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Fernanda Guarnieri2
Francisco Giovanni David Vieira3
http://dx.doi.org/10.1590/1413-2311.373.122078
The aim of this paper is to understand how practices of consumption and markets are instituted
and shaped through the mediation of networked food delivery service apps.As a theoretical
1
Recebido em 5/2/2022, aceito em 7/3/2023.
2
Universidade Estadual de Maringá – Programa de Pós-Graduação em Administração; Maringá – PR (Brasil);
https://orcid.org/0000-0001-5645-7657; fernandamguarnieri@gmail.com.
3
Universidade Estadual de Maringá – Departamento de Administração e Programa de Pós-Graduação em
Administração; Maringá – PR (Brasil); https://orcid.org/0000-0002-6204-0855 ; fgdvieira@uem.br.
REAd | Porto Alegre – Vol. 29 – N.º 1 – Janeiro / Abril 2023 – p.66-97.
background, the approaches of consumer and market practices (Constructivist Market Studies
- CME), articulated with actor-network theory and digitalization, were adopted.The research is
qualitative in nature and was conducted through a case study in the food delivery network. The
results presented were obtained from the thematic analysis of the data and showed that to
understand the changes that fall on an actor, it is necessary to understand the other actors and
the transformations they suffered and caused.It was noted how the digitalization process caused
changes in the constitution of the non-human actor, which, in turn, restructured the ways in 67
which translations occur in the investigated network. Moreover, the articulation of consumption
and market practices contribute to the expansion of the theoretical scope adopted in this
research, since to understand a given network, one must know its actors and their practices as
a whole.
Keywords: Consumption practices. Market practices. Actor-network theory. Delivery apps.
Digitalization.
INTRODUÇÃO
4
O número de usuários em redes sociais pode não representar um único indivíduo. Isso ocorre devido ao fato de
algumas contas representarem empresas, animais, lugares e outros.
5
O restante do tráfego ocorre com a seguinte distribuição: 41,4% notebooks e computadores; 2,8% tablets; e 0,07%
outros dispositivos.
REAd | Porto Alegre – Vol. 29 – N.º 1 – Janeiro / Abril 2023 – p.66-97.
tornaram-se tendência no que diz respeito à comunicação móvel (DOGRUEL; JOECKEL;
BOWMAN, 2015). Característica dos smartphones é o uso de aplicativos, que transformam o
telefone móvel, que passa de um dispositivo de comunicação para um computador pessoal
inteligente, com inúmeras funções (DOGRUEL; JOECKEL; BOWMAN, 2015;
WANG;PARK; FESENMAIER,2012).O aumento da capacidade desses celulares permite a 70
(1986) ao examinar a agência dos atores não humanos, compreende-se sua relação com os
consumidores e outros atores. Isso é ir para além das fronteiras que limitam os estudos dentro
da dinâmica da inovação e explorar outras implicações e contribuições que envolvem a
materialidade em estudos de práticas de consumo e mercados. Dessa forma, definiu-se o
objetivo de compreender como práticas de consumo e de mercados e como são instituídas e
moldadas a partir da mediação de aplicativos de serviços de entrega de comidas que operam em
rede.
As contribuições deste trabalho repousam, no primeiro momento, em aspectos teóricos,
ao destacar: i) como práticas de consumo e de mercado estão profundamente entrelaçadas entre
si, especialmente quando se trata de suas mediações por dispositivos digitais; e ii) como a
característica do ator não humano atua na reformatação de uma determinada rede. No segundo
momento, também apresenta contribuições que versam sobre o processo de digitalização, ao
afirmar a digitalização como um processo que impulsiona a simetria entre os atores da rede.
Em termos gerenciais, no terceiro momento, contribui na compreensão de como os aplicativos
digitais podem ser rentáveis e lucrativos para cidades de pequeno porte e interioranas.
1 BASE TEÓRICA
[…] ao abandonar o dualismo, nossa intenção não é atirar tudo na mesma panela e
apagar os traços característicos das diversas partes que integram o coletivo. Ansiamos
também pela clareza analítica, mas ao longo de linhas que não é traçada pelo polêmico
cabo de guerra entre objetos e sujeitos. O jogo não consiste em estender a
subjetividade às coisas, tratar humanos como objetos, tomar máquinas por atores
sociais e sim evitar a todo custo o emprego da distinção sujeito-objeto ao discorrer
sobre o entrelaçamento de humanos e não-humanos. O que o novo quadro procura
capturar são os movimentos pelos quais um dado coletivo estende seu tecido social a
outras entidades. (LATOUR, 2001, p. 222 e 223).
