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TAUNAY, C. A. Manual Do Agricultor Brasileiro (Organização Rafael de Bivar Marquese) - Companhia Das Letras, 2001, Capítulos 2 e 3

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MANUAL

DO

AGRICULTOR BRAZILEIRO,

OBRA INDISPENSAVEL

a todo o Senhor de Engenho , Fazendeiro e Lavrador , por apresentar buma idéa geral e philosophica
da Agricultura applicada ao Brazil , e ao seu especial modo de producção , bem como noções exactas
sobre todos os generos de cultura em uso , ou cuja adopção fôr proficua , e tambem hum resumo de
horticultura, seguido de hum epitome dos principios de botanica, e hum tratado das principaes
doenças que atacão os pretos

ORNADO COM VARIAS ESTAMPAS ;

SEGUNDA EDIÇÃO

DEDICADA AO EX. SR. SENADOR

BERNARDO PEREIRA DE VASCONCELLOS ,

MINISTRO DA JUSTIÇA E INTERINAMENTE DO IMPERIO ,

por C. A. Taunay ,
R
SENDO COLLABORADOR , NA PARTE AGRONOMICA E BOTANICA, L. RIEDEL , BOTANISTA DE SUA
MAGESTADE O IMPERADOR DA RUSSIA NO BRAZIL.

RIO DE JANEIRO ,
TYPOGRAPHIA IMPERIAL. E CONSTITUCIONAL DE J. VILLENEUVE E COMP..
RUA D'OUVIDOR , N' 65.

1839.
O AGRICULTOR BRAZILEIRO. 5

CAPITULO II.

Da escravidão. · - Dos escravos pretos.

A escravidão , contracto entre a violencia e a não- resistencia (* ) , que tira


ao traballo a sua recompensa , e ás acções o arbitrio moral , ataca igualmente
as leis da humanidade e as da religião , e os povos que o tem admittido na sua
organisação tem pago bem caro esta violação do direito natural.

Porém a geração que acha o mal estabelecido não fica solidaria da culpabi-
lidade daquillo que , pela razão que existe , possue huma força muitas vezes ir-
resistivel , e certos abusos radicaes tem huma connexão tão estreita com o prin-
cipio vital de huma nação , que seria mais facil acabar com a existencia nacional ,
de que com estes mesmos abusos ; v. g. em S. Domingos , a libertação simulta-
nea dos escravos deu cabo do systema politico que coordenava aquella ilha com
a metropoli ; a França perdeu hum appendice interessante do seu corpo social
e hum povo preto se improvisou inesperadamente em hum lugar que jamais a
ordem natural das cousas destinaria para séde de huma potencia africana .

No caso particular da escravidão dos pretos comprados na costa d'Africa


podemos considerar o seu resgate das mãos dos primitivos donos , e a inferiori-
dade da sua raça , como circunstancias attenuantes que devem tirar qualquer
escrupulo de consciencia ao senhor humano, que põe em pratica com os seus es-
cravos a maxima admiravel do Evangelho , e que só de per si vale hum codigo
de moral , de não fazer aos outros aquillo que não quereriamos que se nos fizesse
a nós.

Todos os volumes e declamações dos antagonistas do trafico dos pretos


fazem pouca impressão nos homens veridicos que tem estudado de perto , com
cuidado e imparcialidade , a questão. A organisação physica e intellectual da raça
negra , que determina o gráo de civilisação a que pode chegar ; os costumes
das tribus , o modo porque ellas se tratão humas ás outras , e porque os indi-
viduos da mesma tribu se tratão entre si , não permittem que se nutrão as illu-
sões de que , cessando o trafico , as guerras , e outros usos barbaros que a fla-
gellão , havião de discontinuar : bem ao contrario , se admittirmos duas excepções ,
huma na Africa , para os guerreiros que gozavão de todas as vantagens da sua

(*) Os Gregos dizião que os Persas erão escravos unicamente por não saberem pronunciar o mo-
nosyllabo - Não. -
6 O AGRICULTOR BRAZILEIRO .

semi - civilisação e opprimião seus patricios , e outra na America , para os que


cahem nas mãos de senhores ferozes , monstros de face humana , devemos re-
conhecer que , geralmente fallando , a sorte dos negros melhora quando esca-
pão ao cruel choque do transporte. Aliás , sem nos darmos por apologistas dos
traficantes de escravos , gente quasi sempre sem moral nem entranhas , ob-
servaremos que as idéas curopêas sobre o bem estar não servem ao caso desse
transporte. A vida anterior e privações que os pretos podem aturar determinão
o methodo do embarque. O interesse dos donos he que os escravos escapem
com a vida e sãos. Medem-lhes o ar , o espaço e o alimento , de fórma que haja
de tudo isto bastante para que o mór numero não morra : nada dão ao commo-
do conta nenhuma fazem das ancias e dos soffrimentos. Porém , desejariamos
saber se a philantropia dos governos da Europa , e dos especuladores , no embar-
que dos prisioneiros , ou mesmo dos soldados e colonos , na maioria dos casos ,
tem obrado differentemente.

