o que basta para pluralizar
singularmente o nome próprio e a máscara homoní-
mica; e para desencaminhar para um labirinto, o do
ouvido, claro, todos os filhos do nome. Procurem as
bordas, os muros, os corredores.
Entre o prefácio, assinado F.N., que vem sob o tí-
tulo, e o primeiro capítulo “Por que sou tão sábio”,
uma única página: um aperitivo, uma epígrafe, pági-
na avulsa cujo topos, como sua temporalidade, desloca
estranhamente o que, na nossa tranquila segurança,
desejaríamos compreender como o tempo da vida e o
tempo de contar a vida, da escrita da vida pelo viven-
te, em suma, o tempo da autobiografia.
A página é datada. Datar é assinar. E “datar em” é
também indicar o lugar da assinatura. De certa ma-
neira a página está datada, pois ela diz “hoje”, e hoje
meu “aniversário”. O aniversário é o instante no qual
o ano volta-se sobre si mesmo, forma consigo pró-
prio um anel, anula-se e recomeça. O ano em que
33
faço quarenta e quatro anos, a data em que completo
quarenta e quatro anos. Mais ou menos o meio da
vida. É nessa idade que se costuma situar o apogeu (o
meio-dia) da vida e também a crise da meia-idade, no
momento central de um dia imenso, em que o sol está
a pino e não há sombras.
A epígrafe começa assim: “An diesem vollkommnen
Tage, wo alles reift, neste dia perfeito, em que tudo ama-
durece e não só a videira doura, caiu-me na vida um
raio de sol [me caiu sobre a vida, me caiu como se por
acaso: fiel mir eben ein Sonnenblick auf mein Leben]”.14
Esse é um momento sem sombra, em consonância
com todos os “meios-dias” de Zaratustra. Momento
de afirmação que retorna como o aniversário a partir
do qual se pode olhar para frente e para trás de uma
só vez. A sombra de toda negatividade desapareceu:
“Olhei para trás, olhei para frente, jamais vi tantas e
tão boas coisas de uma só vez”.
O meio-dia, no entanto, soa como a hora de um
enterro. Jogando com a linguagem corrente, ele en-
terra seus quarenta e quatro anos; mas o que ele enter-
ra é a morte, e ao enterrar a morte ele salvou a vida – e
a imortalidade:
14
Ecce Homo, página sem numeração no original.
34
O primeiro livro da Transvaloração de todos os valo-
res [Umwertung aller Werte], as Canções de Zaratus-
tra [Lieder de Zarathoustra], o Crepúsculo dos ídolos
[Götzen-Dämmerung], meu ensaio de filosofar com o
martelo – todas dádivas [Geschenke] desse ano, aliás
de seu último trimestre! Como não deveria ser grato
à minha vida inteira? – E assim me conto minha vida.
Und so erzähle ich mir mein Leben.15
15
Ibidem, página sem numeração no original.
16
“E assim me conto minha vida.”
35
enterra o morto e salva o salvo como imortal não é
auto-biográfico porque o signatário conta a sua vida,
o retorno de sua vida passada como vida, e não como
morte; mas porque ele se conta essa vida, ele é o pri-
meiro senão o único destinatário da narrativa. No
texto. E como o “eu” desse relato é destinado somente
no crédito do eterno retorno, ele não existe, ele não
assina, ele não começa antes do relato como eterno
retorno. Até aqui, até o presente, eu não passo talvez,
vivente, de um preconceito. É o eterno retorno que
assina, ou que sela.
Vocês não podem, portanto, pensar o nome ou os
nomes de Friedrich Nietzsche, vocês não podem escu-
tá-los antes da reafirmação do hímen, antes do anel
ou da aliança do eterno retorno. Vocês não escutarão
nada de sua vida, nem de sua-vida-sua-obra antes do
pensamento do “sim, sim” dado ao dom (Geschenk)
sem sombra, à maturidade do meio-dia, sob a taça
transbordante de sol. Ouçam outra vez a abertura de
Zaratustra.
Daí a dificuldade de determinar a data desse
acontecimento. Como situar a vinda de um relato
auto-biográfico que obriga, como o pensamento do
eterno retorno, a deixar vir outramente a vinda de
todo acontecimento? Essa dificuldade se propaga por
toda parte em que se procura determinar: datar um
acontecimento, sim, mas também identificar o co-
meço de um texto, a origem da vida ou o primeiro
movimento de uma assinatura. Outros tantos pro-
blemas de beira.
36
A estrutura de epígrafe em beira, ou de beira em
epígrafe, não pode deixar de se reinscrever por toda
parte em que se trata da questão da vida, da “minha
vida”. Entre um título ou um prefácio, de um lado,
e o livro por vir, de outro, entre o título Ecce Homo e
Ecce Homo “ele mesmo”, a estrutura de epígrafe situa
o lugar a partir do qual a vida será recitada, isto é,
reafirmada, sim, sim, amém, amém, devendo retornar
eternamente (seletivamente, como viva, e não como o
morto nela, que é preciso enterrar), a vida aliada a ela
mesma pela aliança de casamento. Tal lugar não está
nem na obra nem na vida do autor, ele é uma epígra-
fe. Ao menos não de maneira simples, pois tampouco
lhes é exterior. Nele se repete a afirmação: sim, sim,
eu aprovo, eu assino, eu subscrevo esse reconhecimen-
to de dívida “comigo mesmo”, com a “minha vida”
– e eu quero que isso retorne. O lugar enterra até a
sombra de toda negatividade, é meio-dia. O tema da
epígrafe ressurge mais tarde, no capítulo “Por que es-
crevo tão bons livros”, e faz da preparação do “grande
meio-dia” uma promessa, uma dívida, um “dever”,
“Minha tarefa de preparar para a humanidade um
instante de suprema tomada de consciência, um gran-
de meio-dia em que ela olhe para trás e adiante [wo sie
zurückschaut und hinausschaut]...” (Morgenröte, II).17
Mas o meio-dia da vida não é um lugar, ele não
tem lugar. E por isso não é um momento, mas tão
somente um limite que imediatamente desaparece.
