As Ideias Conservadoras - João Pereira Coutinho PDF
As Ideias Conservadoras - João Pereira Coutinho PDF
As Ideias Conservadoras - João Pereira Coutinho PDF
CONSERVADORAS
EXPLI CADAS A
REVOLUCIONÁRIOS
E REA CION ÁR IOS
TRÊS
ESTRELAS
Há muito não se publicava um
pequeno grande livro como
este. João Pereira Coutinho é
um autor desassom brado ao
l i dar com as de li ca dez as da
teori a e um exp ositor m eti cu -
loso ao dar dimensão terrena
aos conce i t os q ue anali sa. Que
outra qualidade se deve exigir
do p ensad or a não s er evi tar
que o b arateam ento d as i dei as
passe por cl areza e a ob scuri-
dad e, por sa bed oria superi or?
Edm und B urke é o Vi rgí l i o de
Couti nho, o personag em que o
conduz pelos círculos, fossos
e vales em que se tentou exi-
l ar o pensam ento conservador,
confundido ora com reaciona-
rismo, ora com anacronismo.
Nas duas perspectivas, o con-
servador o u ser i a um cad áver
servar, as injustiças?
Na ver dade , con servadores
querem preservar instituições
que abri gam regr as de con-
vivência para que, na luta de
todos contra todos, em vez de
se r a vi olência a p arteira da his-
tóri a, com o si nteti zou Han nah
A rendt ao se referi r a M arx, que
a partei ra sej a a ne goc i ação
que reforma o que nos opõe e
fort alece o que nos une.
As idéias conservadoras
explicadas a revolucionários e reacionários
/
João Pereira Coutinho
As idéias
conservadoras
explicadas a revolucionários
e reacio nário s
^ TRÊS
^ ESTRELAS
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isbn 978-85-65339-25-4
14-00526 CDD-320
i
TRÊS
ESTRELAS
A l. Barão de Lim eira, 401, 62 an dar
c e p 01202-900, São Paulo, sp
Tel.: (11) 3224-2186/2187/2197
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Sumário
8 Q u a tt o r d ic i: um a int rodução
32 Im perfeição hu m ana
42 O sentido da realidade
66 A reforma prudente
107 Notas
115 Bibliografia
119 índ ice rem issivo
125 Agradecimentos
127 So br e o aut or
“Sometimes”, said Julia, “I feel the past and the future pressing so
hard on either side that there’s no room for the present at all.”*
EVELYN WAUGH, B RI D E S HE A D REVISITED (1945)
uma introduçã o
O conservadorismo não existe. Existem conserva dorism os, n o plu
ral, porq ue plurais foram as difer entes expressões da ideolo gia
10
esticar um po uc o mais o m an to e a aum entar a lista, incluin
do Roger Scruton e John Kekes em pleno século xxi. Burke
pod e ser o precursor do conser vado rism o m oderno . Mas, antes
de iniciar essa tradição, ele é parte de um a tradição.
11
Revolução Francesa desde a primeira hora, não deixou de
admitir que ela talvez viera para ficar. E que de nada valia
procu rar ou repetir ottantott até a insanidade p orque o “espí
rito do tem po ” mu dara e não v oltaria para t rás. Nas pal avras
12
Só o Rei, e o Rei legítimo, levantando do alto do seu trono o cetro
de Carlos Magno, pode extinguir ou desarmar todos os ódios,
frustrar todos os projetos sinistros, classificar as ambições pela
classificação dos homens, acalmar todos os espíritos agitados e
13
conservadores de direita, que repetiam e procuravam, com
particular estridência, os seus personalíssimos ottantott. A pri n
cipal diferença entre esses pensadores, e tal como acertada-
mente defende Noél 0’Sullivan, residia em saber se esse estado
14
W illia m W ordsworth (1770-1850) ou Samuel Coleridge (1772-
-1834) ou Thomas Carlyle (1795-1881) tenham deixado de recla
ma r es sa herança . Mas , à semelhança d o que acon teceu com
alguns d os au toproclam ados herdeir os continentais de Bur ke,
15
de Burke. Um a “dissonân cia” que con tinu aria a s e man isfestar
em sucessivas lide ranças conservad oras na segunda metade do
século x x - até Margare t Thatcher . N ão admira que , ao ch egar
à liderança do partido (em 1975) e do país (em 1979), Thatcher
16
à “sociedade co m ercial” a coloc av a mais próxim a de Burke do
que os “genuínos conservadores” imaginavam. E que talvez
fosse o Partido Conservador que, durante demasiado tempo,
tivesse se afast ado da m atriz burkeana.
17
oferecem valiosos ensinamentos para o pensamento e para a
ação política presentes. Como relembra David Willetts em
M o d e m C o n se r v a tis m [Conservadorismo moderno], aprender
alguma coisa com um a tradi ção que foi capaz de evitar os males
“O n B eing C ons erva tive” [Sobre ser conserv ador] (1956). An tes
de ser “ ideolo gia” ou “ do utrin a”, a intenção do autor é apresen-
tar o conserva dori smo co m o um a disposi ção - um a form a de se r
e agir que leva rá o co ns erv ad or a “usar e desfrutar aquilo que
está disponível, em v ez de desejar ou p rocu rar ou tra co isa”.1
Naturalmente que o conservador sabe, ou pelo menos intui,
tencial que é ante rio r, ou até super ior, a qua lquer ideolo gia
política. Mai s ainda: o con serva dorism o não é um a ideologia,
preferindo encontrar refúgio identitário em “forças interio
res”, “temperamentos”, “fés”, “espíritos”, “instintos”, “incli
naç õe s” - e, claro, “ dis po siçõ es”. A fuga à ide olo gia é de tal
form a generalizada e premen te para e ssa longa galeria d e co n
Não existe uma distinção válida entre “mudar para trás” e “mudar
para a frente”. Mudança é mudança; a história não se retrai nem
25
porqu e reacionários e revolucionários parecem atribuir às suas
particulares utopias as mesm as feições ext eriores: um m un do
harm onioso , está tico e onde os ho men s, porque dotados de
um a na tureza fixa e in alteráv el, desejam n ecessariamente as
mes ma s co isas.14
Um conservador tenderá a recusar essas fantasias, que
partem de uma dupl a fal ácia superiormen te desmontada pelo
referido Berlin: por um lado, a falácia de que os homens pos
suem uma natureza fixa e inalterável e que, por isso, desejam
neces sariam ente as mesm as coisas; e, po r outr o lado, a falácia
corres pon den te de que os valores mais caros à exi stência hu ma
na pode m ser vivenciados na sua expressão máx ima (a má xim a
liberdade, a m áxim a igualdade, a má xim a frate rnidade ) sem
possibilidade de conflito entre eles. Uma revisitação melan
cólica do tenebroso século x x é suf icie nte pa ra contemp lar a s
ruínas mate riais e humanas que o pen same nto utópico, po rque
27
Essa natureza vigilante e reativa será mais facilmente
apree nsív el quand o confro nta rm os a i deologia conservadora
com as restantes. “Os id eais das ideolo gias n ão con serv ad oras ”,
escreve o auto r, “mud am de pen sad or para pensador e de gera
28
histó rica específic a”. Consequentem ente, “ quan do essa neces
sidade desaparece , a filosof ia con serv ado ra su bm erg e”.21
Enganam-se assim os que pensam que o conserva doris mo
nã o é um a ideologi a. Pa ra Huntington, ess e engano r ecorren
te só po derá ser explicado se partirm os do pressu posto de que
todas as ideologias têm de ser obrigatoriamente “ideologias
idea cion ais”, 22 ou se ja, ideo logia s que pro cur am cu m pr ir em
socie dade um programa o u u m ide ári o polít icos. O fat o de o
conservadorism o, pela sua natureza reativa e p o s ic io n a i, não
ser um a ideologia ideacional não signi fic a que el e nã o é tam
bém um a id eologia.
