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Desclassificados Do Ouro - Laura de Melo e Souza-61-111

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3 .

E N T R E V I S TA A WA L N IC E N O GU E I R A G A LVÃO

II , DA UTILIDADE DOS VADIOS

Os vadios são o ódio de todas as nações civilizadas, e contra


eles se tem muitas vezes legislado; porém as regras comuns
relativas a este ponto não podem ser aplicáveis em toda a sua
extensão ao território de Minas, porque estes vadios, que em
outra parte seriam prejudiciais, seriam ali úteis.
J.J. Teixeira Coelho.

1. O PROCESSO DE DESCLASSIFICAÇÃO SOCIAL NO OCIDENTE


, A miséria, a vagabundagem, o desnível entre as condições de
vida dos homens existiram desde cedo, dela escapando apenas as
sociedades primitivas.1 A guerra, as grandes intempéries climáticas,
as epidemias de doenças misteriosas sempre contaram entre os prin-
61
cipais agentes causadores de indivíduos socialmente desclassificados:
são as determinantes conjunturais, frequentes por exemplo na Alta
Idade Média, e extremamente importantes para tornar compreensível
o processo de desclassificação das populações.
A Idade Média é um período especialmente elucidativo para
quem estuda a marginalidade, pois em seu seio se verificaram as
grandes transformações que marcaram a concepção moderna da
pobreza. Durante séculos, o pobre havia sido o pobre de Cristo, o
coitadinho que merecia ajuda e com o qual a população das vilas
convivia sem escândalo. Para eles os mosteiros abriam suas portas e
distribuíam seus grãos. Nunca deixou de haver quem alertasse para
a diferença entre pobres válidos e pobres inválidos – os vadios e os
vagabundos sendo, via de regra, olhados com desconfiança –, mas
essa dicotomia só se tornou mais acentuada na Baixa Idade Média.
Inicialmente, os braços de Cristo se abriam para todos – não indis-
tintamente, mas para todos.2

1 , Ver a esse respeito Alexandre Vexliard, Introduction à la Sociologie du Vaga-


bondage, Paris, 1956.
2 , Os vagabundos sempre foram os menos considerados. Em seu trabalho, Les
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Com suas grandes convulsões, com a urbanização e as transfor-


mações na economia monetária e na estrutura da propriedade ru-
ral, o século XII acusa a grande virada. Toda uma série de mudan-
ças estruturais começavam a solapar irremediavelmente o sistema
feudal, engendrando a pobreza e provocando uma transformação
radical na concepção que dela se tivera por todos aqueles séculos: “A
miséria é filha da estrada e da cidade”.3 Até então, não fora reconhe-
cida como problema social, pois a humanidade medieval não busca-
va a igualdade; a pobreza era uma riqueza espiritual, e o pobre, um
intermediário entre o rico e Deus: daí a enorme preocupação com
as esmolas, “economia da salvação”.4
As transformações estruturais – a que se somou à ação de São
Francisco de Assis – fizeram do pobre uma criatura deste mundo.
As municipalidades e o poder público passaram a se encarregar das
esmolas. De personagem do discurso dos doutores da Igreja e dos
62 poderosos em geral, passou o pobre a ser ator do drama, protago-
nista real da História.
Essa entrada definitiva em cena foi anunciada durante séculos
pelos movimentos messiânicos, pelo hussismo, por John Ball, pela
Jacquerie, pelas súbitas e rápidas “fúrias camponesas”. Afinal, no
século XIV, sua presença explodiu por toda a Europa – uma Europa
combalida pela Peste, pela Guerra e pela Fome. As leis inglesas e
francesas de repressão à vadiagem e a de obrigatoriedade do traba-
lho foram a resposta mais imediata a esse estado de coisas, a legis-
lação e as instituições de caridade se tornando, mais do que nunca,
instrumentos dos poderosos no seu confronto com a miséria.
A partir do século XIV, pois, a pobreza já não pode ser considera-
da como uma série de casos individuais, e os pobres se tornam nu-

pauvres au Moyen-Age – Étude Sociale, Paris, 1978, p.158, Michel Mollat cita, entre
outros, João de Friburgo, que “em nome da lei moral do trabalho, reprova os falsos
pobres, os válidos preguiçosos e vagabundos”. A esmola, que deveria ser tirada do
supérfluo, não deveria encorajar a preguiça.
3 , Jean-Louis Goglin, Les Misérables dans l'Occident Médiéval, Paris, 1976, p.72.
4 , A expressão é utilizada por Michel Mollat na obra já citada.
3 . E N T R E V I S TA A WA L N IC E N O GU E I R A G A LVÃO

merosos demais para serem ajudados, onerando Deus e o Estado. O


trabalho e sua virtude redentora foram então exaustivamente lem-
brados, citando-se, como uma glosa, a vida dos santos. “O pobre,
o miserável, os humilhados se confrontam, implacavelmente, com
essa dualidade do bem e do mal: por um lado, representam o Cristo
humilhado e, por outro, ameaçam a ordem social”.5
De enorme importância é o aparecimento, durante os séculos
XIII e XIV, de um novo tipo de pobre: aquele a quem Mollat chama
“pobre laborioso, o camponês expropriado que, trabalhador, não
conseguia sustentar a família com o seu trabalho.6 Conforme avan-
çava o processo de dissolução das relações servis e de acumulação
primitiva, aumentavam os contingentes dessa nova camada social,
cuja característica mais importante era a pauperização crescente.7

5 , Goglin, ob.cit. p.135. Analisando as miniaturas da Bíblia moralizante do duque


de Borgonha Filipe, o Audaz. Goglin observa que os rostos dos pobres retratados 63
“lembram estranhamente os de carrascos, de malvados e de brutos”: é a pobreza
aparecendo como aspecto degradante da condição humana, “forma de humilhação
e de infâmia, com peso de maldição”. – p.139.
6 , “Tradicionalmente, a pobreza resultava da impossibilidade de ganhar seu pão
devido à incapacidade (idade, doença), ao desemprego, ao fracasso de uma ativida-
de, à perda de capital. Ora, eis que surge um grupo numeroso de pessoas exercendo
uma atividade regular e no entanto insuficiente para fazê-los viver decentemen-
te.” – Mollar, ob.cit., p.200. Na sociedade feudal, hierárquica ao extremo, não havia
terra sem dono, nem servo sem senhor. Christopher Hill cita um diálogo de uma
peça de Middleton extremamente elucidativo a respeito das transformações veri-
ficadas ao fim da Idade Média – Whose man art thou?, pergunta uma personagem,
ao que a outra responde: I'm a servant, yet a masterless man, sit.– How can that be?,
exclama, incrédulo, o interlocutor. Os masterless men se multiplicaram durante o
fim da Idade Média, atingindo o número de 13 mil no norte da Inglaterra, em 1569.
Christopher Hill, The World Turned Upside Down, Londres, 1975, cap. Masteless
Man, p.39. Sobre o assunto, ver também Maurice Dobb, A evolução do capitalismo,
trad., 3ªed. Rio de Janeiro, 1973, c.n., p.49-108
7 , Analisando o movimento de emigração que se verifica a partir das proprie-
dades senhoriais, diz Dobb ter ele se constituído numa “deserção maciça por parte
O aparecimento dessa pobreza laboriosa colocou em cheque as
formulações até então elaboradas sobre a miséria. Nela, não havia
nada que lembrasse o “repúdio à vida” do tempo dos eremitas nem a
boemia tolerada dos goliardos e dos clérigos vagabundos, estudan-
tes extravagantes e, como François Villon, poetas inconformados.
O homem pobre expropriado não era inválido, e almejava ter acesso
ao trabalho, mas muitas vezes não o conseguia: mais do que nunca,
eram claras as condições estruturais que faziam delem um deso-
cupado, um biscateiro intermitente e, no limite, um mendigo, um
vagabundo, um criminoso. Verificando-se no seio de uma formação
social produtora de valores de uso, a expansão do setor mercantil
provocava a dissolução gradativa dos laços servis e libertava um nú-
mero de pessoas superior à capacidade de absorção do sistema. Tor-
naram-se fluidas as fronteiras entre o mundo do crime e o mundo
do trabalho: trabalho obrigatório para todo homem pobre válido,
integrante não mais da legião dos “coitadinhos de Cristo”, mas da
“classe perigosa” que começava a assombrar as cidades e os burgos
no outono da Idade Média.8

dos produtores, que se destinava a retirar do sistema seu sangue vital e provocar a
série de crises nas quais a economia feudal iria achar-se mergulhada nos séculos
XIV e XV. A fuga dos vilões que deixavam a terra muitas vezes assumia proporções
catastróficas tanto na Inglaterra quanto em outros lugares, e não apensa servia para
aumentar a população das cidades crescentes, como e principalmente no continente
contribuía para a continuação das quadrilhas de proscritos, da vagabundagem e
jacqueries periódicas”. – Dobb, ob. cit., p.64-5.
8 , Sobre essa fluidez das fronteiras, diz o historiador polonês Bronislaw Gereme-
ck: “... as pesquisas sobre criminalidade fazem parecer uma espécie de 'fronteira'
social, de franja da sociedade organizada, onde o trabalho se mistura com o crime.
A passagem para a marginalidade se realiza segundo um dégradé de cores; não exis-
tem barreiras entre a sociedade e suas margens, entre os grupos e os indivíduos que
observam as normas estabelecidas e os que as violam”. – Criminalité, Vagabon-
dage, Paupérisme: la Marginalité à l' Aube des Temps Modernes , em: Revue
d'Histoire Moderne et Contemporaine, XXI , julho-setembro, 1974, p.346.
Foi sobre esse contingente humano heterogêneo que incidiram
violentamente os esforços então empreendidos no sentido de gene-
ralizar a prática do trabalho: “O trabalho, reabilitado após ter sido
desprezado como consequência do pecado original, torna-se um dos
valores de uma sociedade que se lança no crescimento econômico, e
a partir do século XIII , as expressões vadio (oisif) e mendigo válido
tornam-se etiquetas injuriosas atribuídas e certos marginais”.9
“Tolerava-se o mendigo, mas odiava-se o vagabundo”, diz Mollar,
referindo-se a esse momento histórico em que começava a se esboçar
uma lei moral do trabalho.10 Definida como ausência de domicílio
ou como o morar em toda a parte, a vagabundagem e a itinerância
eram incômodas numa sociedade em que as relações pessoais ainda
tinham muito peso e para a qual o fato de o indivíduo não poder se
ligar a ninguém e por ninguém poder ser reconhecido eram sinais
extremos de isolamento.11 Elemento irregular e instável, carente de
vínculos, o vagabundo “trabalha às vezes, mendiga com frequência, 65
rouba se aparece a ocasião, e pode ser incidentalmente arrastado
para a criminalidade e delinquência, mas ele não é nada disso de
uma maneira estável”.12

9 , Jacques Le Goff, Les Marginaux dans l'Occident Médiéval , em: Les Mar-
ginaux et les Exclus dans l'Histoire, Paris, 1979, p.23.
10 , Mollar, ob.cit., p.299.
11 , A análise é de Mollat, ob.cit.
12 , Vexliard, ob.cit., p.220-1. No artigo já citado, Geremeck chama a atenção para
a extrema mobilidade existente nas sociedades pré-industriais, mobilidade essa que,
entretanto, é sempre regulamentada, obedecendo a trajetos pré-traçados: migrações
de companheiros e escolares, migrações camponesas ligadas aos grandes movimen-
tos de colonização, peregrinações. Nenhum desses movimentos apresentava perigo:
era a mobilidade não controlada ou individual que inquietava e ameaçava as socie-
dades tradicionais. Geremeck, ob.cit. E mais adiante: “Ao mesmo tempo em que a
sociedade pré-industrial, com seu corpo organizado, não pode tolerar o indivíduo
isolado, procurando enquadrá-lo em instituições e solidariedades corporativos, nos
laços de famílias, nas estruturas eclesiásticas – no que diz respeito a seus marginais,
ela se inclina a não suportar senão indivíduos sem ligações de grupos ou de solida-
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Estabelecendo-se uma cronologia sumária das medidas tomadas


contra mendigos, vagabundos e desocupados, pode-se notar a sua
concomitância em diferentes pontos da Europa. Em 1308, Fernando
IV de Castela ordenava que os mendigos aptos ao trabalho deixas-
sem Burgos, mas foi Pedro I quem, em 1351, aperfeiçoou a repressão.
1311 foi o ano em que o arcebispo de Ravena estabeleceu a distinção
entre os pobres que recebiam publicamente as distribuições e as es-
molas, e os poveri vergognosi. Entre 1346 e 1348, surgia o Notaten-
buch, de Dithmas de Merckenbach, o mais antigo dos glossários e
descrição de um meio marginal. Em 1349, numa Inglaterra ainda
combalida pela Peste Negra, surgia o Statute of Labourers; no ano
seguinte, a mendicância passava a ser permitida aos incapazes de
trabalhar e aos que tivesse mais de 60 anos. Na França, em 1351, a
ordenação de João II, o Bom, marcou o início da caça aos errantes;
fez-se então um apelo aos pregadores e monges para que só encora-
66 jassem a caridade em favor dos inaptos ao trabalho, os desocupados
devendo deixar Paris sob pena de 4 dias de prisão e, em seguida,
marcação com ferro quente e banimento; em 1367, o preboste de Pa-
ris convocou os vadios para cavarem fossos e consertarem as forti-
ficações da cidade, numa política já nítida de utilização do trabalho
forçado que, nos séculos posteriores, se tornará comum. Em 1388,
a lei inglesa obrigava o pobre a se fixar no local de nascimento ou
residência, procedimento lembrado novamente em 1405 e em 1509.
A utilização compulsória da força de trabalho aparece também em
Castela, em 1395, quando os particulares são autorizados a prender
vagabundos e fazê-los trabalhar em suas terras por um mês, sem
que por isso recebam salário. Ao fazer com que os vagabundos e
delinquentes embarcassem à força nas galeras, Jacques Coeur intro-
duzia, em 1453, o que a partir de então seria o castigo clássico desses
indivíduos: as galés.13
riedade. Em um indivíduo sem laços, ela se prontifica a ver um mendigo válido; em
dois errantes, ela vê vagabundos temíveis”. – p.359.
13 , Os dados foram extraídos dos seguintes trabalhos: Bronislaw Geremeck, Les
marginaux parisiens aux XIV et XV siécles, Paris, 1976, p.30; Mollat, ob.cit.; Goglin,
ob.cit.
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