17
Ecce Homo, p. 79.
37
E então ele retorna todos os dias, sempre, a cada
dia, a cada volta do anel. Sempre antes de meio-
-dia, depois de meio-dia. Se só se tem o direito de
ler a rubrica de F.N. nesse instante, no instante em
que ele assina “meio-dia, sim, sim, eu e eu que me
recito minha vida”, logo vocês percebem o impos-
sível protocolo de leitura e sobretudo de ensino; e
o que pode haver de ridiculamente tolo, mas tam-
bém de tenebroso, de obscuro e dissimulado assun-
to de sombra, ao se declarar: Friedrich Nietzsche
disse isto ou aquilo, pensou isto ou aquilo disto ou
daquilo, da vida, por exemplo, no sentido da exis-
tência humana ou no sentido biológico. Friedrich
Nietzsche ou quem seja depois do meio-dia, este ou
aquele, eu, por exemplo.
Eu não lerei Ecce Homo com vocês. Deixo aqui
a advertência sobre o lugar da epígrafe, sobre a do-
bra que ele forma, segundo um limite inaparente: já
não há mais sombra, e todos os enunciados, antes
e depois, à esquerda e à direita, são de uma só vez
possíveis (Nietzsche disse mais ou menos tudo) e ne-
cessariamente contraditórios (ele disse as coisas mais
incompatíveis entre si, e ele disse que as disse). Dessa
duplicidade contraditória, uma indicação apenas, an-
tes de abandonar Ecce Homo.
O que ocorre imediatamente após essa espécie
de “epígrafe”, após essa data (pois é uma data: as-
sinatura, recordação de um aniversário, celebração
dos dons ou das dádivas, reconhecimento de dívi-
da)? Após a “data”, o primeiro capítulo (“Por que
38
sou tão sábio”) começa, vocês sabem, pelas origens
da “minha” vida: meu pai e minha mãe, ou seja,
mais uma vez o princípio de contradição em mi-
nha vida, entre o princípio de morte e o princípio
de vida, o fim e o começo, o baixo e o alto, o de-
generescente e o ascendente etc. Essa contradição é
minha fatalidade. Ora, ela está de acordo com mi-
nha genealogia, com meu pai e com minha mãe,
com aquilo que, na forma de enigma, eu recuso,
como a identidade de meus pais: em uma palavra,
meu pai morto, minha mãe viva, meu pai o morto
ou a morte, minha mãe a vivente ou a vida. Quan-
to a mim, estou entre os dois; isso me coube, é
um “acaso”, e, nesse lugar, minha verdade, minha
dupla verdade tem um pouco dos dois. Já se sabe
bem: “A fortuna de minha existência [Das Glück
meines Daseins], sua singularidade talvez [ele diz
“talvez” e, portanto, reserva a possibilidade de que
a situação incerta tenha um caráter paradigmático
ou exemplar], está em sua fatalidade: eu diria, em
forma de enigma [Rätselform], que como meu pai
já morri [als mein Vater bereits gestorben], e como
minha mãe ainda vivo e envelheço [als meine Mut-
ter lebe ich noch und werde alt]”. [Modifico a tra-
dução de Vialatte que destrói aqui o essencial ao
dizer: “Em mim meu pai está morto, mas minha
mãe vive e envelhece!”.18
18
Ecce Homo, p. 23.
39
Enquanto sou19 meu pai, estou morto, sou o morto
e sou a morte. Enquanto sou minha mãe, sou a vida
que persevera, o vivente, a vivente. Eu sou meu pai,
minha mãe e eu, e eu que sou meu pai minha mãe
e eu, meu filho e eu, a morte e a vida, o morto e a
vivente etc.
Eis o que eu sou, um tal, uma tal; ich bin der und
der quer dizer tudo isso, e vocês não poderão escutar
meu nome se não o escutarem com esse ouvido, como
o do morto e da vivente, o nome duplo e dividido
do pai morto e da sobrevivente, da mãe que sobrevi-
ve, e me sobreviverá até me enterrar. Sobrevivente é a
mãe, sobrevivência é o nome da mãe. A sobrevida é a
minha vida que ela transborda, e o nome de minha
morte, de minha vida morta, eis o nome de meu pai,
ou também meu patronímico.
Não seria preciso levar em conta essa cena irre-
presentável toda vez que se pretende identificar um
enunciado assinado F.N.? E os enunciados que acabo
de ler ou de traduzir não pertenceriam ao gênero da
autobiografia em sentido estrito. Decerto não é fal-
so dizer que Nietzsche fala de seu pai e de sua mãe
“reais”, por assim dizer, mas fala deles “in Rätselform”:
simbolicamente, por enigma, ou seja, sob a forma de
uma lenda proverbial e como um relato pleno de en-
sinamento.
19
A expressão je suis guarda sempre um duplo sentido. Por um lado, “eu
sou”, por outro, “eu sigo”. A mesma ambiguidade aparece no título do
livro de Derrida, L’Animal que donc je suis.
40
Quais são, assim, as consequências da dupla ori-
gem? O nascimento de Nietzsche, no duplo sentido da
palavra “nascimento” (ato de nascer e linhagem), é ele
mesmo duplo. Dá à luz, a partir de um casal singular,
a morte e a vida, o morto e a vivente, o pai e a mãe.
O duplo nascimento explica quem eu sou e como eu
determino minha identidade: dupla e neutra.