O conservadorismo poderá ser assim apresentado como
um a “ideologi a de emergência” - e no duplo sent ido da expres
são: po rqu e emerge em face de um a amea ça específica de car á
ter rad ical; e porque o faz quan do essa ameaça põ e em risco
os fundamentos institucionais da sociedade. Quando, na sua
autobio grafia inte lectual, o filóso fo Roger Scruton con fessa que
se descobriu conserva dor ao confrontar- se com a insur reição
de Maio de 1968, em Paris, 23 ele apenas retom ava u m velho
cardápio ini ciado por Bur ke no fi m do século x v m , e também
a propósito de um acontecimento francês (et po ur ca us e. ..): a
Re volu ção de 1789. Será perante a Revoluçã o que o parlamentar
irlandê s irá elabor ar a s uprem a defe sa conserva dora. N ão em
nom e do pas sado ou do futuro - mas e m nom e do p re se n te da
civilização europeia e, em particular, da própria estabilidade
política do Reino Unido.
A s R e fle x õ e s so b re a R e v o lu ç ã o n a F r a n ça serão escritas em
1789 e pub licadas no ano seguinte - ant es de os jaco bin os
29
com eçarem a guilhotinar os s eus ini m igos , r eais ou im a
ginários, com assombrosa industrios idade. Ma s Burke vis
lum brou nos princí pios dos revoluci oná rios o ger m e de
abuso e violência que eles inevitavelmente plantariam na
Fra nça . A Revolução lanç ava- se na busc a de um a perfeição
terrena por meios exclusivamente humanos; tratava-se,
co n for m e ele a designou, de um a “revo luçã o filosó fica”, 24
em que os revolucionários, ali cerçados em doutri nas p o lí
ticas abstratas sobre os “direitos do homem”, encaravam a
comunidade como se esta fosse uma carte b la n c h e 25 para as
33
do conser vadori smo - a im p e r fe iç ã o h u m a n a -, anali sando em
seguida as duas correntes que terão emergido dessa mesma
font e. U ma primeira corrente, de ca riz reli gioso, que s e limita
a reafi rmar a imperfeição do ho m em depoi s da Queda; e uma
segund a corren te, que pref ere ress altar a imperfeiçã o in te le c tu a l
que ma rca indele velmente a nossa espécie.
O presente ens aio não é uma diss ertação te ológica - e tam
bém por isso convém deixar qualq uer interp retação sobre o
pecad o srcinal e suas consequên cias par a os t eólogos. N ão
apenas porque eles parecem mais bem preparados para lidar
34
crítica antirracional. O problema, para o conservador, não
reside no papel i nsubsti tuível da razão com o instrum ento de
qualquer conhecimento válido e consequente. Como avisa
Oak eshott, a crítica conserv adora lidará não com a razão, mas
com o racionalismo, entendi do co m o um a subvers ão da razão.
O u, talvez de f orma m ais pr ecisa, com a ambição desmedi da
de atribuir à razão a tarefa hercúlea de construir e recon struir
a sociedade hu man a de for m a radical e perfeita.3 Não é a razã o
p e r se que inspira a crítica conse rvad ora; é, tão só, a arrogân cia
do ra cionalism o mode rno e a sua ideia nefasta de “possibili dade
infinita” 4na condu ção racional dos assu ntos hum anos.
Essa imp ortante distinção será mais f acilmente com pree n
sível se regr essarmos ao lugar de todos os crimes - a Revolução
Frances a de 1789 -, b em co m o aos seus opositores e defe nsore s
coe vos . Sobr etudo aos escritos de Burke e James Mac kintosh
(1765-1832), um jovem autor qu e, antes de re con hecer a validade
da crítica antirrevolucio nária do autor de R e fle x õ e s so b re a R e v o -
lução na França (um reconhecim ento tardio que s eria tamb ém
partilhado por Coleridge ou W ordswor th), com eçou num a fase
inicial por ser um dos mais vigorosos críticos do parlamen
tar irlandês. Pa ra Mackin tosh, Burke exibira nas R e fle x õ e s uma
inco m po rtáve l anti pat ia à razão, recusando a est a qualquer
papel na atividade polític a racional. O ra, para Mackin tosh, e tal
co m o o autor afirma na s ua V in diciae G all icae (1791), “é absurdo
esperar , m as não é absu rdo pro cu rar a pe rfeiçã o”.5 E, em tal
quimera, a razã o terá o papel central na medida em que “a geo
metria, pod em os justam ente diz er, t em a mesm a relação par a
a mecâ nica que o raciocínio abstrato pa ra a política ”.6
/ 35
Eis a posição que Burke não poderia aceitar. Não apenas
porque a funçã o da políti ca nã o é responder às perguntas dos
metafísicos (uma certeira observação de Scruton),7mas sobre
tudo p orque nã o é possíve l reduzir o s problemas d e um a co mu
nidade a simple s equações ou p ostula dos que a razão acabaria
po r resolver p or si s ó.
Esse, aliás, é o pro blem a epis tem oló gico central do ra cio-
nalismo moderno, tal como o denuncia Oakeshott: a defesa
apaixonada de que o único tipo de conhecimento válido é o
“conh ecim ento técnico”, ou o con hecim ento de uma téc nica,
37
N o fu ndo , Merton re visit a no seu ensaio a s dua s qu estões
centrais que Burke formulara na sua carta ao amigo francês
Char les-]ean- Fran çois Depont, u m jovem mem bro da As sem
bléia N acional que esperava encontrar em Burke um com pag non
exibir certas virtudes que estã o ausente s nas condu tas dos
revolucionários. “Humildade” e “prudência” serão assim o
contrá rio da “arrogância” e da “imprud ência ” com que a Fra nça
abis mara o m undo.