Como no resto da Europa, foi no século XIV que as preocupações


das autoridades e dos governantes portugueses acerca da obrigato-
riedade do trabalho se cristalizaram em leis repressivas que, tam-
bém como nos outros lugares, visavam sobretudo aos mendigos
e aos vagabundos. É preciso, de início, estabelecer uma diferença
que diz respeito ao termo empregado para estes últimos: vagabond
e vagrancy são as expressões que a legislação inglesa utiliza para
indicar o sujeito e a sua ação; em francês, os mesmos são designados
com vagabond e vagabondage; vagabund e vagabundieren para a
língua alemã, e vagabundo e vagabundagen para o espanhol, todos,
portanto, se referindo a expressão latina: vagativu. É evidente que
existem muitas nuances e variações: o errant, tanto para o inglês
como para o frances, o oisif francês, e uma infinidade mais de pa-
lavras específicas a cada língua. O interessante é que, existindo a
palavra em português – vagabundo –, e tendo dela o mesmo sentido
que as suas equivalentes em outras línguas, é ao vadio e à vadiagem 67
que mais dizem respeito às leis portuguesas, apesar das menções ao
vagabundo e à vagabundagem. A especificada assumida pelo termo
na legislação portuguesa parece, assim, acusar uma preocupação
que se volta sobretudo para o combate à ausência de trabalho (va-
diagem), o perigo representado pelo caráter andejo do desocupado
(vagabundagem) passando para segundo plano.
Já no início do século XIII , um diploma régio mandava perseguir
os vadios, proibindo os desprovidos de bens de raiz, de senhor ou de
ocupação idônea de habitarem o reino.14 Em 1349, quando governa-
va Portugal o rei Afonso IV, foi expedido, a 3 de julho, um documen-
to que procurava limitar o número de ociosos e impedir os abando-
nos de trabalho, a vadiagem e a mendicância de que se queixavam as
cidades; estas deveriam expulsar os vadios, proibindo-lhes o acesso
aos hospitais e punindo os que os acolhesse. Este soberano fixou
ainda um limite superior para os salários.15 Alguns anos depois, em

14 , Rui d'Abreu Torres, Vadiagem , em: Joel Serrão (org.), Dicionário da história
de Portugal e do Brasil, Porto, Iniciativas Editoriais, s.d., v. IV, p.239.
15 , Mollat, ob.cit., p.246.
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1371, as Cortes de Lisboa se queixavam de abandono dos trabalhos


do campo, da exigência de altos salários e da vadiagem.16 Por fim,
em 1375, vinha à luz a célebre Lei das Sesmarias, coroamento do es-
forço então dispendido por D. Fernando para incrementar a agri-
cultura e aumentar o número dos trabalhadores rurais em Portugal.
Para esse fim, compelia ao trabalho agrícola os ociosos, os vadios e
os mendigos válidos.17 Com relação a estes últimos, a legislação era
bastante dura: “se os achassem ter algum aleijão, mas não tal, que os
impedisse poderem servir com outros membros do corpo”,18 os ju-
ízes os obrigavam a trabalhar. Os ociosos que se recusassem a exer-
cer qualquer atividade seriam, na primeira vez, açoitados e, quando
reincidentes, “seriam açoitados com pregão, e ultimamente lança-
dos fora do reino, porque El Rei mandava e queria que ninguém
no seu reino fosse vadio”.19 Com sua legislação, D. Fernando visava
acudir a esses males, mas os resultados foram poucos: “Faltou uma
68 elite, que as fizesse cumprir (as leis). As herdades continuavam in-
cultas e desertas, os lavradores não arrotearam terras de novo, mas
largaram as que possuíam, e os matos invadiram mais fazendas de-
samparadas pelos senhorios. O êxodo dos campos levava assim as
energias para as terras de beira-mar, para o tráfico marítimo...”.20
Seria, na concepção de Antonio Sérgio, a “política de transporte”
levando a melhor sobre a “política de fixação” – o que sugere que, ao
invés de serem absorvidos pelos trabalhos agrícolas, os desclassifi-
cados o foram pela aventura marítima.

16 , Mollat, ob.cit.; Rui d'Abreu Torres, ob.cit.


17 , Mollat, ob.cit.; Rui d'Abreu Torres, ob.cit., p. 239. Antonio Sérgio, Breve inter-
pretação da história de Portugal, Lisboa, 1972, p.29.
18 , Rui d'Abreu Torres, ob.cit., p.18.
19 , Rui d'Abreu Torres, Mendicidade , em: Joel Serrão, ob.cit., v. III , p.18.
20 , Antonio Sérgio, ob.cit., p.29. Ver também As duas políticas nacionais ,
em: Ensaios II , Lisboa, 1972, p.63-91.
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

2. O IMPÉR IO COLONIAL , ERGÁSTULO DE DELINQUENTES


, De fato, as conquistas marítimas tiveram um papel muito im-
portante na absorção dos mendigos e vagabundos da metrópole,
muitas vezes recrutados à força para fazerem serviço militar nas
possessões de além-mar. A jurisprudência selvagem de Portugal no
Antigo Regime sentenciava multidões de pequenos larápios e outros
infratores com prisão e exílio: todo navio que partia para o Brasil,
Índia ou África trazia, sobretudo a partir do século XVII , a sua quo-
ta de degredados.21
“As possessões ultramarinas foram sempre para Portugal o er-
gástulo de seus delinquentes”, disse o historiador português Cos-
ta Lobo. Formaram-se importantes correntes migratórias para as
colônias, sendo a da Índia particularmente intensa entre os anos
de 1497-1527, quando 80 mil homens deixaram a Metrópole.22 Pelo
alvará de 6 de maio de 1536, D. João III determinava que os moços
vadios de Lisboa que andavam “na Ribeira a furtar bolsas e a fazer 69
outros delitos” fossem desterrados para o Brasil.23 Nas Cortes de Al-
meirim de 1544 pediram os procuradores de Lisboa que o monarca
mandasse fazer de seis em seis meses “correição de patifes e homens

21 , Charles R. Boxer, The Portuguese Seaborne Empire – 1415-1825, Londres, 1969.


Sobretudo o c. XIII , Soldiers, settlers and vagabonds . A respeito da pouca
gravidade, aos olhos da justiça contemporânea, dos delitos então castigados com
degredo, ver Emília Viotti da Costa, “Primeiros povoadores do Brasil , em: Re-
vista de História, 1956, XIII , n.27. Segundo as Ordenações Manuelinas, em trechos
citados pela autora, o degredo podia ser imputado aos “que fazem assuadas ou que-
bram portas ou as fecham de noite por fora”, e ainda aos “que compra colmeias para
matar as abelhas”. – p.3.
22 , A. De Souza Silva Costa Lobo, História da sociedade em Portugal – no século
XV, Lisboa, 1904, p.49. Apenas 1/10 dos que embarcavam voltavam a Portugal: “Dos
embarcados, uma grande parte constava de criminosos, que haveriam de morrer na
forca, ou de terminar uma parte ou resto de seus dias no degredo da África ou nas
cadeias.” –ob.cit., p.48-9.
23 , Dr. José vieira Fazenda, Antiqualhas e memórias do Rio de Janeiro,
RIHGB , v.149, 1924, p.53. Devo esta indicação a Leila Mezan Algranti.
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vadios, sem ofício nem senhor com que viviam, e sejam presos e
embarcados para o Brasil”.24
Já em pleno desenvolvimento do Império Colonial português, o
alvará de 1570, expedido sob o reinado de D. Sebastião, estabelecia a
diferença entre a pena administrada aos peões, que se caracterizava
pelo fato de poderem ser açoitados, e a destinada às pessoas de mor
qualidade, castigada muito frequentemente com o degredo. Isto não
quer dizer que os peões não fossem afetados pelo degredo, mas a re-
cíproca não era verdadeira: uma pessoa de mor qualidade nunca se-
ria açoitada; esta última categoria era degredada preferencialmente
para a África, ao passo que os peões eram expedidos para fora de
Lisboa, mas continuavam no país.25
As Ordenações Filipinas reforçaram, no Livro V, título 68, as dis-
posições que, trinta anos antes, fizera D. Sebastião:

70 Dos vadios. Mandamos que qualquer homem que não viver como se-
nhor, ou com amo, não tiver ofício, nem outro mester, em que trabalhe, ou
ganhe sua vida, ou não andar negociando algum negócio seu, ou alheio,
passados 20 dias do dia que chegar a qualquer cidade, vila ou lugar, não
tomando dentro dos ditos 20 dias amo, ou senhor, com quem viva, ou mes-
ter em que trabalhe e ganhe sua vida, ou se tomar, e depois o deixar, e não
continuar, seja preso e açoitado publicamente. E se for pessoa, em que não
caibam açoites, seja degredado para África por um ano.26

Se vadios, mendigos e toda espécie de pobres pulularam em Por-


tugal no período compreendido entre a consolidação da dinastia
de Avis no poder e o florescer do Império Colonial, as condições
internas do pequeno reino não favoreceram a sua diminuição. No
século XVIII , ao se referir às naus que partiam, dizia o cronista Luís
Montez Matoso que “já se vai prendendo para a Índia”;27 em 1667,

24 , Segundo Rui d'Abreu Torres, Vadiagem ” p.239.


25 , Segundo Vitorino Magalhães Godinho, ob.cit., p.116-7.
26 , Ibid., p.172-3.
27 , Ibid, p.156.
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a Coroa promulgou uma série de editos violentamente repressivos,


ordenando o sentenciamento sumário de pessoas que ainda espe-
ravam julgamento. Culpados de crimes como vagabundagem eram
sentenciados ao degredo para Mazagão, no Marrocos, enquanto os
envolvidos com ofensas mais graves seguiam deportados para o
Maranhão, Brasil e Cachéu.28
A partir do momento em que existiram colônias, o estado mer-
cantilista europeu se encarregou de propulsionar seu povoamento
com uma grande parcela de elementos socialmente desclassificados.
Por toda a Europa presenciou-se o recrutamento forçado dessa gen-
te, emigração que, no dizer de Eric Williams, “condizia com as teo-
rias mercantilistas da época que preconizavam vigorosamente que
se pusesse o pobre no trabalho industrioso e útil e se favorecesse a
emigração, voluntária ou involuntária, a fim de aliviar a propor-
ção de pobres e achar ocupações mais proveitosas no estrangeiro
para os ociosos e vagabundos da metrópole”.29 EM 1664, a Inglater- 71
ra baniu para as colônias uma enorme quantidade de vagabundos,
vadios, desocupados, ladrões e ciganos; nos anos que antecederam
o Toleration Act (1689), os distúrbios políticos e religiosos engros-
saram a emigração, que arrastou, entre outros, muitos dos prisio-
neiros irlandeses de Cromwell.30 A deportação de criminosos che-
gou a proporcionar lucros, negociantes e juízes instrumentalizando
a lei para aumentar o número de criminosos deportados para as
suas plantações antilhanas de açúcar: “Aterrorizavam os pequenos
transgressores com a perspectiva de enforcamento e depois os indu-
ziam a solicitar deportação”.31

28 , Boxer, ob.cit., c. XIII : “Era comum que algumas semanas antes da partida
anual para as Índias, circulares oficiais forem enviadas a todos os corregedores da
Comarca lembrando-os de reunir e prender os criminosos efetivos ou potenciais, a
fim de que fossem sentenciados ao degredo para a Índia”. – p.314.
29 , Eric Williams, Capitalismo e escravidão, trad., Rio de Janeiro, 1975, p.14.
30 , Ibid, p.16-7.
31 , Ibid, p.19.
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Parte considerável da mão-de-obra recrutada para o povoamento


das colônias norte-americanas foi abarcada pelo sistema de servi-
dão temporária; o indivíduo assinava um contrato em que se com-
prometia a trabalhar por tempo determinado (entre 5 e 10 anos),
recebendo, em troca, a passagem, a manutenção de sua subsistência
e, no fim do contrato, um pedaço de terra ou uma indenização em
dinheiro.32 O tratamento dispensado a esses infelizes praticamente
não diferiu do que receberia, anos depois, os escravos negros. Ainda
para Eric Williams, a servidão branca teria sido o sistema sobre que
se montou o tráfico de escravos: “base histórica em que se ergueu a
escravidão negra”.33

3. BR ASIL: ESTRUTUR A ECONÔMICA E PROCESSO DE DES-


CLASSIFICAÇÃO SOCIAL , Até aqui, foi rapidamente analisado o
processo de pauperização crescente que atingiu em cheio a Europa,
72 sobretudo, a partir do século XIV. Mais ainda, os mecanismos de
que lançava mão o Velho Continente para, uma vez descoberto o
Novo Mundo, minorar o ônus representado pelos pobres improdu-
tivos e, simultaneamente, povoar as colônias que se iam forman-
do. Procurou-se também mostrar como Portugal, às vésperas de

32 , “Os esforços realizados principalmente na Inglaterra, para recrutar mão-


-de-obra no regime prevalecente de servidão temporária, se intensificaram com a
prosperidade do negócio. Por todos os meios procurava-se induzir as pessoas que
haviam cometido qualquer crime ou mesmo contravenção a vender-se para traba-
lhar na América em vez de ir para o cárcere. Contudo, o suprimento de mão-de-
-obra deveria ser insuficiente, pois a prática do rapto de adultos e crianças tendeu a
transformar-se em calamidade pública nesse país”. Celso Furtado, Formação econô-
mica do Brasil, 7ª ed., São Paulo, 1969, p.26.
33 , Eric Williams, ob.cit., p.24. Para esse autor, a escravidão “faz parte desse qua-
dro geral do tratamento cruel das classes desprivilegiadas, das insensíveis leis dos
pobres e severas leis feudais, e da indiferença com que a classe capitalista ascen-
dente estava “começando a calcular a prosperidade em termos de libras esterlinas
e... acostumando-se à ideia de sacrificar a vida humana ao imperativo sagrado do
aumento da produção”. – p.9.
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

se tornar metrópole colonizadora, inseria-se no movimento geral


europeu. Assim, processo de pauperização e utilização dos pobres
e desclassificados como povoadores das colônias adquiriram feição
de dois grandes movimentos que marcaram a história do Ocidente
no período compreendido entre os séculos XIV e XVII; tê-los como
ponto de referência é imprescindível para se poder compreender as
raízes do fenômeno de desclassificação tal como se processou no
Brasil colonial, mas não é o bastante: a compreensão das condicio-
nantes estruturais que propiciaram entre nós o aparecimento de
uma vasta camada de homens livres pobres e expropriados só po-
derá ser satisfatória na medida em que, considerando o que há de
comum e genérico, buscar a ultrapassagem: procurar o específico
e o particular.
Colônia americana de uma metrópole europeia que o pauperismo
atingira desde o século XIV, o Brasil fazia parte do Império Colonial
português, inserindo-se portanto no que ficou conhecido como Sis- 73
tema Colonial da Época Mercantilista. Mas, antes de surgir nas co-
lônias norte-americanas, nas colônias do Mar das Antilhas ou nas
do mundo hispânico, foi na colônia portuguesa da América que se
enraizou a escravidão. Mais ainda: enquanto o sistema de entrepos-
tos e feitorias que marcou o comércio com a Ásia ainda propicia-
va lucros a Portugal, no Brasil já se plantava cana e comercializava
o açúcar, permitindo, assim, que se fale, já para meados do século
XVI , de uma agroindústria voltada para a exportação de gêneros
comerciáveis no mercado externo.
Colônia da época mercantilista, seu objetivo máximo era dar lu-
cros à Metrópole e nela propulsionar a acumulação de capital atra-
vés do exclusivo de comércio e do tráfico negreiro, constituindo-se
em “retaguarda econômica da Metrópole” e lhe garantindo a au-
tonomia.34 A adoção do trabalho escravo se deveu, nesse contex-

