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Crise Do Welfare State Neoliberalismo e
Crise Do Welfare State Neoliberalismo e
Crise Do Welfare State Neoliberalismo e
1 Advogada, Especialista em Direito do Estado pela Faculdade de Tecnologia e Ciências (Salvador) e Mestranda em
Política Social pela Universidade Católica de Pelotas.
RESUMO
O presente trabalho versa sobre a relação entre o Welfare State, o neoliberalismo e a criminalização
em massa no Brasil. Iniciamos o trabalho revisitando as origens do sistema carcerário e traçando
sua relação com os interesses econômicos da época. Após buscamos traçar considerações acerca da
expansão do Welfare State e seu declínio e assunção de uma política neoliberal em caráter mundial,
suas égides, efeitos e relações com o aumento das taxas de encarceramento. Por fim lançamos
algumas considerações acerca da realidade brasileira, apontando posições quanto aos investimentos
em políticas sociais inclusivas e gastos com segurança pública e sua relação com a assunção por
parte do governo brasileira às políticas neoliberais.
PALAVRAS-CHAVE: criminalidade; criminalização; encarceramento; neoliberalismo; welfare
state.
ABSTRACT
This paper focuses on the relationship between the welfare state, neoliberalism and mass
criminalization in Brazil. We started work revisiting the origins of the prison system and tracing
their relationship to the economic interests of the time. After we try to make some considerations
about the expansion of the welfare state and its decline and assumption of a neoliberal policy on
global character, their égides, effects and relationships with the increase in incarceration rates.
Finally we launched some considerations about the Brazilian reality, pointing positions as
investment in social policies and inclusive public security spending and its relation to the
assumption by the Brazilian government's neoliberal policies.
KEY-WORDS: crime, criminalization, incarceration, neoliberalism, welfare state.
INTRODUÇÃO
O discurso oficial sobre a gênese do encarceramento como punição diz que a opção pela
prisão como pena deveu-se a um grande salto humanitário, com inspiração nas ideias de Beccaria.
Não deixamos de considerar que o abandono das penas corporais realmente há de ser
considerado um enorme avanço em relação aos direitos humanos, porém há que se questionar os
verdadeiros motivos por trás da opção pelo encarceramento como pena, motivos estes que parecem
estar estreitamente ligados com o surgimento das manufaturas e as necessidades do capitalismo
manufatureiro.
Na Inglaterra pré-revolução industrial a forma de produção feudal havia ruído. Ao final do
século XV e especialmente no século XVI a “maioria imensa da população era composta então, e
ainda mais no século XV, por camponeses livres, que cultivavam as suas próprias terras, fosse qual
fosse o título feudal atrás do qual se escondia a sua propriedade”2. Dissolveram-se os séquitos
feudais e houve a expulsão dos camponeses de suas terras.
Thomas Morus, trata, em seu livro “A Utopia” da expulsão dos campesinos na Inglaterra de
forma bastante clara, dizendo que:
Desta forma, são os camponeses, então, privados de seu modo de sobrevivência e expulsos
de seu lugar de origem, enviados às grandes cidades para engrossar as fileiras de trabalhadores das
fábricas, mas, como os mesmos não são possuidores de bens, não são também considerados como
totalmente cidadãos. São vistos como meio de produção do capital, devendo ser adestrados para
aceitar o destino que lhes é reservado, ou seja, trabalhar nos moldes ditados pelas elites, sendo que a
negação a tais condições lhes impõe ab initio a internação em casa de trabalho, e num modelo
posterior ao cárcere (que é tido como meio de adestramento e contenção das massas de
trabalhadores sub-humanas).
A casa de trabalho, nos dizeres de Giorgi era uma:
É nesse contexto que se adota o encarceramento como pena, não exatamente por serem os
suplícios corporais desumanos, mas, principalmente por se descobrir que poder-se-ia utilizar as
hordas para gerar mão-de-obra barata, e, assim, lucro.
Assim, descobriu-se a roda, uma forma de moldagem dos excluídos aos interesses
capitalistas, uma forma justificada para manter os pobres em seu lugar, a serviço da ordem do
mercado.