Essa dupla ascendência [Diese doppelte Herkunft],
como que do mais elevado e do mais rasteiro degrau
da vida, a um tempo décadent e commencement – isso
explica, se é que algo explica, tal neutralidade, tal au-
sência de partidarismo em relação ao problema glo-
bal da vida que acaso me distingue. Para os sinais de
ascensão e de declínio [literalmente: nascer e se pôr,
como se diz do sol, für die Zeichen von Aufgang und
Niedergang, do que sobe e do que desce, do alto e do
baixo] tenho um sentido mais fino [estejam atentos
ao que ele sempre diz acerca da caça, das trilhas e de
suas narinas] do que jamais teve homem algum, nis-
to sou o mestre par excellence – conheço ambos, sou
ambos, ich kenne beides, ich bin beides.20
Eu sou um mestre, o mestre, o professor (Lehrer)
“par excellence” (em francês no texto, como também
estava “décadent”). E eu conheço, eu sou os dois, seria
preciso dizer o dois, o dual ou o duplo, eu conheço o
que sou, o dois, a vida o morto. Dois, é a vida o mor-
to. Quando eu digo: não confundam, eu sou der und
der, isto é, o morto a vivente. E é preciso ler na língua,
20
Ecce Homo, p. 23.
41
não na tradução de Vialatte, por exemplo: “Eu os co-
nheço, eu encarno ambos!”.
Lógica do morto, lógica da vivente, eis a aliança
segundo a qual ele transforma suas assinaturas em
enigma, a aliança na qual ele as forja ou as sela – e
as finge: neutralidade demoníaca do meio-dia, liberta
do negativo e do dialético.
“Conheço ambos, sou ambos. – Meu pai morreu
aos trinta e seis anos: ele era suave, amável e mór-
bido, como um ser destinado apenas a passar [wie
ein nur zum Vorübergehn bestimmtes Wesen] – antes
uma bondosa lembrança da vida do que a vida mes-
ma.”21 O filho não sobrevive ao pai após a morte
deste último, mais ainda, o pai já está morto, ele
terá morrido durante sua própria vida. Enquanto pai
“vivo”, ele já não era mais que memória da vida, de
uma vida já anterior. Em outro texto, eu relacionei
essa estrutura elementar do parentesco (o pai morto,
ou antes ausente, já ausente a si mesmo, a mãe viva
antes de tudo e depois de todos, sobrevivente até en-
terrar aquele a quem deu à luz, virgem inacessível
a qualquer idade) a uma lógica do toque fúnebre
e da obsequência. Ela encontrou seus exemplos nas
grandes famílias, a de Cristo (a quem Dioniso aqui
faz face, mas também é seu sósia especular) e a dos
Nietzsche, se se considera que a mãe sobreviveu ao
“colapso”; e em geral em todas as famílias, quando
se “descartam todos os fatos”.
21
Ibidem, p. 23.
42
Antes da cura ou da ressurreição que ele também
relata em Ecce Homo, o filho único teria primeiro re-
petido a morte do pai.
No mesmo ano em que sua vida cedia, também a
minha declinava: aos trinta e seis anos atingi o ponto
mais baixo de minha vitalidade – ainda vivia, sem no
entanto enxergar três passos adiante. Então – era o
ano de 1879 – abandonei minha cátedra na Basileia,
vivi o verão como sombra em St. Moritz e o inverno
seguinte, o mais pobre em sol de minha vida, sendo
sombra [als Schatten] em Naumburg. Esse foi meu
nadir: O andarilho e sua sombra nasceu durante ele.
Indubitavelmente, eu entendia de sombras então...22
Um pouco mais adiante: “Meus leitores sabem tal-
vez até que ponto vejo a dialética como sintoma da
décadence, por exemplo, no mais famoso dos casos: o
caso de Sócrates”.23 Im Fall des Sokrates, pode-se dizer
também em seu casus, seu prazo e sua decadência.
Ele é um Sócrates, o decadente por excelência, mas
também o contrário. É isso que ele determina com
exatidão na abertura do subcapítulo seguinte: “Sem
considerar que sou um decadente, sou também o seu
contrário”. A dupla proveniência, já lembrada no iní-
cio do subcapítulo I, reafirmada e depois explicada no
subcapítulo II, vocês a escutarão também na abertura
do subcapítulo III: “Esta dupla série de experiências,
esta acessibilidade a mundos aparentemente separa-
22
Ecce Homo, p. 23.
23
Ibidem, p. 24.
43
dos repete-se em minha natureza em todo aspecto
– eu sou um sósia [Doppelgänger], possuo também a
‘segunda’ visão, além da primeira. E talvez ainda uma
terceira...”.24 Segunda e terceira visões, e não somente,
como diz em outro lugar, terceiro ouvido. Ele acaba
de nos explicar que, ao traçar o retrato do homem de
boa constituição [wohlgeratenen], é a si mesmo que
descreve: “Pois bem, eu sou o oposto de um decadente:
pois acabo de descrever a mim mesmo”.25
A contradição do “duplo” vai, portanto, além da-
quilo que uma oposição dialética poderia comportar
de negatividade declinante. Aquilo que conta, no fim
das contas e para além das contas, é um certo passo
além. Penso aqui na sintaxe sem sintaxe do passo além
[le pas au-delà]26 de Blanchot: ele aborda a morte na-
quilo que chamarei um pro-cedimento de cruzamento
ou de transgressão impossível. Ecce Homo: “Para com-
preender um pouco que seja do meu Zaratustra, é ne-
cessário estar em condição semelhante à minha – com
um pé além da vida...”.27 Um pé,28 e para além da opo-
sição entre a vida ou o morto, um só passo.
24
Ibidem, p. 26.
25
Idem.