A inferioridade physica e intellectual da raça negra , classificada por todos


os physiologistas como a ultima das raças humanas , a reduz naturalmente ,
huma vez que tenha contactos e relações com as outras raças , e especialmente
a branca , ao lugar infimo , e officios elementares da sociedade. Debalde procu-
rão- se exemplos de negros cuja intelligencia e producções admirão . O geral
d'elles não nos parece susceptivel senão do gráo de desenvolvimento mental a
que chegão os brancos na idade de 15 a 16 annos . A curiosidade , a imprevisão ,
as effervescencias motivadas por paixões , a impaciencia de todo o jugo e inhabili-
dade para se regrarem a si mesmos ; a vaidade , o furor de se divertir , o odio
ao trabalho , que assignalão geralmente a adolescencia dos Europeos , marcão
* todos os periodos da vida dos pretos , que se podem chamar homens -crianças
e que carecem viver sob huma perpetua tutela : he pois indispensavel conserva-
los , huma vez que o mal da sua introducção existe , em hum estado de escravi-
dão, ou proximo á escravidão ; porém , esta funesta obrigação dá os seus pessimos
fructos , e o primeiro golpe de vista nos costumes , moralidade e educação
desengana o observador e o convence que a escravidão dos prctos não he hum
mal para elles , sim para os seus senhores .

O Brasil sente mais violentamente do que qualquer outra nação , ou colo-


nia , este mal , e menos do que qualquer outra acha-se em estado de se sub-
trahir tão cedo à sua influencia. Nossa agricultura , já tão decahida , não aturaria
no momento actual nem a libertação dos pretos , nem mesmo a real cessação
do trafico ; portanto , cm vez de querermos sanar o mal , cuja extirpação levaria
comsigo a existencia , o nosso trabalho deve limitar -se a mitigar os seus peiores
effeitos e preparar os meios ás gerações futuras para se poderem livrar sem
perigo da praga social com que nossos geradores nos dotárão .

As considerações supra , resultados de huma observação desinteressada ,


fixão a opinião que devemos ter da escravidão dos pretos , peculiarmente no
nosso Brasil ; agora resta examinar o modo de tirar o melhor partido possivel
de huma situação obrigatoria.

A escravidão priva o homem livre da metade de sua virtude. Este rifão


não foi feito para pretos , sim para brancos , oriundos da primeira das raças
humanas , da caucasica , e até para republicanos , Gregos e Romanos . Que di-
O AGRICULTOR BRAZILEIRO.

remos dos pretos de raça infima e sujeita aos appetites brutos do homem sel-
vagem ? Qual será a mola que os poderá obrigar a preencher os seus deveres ?
O medo , e sómente o medo , aliás empregado com muito systema e arte
porque o excesso obraria contra o fim que se tem em vista.

*
Sempre que os homens são applicados a hum trabalho superior ao premio
que delle recebem , ou mesmo repugnante à sua natureza , he preciso sugeita-
los a huma rigorosa disciplina , e mostrar-lhes o castigo inevitavel. Sem este
meio não haveria exercito de mar ou de terra. Hum branco , hum Europêo ,
abandonado á sua livre vontade , nunca seguiria o regimen militar . Da mesma
forma , hum preto se não sujeitaria nunca á regularidade de trabalhos que a cul-
tura da terra requer. Vejão no na sua patria , e entre nós quando liberto. Elle
apenas emprega algumas horas cada semana para procurar o sustento ,
raras vezes prefere o jejum ao trabalho. Se pois se não pode determinar a tra-
balhar quando o fructo do trabalho he todo delle , qual seria o motivo que teria
poder de o obrigar quando he para o senhor o fructo do seu suor ? Fica pois
claro que somente a mais rigorosa disciplina valerá para applicar os negros a
hum trabalho real e regular, e que com elles o contracto da gleba , que hoje sub-
stitue a escravidão em toda a Europa , não poderia ter lugar.

Eis-nos pois obrigatoriamente com huma rigorosa disciplina nos campos : e


mórmente nas grandes fabricas , aonde huma perpetua vigilancia e regra intran-
gressivel devem presidir aos trabalhos , ao descanço , ás comidas , e a qualquer
movimento dos escravos , com o castigo sempre á vista . A maior ou menor per-
feição desta disciplina determina o maior ou menor gráo de prosperidade dos
estabelecimentos , sendo este ponto de interesse tão transcendente , que consi-
deramos como o remedio mais efficaz da decadencia da nossa agricultura huma
lei que fixasse a sorte dos pretus , e regularisasse em toda a superficie do Im-
perio o modo de os tratar , e a porção de trabalho diario que se pode exigir
delles , pois que a ignorancia , a avareza , e o desleixo , de mãos dadas , cegão
os donos a ponto que a voz do seu interesse bem entendido não pode ser ou-
vida para os resguardar que appliquem mal , exhaurão , ou deixem inuteis as
forças da sua escravatura.

Porém , talvez que certa gente se persuada que o Governo , se se intromet-


tesse a legislar sobre escravos , atacaria o direito de propriedade , e a preroga-
tiva do senhorio : para reconhecer o quanto esta opinião he errada , basta ob-
servar que a escravidão , como esta gente a entende com os antigos , e os Asiaticos ,
não póde , nem deve existir hoje em hum paiz christão. Os governos Europeos ,
antes fechárão os olhos sobre este trafico , do que o permittirão explicitamente 9
c as considerações em que fundárão a concessão ao interesse , forão tiradas da
religião e do anterior estado de escravidão dos pretos na sua terra , cujo tras-
passe , em mãos de brancos e christãos , devia ser favoravel ao escravo , reser-
vando -se o direito de intervir no contracto de traspasse , e estipulando tacita-
mente a favor do escravo as precisões do sustento , instrucção christā , e segu-
rança da vida e membros.

Os negros pois nas colonias europeas , e no Imperio do Brasil , não são


verdadeiramente escravos , sim proletarios , cujo trabalho vitalicio se acha pago,
O AGRICULTOR BRAZILEIRO.

em parte pela quantia que se deu na occasião da compra , em parte pelo for-
necimento das precisões dos escravos e sua educação religiosa .