É preciso porém fazer uma outra consideração, que a pobreza e a exclusão social vão
aumentando e se agravando quanto mais evolui a sociedade capitalista.
Na medida em que se consolida o capitalismo, consolida-se também uma classe
despossuída, vista como turba ou ralé, ameaçadora e perigosa para a burguesia comercial e
manufatureira.9
É de se frisar que quanto mais cresce a “ralé”, mais o direito penal é chamado à conter e
adestrar os pobres à exploração capitalista, até mesmo porque as próprias leis de auxílio aos pobres,
ao invés de terem caráter protetivo, possuem cada vez mais um caráter punitivo.
Essas legislações estabeleciam distinção entre pobre “merecedores” (aqueles
comprovadamente incapazes de trabalhar e alguns adulto capazes considerados
pela moral da época como pobres merecedores, em geral nobres empobrecidos) e
pobres “não merecedores” (todos os que possuíam capacidade, ainda que mínima,
para desenvolver qualquer tipo de atividade laborativa). Aos primeiros,
merecedores de “auxílio”, era assegurado algum tipo de assistência, minimalista e
restritiva, sustentada em um pretenso dever moral e cristão de ajuda, ou seja, não se
sustentavam na perspectiva do direito.10
7 GIORGI, Alessandro de. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro:Revam:ICC, 2006. p. 13.
8 Ibidem, p.40.
9 BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis – drogas e juventude pobre no Rio de janeiro. Rio de Janeiro.
Revam, 2003. p. 37
10 BHERING, Elaine Rosseti et BOSCHETTI, Ivanete. Política Social: fundamentos e história. 6 ed. São Paulo.
Cortez. 2009.p.49.
que ocorreram na Europa nos séculos XVI e XVII. Naquele período, uma repentina
redução demográfica, ligada em parte à Guerra dos Trinta Anos, havia determinado
uma dramática carência de mão-de-obra, o que resultou na elevação progressiva
dos salários. Essa situação induziu os governos dos países europeus
economicamente mais avançados a rever as suas políticas em relação à pobreza.
Amadurecia a ideia de que os pobres em condições de trabalhar deveriam ser
obrigados a fazê-lo. Através da imposição do trabalho, torna-se possível enfrentar,
ao mesmo tempo, a praga social da vagabundagem e a praga econômica do
aumento dos salários, provocado pela escassez da força de trabalho.[...] A reclusão
começa assim a ser proposta como estratégia para o controle das classes marginais.
[…] Progressivamente, a detenção se afirmará como modalidade hegemônica de
punição , dando origem assim ao “grande internamento” de que fala Foucalt.[...]
Nota-se desta forma a grande ligação que há entre a “invenção” da pena de prisão e os
interesses do capital, e ainda mais, de uma forma sutil, a forma com que se ligam as políticas
“sociais” da época com a coerção ao trabalho e a incriminação de quem se nega a fazê-lo nos
moldes impostos – dentre os moldes impostos estava inclusa a determinação de “taxa máxima de
salário acima do qual não era lícito ir (o que implicava sanção penal)” e até mesmo a determinação
que o “trabalhador aceitasse a primeira oferta de emprego que lhe fizessem11 (o que coincide com as
políticas adotadas atualmente pelo governo brasileiro quanto ao seguro desemprego).
A roda estava descoberta, e ao que tudo indicava funcionaria apropriadamente. Porém em
meados do século XVIII o crescimento demográfico especialmente das camadas pobres fez com
que o trabalho começasse a rarear – mesmo nas casas de trabalho – sendo assim, incorporada ao rol
de punições possíveis ao trabalho forçado e à obrigação de trabalhar nas fábricas o açoite, o ferro,
ou seja as práticas anteriores de punição sobre os corpos.
Nesta etapa, implementa-se a função da prisão, agora não mais voltada somente ao
adestramento da mão-de-obra, mas também voltada à segregação e/ou eliminação do excedente,
mantendo-o longe da pacata vida burguesa.