26
No original le pas au-delà. Passagem de difícil tradução, uma vez que o
“pas” significa tanto o passo quanto a negação, o não, de modo que pode-
ríamos traduzi-la por “o passo (não) além”.
27
Ecce Homo, p. 27.
28
N. J. D.: A morte do pai, a cegueira, o pé: pode-se perguntar porque
não falo aqui de édipo, nem de Édipo. Isso foi propositadamente colocado
em reserva para outra sessão diretamente dedicada à temática nietzschiana
do édipo e do nome do Édipo.
44
Do Estado – O signo autógrafo
45
alografia e tanatografia. Nessa différance se enun-
cia justamente, com novo vigor, a questão da ins-
tituição e da instituição de ensino. Era ela que eu
queria introduzir.
A boa-nova do eterno retorno é uma mensagem
e um ensinamento, o endereço ou a destinação de
uma doutrina. Por definição ela não pode se deixar
escutar no presente. Ela é intempestiva, différante e
anacrônica. Mas como a nova repete uma afirmação
(sim, sim), como ela afirma o retorno, o recomeço e
uma certa reprodução que preserva o que retorna, sua
própria lógica deve dar lugar a uma instituição ma-
gistral. Zaratustra é um mestre (Lehrer), ele dispensa
uma doutrina e pretende fundar novas instituições.
Instituições do “sim”. Elas precisam de ouvidos,
mas como?
Ele diz: “Das eine bin ich, das andre sind meine
Schriften”:
46
se ensine tal como entendo o viver e o ensinar: talvez
se criem até cátedras para [apropriadas à: eigene] in-
terpretação do Zaratustra. Mas seria uma enorme con-
tradição, se hoje eu já esperasse ouvidos e mãos para
minhas verdades: que hoje não me ouçam, que hoje
nada saibam receber de mim, é não só compreensível,
parece-me até justo. Não desejo ser confundido [verwe-
chselt, trocado, confundido com um outro] – para tanto,
é preciso que eu mesmo não me confunda.30
30
Ecce Homo, p. 52.
31
N. J. D.: Um exemplo dentre tantos outros: “Todos nós sabemos, al-
guns até por experiência, o que é um bicho de orelhas longas [was ein
Langohr ist]. Pois bem, ouso afirmar que possuo as menores orelhas que
existem. Isso interessa demais às mulherezinhas [Weiblein] – parece-me
que se sentem mais bem compreendidas por mim... Eu sou o anti-asno
par excellence, e com isso um monstro universal – eu sou, em grego e não
só em grego, o Anticristo...”.
47
destinado, é deles que venho e é a eles que me dirijo
etc.) se enlaça com o de “Sobre o futuro...”? Com a
política e as políticas que ali se enredam?
A desfiguração desfigura a língua materna, a profa-
nação profana o corpo da língua materna, eis o crime
contra a vida, a saber, a vivente. Esse crime é perpe-
trado pelas instituições de ensino hoje estabelecidas.
32
“Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino”. In: Escritos
sobre educação. Trad. Noéli Correia de Melo Sobrinho. Rio de Janeiro:
PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2014, p. 81-82. Todas as citações de “Sobre
o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino” foram retiradas desta
edição.
48
Há, portanto, uma lei, que cria obrigações em re-
lação à língua e principalmente à língua na qual se
diz a lei, a língua materna. É a língua vivente (por
oposição ao latim, língua morta e paterna, de uma
outra lei, de uma repressão segunda e sobrevinda, lei
da morte). Com a língua vivente, a língua da vivente,
deve haver contrato e aliança contra a morte, contra
o morto. E, como o contrato, o hímen, a aliança, a
afirmação repetida pertencem sempre à língua, re-
tornam à assinatura da língua – materna, não dege-
nerada, nobre. O desvio por Ecce Homo já teria dado
o que pensar: a história, a ciência histórica que mata
ou trata o morto, que lida com o morto, é a ciên-
cia do pai. Ela ocupa o lugar do morto e o lugar do
pai. É claro, o mestre é também um pai, mesmo o
bom mestre, e mesmo aquele que como último re-
curso prefere o latim ao mau alemão ou à mãe mal-
tratada, mas o bom mestre amestra a serviço da mãe,
de quem é o súdito, faz-se obedecer ao obedecer ele
mesmo à lei da língua materna, ao respeitar a integri-
dade vivente de seu corpo:
33
Ibidem, p. 82-83.
50
plicar os protocolos de leitura quanto a “Sobre o fu-
turo...”, recorrer ao que o próprio Nietzsche ensina
acerca do “crédito” aberto a uma assinatura, do atraso
no vencimento, da différance póstuma entre ele e sua
obra etc.
Aviso logo de saída, não vou multiplicar esses
protocolos para dissimular nada que venha a ser em-
baraçoso neste texto, para “inocentar” seu “autor” e
neutralizar ou desativar o que nele possa ser inquie-
tante para uma pedagogia democrática ou uma po-
lítica de “esquerda”. Nem aquilo que pôde servir de
“linguagem” às mais sinistras palavras de ordem do
nacional-socialismo. Ao contrário, a maior indecên-
cia é indispensável aqui. Vamos mesmo perguntar
por que não basta dizer que “Nietzsche não pensou
isto”, “não o quis”, que ele certamente o teria vomita-
do,34 que há nisso falsificação da herança e mitifica-
34
N. J. D.: Eu digo “vomitar” intencionalmente. Nietzsche lembra sem-
pre: aprender a vomitar, formar assim seu gosto e seu desgosto, saber se
servir de sua boca e de seu paladar, mexer a língua e os lábios, ter bons
dentes, ou dentes fortes, se dar bem ao falar e ao comer (mas não qual-
quer coisa!). Sabe-se, e a palavra Ekel (desgosto, náusea, ânsia de vômito)
vem incessantemente organizar a cena da avaliação. Questões de estilos.