E com a defesa de tais virtudes não se pretende susten
tar que a posição conservadora remete toda e qualquer ação
hum ana para o inevit ável fracasso. O ce ticism o conservador não
38
é um a forma d efat ali sm o - nem, a ri gor, d e pes si m ism o. O filósofo
John Kekes é m erit ório ao esta belec er a distinção entre “ o que
v a i acontecer” e “o que p o d e ac on tece r” na ação po lítica .16 A o
alert ar par a a imp erfeição intele ctual humana , a pos ição co n
servad ora deve ser entendida co m o u m apelo d e quem relembra
a segun da form ulaç ão de K ekes: há consequên cias imprevistas
(e imprevisíveis) que podem ser indesejadas (e indesejáveis).
Naturalmente que algumas dessas consequências até podem
ser benignas (Kieron 0’Hara, socorrendo-se recentemente dos
ensinamentos do economista Douglass North, recorda que a
altos. Mas exi ste um a fras e do p rimeiro-m inistro britâ nico que
nem sempre tem merecido a atenção dev ida: “Por mais a bsorto
que um general esteja na elaboração das suas estratégias, às
vezes é importante levar em consideração o inimigo”.1 A senten
ça m erece ser recordada, não apena s pelo seu evidente hu m or
(ao qual a expressão “à s vez es ” confere u m delicioso tem pero),
mas p orque resume, em breves l inhas , o que es te capítu lo p ro
curará fazer em vários parágra fos: defend er a imp ortân cia das
circun stân cias na conduta do agente político conservador.
Conforme se viu anteriormente a partir do ensaio de
Samuel Huntington, o conservadorismo apresenta-se como
um a ideolog ia posicio nai: ele necess ita de uma amea ça concreta
para se articular como ideologia. Mas as circunstâncias não
desp ertam apenas a reação conserva dora. São tam bé m elas que
determinam o tipo de resposta a se r articulado peran te a amea
ça - e é precisamente esse du plo papel das circunstâncias que
singu lariza a ideologi a conserv adora relativament e às prop os
tas ideológic as rivai s, da s mais extremas às mais mod eradas.
43
Em face das ideologias mais extremas, uma dupla aten
ção às circunstâncias começa por desautorizar esse violento
repúdio ao presente que parece definir a teoria e a prática de
revolu cionários ou reacionários. Não é pela recusa das circuns
tânci as, ante s pel a sua observaç ão atenta, que o con serv ad o
rismo com eçará por se afirmar com o ideologi a.
De igual forma, o pensamento conservador distingue-se
tam bém de o utras i deologias mais m oderadas que s e apre
sentam com um ideário a cumprir, de forma transtemporal e
transe spaci al, independentemente das condições ou exigências
45
“convulsão momentânea” (e necessária) para corrigir uma
“doenç a m om entâ nea ”:8o ab solu tism o régio de Jaime n, afas
tado do tron o pelos parti dários de W illiam de Orang e, futuro
W illiam m. A Revolução G loriosa de 1688, para Burke, não fora
46
para ele.”11 Curiosamente, essas palavras conciliatórias foram
proferidas no contexto da “questão americana”, procurando
con ven cer George m a abandonar a pre ten são da metrópole
- um a prete nsão co ntr a toda a l ógica e t oda a tra dição - em
cob rar impostos nas col ônias. A intr ansi gênc ia do re i em olhar
para as circunstâncias da “qu estã o am erica na” acabaria po r levar,
co m o se sabe, à guerra e ao nascim ento de um a nova nação.
A “maleabilidade” conservadora na atenção às circu nstân
cias ser á a expressão mais eviden te do seu plur alism o político .
E nã o deixa de ser estran ho q ue n a velha Europa (e até na velha
Inglaterra) es sa dimensão crucia l do p ensam ento con serva dor
tenha sido aparent emente esquecida - e que pertença a John
Kekes , um american o, o m érito de ter relembrado a i ncontor-
nável dimensão pluralista de que o conservadorismo pode e
deve se orgulhar.
Contrariamente ao que sucede com ideologias rivais, que,
em bor a possa m reconhecer a multi plici dade e a conflit ualidade
de valores concorrentes em política, consideram sempre que
po dem ser “res olvidas” pela aplicação de um valo r ou de um
con jun to de valor es que terão p riori dade sobre os rest antes ,
em A Case f o r C o n serv a tism [Uma defesa para o conservad orismo ]
47
valores - valores distintos, nem sempre compatíveis entre si e
muita s ve zes incom ensu ráv eis, co m o diri a Berlin admitindo,
porém, que outras c omun idades podem abr aça r outros va lo
res. O estadi sta prudente é aquele que co meça p or recon hece r
48
pensamento e da ação políticos parece ser assim insustentá
vel, tendo em conta a natu reza evolutiva e plural de qualquer
comunidade humana. Conforme relembra Scruton, perguntar
qual a m elhor forma d e gov ern o em abst rat o convid a sempre à
atitude do ateni ense Sólon, qu e devolveu a pergunta c om novas
perguntas : “Govern o p a ra q u e m ? E em que tem po ?”.14
algo de ete rn o”.15 O que inq uieta Strauss é que a “escola his tó
ric a”, na crítica contun den te às doutrinas de direi to natural que
teriam dado srcem à própria Revolução Francesa, acab ou por
resvalar par a o ex tremo opo sto: para a de fesa de um a “infi nda
variedade de noções de direito e justiça”16que m udam ao sabor
dos tem pos. O problema político dessa forma de relat ivis mo
é que os se res hum anos deixam de contar com “a ún ica bas e
49
sólida de todos os esforços para transcender o atual”.17 Sem
essa “bas e só lida ”, e sem a possibilida de de “transcende r o atu al”
pela vincu laçã o a princípi os imu táveis que não dependem das
circunstâncias relativas de um tempo e de um espaço, os homens
50
pes soa racional acei ta e subscr eve) e a afirmação radica lm en
te diferente de que algumas sociedades, para não dizer to d a s,
pod em viver e sobre vive r dispensando cert os valores básicos
e fundacionais.