O legislador tem, por tanto , direito de se intrometter para que esta parte do
contracto , de que he fiador , seja fielmente executada ; tanto mais que o in-
teresse dos donos , como já observámos , requer a mesma ingerencia.

Aliás as leis existentes sobre a prisão e castigo , ou execução dos escravos


pela parte publica , quando criminosos ; a venda , ou libertação delles , por certa
quantia , quando assim o requisitão , e a manumissão das crianças na occasião
do baptismo , havendo o deposito de estilo , assaz comprovão que o governo
nunca deixou de seguir a mesma doutrina e de considerar os pretos como me-
nores debaixo da tutella dos senhores em virtude de hum contracto obrigatorio
para ambas as partes ; a regra de jurisprudencia , que considera os escravos como
cousas , não tendo applicação senão no que toca á totalidade do trabalho que
podem fazer na sua vida , logo que elles gozão no resto dos direitos passivos com.
pativeis com a livre disposição , para os donos , do mesmo trabalho , sendo huma
blasphemia contra o legislador e a nação o suppôr que jamais podessem aban-
donar a sorte e vida de hum ente humano ao ludibrio de outro : e a inefficacia
ou incxecução das leis a este respeito não podem autorisar outra conclusão se-
não a necessidade de as exccutar á risca , ou reformar convenientemente.
O AGRICULTOR BRAZILEIRO,

CAPITULO III.

Da disciplina da escravatura. - Alimento . - Vestimenta e habitação . Tarefa diaria. Castigos.


Direcção moral e religiosa. - Relações dos sexos.

Esta disciplina, cuja indispensabilidade provȧmos no capitulo supra , não


póde ser invariavel , pois que as circunstancias do clima , lugar e genero de cul-
tura por força a hão de modificar ; porém , he possivel reduzi-la a certas regras
geraes , com a latitude que as peculiaridades requerem. Estas regras abrangem :
1º, o alimento ; 2° , vestimenta e habitação ; 3° , a tarefa diaria ; 4º, os castigos ;
5°, a direcção religiosa e moral ; 6°, as relações dos sexos.

Alimento. Os negros são por natureza sobrios , e nos seus desertos aturão
jejuns extraordinarios ; o seu genero de vida e genio assim o requerem. A mór
parte do tempo , ou dormem ou andão á caça das feras e dos homens ; mas , sen-
do tirados daquelle estado selvagem para serem applicados á vida regular e tra-
balhos severos da lavoura , he preciso sustenta los regular e sufficientemente . Em
todos os paizes a ração do soldado he huma base conveniente para estabellecer
a quantidade de alimentos que se necessita para conservar a saude e forças sem
superfluidade ; por tanto , a lei ou codigo que reclamamos poderia adoptar essa
ração como norma.

Partindo deste principio , hum negro não deveria receber por dia menos de
hum decimo da quarta do alqueire razo de farinha de mandioca , meia libra de
carne fresca ou quatro onças de carne salgada ou peixe , e duas onças de arroz
ou de feijão ; subentendendo -se que , segundo as localidades , se admittirião os equi
valentes em fubá , arroz , toucinho , peixe , & c.

Nos scrtões , e nas fazendas onde se cultivão mantimentos , a comida que se


dá aos pretos he em geral sufficiente . Nos engenhos de beira-mar , fabricas de
mineração , serrarias , olarias , &c. torna-se mais necessaria huma tabella legal e
obrigatoria , não porque a maioria dos senhores sejão deshumanos e neguem de
proposito o necessario , mas sim porque o desleixo , a incommodidade do desem-
bolço quotidiano , e outras razões identicas , dão causa á escassez e irregularidade
das distribuições , com immenso prejuizo dos senhores , que perdem , pela diminui-
ção das forças dos escravos e mortandade , o decuplo do que poupão com tão
mal entendida parcimonia .

O methodo de tomar o alimento não he menos necessario á saude do que


a sufficiente quantidade , e por tanto , em huma fabrica bem disciplinada ,
2
10 O AGRICULTOR BRAZILEIRO.

os escravos deveráō comer juntos , e em ranchos de cinco , ou dez , trez vezes


ao dia. Esta regra não deve transgredir-se , mesmo em favor dos casados , senão
talvez nos domingos.

A comida de manhã póde ser leve : bastará hum punhado de farinha ou


bôlo de milho , com huma fruta ou huma calix ( * ) de cachaça ; ao meio dia ,
carne ou peixe com pirão ; de noite feijões , aboboras , arroz , carurús , &c .

Os productos abundantissimos de hortaliças , legumes e frutas permittem


de dar , sem maior despeza , huma comida variada e saudavel ; e he mais por
descuido e preguiça do que por carencia , que os pretos passão huma vida
tão miseravel em muitas partes , pois que cumpre confessar , não obstante as
sevicias e arbitrariedades praticadas por certos senhores no Imperio do Brasil
que os pretos são , geralmente fallando , mais bem tratados a respeito de comer
e vestir , e menos asperamente applicados ao trabalho e castigados do que nas
colonias das nações europêas , aonde a avareza fez calar a voz da humanidade.
Por tanto, bastará em muitas partes regularisar o que se pratica para que o nosso
systema se ache em pleno andamento.

O que dissemos da indole dos pretos , com a confirmação de experiencias


mil vezes repetidas , bastão para que formulemos como axioma , sem ponderar
considerações de detalhe que o uso de conceder os sabbados , em lugar de dar a
ração, he summamente erroneo e de pessimo resultado.