A análise da palavra Ekel e de tudo o que nela se precipita deveria agora
retomar o corpo a corpo de Nietzsche e Hegel, no espaço admiravelmente
desdobrado por Werner Hamacher entre Ekel e Hegel (Pleroma, Ullstein,
1978, in Hegel, Der Geist des Christentums; um fragmento foi publicado
em um número de Diagraphe, em 1981). Nas conferências “Sobre o futuro
dos nossos estabelecimentos de ensino”, é o desgosto que tudo rege, em
primeiro lugar a democracia, o jornalismo, o Estado e sua universidade.
Por exemplo, para nos atermos à ocorrência lexical de Ekel: “É somente
este tipo de ensinamento que pode criar no jovem a aversão física (Ekel)
diante desta chamada ‘elegância’ do estilo, tão amada e tão prezada por
aqueles que trabalham nas usinas do jornalismo e que escrevem roman-
51
-ção interpretativa; perguntaremos por que e como o
que ingenuamente se chama falsificação chegou a ser
possível (e não se tratou de falsificar simplesmente
qualquer coisa), por que e como as “mesmas” pala-
vras e os “mesmos” enunciados, se são os mesmos,
podem servir inúmeras vezes em sentidos e contextos
que se pretendem diferentes, até incompatíveis; per-
guntaremos por que foi nazista a única instituição de
ensino, o único começo de instituição docente que
jamais pôde reivindicar o ensinamento de Nietzsche
sobre o ensino.
Primeiro protocolo. As conferências não pertencem
unicamente ao “póstumo” de que fala Ecce Homo. Sob
o título de póstumo, teriam podido comprometer o
seu autor. Mas são um texto que Nietzsche declarou
52
não querer que fosse publicado, nem depois de sua
morte. Pois se trata de um discurso que ele próprio
interrompeu a meio caminho. O que não quer dizer
que ele o renegou por completo, por exemplo, naquilo
que mais escandalizaria um democrata antinazi atual.
Não esqueçamos, no entanto, que ele “jurou” não pu-
blicar as conferências. Em 25 de julho de 1872, após a
quinta conferência, Nietzsche escreve a Wagner:
35
“Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino”, p. 54.
55
Tendo em conta a cena presente, como devo de mi-
nha parte peneirar esse texto, e o que dele devo reter?
Antes de tudo, o motivo fenício. Mais uma vez, a
destruição da vida não passa de aparência, destruição
da aparência de vida. Enterra-se ou queima-se aquilo
que já está morto para que de suas cinzas renasça e se
regenere a vida, a vivente. O tema vitalista da degene-
rescência/regeneração é ativo e central ao longo de toda
a exposição. Como já vimos, esse processo deve passar
primeiro pela língua, pela prática da língua, pelo tra-
tamento de seu corpo, a boca e o ouvido, entre a língua
materna, natural, vivente, e a paterna, científica, for-
mal, morta. E, uma vez que a questão é o tratamento,
isso envolve necessariamente a educação, a aprendiza-
gem, o amestramento. Ora, a aniquilação (Vernichtung)
do ginásio deve preparar uma renascença (Neugeburt).
(E, seja o que for que ela pense sobre o assunto, a uni-
versidade será apenas o produto ou o desenrolar do que
anteriormente se formou e se programou no liceu. Esse
é o tema mais recorrente das conferências.) A destrui-
ção só destrói aquilo que, já degenerado, se oferece sele-
tivamente à aniquilação. A expressão “degenerescência”
designa, por sua vez, a perda da força vital, genética
ou generosa, e a do tipo, da espécie ou do gênero, a
Entartung. Ela reaparece frequentemente para caracte-
rizar a cultura, e especialmente a cultura universitária
quando ela se torna estatal e jornalística. Ora, esse con-
ceito de degenerescência tem, já tem, vocês dirão, a es-
trutura que “terá” nas análises ulteriores, por exemplo,
na Genealogia da moral. A degenerescência não deixa
56
que a vida se perca por um declínio regular e contínuo,
segundo um processo homogêneo. Ela é iniciada por
uma inversão de valor, quando um princípio hostil e
reativo se torna propriamente o inimigo ativo da vida.
O degenerado não é uma vitalidade menor, ele é hostil
à vida, é um princípio de vida hostil à vida.
A palavra “degenerescência” se multiplica sobretu-
do na quinta conferência, a última. É lá que são defi-
nidas as condições do sobressalto regenerador. À for-
mação democrática e niveladora, à pretensa liberdade
acadêmica na universidade, à máxima extensão da
cultura devem suceder a constrição, o amestramento
(Zucht), a seleção sob a direção de um guia, de um
Führer e mesmo de um grossen Führers. É a condição
para salvar o espírito alemão de seus inimigos, esse
espírito “virilmente sério” (männlich ernsten), grave,
duro e audaz, mantido são e salvo desde a Reforma,
a de “Lutero filho de mineiro”. É preciso restaurar a
universidade alemã como instituição de cultura
36
“Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino”, p. 157.
57
Ora, todo o infortúnio dos estudantes de hoje se
explica pelo fato de que eles não encontraram um
Führer. Eles permanecem führerlos, sem guia.
37
Ibidem, p. 158.