Na gramática con servadora, esses valores básicos e funda
cionais conheceram diferentes formulações. Burke, profun
dam ente influenc iado pelo Ad am Smith da Teo ria d os sen tim en tos
m o ra is (1759), cham a-os “sen tim en tos n atu rais”20- e naturais
porq ue brotam, segundo B urke, da nossa natur eza com um sem
pre que nos con frontam os com situaçõ es de justiça ou iniqui
53
O conservadorismo com o ideologia pl ura lista reconhe
cerá, assim, a imperiosa necessidade de “valores primários”:
linhas morais mínimas que uma sociedade civilizada não deve
cruzar (não por acaso, Berlin prefere designá-las como “fron
teiras de hu man ida de ”).32Só que a po lítica con serv ad ora seria
uma proposta demasiado frágil se apenas se guiasse por uma
concepção negativa da sua própria atividade. É importante
evitar certos males; mas é também importante conservar e per-
seguir o que Kekes designa por “valores secundários”: valores
que expressam a form a co m o diferentes soci edades vivem e se
57
proteção p r e s e n te . A atitude do con serv ado r será assim dist inta
da atitude que Burke detectou nos revolucionários franceses,
para quem a duração das tradições e das instituições não era
motivo suficie nte para prese rvá-las. “ A duraçã o n ão é valiosa
para aqueles que pensam que pouco ou nada foi feito antes do
seu tempo."2Pelo contrário: a antiguidade dessas tradições e
instituições era um m otivo su plem entar par a que elas fossem
inapelavelmente destruídas.3Como se essa antiguidade fosse
expressão de um defeito intrínsec o.
“Antiguidade”, “dura ção”: eis as palavras que o con serv ador
são relí quias que guardam os na gav eta por m ero g osto esté tico
ou simples idiossincrasia pessoal. El as são nossas p orq ue se tor-
naram nossas. E o fato de con tinu am ente as term os con siderad o
vanta josas e valiosas perm itiu que as legássem os de geração
em geração como se fossem uma herança coletiva. Ao serem
úteis e benignas p ara n ó s, é razoá vel pensar que e las tam bém o
com eçam po r ter uma fun ção educacion al evi dente. Para usar
a linguag em inconfundivelmente poé tica de Oakeshott, são as
tradições d e um a comunidade que perm item ao indivíduo, iso
ladamente considerado, ent rar na “grand e conversa da hu m a
nidade”. As tradições fornecem aos indivíduos a gramática
básica dessa conversa, im pedin do que estes se to rnem , nas
palavras de Burke , meras “m osc as de um verã o”:9existências
breves, desgarradas e desabitadas de qualquer referência social,
cultural ou moral. Um conservador entende que nascemos,
crescem os e atuamos no interior d e uma tradi ção , em bora
alguns dos nosso s com portam entos ou crenças se jam (ou pare
çam) espontâneos e avessos a racionalizações permanentes.
Aliás, m elh or que assim seja, que cada mem bro de uma socie
dade transporte em si a “segunda natureza” que lhe foi natu
ralment e conferi da p or e ssa m esm a socie dade se m n enhum
esforço perm anente de avaliação crítica e autocrítica.1 0Co m o
afirmaria Burke, sã o as tradições que cob rem a “natur eza nu a”
dos indivídu os com as vest es do co stu m e e do hábito.1 1
6o
E será com esses trajes que os indivíduos participam na
“con ve rsa ” social - que não é apenas fe ita no tem po pres ente ,
com as ambições, as perplexidades e os desejos desse tempo
prese nte. C om o relembra ainda Oakeshott, a “ grande conversa
da hum anidad e” é um proce sso em que existe m e coexistem três
tem pos: o passado, o p resente e o fu tu ro .12 O que sign ifica que :
ao ind ivíduo cabe receber o que foi preserva do; d esfru tar dessa
hera nça c om o fiel depositário; e passá -la às geraçõ es vindo uras
em um a cadei a que s e percebe c om o invi sível e interminável .
De fato, não existe ensaio sobre as idéias políticas conser
62
o agente po lítico preci sa at uar se m caprichos mo men tâneos,
recusando o papel de “legislador da humanidade”. O esta
dista nun ca atua sobre uma tela em branco, nem a soci edade
se apresenta como tal, despojada de valores ou tradições que
63
São e ssas inform ações que permitem aos hom ens “sabedo ria
sem reflex ão”19 - um a form a de de signar os p re co n ce it o s que
todos tem os e de que todos precisamos.
O tem po atual não f oi brando co m certos termos da gra
essa é um a hip ótese que co loca os mais radi cais progressis tas
no m esm o patam ar a-hist órico dos m ais radi cais reacionár ios.
Acontece que os “p reconceitos” que interessam a um con
servador não podem ser entendidos, ou confundidos, com
meras idéias irracionais sobre determinados com portam entos,
minorias ou indivíduos - o senti do atual e r asteiro do termo. Se
todas a s pala vras tamb ém têm uma tradição, impo rta recordar
que “preconceito” deve ser entendido no sentido clássico, ou
seja, como p r a e ju d ic iu m - um pre ced ent e ou um jul gamento
baseado em decisões ou experiências passadas que, pela sua
validade comprovada, inform am decisões ou experiências pre
sent es e futu ras .20Será ess a dim ensã o de “pr ec on ceito ” que
interessa a um conservador: o tem po troux e até ele princípios
ou instituições que sobreviveram aos “testes do tempo”; essa
sobrevivência cria uma razão favorável à manutenção e con
servação de tais princípios ou instituições. E será a eles que
devemos recorrer como se recorre a ensinamentos válidos e
testados. Ou, melhor dizendo, v á lid o s p o r q u e te st a d o s.
64
A ssim se entende co m o a fun ção das tradições não se
esgota no processo educacional que elas oferecem. Existe
tam bém o que Keke s desi gna com o “a dimensão valorati va de
um a tradi ção mor al” - um a dimensão que nas ce da profund a
que o con serva dor não se disti ngue do imobilis ta, resis tindo
estoicam ente à mud ança, a qualquer uma, por tem er as sua s
consequ ências nocivas .
Aliás, a piada não apresenta apenas o conservador com o
um imobilist a. Va i mais longe e apr ese nta- o com o u m im ob i
lista fa t a lis t a e p e ss im is ta : qualquer mudança, mesmo que esti-
mável em te ori a, não apen as não resolve o problema com o qual
o estadista se confronta como, pior ainda, acabará fa t a lm e n te
po r agravá-io. De onde se con clui que a inação será s empre
prefer ível a qualquer ação inevitavelmente destr utiva.
Como piada, a pergunta diverte. Porém não deixa de ser
inquietante a forma com o ela conheceu um tratamento acadêmi
co respei tável, embora sem o h um or srcinal. Alb ert Hirschman
(1915- 20x2) ocupa, nessa matéria, um lugar destacado, e a obra
T he R het ori c o f R eact ion [A retórica da reaç ão] , um clássico da
soc iolo gia polític a, é o prod uto final de quem levou demasiado
longe um a caric atura. P ara Hirschman, o pensamento co nse rva
dor, que o au tor tam bém radica na posiç ão a ntirrevolucion ária
67
de Bur ke e seus herdeiros, parece sofre r de três maleitas - “três
teses r eacioná rias”, para usar a sua lingu agem - que o defi nem
ao lon go de mais de dois séc ulos.