Vestidos , habitação e doenças. Os negros andão nús na sua patria , e habi-


tão ranchos que apenas servirião para chiqueiros ; mas não se deve concluir d'isto
que hum tal modo de vida seja o mais conveniente e favoravel á sua natureza ,
porque seria o mesmo que dizer que devemos voltar ao antigo modo de viver das
primeiras éras. E de mais , o clima do Brasil , mais frio e humido do que o da
Africa , convém pouco á compleição dos Africanos , os quaes não aturarião mui-
to tempo se vivessem á sua moda , sem vestidos nem abrigo.

A economia deve ser a base de toda a empreza de agricultura , e por tanto


seria para desejar , como mais longe explicaremos , que tudo quanto se consome
em huma fazenda sahisse della , e mesmo o pano de algodão de que se vestem
os pretos . Todavia , nem todos os fazendeiros tem as commodidades de manda-
rem fiar e tecer em casa o pano de seu uso ; mas os tecidos de algodão de Mi-
nas são baratos e proprios para a escravatura. No inverno , mormente nas serras
e provincias meridionaes , a bacta deve substituir o algodão.

As sanzalas devem ser levantadas do chão e conservadas com muito accio ,


e he bom que os pretos durmão em giráos , e que cada hum tenha a sua esteira

(*) O gosto , ou , para melhor dizer, a paixão dos licores fermentados ou espirituosos he universal ,
e os povos selvagens , assim como os civilisados , procurão com a mesma ancia essas bebidas , e sendo
o seu uso moderado , mormente para os que seguem a vida activa de caçador , guerreiro , ou agri-
cultor , longe de ser nociva , he o meio mais efficaz de sustentar as forças e firmar a coragem. Por
tanto, julgamos que de quando em quando a distribuição de huma porção de cachaça , v. g. hum
copinho de manhã e outro nos domingos de tarde , produzirá muito bons effeitos , particularmente
para autorisar a completa prohibição de communicar com as vendas , foco de todos os vicios e
crimes dos escravos , e theatro do infame trafico da cobiça com o roubo.
O AGRICULTOR BRAZILEIRO. 11

e hum bom cobertor , sendo preciso haver todos os domingos huma inspecção
severa do estado e limpeza da habitação , camas e vestidos da escravatura , a qual ,
se não houver todo o cuidado e previsão , se deixará atolar na sua immundicic
ou venderá os trastes e cobertores.

Parece incrivel que haja precisão de recommendar que se tome cuidado


dos pretos doentes , pois que o interesse e a humanidade igualmente o exigem .
Mas o desleixo e abandono são taes em muitas partes , que sómente na occasião
de perigo imminente he que se dá fé do estado dos escravos , e se lembrão de os
tirar das encharcadas palhoças onde jazem no chão , mal cobertas com trapos
pestiferos. He de esperar que a alta do preço dos negros e menores rendimentos
da agricultura tornem os senhores mais sollicitos no tratamento da sua escra-
vatura.

Toda a fazenda bem regrada deve ter huma sala ou local em situação secca
e bem arejada para hospital , como camas de taboado , boas esteiras ou enter-
gões , lençoes , camisas e tudo o que he necessario para a cura dos doentes , c
se a situação da fazenda o permittir , deve- se ter hum cirurgião de partido .

No fim desta obra , para commodidade dos fazendeiros e moradores que não
podem ter à mão hum facultativo , daremos a composição de huma pequena
caixa pharmaceutica , com o uso dos medicamentos , assim como do tratamento
de certas doenças mais triviaes entre os pretos.

Tarefa diaria. Os pretos não se comprão para se ter o gosto de os sustentar


e de os ver folgar , mas sim para tirar do seu trabalho os meios de subsistir c
lucrar. O salario deste trabalho foi pago em parte por huma vez pelo dinheiro
da compra , e a outra parte paga-se diariamente com o sustento. Mas o preto ,
parte passiva em toda esta transacção, he por natureza inimigo de toda a occupa-
ção regular , pois que muitas vezes prefere o jejum e a privação de todas as
commodidades ao trabalho que he justo que dê para o comprimento do con-
tracto , e só a coacção e o medo o poderão obrigar a dar conta da sua tarefa.

A coacção obtem-se pela vigilancia assidua , e o medo inspira- se pela prom-


pta e inevitavel applicação dos castigos.

Todavia , a porção de trabalho que os senhores devem exigir dos escravos


cumpre que seja regulada pelo que fazem os operarios e trabalhadores livres :
a respeito do tempo que he razoavel consagrar ao trabalho , a mesma natureza
dá o seu typo sanccionado pela religião. O homem deve trabalhar seis dias c
descançar no setimo. As horas são marcadas pela duração do dia. Hum trabalho
activo с
e continuado , desde que o dia amanhece até que anoitece , com os dous
descanços de huma hora para almoço e duas para jantar he o quanto se póde
exigir diariamente da força humana , sem risco da saude. Comtudo , no inverno ,
hum serão até ás nove horas , occupado cm trabalhos caseiros , póde ter lugar sem
inconveniente .

He evidente que estas regras tem muitas excepções , e que o apuro das
colheitas e o genero da occupação , v. g . nos engenhos no tempo da safra ,
obrigão a outra divisão de trabalhos ; porém, hum senhor judicioso deverá sem-
12 O AGRICULTOR BRAZILEIRO.

pre combinar as tarefas extraordinarias e trabalhos nocturnos , de forma que o


preto venha a ter o equivalente em sustento e descanco . Os homens livres ex-
cedem muitas vezes por ambição a tarefa regular do trabalho ; mas o lucro e
satisfação fazem o contrapeso do excesso . O preto , que nada vê a ganhar neste
excesso de fadiga , entrega- se ao desespero , e brevemente definha.