58
permanece), desde o Führer nietzscheano, que não é
tão somente um mestre de doutrina e de escola, até o
Führer hitleriano, que se queria também um mestre
do pensamento, um guia de doutrina e de formação
escolar, um professor da regeneração. Seria tão limi-
tado, além de politicamente soporífero, quanto dizer:
Nietzsche nunca quis algo assim, nunca pensou isso,
ele teria vomitado ou não entendia as coisas dessa for-
ma, não com esse ouvido. Mesmo se isso pudesse ser
verdadeiro, haveria poucas razões para se interessar
pela hipótese (que examino aqui sob o ângulo de um
corpus muito restrito cujas outras complicações ponho
de lado): em primeiro lugar porque Nietzsche morreu,
como sempre, antes de seu nome, e não se trata de ten-
tar saber aquilo que ele teria pensado, querido ou feito;
temos toda razão para crer que, de todo modo, a coisa
era bastante complicada, e o exemplo de Heidegger nos
dá muito o que pensar acerca desse assunto. Depois,
os efeitos ou a estrutura de um texto não se reduzem a
sua “verdade”, ao querer-dizer de seu presumido autor,
tampouco ao de um signatário pretensamente único
e identificável. E, mesmo se o nazismo, longe de ser a
regeneração evocada por essas conferências de 1872,
foi apenas um sintoma da decomposição acelerada da
cultura e da sociedade europeias assim diagnosticadas,
falta ainda explicar que a degenerescência reativa pode
explorar a mesma linguagem, as mesmas palavras, os
mesmos enunciados, as mesmas palavras de ordem
que as forças ativas às quais ela se opõe. O fenômeno
não escapou a Nietzsche, como se sabe, nem essa ar-
59
timanha especular. A questão que se coloca para nós
teria talvez a seguinte forma: não deveria haver uma
poderosa máquina de produção de enunciados que,
em um conjunto dado (toda a dificuldade se concen-
tra na determinação desse conjunto, que não pode ser
simplesmente linguístico ou lógico, nem simplesmen-
te histórico-político, econômico, ideológico, psicofan-
tasmático etc., ao qual nenhuma instância regional
possa deter, nem sequer a da “última instância” que
pertence à filosofia ou à teoria, subconjuntos desse
conjunto), programe de uma vez os movimentos das
duas forças contrárias e que as acople, as combine,
combine como a-vida-a-morte? Nenhuma das duas
forças antagônicas pode romper com essa poderosa
máquina programadora, elas lhe estão destinadas,
encontram nela sua procedência, seus recursos, nela
trocam seus enunciados, deixando que se embara-
lhem uns aos outros com um ar de familiaridade, por
mais incompatíveis que por vezes possam parecer. É
evidente que a “máquina” não é mais uma máquina
em sentido classicamente filosófico, pois que a “vida”
está nela ou dela faz parte, e porque ela joga com a
oposição vida/morte. Tampouco o “programa” é um
programa no sentido teleológico ou mecanicista do
termo. A “máquina programadora” que me interessa
aqui não apela somente para a decifração, mas tam-
bém para a transformação, a reescrita prática, segun-
do uma relação teoria/prática que, na medida do pos-
sível, não faça mais parte do programa. Não basta
dizer. E se fosse possível a reescrita transformadora
60
do grande programa; se fosse possível, ela não se pro-
duziria nos livros (não retornarei àquilo que foi tantas
vezes dito em outros lugares acerca da escrita em ge-
ral), por meio de leituras ou de cursos e conferências
sobre os escritos de Nietzsche, de Hitler e dos ideólo-
gos nazistas de antes da guerra ou atuais. Para além
de toda regionalidade (histórica, político-econômica,
ideológica etc.), trata-se da Europa e não somente da
Europa, deste século e não somente deste século, e
inclui o “presente” no qual estamos, até certo ponto,
e no qual assumimos posição ou partido.
Suponham a seguinte objeção: atenção, os enun-
ciados de Nietzsche não são iguais aos dos ideólogos
nazistas, e não somente porque os segundos caricatu-
ram grosseiramente os primeiros até o limite da ma-
caqueação. Se não nos contentamos em tomar esta
ou aquela sequência curta, se reconstituímos toda a
sintaxe do sistema na delicadeza sutil de suas arti-
culações e os paradoxos de suas inversões etc., bem
se verá que isso que passa pelo “mesmo” enunciado
diz exatamente o contrário, ele corresponde ao in-
verso, à inversão reativa daquilo mesmo que imita.
Falta ainda dar conta dessa possibilidade de inversão
e de perversão mimética. Quando se proíbe de fazer
da distinção entre os programas inconscientes e os
programas deliberados um critério absoluto (nós já o
explicamos), quando não se leva mais em conta ape-
nas o querer-dizer – consciente ou não – para ler um
texto, a simplificação perversora deve ter a lei de sua
possibilidade na estrutura do texto “restante”, pelo
61
que não mais entendemos a substância persistente
dos livros dos quais se diz scripta manent. Mesmo se
o querer-dizer de um dos signatários ou dos acioná-
rios da grande sociedade anônima, “Nietzsche”, não
tivesse nada a ver com isso, não pode ser totalmente
fortuito o fato de que o discurso que, na sociedade
e segundo as normas civis e editoriais, sustenta seu
nome tenha servido de referência legitimadora aos
ideólogos; não há nada de absolutamente contingen-
te no fato de que a única política que efetivamente
o brandiu como um emblema maior e oficial tenha
sido a política nazista.
Com isso não digo que essa política “nietzschia-
na” seja para todo o sempre a única possível, nem que
ela corresponda à melhor leitura da herança; tampou-
co digo que os que a ela não se referiram a tenham
lido melhor. Não. O futuro do texto-Nietzsche não
está fechado. Mas, se nos contornos ainda abertos de
uma época, a única política que se intitula, que se
auto-intitula nietzschiana, foi nazista, isso é necessa-
riamente significativo e deve ser interrogado em todo
o seu alcance.
