Weinhardt 9788577982141
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Weinhardt 9788577982141
História e memória
WEINHARDT, M., org. Ficções contemporâneas: histórias e memórias [online]. Ponta Grossa:
Editora UEPG, 2015, 261 p. ISBN 978-85-7798-214-1. Available from SciELO Books
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MARILENE WEINHARDT (Org.)
FICÇÕES
CONTEMPORÂNEAS
História e memória
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA
REITOR EDITORA UEPG
Carlos Luciano Sant’Ana Vargas Lucia Cortes da Costa
FICÇÕES
CONTEMPORÂNEAS
História e memória
Copyright © by Marilene Weinhardt (Org.) & Editora UEPG
Nenhuma parte deste livro, sem autorização prévia por escrito
da Editora, poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem
os meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos,
gravação ou quaisquer outros.
Equipe Editorial
Coordenação editorial Lucia Cortes da Costa
Revisão ICQ Editora Gráfica
Capa, Diagramação e Projeto gráfico Marco Wrobel
ISBN: 978-7798-85-197-7
CDD: B869.3
Editora UEPG
Praça Santos Andrade, n. 1
84030-900 – Ponta Grossa – Paraná
Fone: (42) 3220-3306
e-mail: vendas.editora@uepg.br
2015
SUMÁRIO
07 APRESENTAÇÃO
11
DAMIANA – PONTE E MARGEM: FICÇÃO
E HISTORICIDADE NA TRAJETÓRIA DE
UMA HEROÍNA CAIAPÓ
Gisele Thiel Della Cruz
43
PEQUENAS MEMÓRIAS:
A (RE)CONSTRUÇÃO DE
UM PASSADO INDIVIDUAL
Eduarda Regina Drabczynski da Matta
135
A VIDA COMO LITERATURA E
A LITERATURA PARA VIVER:
APONTAMENTOS SOBRE A FICÇÃO DE
SILVIANO SANTIAGO
Naira de Almeida Nascimento
167
A MEMÓRIA E O VAZIO AGRESSIVO:
SOBRE A ÉTICA DO LUTO EM “NÃO
FALEI”, DE BEATRIZ BRACHER
Emerson Pereti
215
A CONSTRUÇÃO DO RELATO
MEMORIALÍSTICO EM TRÊS CONTOS
CONTEMPORÂNEOS
Benedita de Cássia Lima Sant’Anna
OS AUTORES
259
APRESENTAÇÃO
O Grupo de Pesquisas Estudos sobre Ficção Histórica no Brasil, regis-
trado no CNPq desde 2003, há algum tempo deu a público o resultado de suas
investigações, sob o título Ficção histórica: teoria e crítica (EDITORA UEPG,
2011). Na obra que ora se apresenta estão reunidos resultados de novos es-
tudos, mantendo-se muitos dos participantes, bem como integrando novos
membros. A leitura sistemática da produção ficcional que se mostra rentável
da perspectiva do diálogo com a história demonstra que a recorrência do
discurso de memórias como recurso ficcional vem se intensificando. Daí a
tendência, verificada como predominante no conjunto, de apoio teórico sobre
formas de funcionamento da memória. Mas não há exclusividade. Continuam
atuantes os aportes buscados nas teorias sobre ficção histórica já compulsadas
anteriormente.
7
Ficções contemporâneas: história e memória
8
Apresentação
9
Ficções contemporâneas: história e memória
A Organizadora
10
DAMIANA - PONTE E MARGEM:
FICÇÃO E HISTORICIDADE NA
TRAJETÓRIA DE UMA HEROÍNA
CAIAPÓ
Gisele Thiel Della Cruz
Introdução
Pensando de maneira generalista, o saber é interdito à mulher há milê-
nios. Segundo Michelle Perrot (2012, p. 91), “como o sagrado, o saber é o apa-
nágio de Deus e o Homem, seu representante sobre a terra. É por isso que Eva
cometeu o pecado supremo”. Para as religiões do Livro (judaísmo, cristianismo
e islamismo), a interpretação e a leitura das escrituras são tarefas essencial-
mente masculinas. No período medieval essa concepção foi solidificada pela
Igreja Católica, que promoveu a prática do ensino, das coisas sábias, apenas aos
homens. No início da Idade Moderna, durante a Reforma protestante, a leitura
e a interpretação da Bíblia, para os fiéis daquelas novas religiões, puderam ser
feitas também pelas mulheres. A Europa protestante – norte e leste – criou
outras condições para a instrução feminina. Situação que não se evidenciou
no conjunto da Europa e, muito menos, em outros cantos do mundo.
11
Ficções contemporâneas: história e memória
Mesmo assim, ao longo do século XIX, conforme afirma Perrot, era grande
o número de mulheres que tentavam ganhar a vida pela pena. Escreviam em
1
Sobre o cânone e o lugar da escrita feminina, Muzart comenta: “A questão do cânone é estudada por
vários autores e pela crítica e teoria contemporâneas. Na verdade, muito além de um tema recorrente
da crítica de hoje é um tópico feminista dominante e uma questão crucial para nosso ensaio. Nesta
pesquisa, procuramos discutir as razões da marginalização das mulheres e sua ausência no cânone
literário brasileiro. Ao mesmo tempo em que gostaríamos de vê-las inseridas nas histórias da literatura,
não nos agrada vê-las separadas num espaço exclusivo, tal como se encontram na História da Literatura
Brasileira, de Luciana Stegagno-Picchio, recentemente editado no Brasil pela Nova Aguilar, em que temos
um capítulo intitulado ‘A escrita das mulheres’ e outro, ‘Poetas mulheres’. Também no livro de Dominique
Rincé e Bernard Lecherbonnier, Littérature – textes et documents, as mulheres estão segregadas num
capítulo dedicado somente a elas. [...] Lutar pela inserção das mulheres no cânone literário é uma questão
feminista: a inclusão das marginalizadas” (MUZART, 1999, p. 25).
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Damiana - ponte e margem: ficção e historicidade na trajetória de uma heroína caiapó
2
Lúcia Castello Branco ao escrever O que é a escrita feminina deixa claro que ela extrapola a categorização
sexual. Ao mesmo tempo em que o feminino não se restringe a uma leitura sexualizante da escrita,
também não se opõe frontalmente a ela. Segundo a pesquisadora, a escrita feminina está em interseção
com o signo mulher, mas não se restringe a ele. Nesse sentido, nem sempre ela é uma escrita de mulher.
Esse tipo de escrita apresenta características frequentes, tais como: a inflexão de voz (respiração
simultaneamente lenta e precipitada) e tom oralizante da escrita. Filia-se a essa “tradição” um número
maior de mulheres do que de homens. Ainda, de acordo com Castello Branco, a escrita feita pelas mulheres
tem certa assiduidade do gênero memorialístico ou autobiográfico, o que, segundo a autora, tem relação e
explicações em teorias e referências histórico-sociais das mulheres confinadas ao lar.
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Ficções contemporâneas: história e memória
Por isso, o simples fato de protagonizar uma história e (ou) ter o nome
na capa da obra romanesca em pouco promoveu a mulher para fora de um
estereótipo que se multiplica “n” vezes na literatura oitocentista (seja ela
romântica ou realista). É claro que o modelo literário era outro e, sem dúvi-
da, é caudatário de uma época. O que se leva em consideração é que, nesse
propósito, nesse modelo, a mulher era representada dentro de uma moldura
que pouco se modificava.
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Damiana - ponte e margem: ficção e historicidade na trajetória de uma heroína caiapó
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Ficções contemporâneas: história e memória
Angraíocha: “A paz não estará feita enquanto todo seu povo não vier, ou pelo
menos o cacique principal, seu filho Angraíocha” (SILVEIRA, 2006, p. 22).
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Damiana - ponte e margem: ficção e historicidade na trajetória de uma heroína caiapó
A situação caiapó não estava muito fácil, o aparato bélico havia destruído
inúmeras aldeias, diferente de anos atrás quando diversas incursões brancas
haviam sido rechaçadas. Ao longo dos séculos XVII e XVIII, centenas de índios
foram escravizados e levados para São Paulo. As minas de diamante e ouro
descobertas em Goiás, Mato Grosso e triângulo mineiro pertenciam ao território
panará e, por isso, atraiam cada vez mais expedições. Ataques, construção
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Ficções contemporâneas: história e memória
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Damiana - ponte e margem: ficção e historicidade na trajetória de uma heroína caiapó
caiapó: “O respeito que eles me têm é grande demais para que não façam o
que eu mandar” (SAINT-HILAIRE, 1975, p. 72).
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Damiana - ponte e margem: ficção e historicidade na trajetória de uma heroína caiapó
Nos anos que permaneceu em Vila Boa, durante a estada de Dom Luiz,
Damiana convivera com os diferentes ritos e cerimônias ofertadas pelo mundo
branco. Os rituais que marcavam os dias santos e a encenação e o colorido de
cada um deles eram admirados e registrados por Damiana que, maravilhada
com os acontecimentos, parecia imergir no mundo branco.
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Ficções contemporâneas: história e memória
o governador deixa para trás a afilhada, que volta a morar com seu povo no
aldeamento de Maria Primeira.
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Damiana - ponte e margem: ficção e historicidade na trajetória de uma heroína caiapó
difere da Damiana dos registros históricos do século XIX e início do XX, aquela
é uma mulher que não quer catequizar seus pares, apenas deseja garantir o
melhor para eles e, naquele momento, o melhor é o aldeamento.
3
Segundo Mayra Cristina Silva Faro (2010): “Em alguns lugares as mulheres são restritas à prática
do xamanismo, consideradas ‘impuras’, provocadoras de desordem ou incapazes de lidar com forças
poderosas e espirituais (MOTTA-MAUÉS, 1993). Em outros lugares, porém, são consideradas detentoras
de poder, capazes de curar e mobilizar as forças sobrenaturais tão bem quanto os homens (TEDLOCK,
2008). Sua restrição ou não no campo do xamanismo ou da religião depende muito mais do campo social
que fora ali construído do que de princípios biológicos ou próprios da fisiologia feminina”.
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Ficções contemporâneas: história e memória
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Damiana - ponte e margem: ficção e historicidade na trajetória de uma heroína caiapó
uma vez que a índia teria se convertido e, para o mundo “civilizado”, as bên-
çãos divinas só aconteceriam assim. Afinal, Damiana deveria dar o exemplo.
O casamento, registrado pela história, não deixa de constar na obra ficcional.
Damiana e José Luiz não se importam de passar pelo casamento cristão, afi-
nal, de acordo com as leis dos caiapós, eles já estavam casados. No entanto, é
dentro dos costumes indígenas que eles irão viver, na casa da família dela, sob
a choça grande, fazendo amor livremente: entre risos, levezas e corpos nus.