A primeira dessas teses é designada por Hirschman co mo a
“tese perversa”: para um conservador, os resultados obtido s pela
ação revolu cion ária (mas tamb ém reformista) acabarão sempre
por gerar p erv ersa m en te o opost o dos objetivos que se propun ham
alcançar. A bu sca po r libe rdade só trará p erv ersa m e n te servidão;
a busca pela igualdade só trar á p e r v e r s a m e n te desigualdade; a
busca de fraternidade só trará p e r v er s a m e n te egoísmo e violên
cia.1 Hirschman pod eria reformu lar a piada: “P ara que mud ar
se os resultados serão perversamente contrários às melhores
intenções d o agente?”.
Mas o con servad orism o não se limita a de clarar qualque r
ação política, qualquer mu dança p olíti ca, c om o “perversa”.
A ação será tam bém “fútil”, dirá Hirschm an em nome dos con
serv adore s. A s mu danças, para um conservador, serão apena s
“superficiais” ( mud anças de fachada, digamos), na medida em
que as estruturas mais profundas da sociedade p erman ecerão
intocada s.2“Pa ra que mudar, s e as coisas ficarão sempre co m o
estão o u s ão?”, eis a ad aptação pos síve l da piada para a “tese
fútil” de Hirschman.
L a s t b u t n o t lea st, o conserva dorismo partilha a inda um ter
ceiro vício - ou um a terceira tese: a chama da “tese ameaçadora”.
Para um conservador, o preço da mu dan ça ser á sempre dema
siado elevado ao pôr em risco ganhos ou feitos prévios (e pre
ciosos). 3E a única variaç ão substancial à pi ada c om que se a briu
o prese nte ca pítu lo. A questão j á n ão será: “Pa ra que mudar
68
se as coisas estão tão r uin s”, mas antes: “Para que m ud ar se a s
coisas n ã o estão tão ruins?”.
N ão vale a pe na perde r mu ito tem po c om as análi ses d e
Hirschman, que constituem uma contradição evidente: se o
70
que limitar, ou até determinar, o comportamento de todos o s
seus mem bros. Com o lembra Noèl 0’Sulliva n, se a car icatu ra
im obilista fosse para levar a sério, a ún ica sociedad e ideal para
um con serv ado r seria a vida das cavernas,7partindo d o pressu
post o de que as cavernas não seriam já uma c orru pçã o evident e
de um estado ainda mais primitivo e impermeável a qualquer
mudan ça. Para um reacioná rio (mas não para um conservador),
é sempre possível recuar até o primeiro hominídeo.
Mas as caricaturas nã o par am po r aqui. Po rque existe uma
outra sobre o conservador co m o im obilista, segundo a qual e le
teme a mudança po r ver em qualque r mudança uma ameaça
potencial às suas tradições mais preciosas. Creio que ficou
claro n o capítu lo anterior que a adesão ao “tradiciona lismo ”,
outro dos pri ncípi os fundamentais do conservadorismo,8 lon
ge de ser um a atitude t ípica de antiquário, é ant es um a ad esão
perfeit amente raci onal po r se vi slum brar na tradi ção u m rele
vante papel educacional, epistem ológico e político que seria
um erro despr ezar.
É pos sível afirm ar algo mais: s e a tradição desa utor izass e
a mud an ça e a reforma, seria preciso perguntar sobre o que se
emp reende um a reforrpa.
71
Em outras palav ras: a reforma nã o só n ão exclui a tradição
como exige uma tradição, entendida como ponto de partida
para qualquer ação reformista. Reformamos o que existe e,
mais importante ainda, reformamos p o r q u e a lg o e x is te e p o r q u e
72
quan do os colon os com eçaram a exigir não se rem taxados por
um Parlamento no qual não se encontravam representados
(o célebre bordão “no taxation without representation”), eles não
estavam apelando para doutrinas abst ratas, co m o a conteceria
cor rigir o seu entusiasmo para sustentar que a prim azia teórica
na inte rpretaç ão conservadora da Revolução Am erican a per
tence, uma ve z mais, a Burke. Aliás, é possível m esm o defender
que a interpretação de Viereck sobre a Revolução America
na se aproxima claramente da interpretação feita à época por
Burke sobre o m esm o a contecim ento. Para este, go vern ar a
A m érica não passava pela im posição de “idéias abstratas de
73
direitos” nem de “teorias gerais de governança”. O trato com
a colôn ia dever ia atender à sua “na tu re za ” e “circun stân cia”.14
Qu er diz er: “Se e la tem m atér ia tri butável, que p ossa co bra r
os seus im pos to s”.15 Será apenas perant e a im po ssibilid ade de
74
Trata-se de uma observação sagaz que sublinha, uma vez
mais, a im por tânc ia preventiva da reforma para que se evitem
situações p otencialmente revolucionárias. Co mo lembra Keke s,
a reforma não é apen as mais um princípio banal da gram ática
inov ações (ou reformas) que o cons ervad or entende empreen der
por considerá-las necessárias para a manutenção de princípios
ou instituições relevantes para a com unidade.
Sobre as mudanças ex ógenas, o conserv ador deve ter em
con ta que a inovação traz sem pre um a perd a inevi tável e um
ga nh o possí vel, o que signi fica que cabe a quem pr op õe a refe
rida mu dan ça mo strar claramente a s vantag ens da inov ação
75
sobre a s certez as da t rad ição.20No fun do , O ak esh ott repete o
que Burke afirmara em A n A p p e a lf r o m th e N e w to th e O ld W h ig s
[Um apelo do N ov o aos Velhos Whigs], u m texto que de ve ser
lido com o com plementar da s R e fle x õ e s:
lentamente e ser acom panh ada p asso a passo. E deve ser lim i
tada à parte que se encontra em falta, de forma a minorar as
consequências indesejadas e incontroladas que po dem emergir
da ação refo rm ista.22 Uma ve z mais , O ake sho tt repe te quas e
ipsis verbis o que Burke escrevera séculos antes ao estabelecer
quais o s princíp ios reformistas que devem ser observad os pelo
agent e conserva dor.
76
O prime iro des ses princípios co nvidará o estadista a fazer
um a distinção, nem sempre fáci l, ent re as im perfeiçõe s tole
ráveis e as imperfeições intoleráveis para o “edifício” que se
pro cur a conservar. O esta dist a deve dist inguir “coisas acide n
78
poss ível afast ar todos os m edos que habitam o des con hec ido.29
Afastar e, acrescento eu, e m e n d a r .