Não que, sabendo ou acreditando saber o que é o
nazismo, nós devêssemos, a partir disso, reler “Niet-
zsche” e sua grande política. Não creio que ainda sai-
bamos pensar o que é o nazismo. Essa tarefa continua
posta para nós, e a leitura política do corpo ou do
corpus nietzschiano dela faz parte. Eu diria o mes-
mo acerca do corpus heideggeriano, ou marxiano, ou
freudiano – e de tantos outros.
62
Em suma, a grande política nietzschiana fracas-
sou, ou ela ainda está por vir, para além de um sismo
no qual o nacional-socialismo ou o fascismo terão
sido apenas episódios?
Eu guardei uma passagem de Ecce Homo. Ela dá a
entender que só leremos o nome de Nietzsche quando
a grande política entrar efetivamente em jogo. Nesse
ínterim, enquanto esse nome ainda não foi lido, toda
questão acerca do caráter nietzscheano ou não de tal
ou qual sequência política será vã. O nome ainda tem
todo o seu porvir. Eis a passagem:
38
Ecce Homo, p. 109-110.
64
marxismo de esquerda – um pode sempre ser o outro,
o duplo do outro.
Há “no interior” do corpus nietzscheano algo que
possa nos ajudar a compreender a dupla interpretação
e a dita perversão do texto? A quinta conferência nos
diz que deve haver algo de unheimlich39 na repressão
(Unterdrückung) pela força das necessidades menos
degeneradas. Por que “unheimlich”? Essa é outra for-
ma da mesma questão.
Unheimlich é o ouvido, unheimlich isso que ele é,
duplo, isso que ele pode se tornar, grande ou peque-
no, isso que ele pode fazer ou deixar fazer (deixar, de
fato, pois é o órgão mais oferecido, o mais aberto,
recorda Freud, aquele que o bebê não pode fechar), a
maneira pela qual se pode aguçá-lo ou prestar aten-
ção. É a ele que fingirei me dirigir, eu mesmo, para
concluir agora lhes falando outra vez ao ouvido,
como foi prometido, da “liberdade acadêmica”, da
minha e da sua.
Quando as conferências parecem recomendar o
adestramento linguístico contra a “liberdade acadêmi-
ca”, aquela que deixa estudantes e docentes livres em
seus pensamentos ou em seus programas, não o fazem
para opor restrição a liberdade. Por trás da “liberdade
acadêmica” se desenha a silhueta de uma restrição tan-
to mais feroz e implacável no que ela se dissimula e se
disfarça de não interferência. Por meio da dita “liber-
dade acadêmica” o Estado controla tudo. O Estado,
39
“Inquietante”.
65
eis o grande acusado nesse processo, e Hegel, o pen-
sador do Estado, um grande nome próprio desse cul-
pado. De fato, a autonomia das universidades, como
daqueles que as habitam, estudantes e professores, é
uma artimanha do Estado, “o mais perfeito organis-
mo ético” (Hegel citado por Nietzsche). O Estado quer
atrair para si funcionários dóceis e incondicionais. Ele
o faz por meio de controles estritos e restrições rigoro-
sas que aqueles creem dar a si mesmos, na autonomia.
Assim, é possível ler essas conferências como uma crí-
tica moderna aos aparelhos culturais de Estado e a esse
aparelho de Estado fundamental que era, mesmo na
sociedade industrial de ontem, o aparelho escolar. Que
hoje ele esteja a ponto de ser parcialmente substituído
pelas mídias e parcialmente associado a elas, eis o que
torna tão mais notável a crítica ao jornalismo do qual
Nietzsche nunca o dissocia. Sem dúvida ele opera a
crítica a partir de um ponto de vista que faria a análise
marxista de tais aparelhos, e mesmo seu conceito orga-
nizador de “ideologia”, parecer outro sintoma de dege-
nerescência, uma nova forma de subjugação ao Estado
hegeliano. Mas é preciso ver as coisas mais de perto
no que diz respeito aos conceitos marxistas de Estado,
a oposição de Nietzsche ao socialismo e à democracia
(“A ciência faz parte da democracia”, diz o Crepúsculo
dos ídolos), a oposição ciência/ideologia etc. Ver mais
de perto tanto de um lado como de outro. Em outro
texto nós acompanhamos o desenvolvimento da crítica
ao Estado até nos fragmentos do Nachlass e no Zara-
tustra (“Do novo ídolo...”):
66
Estado? O que é isso? Pois bem! Abri vossos ouvidos,
pois agora vos falarei sobre a morte dos povos./ Estado
é o nome do mais frio de todos os monstros frios. E de
modo frio ele também mente; e esta mentira rasteja de
sua boca: “Eu, o Estado, sou o povo”./ Isso é mentira
[...]. Confusão de línguas do bem e do mal: este sinal
eu vos dou, como marca do Estado. Na verdade, este
sinal indica vontade de morte! Na verdade, ele acena
para os pregadores da morte! [...] “Nada existe sobre a
Terra que seja maior do que eu: sou o dedo ordenador
de Deus” – assim ruge o colosso. E não apenas aque-
les de vista curta e orelhas compridas se ajoelham! [...]
Estado, chamo eu o lugar onde todos bebem veneno,
bons e ruins: Estado, onde todos perdem a si mesmos,
bons e ruins: Estado, onde o lento suicídio de todos se
chama – “vida”.40
40
Assim falou Zaratustra, p. 48-49.
41
“Dos grandes acontecimentos”.
67
com orelhas pequenas ao melhor mestre e ao melhor
dos guias, vocês se creem livres e autônomos segun-
do o Estado, quando vocês abrem para ele grandes
pavilhões sem saber que ele já é presa das forças rea-
tivas e degeneradas. Tornando-se todo ouvidos para
esse cão fonógrafo, vocês se transformam em postes
receptores de alta-fidelidade, e a orelha, a sua que é
também a do outro, vai ocupar em seu corpo o lugar
desproporcional do “aleijado às avessas” (umgekehr-
ten Krüppels).