Quatro expedições ao sertão serão feitas pela índia caiapó, a partir desse
momento. Para a Damiana ficcionalizada, sua missão era reascender a chama
da alegria e do orgulho que os panará perderam. Assim, a cada ida ao interior
falava para as aldeias e persuadia dezenas de panarás. Era necessário recobrar
as forças para poder lutar contra o inimigo. Conhecer o inimigo. Na narrativa
romanesca, os panará são um povo forte e guerreiro, a tradição e as falas de
Angraíocha e Romexi falam da batalha, das táticas de guerra e do ideal da terra
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Ficções contemporâneas: história e memória
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Damiana - ponte e margem: ficção e historicidade na trajetória de uma heroína caiapó
fala como homem, conhece as ervas como os homens, lidera como eles. Na vila:
transita pelas ruas enquanto as brancas estão dentro de casa. Não é escrava
como as negras e não é tratada como subserviente, mesmo sendo índia. As
distinções de raça e de classe diferenciam as mulheres, as classificam em graus
de importância e atribuem a elas lugares e normas sociais que são proposi-
talmente diferentes. Em espaços e situações sociais heterogêneos, Damiana
ocupa variadas posições e papéis. Damiana é múltipla e, em grande medida,
é construída pelos contrastes. Reza e fala em duas línguas, é casada com um
branco, conversa e debate com os homens, não é submissa às demais mulhe-
res ou fica trancafiada nas casas de Vila Boa. Seu ser feminino é o contraste.
A única mulher branca que depois de Damiana não ser mais criança
lhe dirigia a palavra era dona Ana, mulher de Dom Castilho. Ela era uma das
poucas mulheres da Vila que tinham alguma intimidade com a índia. Filha
de um carpinteiro, Dona Ana vivia com o governador. Sua condição social
inferior e seu jeito de mulher da terra impediam que Dom Castilho assumisse
um casamento. Tempos depois, no Rio de Janeiro, às vésperas de embarcar
para Portugal, sem ter coragem de contrair núpcias, prefere o suicídio. Dona
Ana aceitava e permitia que a índia dormisse no palácio, lugar onde, um dia,
Damiana passara suas noites de infância4.
4
O dilema de Fernando Delgado Freire de Castilho (1809-1820) está registrado por Saint-Hilaire em
visita ao palácio do governador, em Vila Boa. Durante um dos jantares, um alto funcionário do governo
observando os costumes e a vida dos habitantes da localidade comenta ser inconcebível os homens
viverem com suas amantes em suas próprias casas como se fossem esposas. Depois do mal estar, o
governador comenta: ‘o senhor acha que eu poderia casar com a mãe dessas crianças, com a filha de
um carpinteiro?’. Segundo o próprio viajante, em agosto de 1820, pronto para retornar a Portugal,
Fernando Delgado não suporta o seu dilema e põe fim à vida” (SAINT-HILAIRE, 1975, p. 56). Tal registro
é integralmente reformulado em um diálogo entre Dona Ana e Damiana, em um discurso indireto livre e,
depois, diretamente pela voz narrativa que antecipa os fatos que virão. Se Damiana fora conversar com o
governador muitas vezes para resolver as questões entre índios e brancos, ao longo de 20 anos, conflitos
como esse a deixaram mais confusa sobre o mundo dos brancos. Na obra ficcional é uma Damiana
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Ficções contemporâneas: história e memória
Enfim, “sua benção e sua maldição de ponte é esta: poder ver dos dois
lados. Como se tivesse, se isso fosse possível, dois corações. E dois corações
que sofrem” (SILVEIRA, 2006, p. 166). As demais expedições se sucederam e
marcaram os anos seguintes da vida de Damiana, do aldeamento e de Vila Boa.
A fome e a desolação aumentavam por todas as aldeias caiapós e, a cada ida
ao sertão, as promessas de que era preciso revigorar-se no aldeamento eram
repetidas. Por outro lado, os conflitos abertos, as revoltas e as retiradas são
parte do cotidiano dos grupos que entram e saem de Mossâmedes. Os embates
entre índios e brancos se intensificam e muitos índios ficam desanimados com
as promessas não cumpridas, o trabalho pesado e a falta de perspectivas. A
presença de soldados para manter a guarda torna-se uma constante. Várias
vezes Damiana irá conversar com os diferentes governadores que administram
Goiás Velho. São dela as palavras de diplomacia e os pedidos para repensar
espantada com a dúvida dos brancos que se apresenta ao leitor. A notícia da morte de Dom Castilho, ao
chegar à Vila Boa, lhe traz lembranças: “O caso de Dom Castilho Delgado se complicara porque ele quis
levar para a sua terra a mulher pela qual se apaixonara. Mas sem se sentir capaz de enfrentar abertamente
a fidalguia portuguesa. Que não pedissem a Damiana para entender esse drama. Por mais que tentasse
imaginar Don’Ana e seus filhos sendo olhados com os olhos que tanto temia na cidade dos brancos – os
olhos do ódio, do medo e do desprezo, ou os olhos que não a viam – não conseguia compreender a razão
daquela morte” (SILVEIRA, 2006, p. 200).
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Damiana - ponte e margem: ficção e historicidade na trajetória de uma heroína caiapó
castigos infringidos aos índios. Questões que poderiam originar grandes con-
flitos aparentemente atenuados, disfarçadamente resolvidos.
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Ficções contemporâneas: história e memória
5
Entre 1808 e 1830, Damiana esteve várias vezes na região dos rios Araguaia e Camapuã, retornando
das expedições com dezenas de caiapós. Tal atitude garantiu à índia admiração e respeito das autoridades
de Goiás. Em certa ocasião, após cometerem “roubos, depravações e assassinatos” no final de 1829, os
caiapós fugidos da repressão apareceram na região do rio Claro, aterrorizando os moradores. O presidente
de Goiás, Lino de Moraes, chamou Damiana para lhe ajudar a contornar a situação. Segundo Joaquim
Norberto (1861), “Era o digno marechal Miguel Lino de Moraes, presidente da provincia, que a chamava,
implorando o soccorro da mulher missionaria; e pela quarta vez deixou ella a sua habitação e aceitou a
tarefa ardua mas honrosa que se lhe commettia em nome da civilisação” (SOUSA E SILVA, 1861, p. 531-
534). Damiana parte, em 1830, junto como marido Manuel Pereira da Cruz e os índios José e Luíza. Ao
retornar, traz consigo 32 índios. Mais uma vez é recebida com danças e alegria pelos aldeados. Depois
dessa expedição, Damiana fica doente.
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Damiana - ponte e margem: ficção e historicidade na trajetória de uma heroína caiapó
Ainda:
Soberana que unira seu destino ao do homem branco, mas que,
ante a iminência do perigo de sua gente, se punha nua, pintava o
corpo e se embrenhava pela floresta com os seus e pelos seus.
Damiana da Cunha Meneses, heróica filha das florestas, expirou
lutando pela civilização e liberdade dos seus irmãos selvagens, que
ela tanto soube compreender e amar (BRITTO, 1974, p. 62).
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Ficções contemporâneas: história e memória
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Ficções contemporâneas: história e memória
É a mesma voz que dialogou com índios e brancos que desaparece quando
Damiana sente-se impotente diante da miséria e da tristeza panará. A força
da palavra já não estava mais com ela. Estar muda é estar incapaz de liderar
e de alterar a condição. Por isso é o silêncio da líder caiapó que o narrador vai
descrever, no momento em que Krekô também deseja partir de Mossâmedes:
Teseya e Manoel respeitam o pedido do velho Krekô e não contaram
nada a Damiana. Achavam que, se ficasse sabendo, ela ia querer
não impedir – que isso ninguém podia – mas tentar convencer o
velho cacique a ficar. Ia mais uma vez se sentar ao pé da fogueira à
noite e falar dos antepassados, dos tempos antigos, da necessidade
de ficarem para enfrentarem juntos o tempo das desgraças.
Mal sabiam eles que Damiana, dessa vez, talvez não tivesse nada a
dizer (SILVEIRA, 2006, p. 236).
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Damiana - ponte e margem: ficção e historicidade na trajetória de uma heroína caiapó
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Ficções contemporâneas: história e memória
Considerações finais
Os estudos que vêm apresentando novas perspectivas da escrita lite-
rária, da produção das “margens”, atentam para um novo espaço ocupado
pela literatura escrita por mulheres. Se, no século XIX e parte do XX, escrever
para a mulher requeria transgressão e quase transcendência do próprio sexo
(na medida em que se afastava de sua condição social fundamental: esposa
e mãe), essa tendência comportamental (quer do mercado editorial, quer do
público leitor, quer mesmo da crítica) tendeu a definhar. O percentual de obras
de criação realizadas por mulheres tem aumentado. Uma de suas vertentes
é o romance histórico. Esse subgênero acena para o amadurecimento da lite-
ratura escrita por mulheres e para o lugar que tais escritoras têm ocupado na
produção romanesca.
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Damiana - ponte e margem: ficção e historicidade na trajetória de uma heroína caiapó
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Ficções contemporâneas: história e memória
goiana. Como há quase cinquenta anos, a cidade para com a intenção de ver o
espetáculo. Há salvas de canhão e os sinos a tocar, refazendo o grande ritual.
Damiana representa a sua gente, entrando de forma triunfal:
Vêm solenes, passos duros e medidos, e rápidos – que índio não anda
devagar –, fazendo levantar, como para fazer parte da coreografia, o
pozinho fino da terra seca e vermelha, poeira que se adensa e sobe
como nuvem especialmente convocada para emoldurar o grupo por
trás. No conjunto, é uma nuvem de carne e osso avermelhando a
cidade e fazendo ressoar o barulho surdo da batida ritmada de
quinhentos pés cayapós (SILVEIRA, 2006, p. 24).
Damiana rompe, inúmeras vezes, com as tradições que lhe são impostas:
seja pela civilização branca, seja pela vida indígena. Em relação à primeira,
o rompimento se concretiza quando retorna à aldeia e, junto com Romexi,
aprende os segredos da cura, da pajelança, da palavra e da herança panará.
Damiana desfaz-se do projeto catequético-cristão que foi construído em seu
entorno. Até que, finalmente, em última instância, levar seus companheiros
panará para Mossâmedes não soa mais como tarefa sua. Em contrapartida,
as tradições indígenas também, em alguma medida, são abandonadas e (ou)
modificadas. No que se refere a elas, Damiana, uma mulher, toma para si a
liderança espiritual de um povo, casa-se com um homem branco, domina uma
língua desconhecida e mistura e compreende os ritos dos brancos. Ela é a sín-
tese de dois mundos e responde pelas opções que faz. Em alguns momentos
é o fiel da balança, em outras define as situações.
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Damiana - ponte e margem: ficção e historicidade na trajetória de uma heroína caiapó
REFERÊNCIAS
ARAÚJO, A. L. A representação da mulher no romance contemporâneo de autoria
feminina paranaense. Dissertação (Mestrado em Letras). Universidade
Estadual de Maringá, Maringá, 2012.
BENJAMIN, W. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In:
___. Obras escolhidas 1. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense,
1994.
BERND, Z. Em busca dos rastros perdidos da memória ancestral: um estudo
de Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves. Estudos de literatura brasileira
contemporânea, n. 40, jul./dez. 2012, p. 29-42.
BRITTO, C. C. S. de. A mulher, a história e Goiás. Goiânia: Departamento
Estadual de Cultura; Editora Cultura Goiana, 1974.