Nesses moldes, no início do século XIX chegou-se às “deterrent workhouse, a casa de
trabalho terrorista, que significava a substituição de qualquer forma de assistência fora das casas de
trabalho (outdoor relief) pelo internamento e o trabalho forçado em seu interior”13.
11 MELOSSI, Dario et PAVARINI, Massimo. Cárcere e Fábrica: as origens o sistema penitenciário (séculos XVI-
XIX). Rio de Janeiro. Revan. ICC, 2006.p.37.
12 Ibidem, p.64.
13 Ibidem, p.66
Nesse estágio procurava-se fazer tão terrível a permanência nas casas que somente quem não
tivesse mais qualquer opção aceitaria submeter-se à seu jugo.
Enquanto isso, os trabalhadores assalariados eram submetidos à jornadas de trabalho
exaustivas, sem qualquer proteção, mesmo contra acidentes de trabalho, doenças, e até mesmo
morte. Crianças, mulheres e idosos homens eram submetidos a torturantes jornadas de trabalho, não
raramente sucumbindo.
Tais concessões são o início das políticas sociais na forma de conquistas, como dizia Marx –
mesmo se sabendo que a relação concessão-conquista é delicada para ser aplicada de forma menos
explicada e trabalhada – e tais “conquistas” dão uma possibilidade alentadora a longo prazo –
porém não cumprida, que se caracterizará no surgimento na primeira metade do século XX do
Wellfare State.
14 ESPIN-ANDERSEN, Gosta. As três economias políticas do Wellfare State. In Lua Nova. Nº 24.Setembro. 1991.
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-64451991000200006&script=sci_arttext . Acesso em
11/05/2012.
idosos, já referidas, que resultaram mesmo que pontualmente em legislações fabris. Essas
legislações, apesar de pontuais, significam uma inédita intervenção do Estado na economia no
sentido de promover o bem-estar (mesmo que tal promoção tenha sido forçada) e não no sentido de
beneficiar o capital (como sempre era feito).
Ainda, com propostas de instauração de um Welfare State monárquico, proposto por uma
importante escola clássica da economia, que afirmava que um poder monárquico seria capaz de
implantar a taxação necessária para promover o bem-estar, o que não seria possível em um governo
democrático, dependente de votação. Correto é, porém que não havia interesse por parte da
burguesia capitalista na implantação de governos democráticos, visto que trariam um aumento de
poder de barganha ao proletariado. Na verdade, pode-se dizer que a proposta do Welfare State
Monárquico no século XIX foi especialmente engendrada a fim de garantir a manutenção do
capitalismo, pois havendo a abertura à democracia, os riscos para a acumulação do capital seriam
enormes.15
É interessante notar que mesmo os economistas políticos de origem marxista eram à época
contrários muitas vezes à legislação social, pois as viam como uma forma de engodo, “ um dique
numa ordem capitalista cheia de vazamentos”, acreditavam que no fundo as mesmas tinham um
caráter anti-socialista e divisionista, ou seja, por trás da proteção social haveria a confirmação do
sistema, seriam uma forma de reprimir a mobilização dos trabalhadores. Porém, com a implantação
de políticas sociais verificou-se que as mesmas possuíam caráter contraditório, pois também
funcionavam como uma forma de redução da dependência dos trabalhadores em relação ao mercado
e aos empregadores, resultando em mobilização social do poder apesar de igualmente servirem
como estratégias para promover o progresso das forças produtivas no capitalismo.16
Em 1914, Henry Ford inaugura uma nova forma de “relação” trabalhista que será espalhada
e conhecida como fordismo. Implanta, em suas fábricas jornada de trabalho de 8 horas diárias e
incentivos a seus trabalhadores de sua linha de montagem automática17 (um exemplo clássico do
estilo de produção fordista é representado por Charles Chaplin em Tempos Modernos).
Os tempos áureos do fordismo e da economia perduraram até a crise da bolsa de Nova York
em 1929, quando começaram a apresentar problemas estruturais, que vão se agravando com a
Segunda Guerra Mundial, permitindo que no pós-guerra se desse uma aliança entre classes que
permitiram a “expansão do chamado Welfare State”18.