34 , Utilizo aqui a análise de Fernando Novais no trabalho já citado, sobretudo o


capitulo 2, “A crise do antigo sistema colonial”, no qual é examinada a colonização
moderna como elemento acelerador da acumulação primitiva: “... a colonização do
Novo Mundo na Época Moderna apresenta-se como peça de um sistema, instru-
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

to à necessidade de maximizar os lucros através, por um lado da


superexploração de uma forma de trabalho compulsório-limite –
pois eram apropriados o trabalho e o trabalhador –, e, por outro, às
grandes vantagens comerciais que advinham do tráfico.35
Assim, a exploração colonial se apoiou, desde o início, na grande
propriedade agrícola de cunho comercial e no escravismo. Resta sa-
ber como um e outro elemento atuaram no processo de formação de
desclassificados sociais.
Partindo-se da análise da estrutura econômica da colônia, pode-
-se constatar que havia condições favoráveis à proliferação de des-
classificados: nas suas linhas gerais, tratava-se de uma colônia de
exploração destinada a produzir gêneros tropicais cuja comerciali-
zação favorecesse ao máximo a acumulação de capital nos centros
hegemônicos europeus. Uma economia de bases tão frágeis, tão pre-
cárias, centrada na grande propriedade agrícola e na exploração em
74 larga escala, estava fadada a arrastar consigo um grande número de
indivíduos, constantemente afetados pelas flutuações e incertezas
do mercado internacional.36 Ao mesmo tempo, impedia que os des-

mento de acumulação primitiva da época do capitalismo mercantil. (…) Completa-


-se, entrementes, a conotação do “sentido profundo da colonização: comercial e
capitalista, isto é, elemento constitutivo no processo de formação do capitalismo
moderno”. – p.70.
35 , Para Fernando Novais, é a partir do tráfico negreiro que se pode entender a
escravidão colonial, e na “preferência pelo africano se revela a engrenagem do sis-
tema mercantilista de colonização, que visava promover a acumulação primitiva na
metrópole: ora, o tráfico negreiro, isto é, o abastecimento das colônias com escravos,
abria um novo e importante setor do comércio colonial, enquanto o apresamento
dos indígenas era um negócio interno da colônia. Assim, os ganhos comerciais
resultantes da preação dos aborígenes mantinham-se na colônia, com os colonos
empenhados nesse 'gênero de vida'; a acumulação gerada no comércio africano,
entretanto, fluía para a metrópole, realizavam-na os mercadores metropolitanos,
engajados no abastecimento dessa 'mercadoria'. Esse talvez seja o segredo da melhor
'adaptação' do negro à lavoura... escravista”. – p.105.
36 , Celso Furtado chama a atenção, na obra já citada, para a enorme capacidade
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

providos de cabedal tivessem acesso às fontes geradoras de riqueza.


Por sua vez, o escravismo desempenhava neste processo um pa-
pel igualmente importante, bloqueando na maior parte das vezes as
possibilidades de utilização da mão-de-obra livre, limitada assim
aos interstícios que, por um motivo ou por outro, não podiam ser
ocupados pelo trabalho escravo. Mais ainda: esteio da economia e
princípio articulador da sociedade, o escravismo gerava uma des-
qualificação do trabalho aos olhos do homem livre, e provocava,
no escravo recém-egresso do cativeiro, uma situação bastante pe-
culiar e que não raro assumia as características de um verdadeiro
deslocamento. Mesmo assim, o número dos homens livres e libertos
aumentou muito no decorrer o período colonial.
Essa população livre teve, entretanto um papel extremamente pe-
culiar no nosso contexto colonial. Inicialmente, conforme viu com
propriedade Caio Prado Jr., a sociedade foi definida basicamente
pelos extremos: os senhores e os escravos, que os portugueses co- 75
nheciam e exploravam desde o século XV;37 as funções socioeco-
da indústria açucareira em resistir aos fluxos e refluxos do mercado internacional;
refere-se entretanto ao maquinário, aos bens de capital. Parece evidente que a po-
pulação pobre e mesmo remediada muito sofreu com essa instabilidade, conforme
observa outro autor: “... já assinalei esta evolução por arrancos, por ciclos em que
se alternam, no tempo e no espaço, prosperidade e ruína, e que se resume a histó-
ria econômica do Brasil colônia. As repercussões sociais de uma tal história foram
nefastas: em cada fase descendente, desfaz-se um pedaço da estrutura colonial,
desagrega-se a parte da sociedade atingida pela crise. Um número mais ou menos
avultado de indivíduos inutiliza-se, perde suas raízes e base vital de subsistência.
Passará a vegetar à margem da ordem social”. – Caio Prado Jr. Formação do Bra-
sil contemporâneo (1942), 13ª ed., São Paulo, 1973, p.286. Semelhante é a posição de
Sérgio Buarque de Holanda: “Os próprios vícios do sistema econômico de produção
tinham criado, em todo o Brasil colonial, uma imensa população flutuante, sem
posição social nítida, vivendo parasitariamente à margem das atividades regulares
e remuneradoras”. – Monções, 2ª ed., São Paulo, 1976, p.71-2.
37 , Em A escravidão africana no Brasil – das origens à extinção do tráfico, Mau-
rício Goulart fornece um painel geral dos primeiros tempos do escravismo em Por-
tugal e suas colônias. Cf. c.I, p.7-28.
nômicas eram, então, bem definidas. No decorrer do processo de
colonização, os extremos da escala social continuaram a ser clara-
mente configurados, mas a estrutura da sociedade foi se tornando
mais complexa devido ao aumento da “camada intermédia”, cuja
indefinição inicial foi, aos poucos, assumindo o caráter de desclas-
sificação.38
A camada dos desclassificados ocupou todo o “vácuo imenso” que
se abriu entre os extremos da escala social, categorias “nitidamente
definidas e entrosadas na obra da colonização”.39 Ao contrário dos
senhores e dos escravos, essa camada não possui estrutura social
configurada, caracterizando-se pela fluidez, pela instabilidade, pelo
trabalho esporádico, incerto e aleatório.40 Ocupou as funções que
o escravo não podia desempenhar, ou por ser antieconômico des-
viar mão-de-obra da produção, ou por colocar em risco a condição
servil: funções de supervisão (o feitor), de defesa e policiamento (ca-

38 , “Mas formaram-se aos poucos outras categorias, que não eram de escravos
nem podiam ser de senhores. Para elas não havia lugar no sistema produtivo da
colônia. Apesar disto, seus contingentes foram crescendo, crescimento que também
era fatal, e resultava do mesmo sistema da colonização. Acabaram constituindo
uma parte considerável da população e tendendo sempre para o aumento. O dese-
quilíbrio era fatal”. – Caio Prado Jr. ob.cit., p.360.
39 , Caio Prado Jr., ob.cit., p. 281.
40 , “Para este setor, não se pode nem ao menos falar em 'estrutura social', porque
é a instabilidade e a incoerência que se caracterizam, tendendo em todos os casos
para estas formas extremas de desagregação social, tão salientes e características
da vida brasileira e que notei em outro capítulo: a vadiagem e a caboclização”. –
Caio Prado Jr., ob.cit., p.34. Em Circuito fechado, diz Florestan Fernandes: “Entre
esses dois extremos situava-se uma população livre de posição ambígua, predomi-
nantemente mestiça de brancos e indígenas, que se identificava com o segmento
dominante em termos de lealdade e de solidariedade, mas nem sempre se incluía na
ordem estamental. Onde o crescimento da economia colonial foi mais intenso, esse
setor ficava largamente marginalizado, protegendo-se sob a lavoura de subsistência
mas condenando-se a condições permanentes de anomia social”. Circuito fechado,
São Paulo, 1976, cap. A sociedade escravista , p.32.
pitão-do-mato, milícias e ordenanças), e funções complementares à
produção (desmatamento, preparo do solo para o plantio).
No Brasil, como no Ocidente moderno, o trabalho decente e hon-
rado é o que se relaciona à praga bíblica: “amassarás o pão com o
suor do teu rosto.” Mas há diferenças básicas entre a concepção de
desclassificado na Europa pré-capitalista e no Brasil colonial: lá, a
inadaptação a formas sistemáticas de exploração do trabalho pode
ser explicada pelo nascimento da sociedade capitalista que deses-
truturou o trabalho de caráter coletivo dos servos feudais; aqui, são
o escravismo e a necessidade da superexploração os principais res-
ponsáveis pelo aviltamento do trabalho, aviltamento esse que torna
impossível a compreensão e a persistência das formas primitivas
comunitárias e assistemáticas de trabalho, como foram a africana e
a indígena. Nas metrópoles e nas colônias, é o momento da gestação
do capitalismo; entretanto, apesar de complementares, conexas e até
mesmo indissociáveis, são diversas as formas com que se apresenta 77
em um e noutro ponto do mundo. É nessa unidade contraditória do
fenômeno que se explica a especificidade do processo histórico em
cada uma das partes.
A noção de trabalho vigente na colônia é importante para a com-
preensão de outra peculiaridade nossa: a extensão que entre nós
assume a expressão vadiagem e a categoria vadio. Mais do que na
Europa pré-capitalista, o vadio é aqui o indivíduo que não se insere
nos padrões de trabalho ditados pela obtenção do lucro imediato,
a designação podendo abarcar uma enorme gama de indivíduos e
atividades esporádicas, o que dificulta enormemente uma definição
objetiva desta categoria social.
Atentando-se para algumas das conotações que a palavra assume
no trabalho do jesuíta Antonil, pode-se ter uma ideia dessa multi-
plicidade de acepções, aqui referentes a fins do século XVII e inícios
do século XVIII , já que a Cultura e opulência surgiu em 1711: “Para
vadios, tenha enxada e foices, e se se quiserem deter no engenho,
mande-lhes dizer pelo feitor que trabalhando, lhes pagarão seu jor-
nal. E, desta sorte, ou seguirão seu caminho, ou de vadios se farão
jornaleiros”.41 O vadio é aqui o indivíduo não inserido na estrutura

41 , André João Antonil, ob.cit., p.168.


DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

de produção colonial, e que pode, de um momento para o outro,


ser aproveitado por ela. Mais adiante, Antonil opõe vadio a homem
de cabedal: “Convidou a fama das minas tão abundantes do Brasil
homens de toda a casta e de todas as partes, uns de cabedal, e ou-
tros vadios”.42 Vadios, nesta passagem, é por extensão todo homem
desprovido de dinheiro. E ainda em Antonil, a palavra adquire nova
cor: “Os vadios que vão às minas para tirar ouro não dos ribeiros,
mas dos canudos em que o ajuntam e guardam os que trabalham
nas catas, usaram de traições lamentáveis e de mortes mais que
cruéis, ficando estes crimes sem castigo”.43 Este vadio é portanto,
criminoso e ladrão.
Identificados genericamente aos infratores são os vadios de que
fala a correspondência entre Gomes Freire de Andrada e o governa-
dor interino Martinho de Mendonça de Pina e de Proença, quando
tratam dos motins ocorridos no sertão do rio São Francisco em 1736
78 e que, segundo Diogo de Vasconcelos, constituíram-se numa típica
rebelião de potentados locais contra o fisco, ou seja, contra a autori-
dade organizada:44 “No sertão houve duas assuadas, uma contra o
juiz de Papagaio que ia tirar uma devassa na barra do rio das Velhas,
outra nos confins da capitania para a parte do rio das Velhas, digo
rio Verde, contra o comissário André Moreira de Carvalho, encar-
regado da cobrança da capitação, e suposto que só constassem de
vadio que como diziam não queriam que se tirasse devassa aonde
nunca se tirou, nem se cobrasse direito algum real aonde só se devia
dizimo a Deus...”.45 Estes vadios são, portanto, indivíduos que, ao
que parece, formulam com clareza a sua resistência ante o Estado,
insistindo na persistência do localismo. Podem, neste contexto, ser
opositores bem situados socialmente, mas um trecho que segue na

42 , André João Antonil, ob.cit., p.303


43 , Ibid.
44 , Diogo de Vasconcellos, História média de Minas Gerais, capítulo Motins
no sertão.”
45 , Carta de Martinho de Mendonça a Gomes Freire – 29-VI-1736, em: Motins
no sertão e outras ocorrências em Minas Gerais , RAPM , v.1, 1896, p.649.
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

mesma carta faz pensar que sejam mandatários de potentados: “...


mandando logo prender Antonio Tinoco Barcellos, que por cartas
de pessoas que reputo zelosas e verdadeiras, me constava fomentar
os vadios que fizeram as assuadas”.46
Em carta de 24 de julho de 1736, Gomes Freire, ocupado com ne-
gócios no Rio de Janeiro, congratulava o governador interino pelas
“admiráveis providências que tem tomado para o sertão a extinção
dos vadios”, aqui claramente identificados a revoltosos.47 Traba-
lhadores esporádico, homem desprovido de dinheiro, criminoso,
ladrão, sublevado, revoltoso e até mesmo potentado dissidente,
eis algumas das conotações assumidas pela personagem do vadio
colonial. Apesar de imprecisão pode-se, na maior parte das vezes,
identificar vadio e homem pobre expropriado, mesmo que para isto
seja necessário uma leitura cuidadosa das fontes. O que se torna fla-
grante a partir dessa leitura é, entretanto, o destaque especial dado
ao termo como designativo da infração e da desclassificação, o que 79
já fora apontado acima quando se constatou o uso que dessa palavra
se faz nas leis portuguesas. Por um motivo ou por outro, por mais
variada e fluida que tenha sido a “camada intermédia” nos tempos
coloniais, não parece pequeno o papel nela desempenhado pelo que
se convencionou chamar vadio, expressão que, de agora em diante,
será frequentemente usada neste trabalho como sinônimo de des-
classificado social.
Elemento vomitado por um sistema que simultaneamente o cria-
va e o deixava sem razão de ser, vadio poderia se tornar o pequeno
proprietário que não conseguia se manter à sombra do senhor de
engenho; o artesão que não encontrava meio propício para o exer-
cício de sua profissão; o mulato que não desejava mourejar ao lado
negro – pois não queria ser confundido com ele – e que não tinha
condições de ingressar no mundo dos brancos; vadio continuava
muitas vezes a ser o que já viera de além-mar com esta pecha: o cri-

46 , Ibid, p.650.
47 , Das cartas do exmo. sr. Gomes Freire de Andrade , em RPHG , v. XVI ,
II , p.246
48 , Antonil, ob.cit., p.264.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

minoso, o ladrão, o degredado em geral. À sua volta formava-se um


círculo vicioso: a estrutura econômica engendrava o desocupado,
impedindo-o de ter atividades constantes; o desocupado, desprovi-
do de trabalho, tornava-se oneroso ao sistema. Aparentando-se com
os componentes do exército industrial de reserva, o desclassificado
se engastava, entretanto, num contexto próprio: o do escravismo.