Apresentamos com tanta maior razão esta observação , que não entendemos
por trabalho o tardonho e indolente simulacro de occupação dos pretos abando
nados a si mesmos e extenuados pela fome , e de que pode dar huma completa
idéa o serviço que fazem os presos da cadêa e pretos do calabouço , mas sim o
activo e productivo emprego de todas as forças do corpo , que absorve a atten-
ção do espirito , expreme o suor do corpo e despacha a tarefa como por encanto ,
o unico capaz de conduzir a resultados que correspondão aos desembolços . Hu-
ma tal applicação da parte dos escravos não se pode obter senão com huma vi-
gilancia de todos os momentos , a qual, como já dissemos, exige huma disciplina
semelhante á militar , e a reunião dos trabalhadores em grupos ou esquadras ',
com conductores ou feitores que os não percão de vista hum só minuto.

Castigos. O medo , como já observámos e provámos , he o unico meio de


obrigar os escravos a cumprirem com o dever que a sua condição lhes impóc.
O augmento de riquezas do senhor , em vez de melhorar a sua condição , quasi
sempre a empeiora , pois que o escravo e a ovelha do pobre podem ser sustenta-
dos no scio da familia , e do prato dos filhos ; mas os escravos e os rebanhos
dos ricos são entregues a pastores e feitores que os tosqueião mais de perto e
mais impiamente , em quanto o dono , pelo maior numero que possue , fica
menos habilitado para os vigiar com os seus proprios olhos ; por tanto , a lei que
regulasse a escravidão tornar - se - ia com especialidade utilissima para os ricos
e para os seus escravos , poupando áquelles a fadiga de legislar para suas fazen-
das , e a estes as crueldades superfluas e irregularidades de tratamento.

Vimos como a perpetua vigilancia dos feitores e administradores ou senho-


res era precisa para conduzir os pretos ao trabalho , mas esta vigilancia seria
illusoria sem os castigos , os quaes devem ser determinados com moderação ,
applicados com razão , proporcionados á qualidade da culpa e conducta do de-
linquente , e executados á vista de toda a escravatura , com a maior solemni-
dade , servindo assim o castigo de hum para ensinar e intimidar os mais. Quem
observar estas maximas, conhecerá que não he difficil conservar a disciplina mais
rigorosa , com bem poucas correcções , pois que o excesso dos castigos e repe-
tição continua , longe de corrigirem , embrutecem , não devendo ser permittido
aos feitores, o castigarem immediatamente , senão na occasião de desobediencia com
revolta , que he o maior dos crimes domesticos , e ao qual deve applicar- sc
depois o maximum do castigo , seja qual fôr a dose instantanea que o réo tiver
levado. Excepto no caso apontado , os feitores deverião ser obrigados a dar conta
ao primeiro administrador ou dono , se este administrar em pessoa , dos crimes
commettidos e suas circunstancias ; e este, julgando summariamente, deverá na
primeira reunião mandar castigar os sentenciados.

A lei deverá determinar a progressão dos castigos , e o instrumento que se


deve emprega . O chicote de huma só perna , vulgarmente chamado bacalhão,
parece- nos conveniente , e 50 pancadas desse instrumento são, ao nosso ver,
O AGRICULTOR BRAZILEIRO. 13

sufficientes para castigar todo o crime cujo conhecimento for confiado aos se-
nhores. Os crimes que exigissem penas maiores , como fugas repetidas , furtos
consideraveis , desobediencia , e bebedeira incorrigiveis , revolta contra o castigo
e outros da mesma natureza , deverião ser castigados na cadêa dos respectivos
districtos , a requerimento dos senhores e deferimento dos Juizes de Paz , que
decidirião summariamente.

A respeito dos crimes atrozes , como assassinios , envenenamentos , levantes


com armas , conloios para levantes em massa , &c. , a lei já existe e reclama os
réos que cahem debaixo da sua alçada . Os senhores que , por avareza ou desleixo ,
os não denuncião , ou escondem , tarde ou cedo tem de chorar tão criminosa
cumplicidade.

Damos de conselho a todo o senhor humano e razoavel que deparar com


escravos incorrigiveis , que , depois de soffrerem repetidas vezes o maximum da
pena , se não emendem , que os vendão sem attenderem á perda pecuniaria , por-
que esta mesma venda póde servir para intimidar aos outros , por saberem que
os vendidos vão cahir em mãos de senhores sem piedade que os tratão com sc-
vicia.

" Para
os crimes domesticos de maior monta , e para o genio do geral dos cs-
cravos , cincoenta pancadas bastão . Tudo o que passar dahi he antes dado á raiva
e vingança do que á cmenda do castigado ; até não deve haver licença para re-
petir essa dose senão com o intervallo de huma semana.

A respeito dos troncos , sepos , anginhos e todo o innumeravel utensilio de


tratos , restos da barbaridade antiga , que o governo já abandonou , e , por inco-
herencia e criminoso desleixo , tolera ainda nas mãos dos particulares , he evidente
que a religião , a humanidade e o bom senso imperiosamente ordenão que sejão
reduzidos a cinzas. Huma prisão para conservar alguns dias os pretos fujões ou
levantados até haver occasião segura de os remetter para as cadeas , e collares
de ferro para envergonhar aos olhos dos parceiros os preguiçosos e fujões , he
tudo quanto a lei deve permittir que se conserve daquelle arsenal de maquinas
de tortura.