O Welfare State caracteriza-se por um grande implemento em políticas e benefícios sociais,
15 Idem.
16 Idem.
17 PENNAFORTE, Charles. Do fordismo ao pós-fordismo: uma visão da acumulação flexível in: 5º Congresso
Brasileiro de Geógrafos. Curitiba.1994. Disponível em:
http://www.charlespennaforte.pro.br/acessoexclusivo/bancodetextos/fordismo_e_pos-fordismo.htm . Acesso em:
25/08/2012.
18 BHERING et BOSCHETTI, Ivanete., op cit p. 91/3
como bem apontam Bhering e Boschetti, quando indicam que três elementos marcaram o período:
Importante é salientar também que na fase de expansão do Welfare State verificou-se uma
taxa de encarceramento particularmente baixa, nos Estados Unidos, sendo que as mesmas passaram
novamente a crescer somente em meados dos anos 1970.20
Porém, as promessas de melhoria no bem-estar trazidas pelo Welfare State acabaram por não
se realizar, pois na maioria dos países do mundo sua implantação foi deficitária. Em muitos países
como, por exemplo, nos Estados Unidos, houve a implantação de um Welfare State residual, tendo a
maior parte das despesas sociais estão ligadas à manutenção da lei e da ordem e da administração21.
Sendo que nesse sentido já alertava Wacquant que:
Em países como o Brasil, sequer se pode falar na existência de um Welfare State, visto que
os maiores investimentos na área social foram realizados em um período ditatorial, onde havia
então a supressão dos diritos civis, e quando da retomada da democracia, a promessa de
implantação de um Welfare State trazida na Constituição Federal de 1988, na verdade se mostrou
incapaz de vencer o paradigma do neoliberalismo que chegava de forma robusta ao país,
prevalecendo, nessa relação os interesses das “elites alinhadas com a burguesia internacional, em
19 Idem.
20 GIORGI, op. Cit., p.48
21 ESPIN-ANDERS, op.cit.
22 WACQUANT, Loic. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos estados unidos.Rio de Janeiro: Instituto
Carioca de Criminologia. F Bastos, 2001. p.20.
detrimento da priorização das necessidades da maioria da população”23.
Na realidade, Espin-Anders indica que exitem, formas diferentes de Welfare States. Além da
residual – onde o Estado só assume a responsabilidade quando a família ou o mercado são
insuficientes, limita suas práticas a grupos sociais marginais e merecedores –, exitem formas
Institucionais – onde o Estado personifica o compromisso institucionalizado com o bem-estar
social procurando estender os benefícios sociais a todas as áreas de distribuição vital para o bem
estar societário –, formas desmercadorizantes – aquelas que permitem que o cidadão tenha a
liberdade de parar de trabalhar quando achar necessário, sem que isso implique em perda potencial
de trabalho, rendas ou benefícios –, formas liberais – onde predomina a assistência aos
comprovadamente pobres, possuindo planos modestos de previdência social e transferências
universais extremamente reduzidas –, formas corporativistas – onde se têm direitos ligados à classe
e à status, tendo o Estado como substituto do mercado (quando necessário) enquanto provedor de
benefícios sociais –, e, sociais-democratas – onde todas as camadas são incorporadas a um sistema
universal de seguros, que são graduados de acordo com os ganhos habituais, mostrando-se como
uma mistura de programas altamente desmercadorizantes e universalistas que correspondem a
expectativas diferenciadas.24
Apesar de formarem-se blocos de WS, não há nenhum modelo puro, havendo, na verdade
uma preponderância de um ou outro modelo de WS. Países escandinavos tendem a ser mais social-
democratas, mas possuem elementos liberais que lhes são essenciais, o sistema americano é
redistributivo, compulsório e não atuarial e os regimes europeus conservadores possuem tanto
características liberais quanto social democratas tornando-se com o passar do tempo menos
autoritários e corporativistas.