4. O PROCESSO DE DESCLASSIFICAÇÃO NAS MINAS , Perso-


nagem presente na nossa história desde os inícios da colonização,
a gênese e desenvolvimento do vadio tiveram características gerais
comuns a toda a colônia. Tentei traçar acima as componentes estru-
turais gerais de seu engendramento, passando, a partir de agora, a
examinar as peculiaridades que envolveram a sua presença na zona
mineradora.
Como já foi visto no capítulo anterior, a mineração se estabele-
80 ceu sob o signo da pobreza e da conturbação social, marcando-a
sobretudo o enorme afluxo de gente que acudiu ao apelo do ouro e
cuja composição social se apresentava bastante heterogênea. Mais
do que em qualquer outro ponto da colônia, foi grande nas Minas a
instabilidade social, a itinerância, o imediatismo, o caráter provisó-
rio assumido pelos empreendimentos.
Os arraiais auríferos foram, nos primeiros tempos, “freguesias
móveis como os filhos de Israel no deserto”.48 O autor do diário da
viagem do conde de Assumar às Minas se espanta com o aspecto
de São João del Rei, que podendo ser das mais bem plantadas vilas
das Minas, era, entretanto, uma das piores, “por ter quase todas as
casas de palha, e umas mui separadas das outras e juntamente pelas
lavras de ouro, que ficam tão perto delas, que hoje se fazem, amanhã
as botam em terra para trabalhar, o que causa toda irregularida-
de...”.49 De fato, a empresa mineira era transitória e itinerante, ca-

49 , Diário da jornada que fez o Exmo. sr. d. Pedro desde o Rio de


Janeiro até a cidade de São Paulo e desta até as Minas, no ano de 1717
– Revista do SPHAN , n.3, p.313.
50 , Para essa itinerância da empresa e o baixo teor de capital fixo, ver Celso
5 . E N T R E V I S TA A N E L S ON AGU I L A R

racterizando-se pelo baixo teor de capital fixo e pela capacidade de


deslocamento em tempo relativamente curto. A exploração aurífera
obedecia, no seu desenvolvimento ao lucro mais imediato: voltava-
-se inicialmente para o ouro depositado no fundo dos rios (aluvião),
depois para o ouro depositado nas encostas (grupiaras) e, finalmen-
te, para os veios subterrâneos (galerias). Nesse contexto, era a fase
inicial a que maiores lucros apresentava. A população acompanhava
os trabalhos da exploração aurífera no seu itinerário, canalizando
para a mineração todos os seus esforços e deixando de lado as outras
atividades. Os resultados imediatos desse procedimento eram, por
um lado, o desenraizamento constante da população e, por outro, a
fome que, conforme se viu no capítulo anterior, assombrava a em-
presa mineradora.50 As pessoas tendiam a ver como provisório e
intermitente tudo que as cercava; as primeiras minerações, situadas
ao longo dos rios, sujeitavam o ritmo do seu trabalho à alternância
dos períodos de chuva e de seca. A fixação do homem à terra só se 81
estabilizava um pouco mais quando a exploração se fixava nos alu-
viões de meia encosta, as grupiaras ou catas altas.51
A itinerância e o senso do provisório persistiram por muito tem-
po, a ponto de, em 1808, Mawe captar seus ecos: “... os agricultores
pareciam agir como se o arrendamento, em virtude do qual possu-
íam as terras, estivessem prestes a ser anulado: tudo em torno deles
parecia anunciar criaturas que vivem de expedientes”.52 Explicadas

Furtado, ob.cit., p.82.


51 , Miran de Barros Latif, ob.cit., p.91. Entretanto todo o período minerador,
parece ter sido maior o prestigio da mineração aluvional. Na sua “Memória” de
1799, Vieira Couto dá um motivo possível: “O horror de se soterrar um homem em
uma mina por todo um dia, de se despedir ao nascer do sol de sua brilhante luz, e
de só se guiar pelo fraco clarão de uma candeia, de ouvir estalar a cada instante a
montanha sobre a cabeça, e esperar a cada passo pela morte, parece que estas coisas
foram desgostando pouco a pouco os homens do trabalho das minas, e enfim os
determinaram por uma vez para a mineração dos rios.” – ob.cit., p.303.
52 , Mawe, ob.cit., p.154-5.
53 , Caio Prado Jr. Considera os deslocamentos de população como ensaios e
tentativas caracteristicamente brasileiros de procura de melhores condições: “No
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

nas Minas por uma série de fatores ligados ao caráter da explora-


ção aurífera, essas peculiaridades são, no seu conjunto, clarificadas
pelo próprio sentido da exploração colonial, assentada na aferição
rápida e imediata do maior lucro possível.53 Uma série infindável
de ditados populares refletem esse estado de coisas, que empresta
suas características também à formação social da colônia, profun-
damente marcada pela instabilidade: “Por fora muita farofa, por
dentro molambo só”, citado por Gilberto Freyre e que apresenta
outra variação: “Por fora bela viola, por dentro pão bolorento”, um
e outro refletindo a ideia do falso fausto que já foi explorada atrás;
“Pai rico, filho nobre, neto pobre”, também mencionado pelo soció-
logo pernambucano, é um ditado que, nas Minas, assume cor local
– “Capitão Tomé ouro só, neto molambo só” – e que no sul do Bra-
sil se apresenta como “Pai taverneiro, filho cavaleiro, neto indigen-
te”;54 registre-se ainda “Avô ladrão, filho barão, neto mandrião”. Há
82 também os curiosos ditos coletados por Aires da Mata Machado na
região do arraial da Chapada, e que, mesmo quando posteriores à
época de ouro da mineração, são extremamente significativos como
reminiscências: “Mineração e eleição, só depois da apuração”, clara-
mente a alusivo à fraude eleitoral, numa comparação entre o caráter

Brasil, este fato é particularmente sensível pelo caráter que tomara a colonização,
aproveitamento aleatório em cada um de seus momentos, como veremos ao ana-
lisar a nossa economia, de uma conjuntura passageiramente favorável. Cultiva-se
a cana como se extrai o ouro, como mais tarde se plantará o algodão ou o café:
simplesmente oportunidade de momento...” – ob.cit., p.73. Há a esse respeito uma
bela passagem de Guimarães Rosa: “Quem é pobre, pouco se apega, é um giro-giro
no vago das gerais, que nem os pássaros de rios e lagoas. O senhor vê: O Zé -Zim,
o melhor meeiro meu aqui, risonho e habilidoso. Pergunto: 'Zé-Zim, porque que
é que você não cria galinhas d'angola, como todo mundo faz?' 'Quero criar nada
não...' – me deu resposta: 'Eu gosto muito de mudar...'” – Grande sertão: veredas, 12ª
ed., Rio de Janeiro, 1978, p.35.
54 , Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala, respectivamente p.331, 356 e 86.
55 , Aires da Mata Machado Filho, O negro e o garimpo em Minas Gerais, Rio de
Janeiro, s.d., p.32.
5 . E N T R E V I S TA A N E L S ON AGU I L A R

incerto do resultado das eleições e o da faina mineradora; “Serviço


de muita ganga, entra vestido e sai de tanga”, onde fica expresso o
perigoso representado por investimentos de vulto em algo tão alea-
tório como a mineração. E, por fim, ante todos os aspectos adversos
desta atividade, o conformismo do mineiro: “O que há de ser meu
está debaixo da terra”, onde o duplo sentido liga inexoravelmente o
homem ao seu trabalho até que sobrevenha a morte.55
Na mineração, como de resto em qualquer atividade primordial
da colônia, a força de trabalho era basicamente escrava, havendo
entretanto os interstícios ocupados pelo trabalho livre ou semili-
vre.56 Dificilmente o homem livre destituído de recursos vultuosos
poderia se manter como proprietário, sobretudo em Minas, região
que, apesar de tida tradicionalmente como rica e democrática, apre-
sentava possibilidades favoráveis apenas a um pequeno número de
pessoas. A análise empreendida no capítulo anterior tentou mostrar
este aspecto restrito da riqueza, e os documentos relativos à desi- 83
gualdade e injustiça na distribuição das datas minerais glosam essa
análise.
De início, pelo Regimento de distribuição das lavras, nota-se o
caráter restritivo e eminentemente escravista da mineração: as datas
seriam concedidas conforme o número de escravos que cada um
possuísse, donde parece ficar descartada a possibilidade, para o ho-
mem livre pobre, de possuir lavra sua.57 Mesmo que se tome como
ponto de partida a afirmação corrente que diz ter sido muito raro o
homem livre que, mesmo pobre, não possuísse escravos, defronta-

56 , Florestan Fernandes, A sociedade escravista , ob.cit., p.20-1.


57 , A primeira data cabia ao descobridor do ribeiro, que tinha o direito de esco-
lher o local; a segunda ia para a Fazenda Real, sendo vendida em hasta pública pelo
maior preço; a terceira também era dada ao descobridor para que a minerasse; as
demais eram distribuídas aos pretendentes conforme o número de escravos de cada
um: “Se o pretendente tivesse 12 ou mais escravos, ganharia uma data de 30 braças
em quadra (cerca de 66m²); se o mineiro possuísse menos de 12 escravos, receberia
terra mineral na proporção de 2 braças e meia por escravo (cerca de 5,5m²) – Walde-
mar de Almeida Barbosa, ob.cit., v.I , p.54.
mo-nos com uma situação de injustiça e desigualdade, refletida até
nos documentos oficiais. Essa situação acha-se descrita em carta do
Ouvidor-Geral da Comarca do rio das Mortes, datada de 1733:
Senhor. Na forma do capítulo 5º, e 20 do Regimento das terras mi-
neiras, é V.M servido ordenar se repartam estas, segundo o número
de escravos, que os mineiros tiver e, repartindo-se as datas, braças e
ainda palmos, sendo necessário, para que todos, assim ricos, como
pobres, fiquem acomodados, e extraiam ouro, o que se tem prati-
cado tanto pelo contrário nestas Minas, que os ricos fizeram, e tem
feito seleiros das terras mineirais, em prejuízo dos Reais Quintos de
V.M ., e da observância do capítulo 7º do mesmo Regimento, porque
as não lavram, e de dos pobres (sic), que não tendo onde trabalhar
se sujeitam a meter os escravos nas lavras daqueles só pelo terço
do ouro que extraem, ou lhas compram por exorbitantes preços, fi-
cando os pobres sem terras para lavrar, havendo-as em poder dos
ricos e poderosos, de cuja desordem nascem mortes, demandas e
dissenções...
Os grandes responsáveis por esse estado de coisas seriam, segun-
do o Ouvidor, os Guardas-Mores, que “por sua própria autoridade”
davam todas as lavras aos poderosos e deixavam os pobres “sem lhe
repartirem uma tão só braça”. O magistrado pedia solução para as
injustiças e uma repartição mais racional das terras, de maneira a
que ficassem “assim ricos, como poderosos, e pobres todos acomo-
dados, e extraiam ouro, e paguei quintos a V.M .”.58
O rei, D. João V, respondeu com uma provisão dirigida ao conde
das Galvêas, ordenando-lhe que se manifestasse sobre a “desordem”
a que aludia o Ouvidor. A preocupação que movia as autoridades
no sentido de procurarem uma distribuição mais justas das datas

58 , Carta do ouvidor-geral da comarca do rio das Mortes, e superintendente,


Francisco Leite Tavares – 20-VII-1733, em: Terras Minerais – Relação das or-
dens sobre terras minerais, que, por cópia, foi enviada a Conselho Ge-
ral da Província de Minas Gerais – RAPM , I, 1896, p.699-700.
59 , Bastante lúcida para a época é a formulação de Diogo de Vasconcellos no
grande livro que é a História média: “As duas principais causas que impediram a
não era a situação de penúria em que se encontravam os mineiros
modestos, com quem, de fato, pouco se importavam a Coroa e seus
prebostes; o verdadeiro interesse em jogo era o pagamento adequa-
do dos Reais Quintos, a que devia concorrer a maior número pos-
sível de pessoas.59
A principal resposta do homem livre pobre ante a situação foi,
ao que tudo indica, o garimpo e a faiscarem, que mal davam para
a subsistência. Os “homens faiscadores” trabalhavam nos rios com
uns poucos escravos, e muitos deixavam esse tipo de atividade por
não poderem se manter, nem a seus negros.60
A situação continuou difícil para o pequeno minerador durante
todo o período. Se a empresa exigia algum serviço mais custoso, o
mineiro não tinha condições de arcar com as despesas.61 Não era,
organização econômica das indústrias eram as minas de ouro e a escravidão. Como
bem se adivinha, estas causas deixavam os moços sem emprego, ainda que quises-
sem empregar-se; e, como nem todos podiam receber a educação moral suficiente, 85
não era para se estranhar que os povoados se enchessem de libertinos e turbulen-
tos”, p. 212-3.
60 , “... a maior parte deles são os que andam perdidos, porque não tiram as pe-
dras, que bastem para que o seu valor lhe dê o sustento para os seus negros – Carta
de D. Lourenço de Almeida a S. Mjde. Sobre providências a tomar na ex-
tração dos diamantes . – 11-VI-1730, RAPM , v.VII , 1902, p.266.
61 , “... sendo-me constante a grande decadência em que estão as lavras desta ca-
pitania por serem limitadas às faisqueiras dos serviços em que se trabalha e por não
terem os mineiros as posses necessárias para fazerem alguns serviços custosos, que
poderiam ser de grande utilidade” – Bando de D. Antonio de Noronha – 15-III-1776.
APM , S.C ., cód.50, fls. 68v. Diz o desembargador Teixeira Coelho: “Os mineiros, que
se acham faltos de cabedais e onerados com muitas dívidas, não podem fazer ser-
viços custosos; contentam-se pela maior parte, por causa da indigência, em serem
simples faiscadores. Sabem que em alguns sítios das suas terras se ocultam ricas
formações, e veeiros de ouro; porém como para o extraírem lhes é preciso fazer
serviços que excedam suas possibilidades, não se animam a entrar na execução de
obra que não tem proporção com as suas forças”. – p.499-500.
62 , “...como mortais, estão os escravos sujeitos à velhice, à doença e À morte; e
esta muitas vezes se acelera ou debaixo das ruínas de uma cata profunda, ou no cer-
co dos rios, que uma imprevista cheia ou outro algum incidente arrombara”. – José
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

assim, de admirar que muitos caíssem na miséria, sobretudo quan-


do a mineração começou a declinar. Não se minerava sem escravos,
e estes eram custoso, além de morrerem em grande número no ser-
viço insalubre das lavras.62 Carentes de mão-de-obra, os mineiros
com frequência faziam os trabalhos de maneira inadequada, entu-
lhando canais que ainda poderiam ser ´pauteis: “Deste modo as ter-
ras de mineração em poucos anos se tornam inúteis; e os mineiros
sucumbem aos miseráveis efeitos da indigência”.63 Até os filhos de
antigos e ricos mineiros, empenhados e falidos, caíam na miséria,
e desesperançosos da mineração, escondiam-se nos matos e nas ro-
ças.64 No início do século XIX , os viajantes traçarão o retrato trági-
co de homens miseráveis que vegetavam nas fímbrias do sistema,
voltados para um agricultura de subsistência mesquinha e esporá-
dica que, muitas vezes, mal conseguia impedir com que morressem
de fome.
86
5. AS VÁR IAS FOR MAS DE UTILIDADE DOS DECLASSIFICADOS
, Somando-se aos aventureiros do ouro e aos desclassificados que
Portugal despejava nas Minas, toda uma camada de gente decaída
e triturada pela engrenagem econômica da colônia ficava aparen-
temente sem razão de ser, vagando pelos arraiais, pedindo esmo-
la e comida, brigando pela estrada e pelas serranias, amanhecen-
do morta embaixo das pontes ou no fundo dos córregos mineiros.
Muitos morriam de fome e de doença, mestiços desraçados que, não
bastassem a desclassificação social e econômica, traziam estigmati-