6
O conceito de translação é compreendido como uma ação, por meio da qual um ator move outro em um caminho
a partir de sua posição e objetivo original, levando-o a uma posição diferente ou para outros objetivos. Por isso,
refere-se aos movimentos dos atores, que ocorrem na rede em relação às transformações nos arranjos de atores
humanos e não humanos. Tais movimentos emergem dos interesses e das possibilidades dos atores, os quais
alteram, restringem e negociam com o objetivo de conquistar algo.
7
Convém destacar que o conceito utilizado de arranjo parte de Callon (2009) e Çalişkan e Callon (2010). Os
arranjos representam atos de elementos heterogêneos que se ajustam um ao outro em uma determinada rede, como
operadores das translações.
de mercados e os dispositivos são centrais para essa constituição, assim como moldam e são
moldados por práticas de mercado(GEIGER; KJELLBERG; SPENCER, 2012). Em vista disso,
a ênfase recai na troca de bens e não especificamente em seu consumo (HAGBERG, 2016).
Além disso, na perspectiva construtivista, a atenção é direcionada para as bases materiais da
capacidade de agência dos atores (NØJGAARD; BAJDE, 2021). Isso justifica o interesse em
compreender como as relações entre diversas entidades materiais são concretizadas por meio
de práticas de mercado, posto que essas últimas possibilitam a explicação de como
consumidores, bens, dinheiro, anúncios, empresas e outros são configurados no mercado
(NØJGAARD; BAJDE, 2021).
As práticas de consumo, por sua vez, envolvem componentes materiais que estão
incluídos em múltiplas práticas. Assim como Reckwitz (2002, p. 256) defende, os objetos são
“como portadores de uma prática”. Shove (2007), no mesmo sentido, afirmam que o objeto
não é um meio passivo de realização das práticas, pois ele co-constitui a própria prática. Essa
compreensão está em linha com a noção de arranjo, conforme mencionado anteriormente, por
isso, compreender práticas nas abordagens de consumo se faz necessário para a compreensão
de agência (HAGBERG, 2016).
Ao trabalhar com essas duas abordagens de práticas, evita-se a análise de um ponto
específico, e procura-se traçar como objetos, especificamente os aplicativos de delivery, estão
integrados em diferentes práticas, contribuem para as transformações destas últimas e, de forma
sincrônica, são transformados por elas.
Comum na literatura que abarca a abordagem de práticas de consumo é o papel dos
objetos. Os objetos, nesse sentido, são considerados como componentes materiais das práticas.
Eles são interligados com outros componentes, significados e materiais, resultando na inclusão
em diferentes práticas. Reckwitz (2002, p. 253) assinala que assim como os humanos, os objetos
são “portadores de práticas”. Shove (2007), em complemento, argumenta que os objetos são
elementos ativos na co-constituição de práticas.
Relacionado aos objetos, lança-se luz sobre os aplicativos digitais, uma vez que estes
provocam novos tipos de práticas de consumo, novos repertórios de capacidades, de habilidades
2 MÉTODO
análise, formar uma figura geral da unidade investigada. Para tanto, a rede de serviços de
entrega de comidas por meio de aplicativos foi o caso investigado, ou seja, cada grupo de atores
– humanos e não humanos – que compõem as subunidades de análises.
O aplicativo de entrega de comidas escolhido para investigação é o Aiqfome, criado há
mais de quinze anos, em 2007. Atualmente, a empresa do aplicativo registra mais de 23 milhões
de pedidos feitos anualmente e aproximadamente 1,2 bilhões de reais faturados pelos
restaurantes parceiros no período anual, de acordo com informações contidas no próprio blog
da empresa. Em vista disso, os critérios utilizados para a escolha dos atores humanos foram
aqueles que são consumidores, proprietários de estabelecimentos e entregadores que utilizam o
aplicativo, além dos responsáveis pelo desenvolvimento e gerenciamento do aplicativo. A
seleção destes ocorreu de forma proposital, por meio do contato dos autores da pesquisa com
cada um deles, e conforme a disponibilidade de todos, respeitando os critérios. O acesso aos
entrevistados ocorreu por meio de indicação ou por meio de contato inicial em redes sociais.