CANDIDO, A. A personagem do romance. In: _____. et. al. A personagem da
ficção. São Paulo: Perspectiva, 2009.
CASTELLO BRANCO, L. O que é escrita feminina. São Paulo: Brasiliense, 1991.
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Ficções contemporâneas: história e memória
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PEQUENAS MEMÓRIAS:
A (RE)CONSTRUÇÃO DE UM
PASSADO INDIVIDUAL
Eduarda Regina Drabczynski da Matta
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Ficções contemporâneas: história e memória
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Pequenas memórias: a (re)construção de um passado individual
“Nossa fala, isto é, nossos enunciados [...] estão repletos de palavras dos outros,
introduzem sua própria expressividade, seu tom valorativo, que assimilamos,
reestruturamos, modificamos” (BAKHTIN, 1997, p. 314). Assim também
funcionam nossas lembranças, quando, por exemplo, vivenciamos as mesmas
histórias que a nossa família. É certo que as impressões individuais dessas
histórias podem divergir, mas seu registro foi coletivo, sendo compartilhado
e, dessa forma, internalizando-se na nossa memória individual.
[...] ao mesmo tempo, um outro e o mesmo ser, uma identidade
confirmada pelo reconhecimento e uma identidade roubada
pela imagem. Por isso, entre o modelo autobiográfico e sua
reprodução textual existe uma identidade fantástica (eu é um
outro), compensada por uma alteridade tranquilizadora (o outro é
semelhante ao eu) (ROCHA, 1977, p. 73).
Sorabji (apud LIMA, 2009, p. 131), afirma que “as imagens da memória
não são idênticas às imagens dos sentidos, mas são produzidas por elas por uma
espécie de processo de impressão”. É por meio de tal processo que Saramago,
por muitas vezes, coloca em xeque a veracidade das suas lembranças, como no
seguinte trecho: “e o meu fato novo, se não é falsa memória minha, apertava-
me debaixo dos braços”. (SARAMAGO, 2006, p. 98). No entanto, o que implica,
aqui, não é se de fato a memória é verdadeira ou não, mas o que essa lembrança,
mesmo que falsa, significou nesse passado para o entendimento do seu autor
no presente da rememoração.
A criança que eu fui não viu a paisagem tal como o adulto em que
se tornou seria tentado a imaginá-la desde a sua altura de homem.
A criança, durante o tempo que o foi, estava simplesmente na
paisagem, fazia parte dela, não a interrogava, [...] (SARAMAGO,
2006, p. 18, grifos do autor).
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Ficções contemporâneas: história e memória
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Pequenas memórias: a (re)construção de um passado individual
Luiz Costa Lima quando diz que “tempo e percepção sensível são os traços
indispensáveis para a elucidação da lembrança em geral” (LIMA, 2009, p. 130).
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Ficções contemporâneas: história e memória
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Pequenas memórias: a (re)construção de um passado individual
que se fundamenta em nossa análise, é a de que contar histórias que não são
nossas é, por vezes, muito mais interessante e confortável do que contar feitos
do nosso próprio passado. Nos episódios presentes em As pequenas memórias,
as histórias de Saramago são retratos de sua infância e juventude, como bem
se sabe, mas não há, nessas passagens, feitos grandiosos e aventuras dignas
de análise e aprofundamento. O que encontramos são apenas registros de
algumas histórias que o autor viveu, destacadas unicamente pela relação que
estabelecem com o futuro, presente da enunciação, deste autor. É, portanto,
no momento da escrita e, consequentemente, da evocação dessas memórias,
que Saramago reflete sobre seu passado. Um exemplo disso se dá na seguinte
passagem: “(é agora que o estou a pensar, não nessa altura) [...] sensações que
na minha memória iriam ficar para sempre associadas à cegueira e que prova-
velmente se reproduziriam no Ensaio” (SARAMAGO, 2006, p. 104, grifo nosso).
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Ficções contemporâneas: história e memória
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Pequenas memórias: a (re)construção de um passado individual
que Saramago expunha em suas obras. Agora, falando da vida desse autor,
encontramos um exemplo que faz jus a esse elo que ele tanto propunha:
O receio, que hoje ainda, apesar de algumas harmoniosas
experiências vividas nos últimos tempos, mal consigo dominar
quando me vejo perante um representante desconhecido da espécie
canina, vem-me, tenho a certeza, daquele pânico desabalado que
senti, teria uns sete anos, quando [...] se abriu de repente a porta e
por ela desembestou, como a pior das feras malaias ou africanas, o
lobo-d’alsácia de uns vizinhos que, imediatamente, para honrar o
nome que tinha, começou a perseguir-me, atroando os espaços com
os seus latidos furiosos, enquanto o pobre de mim, desesperado,
fintando-o atrás das árvores o melhor que podia, gritava que me
acudissem (SARAMAGO, 2006, p. 20-21).
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Ficções contemporâneas: história e memória
íntima para o seu autor, pois, de alguma maneira, propiciaram uma reflexão
quando no momento da enunciação, que atuou diretamente na formação e no
desenvolvimento das identidades de Saramago. Citando Halbwachs, “se nossa
impressão pode apoiar-se não somente sobre nossa lembrança, mas também
sobre a dos outros, nossa confiança na exatidão de nossa evocação será maior,
como se uma mesma experiência fosse recomeçada, não somente pela mesma
pessoa, mas por várias” (SARAMAGO, 2006, p. 16).
Ainda sobre a seleção das lembranças, “ao passo que a memória é reten-
tiva, conservando uma cena do passado, a evocação supõe a busca de recuperar
o que passou a partir do resto que se tenha guardado” (LIMA, 2009, p. 135).
Ou seja, é sempre necessário ter um ponto de partida para que seja possível
realizar uma associação das ideias. E o ponto de partida de Saramago foi Azi-
nhaga, pequena província onde nasceu:
Foi nestes lugares que vim ao mundo, foi daqui, quando ainda
não tinha dois anos, que meus pais, migrantes empurrados pela
necessidade, me levaram para Lisboa, para outros modos de
sentir, pensar e viver, como se nascer eu onde nasci tivesse sido
consequência de um equívoco do acaso, de uma casual distracção do
destino, que ainda estivesse nas suas mãos emendar (SARAMAGO,
2006, p. 10).
52
Pequenas memórias: a (re)construção de um passado individual
A partir do trecho de Rosenfeld, podemos afirmar que tudo seria mais fácil
para a retomada de lembranças se o mundo vivido fosse o ficcional, existindo
um narrador para mostrar o ambiente como um todo e narrar as situações
das quais Saramago criança não se recorda. A “compreensão que nos vem do
romance, sendo estabelecida de uma vez por todas, é muito mais precisa do
que a que nos vem da existência. Daí podermos dizer que a personagem é
mais lógica, embora não mais simples, do que o ser vivo” (CANDIDO, 2011,
p. 59). Com relação à ficção, há sempre uma mensagem, um círculo que se
fecha, um sentido.
Ler ficção significa jogar um jogo através do qual damos sentido
à infinidade de coisas que aconteceram, estão acontecendo ou
53
Ficções contemporâneas: história e memória
Sempre se soube que Saramago via na literatura uma função social. Tal-
vez, e isso é uma hipótese, Saramago buscasse, com As pequenas memórias, ser
atingido, por assim dizer, pela funcionalidade da literatura quando o assunto
dizia respeito à sua própria vida, de modo que tudo o que viveu e que em alguns
momentos não fazia sentido para si mesmo, pudesse ser respondido quando se
tornasse ficção, em que, “graças ao vigor dos detalhes, à ‘veracidade’ de dados
insignificantes, à coerência interna, à lógica das motivações, à causalidade dos
eventos etc., tende a constituir-se a verossimilhança do mundo imaginário”
(ROSENFELD, 2011, p. 20). Sabemos também que, em muitas passagens,
Saramago questiona a autenticidade de suas memórias, o que nos faz con-
cluir que sua intenção de veracidade da narrativa é menor que a intenção de
estabelecer um sentido a ela, como podemos perceber com o seguinte trecho:
Em rigor, em rigor, penso que as chamadas falsas memórias não
existem, que a diferença entre elas e as que consideramos certas e
seguras se limita a uma simples questão de confiança, a confiança
que em cada situação tivermos sobre essa incorrigível vaguidade
a que chamamos certeza. É falsa a única memória que guardo do
Francisco? Talvez o seja, mas a verdade é que já levo oitenta e três
anos tendo-a por autêntica... (SARAMAGO, 2006, p. 110).
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Pequenas memórias: a (re)construção de um passado individual
Ainda sobre a verdade, “enquanto não [a] alcançares [...], não poderás
corrigi-la. Porém, se não a corrigires, não a alcançarás. Entretanto, não te
resignes”. (SARAMAGO, 2010, epígrafe). A verdade a que se fala é algo que
se constrói, e não pode ser vista como única, mas sim como uma. A grande
verdade a que se remete o trecho é inalcançável. Há, pois, verdades. Verdades
sobre os registros de nosso passado, seja ele histórico ou individual. Verdades
sobre nós mesmos, sobre nossa essência e formação. Verdades sobre todos
os discursos, sejam eles históricos, religiosos, sociais, culturais, subjetivos e
os mais diversos que existem. Verdades sobre o que acreditamos ser verdade.
Verdades, pois, sobre nossa memória e suas ilusões.
Assim como as verdades puras não existem, também as puras
falsidades não podem existir. Porque se é certo que toda verdade
leva consigo, inevitavelmente, uma parcela de falsidade, quanto
mais não seja por insuficiência expressiva das palavras, também
certo é que nenhuma falsidade pode ser tão radical que não veicule,
mesmo contra a intenção de mentiroso, uma parcela de verdade.
[...] De fingimentos de verdade e de verdade de fingimentos se
fazem, pois, as histórias. (SARAMAGO, 1998, p. 27).
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Pequenas memórias: a (re)construção de um passado individual
57
Ficções contemporâneas: história e memória
1
Disponível em: <http://www.releituras.com/fpessoa_psicografia.asp>. Acesso em: 09 set. 2014.
58
Pequenas memórias: a (re)construção de um passado individual
sugestivas” (2011, p. 67, grifo do autor). Dessa forma, mais uma vez, afirmamos
que, mesmo que a memória tente resgatar o passado tal como ele aconteceu,
é preciso recorrer à imaginação para transformá-lo em discurso.
A evocação converte-se, por conseguinte, em semente da mímesis
quando deixa de procurar restaurar o passado, senão que dele se
desvia e tematiza o que, a partir do resto guardado, na memória
coletiva ou privada, é passível de ser desdobrado com aquele resto.
Entender que a mímesis (uma certa mimesis) contém uma inventio
significa que ela inclui, absorve e transforma um resto; quando ele
é identificado, é entendido como referência (LIMA, 2009, p. 141,
grifos do autor).
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Ficções contemporâneas: história e memória
Assim foi, mesmo que mentira. Nunca o saberemos. Assim é, sem ver-
dades e falsidades, a memória.
60
Pequenas memórias: a (re)construção de um passado individual
REFERÊNCIAS
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ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2001.