Elói Ottoni, Memória sobre o estado atual da Capitania de Minas Gerais


– 1798 – ABN , v.XXX , p.304.
63 , José Elói Ottoni, ob.cit., p.305.
64 , Vieira Couto, Considerações sobre as duas classes ..., RIHGB , v.XXV,
1862, p.421.
65 , A ideia curiosa da desclassificação racial foi, de certa forma, desenvolvida
por Mário de Andrade num dos mais belos ensaios que se escreveram no Brasil:
“Que os mulatos eram façanhudos, não tem dúvida que sim. Mas eram porém, pelo
simples fato de formarem a classe servil numerosa, mas livre. É tantas vezes a classe
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

zada na pele a desclassificação racial.65 Sua presença inquietava os


administradores coloniais e todos aqueles que escreveram sobre as
Minas; dentre estes, cabe destacar o desembargador Teixeira Coe-
lho.
A sua Instrução para o governo da capitania de Minas Gerais
(1780) é um documento precioso e indispensável à compreensão do
século XVIII mineiro. Nela, o magistrado se estende sobre os vadios,
origem e causa de toda a espécie de desordens, e adota uma posição
extremamente peculiar em face do problema que representam: “Os
vadios são o ódio de todas as nações civilizadas, e contra eles se tem
muitas vezes legislado; porém as regras comuns relativas a este pon-
to não podem ser aplicáveis ao território de Minas; porque estes va-
dios, que em outra parte seriam prejudiciais, são ali úteis”.66 Negros
forros e mestiços na sua maior parte – mulatos, caboclos, carijós
–, serviam para povoar locais distantes como Cuieté, Abre Cam-
po e Peçanha, onde se iam estabelecendo presídios; engrossavam 87
os contingentes que entravam mato adentro destruindo quilombos
e prendendo foragidos; cultivam plantações de subsistência, enfim,
realizavam uma série de tarefas que não podiam ser cumpridas pela
mão-de-obra escrava.
Os vadios – e eis aqui esta palavra servindo para designar toda a
camada dos desclassificados sociais – existiam em todos os países,
que desclassifica os homens... (…) Os mulatos não eram nem melhores nem piores
que brancos portugueses ou negros africanos. O que eles estavam era numa situação
particular, desclassificados por não terem raça mais. Nem eram negros sob o baca-
lhau escravocrata, nem branco mandões e donos livres, dotados duma liberdade
muito vazia, que não tinha nenhuma espécie de educação, nem meios para se ocu-
par permanentemente. Não eram escravos mais, não chegavam a ser proletariado,
nem nada”. – O Aleijadinho (1928), em: Aspectos das Artes Plásticas no Brasil, São
Paulo, s.d., p.19-20.
66 , Teixeira Coelho, ob.cit., p.479. O grifo é meu.
67 , Cf. Michel Foucault, Histoire de la Folie à l' Âge Classique, Paris, 1972, 1ª parte,
c.II , p.56-91; Pierre Deyon, Le Temps des Prisons, Paris, 1975, c.II , p.31-48; Christian
Paultre, De la Répression de la Mendicité et du Vagabondage em France sous l'Ancien
Régime (1906), Genebra, 1975 (reimpressão, 3ª parte, p.137-310.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

eram parte constitutiva do momento histórico, e contra eles incidia


toda a legislação repressiva que, tendo florescido com especial vigor
nos séculos XVI e XVII , entrava pelo século XVIII . Em toda parte,
eram motivo de preocupação para as autoridades, que os fechavam
em workhouses, em hospícios, em instituições de caridade.67 Gere-
meck narra as hostilidades que, já nos séculos XIV e XV, existiam
contra os marginais, e que se traduziam muitas vezes em expressões
linguísticas. Dá o exemplo de um vagabundo auxiliar de pedrei-
ro que aparece condenado com a sentença de morte por ser inútil
ao mundo.68 Veredicto pronunciado em relação a um vagabundo,
Geremeck o considera como expressão da opinião corrente sobre
os marginais, chegando mesmo a afirmar que “o desprezo de que
são objeto constitui o cimento dessas categorias tão diversas, tão
diferentes quanto à sua gênese e às funções que assumem”.69 A ideia
de inutilidade de que se reveste esta categoria social aparece, assim
88 como caraterística da consciência coletiva de um momento histó-
rico: o do surgimento do capitalismo. Acha-se estreitamente asso-
ciada, creio podê-lo afirmar, ao ônus que representa a reprodução
desta gente. É a esse ônus que Teixeira Coelho opõe a utilidade dos
vadios mineiros, que não eram característica exclusiva da colônia
portuguesa setecentista, mas podiam ser encarados sob um ângulo

68 , Textualmente, a sentença dizia: Estoit digne de mourir comme inutile au mon-


de, c'est assavoir d'estre pendu comme larron. B. Geremeck, Les Marginaux Parisiens
aux XIV et XV Siècles, c.IX , Les limites du monde marginal , p.329.
69 , Geremeck, ob.cit., p.340. Por ocasião da interpretação do edito de Carlos IX ,
de 1566, um jurista lionês define vagabundo da seguinte forma: “Vagabonds sont
gens oiseux faits-neantz, gens sans aveu, agens abandonnez, gens sans domicile,
sans mestier et vacation, et comme les appelles l'ordonnance de la police de Paris,
gens qui ne servent que de nombre, sunt pondus inutilae terrae”. Segundo Gereme-
ck, “Criminalité, vagabondage, paupérisme”, p.349.
70 , Aristides de Araújo Maia, Memórias da província de Minas Gerais , em:
RAPM , VII , 1885, p.42.
71 , RAPM , v.VI , p.145-6.
72 , Carta do conde de Valladares Ao Morgado de Mateus – 10-III-1770 –em: DI ,
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

especial, que desvendava a sua peculiaridade. É nesta peculiaridade


que reside a questão.
De fato, o que está por detrás da afirmação de Teixeira Coelho é
uma ideia de uma mão-de-obra alternativa à escrava, de uma espé-
cie de exército de reserva da escravidão. Era assim que a vadiagem,
a desclassificação social, se atrelava a um novo contexto, no qual a
utilidade ganhava destaque mas convivia também com o ônus.
A documentação permite que se constate com segurança a exis-
tência dos desclassificados sociais mineiros, mas não responde à
incógnita da sua reprodução, ou seja, as condições concretas de sua
subsistência. Como comia e procriava uma “casta de gente” que vi-
via de expedientes e de biscates esporádicos? Quem arcava com o
ônus da reprodução de uma “gente ociosa que só servia para con-
sumir viveres”,70 quem suportava “o peso enorme da parte dos va-
dios”? 71
A ideia da utilidade dos vadios no século XVIII mineiro se cruza, 89
assim, de modo quase inextricável com a ideia do ônus representado
pela vadiagem. Em 1770, escrevia o conde de Valladares, governador
de Minas, a seu colega Luís Antonio de Souza, Morgado de Mateus
e então capitão-general da capitania de São Paulo, recém-recriada:
“De mulatos, cabras e mestiços abunda esta capitania, fazendo-se
muitos deles pela sua vadiação, e ociosidade dignos de se fazerem
sair desta capitania e de se empregarem em cousas úteis”.72 A eli-
minação dos vadios pela sua expulsão da capitania significava a su-
pressão de uma gente onerosa e desejável, mas esta possibilidade
aparecia imediatamente associada ao emprego dos desclassificados
em algo útil, mostrando muito bem a oscilação em que se viam
envolvidas as autoridades. O mesmo Valladares, que como se verá
adiante teve na tentativa de solucionar o problema dos vadios um

v.XIV, 1895, p.272. O grifo é meu.


73 , Para o capitão-mor Manuel Antunes (...) – 10-I-1773, em: APM , SC ,
cód.199, fls.6V-7. Basílio Teixeira de Savedra sugeria que se estabelecessem novos
presídios “para que os presos possam trabalhar nas obras públicas, possam alimen-
tar-se do seu trabalho” – Informação , p.678.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

dos pontos de honra de seu governo, insistia junto aos capitães-mo-


res para que os empregassem: “À minha presença tem chegado que
no Distrito da Campanha há várias pessoas ociosas, que cometem
suas travessuras, com as quais causam perturbações aos moradores,
no que tem grande culpa o comandante daquele Distrito, por não
cuidar na forma das minhas ordens, em os pacificar e repreender, ao
qual deve admoestar de Ordem Minha, para que reprima os ocio-
sos, e vadios, fazendo que todos cuidem em empregar-se nos seus
ofícios, para que vivendo em paz não me venha representações...”73
Não fica explicito qual o caráter desses ofícios, mas está claramente
formulada a necessidade de associar a repressão à utilidade. O ônus
eventualmente representado pelos desclassificados convertia-se,
através do castigo, em trabalho, e portanto, em utilidade.
Várias eram as alternativas para a utilização da mão-de-obra
desclassificada: constituição dos corpos que se aventuravam pelo
90 sertão em entradas; a guarda, defesa e manutenção dos presídios; o
trabalho nas obras públicas e na lavoura de subsistência; a formação
de corpos de guarda e polícia privada; a composição de corpos de
milícia e de outros recrutados esporadicamente para fins diversos; a
abertura e povoamento de novas áreas, as fronteiras.74

74 , A utilização dos vadios nessas funções foi, como já se disse, comum a toda
a colônia: “... essa população livre pobre representava uma espécie de 'argamassa
paramilitar', usada como um aríete na defesa das povoações, na penetração dos ter-
ritórios desconhecidos e na conquista de novas fronteiras” – Florestan Fernandes,
“A sociedade escravista”, em: Circuito fechado, São Paulo, 1976, p.33. Em são Paulo
também se aproveitaram desclassificados, conforme diz Sérgio Buarque de Holan-
da: “Em muitos lugares, tais elementos podiam ser aproveitados com vantagem, e de
fato o eram, na formação de corpos militares destinados à fronteira, na organização
de povoações novas, no desbravamento de sertões desconhecidos, como os de Ivaí
e Guarapuava. Mas nos distritos vizinhos do porto de embarque das monções, uma
grande parte do pessoal disponível tinha de ser absorvido no serviço das canoas”.
– Monções, 2ª ed., São Paulo, 1976, p.71-2. Com os vadios da capitania formavam-
-se as tripulações das monções que partiam de Porto Feliz (então Araritaguaba)
para Cuiabá, e se fundo um capitão-mor daquela localidade, “Por isso esta gente
de alguma maneira devem ser respeitados (sic) por sua habilidade no trabalho do
A , Entradas , O devassamento do sertão das Minas e o estabe-
lecimento dos primeiros arraiais auríferos se fizeram sob o signo
do aproveitamento dos desclassificados sociais nas bandeiras que
entravam pelo mato. Antes mesmo de se procurar ouro no território
que depois ficou chamado Minas Gerais, Gabriel Soares, na última
década do século XVI , recebeu ordens reais para “tirar das prisões
os condenados a degredo, que fossem oficiais mecânicos e minei-
ros; a estes seria contado como da pena o tempo da expedição”75
Agostinho Barbalho Bezerra, que em 1664 foi encarregado pelo rei
do “descobrimento e entabolamento das Minas de Paranaguá”, no
então distrito do Rio de Janeiro, recebeu instruções semelhantes:
“E porque pode acontecer que pelas capitanias e sertões por onde
fizer jornada ao descobrimento das ditas minas andem algumas
pessoas retiradas por crimes, ou casos por que a justiça seja parte e

rio” – cit. p.72. Em Desterro, atual Florianópolis, havia carência de mão-de-obra por 91
ocasião da pesca das baleias, não bastando os lavradores pobres que então se faziam
jornaleiros: “Os trabalhadores voluntários não eram, todavia, suficientes por toda
parte. As armações recorriam, por isso, aos circeres, mobilizando sentenciados a
trabalhos forçados e até mesmo requisitavam ordenanças das milícias, no que o mo-
nopólio real das armações contava com a colaboração das autoridades. Sob ameaça
de prisão, também se recrutavam vadios, frequentadores de tavernas, motivo pelo
qual muita gente fugia ao se aproximar a temporada da captura da baleia”. – Jacob
Gorender, ob.cit., p.229.
75 , Aristides de Araújo Maia, Memória da província de Minas Gerais , em:
RAPM , v.VII , 1902, p.26.
76 , Traslados e excertos de alguns escritos com relação à empresa de
Agostinho Barbalho Bezerra para descobrimento das esmeraldas. Com
algumas observações e anotações – Provisão de 20-V-1664 em: RAPM , v.II ,
1897, p.531.
77 , José Joaquim da Rocha, ob.cit., p.429.
78 , Manuel Eufrásio de Azevedo Marques, Apontamentos históricos, geográficos,
biográficos, estatísticos e noticiosos da província de São Paulo, São Paulo, 1954, v.I ,
p.380.
79 , José Manuel Sequeira, Memória , publicado em: Sérgio Buarque de Holanda,
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não hajam outros: hei por bem que sendo necessário aproveitar-se o
dito Agostinho Barbalho das ditas pessoas para algumas notícias ou
informações do que se pretende neste descobrimento, lhe possa per-
doar e perdoe em meu nome o tal crime, que tiver cometido...”.76 A
bandeira não vingou devido à morte de Agostinho Barbalho, e nada
mais se sabe sobre estes possíveis informantes a serem utilizados
pela expedição. Mas a mesma ideia de informantes de condição so-
cial indefinida aparece na narrativa que José Joaquim da Rocha faz
da bandeira de Fernão Dias Pais, que entrou para o sertão levando
com bastardos: estes, às margens do Vupubuçu, foram expedidos “a
fim de examinar a finalidade das terras circunvizinhas a este lago,
a ver se achavam alguma língua, que melhor ao informasse do que
buscavam”;77 bastardo podia então designar tanto o filho natural
como o mestiço, sendo certamente esta a acepção a que diz respeito
a passagem citada. De qualquer forma, tratar-se-ia de elementos de
92 mísera condição, arregimentados para engrossar a empresa arrisca-
da do sertanista.
D. Rodrigo de Castel Blanco – estranho aventureiro que morreu
em condições trágicas, envolvendo Borba Gato como possível cri-
minoso – também levou, ao que tudo indica, a sua quota de desclas-
sificados; pelo menos é o que sugere o “Bando mandado publicar na
vila de São Paulo e em rodas as mais da capitania, dando perdão aos
criminosos que andavam foragidos (exceto os de Lesa-Majestade)
para que se apresentassem a fim de fazer parte da força com que D.
Rodrigo de Castel Blanco tinha de entrar para o sertão em desco-
berto de minas”.78
Ao tratar do estímulo que julgava merecerem as expedições vol-
tadas para a procura de pedras preciosas, ouro e outros metais de
valor econômico, José Manuel Sequeira também sugere o aproveita-
mento dos desclassificados: “O único meio de que me lembro (se é