Para os estabelecimentos, especificamente, foram entrevistados aqueles que possuíam notas
acima de 4,5 nas avaliações do aplicativo.
As principais fontes de informações para a coleta de dados foram entrevistas,
observações e análise documental (DENZIN; LINCOLN, 2006; ROWLEY, 2002). Os dados
foram coletados em diferentes pontos no tempo e com diferentes informantes.No total foram
conduzidas 41 entrevistas, atores humanos de cidades do interior do estado do Paraná e do
estado de São Paulo. Ao todo, foram entrevistados atores de 12 cidades diferentes. A princípio,
as entrevistas foram planejadas para serem realizadas de modo presencial. Porém, devido ao
contexto de pandemia, apenas quatro entrevistas foram presenciais. As demais, foram
realizadas de modo remoto, por meio de ligações ou videochamadas. A primeira entrevista foi
realizada com a fundadora e diretora de operações da empresa do aplicativo. A partir disso,
foram entrevistados os responsáveis pelos restaurantes, entregadores, consumidores e usuários
do aplicativo. Os donos dos restaurantes e entregadores foram entrevistados em paralelo.
As observações, outra fonte de evidências em um estudo de caso(CRESWELL, 2007),
foram organizadas por meio de um conjunto de materiais oriundos de observações do aplicativo,
com todos os dados(FLICK, 2009), os arquivos foram importados para o software Atlas.ti, onde
foram armazenados e gerenciados todos os materiais empíricos. As categorias emergiram do
campo e, também, de conceitos principais da literatura teórica pertinente nesta pesquisa. Em
outras palavras, as categorias foram criadas conforme surgiam no processo de análise (modo
indutivo) e, ao mesmo tempo, conforme a base teórica para formulação de tais categorias (modo
dedutivo) (Braun & Clarke, 2006).Feito isso, todos os códigos foram organizados em
subcategorias, para então, organizá-los em categorias temáticas. Ao final dessa organização,
foram definidas 3 categorias: atores da rede, práticas de consumo e práticas de mercado,
conforme será apresentado na próxima seção.O objetivo, em toda a exploração e análise dos
materiais, foi o de encontrar o papel atuante do aplicativo – ator não humano – como mediador
na rede (Latour, 2001, 2012), as práticas de mercado e de consumo e seus desdobramentos.
A compreensão de uma determinada rede ocorre por meio de seus atores e de suas
respectivas ações, revelando as associações e interações estabelecidas entre eles (CALLON,
1986; LATOUR, 2012; LATOUR; WOOLGAR, 1997). É necessário destacar que a
apresentação de todos os principais atores se deve ao fato de que é impossível compreender
uma rede pela visão de somente um ator, conforme já mencionado por Latour (1990). Além de
que as especificidades de cada ator implicam na heterogeneidade dos mercados, que por sua
vez são continuamente formatados a partir da articulação entre atores (ARAUJO, 2007;
HARRISON; KJELLBERG, 2014).
Os principais atores que operam em redes de delivery de comidasão: o aplicativo, os
gestores do aplicativo e seus responsáveis, os consumidores, os representantes de
estabelecimentos e os entregadores.
O aplicativo de delivery Aiqfome surgiu em 2007, ainda em formato de website. No ano
de 2014, o aplicativo começou a operar em seu formato atual. Entre os aplicativos mais
buscados nas lojas oficiais de cada sistema operacional, o Aiqfome está entre os 8 mais
utilizado em 550 cidades do Brasil, estando presente em todas as regiões do país, em 22 estados.
O aplicativo Aiqfome é o único ator que tem relação direta com mais de um ator da rede,
sendo os usuários e os responsáveis pelos estabelecimentos. O aplicativo congrega todos os
restaurantes cadastrados com seus respectivos cardápios e todas as informações necessárias ao
conhecimento do usuário, como: horário de atendimento, endereço, avaliações, tempo médio
para a entrega da comida e opções de pagamento. Com um único cadastro do usuário, o
Aiqfome armazena todas as informações para que no próximo pedido não haja necessidade de
nova inserção de dados.