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Ficções contemporâneas: história e memória
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POR SENDAS E FENDAS DE
“SINHÁ BRABA”
Maurício Cesar Menon
Do autor
Natural de Matosinhos-MG, Agripa Vasconcelos iniciou sua carreira
literária com o livro Silêncio (1920), que o levou, aos 22 anos de idade, a con-
quistar um lugar na Academia Mineira de Letras, sucedendo a Alphonsus de
Guimaraens. Em 1949 obteve o prêmio Olavo Bilac da Academia Brasileira de
Letras. O escritor produziu uma obra bastante fértil, transitando entre a poesia,
a narrativa, o ensaio e textos de caráter científico na área da saúde, uma vez que
tinha formação médica. De toda sua produção, porém, destaca-se o conjunto
de romances denominado, pelo próprio autor, de “Sagas do País das Gerais”.
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Tom didático
Sinhá Braba, assim como os outros romances componentes das “Sagas
do País das Gerais”, apresenta um tom didático que se revela, de forma mais
explícita, em elementos que compõem aquilo que Gérard Genette denominou
de paratexto editorial, como capa, contracapa, epígrafes, apresentações etc.
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O elucidário, para ser fiel ao termo usado pelo autor, aparece ao final
do romance e constitui, certamente, o elemento mais didático empregado na
obra, tendo em vista o seu caráter pedagógico de auxiliar o leitor a compre-
ender os termos regionais, de época e de outros idiomas menos conhecidos
dos brasileiros, como o das línguas africanas. É incomum de se observar nas
obras literárias a presença de elucidários, mesmo quando elas são tecidas com
uma linguagem mais experimental; geralmente os autores permitem que a
incursão por palavras pouco conhecidas, arcaísmos, termos em outras línguas
e neologismos também façam parte do estratagema ficcional. O escritor das
Sagas das Gerais cria, em todos os seus romances históricos, o artifício do elu-
cidário ou glossário, com finalidade única de facilitar a leitura, o que pode ser
bom no sentido da comodidade, mas põe algo a perder no sentido de formar
um leitor mais audaz, que perceba a linguagem, mesmo que trabalhosa, como
parte do universo a ser desvendado.
Por fim, dentre todos, surge um elemento não muito estranho a uma
ficção histórica: a presença de uma bibliografia no encerramento do volume.
As trinta referências elencadas só podem ter uma função que é a de mostrar
o campo de pesquisa percorrido pelo escritor para compor sua obra. Sinhá
Braba, talvez seja, em comparação com os outros seis romances, aquele que
mais faça referência a fatos, vultos, datas e lugares históricos. A priori seria
possível crer que essa insistência do escritor em reafirmar a veracidade dos
fatos prejudicasse a ficcionalização desses mesmos fatos; não é o que ocorre,
todavia, pois o resultado é uma obra que incorpora os componentes históricos
mixando-os com imaginação criativa e domínio de técnica narrativa, como se
perceberá no seguimento.
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Todos os romances que compõem “As Sagas do País das Gerais”, à ex-
ceção de Fome em Canaã e Ouro Verde e Gado Negro, são escritos de forma a
evidenciarem uma personagem-síntese, de natureza histórica, que represente
cada ciclo tematizado. Dona Beja, já citada como exemplo, torna-se símbolo
do ciclo do povoamento de Minas Gerais por conta da influência crucial que
exerceu na anexação do território que hoje se conhece por Triângulo Mineiro
a Minas Gerais que, outrora, o havia perdido para Goiás. Essa ideia a respeito
da personagem-síntese pode ser percebida na introdução que o escritor faz
a Sinhá Braba em que, de alguma forma, acaba por justificar a escolha da
personagem:
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O que mais chama a atenção nessa cena vem a ser o comentário desferido
pelo narrador logo após os dois pontos, supondo os desdobramentos daquela
cópula. O ato que, aparentemente, não passa de simples acontecimento no
reino animal apresentará consequências futuras e trágicas que afetarão a vida
de pessoas que vivem em torno do espaço. A cena assemelha-se àquela des-
crita por Júlio Ribeiro em A Carne (1888), que mostra a personagem Lenita
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Ficções contemporâneas: história e memória
assistindo ao coito entre um touro e uma vaca – cena cujas marcas se tornaram
indeléveis na protagonista. O mesmo princípio do episódico que se desdobra
em algo de maior importância é utilizado em ambas as narrativas dosado em
proporções diferentes: enquanto o episódio do romance de Júlio Ribeiro atinge
e modifica o comportamento da protagonista, o descrito em Sinhá Braba se
constituirá em mais uma contingência que poderá afetar a vida daqueles que
moram e trabalham no campo.
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Por sendas e fendas de “Sinhá braba”
2
“Confidência do Itabirano” (Carlos Drummond de Andrade).
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Ficções contemporâneas: história e memória
REFERÊNCIAS
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GENETTE, Gérard. Paratextos editoriais. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.
HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime, 2. ed. Trad. Célia Berrettini. São
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______. Chico rei. Belo Horizonte: Itatiaia, 1966.
______. Fome em Canaã. Belo Horizonte: Itatiaia, 1966.
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Por sendas e fendas de “Sinhá braba”
Agradecimentos
Agradeço ao CNPQ pela concessão da bolsa de pós-doutorado júnior para a
realização da pesquisa sobre os romances históricos de Agripa Vasconcelos,
na UFPR, sob supervisão da professora Dra. Marilene Weinhardt.
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PARÓDIA E CONDIÇÃO NACIONAL:
ESTUDO SOBRE A FICÇÃO
HISTÓRICA DE ANA MIRANDA
Eunice de Morais
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1
O melhor exemplo desta crítica é o poema Triste Bahia, que fala das transformações ocorridas na cidade
devido à chegada da “máquina mercante” que a fez dar “tanto açúcar excelente pelas drogas inúteis”. Deste
modo, o poeta coloca os mercadores como o primeiro móvel da ruína da cidade.
2
A expressão é de Joaquim Nabuco e sintetiza a ideia de que “O espírito humano, que é um só e
terrivelmente centralista, está do outro lado do Atlântico”.
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E o cazo he mostruzidade,
porem não hê maravilha,
que haja cobras, e largartos,
entre tanta sevandija
Sô digo que he boa pessa,
por que na pessa escondida
vêlla na pessa de noyte,
dorme na pessa de dia.
(MATOS, 2009, grifos nossos).
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centro a outro sem definir-se3. O espírito de época que pode ser lido na poesia
de Gregório de Matos está lá não apenas porque ele vivia no século XVII, mas
também porque ele observava, conhecia, atuava e, mais importante, porque
ele registrou-se, através da linguagem poética, como homem do seu tempo
influenciado e modificado pelo contexto social e histórico.
3
Esta construção de Ana Miranda é uma visão do “ser brasileiro” que muito se parece com a descrita
por J. Nabuco e analisada por S. Santiago em “Atração do Mundo” (1995) op. cit. Para Nabuco, “os
americanos pertencem à América pelo sedimento novo, flutuante do seu espírito e à Europa por suas
camadas estratificadas”. Esta dupla formação do espírito brasileiro, segundo Nabuco, possui um equilíbrio
aparente, pois “não se pode dar o mesmo peso e valor à busca sentimental do começo e à investigação
racional da origem”. Parece, no entanto que no romance há uma grande valorização da busca sentimental
do começo e a investigação racional serve como fundamentação desta busca.
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domina pela força, mas não deixa de ser contaminada. E é nesta rua de mão
dupla que Gregório de Matos caminha e é nela que a formação da identidade
do brasileiro emerge no romance Boca do Inferno. Ao discutir sobre a poesia de
Góngora, Quevedo e Lope de Vega com Gonçalo Ravasco, Gregório de Matos
ouve do amigo: “Português? És um poeta brasileiro e aqui tudo é diferente”.
Afirmação com a qual o narrador concorda e explica:
Sem dúvida o fato de ser um poeta brasileiro fazia com que Gregório
de Matos se sentisse um idiota. Vivia afastado da metrópole e
perdia-se em divagações bastante confusas sobre si mesmo. Achava
que nada mais tinha a perder depois que voltara para sua terra,
viúvo e solitário (MIRANDA, 1989, p. 104).
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O ano de 1910, quando Augusto dos Anjos muda-se para o Rio, é marcado
pela disputa eleitoral pela sucessão presidencial entre o Marechal Hermes R
da Fonseca e Rui Barbosa. Ano de decisão também para Augusto, pois o agra-
vamento da crise econômica obrigara a família a desfazer-se do Engenho do
Pau D’arco, cenário de sua infância e juventude presente em suas composições
poéticas. Nesse mesmo ano, casa-se com Esther Fialho e ocorre o incidente com
o presidente da província, João Machado, tomando a decisão de pedir demissão
e partir para o Rio de Janeiro. Três meses depois, continuava desempregado na
capital nacional. A notícia do primeiro emprego no Rio é dada a 29 de abril de
1911 e na carta à mãe, datada de 29 de maio desabafa ao falar sobre o irmão,
Aprígio dos Anjos, que também se mudara para a capital:
Desenvolveu ele alguns esforços, no intuito de arranjar
qualquer emprego nesta capital – espécie de sereia falaciosa
– pródiga unicamente em sonoridades traidoras para os que
vêm aqui pela primeira vez [...]. Era meu desejo que Aprígio
não saísse agora do Rio de Janeiro. Todavia, em se tratando
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deste ser como peça chave para se pensar este momento de transição históri-
ca e literária. Na citação acima, temos a voz do poeta endossando este clima
paradoxal na capital nacional. As ruas invadidas pelo automóvel, símbolo da
modernidade industrial, vistas como “tristes corredores”, tem como imagem
oposta a presença dos miseráveis e a intelectualidade tacanha descrita, mais
uma vez, pela voz do poeta:
Disse (Augusto) que o Rio era uma cidade que premiava as
falcatruas. Os honestos, os sonhadores, eram considerados bestas
idiotas. Dentre os poetas grassava o convencionalismo imbecil
de Aníbal Tavares, Teófilo Pacheco, a camarilha inteligente,
competindo em bovarismos com letrados de Buenos Aires e Paris.
Os intelectuais só se preocupavam com futilidades, como a estátua
a Eça de Queiroz. Gente como Coelho Neto, João do Rio, grandes
homens da literatura, enchiam páginas e páginas das folhas com o
‘assunto tão palpitante’ (MIRANDA, 1995, p. 33).
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Já no romance, temos:
Os canhões dos dreadnoughts, verdadeiras máquinas de destruição,
durante a revolta ficaram assestados sobre diversos pontos da
cidade, como o Catete, o Senado, o Arsenal da Marinha, para a
qualquer momento bombardeá-la, criando entre a população um
terror que ‘apertou a alma pacífica da população, gerando-lhe, na
excitabilidade anormal da vida nervosa, a mais desoladora de todas
as expectativas’. Como disse Augusto (MIRANDA, 1995, p. 129).
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Brasília: EDU/Universa, 1998.
LOVE, Joseph. Marinheiros negros em águas nacionais. Revista de História
da Biblioteca Nacional. n. 9, abr. 2006. Disponível no site: <http://www.