Os castigos das mulheres e crianças devem ser proporcionados ao seu sexo


e debilidade , e executados separadamente dos homens. O que temos dito da
justiça , moderação e sangue frio de que o senhor se deve revestir tem igualmente
lugar com estes entes mais fracos e doceis. O conselho de vender os pretos in-
corrigiveis he ainda mais obrigatorio no caso das pretas de má indole , que se
não podem sujeitar á disciplina.

O que temos dito basta para os senhores e administradores de juizo e probi-


dade. Estes, por sua propria experiencia e observação , poem em pratica as prin-
cipaes regras que acima apontamos ; e se todos os senhores de escravos perten-
cessem á mesma classe , não haveria tanta necessidade de que o governo so
intromettesse por huma lei no tratamento da escravatura , podendo confiar da
prudencia , interesse e boa disposição de alma dos chefes de familia a sorte dos
escravos, como era uso na antiguidade, onde o governo paterno subsistia em toda
a sua simplicidade primitiva , extendendo - se até ás csposas e filhos sobre os quacs
14 O AGRICULTOR BRAZILEIRO.

os maridos e pais exercião hum poder discrecionario que abrangia o jus de os


sentenciar e executar , inter parietes , no interior da casa. Em quanto se conservão
a pureza dos costumes , e a singeleza patriarcal , este systema tem poucos in-
convenientes ; mas , quando a existencia social se complica , quando o luxo e
cobiça se apoderão das almas , quando os ricos proprietarios se concentrão nas
cidades para brilhar na côrte , ou exercitar os direitos politicos ; quando a sêde
das honras , das delicias e do lucro que as procura se exaltão , então os abusos
que resultão do absolutismo paterno e de tantos tribunaes caseiros que não tem
regra nem responsabilidade , sobrepujão por toda a parte : então os tratos , cru-
zes e fogueiras inventão- se e empregão - se no segredo das familias ; então as mu-
renas e os peixes dos viveiros cevão - se com a carne dos escravos ; então as ma-
tronas romanas deleitão -se nos supplicios e no sangue , então põe-se em pratica
tudo o que a lascivia e crueldade podem inspirar de horrores e monstruosi-
dades a imaginações depravadas pelo abuso das delicias.

Os povos modernos , instruidos pela experiencia , e mais ao facto daquillo em


que consiste a verdadeira liberdade civil , tem de commum acordo posto leis
e limites á autoridade paterna , e sem lhe tirar o que tem de saudavel e neces-
sario á conservação da ordem social , fazem-a responsavel pelos seus excessos.
Hoje a protecção publica se extende á criança ainda por nascer , e acompanha-a
até o tumulo. O mesmo servo da gleba na Europa e o Africano escravo na Ame-
rica ,
não estão inteiramente abandonados , e as arbitrariedades que soffrem
vem dos abusos e não dos principios.

Direcção religiosa e moral. Vimos que huma das clausulas tacitas da com-
pra dos escravos era a sua conversão : os senhores tem portanto obrigação , não
menos como cidadãos do que como christãos , de lhes mandar ensinar e praticar
a religião , sendo aliás o meio mais efficaz de os conservar obedientes , laboriosos ,
satisfeitos da sua condição e de occupar innocentemente as horas do domingo.

O descanço do setimo dia he de instituição divina , e o Omnipotente se dignou


prescreve-la não só para o criado e escravo , mas até em favor do boi e do ju-
mento. A experiencia da revolução franceza mostrou que hum dia sobre dez
não bastava para relaxar o espirito e restaurar as forças do corpo , e que hum
dia sobre cinco era de sobejo. Os seis dias de trabalho , terminados pela folga do
setimo dia , he periodo tão natural , que elle se encontra entre o maior numero
de povos em todas ás épocas historicas.

A religião catholica romana , como se ensina e pratica em Portugal e no


Brazil , conforma - se muito pelo lado da indulgencia com os preceitos do Evange .
lho , e sua tendencia para a superstição a torna ainda mais appropriada ao genio
dos pretos , credulos e supersticiosos por natureza. Os sublimes dogmas e con-
siderações transcendentes de metaphysica estão pouco ao alcance da sua intelli-
gencia , mas a pompa , as imagens , as orações , os escapularios , as glorias do
paraiso , as chamas do inferno cativão a sua imaginação. A crença em hum
Dcos e nos seus santos , e entre estes alguns da sua côr , que não desdenhão
o pobre escravo , entretem a alegria e a esperança no coração dos pretos. A re-
ligião rehabilita a sua condição , e consagra suas relações com os senhores , que
não apparecem mais a seus olhos como proprietarios , ou como tyrannos, mas
sim como pais , como retratos do mesmo Deos , aos quaes devem amar e ser-
O AGRICULTOR BRAZILEIRO. 15

vir com o sacrificio de todos os seus trabalhos e suores " para merecerem a
benção do Céo e huma eternidade de bemaventurança .

Por tanto, o emprego do domingo he reclamado pela religião , e este dia , á


primeira vista sem utilidade , tornar-se-ha o mais util para conservar a boa or-
dem , a subordinação e a actividade do serviço na familia.

Os negros , como já se disse , jamais sahem da vista dos seus directores


durante os seis dias de trabalho . As tarefas occupão os dias , o somno as noites ,
e elles , não tendo tempo para a occiosidade , vivem isentos dos vicios que ella pro-
duz. Os domingos e dias feriados devem ser passados da mesma fórma em com-
mum debaixo dos olhos dos guardas ; a repartição deste dia , salvo circunstan-
cias particulares , póde- se fazer do modo seguinte .