Os principais atores humanos que atuam de forma coordenada para funcionamento do
aplicativo são seus gestores e demais membros de todas as áreas, que atuam na empresa do
aplicativo e os licenciados, responsáveis por suas respectivas cidades. Os licenciados são atores
que atuam juntamente com os responsáveis e desenvolvedores do aplicativo, e podem ser
compreendidos como “os donos do Aiqfome em sua respectiva cidade”(Entrevistada 1,
fundadora do App). A razão da escolha pelo trabalho com licenciados é justificada pelo melhor
gerenciamento dos estabelecimentos, uma vez que havendo uma pessoa responsável em cada
cidade agiliza a comunicação e atendimento às demandas.
O uso do aplicativo de delivery é uma prática que foi e continua sendo desenvolvida
pelos usuários. Isso porque a demanda de pedidos para entrega, mesmo que ainda pouco
praticada, já estava presente no cotidiano dos usuários, apesar de ocorrer por outros meios. Até
o contato inicial com o aplicativo, os mesmos usuários mantinham o hábito de realizar pedidos
por meio de ligações telefônicas ou por meio do aplicativo de mensagens WhatsApp. Há, ainda,
aqueles que acessavam os buscadores na internet, como o Google, ou páginas comerciais dos
restaurantes em redes sociais, para verificar o cardápio e depois realizar o pedido por ligação
ou mensagem.
endereço, troco. A gente não gosta de fazer esse tipo de coisa. Então, era meio que rotativo,
cada hora era um que fazia.” (Entrevistado 41, consumidor). Além do rodízio de ligações entre
as pessoas, o fato de as informações não estarem concentradas em um só lugar demandava mais
tempo para a conclusão do processo do pedido e, até mesmo o interesse, por parte do solicitante,
em querer realizar um pedido por esses meios era menor.
Em vista disso, os pedidos realizados por meio de ligações não eram tão corriqueiros
quanto é observado hoje. Nota-se que os pedidos ocorriam mais aos finais de semana e para
refeições entre familiares e amigos. Diferentemente do que ocorria, atualmente há a facilidade
de acesso e disponibilidade de informações que podem ser encontradas no aplicativo de delivery
de comida e, que, consequentemente, provocam mudanças nas práticas cotidianas dos usuários.
Para os usuários, o uso do aplicativo resulta em praticidade, facilidade, agilidade,
comodidade, conforto, prazer, felicidade e alívio. Tais desdobramentos podem ser
compreendidos por meio da execução e da sensação no que tange ao uso do aplicativo de
delivery de comidas. A execução diz respeito ao modo como o uso do aplicativo ocorre no
cotidiano dos usuários, que utilizam as definições que remetem à fácil utilização, à ausência de
obstáculos ou possíveis dificuldades de uso, à funcionalidade e à rapidez, que caracterizam o
aplicativo de delivery de comida. Quanto à sensação, está relacionada ao sentimento de
satisfação. Em outras palavras, o fim último resultante do uso do aplicativo – a refeição de
determinada comida – provoca sensação de bem-estar, merecimento e conveniência ao usufruir
deste serviço de delivery e satisfazer uma necessidade e/ou desejo. Por conta disso, é algo
agradável, confortável e prazeroso.
Observa-se que os desdobramentos de uso do aplicativo são semelhantes aos motivos
que levaram os usuários a começar a utilizar o aplicativo. Ou seja, a percepção inicial manteve-
se ao longo do tempo de uso e alcança o propósito do aplicativo entre os atores na rede de
delivery de comida. Os motivos que levaram os usuários a usar o aplicativo foram: ofertas de
descontos; não precisar falar ao telefone; fazer as escolhas no próprio tempo, seja de forma
rápida ou com mais tempo e sem pressão para o fechamento do pedido; comparar pratos e
preços entre os estabelecimentos cadastrados; pagar online, diretamente pelo aplicativo; ter
as refeições de prato feito, como a marmitex nos horários de almoço. Já nos finais de semana,
predominam fast-food, comidas árabes, comidas japonesas, pratos vegetarianos, porções e
massas, como, por exemplo, as pizzas. Há, ainda, alguns casos em que ocorrem a demanda de
pedidos em horários alternativos, como em períodos vespertinos. Neste caso, os pedidos são
para a refeição de café da tarde ou um lanche rápido em dias úteis. Os pratos pedidos mais
comuns entre os entrevistados são açaí, pastel e sobremesa, como o sorvete.