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A VIDA COMO LITERATURA E
A LITERATURA PARA VIVER:
APONTAMENTOS SOBRE A FICÇÃO
DE SILVIANO SANTIAGO
Naira de Almeida Nascimento
1
Segundo o crítico literário, subscrevendo um preceito bakthiniano: “O romance – ao contrário dos outros
gêneros maiores – nasce no momento em que se começa a duvidar do critério de imitação como motor
para o novo. De todos os gêneros, o romance, como dizem os anglo-saxões, é o lawless por excelência.
Gênero bandido, moderno porque liberto das prescrições das artes poéticas clássicas, o romance surge
como consequência de uma busca de autoconhecimento da subjetividade racional”. (SANTIAGO, 2002,
p. 34-35).
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2
Ainda que ocorra dentro da produção ensaística de Silviano Santiago, a atenção a Cyro dos Anjos, além
das origens comuns, guarda uma provocação de base ficcional do crítico quando lê no personagem de O
amanuense Belmiro, Silviano, uma remissão a própria personalidade (“A vida como literatura”), ou seja,
inclui-se como personagem do romance anterior a sua própria obra.
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Heranças
A abordagem de Heranças procura evidenciar como a literatura, por meio
da recorrência de seus personagens e de seus autores em contextos cronologi-
camente diferenciados, chegam a atingir uma dimensão quase hiper-real. Na
literatura brasileira, Capitu responde bem a essa tipologia que transborda os
estreitos limites da obra ficcional. A justaposição de camadas formadas em parte
pela crítica e em parte pela retomada dessa ficção do passado em romances
contemporâneos colabora em muito para conferir tal estatuto.
Vale lembrar que, para o crítico Silviano Santiago, não se trata apenas
de uma questão de influência da obra pretérita, revelando uma angústia como
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quer Harold Bloom, mas sim uma transformação que o contemporâneo opera
no passado. A reflexão, desenvolvida no ensaio “Eça, autor de Madame Bovary”,
demonstra que o texto posterior, longe da imitação pressuposta, como ocorre
no caso de O primo Basílio em relação à Madame Bovary, comporta normal-
mente uma crítica à obra anterior e, portanto, se impõe como uma violência
desmistificadora:
Tanto em Portugal, quanto no Brasil, no século XIX, a riqueza e
o interesse da literatura não vem tanto de uma originalidade do
modelo, do arcabouço abstrato ou dramático do romance ou do
poema, mas da transgressão que se cria a partir de um novo uso
do modelo pedido de empréstimo à cultura dominante. Assim, a
obra de arte se organiza a partir de uma meditação silenciosa e
traiçoeira por parte do artista que surpreende o original nas suas
limitações, desarticula-o e rearticula-o consoante a sua visão
segunda e mediada da temática apresentada em primeira mão na
metrópole (SANTIAGO, 1978, p. 58).
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Ainda que evidencie seu diálogo mais direto com as Memórias póstumas
de Brás Cubas, Heranças não despreza as relações intertextuais com Dom
Casmurro, até mesmo pela condição de seus personagens, Walter e Bento, que,
sozinhos e sem planos acerca do futuro, refazem o caminho do passado com
a finalidade de se convencerem e convencerem seus leitores acerca de suas
verdades. Nesse âmbito, Evelina Hoisel atenta que, diferentemente da maior
parte da ficção de Silviano Santiago que se articula pela fragmentação, esse
romance mantém a linearidade cronológica com flashbacks, característica
dos romances do século XIX, como a pretender simular o efeito dos romances
machadianos, em especial Dom Casmurro (HOISEL, 2011, p. 12).
Parodiando, por exemplo, a observação acerca de Capitu, Walter enun-
cia: “Canto a primeira pedra. O velho solitário e ranzinza de hoje não estaria
travestido no rapazinho? Tomo pelo avesso o provérbio que diz ser o adulto
filho da criança – o rapaz é filho do velho” (SANTIAGO, 2008a, p. 45). Ou ainda
nas investidas de Bento Santiago sobre a possibilidade aberta pelo discurso
memorialístico de atar as duas pontas da vida:
A César o que é de César. A Princesa Venérea do Sonho tem
tudo, pouco ou nada a ver com a Princesa Venérea da Vida.
Uma assombrou o adolescente, tomado pelo apetite sexual. A
outra assombra o velho, assexuado em virtude do misterioso e
finito trabalho das glândulas humanas. Não são uma. Se se atar
o adolescente inexperiente e fogoso de Belo Horizonte ao velho
casmurro e solitário da Vieira Souto, viram uma só (SANTIAGO,
2008a, p. 57).
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de serviçal. Filhinha reencontra-o anos mais tarde e mantém com ele uma
relação sigilosa que termina com sua morte, quando uma suspeita de gravidez
paira em seu velório. Localizado por Walter, Vitorino narra a história amorosa
vivida décadas antes com Filinha.
Juntamente com Walter, sabemos que foi ela a responsável para que o
namorado terminasse os estudos médios e ingressasse no curso de Engenharia
Mecânica, que viria a garantir a carreira na estatal mineira de eletricidade, ainda
que o preconceito racial e físico o impedissem de ascender mais. Ao tornar-se
herdeiro único de Walter, aventa-se uma possível alusão ao “irmão das almas”,
personagem de Esaú e Jacó que, de pedinte miserável, faz-se dono de grande
fortuna durante o período do Encilhamento que marcou os primeiros anos da
República Brasileira, estabelecendo uma comparação entre os enriquecimentos
e os empobrecimentos instantâneos em vigor nas sociedades capitalistas, e
em especial, em latitudes sem governos sérios.
149
Ficções contemporâneas: história e memória
5
Acrescente-se que a abordagem do o crítico Silviano Santiago a respeito de Dom Casmurro incide sobre
a dupla condição de Bentinho: um seminarista, a evocar o poder eclesiástico, e o bacharel, investindo o
jurídico como a segunda vertente do poder no Brasil em pleno século XIX, e não apenas aí.
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algum escritor chegou a pensar em escrever sua própria vida com a memória
real que o outro tinha dela. Se tivesse sido possível associar as lembranças
armazenadas por ele à minha memória atual, cá estaria eu a escrever minha
autobiografia de maneira subjetiva e objetiva” (SANTIAGO, 2014, p. 29). A
partitura a quatro mãos é anunciada, contudo, pela complexidade do binômio
vida-arte, outro aspecto dual trabalhado pela obra:
Acolá poderia superpor à lembrança (fruto da observação dele) os
dados da minha memória (fruto da minha vivência), combinando os
tons conflitantes dos dois pontos de vista em sutilezas psicológicas
que poderiam ter algum interesse para o leitor que ainda tem aos
dois como desconhecidos. Na mente do leitor que ainda tem aos
dois como desconhecidos. Na mente do leitor, continuaríamos
figuras desconhecidas embora vivas, já que seríamos personagens
intrigantes. Intrigantes porque instigantes. Instigantes porque
dignos do livro e, ainda mais, autênticos (SANTIAGO, 2014, p. 30).
6
Vale acrescentar que Ezequiel Neves publicou junto com Rodrigo Pinto e Guto Goffi a biografia do grupo
Barão Vermelho.
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“Quantas vezes não me vi querer fugir do seu olhar de câmera cinematográfica. Sabia, no entanto, que
os olhos não deixariam minha imagem escapar da lente que a enquadrava e do obturador que fixava em
plano americano meu rosto acuado e em pânico” (SANTIAGO, 2014, p. 99).
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Sendo assim, Mil rosas roubadas, apesar dos laços aparentes que mantém
com o referente externo, não deve ser entendida como uma biografia, pois,
segundo o autor e crítico, a experiência multifacetada impossibilita qualquer
tentativa de totalização que a narrativa confessional intenta. Essa problema-
tização do biográfico é assunto, aliás, do próprio romance, como evidenciado.
Além do que, o que mais se destaca no texto não é de fato a transposição dos
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Considerações finais
Tanto Heranças como Mil rosas roubadas nos apresentam as transforma-
ções do espaço brasileiro, em especial nos anos desenvolvimentistas da década
de 50, a partir de um relevante microcosmos, a Belo Horizonte modernista.
Se Heranças o faz por meio da abordagem do mundo financeiro e imobiliário,
do qual Walter Ramalho é representante, Mil rosas roubadas prioriza a esfera
cultural, responsável por cunhar as gerações mineiras da literatura e das artes
no Brasil nas primeiras décadas do século. De qualquer forma e consoante a
perspectiva do autor, a intervenção política nunca se faz alheia, mediante a
críticas às estruturas sociais associadas a práticas autoritárias e segregacionistas
dominantes na história brasileira desde os tempos coloniais.
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Ficções contemporâneas: história e memória
8
“Deve-se buscar, na sociedade de massa, a maneira de aprimorar a produção de sentido do espetáculo e/
ou do simulacro por parte de todo e qualquer cidadão” (SANTIAGO, 2004, p. 131).
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REFERÊNCIAS
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______. A herança. In: ______. Relíquias da Casa Velha. v. 2. Vitória: Formar,
1966.
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político
brasileiro. 3. ed. São Paulo: Globo, 2001.
FISCHER, Luís Augusto. Para uma descrição da literatura brasileira. In:
VÉSCIO, Luiz Eugênio; SANTOS, Pedro Brum. (Org.). Literatura e história –
perspectivas e convergências. Bauru-SP: EDUSC, 1999.
HOISEL, Evelina. Silviano Santiago e seus múltiplos. CUNHA, Eneida Leal
(Org.). Leituras críticas sobre Silviano Santiago. Belo Horizonte: UFMG; São
Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2008.
______. Figurações da memória: ficções de Silviano Santiago. Revista de
Literatura, História e Memória, Cascavel, UNIOESTE, v. 7, n. 10, p. 7-16, 2011.
OLIVEIRA, Elysabeth Senra de. Uma geração cinematográfica: intelectuais
mineiros da década de 50. São Paulo: Annablume, 2003.
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Santiago. Escritos, Rio de Janeiro, Revista da Fundação Casa de Rui Barbosa,
ano 1, n. 1, p. 259-284, 2007.
SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência
cultural. São Paulo: Perspectiva: Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia
do Estado de São Paulo, 1978.
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A MEMÓRIA E O VAZIO AGRESSIVO:
SOBRE A ÉTICA DO LUTO EM “NÃO
FALEI”, DE BEATRIZ BRACHER
Emerson Pereti
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vivos; e ainda que um Mercado enorme tenha se erguido diante de nós, nos
induzindo a “olhar pra frente”, insistimos em nos voltar, tentando de alguma
forma extrair dessa catástrofe algum significado. O ponto de singularidade que
põe em movimento a narrativa de Não falei, descobrimos, é a intempestividade
paradoxal entre a necessidade e a impossibilidade de reproduzir a experiência
traumática, algo sobre o qual perdemos a “felicidade de ouvir”.
1
O uso dos termos e das respectivas grafias expressa uma escolha pessoal de representação.