Da hora de se levantar até as dez horas , haverá limpeza e lavagem da rou-


pa da semana , limpeza das sanzalas , e inspecção rigorosa pelos feitores e ad-
ministradores.

Das dez horas até a hora de jantar , a missa com toda a pompa possivel. Esta
pompa não carece grandes gastos . Os ornamentos da capella e do altar , e muitas
flores e folhagens he quanto basta. O canto -chão poderá ser executado pela es-
cravatura. Depois do jantar , a musica africana , as danças patricias , e alguns
jogos de luta , &c. , bastão para divertir esta gente simples até as horas do des-
canço , que deverá ser precedido de huma oração e ladainha solemne.

Approvamos muito que nestes jogos , ainda que não fosse senão huma vez
por mez , alguns objectos de pouco valor , mas que os negros cobição , v . g. ,
missangas , chapéos mais finos , lenços de côr apparatosa , &c. , se dêem como
premio aos mais dextros. Huma distribuição de cachaça ou de outro qualquer
espirito não seria tambem fóra de proposito ; tanto mais que toda a communi-
cação com as tavernas , peste do Brazil e perdição da escravatura , deve ser
prohibida debaixo dos mais severos castigos.

A privação de assistir aos exercicios e divertimentos do domingo , poderá


servir de castigo mais temido do que o mesmo chicote.

Os elogios e premios aos escravos de boa conducta e que terminão com


actividade a sua tarefa , offerecem outro meio efficaz de manter a disciplina ; e
os feitores inferiores podem ser escolhidos d'entre elles quando a estas qualida-
des unirem sufficiente intelligencia. Alguma insignia de pouca monta , como huma
vestia ou boné de côr mais brilhante, bastará para a sua promoção , devendo no
resto do tratamento e no trabalho ficarem em tudo assemelhados aos seus par-
ceiros , aos quaes devem servir de exemplo.

Das instituições mais singelas , huma vez arraigadas nos corações humanos •
obtem -se os resultados mais fecundos e duradouros. Podemos por tanto afiançar
aos senhores que seguirem o nosso plano , ( e elle antes tende a poupar despezas
do que a augmenta-las , exigindo somente paciencia , regularidade e huma vigi-
lancia pessoal durante os primeiros annos) que em breve huma especie de civi-
lisação tradicional de usos e costumes se estabelecerá entre a sua escravatura ,
46 O AGRICULTOR BRAZILEIRO.

que ao depois andará quasi de per si , com o unico cuidado de dar de quando
em quando corda , mórmente se se observar a regra de livra-la dos sujeitos in-
corrigivcis , e de a não recrutar senão com pretos novos que os antigos formaráō
ao seu molde. Os jesuitas , mestres consumados na arte de disciplinar os homens ,
deixárão nas fazendas que o governo lhes confiscou , certos usos e tradições
que ainda hoje durão .

Relações dos dois srxos. A America devora os pretos : se a continua impor™


tação os não recrutasse, em breve a raça desappareceria de entre nós . Este resul-
tado , devido a humas poucas de causas , das quaes a principal he seguramente
o mão systema e desieixo do tratamento , se bem que nocivo á agricultura e á
riqueza dos particulares , he vantajoso ás nações que tem a certeza de não ver a
raça africana naturalisar-se nas suas possessões e substituir a raça branca , a não
haverem circunstancias extraordinarias e crises politicas , como aconteceu em S.
Domingos , sendo facil calcular o momento em que , com a cessação do tra-
fico , o sangue preto deixaria poucos sinacs na população.

Debaixo deste ponto de vista , seria bom que não nascesse hum só crioulo
na extenção do Imperio . Mas , como por outra parte , a lei da natureza não per-
mitte que isto aconteça , he melhor que o Governo não se intrometta em hum
ponto tão delicado e o abandone ao interesse dos senhores.

Todas as especies de animaes , achando alimento e certo gráo de bem estar ,


tendem a se multiplicar : as raças humanas , com o mesmo privilegio , receberão
de mais ordem positiva de o pôr em pratica ; crescite et multiplicamini ! e se
fossem precisas novas provas do quanto a escravidão he contra -natural , bastaria
observar que ella obsta a que o preceito divino se pratique. Logo que o tal
estado se modifica , e que a sorte dos escravos se torna fixa e toleravel , reappa-
rece a tendencia da raça humana para multiplicar , ou ao menos para se con-
servar ao nivel. Os villãos polacos c russos , debaixo do Knout do Hospodar e do
Boyar , e os servos da gleba em toda a parte , não precisão , para não diminuir
de numero , que hum recrutamento annual preencha as mortes. Da mesma
forma achamos nas fazendas dos Jesuitas , aonde a sombra da disciplina que
tinhão organisado ainda se consérva , a descendencia dos seus escravos . Por
tanto , o senhor humano que tiver estabelecido huma disciplina razoavel e re .
gularmente obscrvada na sua fazenda , e equiparado pouco mais ou menos o
numero dos machos ao das femeas , póde contar que com bem poucas com-
pras conservará a sua escravatura completa e a transmittirá aos filhos melhor
mais docil e mais adextrada , se souber convenientemente tratar e educar os
crioulos.

A escravidão dos crioulos he mais difficil de justificar do que a dos pais com-
prados na Costa. O filho segue a mãi , filius ventrem sequitur ; esta maxima de
direito basea-se na precisão que o parto tem para viver do leite da mãi , e do
pão do senhor desta. A lei considera que o senhor não trataria da cria e não faria
desembolços durante a longa duração da infancia , se não tivesse em perspectiva
o trabalho do resto da vida. O voto da lei legitima a este respeito o jus do se-
nhorio.