Observa-se as diferenças das refeições em horários e dias. As refeições em horários de
almoço e em dias úteis ocorrem por praticidade. São as refeições de culinária do cotidiano
brasileiro, como: arroz e feijão. Tais refeições são realizadas sem a companhia de outra pessoa,
muitas vezes pela própria rotina do trabalho diário, pois o tempo despendido com a refeição é
menor e precisa ocorrer de modo mais ágil. Já as refeições em horários noturnos, o usuário se
permite apreciar pratos diferentes, ao dispor de mais tempo e, em muitos momentos, estar na
companhia de uma ou mais pessoas. Aqui, não ocorre a refeição por si só, como uma prática
necessária para a sobrevivência humana, mas está inserida em um contexto diferente, como o
descanso e o lazer.
Ao adicionar mais um aspecto – o local de entrega da comida – ao que tange às refeições
dos usuários, observa-se que os horários das solicitações dos pedidos têm relação com o destino
da entrega. As refeições realizadas durante o almoço ocorrem no momento do expediente de
trabalho e, dessa forma, são entregues nos locais de trabalho ou em casa para aqueles que
trabalham em home office. De modo predominante, as refeições para o jantar ou aquelas em
horários alternativos são solicitadas para serem entregues nas próprias residências.
Outro elemento a ser considerado nas refeições dos usuários é o cupom de desconto. Os
cupons são enviados por meio de notificações aos usuários que possuem o aplicativo instalado
em seu aparelho de celular. Ao clicar na notificação, o aplicativo é aberto e o usuário é
direcionado para a tela com todos os estabelecimentos que estão trabalhando com a promoção
relacionada ao cupom de desconto recebido. Após isso, o usuário poderá proceder com o seu
pedido.
delivery.O fato de incentivar o uso do delivery online foi um importante impulsionador para o
processo de construção do que hoje é o aplicativo de delivery. Isso vai ao encontro do que
Callon, Méadel e Rabeharisoa (2002), explicam sobre as estruturas já existentes no mercado
serem os limites, mas, também, serem fontes de novos esforços para a sua reformatação.
Já havia uma estrutura entre os estabelecimentos que forneciam refeições por meio de
delivery. Essa estrutura desdobrava-se em diferentes práticas, como, por exemplo, o
atendimento do telefone, a anotação manual do pedido e sua organização, o planejamento de
rota e demais processos. No entanto, o mercado é capaz de absorver e reter novas práticas,
devido à sua característica de plasticidade (NENONEN et al., 2014). Por isso, as características
dos atores sofreram mudanças e o processo de oferta e demanda foi alterado.
Neste ínterim, lançando luz sobre o aplicativo, este contribuiu para moldar as diversas
práticas em que está integrado, assim como foi, simultaneamente, moldado pelo contexto da
rede. Ainda em um contexto incipiente da digitalização dos estabelecimentos, o uso do delivery
online teve de ser ensinado. Para chegar ao que existe atualmente, o aplicativo sofreu constantes
mudanças, as quais destacam-se: a sua versão desktop, o seu modelo de expansão para outras
localidades além da cidade de origem, a sua primeira versão como aplicativo digital e, desde
então, reformatações atreladas ao contexto digitalizado e às práticas de mercado e de consumo.
Os principais eventos que ocorreram nos últimos anos com o Aiqfome foram:i)2007: Aiqfome
na versão desktop e restaurantes com sinais precários da digitalização; ii) 2010: modelo de
expansão com licenciados; iii) 2014: primeira versão do Aiqfome em aplicativo; iv) 2020:
crescimento e expansão nacional do aplicativo; e v) 2021: Aiqfome reconhecido como a 3ª
maior plataforma de delivery do Brasil e o 1º em cidades do interior.
O foco de atuação geográfica do Aiqfome é em cidades do interior, em municípios com
até 150 mil habitantes. A expansão ocorre por meio da estratégia de trabalhar com o licenciado.
Essa estratégia de trabalhar com um responsável em cada cidade emergiu da necessidade de
investimentos. No caso, o Aiqfome não trabalhava com investimentos externos, por isso vender
a licença foi o caminho encontrado para expandir com o dinheiro próprio, sem apoio de fundos
de investimentos.
6 DISCUSSÃO
na qual a configuração de um ator influencia em outro, como em uma ação relacional, conforme
Latour (2001, 2012). Esta rede, objeto de análise nesta pesquisa, está representada com o
objetivo de capturar os principais atores que constituem a rede de serviços de entrega alimentar.