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A memória e o vazio agressivo: sobre a ética do luto em “não falei”, de beatriz bracher
fenomenologia da dor desenvolvida por Elaine Scarry em The Body in Pain. Segundo
o autor, o trabalho de Scarry, orientado a partir da tradição liberal de Hannah
Arendt, descreve a tortura como a destruição de uma domesticidade e uma
civilização preexistente, como se o mundo já existisse, constituído previamente
a esses atos de barbárie. Apoiando-se em DuBois, Avelar propõe que a reflexão
sobre tortura deve partir, não de uma concepção na qual esse tipo de prática
opere como oposição à ideia de civilização, mas como algo inerente a ela. “A
alta cultura e suas instituições jurídicas e filosóficas”, afirma recorrendo ao
pensamento de DuBois, “sempre foram, desde o começo, cúmplices da imposição
calculada e organizada de sofrimento humano” (apud AVELAR, 2003, p. 26).
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A memória e o vazio agressivo: sobre a ética do luto em “não falei”, de beatriz bracher
comportamento sob tortura. “O problema é que eu não sabia disso. Não sabia
o que era uma história inteligente ou convincente, abrir, fechar, cair, ponto.
Exatamente, eu não sabia nada, sequer o nome da doença a ser farejada...”
(BRACHER, 2004, p. 125). A experiência traumática emerge assim, na me-
mória do narrador, como uma espécie de compulsão pelo retorno, uma culpa
fundamental que recai não sobre o carrasco, mas sobre a vítima, é ela que não
soube como portar-se na hora extrema. Isso consistirá também em outro dos
tantos retornos simbólicos à cena traumática. A busca por eximir-se dessa
culpa comportamental é também o que, no romance de Bracher, muitas vezes
impele a memória em direção à perda passada.
Supliciar quem não está preparado para esse confronto com o real le-
vado ao extremo, talvez aí resida justamente a eficácia plena da tortura. Pilar
Calveiro lembra que o objetivo dessa prática nos campos de concentração
argentinos não era apenas obter informações úteis ao sistema, mas também
“quebrar o indivíduo, arrebentar o militante, anulando nele toda a linha de
fuga ou resistência, modelando um novo sujeito, adequado à dinâmica do campo:
um corpo submisso que se deixasse incorporar ao maquinário” (CALVEIRO,
2013, p. 73-74, grifos nossos), nesse caso, ao próprio modo operante da so-
ciedade secreta do desaparecimento. Mas há outro elemento na tortura que
contribui para a quebra completa do indivíduo: induzi-lo à delação, tirar do
corpo a voz e o pertencimento, impingir sob o sujeito torturado a culpa que
o sentenciará à pena final. Aqui se revela o requinte dessa prática em tempos
da moderna tecnologia da dor: mais que a produção da verdade, a separação
completa da identidade do indivíduo com sua identidade coletiva, e daí, a seu
aniquilamento completo. Em carta ao juiz auditor do Conselho de Justiça, em
1975, o prisioneiro político brasileiro Manoel Lopes, então com 68 anos, relata:
José Ferreira de Almeida, deitado num colchão imundo estendido
sobre o chão, agarrou a mão que eu estendia para cumprimentá-lo
e me disse: Lopes, eu não aguento mais, eu te acusei injustamente
quando me torturavam; perdoa-me; e os soluços vieram-lhe até a
garganta, dizendo por fim: eu vou morrer (ARQUIDIOCESE DE
SÃO PAULO, 1985, p. 257).
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coisas saíram do controle. Agora acabou” (BRACHER, 2004, p. 148). São essas
as palavras do pai que o narrador lembra ao despertar do trauma. Ao leitor,
que acompanhou uma negação desde o início do romance, entretanto, restam
algumas perguntas. Essas palavras consistem em uma confissão? Afinal foi o
pai que delatou Armando para salvar o filho? Isso explicaria, por exemplo, a
escolha das lembranças do narrador, sempre marcadas por certa inveja pelo
tratamento especial que o pai dedicava a Armando? Havia o pai escolhido pela
vida do filho, expondo assim o antigo amigo? Seria essa a explicação sobre a
mudança gradual da personalidade do velho, da alegria de uma vida marcada
pela música ao apagar-se em um silêncio envolto em luto? Ou seriam essas
palavras do pai, antes, uma tentativa de fazer o filho perdoar a si mesmo por
um ato que, diante de circunstâncias extremas, não é suscetível a juízos morais?
De qualquer forma, para o narrador de Não falei o dilema da culpa não acaba
definitivamente nesse verbo. Independentemente de sua responsabilidade pela
morte do companheiro, ele terá que carregar ainda, em sua sobrevivência, a
alteridade de seus mortos. O luto consiste, assim, em uma ética da memória
frente ao real, quem o carrega traz também, em sua identidade coletiva, as
possibilidades destruídas no passado, para dar-lhes, por meio de sua sobrevi-
vência, uma possibilidade de futuro. Não falei é um dos expedientes literários
dessa luta pela memória nos tempos do esquecimento passivo neoliberal. Se
esse vazio representacional, como afirma a possível interlocutora do narrador,
se configura de forma agressiva, é talvez pelo fato de resistir às tentativas de
trazer essas memórias ao espaço cívico, realizar o trabalho de luto interrom-
pido pela teoria de choque neoliberal, construir um espaço no futuro para
elas. Tanto na vida como na arte a pedra do testemunho ditatorial precisa
ser passada à boca das outras gerações como uma dívida, como imperativo de
justiça. Mas isso cobra também um exercício de alteridade, uma relação ética
com o passado para aqueles que, citando Paul Celan, sabem que não podem
testemunhar pelas testemunhas, mas que se dispõem a ouvir, inclusive aquilo
que não pode ser dito, porque estão convictos de que o vazio agressivo no
qual vivem é o estado de exceção das contingências históricas delimitadas pela
catástrofe, e sabem, como Walter Benjamim, que nem os mortos estarão a
salvo se o inimigo continuar vencendo.
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REFERÊNCIAS
ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Trad. André de Macedo Duarte. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil: nunca mais. 3. ed. Petrópolis: Vozes,
1985.
______ . Brasil: nunca mais. Perfil dos atingidos. Tomo III. Petrópolis: Vozes,
1988.
ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações da
memória cultural. Trad. Paulo Soethe. Campinas, SP: Editora da Unicamp,
2011.
AVELAR, Idelber. Alegorias da derrota: a ficção pós-ditatorial e o trabalho do
luto na América Latina. Trad. Saulo Gouveia. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2003.
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AS MEMÓRIAS DA CASA:
PERSONAGEM E NARRADORA
Edna da Silva Polese
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O romance A casa
No mundo ficcional, onde tudo é possível, uma casa pode ser a porta-
dora da memória e da reminiscência. A narradora do romance A casa recorda
e narra desde sua própria construção até o momento em que fica submersa
numa inundação, séculos de convivência com seus habitantes. É a responsável
pela manutenção da memória familiar do grupo. O modo como a escritora
Natércia Campos1 tece essa trama lembra a narrativa de Érico Veríssimo ao
1
A autora cearense Natércia Campos (1938-2004), filha do escritor Moreira Campos, publicou uma obra
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As memórias da casa: personagem e narradora
diversificada: Iluminuras (contos, 1998); Por terra de Camões e Cervantes (relato de viagem, 1998); A noite das
fogueiras (história, 1998); A casa (romance, 1999) e Caminho das águas (relato de viagem, 2001). Pertenceu à
Academia Cearense de Letras. O romance A casa recebeu o Prêmio Osmundo Pontes de Literatura.
2
Pode ser traduzido por “grande vento”.
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3
A dissertação de Mestrado de Elisabete Sampaio Alencar Lima A casa: arquitetura do texto – uma
investigação sobre a origem do romance de Natércia Campos, 2009.
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As memórias da casa: personagem e narradora
A construção
O início da narrativa, como já foi dito, se debruça no detalhamento
da construção da casa. Há grande empenho em demonstrar a descrição dos
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As memórias da casa: personagem e narradora
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Ficções contemporâneas: história e memória
como deve ser feito numa pesquisa sobre imagens da intimidade, abordamos
o problema da poética da casa. As perguntas são muitas: como é que aposen-
tos secretos, aposentos desaparecidos, transformam-se em moradas de um
passado inolvidável?” (BACHELARD, 1993, p. 19). De fato, a casa torna-se um
espaço além de uma habitação, onde seres humanos vivem seu ciclo cotidiano:
“Porque a casa é o nosso canto no mundo. Ela é, como se diz amiúde, o nosso
primeiro universo. É um verdadeiro cosmos” (BACHELARD, 1993, p. 24).
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As memórias da casa: personagem e narradora
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Ficções contemporâneas: história e memória
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As memórias da casa: personagem e narradora
Há uma ordem social interna, orientada pelas ações femininas que passam
a criar os hábitos, perpetuando-os, fazendo com que se tornem permanentes
e repetidos. Maria tenta modificar o que já é uma cultura interna. Consegue
em boa parte do espaço da casa impor seu modo de organizar o espaço e a
limpeza, mas no espaço da cozinha, há muito liderado pela velha cozinheira,
não encontra sucesso. Em outros trechos, a casa, narradora, destaca como
as conversas e sussurros são ali emitidos pela primeira vez, destacando esse
local como próprio do universo feminino, a civilização da cera, como conceitua
Bachelard. Ironicamente, a narradora analisa a ação de Maria como dúbia:
o equilíbrio harmonioso que busca no espaço que a circunda demonstra o
desequilíbrio do seu interior, de sua psique: “Na época em que a ordem sobre
todas as coisas aqui se instalou, devido à cabeça desordenada da bela Maria,
a Trindades esteve limpa, escovada, pintada e envernizada. Purifiquei-me nas
mãos dela” (CAMPOS, 2004, p. 53).
A aquarela
O personagem denominado Bisneto aparece com cuidadosa frequência. A
narradora conta o momento em que ele volta a habitar a casa e nessa ocasião é
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Ficções contemporâneas: história e memória
executada uma pintura, uma aquarela da casa. A aquarela pode ser interpretada
como uma das formas de manutenção da memória, pois a forma de registro
da imagem tenta captar a realidade que circunda a construção. Ainda, ao final
da narrativa, uma das descendentes, Eugênia, irá herdar o quadro e somente
anos mais tarde é que visitará a casa, já em fase de abandono e destruição.
Para as gerações do futuro, o modo de saber como era a antiga casa que per-
tencera à família será através da contemplação da pintura: “Vocês todos sabem
o porquê da minha curiosidade de vir até a Trindade. Dela possuo uma bela
aquarela onde o pintor a fez banhada de luz entre a capela, o curral e o açude”
(CAMPOS, 2004, p. 86-87).