É essa a nossa cena? Trata-se do mesmo ouvido,
este que vocês me prestam ou que eu mesmo presto
ao falar, um ouvido de empréstimo? Ou bem nós nos
entendemos, nos escutamos já com um outro ouvido?
O ouvido não responde.
Quem escuta quem aqui? Quem estava escutando
Nietzsche, quando, na quinta conferência, ele em-
prestou voz ao filósofo de sua ficção para descrever
esta cena – por exemplo?
42
“Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino”, p. 146.
69
bras invaginadas, a orificialidade involuta, e o centro
se mantém no fundo de uma cavidade invisível, irre-
quieta, sensível – a todas as ondas, vindas ou não de
fora, emitidas ou recebidas, sempre transmitidas pelo
trajeto de circunvoluções obscuras.
Aquele que emite o discurso que vocês telescre-
vem, nessa situação, não o produz, apenas o emite,
ele o lê. Do mesmo modo que vocês são ouvidos que
transcrevem, o mestre é uma boca que lê, e isso que
vocês transcrevem é, em suma, aquilo que ele decifra
de um texto que o precede, e do qual, por um mesmo
cordão umbilical, ele está suspenso. Eis o que se pas-
sa. Eu leio: “Estes são os momentos em que está preso
pelo cordão umbilical à universidade. Ele pode esco-
lher o que quer ouvir, não precisa acreditar naquilo
que ouve, pode tapar os ouvidos quando não quiser
ouvir. Eis o método de ensino ‘oral’”.43 A própria abs-
tração: o ouvido pode se fechar, é possível suspender
o contato, pois o omphalos de um corpo disjuntado
liga-se a um pedaço dissociado de pai. Quanto ao
professor, quem é ele? O que faz? Vejam, escutem:
43
Idem.
70
se nunca com um único ouvinte. Uma só boca que fala
para muitos ouvidos e metade de mãos que escrevem
– eis o aparelho acadêmico externo [äusserliche akade-
mische Apparat], eis a máquina cultural [Bildungsma-
chine] universitária posta em funcionamento. Para to-
dos os demais, o possuidor desta boca está separado e
é independente dos detentores daqueles muitos ouvidos:
esta dupla autonomia é louvada entusiasticamente com
o nome de “liberdade acadêmica”. De resto, – para que
esta liberdade seja ainda aumentada – o professor pode
dizer praticamente o que quer e o aluno pode ouvir pra-
ticamente o que quer: só que, bem perto e atrás dos dois
grupos, a uma distância conveniente, se põe o Estado,
com o semblante atento do vigia, para lembrar de vez
em quando que ele é o objetivo, o fim e a quintessência
[Zweck, Ziel und Inbegriff] desses estranhos procedi-
mentos que são o falar e o ouvir.44
44
Ibidem, p. 147.
71
warm) de estudantes. O que você tem contra os estu-
dantes? – perguntam a ele. Ele não responde imedia-
tamente, em seguida:
45
“Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino”, p. 142-143.
46
Ibidem, p. 143.
72
Omphalos
47
“Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino”, p. 148.
73
nunca aparece. Nem para estudar nem para ensinar,
em nenhum ponto do cordão umbilical. A grande
“aleijada”, talvez. Não há mulher, e eu não gostaria
de extrair dessa observação o suplemento de sedução
que hoje faz parte de tudo e de todas as classes: esse
procedimento vulgar faz parte do que proponho cha-
mar de “ginemagogia”.
Nenhuma mulher, portanto, se eu bem li. Exceto
pela mãe, claro. Mas isso faz parte do sistema, a mãe
é a figura sem figura de uma figurante. Ela dá lugar a
todas as figuras ao se perder no fundo da cena como
uma personagem anônima. Tudo volta a ela e, antes
de tudo, a vida, tudo lhe é dirigido e lhe é destinado.
Ela sobrevive sob a condição de manter-se ao fundo.
74
JACQUES DERRIDA nasceu em El-Biar, na Argélia, em
1930. Ingressou na École Normale Supérieure em 1952.
Entre 1960 e 1964, lecionou Filosofia e Lógica Geral na
Sorbonne. Em 1964, foi nomeado professor de Filosofia
na École Normale Supérieure, em que permaneceu até
1984. Com Sarah Kofman, Philippe Lacoue-Labarthe e
Jean-Luc Nancy, criou a coleção La Philosophie en Effet
para a editora Galilée, em 1974. Participou da fundação
do Grupo de Pesquisa sobre Educação Filosófica (Gre-
ph), inaugurado no ano seguinte. De 1975 a 1986, lecio-
nou em Yale, com Paul de Man e Hillis Miller, na City
University of New York (Cuny), na Cardozo School of
Law e na New School of Social Research. Foi o primeiro
diretor eleito do Colégio Internacional de Filosofia, o
qual ajudou a fundar, em 1983.
Em 1971, teve seu primeiro livro publicado no Brasil,
A escritura e a diferença. A recepção de sua obra no país
se deu inicialmente por meio dos departamentos de Le-
tras, em especial do Departamento de Letras da PUC-
-Rio, a partir do trabalho de um grupo de alunos do
professor Silviano Santiago, que resultou no Glossário de
Derrida, publicado em 1976. Desde então, e particular-
mente no início dos anos 2000, os estudos derridianos
no Brasil se intensificaram nas faculdades de Filosofia,
levando à criação do Núcleo de Estudos em Ética e
Desconstrução (Need) em 2002, também na PUC-Rio,
por iniciativa do professor Paulo Cesar Duque-Estrada.
Derrida morreu em 9 de outubro de 2004, aos 74 anos.