Por último, e não menos importante, a ação reformista
de um agent e político co nse rva do r será sempre i nseparáve l
I
79
A “sociedade
comercial”
Para alguns espíritos, nada será mais estranh o do que analisar as
difíce is relações en tre o cons erva dor ism o e o capitalismo. Se, na
im agin açã o simples do s simples, a direita olha para o m ercad o
co m devo ção e zelo, onde estão os proble mas de convivênci a,
afinal? A ideia do mercado livre como ameaça para a virtude
dos h om ens e para a ordem social onde ele s vivem e trabalham
é um adágio exclusivo da esquerda, qâ o da dire ita. A direita
nun ca visl um brou no cap itali smo o tipo de vícios desum anos
82
imorais, era também entendido como um perigo político, ao
co loc ar em risco uma sociedade tradi cional q ue se d esejava pre
servar na sua quietude (qu ase) medieval. A fluidez das relações
com erciais e a abertura ao m un do que el as im plicam surgiam
83
Thatcher, porém, não representava apenas uma ameaça
moral para os seus contemporâneos. O perigo era também
político, na medida em que a premiê britân ica abraçav a o que
John Gray designou como “um regime de mudança inces
84
meados da década de 1970, os conservadores tinham perdido
a noção dos seus próprios princípios fundamentais, e coube
à sra. Thatcher recordá-los ao partido”.8E continua Willetts,
em imp ortante revi sitaç ão histórica sobre a prát ica do Partido
Conservador:
\
Curiosamente, quando Gilm our afirma que o “thatcher is-
m o” não pass ava de uma forma de indiv idual ismo do século x ix
vestid o com trajes do século x x ,10ele tinha inteira razão - mas
nã o pelo s m otivos que imaginava. Se Thatcher representa algo
de substancial n a históri a do conser vado rism o foi prec isam en
te po r te r mostr ado - ou, m elhor dize ndo, relem bra do - como
é possível articular uma defesa conservado ra da “sociedade
comercial” sem haver qualquer contradição entre os termos.
E compreender essa defesa conservadora da “sociedade
comercial” implica regressar, tal como Thatcher regressou, à
fonte de todas as fontes: Edmund Burke. Não apenas porque
Bur ke ocupa um pap el fundador no cânone do con serva do
rismo. Mas porque é aconselhável revisitar os argumentos de
85
alguém que, fund and o esse cânone, er a igualmente considerado
pel o próprio A dam Smi th com o um dos mais vál idos interl o-
cutores nos debates sobre a nova teoria e co nô m ica .11
Revisitar esses argumentos co meça desde logo por mostrar
86
Se a fun ção de um go ver no é resp eitar, por princ ípio, a
natureza hum ana, importante é também que e le respe ite uma
das propriedades funda men tais dess a mesma natureza: o fato
de existir nos homens uma propensão para “negociar, per-
87
Será, aliás, esse respeito primordial pela “capacidade de
escolha” que parece colidir com a pretensão dos que se apre
sent am c o m o “legis lador es da hum anida de”: governantes ou
inte lect uais apaixona dos pelas suas elucubrações a pon to de
não tolerarem os que não este jam, com o eles, enfei tiça dos p or
idéias vanguardistas e iluminadas. Irving Kristol, que estava
longe de ser um entusiasta fanático da “sociedade co m ercia l”,
tem razão a o assumir q ue o capitalismo “ é a conc epçã o m enos
romântica de uma ordem pública que uma mente humana já
con ceb eu ”.18De fato , e com a exce ção dos rom ances toscos de
Ayn Rand, o capitalismo não parece despertar o mesmo fervor
que outros idea is econô m icos ou éticos. Não existe, com o afir
ma Krist ol, um a dim ensão “transcende nte” no capita lismo.1 9
Porém, um conservador d eve com eçar p or valorizar um a
“soc iedade com ercial”, não p or m otivos tr a n s c en d en te s - antes
po r mo tivos em píricos e imanent es. “O a m or ao l ucro , em bo
ra po r vezes levado a excess os ridícu los e vicio so s”, adverte
Burke , “é a gran de cau sa da prosper idad e de todos o s Esta
dos.”20E, quan do com parad a co m as al ternati vas eco nô m icas
rivais, a co m eç ar pelas desas trosas experiên cias coletivistas do
século xx , a “soci edade com ercial " fu n c io n a . Funcio na dupla
88
mais do que uma ameaça a tradições estabelecidas, deve ser
visto também como uma tradição estabelecida.
Começa por ser uma tradição pelo motivo prosaico de
que sob reviveu aos sucessivos “teste s do tem po ”. E sobre viveu
89
a dimensão epistemológica da “ordem espo ntânea” tem t am -
bém uma crucia l im portância política, ou seja, um relevan-
te papel antiautoritário. Porque a “ordem espontânea” nega o
monop ólio da decisão a um restrito clube de mentes l imitadas .
O princ ípio da imperfeição inte lectual dos ser es hum anos tem
aqui uma nov a palavra a dizer ao desau torizar a int olerável exi-
bição da arrogância racionalista dos que pretendem determinar
o que seres hum anos livres podem e devem procu rar por sua
conta e risco. Na “ordem espontânea”, os indivíduos serão os
melhores juizes em causa própria porque eles são também a
parte mais in teressada, e mais informada, d os seus p rojetos e fin s.
Não adm ira po r isso, e tal co m o suste nta Krist ol com sua
típica argúcia, que aquilo que parece inquietar o intelectual
anticapi talist a não seja tanto o m érito ou o demé rito da “socie -
dad e com ercial” de um pon to de vist a m eramente econ ôm i-
co. À esquerda e à d ireita, o que per turb a verdadeiramente os
“engenheiros da s almas hu mana s” é a perda de rev erênci a p or
qualquer teoria explicati va ge ral capaz de captar a com plex i-
dade da vida social e de prescr ever um a s oluçã o última para a s
suas várias iniquida des. A mentalidade m onista do intelect ual
secula r con vive m al com indivíduos que procur am livremente
os seus fins de vida sem atender em às recom end ações paterna-
listas e tantas vez es autorit árias de um a elite polít ica, filosófica
ou religiosa.2 2A feliz ex pressão live and let live é um anáte ma
para espíritos concentracionários.
Naturalmente que nesse live and let live existirão excessos, e
mesmo excessos destrutivos (e pouco criativos), que podem
coloca r em causa a ordem tradicional que se procura preservar.
90
O respeito pela liberdade das escolhas humanas não pode ser
confundido com uma reverência acrítica a qualquer resultado,
por mais perverso que seja, simplesmente porque ele é o subpro
duto dessa sacra liberdade. Um conservad or entende, c om o pou
9i
humanidade, mas para o seu egoísmo, e nunca lhes falamos das
nossas necessidades, mas antes das vantagens para eles.25
a es sa questã o - ou, mel hor, procu rar sabe r por que m otivo os
seres humanos nem sempre ag em vir tuosamente nu ma e co
nom ia de mercado - é o tipo de indagação fi losófic a que não
cab e no presente ensa io. Sobre essa questão, porém , é funç ão
de um conservador relembrar duas posições de princípio.