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Uma das primeiras moradoras da casa é Tia Alma, que viera criança de
outras terras. Traz em si a marca diferenciada dos demais viventes, pois con-
ta-se que fora exposta ao vento ainda bebê e que o vento a adoecera. Sempre
esteve em peleja entre a vida e a morte. Demorou a andar e a falar e adquiriu
um “ar atoleimado”. Nunca se casou e era extremamente religiosa. Criou ge-
rações de sobrinhos. Quando, enfim, morre centenária, ainda deixa marcas
de sua existência peculiar:
Anos foram passados e ao se fazer o traslado dos ossos de tia Alma,
no rápido instante em que foi aberto o caixão, ela estava tal qual
fora enterrada. Um vento repentino desceu naquele momento
e desfez em pó sua imagem e dela restaram suas duas tranças,
longas, fartas e claras. Não mais as enterraram, pois alguém, ao
esfregar as suas pontas entre os dedos, sentiu o crepitar sedoso
daqueles fios palpitantes de vida. Foram estas tranças as primeiras
relíquias daquele sertão (CAMPOS, 2004, p. 32).
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Após narrar o modo como a moça foi castigada, dá-se o longo episódio
em que se narra a maneira como o rapaz foi morto, centro da narrativa:
Por ordem do Capitão Longuinho o levantaram do chão, o
desamarraram e o despiram. Pensei que iam castrá-lo e resolvi que
ali não ficaria para ver esse flagelo feito a um homem. Ao voltar-me
havia um cerco feito por homens armados e impedido fui de sair. Todos
haveriam de assistir ao que iria acontecer com o rapaz. Um homem
com voz aterrorizada falou baixo para mim: “o velho vai supliciar
ele no colete de couro fresco”. Trouxeram o couro de uma rês
esfolada recentemente. O rapaz seria encourado não com gibão de
couro já curtido, seco, armadura parda de nós vaqueiros, protetora
das ardências do sol e das touceiras de espinhos da caatinga. Este
era um gibão informe, sem feitio, trazendo ainda o cheiro de
sangue e carne decomposta do animal abatido. Umedeceram com
água aquele couro cru e assim enxombrado melhor vestiu do peito
às pernas, sendo nele costurado bem justo, encapando o corpo do
infeliz. Só a cabeça e os gritos que até hoje escuto ficaram de fora.
O couro espesso ia encolher-se secando lentamente, garroteando
sem pressa os membros e ossos do rapaz, exposto ao calor do sol
que já chegara com seu braseiro. Encoletado naquele torniquete,
imobilizado, eles o rolavam pelo chão. Assim oprimido, ele começou
a ter a respiração sufocada pela pressão (CAMPOS, 2004, p. 41,
grifo nosso).
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Depois de morto, fica clara a informação de que o corpo não deverá ser
sepultado. No entanto, é novamente o gesto do vaqueiro que o colocará numa
dupla situação: a de narrador-testemunha e participante da história aconte-
cida. Insere-se uma espécie de culpa, ou ainda, a força do trauma sentido ao
testemunhar a morte, impelindo o vaqueiro, mesmo correndo risco de vida,
em encontrar um modo de sepultar o cadáver do rapaz:
O demônio do velho mandou jogá-lo no pasto para repasto dos
bichos sem o direito sagrado do último repouso. Nessa noite saí
de lá sem mais fazer negócio. Minha agonia era ir embora daquele
lugar maldito e procurar o corpo para dar-lhe sepultura. Aquele
desgraçado não podia sofrer esta afronta, esta condenação para
a sua alma. O dia amanhecia na imensidão daquele pasto e já os
urubus voavam em círculo. O mau cheiro me deu o rumo. Cavei os
sete palmos, rezei fazendo a encomendação do corpo, e enterrei aquele
fardo. Afastei-me daquelas terras sem fazer pousada ou arrancho,
o medo me deu asas. O povo daqui pegou a dizer, quando soube
desse caso, que possuo proteção daquela alma. Vai ver que tenho,
pois desde que o enterrei fincando uma cruz na areia, que nada
de mal me acontece. Venço sem saber como as dificuldades nessa
minha vida errante. Deve ser ele, o “Morto Agradecido”, assim diz a
tradição dos antigos. Acho eu que não corri doido depois de assistir
àquele martírio, foi por ter dado o sossego de uma cova pra aquele
corpo. Dia e noite ouvi os gritos dele que me fizeram má companhia por
muitos anos, mais ainda do que o seu desespero estampado no rosto,
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pois deste podia desviar os olhos. Os gritos até hoje ainda escuto
(CAMPOS, 2004, p. 42, grifos nossos).
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Ficções contemporâneas: história e memória
espelho para a casa, assim como trará, numa determinada ocasião, um amigo
pintor que eternizará a casa em vários quadros. O Pintor e o Bisneto revelam
uma relação de total intimidade e confiança, fato também testemunhado e
registrado pela Casa. Também será na parte da narrativa sobre o Bisneto que
o vaqueiro contará a história do encourado. A condição sexual do Bisneto
acaba por marcá-lo como uma pessoa diferente, mas que aos poucos, alcança
respeito e aceitação, mesmo que muda, do grupo familiar.
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As memórias da casa: personagem e narradora
[...]
Próximo à Hora-Grande da meia-noite por brevíssimos instantes,
as águas adormecem. Sonho então, sob a luz das estrelas, que sou
uma fluída aquarela a espraiar-se refletida no cristal das águas.
E como encontraram,
Tal qual encontrei;
Assim me contaram,
Assim vos contei! (CAMPOS, 2004, p. 89).
REFERÊNCIAS
A BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
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A CONSTRUÇÃO DO RELATO
MEMORIALÍSTICO EM TRÊS CONTOS
CONTEMPORÂNEOS
Benedita de Cássia Lima Sant’Anna
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A construção do relato memorialístico em três contos contemporâneos
coletiva do Ocidente, tanto dos que foram vítimas de tal perseguição, como
dos seus descendentes e dos descendentes daqueles que presenciaram e/ou
participaram do holocausto. Por ser motivo de profundos sentimentos de
vergonha, essa memória às vezes é silenciada, conservando-se como “um tabu
nas histórias individuais na Alemanha e na Áustria, nas conversas familiares e,
mais ainda, nas biografias dos personagens públicos” (POLLAK, 1989), antigos
nazistas ou simpatizantes do regime. Os próprios judeus e seus descendentes,
por razões diversas e até difíceis de delimitar, em muitas ocasiões também
silenciam diante da memória de acontecimentos terríveis que evidenciam a
perseguição sofrida.
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A construção do relato memorialístico em três contos contemporâneos
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Ficções contemporâneas: história e memória
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A construção do relato memorialístico em três contos contemporâneos
[...] Nos romances que escrevi retratei meu pai de várias formas:
como judeu marcado pela memória de guerra, como personagem
secundário na história do acidente com a rede, como homem que
dá a pior notícia da vida do filho antes de um jogo de futebol. Tudo
verdade e tudo mentira, como sempre na ficção, e já pensei muito
no porquê de ter sempre escrito sobre ele, e se quando ficar velho
vou confundir a memória dele com a memória registrada nesses
livros: os fatos que escolhi contar ou não, os sentimentos que eu
tinha ou não, quem foi meu pai de verdade e o que eu me tornei
ou não por causa disso, ou apesar disso, ou independentemente
disso, a história que por várias razões começa no espetáculo de balé
depois da morte de Champion (LAUB, 2012, p. 20).
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Ficções contemporâneas: história e memória
1
Durante o regime nazista, além dos judeus, as autoridades alemãs também destruíram grandes partes
de outros grupos considerados ‘racialmente inferiores’ como, “os ciganos, os deficientes físicos e mentais,
e eslavos (poloneses, russos e de outros países do leste europeu)”. Também perseguiram indivíduos por
causa de atitudes políticas, ideológicas e comportamentais que assumiam, dentre esse, “os comunistas,
os socialistas, as Testemunhas de Jeová e os homossexuais”. (Enciclopédia do Holocausto. Disponível em:
<http://www.ushmm.org/wlc/ptbr/article.php?ModuleId=10005143>. Acesso em: 30 out. 2014.).
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Ficções contemporâneas: história e memória
novo estilo de vida: “Eu perdi um emprego por causa disso. Eu comecei vários
relacionamentos e nenhum deu certo por causa disso” (LAUB, 2012, p. 20).
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Assim sendo, conclui-se que, mesmo após ter saído do espaço em que se
considerava prisioneiro, o narrador é envolto por uma prisão que, apesar de
ser silenciada pelas novas escolhas, não poderá ser negada, pois “cada pessoa
singular está realmente presa; está presa por viver em permanente dependência
funcional de outras; ela é um elo nas cadeias que ligam outras pessoas, assim
como todas as demais, direta ou indiretamente, são elos nas cadeias que as
prendem” (ELIAS, 1994, p. 23).
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2
Movimento de Libertação Nacional - Tupamaros (MLN-T), existente nas décadas de 1960 e 1970,
antes e durante a ditadura civil-militar no Uruguai, iniciada em 1973 e encerrada em 1985. Foi uma
organização marxista-leninista uruguaia de guerrilha urbana, composta por universitários, técnicos e
profissionais liberais. Entre as ações praticadas por essa organização destacam-se as investigações dentro
de grandes corporações que tinham por objetivo encontrar documentos que comprovassem a corrupção
governamental. Todavia, seus membros também realizaram assaltos a bancos, clubes de armas etc. e,
segundo alguns historiadores, parte do dinheiro angariado na prática de tais atos foi distribuída aos
pobres em Montevidéu. No final dos anos 1960, o grupo envolveu-se também em propaganda armada,
assassinatos e sequestros de políticos, dentre esses, o do cônsul brasileiro em Montevidéu, Aloísio Gomide
(ALTMAN, 1973).
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Ficções contemporâneas: história e memória
Isso ocorre porque nas lembranças que ele tem da tia a dor não está de-
nunciada. Recorda-se de uma mulher vigorosa, alegre e presente que, enquanto
à avó cozinhava, “ficava na mesa com a gente, dando risada e contando algum
chiste”. Uma mulher que adorava brincar de “medir o braço” com ele e que tinha
uma risada silenciosa, a qual permaneceu registrada em sua memória visual:
Depois o começo do alzheimer, o silêncio cada vez maior. Então ela
apenas sorria, não gargalhava mais. Causava-me uma impressão
muito forte essa risada silenciosa, parecia querer rir de algo, mas
não lembrava exatamente do quê. Conservou por isso o sorriso no
rosto, e assim nos olhava quando chegávamos por lá.
No dia em que faleceu não pude ir ao Uruguai. Meu pai, sim, ligou
de lá muito triste. Acho que, se eu tivesse ido, teria pedido que
a maquiassem de modo que seus lábios formassem esse sorriso.
Seria o ápice da risada silenciosa (CASTILLO, 2012, p. 249).
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A construção do relato memorialístico em três contos contemporâneos
a partir do momento em que os fatos passados lhes são revelados pelo pai,
personagem ativa do passado e do presente que fecha e abre os álbuns de re-
cordação: “meu pai fechando o álbum, guardando-o de volta no armário [...]
Meu pai abrindo os álbuns, o colégio militar, a vergonha” (CASTILLO, 2012,
p. 247-248).
Esse abrir e fechar de álbuns e a referência ao armário são indicativos
de uma memória que a princípio é silenciada. O colégio militar, tipo de ins-
tituição em que o pai e ele próprio estudaram, remete a um sentimento de
vergonha que é explicitado no conto, por intermédio de um exame nostálgico
e de certo modo doloroso das lembranças. Tal sentimento permeia não ape-
nas a lembrança do narrador, mas a memória de todos aqueles que de algum
modo estiveram ou estão inseridos nesse passado, em que os fatos ocorridos
constituem inquestionavelmente vestígios da história social uruguaia.