Quanto ao encarceramento, é de se notar que o mesmo é deveras reduzido em países com
Welfare States mais abrangentes e eficazes, nos países escandinavos, de tradição social-democrata a
taxa de encarceramento é de 64 (sessenta e quatro) encarceramentos para cada cem mil habitantes
(tendo sido ainda mais baixa, em torno de 40 (quarenta) encarceramentos para cada cem mil
habitantes no início dos anos 1960)25, enquanto nos Estados Unidos passou-se de uma taxa de 100
(cem) encarceramentos para cada cem mil habitantes em 1945, para uma taxa de mais de 200
(duzentos) encarceramentos a cada cem mil habitantes em 1985.26
23 PEREIRA, Potyara Amazoneida P. Pluralismo de bem-estar ou configuração plural da política social sob o
Neoliberalismo. In BOSCHETTI, Ivanete et all.Política Social: alternativas ao neoliberalismo. Brasília. UNB.
Programa de Pós-graduação em Política Social. Departamento de Serviço Social.2004.p.152.
24 ESPIN-ANDERS, op.cit.
25 CHRISTIE, Nils. Elementos para uma Geografia Penal. In Revista de Sociologia e Política. Nº 13. Nov.1999.
Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rsocp/n13/a05n13.pdf . Acesso em: 26/08/2012.
26 WACQUANT, op.cit. p.57/59.
NEOLIBERALISMO, GLOBALIZAÇÃO E CRIMINALIZAÇÃO EM MASSA NO BARSIL
Por volta dos anos 1970 a credibilidade das políticas do Welfare State são postas em xeque.
As promessas de pleno emprego não se haviam cumprido, havia um endividamento crescente tanto
na esfera pública quanto privada, e, por fim deu-se de frente com uma grande recessão (que teve
como catalizador a alta dos preços do petróleo em 1973).27
Entra então, o Welfare State em crise (se bem que já se fala não em uma crise do Welfare
State, mas sim de uma mutação), uma crise financeira – decorrente do desequilíbrio entre receitas e
despesas –, uma crise estrutural – com o aumento, em muitos casos da burocratização, havendo um
inchaço no aparelho estatal –, mas, principalmente (hoje se fala) uma crise de identidade com a
sociedade globalizada onde impera o individualismo.28
Surge então um terreno fértil para as novas teorias econômicas que pregam uma volta ao
liberalismo econômico, que alegam que o Welfare State, que seria excessivamente paternalista e o
aumento nos gastos sociais é prejudicial ao desenvolvimento, pregando uma minimização da
regulação estatal na economia.29
A proposta neoliberal para a revitalização da economia e saída da crise tinha como
proposições básicas:
[…] 1) um Estado forte para romper o poder dos sindicatos e controlar a moeda; 2)
um Estado parco para os gastos sociais e regulamentações econômicas; 3) a busca
da estabilidade monetária como meta suprema; 4) uma forte disciplina
orçamentária, diga-se, contenção dos gastos sociais e restauração de uma taxa
natural de desemprego; 5) uma reforma fiscal, diminuindo os impostos sobre os
rendimentos mais altos; e 6) o desmonte dos direitos sociais, implicando na quebra
da vinculação entre política social e esses direitos, que compunha o pacto político
do período anterior.30
Nesse contexto, a redução dos gastos sociais foram priorizadas, fazendo com que fossem
implantadas cada vez mais políticas sociais residuais, tendentes a somente intervir na questão social
quando o mercado, a comunidade e a família não mais pudessem enfrentar o problema.32
O resultado da implantação das políticas neoliberais foi um crescente desemprego estrutural,
aumento da pobreza, da fome e da desigualdade social.
Note-se que a pobreza maximizada pelo sistema neoliberal não diz respeito à diminuição de
produção de bens e alimentos, na verdade, como bem aponta Houtart “vivimos em una época donde
se produce más riqueza que nunca. En 50 años los ingresas mundiales han sido multiplicados por
siete, pero, apesar de ello, em la actualidad, unos 1 300 millones de personas deben sobrevivir com
menos de dos dólar diario”.33
A pobreza, que para o Banco Mundial passou de uma não possibilidade de atuação e
interação com o mercado para ser agora considerada como relacionada à extrema pobreza, como a
pobreza relacionada à fome é “combatida” (na verdade trata-se de propor medidas a fim de
aplacamento) através de políticas que se voltam para o aumento do produto interno bruto dos países,
à integração dos populares ao mercado, deixando de analisar a questão da desigualdade e da
opressão.