Aqui se levanta outra questão . ¿ Terá o senhor o direito de obrigar os seus


escravos a produzirem filhos ? Responderemos que nem tem direito , nem pre-
O AGRICULTOR BRAZILEIRO. 17

cisão disso , e que para o conseguir bastará não contrariar a natureza que con-
vida os sexos a se reunirem E estas uniões deveráō ser legitimas , ou passa-
geiras ? A religião e boa ordem pedem que sejão legitimas , mas por outra parte ,
parece injusto e duro impôr novo cativeiro aos escravos , e especialmente ás
mulheres, que se acharião com dous senhores : por consequencia , julgamos acer-
tadissimo deixar absolutamente á vontade dos interessados a legitimação da sua
união ao pé do altar.

Os casados devem continuar a viver cada hum no rancho do seu sexo , c


reunir-se sómente de noite nas suas sanzalas. Poderáò passar os domingos com
suas mulheres , depois de assistir aos officios divinos , como julgarem conve-
niente.

A respeito das uniões passageiras , devem ellas ser inteiramente secretas


e desconhecidas. Catão , que já citámos , certo de que a paixão das mulheres era
a origem das maiores desordens dos escravos , estatuio que poderião habitar com
as servas de casa por huma quantia que fixou . A medida , boa para o tempo c
para o homem , repugna igualmente á delicadeza e principios religiosos. Nin-
guem quer fazer da sua casa hum lugar de prostituição. Mas tambem o donɔ
de huma fazenda não quer freiras nem frades , sim huma raça de traba-
lhadores robustos , obedientes e pacificos ; por tanto , deve fechar os olhos sobre
tudo aquillo que não comprometta a decencia e a disciplina . As occupações c
habitações dos dous sexos , como já observámos , estão separados ; deve haver dif-
ficuldade , mas não impossibilidade , de se encontrarem , e como os Espartanos
não castigavão o furto , mas sim a sua descoberta , os senhores devem da
mesma fórma castigar não a acção , mas o escandalo , tendo aliás na sua mãŋ
os meios de promover ou de restringir a disposição de se casarem legitimamente.
Porém , huma vez que os casamentos fôrem celebrados na igreja , o codigo para
os escravos deve ordenar que jamais os esposos e filhos possão ser separados por
herança ou venda parcial, menos no caso de pessima conducta e incorrigibili-
dade , não deixando ao arbitrio dos senhores , e sim dos Juizes de Paz do dis-
trictos , ouvidos os Vigarios , a sentença summaria de taes casos.

Casadas ou solteiras , as pretas prenhes devem ser tratadas com mimo e ap-
plicadas a hum trabalho moderado. O parto e mamentação merecem as com
petentes attenções .

Os filhos , depois de desmamados , deverão ser criados em commum por classes


conforme a idade. A infancia dos crioulos he perigosa , ou seja porque a humi-
dade do clima lhes não he favoravel , ou seja por nascerem de pais cuja consti-
tuição soffreu abalo pela crise do transporte. A dieta que devem observar se regu-
lará pela disposição physica ; e á proporção que se fôrem criando , se lhes ensi-
nará a trabalhar , a rezar , a amar seus senhores , supportar o frio , o calor , a
fadiga e a seguir á risca a disciplina da casa. O mesmo se observará com as
crioulas , que serão criadas á parte. Desta fórma , huma nova geração , mais ins-
truida, geitosa, disciplinada e virtuosa do que a que veio da Costa , supprirá as
faltas desta , e pouco a pouco a substituirá inteiramente.

Não se apresente como argumento em contrario o que agora acontece com


os crioulos , cuja mór parte morre , e o resto se apresenta na idade adulta cheio
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18 O AGRICULTOR BRAZILEIRO.

de vicios e maldades , pois que as crianças , ou são tratadas com deshumanidade


e desleixo , e murchão como plantas em solo esteril , ou com demasiado mimo
c indulgencia nos braços da familia , com mil exquisitices ; e quando ao depois
se achão crescidos e robustos , não querem nem podem voltar á vida rigorosa o
desprezivel que fazem seus parceiros , e ficão inteiramente perdidos. O nosso sys-
tema evita ambos os excessos .

Entramos em grandes pormenores sobre o modo de dirigir a escravatura ,


porque consideramos este assento como o mais importante da nossa tarefa. Na
Europa , os terrenos e meios de os tornar mais ferteis merecem a particular
attenção dos proprietarios. Os jornaleiros achão - sc em demasia , e de hum dia
para outro se podem trocar por outros sem desembolço nem perda . Aqui os
terrenos pedem pouca attenção , e o modo de os tratar e plantar he quasi uni-
forme ; mas os trabalhadores carecem todo o cuidado e estudo da parte dos se-
nhores, que na sua compra empatão a maior parte dos seus fundos , estando os
seus rendimentos e fortuna postos em huma loteria cujos lances favoraveis de-
pendem em grande parte da sua vigilancia e aptidão para governar.

Os principios que estabelecemos , e os poucos esclarecimentos que dámos,


bastão, a nosso ver , para regular a conducta dos homens sensatos , que farão as
applicações e excepções conforme as circunstancias exigirem , sem jamais perder
de vista a maxima fundamental de que qualquer escravatura , e com especialidade
a preta , não pode ser applicada a hum trabalho efficaz e productivo , sem coac-
ção e rigor , sendo sómente possivel conciliar o interesse do dono e o bom trä-
tamento do escravo por huma vigilancia de todos os momentos , e huma im-
mutavel regularidade de disciplina.

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