A primeira é questionar se com portamentos viciosos dentro
93
relembr a Jerry Mulle r - uma lembrança espe cial mente impor
tant e par a os herdeiros libert ários de Adam Smith que nunca
o leram com a atenç ão devida o Estado é a mais im po rtan
te instituição para o bom funcionamento de uma “sociedade
comercial”. Porque só o Estado garante a defesa da paz e da
ord em; a co nstru ção onerosa de grandes infra estrut uras que
não pod em depender a penas d o vo luntarism o da i nic iativa
priv ada; e a adm inistração independente da justi ça, cap az de
defender a propried ade privada, o resp eito pelos c ontra tos fir
mados ou a punição de crimes e abusos com etidos p or hom ens
97
as exper iência s fascistas q ue destro çaram a Europa. Recapitu-
lando: conservador, imobilista, reacionário, autoritário, fas
cista. Para que perder tempo com porm enores ?
Este ensaio, que agora termina, procurou perder tempo
98
“fortalecer o s n ossos m edos e a apur ar a nossa capacidade.”1
A ação revolucio nária, pelo contrário , obedece antes a um
“princípio de preguiça”: a preguiça de quem é incapaz de
pacientem ente estuda r e reform ar a com unidad e real, op tan do
99
A defesa da im perfeição intelectual humana co m eça por
desautorizar a procu ra de ideais utóp icos, sejam el es revolu
cionários o u reacionár ios, porque essas quimeras assentam na
arrogância própria de quem s e considera onipotente e onis
100
Em primeiro lugar, um governo modesto e prudente
começará por reconhecer, como diria Isaiah Berlin, a multi
plicidade de val ores e ob jetivos de vida que os ser es hum ano s
perseguem por sua conta e risco no contexto de um a socie dade
101
todos nós sangram os, rimos e mo rrem os de igual manei ra.
É por isso que, t al com o escreve H . B. Ac ton , “um a moralidade
mínima que proíbe o homicídio, a agre ssão, o roub o e a men tira
é igualmen te aceita p or liber ais e tradicionalistas”. 5
Um g ov ern o conserv ador nã o se li mita, entre tanto , a essa
“moralidade m ínim a”. Se os “val ores sec un dário s” são igual
ment e importantes para a vi da de um a com unidade - valore s
que os hom ens adquirem por participarem ness a comunidade
com o seu s mem bros -, será função do po der polít ico prot eger
e preservar es sas tradições em face de “ males secun dár ios”, ou
10 2
A o mesmo tempo que defende o mercado livre sob o impé
rio da le i, um con serva dor entenderá qu e a criaçã o de ri queza
será sempre condição basilar para que uma comunidade civi
lizada possa resgatar da pobreza e da privação os mais velhos,
10 3
part icular, qu alquer que ele seja e p or m ais nob re - em teoria
- que s eja. O s p rojetos parti culare s pertencem , precis amente,
aos p a r tic u la r es. C om o afirmaria T. S. Eliot, o m otiv o pelo qual
não existem “c ausas ganhas” e m p olítica é porque também não
existem “causas perdidas”: para um conservador, o imperativo
da c o n tin u id a d e é mais importante d o q ue a promessa de que
algo irá triunfar.9
Respondendo à pergunta de Oakeshott, é perfeitamente
possív el se r um conserv ador em p olítica e um radical em todo
o resto. Aliás, a ten tação final des te ensaio seria simp lesmente
dizer que a ún ica form a de “viverm os e deixarm os viver” pres
supõe a inexistência de radica is a governar-nos. “Nós toleramos
mo nom aníacos, é o nosso hábit o faz ê-lo”, afirma Oakeshott,
“mas po r que mo tivo devem os ser g o v e r n a d o s por eles?”10
Eis talvez o mais imp ortante princ ípio de uma so cie
A ID E O L O G IA C O N S E R V A D O R A
10 7
9 Cecil,Conservatism, p. 8.
10 Gilmour,Inside R ig h t, pp. 109-10.
11 Quinton,T he Polit ics o f Imperfect io n, p. 19.
12 Huntington, “Conservatism as an Ideology”. In: Th e A m eri can Pol it ic al
Science Review, p. 460.
13 Berlin,Liberty, p. 212.
14 Berlin,The Cro ok ed Ti m ber o f Hum ani ty, p. 20.
15 Hayek,Th e Co nstit ution o f Li ber ty , p. 411.
16 Ibidem, p. 404.
17 Huntington, “Conservatism as an Ideology”. In: Th e A m eri can Poli ti cal
Science R eview , p. 457.
18 Ibidem, p. 458.
19 Ibidem,pp. 460-1.
20 Ibidem, p. 458.
21 Ibidem, p. 468.
22 Ibidem, p. 460.
23 Scruton,G entle Regret s, p. 33.
24 Burke, “Reflections on theRevolution in France”.In:Works, v. 3, p. 407.
25 Ibidem, p. 440.
26 Ibidem, p. 339.
IMPERF EI ÇÃO HU M AN A
4 Burke, “An Appeal from the New to the Old Whigs”. In: Works, v. 4, p. 80.
5 Berlin, The Power o/ídeas,p. 134.
6 Berlin,P ersonal Im pressio ns, p. 28.
7 Ibidem.
8 Burke, “Reflections on theRévolution in France”.In:Works, v. 3, p. 263.
9 Burke, “Speech onthe Army Estimates”.In:Works, v. 3, p. 226.
10 Viereck,Conservatism, p. 47.
10 9
xi Burke, “Speech on Conciliation with America”. In:Works, v. 2, p. 139.
12 Scruton,The Uses o fPess im ism , pp. 153-65.
13 Berlin,The Cro ok ed Tim ber o f Hum ani ty , p. 12.
14 Scruton,T h e Meaning o f Con ser vat is m , pp. 26-7.
15 Strauss,N a tu ra l R ig h t a n d H isto ty , p. 12.
16 Ibidem, p. 9.
17 Ibidem, p. 15.
18 Ibidem, pp. 13-4.
19 Ibidem, pp. 18-9.
20 Burke, “A Letter to a Member of the National Assembly”. In:Works,
v. 4, p. 28.
21 Burke, “Letters ona Regicide Peace- iv”. In: Works, v. 6, pp. 89-90.
22 Burke, “Reflections on the Revolution in France”.
In:Works, v. 3, pp. 216-7.
23 Cecil,Conservatism, p. 246.
24 Hogg,Th e Case fo r Conser vati sm, p. 73.
25 Kekes,A Case fo r Conser vat is m , p. 34.
26 Essa sutil distinção, nemsempreentendidano argumentário pluralista
(e conservador), é analisada de forma superior por Quinton em
T he P oli ti cs
o fIm perf ect io n, p. 62.
27 Berry,H u m a n Nature, p. 58.
28 Kekes,A Case fo r Conser vat is m , p. 35.
29 0 ’Hara,Conservatism, p. 101.