Porém além da pobreza e fome material – a fome por alimento que sofre uma enorme
parcela da humanidade (apesar de haver materialmente comida no mundo para todos) – , há uma
fome mais intensa, talvez mais doída, que igualmente à fome material se vê avançando com as
práticas neoliberais.
Há uma fome mais funda que a fome, mais exigente e voraz que a fome física: a
fome de sentido e de valor; de reconhecimento e de acolhimento;fome de ser –
sabendo-se que só se alcança ser alguém pela medição do olhar alheio que nos
reconhece e valoriza. Esse olhar, um gesto escasso e banal, não sendo mecânico –
isto é, sendo efetivamente o olhar que vê – consiste na mais importante
manifestação gratuita de solidariedade e generosidade que um ser humano pode
31 COSTA, Lúcia Cortes da. Os impasses do estado capitalista: uma análise sobre a reforma do Estado no Brasil.
São Paulo. Cortez. 2006.p.93
32 BHERING, op. Cit.
33 HOUTART, François. El sentido de la “Lucha contra la Pobreza” para el neoliberalismo. Disponível em:
http://www.globalizate.org/pobrezayneoliberalismo.pdf . Acesso em 30/05/2012.
prestar a outrem. Esse reconhecimento é a um só tempo, afetivo e cognitivo, assim
como os olhos que veem e restituem à presença o ser que somos não se reduzem ao
equipamento fisiológico. O olhar (ou a modalidade de percepção fisicamente
possível) que permite ao ser humano o reencontro com a sua humanidade, pela
mediação do reconhecimento alheio, é o espelho pródigo que restaura a existência
plena, reparando o dano causado pelo déficit de sentido, isto é, pela
invisibilidade. 34
Nos planos neoliberais, os pobres são vistos (se é que se pode dizer que são vistos de alguma
forma) apenas como números, cifras a diminuir – antigamente se falava em eliminação da pobreza e
hoje se fala em diminuição – são distanciados do mundo do capital e despidos de sua cidadania e
humanidade.
Em um mundo neoliberalista e globalizado, somente é detentor de cidadania e até mesmo de
identidade aquele que está satisfatoriamente engajado no mercado e, principalmente, no consumo.
Sendo assim, o pobre, que não pode estar presente como consumidor, é despojado de sua existência,
passando a ser considerado, no máximo como uma cifra, ou como parte de um discurso caritativo
que visa manter as coisas como estão.
Nasse sentido, já denunciava Bauman quando dizia que
Nesse contexto, ser possuidor, ou melhor, ser consumidor é o que permite a existência na
sociedade, é o que dá o caráter de humanidade. O pobre, despido de tal caráter é visto como alheio,
como um, desculpem a crueza da expressão, “bicho” o qual deve ser temido pela sua estranheza ao
mercado, mas desperta também a caridade – desde que feita de longe e com cuidado para não haver
ataques.
O mesmo autor, nesse sentido, continua dizendo
[...] Nosso tempo é propício aos bodes expiatórios – sejam eles políticos que fazem
de sua vida privada uma confusão, criminosos que se esgueiram nas ruas e nos
bairros perigosos ou “estrangeiros entre nós”. O nosso é um tempo de cadeados,
cercas de arame farpado, ronda dos bairros e vigilantes; e também de jornalistas de
tablóides “investigativos” que pescam conspirações para povoar de fantasmas o
espaço público funestamente vazio de atores, conspirações suficientemente ferozes
para liberar boa parte dos medos e ódios reprimidos em nome de novas causas
plausíveis para o “pânico moral”.37
Esse “pânico moral” decorre em excepcional parte dos resultados da política neoliberal,
responsável não só pela consolidação da sociedade de consumo, mas também pela geração de um
desemprego estrutural, maximizador da pobreza aliada à enorme redução dos gastos em políticas
sociais.