Considerações finais
Conforme os apontamentos realizados nos contos “Animais”, de Michel
Laub e “Você tem dado notícias?”, de Leandro Sarmatz, os vestígios de fatos
históricos também estão aludidos em menor e/ou maior grau. Mas, enquanto
no primeiro tais vestígios são, ainda que distantes das realidades e das expe-
riências vivenciadas pelo narrador, aceitos por ele como herança, no segundo,
eles são causadores de opressão: são laços de uma história e/ou de tradições
recusada pelo narrador protagonista.
Nesses contos e em “Violeta”, de Miguel de Castillo, as modalidades do
ato de fazer memória (a rememoração e a memorização) dão impulso à nar-
rativa, incluindo no processo de atualização do passado, fatos contados por
terceiros, principalmente pelos progenitores. Tais fatos são reconstruídos e
interpretados nesses contos pelo narrador. Assim, o discurso memorialístico
apresentado é influenciado pelo mundo que cicunda aquele que relata os fatos.
Os três contos constituem, portanto, história e explanações de memó-
rias divergentes entre si, aqui aproximados pelo desejo de estudar o discurso
memorialístico em narrativas contemporâneas que apresentassem, de algum
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Ficções contemporâneas: história e memória
REFERÊNCIAS
ALTMAN, Max. Hoje na História: 1973 - Golpe militar inicia ditadura no Uruguai.
Disponível em: <http://operamundi.uol.com.br/conteudo/noticias/13050/
hoje+na+ historia+1973++golpe+militar+inicia+ditadura+no+uruguai.
shtml>. Acesso em: 25 set. 2014.
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 12. ed. São Paulo: Ed. Ática, 2002.
CASTILLO, Miguel Del. Violeta. Granta, 9: Os melhores jovens escritores
brasileiros. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p. 243-249.
ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1994.
ENCICLOPÉDIA do Holocausto. Disponível em: <http://www.ushmm.org/
wlc/ptbr/ article.php?ModuleId=10005143>. Acesso em: 30 out. 2014.
LAUB, Michel. Animais. Granta, 9: Os melhores jovens escritores brasileiros. Rio
de Janeiro: Objetiva, 2012, p. 13-23.
LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da
informática. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993.
MAIER, Charles S. A meia-vida do nazismo e do stalinismo. Trad. Clara Allain.
Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1404200203.
htm>. Acesso em: 24 set. 2014.
MARENALES, Julio. Uruguay: breve historia del movimiento de liberación
nacional - Tupamaros. Disponível em: <http://www.latinamericanstudies.
org/uruguay/tupamaros-historia.htm>. Acesso em: 08 out. 2014.
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A construção do relato memorialístico em três contos contemporâneos
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FILHOS DA GERAÇÃO DE 1960/70:
HERDEIROS DA MEMÓRIA
Marilene Weinhardt
Escolhas e agenciamento
A imagem corriqueira do memorialista é de indivíduo de idade avançada,
que se dá ao trabalho de relatar seu passado seja porque julga que sua longa e
variada experiência de vida pode ser do interesse de outros, seja porque quer,
ao organizar o relato, entender a si mesmo e, em geral, também marcar seu
lugar no mundo. Na prosa romanesca, o uso do discurso de memórias como
estratégia para construir o universo ficcional não é novidade. Quem conta,
rememora. Quando o passado é evocado – o que quer dizer criado, não só por
se tratar de ficção, mas porque não é possível voltar ao passado, nem mesmo
no empirismo – de tal sorte que o plano individual esteja inscrito nos eventos
públicos (JAMESON, 2007, p. 190), afetado pela experiência da coletividade,
uma das opções rentáveis de abordagem é ler a obra buscando apreender como
se realiza o diálogo da ficção com a história.
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Ficções contemporâneas: história e memória
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Filhos da geração de 1960/70: herdeiros da memória
moribundo indigente cuja voz – na leitura não se tem certeza quando é de fato
articulada, quando ocorre apenas como processo mental – constitui a narrativa
de Leite derramado, mistura e confunde linhas temporais, oferecendo ao leitor
o tortuoso relato da decadência da burguesia e todo seu cortejo de perdas e
danos, queda decorrente da falta de percepção dos modos de funcionamento
da sociedade nos novos tempos.3
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Ficções contemporâneas: história e memória
4
Disponível em:< www.avatar.ime.uerj.br> Acesso em: 15 maio 2014.
5
Em <pt.wikipedia.org/wiki/Tatiana_Salem_Levy> encontra-se um resumo de elementos biográficos
coincidentes com os da narradora. Acesso em: 06 jun. 2014. Em entrevista constante em <www.
saraivaconteudo.com.br/Entrevistas/Post/10533>, com o título “Tatiana Salem Levy, entre o autor, o
narrador e o personagem”, a ficcionista discorre longamente sobre como entende essa relação. Acesso em:
15 maio 2014. A chave de casa é a estreia na forma romanesca. Publicada já em antologias de contos. Em
2012 saiu o segundo romance, intitulado Dois rios.
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Filhos da geração de 1960/70: herdeiros da memória
6
Eurídice Figueiredo estuda esse elemento no ensaio intitulado “A herança judaica em Tatiana Salem Levy
e Régine Robin”. Conexão Letras. Porto Alegre, v. 6, n. 6, p. 29-40, 2011.
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Ficções contemporâneas: história e memória
7
Sara Augusto analisa o simbolismo do romance em A Chave de casa: alegoria na produção ficcional de
Tatiana Salem Levy. Ciências & Letras. Porto Alegre, n. 53, p. 61-74, jan./jul. 2013.
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Ficções contemporâneas: história e memória
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Filhos da geração de 1960/70: herdeiros da memória
ligação entre a filha que escreve e o pai imigrante que dá à neta a missão de ir
em busca da origem e assim fechar o círculo, círculo esse iconizado na narra-
tiva, que se inicia e encerra-se com a mesma cena. Essa mulher que morre de
câncer sofrera outras dores e as narrara à filha. Para o agenciamento que se
propõe nesta leitura, essa história de vida é relevante. Não se está propondo
uma subversão do narrado, supervalorizando um fio narrativo secundário,
mas seguindo uma proposta inscrita no romance.
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Ficções contemporâneas: história e memória
Mas assim como seus efeitos empíricos se fazem sentir na geração dos filhos
daqueles que viveram essa experiência, a força de suas figurações, que tiveram
hora e vez na voz dos pais, não está esgotada, seu potencial pode se atualizar
como herança. Mais uma vez, a formulação ideal para o que se quer colocar
em evidência encontra-se em raciocínio de Ricoeur,
[que recorre] a um conceito novo, o de dívida, que é importante
não confinar com o de culpabilidade. A ideia de dívida é inseparável
da de herança. Somos devedores de parte do que somos aos que
nos precederam. O dever de memória não se limita a guardar o
rastro material [...], mas entretém o sentimento de dever a outros,
[...] que já não são mais, mas já foram. Pagar a dívida, diremos,
mas também submeter a herança a inventário. (RICOEUR, 2007,
p. 101).
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O relato de Vanja segue, do ponto de vista factual, ainda que não cro-
nologicamente, o que se pode ler nas duas fontes acima referidas. Há trechos
em que a transcrição, lado a lado, do romance e do texto de Élio Gaspari, mais
sucinto do que Operação Araguaia, em decorrência da proposta de cada projeto,
trazem poucas diferenças. Só o nome de Fernando e da amada Manuela são
exclusivos do romance.
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Ainda uma vez, vale a pena recorrer a longa citação de Ricoeur para dar
a dimensão que se intenta nesta leitura:
Assim se armazenam, nos arquivos da memória coletiva, feridas
simbólicas que pedem uma cura. Mais precisamente, o que, na
experiência histórica, surge como um paradoxo, a saber, excesso de
memória aqui, insuficiência de memória ali, se deixa reinterpretar
dentro das categorias da resistência, da compulsão de repetição
e, finalmente encontra-se submetido à prova do difícil trabalho de
rememoração. O excesso de memória lembra muito a compulsão de
repetição, a qual, segundo Freud, nos leva a substituir a lembrança
verdadeira, pela qual o presente estaria reconciliado com o passado,
pela passagem do ato: [...] essa memória-repetição resiste à crítica e
[...] a memória-lembrança é fundamentalmente uma memória crítica.
Se for assim, então a insuficiência de memória depende dessa
reinterpretação. O que uns cultivam com deleite lúgubre e outros
evitam com consciência pesada, é a memória-repetição. [...]
Entretanto, uns e outros sofrem do mesmo déficit de crítica. Eles
não alcançam o que Freud chamava de trabalho de rememoração.
Pode-se dar mais um passo e sugerir que é no plano da memória
coletiva, talvez mais ainda do que na memória individual, que a
coincidência entre trabalho de luto e trabalho de lembrança adquire
seu sentido pleno. O fato de se tratar de feridas do amor-próprio
nacional justifica que se fale em objeto de amor perdido. É sempre
com perdas que a memória ferida é obrigada a se confrontar. O
que ela não sabe realizar, é o trabalho que o teste de realidade lhe
impõe: abandonar os investimentos pelos quais a libido continua
vinculada ao objeto perdido, até que a perda seja definitivamente
interiorizada. Contudo, cabe enfatizar que essa submissão ao teste
de realidade, constitutivo do verdadeiro trabalho do luto, também
é parte integrante do trabalho da lembrança. A sugestão feita acima
a respeito das trocas de significado entre trabalho da lembrança e
trabalho de luto encontra aqui sua justificativa plena (RICOEUR,
2007, p. 92-93, grifos no original).
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REFERÊNCIAS
AUGUSTO, Sara. A chave de casa: alegoria na produção ficcional de Tatiana
Salem Levy. Ciências & Letras. Porto Alegre, n. 53, p. 61-74, jan./jul. 2013.
BASTOS, Alcmeno. Ali e outrora, aqui e agora: romance histórico e romance
político, limites. In: LOBO, Luiza (Org.). Fronteiras da literatura. Rio de
Janeiro: Relume-Dumará, 1999, p.151-157.
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Sites consultados:
<www.avatar.ime.uerj.br>. Acesso em: 15 maio 2014.
<www.adrianalisboa.com.br/pt/publicacoes/index.html>. Acesso em: 30
maio 2014.
<www.saraivaconteudo.com.br/Entrevistas/Post/10533>. Acesso em: 15
maio 2014.
<pt.wikipedia.org/wiki/Tatiana_Salem_Levy>. Acesso em: 06 jun. 2014.
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OS AUTORES
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Os Autores
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Sobre o livro
Formato 16x23cm
Tipologia Chaparral Pro
Papel Offset 90/m2 g (miolo)
Cartão Supremo 240/m2 g (capa)
Impressão Impressoart Editora Grafica Ltda
Acabamento Colado, costurado, laminação fosca e verniz localizado
Tiragem 500 exemplares
Ano 2015