Monções, p.137.
80 , Licença de d. Brás Baltazar da Silveira a Lucas de Freitas de Aze-
vedo” – 29-V-1717, APM , SC , cód. 9, fls. 49 V-50.
81 , Descobrimento de Minas Gerais – relação circunstanciada , RIHGB ,
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

licito um simples vassalo indicar meios que só competem ao sobera-


no) era o de um decreto real pelo qual se perdoassem todos e quais-
quer delitos antes cometidos que não forem de Lesa-Majestade aos
facinorosos, que vivem prófugos e foragidos, e que espontaneamen-
te se apresentarem dentro de certo tempo para serem ocupados no
exercício do sertão pelo tempo que merecer a gravidade do delito”.79
As diligências de Lucas de Azevedo no sentido de procurar esme-
raldas receberam, por “serem em tanta utilidade ao de arregimenta-
rem desclassificados: “... licença para poder haver a si todos aqueles
chamados gentios forros de mamelucos, mulatos, negros, índios
e bastardos que achar e tiver notícia tirando-os de qualquer parte
onde estiverem para o ajudarem nos ditos descobrimentos...”.80
É claro o motivo que norteia a doção dos desclassificados como
componentes adequados para entradas e expedições sertanistas: o
enveredar pelo mato apresentava enorme tentação para os cativos,
que, em situações semelhantes, buscavam a fuga e a liberdade. Além 93
disso, era oneroso à economia colonial afastar um negro minerador
de sua faina diária.
Assim, dentro da colônia setecentista, as Minas apresentaram fei-
ção peculiar: situadas na região central, foram, de certa forma, o
resultado das entradas e bandeiras, que levavam um grande número
de desclassificados. A desclassificação seria, pois, particularmente
intensa naquela região, que se constituiu assim numa amostragem
privilegiada do fenômeno ao mesmo tempo em que aliviou outras
regiões dos seus elementos indesejados, funcionando como uma
“válvula interna”.

B , Presídios , Os presídios foram, em grande parte, mantidos


e desenvolvidos às custas do trabalho de desclassificados. Localiza-
vam-se em terras remotas, as conquistas, e foram feitos para com-

v.XXIX , t.1, p.5-114.


82 , Diz José Joaquim da Rocha: “Dos sertões penetrados naquele tempo, era o
mais notável, o da Casa da Casca nome que se deu a uma aldeia de gentio situada no
lugar hoje denominado Cuieté, ao meio dia do Rio Doce em distância de 5 léguas”.
– ob.cit., p.426-7
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

bater o extravio do ouro, para inspecionar e impedir o avanço dos


índios, sobretudo botocudos.81 Em muitos deles viviam gentios ca-
tequizados e pacíficos, e era frequente possuírem campos de lavoura
cultivados pelos criminosos e desocupados. Os mais citados são o
de Abre campo, o do Peçanha, o do Cuieté, que ao que tudo indica é
a mesma localidade que algumas vezes surge designada como Casa
da Casca ou Casca.82 Situada no lado Sul do rio Doce, era cortada
por vários córregos, ribeiros e rios menores, e em suas margens en-
contrava-se outro; mas havia um grande problema: índio bravo, bo-
tocudo. Esta conquista havia sido promovida por Luís Diogo Lobo
da Silva, pelo conde de Valadares e por D. Antonio de Noronha.
Este último procurou torná-la produtiva, para lá se dirigindo em
pessoa a 12 de setembro de 1779.83 O presídio de Abre Campo fora
desenvolvido pelo conde de Valadares, e sua conservação fora consi-
derada de enorme utilidade pelo mesmo D. Antonio de Noronha: “...
94 porque além de haverem nele Minas donde se extrai ouro, serve de
embaraço ao gentio para penetrar aquele sertão, e hostilizar as mui-
tas fazendas, que se achavam povoadas e cultivadas nas vizinhanças
do rio Casca.”.84.
O envio de vadios para os presídios e conquistas foi medida ado-
tada por praticamente todos os governantes nas décadas de 1760,
1770 e até mesmo 1780. As Cartas Chilenas criticam a arbitrariedade
de Fanfarrão Minésio e de seus prebostes no trato com essa gente:

83 , Teixeira Coelho, ob.cit., p.487, 488 e 489.


84. , Carta de D. Antonio de Noronha citada em Teixeira Coelho, ob.cit., p.509.
85 , Carta 3ª, versos 164-169, em: Tarquínio J.B. De Oliveira, As Cartas Chilenas –
fontes textuais, São Paulo, 1972, p.92.
86 , Diogo de Vasconcellos, História Média.., p.237.
87 , Diogo de Vasconcellos, História Média..., p.237. Segue-se nas p.238-9, uma
curiosa passagem: “… os vadios, que em todos os países formaram a classe mais
inútil e nefanda, em Minas, dizia D. Antonio de Noronha, eram um elemento neces-
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

Os nossos comandantes, que conhecem


A vontade do Chefe, também querem
Imitar deste Cabo o ardente zelo:
Enviam para as pedras os vadios,
Que na forma das ordens mandar devem
Habitar em desterro novas terras.85

D. Rodrigo José de Menezes pensou em aproveitar economica-


mente o Cuieté com atividades outras que a mineração: a extração
de madeiras e o cultivo de algodoeiros. Para tal, ordenou aos co-
mandantes distritais que enviassem os vadios que conseguissem
apanhar para a cadeia de Vila Rica, onde, na formulação feliz de
Diogo de Vasconcellos, “escolheriam ou a farda para o Rio Grande,
ou a foice para o Cuité”.86 O historiador mineiro considerava ótimo
o sistema de utilização deste tipo de mão-de-obra:
Porque, primeiro, separava da sociedade sã a parte corrompida que per- 95
vertia a mocidade; segundo, utilizava os ociosos em matéria de serviço pú-
blico; terceiro, aumentava as receitas da coroa, aliviando em geral as quotas
da derrama.87

sário para o povoamento e cultivo das colônias, devendo-se lhes em grande parte a
segurança da parte civilizada contra os índios ferozes, que eles continham nos re-
motos presídios.” Confrontada com o trecho de Teixeira Coelho, dá margem a duas
hipóteses: 1) A formulação de que os vadios, ódio de todas as nações civilizadas,
eram úteis nas Minas é de D. Antonio de Noronha, de quem Teixeira Coelho era
grande admirador; 2) Diogo de Vasconcellos leu mal Teixeira Coelho e atribuiu a
frase do desembargador ao governante. De qualquer forma, a ideia da utilidade dos
vadios mostra a sua presença marcante.
88 , Exposição do governador D. Rodrigo José de Menezes sobre o esta-
do de decadência da capitania de Minas Gerais e meio de remediá-lo, em:
RAPM , v.II , 1897, p.314-5.
89 , Requerimento que a S.Exa. Faz sobre datas de terras minerais e
sesmarias o alferes João Pereira (…), alferes da ordenança do destaca-
mento dos forros”– 19-X-1770, em: APM , SC , cód. 186, fls. 78-79 V.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

Antes de Diogo de Vasconcelos, D. Rodrigo também deixou ex-


presso o seu conceito sobre o aproveitamento dos vadios no incre-
mento do presídio do Cuieté:

Encarreguei a direção desta obra a um homem muito perito, e capaz de


dar conta de si, e para nele trabalharem mandei por toda a capitania pren-
der os vadios, que se encontrassem, e remetê-los para aquele sítio, fazendo
deste modo com pouco despesa aquela importante obra, e purgando tam-
bém a sociedade civil dos perturbadores dela.88

Os presídios e as conquistas remotas eram locais pouco acolhe-


dores. Segundo um artigo integrante de várias expedições às con-
quistas – inclusive da que, no tempo de Luís Diogo Lobo da Silva, se
enviou ao Abre Campo – os indivíduos que lá se viviam passavam
“várias fomes e calamidades”, e sofriam constantes investidas dos
96 índios puris, ficando muitos mortos pelos matos.89 Já no século XIX ,
um senhor pedia comutação ou alteração da pena que coubera a um
seu escravo, degredado para o Cuieté:

... é um lugar no centro desta capitania, pouco povoado, pouco sadio e in-
festado pelo antropófago botocudo, para o qual costumam ser remetidos
em muitas ocasiões alguns réus de crimes menos graves...90

De fato, a documentação não indica transgressões graves como


motivo de degredo para os presídios: Manuel Lopes Pena, Dionísio
Pereira Brandão e Joaquim, de Almeida Pinto, presos pelo coman-

90 , Para a Mesa do Desembargo do Paço – 21-III-1812, em: RAPM , v.XVII ,


1913, cód. 199, fls. 8 V-9.
91 , Para o capitão-mor Manuel Furtado Leite de Mendonça – 21-I-1773,
APM , SC , cód. 199, fls. 8V-9.
92 , Conforme decreto de 4-IX-1755, os mendigos e os vagabundos deveriam traba-
lhar nas obras de Lisboa, Rui d'Abreu Torres, Mendicidade, p.19. Na França, durante
o inverno de 1516, procurou-se empregar os vagabundos nos trabalhos destinados
a elevar fortificações; quando este não podia ser executado devido ao nível alto das
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

dante de São Gonçalo do Rio Abaixo, só seriam remetidos para o


Abre Campo caso ficasse flagrante a sua vadiagem, pois caso con-
trário – “tendo os ditos ofícios, e trabalhando-os” – cumpririam
sete dias de prisão e seriam soltos a seguir. O bastardo José Moreira,
preso por embriaguez, deveria se apresentar de três em três meses
com uma certidão de bem-viver – sem o que, sua sorte seria o Cuie-
té.91 Pode-se assim imaginar a quantidade de infrações insignifican-
tes que jaziam detrás de muitos dos moradores daquelas paragens.

C , Obras públicas e lavoura , Para o trabalho em obras públi-


cas sempre foi comum o emprego de desclassificados.92 Devido ao
terrível depoimento das Cartas Chilenas, ficou famosa a construção
da Casa da Câmara e Cadeia de Vila Rica empreendida por Luís da
Cunha Menezes, o Fanfarrão Minésio.93 Há notícia de vadio traba-
lhando na abertura de picadas e caminhos durante o governo de D.
Rodrigo José de Menezes,94 e o trabalho nas lavouras dos presídios 97
não deixa de ter caráter de obra pública. D. Antonio de Noronha
refere-se à agriculturação dos campos do Cuieté como “ofício útil
ao público”.95 A utilidade da lavoura não vinha apenas do fato de

águas do Sena, empregavam-se vagabundos para remover a lama e o lixo das ruas.
Geremeck, Criminalité, vagabondage, paupérisme..., p.351. Na região do Vale do Pa-
raíba, os homens livres pobres eram utilizados para “resolver o crônico problema de
construção e conservação de estradas”. Maria Sylvia de Carvalho Franco, Homens
livres na ordem escravocrata, 2ª ed., São Paulo, 1974, p.97.
93 , As cartas Chilenas, fontes textuais, carta 3ª, p.88-95, e carta 4ª, p.101-10.
94 , Waldemar de Almeida Barbosa, ob.cit., p. 202 e p. 369.
95 , Bando sobre a limpeza de negros calhambolas; taberneiros; mas-
cates de qualquer qualidade – assim brancos como negros – e pessoas
vadias – e regularidades de capitães-do-mato, e pedestres – 8-IV-1764, em:
APM , SC , cód. 50, fls. 91 V.
96 , Este aspecto foi abordado no capítulo anterior.
97 , Ordem de 24-XI-1734, Coleção sumária das próprias leis, cartas ré-
gias, avisos e ordens , em: RAPM , v. XVI , p.450.
98 , “Administração Diamantina – Traslado dos autos de inquirição
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

ser a capitania das Minas abastecida em sua maior parte por gêne-
ros vindos de fora, mas está sobretudo ligada ao fato de o trabalho
da terra ser, a partir de uma determinada época, encarado como o
trabalho por excelência, a base sólida sobre que deveria se apoiar a
economia.96 Sendo assim, nada melhor do que ele para redimir o
desocupado do vício da ociosidade. Em 1734, o conde das Galvêas
lançava uma ordem segundo a qual os vadios não seriam conse-
tidos, obrigando-se lhes “a servir na cultura das terras” mediante
pena de expulsão da capitania.97 No Distrito Diamantino, ordenou
certa ocasião o Intendente que se fizesse a circunvalação dos cam-
pos lavrados “por dez ou doze miseráveis apenados sem paga, sem
ferramenta, e sem alimentos”.98 Em 1807, o governador D. Pedro
Maria de Ataíde e Mello cogitava da navegação do rio Doce e do de-
vassamento de seus sertões, dizendo que “muitos vadios, gentalha a
mais perigosa da sociedade, seriam obrigados a povoar e agricultar
98 estas terras”, e que, nessa empresa, seriam auxiliados pelo gover-

que mandou V. Exa. Proceder sobre as condutas do Intendente dos Dia-


mantes João Inácio do Amaral Silveira e do Fiscal João da Cunha Soto
Maior, assim como sobre a importante administração, que lhe está en-
carregada . – RAPM , v. II , 1897, p.154. Dentre as causas da decadência da agricul-
tura portuguesa arroladas em 1792 pelo Intendente-Geral da agricultura, D. Luís
Ferrari de Mordau, a oitava era “Muita gente pobre e muita preguiça”, e a déci-
ma, “Muitos vadios, muitos criados, muitos ociosos e muitos soldados extraídos
da lavoura”. Entre outras proposições para o solucionamento do problema, estava
a mobilização para o trabalho dos “vadios, licenciados, e pobres de profissão, por
outro modo, vagabundos, e mendicantes, e mulheres públicas de má vida.” segundo
Vitorino Magalhães Godinho, ob.cit., p.195.
99 , Sobre a navegação do rio Doce , carta de 14-IX-1807, em: RAPM , v. XI ,
1906, p.300.
100 , Carta de 14-XI-1818, em: Originais de ordens régias e avisos – 1817-1818, APM ,
SC , livro 377, n.52.
101 , Segundo Xavier da Veiga, Efemérides Mineiras (1664-1897), Ouro Preto, 1897,
v. IV, p.3 51-6.
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

no.99 Em 1818, já no fim do período colonial, José Inácio do Coito


Moreno enviou ao rei um plano para melhorar a agricultura da ca-
pitania e nela empregar os vadios.100 O Conselho Geral da Provín-
cia continuaria a perseguir a ideia do aproveitamento dos vadios
na agricultura, conforme consta no projeto que, nesse sentido, foi
apresentado a 15 de dezembro de 1831.101 Nada consegui saber sobre
a execução prática de todos esses projetos.