Com esse pano de fundo, forjam-se políticas criminais destinadas aos pobres – que sempre
foram a clientela preferencial do sistema penal – como forma de corrigir, com um Estado mais
penal e menos social as desigualdades criadas pelo próprio sistema.
Muito mais fácil e eficaz que investir seriamente na redução das desigualdades sociais e da
37 Ibidem. p.48
38 WACQUANT, Loic. As Prisões da Miséria. Rio de Janeiro. J. Zahar Ed.2001.
pobreza é penalizar o pobre. E tal ação acaba ganhando o respaldo da dita “sociedade de bem” pois,
no momento em que ao pobre não é dado pertencer da sociedade – por não ser consumidor – e não é
visto como pessoa, mas como perigo, nada mais coerente do que encarcerá-lo.
O pobre, no Brasil, está exposto a uma existência infame não só pela privação dos bens
materiais (e aqui inclua-se desde os bens de consumo, quanto a água, o alimento, a educação, etc.),
reforçada pela redução das políticas sociais, mas também pela maximização de um Estado
repressivo com um histórico de violência e abuso, especialmente voltado ao achaque das camadas
pobres.
43 SOARES, Luiz Eduardo. Guerra na Rocinha. In Cabeça de Porco. op. cit., p.93.
44 WACQUANT, As Prisões da Miséria. Op cit. p.4-5
no Brasil, existem cerca de 505.638 (quinhentos e cinco mil e seiscentos e trinta e oito) pessoas
encarceradas distribuídas em 2.895 (dois mil e oitocentos e noventa e cinco) estabelecimentos no
território nacional, que, por sua vez contam com um total de 335.829 vagas, demonstrando uma
superlotação dos estabelecimentos prisionais que chega a 150,56% (cento e cinquenta virgula
cinquenta e seis por cento).
A taxa de encarceramento só é menor do que 100 (cem) presos a cada cem mil habitantes em
quatro Estados da Federação, sendo que em oito Estados a taxa gira entre 200 a 300 (duzentos a
trezentos) presos a cada cem mil habitantes e em sete Estados a taxa é superior a 400 (quatrocentos)
presos a cada cem mil habitantes.
É de se notar que o Brasil investiu, no ano de 2008 cerca de R$ 33.551.179.659,38 (trinta e
três trilhões, quinhentos e cinquenta e um milhões, cento e setenta e nove mil, seiscentos e
cinquenta e nove mil e trinta e oito centavos) em segurança pública45, contra um investimento de
cerca de R$ 88.740.000,00 (oitenta e oito bilhões e setecentos e quarenta milhões de reais) em
educação e saúde, e um investimento de R$ 19.861.000,00 (dezenove bilhões e oitocentos e
sessenta e um reais) em programas para a extrema miséria, perfazendo um total de R$
108.601.000,00 (cento e oito bilhões e seiscentos e um milhão de reais) em investimentos46. Nota-se
uma diferença de R$ 33.442.578.659,38 (trinta e três trilhões, quatrocentos e quarenta e dois
bilhões, quinhentos e setenta e oito milhões e trinta e oito centavos) a mais para os investimentos
em segurança pública!
Nota-se, de forma inequívoca a opção brasileira pelo Estado Penal, com investimentos
maciços voltados a repressão criminal de um lado e parcos investimentos sociais de outro.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis – drogas e juventude pobre no Rio de janeiro.
Rio de Janeiro. Revam, 2003.
CHRISTIE, Nils. Elementos para uma Geografia Penal. In Revista de Sociologia e Política. Nº 13.
Nov.1999. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rsocp/n13/a05n13.pdf . Acesso em:
26/08/2012.
COSTA, Lúcia Cortes da. Os impasses do estado capitalista: uma análise sobre a reforma do
Estado no Brasil. São Paulo. Cortez. 2006.
SOARES, Luiz Eduardo. O menino invisível se arma. In ATHAYDE, Celso et al. Cabeça de
Porco. Rio de Janeiro. Objetiva. 2005.
WACQUANT, Loic. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos estados unidos.Rio de Janeiro:
Instituto Carioca de Criminologia. F Bastos, 2001.