30 Kekes, A Case fo r Conser vati sm, p. 102.
31 Scruton,Th e M eaning o fConse rvat is m, p. 79.
32 Berlin,The Cro oke d T imber o f Hum anit y, p. 204.
33 Scruton,T h e Meaning o f Cons erv ati sm, p. 13.
34 Essa contínua oscilação entreo passado eo presente naatuação “expe
diente”do estadista conservador é objeto de análise em: CharlesVaughan,
S tu dies, v. 2, p. 121.
35 Scruton,Th e M eaning o fCo ns er vat ism, p. 14.
110
OS TES TES DO TEMPO
9 Ibidem, p. 334.
10 Kekes, A Case fo r Conser vat is m , p. 117.
11 Burke, “Reflections on theRevolution in France”.In:Works, v. 3, pp. 241-2.
12 Oakeshott,Th e Poli ti cs ofF aith, pp. 86-7.
13 Burke, “Reflections on the Revolution in France”.In:Works, v. 3, p. 359.
14 Paine,R ig h ts o f M a n , pp. 11-2.
15 Esse importante paralelismo entre Paine e Locke encontra desenvolvi
mento em 0 ’Sullivan,Conservatism, p. 10.
16 Eliot,S elected Prose, p. 38.
17 Burke, “Reflections on the Revolution in France”. In: Works, v. 3, p. 346.
18 Oakeshott,R a tio n a li sm in P o li tics, p. 59.
19 Burke, “Reflections on the Revolution in France”. In: Wc>rHAU3, p. 274.
20 Wilkins,T he P robl em o f Bu rke’ s Po li ti cal Phil osophy, p. 110.
21 Kekes, A Case fo r Conservat is m , pp. 113-4.
22 Oakeshott, R a tio n a li sm in P oli tics, p. 60.
23 Burke, “Reflections on the Revolution in France”.In:W orks, v. 3, p. 347.
A R E F O R M A PR U D E N T E
111
3 Ibidem, p. 7.
4 Robin,Th e React io nary M ind, p. 24.
5 Acton,The M orais o f the Market s, p. 173.
6 Quinton,T he Po li ti cs o f Imp erf ect ion, p. 20.
7 0 ’Sullivan,Conservatism, p. 9.
8 Quinton,T he Polit ics o f Imperfe ct ion, p. 16.
9 Citado em Viereck, Conservatism, p. 43.
10 Popper,Conjecture s and Refutations, p. 176.
11 Burke, “Reflections on the Revolution in France”.In:Works, v. 3, p. 274.
12 Huntington, “Conservatism as an Ideology” In: The American Political
Science R evie w , p. 454.
13 Viereck,Conservatism, p. 87.
14 Burke, “Speech on Conciliation with America". In:Works, v. 2, p. 109.
15 Burke, “Speech on American Taxation”. In:Works, v. 2, p. 72.
16 Burke, “Reflections on theRevolution in France”.In:Works, v. 3, p. 259.
17 Ibidem, p. 562.
18 Kekes, A Case fo r Conser vati sm , p. 8.
112
A “ S O C IE D A D E C O M E R C IA L ”
14 Ibidem, v. 1, p. 117.
15 Ibidem, p. 443.
16 Himmelfarb,The Roads to M odernity, p. 68.
17 Thatcher, InD efen se o f F reedom , p. 25.
18 Kristol, TwoCheersfor Ca pit ali sm , p. x.
19 Ibidem.
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(Tocqueville) 36 Carlyle, Thomas 15,82-3
A p p e a lfr o m th e N e w to th e O ld Ca se fo r Conser vati sm , A (Kekes)
W hi gs, A n (Burke) 76 47 . 52
classes trabalhadoras 46
B
Coleridge, Samuel 15,35
Baldwin, Stanley 22
Colombo, Cristóvão 70
Barrès, Maurice 14
comportamento v irtu oso 93
Berlin, Isaiah 25-6,44-5,48,
comunismo 28, 97-8
54 .101
conservadorismo americano 72
Berry, Christopher 52
Conservatism (Viereck) 9
Bonald, Louis de 14 Con servati sm as an Ideol ogy
B r id e s h e a d Revisitei (Waugh) 7
(Huntington) 25
Buchan, John 23 Considerátions surla Fra nce
Burke, Edmund 10-12,14-18, (Maistre) 12
29-30,35-4 0 ,44-6, 51, 58, Con sti tuti on o f Libe rt y, T h e (Hayek)
60-2,64-5,68,72-9,85-8,
27
91, 98,100
CosiF a n T u tte (Mozart) 10
11 9
D Himmelfarb, Gertrude 87
D a n c in g w ith D o g m a (Gilmour) 16 Hirschman, Albert 67-70
Depont, Charles-Jean-François Hitler, Adolf 15
38
Hogg, Quintin 22, 52
déspota, despotismo 53 Homero 63
“disposição conservadora” Hooker, Richard 10
(Oakeshott) 21, 23-4
Huntington, Samuel 25-9,31,33,
Disraeli, Benjamin 15,46, 71 43-4, 86, 98-9
E
I
Eliot, T. S. 63,104 ideologia posicionai,
Elliot, Walter 23 conservadorismo como 28, 31,
Europa 14,46-7,74-5, 82,86,98 33- 43-4
Frederico da Prússia 15 J
jacobinismo 13
G Jaime 1146
George m 47,73
K
Gilmour, Ian 16,83-5
Kekes, John 11, 39,47, 52-4, 59-60,
governo conservador 100-3
65,75,101
Gray, John 83-4
Gregg, Samuel, 92 Kristol, Irving 88, 90
Lampedusa, príncipe de 69
H
Leste Europeu 84
Hayek, Friedrich 27, 89,102
liberalismo 28,72
Hearnshaw, Fossey John Cobb 22
liberdade 26,28,44,47-8,68,73,86,91
Heine, Fleinrich 82
120
livre-comércio 82-4 O
N Q
N a tu r a l R ig h t a n d H is to r y (Strauss) Quinton, Anthony 10, 24,33-4,
50 38.70.98.110
natureza humana 22, 52, 82, 87,
101,103
North, Douglass 39
12 1 ^
R S
Waugh, Evelyn 7
Wilde, Oscar 16
Willetts, David 18, 84-5,113
Wollstonecraft, Mary 79
Wordsworth, William 15,35
Agradecim entos
L is b o a , ja n e ir o d e 2 0 1 4
12 5
Sobre o autor
E que
que todos nos lembremos
o conservadorismo de
é, antes
de tudo, um humanismo.
R einaldo A zevedo
Jornalista, colunista da Folha de 1
S.Paulo, da Veja e comentarista da ■'
rádio Jovem Pan, é autor de Opais J
dos petralhas (Record), entre outros.