D , Polícia privada , Tem-se lembrado exaustivamente a pre-


sença dos desclassificados nos corpos de guarda pessoal e de polí-
cia privada. Nos documentos sobre os levantes ocorridos no sertão
do São Francisco em 1736 fica clara a participação dos vadios como
corpo pessoal dos potentados do lugar. De fato, era frequente ver-se
um poderoso com sua guarda pessoal, “brancos de ruim conduta,
mulatos e negros com armas de fogo, catanas e porretes” como os
que serviam a um certo Manuel José, apaniguado do Ouvidor do 99
Serro.102 Como os desclassificados em geral, esses indivíduos eram,
na sua maior parte, mestiços: o Tenente-Coronel Amador de Souza
foi morto em 1738 por um Antonio Francisco e seu irmão que, esco-
rados em carijós por eles armados, pretendiam matar ainda outras
pessoas, lançando os habitantes de Congonhas na maior conster-
nação.103

102 , A justiça na capitania de Minas Gerais – correspondência de D. Rodri-


go José de Menezes com o ministro Martinho de Mello e Castro e com o Ouvidor do
Serro Frio Joaquim Manuel de Seixas Abranches, in: RAPM , v. IV, 1899, p.14.
103 , Carta, 28-V-1738, em: APM , SC , cód. 69, fls. 5 V.
104 , Diogo de Vasconcellos, História Média..., p.172. Em São Paulo, o Morga-
do de Mateus se queixava ao primeiro-ministro de D. José 1 dos vadios-capangas
que haviam matado um capitão de ordenanças eu escrivão de Taubaté: “E porque
de ordinário estes delitos são executados por homens vadios e mandados para este
fim por pessoas que atraiçoadamente se pretendem vingar por estes meios, ficando
desta sorte oculto o que manda, e fugindo o que executa, pela facilidade com que se
passam pelo matos a outras terras, e com que ficam no mesmo mato vivendo pelas
roças e pelos chamados sítios, de que há grande quantidade sem se saber nunca,
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

Diogo de Vasconcellos aventa uma hipótese segundo a qual os


desclassificados empregados como guarda pessoal ou como agen-
tes da repressão fomentariam a paranoia da classe dominante para
justificarem a sua função: “Para bem compreendermos o enredo da-
queles tempos, convém lembrar que a bruta classe numerosa de fei-
tores, capangas e capitães-do-mato viviam de explorar o medo dos
senhores, para se tornarem necessários. Inúmeros vadios, que eram
parasitas nas fazendas, tinha-se por guarda-costas e espias dos pro-
prietários. Essa grande caterva tinha todo interesse, pois, de criar
boatos e exagera-los.104 Não considera, entretanto, o outro lado da
moeda: que num sistema escravista cujo alicerce da economia eram
os escravos, muito mais numerosos do que a gente branca de posses,
a manutenção de uma polícia pessoal era extremamente necessária
para a continuidade da dominação. A paranoia existia; não era cria-
da de fora para dentro, mas correspondia a algo profundo, inerente
100 ao sistema. Essa paranoia real poderia ser alimentada pelos capan-
gas, mas nunca inventada por eles que, dada as condições acima
apontadas, eram úteis e necessários.

E , Fronteiras e expansão territorial , Numa colônia cujas fron-


teiras ainda eram móveis e provisórias, cujos limites só seriam tra-
çados em 1777 – mas que, até o século XX , seriam redefinidos –, a
expansão e as frentes do povoamento eram extremamente impor-
tantes. O aventurar-se num sertão inóspito, desconhecido e cheio
dos nativos da terra era uma empresa arriscada; muitos o faziam

nem se poder averiguar aonde param estes delinquentes, para poderem ser casti-
gados como merecem os seus delitos”. – Carta do Morgado de Mateus ao Conde de
Oeiras – 21-IX-1765 – em: DI , v. IXXII , 1952, p. 94-5.
105 , “Tenho notícia que entraram nestas Minas grande número de ciganos que
o sr. Vice-Rei fez despejar do distrito da Bahia, e ainda que já se fazem algumas
queixas deles, e aqui haja um bando do sr. Conde das Galvêas para não viverem no
distrito das Minas; contudo por ora me parece acertado, castigando aos que come-
terem algum insulto, não intender com os mais, porque não suceda juntarem-se
em alguma parte remota, salteando os caminhos, o que agora seria de perniciosas
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

tendo em vistas a riqueza rápida que daí poderia advir, recrutando


vadios, criminosos e toda a sorte de infratores para engrossarem a
expedição. Por outro lado, dada a dificuldade de lá chegar o braço
da Justiça, a paragem longínqua era atraente ao perseguido pela lei.
Sob coação ou por livre e espontânea vontade, os desclassificados
– eles mesmos, fímbria da sociedade – se localizaram com frequ-
ência na fronteira geográfica, nas zonas remotas que, muitas vezes,
eram alvo da disputa de duas ou mais capitanias, que brigavam pela
sua jurisdição. Magotes de ciganos ficavam de tocaia nas bordas
dos caminhos, lançando-se sobre os viandantes e sobre suas cargas,
roubando cavalos e mantimentos; caso as autoridades vissem nesses
elementos a possibilidade de serem úteis, agrupavam-no e os envia-
vam para o Sul, grande sorvedouro de desclassificados por todo o
século XVIII devido a questão fronteiriça da colônia do Sacramento
e, por algum tempo, dos Sete Povos de Missões.105 “Prender para
Montevidéu”, para a “Nova Colônia”, para o rio da Prata, ou generi- 101
camente para o Sul são expressões correntes na documentação por
todo o período.
As zonas novas recebiam grande afluxo de vadios. Quando sur-
giram os descobertos do Paracatu, o governador comentou com o
ouvidor-geral do Sabará sobre a necessidade de ter dragões a postos
em Vila Rica para poder mandá-los de uma hora para outra àquela
região, “porque conheço que a sua assistência conservará em res-

consequências, e dificultoso remédio, estando tão dispersos os dragões deste presí-


dio; se porém a V.E. Parecer que esta gente pode ser útil para o rio da Prata com o 1º
aviso se passarão ordens circulares para os prenderem as ordenanças, e se remeterão
a essa cidade”. – Carta de Martinho de Mendonça a Gomes Freire 13-I-1737 – Das
cartas do Exmo.sr. Gomes Freire , em: RAPM , v. XVI , 2, p. 394.
106 , Para o Ouvidor-Geral do Sabará Simão da Costa e Mendanha , 21-
VIII -1744, em: APM , SC , cód.84, fls.46 V-47.
107 , Waldemar de Almeida Barbosa, Dicionário histórico-geográfico de Minas
Gerais, Belo Horizonte, 1971, p. 45.
108 , Carta da comarca de Tamanduá acerca dos limites de Minas Ge-
rais com Goiás, 10-VII-1793, em: RAPM , v. II , 1897, p.372 e 382 respectivamente.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

peito a coleção de vadios que vão a estabelecer-se naquele descober-


to...”.106 Os primeiros moradores do arraial do Araxá sofreram os
inconvenientes de um povoado em pleno sertão, longe das autori-
dades, para onde afluíam vadios e aventureiros de toda espécie.107
Os desordeiros que se estabeleceram na região de Tamanduá, ter-
mo que durante muito tempo provocou disputas entre as capitanias
de Minas e Goiás, foram alvo constante das queixas das camaristas
junto aos governantes. Segundo diziam aqueles, os vadios estavam
interessados em confundirem os limites e as jurisdições para fica-
rem isentos dos castigos de que seriam merecedores, fazendo do
local um couto para criminosos. Os camaristas são extremamente
rigorosos no juízo que fazem dos indivíduos aventureiros, intro-
jetando, de certa forma, a ótica oficial ante o problema: “homens
foragidos, vagabundos, insidiosos, inimigos da paz, das repúblicas,
cheios de impetuosas malaversações populares”, “feras racionais e
102 irracionais”.108

F , Milícias e corpos militares , As milícias coloniais lançaram


mão com muita frequência do recrutamento de desclassificados. Se-
gundo um historiador mineiro, “o aproveitamento mais útil desses
viciosos foi na organização de verdadeiros corpos de tropa”.109 Na

Em 1798, a câmara reiterava suas queixas: Informação da Câmara de São Bento do


Tamanduá sobre divisões entre esta e a capitania de Goiás” em: RAPM , v. XI , 1906,
p. 429-430.
109 , Flamínio Corso, Terra do Ouro, Ouro Preto, 1932, p.138. A utilização dos
vadios nas tropas não foi peculiaridade mineira: o grosso das unidades regulares da
Bahia era recrutada entre os vagabundos itinerantes e mulatos da terra. Ver Boxer,
The Portuguese Seaborne Empire. Na Idade de Ouro do Brasil, o mesmo autor fala
da predominância de fora-da-lei dentre a população rio-grandense no século XVIII ,
muitos deles colonos que vinham da Bahia e que eram na maior parte, vadios con-
vocados nas cidades para o serviço de dragões (c.IX). Fala também da utilização
que fizeram os senhores de engenho de elementos desclassificados na Guerra dos
Mascates, e que ficaram conhecidos por Tunda-Cumbés (c.v.).
110 , Diogo de Vasconcellos, ob.cit., p. 239.
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

mesma linha, Diogo de Vasconcellos chega a dizer que, em meio às


dificuldades apresentadas para o recrutamento de vadios – dificul-
dades essas devidas a disputas entre autoridades –, a declaração de
que tal se fazia para o serviço militar simplificava imediatamente
os complicados trâmites que nos outros casos, envolviam o dito re-
crutamento.110 Este, muitas vezes, se fazia às pressas para o desem-
penho de alguma função específica, como é o caso das tropas que
se constituíam para combater e arrasar quilombos. Neste sentido,
o interino José Antonio Freire de Andrade ordenou, em 1741, que
o sargento-mor João da Silva Ferreira apenasse “todos os capitães-
-do-mato, carijós, negros forros e mulatos que não tiverem ofício ou
fazenda em que trabalhar” para que compusessem um corpo desti-
nado a enfrentar os quilombos que então proliferavam nos distri-
tos de Sussuí e Paraopeba, ambos na comarca do Rio das Mortes.111
Luís Diogo Lobo da Silva também lançou mão de “pardos e negros
livres” miseráveis para enfrentar “os negros do mato, a que vulgar- 103
mente chamam de calhambolas”.112
Com o objetivo especial de prender os carijós assassinos e de-
sordeiros que andavam pondo em alvoroço a população de Con-
gonhas, e dos quais já se falou acima, ordenou o governador que se
arregimentasse quantos carijós fosse possível sob “pena de proceder
contra quem se escusar de obedecer ao suplicante na dita diligên-
cia”.113 Assim, os carijós que, a mandado de terceiros, haviam come-
tido assassinato, seriam atacados por carijós pagos pelo Estado. Nas
desordens e na repressão, de um e de outro lado do poder, atuavam
os protagonistas da miséria.
111 , Ordem – 28-IV-174, em: APM , SC , cód.69, fls. 23 V.
112 , Bando , em: APM , SC , cód. 50, fls. 90-90 V.
113 , Carta, 28-V-1738, em: APM , SC , cód.69, fls. 5 v.
114 , Xavier da Veiga, ob.cit., v.IV, p. 228.
115 , Diogo de Vasconcellos, p. 212-3.
116 , Carta da Comarca de Tamanduá..., p. 377.
117 , Dando notícia do movimento dos espanhóis no sul e pedindo-lhe o
auxílio de alguma força , 18-I-1773, em: DI , v. XXV, 1901, p. 37.
118 , Carta de Lavradio a Martim Lopes Lobo de Saldanha – 26-XI-1775, in: DI,
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

A 18 de novembro de 1773, era expedida uma ordem aprovando


a organização de uma tropa de pedestres destinada a reprimir os
ataques de botocudos e prender escravos fugidos; compunham-na
vadios e facinorosos.114 Parece ter havido certa receptividade à pra-
tica de se recrutarem vadios, talvez por colaboração de interessados;
a “parte sossegada e laboriosa que os vadios inquietavam”115 e que,
uma vez afastados os infratores, respirava aliviada sem se preocupar
com os motivos das infrações. Foi este o caso da mesma Câmara de
Tamanduá acima citada que se regozijou ante a determinação de
uma empresa destinada a “alistar e matricular a aqueles facinorosos
habitantes fazendo entre eles um corpo de milícia auxiliar e orde-
nanças a fim de os civilizar na obediência às Leis Divinas de Vossa
Majestade, que até então só conheciam as da impiedade”.116
É numa das formas do recrutamento que se pode analisar o movi-
mento através do qual a utilidade se torna ônus, e este se transforma
104 novamente em utilidade: o episódio que envolve o envio de tropas
para o sul no ano de 1777. Já em 1773, o Morgado de Mateus escrevia
ao conde de Valladares falando do movimento das tropas espanho-
las no sul pedindo que lhe mandasse “toda a gente que lhe for inútil
para ser empregada com aproveitamento naquela fronteira”.117 São
Paulo funcionava então como ponto de convergência das tropas de
Minas, Mato Grosso, Goiás e Rio, recrutando também em suas ater-
ras os soldados que deveriam seguir para o sul. Em 1775, Lavradio
dizia Martim Lopes Lobo de Saldanha, governador de São Paulo,
que os homens disponíveis para as tropas do sul deveriam seguir
da maneira que fosse possível, sem grandes preocupações com a sua
vestimenta precária, com a falta de armamentos ou de disciplina. A
carta é extraordinária como registro da ótica oficial ante o aprovei-
tamento dos homens livres pobres e desocupados: “... importa mui-

n.17, 1895, p.44-5. O grifo é meu.


119 , Carta de D. Antonio de Noronha a Martim Lopes Lobo de Saldanha, 20-III-
1777, em: DI , n. 17, 1895, p. 285-7, e Para o capitão-general de Minas Gerais,
sobre os socorros que de lá vem para o sul , 2-IV-1777, em: DI , v. 42, 1903, p.
222-3.
120 , Para o mesmo vice-rei, sobre a remessa de notícias dos inimigos,
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

to pouco que o regimento de voluntários vá menos bem regulado;


antes pelo contrário esta qualidade de gente, e aquela tropa tira as
suas maiores vantagens da própria irregularidade”. E mais adiante,
comentando a ação dos antigos paulistas desbravadores:

Nunca foram vestidos regularmente; eram armados à sua fantasia; al-


guns iam calçados; a maior parte deles descalços: as selas de seus cavalos
eram uns couros; assim atravessando os pântanos, os rios; subiam e des-
ciam as serras; atacavam os inimigos, e se faziam formidáveis. Sempre que
estes homens foram chamados ao Rio Grande nas Companhias Aventurei-
ras, iam quase em igual desordem; assim trabalhavam; e alguma coisa que
por lá se fez boa, quase sempre se lhe deveu a eles. (sic) A experiência deste
ser o caráter de semelhantes homens, e que sempre toda a tropa ligeira, em
toda parte do mundo, foi no seu princípio formada desta forma, faz que eu
insista a V.Exa. Para que eles marchem ainda que não estejam preparados
em toda regularidade”.118 105

Difícil encontrar texto onde melhor se exprimam as vantagens


advindas do emprego, por parte do estado, de uma mão-de-obra
miserável que pela sua própria miserabilidade tornava-se extrema-
mente útil.
Por fim, em 1777, a manutenção de tropas no sul tornou-se mais
premente devido a intensificação das hostilidades. O governador de
São Paulo pediu então a D. Antonio de Noronha que enviasse forças,
e este conseguiu arrebanhar 4000 homens que Martim Lopes deve-
ria fazer ao chegar ao sul, onde serviram sob as ordens do tenente-
-general João Henrique de Bohm, chefe das tropas lá sediadas.119
Em fins de março começaram a chegar de São Paulo os primeiros
corpos das Minas, e Martim Lopes se consternou ante seu estado,

prisão de traidores e chegada de tropas vindas de Minas Gerais, 23-IV-


1777, em: DI , v. 42, 1903, p. 245.
121 , Para o capitão general de Minas Gerais, dando-lhe notícia da
chegada das forças de Minas e do mau estado em que vieram. 14-IV-1777,
em: DI , v 42, 1903, p. 247-8.
122 , Carta do brigadeiro-governador do Viamão, José Marcelino de
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

pois vinham praticamente nus – “sem mais que umas ceroulas e


camisas” – e desarmados – “com muito poucas armas particulares,
e estas desconcertadas”120 Pediu ao colega de Minas que enviasse
mantimentos ou auxílio pecuniário para a alimentação dos solda-
dos, pois achava que o dinheiro de que dispunha não cobriria os
gastos com alimentação daquela tropa.121
Ao receber de Lavradio o aviso de que as tropas estavam a cami-
nho, o governador do Viamão, brigadeiro Marcelino de Figueiredo
intuiu o tipo de gente que estava para chegar: “... eu não sei que gente
será: porém é certo que paisana, e bisonha, não pode cá servir, que
de confusão, e falta de dinheiro, e mantimentos, e consequentemen-
te impossibilitar a subsistência das tropas...”.122 Os desclassificados
onerosos à capitania de Minas haviam, ante o episódio das guerras
do sul, se tornado úteis em outro contexto; mas a sua miséria e o seu
despreparo poderiam torná-los onerosos novamente, e prejudiciais
106 aos soldados melhor preparados que com eles se veriam obrigados a
repartir sua ração. O brigadeiro teria suas apreensões confirmadas
por carta de Martim Lopes:

... eu não me posso dispensar de mandá-las (as tropas), ainda que co-
nheço pouca ou nenhuma utilidade deste socorro; porque além de ser da
mais útil gente daquela capitania, vir descalça, nua e miserável, o seu ar-
mamento consiste em uns paus com um ferro na ponta, a que não lhe sei
dar o nome.123

Figueiredo, a Martim Lopes Lobo de Saldanha , 16-IV-1777, em: DI , n. 17, 1895,


p. 297.
123 , Para o brigadeiro José Marcelino de Figueiredo, enviando-lhe no-
tícias sobre as forças espanholas e sobre a imprestabilidade das tropas
de Minas Gerais e pedindo sua proteção para um afilhado. 30-IV-1777, em:
DI , v. 42, 1903, p. 253-4.
124 , Para o vice-rei do Estado, sobre algumas necessidades das tropas
desta capitania e imprestabilidade das forças vindas de Minas Gerais .
3-V- 1777, em: DI , v. 42, 1903, p. 255.
125 , Carta do brigadeiro-governador do Viamão, José Marcelino de
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

Na medida em que as tropas iam alcançando São Paulo, Martim


Lopes passava-lhes revista para retirar “os quebrados, aleijados
e idosos, de 60 até 100 anos” e que, por incrível que pareça, eram
muitos.124
Com a chegada das tropas ao sul confirmaram-se os temores do
brigadeiro, consternado ante o quadro de miséria que tinha sob os
olhos: “... o Exército tem custado muito a sustentar neste país, quan-
to mais tanta gente paisana, que não valerá o que comem pela maior
parte...”.125
Quando as queixas dos comandantes do sul e de Martim Lopes
chegaram a Lavradio, este deu mostras de estar, desde o início, cien-
te do tipo de homem que Minas forneceria, e que, apesar de tudo,
era útil à sua maneira, ou seja, servia para fazer número ante o exér-
cito inimigo: “Este socorro das Minas nunca o considerei corpo que
formasse linha com o exército, mas sim corpo de homens capazes 107
para o mato, que junto com as nossas tropas irregulares pudesse
fazer um peso ou estrago sobre os nossos inimigos, e este é o maior
serviço de que eu os julgo capazes, nem o general se servirá deles
por outro modo”.126
A posição de D. Antonio de Noronha era análoga à de Lavradio:

Figueiredo, a Martim Lopes Lobo de Saldanha . 8-V-1777, em: DI , n.1 7, 1895,


p. 302.
126 , Carta de Lavradio a Martim Lopes Lobo de Saldanha – 2-V-1777, em: DI , n.
17, 1895, p. 248. O grifo é meu.
127 , Carta de D. Antonio de Noronha a Martim Lopes Lobo de Saldanha – 13-V-
1777, em: DI , XIII , 1895, p. 290-1.
128 , Carta de Lavradio a Martim Lopes Lobo de Saldanha, 22-V-1777, em: DI , v.
17, 1895, p. 251-2.
129 , Carta de João Henrique de Bohm a Martim L. L. De Saldanha, 12-VI-1777,
em: DI, v. 17, 1895, p. 324-5.
130 , Para o brigadeiro José Marcelino de Figueiredo, sobre a volta das
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

Queira V.Exa. Refletir em que o Ilmo. E Exmo. s.r. Marquês Vice-rei me


não ordenou que eu formasse um corpo de tropa regular; mas somente que
fizesse expedir para o Rio Grande 4 mil homens, assim brancos, como mes-
tiços, mulatos e negros: estes quatro mil homens não reputo eu como tropa
que possa entrar em ação, e só como recruta, para completar as praças que
faltam nos regimentos do Exército, e para se empregarem nos diferentes
trabalhos do campo em que os quiser ocupar o general do mesmo exército.

D. Antonio dizia ainda que não tinha condições de gastar dinhei-


ro com uniformes e armamentos para esta gente, pois “semelhante
qualidade de homens, como não têm estímulos de honra, e se con-
duzem por violência poderão desertar em grande parte antes que
cheguem ao lugar do seu destino”, levando consigo os fardamentos
ou arrebentando-os completamente no decorrer da viagem, o que
tornava sesse tipo de despesa absolutamente inútil.127
108 Por fim, ante a avalancha de protestos levantados pela tal tropa
em toda parte por onde passou, Lavradio ordenou que se desse um
sumiço nos elementos inaproveitáveis pelo exército, já que deles, no
dizer das autoridades, não se poderia tirar nenhuma utilidade, e
mantê-los significava arcar com as despesas inúteis.128 “Multidão de
gentes sem armas, sem vestidos e sem disciplina”,129 que “só para o
consumo tem préstimo”,130 capazes de causar mais danos do que os
próprios-castelhanos131 pela sua vagabundagem e mal proceder,132

forças de Minas, socorro a Laguna e prisão de traidores , 5-VI-1777, em:


DI , v. 42, 1903, p. 284.
131 , Carta do brigadeiro-governador do Viamão a Martim L.L. De Saldanha:
5-VI-1777, em: DI , v. 17, 1895, p. 304.
132 , “Eu que nenhuma utilidade lhe achei tomei a resolução de fazer retroceder os
ditos destacamentos, e os remeti para a sua respectiva capitania, para me livrar da
fome, que causaria nesta terra tanto homem vagabundo, sem nenhum serviço mais
do que aumentar neste continente um tão grande bando de ladrões, e malfeitores”.
Ofício sobre a partida de Minas Gerais para São Paulo de um corpo de 4
mil homens . 2-VIII-1777, em: DI , v. XXVIII , 1898, p. 344.
133 ,Carta de José Marcelino de Figueiredo a Martim L. L. De Saldanha. 13-III-
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os pobres farrapos humanos serviram contudo para muita coisa.


Após tripudiar sobre eles, as autoridades encontraram por fim uma
maneira de transformar o ônus da sua subsistência em utilidade
para o Estado: o governador de Viamão ficou com 140, que vestiu
e armou em duas companhias de caçadores;133 capitão-mor regente
da vila de Lages escolheu 200 e os enviou como socorro para Lagu-
na, e Martim Lopes sugeriu o aproveitamento de mais uns cem nos
trabalhos de “uma dilatada roça” feita com intuito de alimentar as
tropas.134
Nesta complicada relação entre o ônus e a utilidade representados
pela existência dos desclassificados, examinei os diferentes aspectos
que se reveste a utilidade, e a maneira como custeia, com frequên-
cia, o ônus. Por sua vez, este costuma ser, de maneira geral, associa-
do aos custos de reprodução e subsistência da população desclas-
sificada. Se os povos dão a seu rei “a utilidade conforme o uso do
seu viver”, há que atentar para os vadios, “que de alguma forma são 109
perniciosos ao Estado”.135 Os homens laboriosos – a quem se opõem
os desclassificados – não podiam suportar “o peso enorme da parte
dos vadios” – “gente volante, ou, como lhe chamam, de pé ligeiro”
–, que por incomodar a manutenção e romper equilíbrio dos negó-
cios, devia ser posta para trabalhar.136 Só assim se poderia evitar

1777, em: DI , v. 17, 1895, p. 308.


134 ,Para o mesmo vice-rei, sobre o retrocesso das forças de Minas, fa-
tura de roças no caminho do sol... 3-VI-1777, em: DI , v. 42, p. 275-6.
135 , José Joaquim da Rocha, ob.cit., p. 507.
136 ,Representação da Câmara de Mariana, p. 145 e 50 respectivamente. “Porque
é muito grande o número de gente ociosa, e de grande peso para os trabalhadores o
contribuírem estes tão somente com o quinto de S.Mjde”. – ibid, p. 150 e 151.
137 , Quintos do ouro em: RAPM, v.LII , 1898, p.75.
138 , Basílio Teixeira de Saavedra, ob.cit., p. 674.
139 , Cf. Fernando Henrique Cardoso, Classes sociais e História..., p. 113.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

que o ócio sobrepesasse o trabalho,137 perturbando o funcionamen-


to da economia, o rendimento dos quintos, o sossego da sociedade.
A gente forra e pobre, estigmatizada pela escravidão, poderia ter “a
louca opinião” de que não devia trabalhar,138 mas logo lhe caíam em
cima os agentes do recrutamento, os potentados em busca de asse-
clas, os proprietários de fazendas em busca de jornaleiros, as auto-
ridades administrativas que, para maximizar os lucros metropoli-
tanos, superexploravam tanto o trabalho escravo como o trabalho
livre. “Ruína dos Estados”, “canalha indômita”, “gente ociosa que só
servia para consumir víveres”, a Coroa entretanto se lembrava deles
nas horas de aperto, tivessem sessenta ou até cem anos. E lá iam eles,
nus, doentes, mancos, sujos, alquebrados, argamassa necessária à
consolidação das fronteiras, à continuidade do mando, à manuten-
ção do sistema colonial.
Mais do que em qualquer outro ponto da colônia, foram nu-
110 merosíssimos nas Minas, onde condições específicas, tanto infra-
-estruturais – analisadas neste capítulo – como superestruturais
– que serão tratadas a seguir – favoreceram a sua proliferação e,
ao mesmo tempo, os deixaram sem razão de ser. O seu número as-
sustador pesava por sobre a “parte não corrompida” da sociedade,
que assim se via compelida a encontrar uma utilidade para aquele
enorme manancial de mão-de-obra livre. A estrutura da economia
mineira, mais aberta e diversificada, propiciou condições – mesmo
que limitadas – para o aproveitamento desses homens, fazendo com
que o ônus dos vadios se metamorfoseasse em utilidade. Essa me-
tamorfose não era, entretanto, irreversível: de um momento para
outro, podia-se novamente sentir o peso dos vadios, aproveitados
quase sempre em tarefas secundárias; a exploração colonial seguia
sem eles, mas eles faziam parte da exploração colonial, eram por ela
gerados e colaboravam para a sua manutenção.
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Assim, não se pode dizer que fossem dispensáveis a persistência


da produção e da sociedade escravista:139 imbricados em seu seio,
preenchendo os interstícios deixados pelo trabalho escravo, con-
tribuíram para a construção, manutenção e derrocada do mundo
colonial. Negação do trabalho, trabalharam. Negação da revolta,
revoltaram-se com frequência e alimentaram quase todos os movi-
mentos regenciais. Negação da Ordem, embrenharam-se pelos ma-
tos no encalço de quilombolas e de índios bravos. Camada fluida,
indefinida, fugidia, imprecisa, espalhou contudo os seus borrões no
seio de uma sociedade estamental, e espraiando-lhe os contornos,
só nela pôde existir.
Longe de ser pacífica, essa existência teve grandes percalços, um
dos maiores tendo sido a inimizade constante das autoridades co-
loniais, do Poder Constituído que, através de medidas altamente
repressivas, nunca deixou de envolver os vadios com suas redes ten-
taculares. 111

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