Convém explicar que as setas em linhas contínuas representam a interdependência direta entre
os atores. Já as linhas pontilhadas representam relações indiretas que existem, mas praticamente
de modo invisível, posto que o aplicativo é o principal mediador das relações entre os atores.
anteriormente, e então, modifica os dois elementos ou agentes que estão envolvidos na mesma
relação. Os aplicativos, em seu papel como ator não humano na rede de delivery de comidas,
amplificaram as mudanças na rede em que operam. Ao analisar como as mudanças evoluíram
ao longo do tempo, pode-se retomar alguns anos atrás, quando os pedidos de serviços de entrega
eram solicitados por meio do telefone. A forma de realizar o pedido com o mesmo objetivo –
receber uma refeição em determinado local – foi moldado. Simultaneamente ao processo de
evolução do aparelho celular, que passou para um smartphone, os aplicativos de entrega
surgiram. Por meio da digitalização, o sistema de solicitação e entrega de pedidos foi moldado
a partir do que já ocorria anteriormente. E isso tomou novas formas com a proliferação dos
dispositivos móveis na vida cotidiana dos usuários.
De certa forma, cabe aqui recuperar a ideia de arranjos (ÇALIŞKAN; CALLON, 2010;
CALLON, 2009), uma vez que o dispositivo anteriormente utilizado não desapareceu, mas foi
transformado em um novo tipo, com novos ajustes e configurações que provocaram a
reorganização de associações na rede. Com a crescente tecnologia digital, os smartphones
representam os transmissores de novas capacidades de comunicação, que foi estendida para os
diferentes atores e a inclusão de diversos aplicativos. O uso cotidiano desses dispositivos
digitais tem impacto direto na maneira como os atores se relacionam com os seus associados.
Com a digitalização do consumo ocorreram (estão ocorrendo) mudanças nos papéis e
responsabilidades, assim como na capacidade de agência entre os atores (HAGBERG;
SUNDSTROM;EGELS-ZANDÉN,2016). Os limites que impunham maior domínio para o lado
dos fornecedores foram desfocados, reduzindo a assimetria de poderes em uma mesma rede.
Dito de outro modo, a relação fornecedor-consumidor sofreu transformações. Isso porque a
proliferação da tecnologia digital, internet e, consequentemente, dos dispositivos digitais está
relacionada ao crescimento do poder do consumidor, reduzindo a assimetria existente
(LABRECQUE et al., 2013).
A partir das novas configurações, diferentes soluções de serviços de entrega emergiram
envolvendo o consumidor, o fornecedor e o entregador.Além disso, ocorreu também a
digitalização dos atores, posto que a natureza dos atores humanos foi potencialmente
aplicativo de serviços de entrega, que age coletivamente com os atores humanos. Embora a
agência desse aplicativo dependa de uma predefinição, a qual atua a partir de planejamento de
programadores, designers e discriminação dos algoritmos; há o envolvimento e análise dos
dados que moldam as informações que são/serão reproduzidas para os demais atores, seja para
aqueles que realizarão seus pedidos, aqueles que farão as entregas e outros, que serão
responsáveis pela produção do produto a ser entregue.
Portanto, com a digitalização das práticas de consumo e mercados, novas tecnologias
emergem, novos mercados e outras mudanças ocorrem. Tudo isso instituído pelo aplicativo
digital utilizado pelos atores que integram uma mesma rede. No que tange especificamente aos
mercados, nota-se dois exemplos de modelos de negócios que se desdobraram a partir das
práticas dos atores que operam na rede de delivery de comidas: modelo baseado em um
processo de segmentação demográfica e modelo de gestão por meio de licenciados. Ambos os
modelos provocam a formatação de mercados por meio das práticas de mercados. São práticas
emergentes que engajaram os atores para a formatação desse mercado
(ARAUJO;KJELLBERG; SPENCER, 2008).
O modelo de negócios a partir da segmentação demográfica, com foco em cidades do
interior, remete à uma diferenciação de atuação do Aiqfome. Há uma definição e construção de
espaço, direcionando os arranjos constituídos pelos atores da rede (ARAUJO, 2007;
KJELLBERG; HELGESSON, 2006). É comum que os grandes centros urbanos sejam os
escolhidos para campo de atuação de diferentes empresas, principalmente, aquelas relacionadas
aplicativos e tecnologias. No entanto, observa-se que a rede de delivery de comida foi
reorganizada de modo a trazer rentabilidade financeira em locais ainda não explorados. O
modelo de negócios, a partir da gestão de licenciados, complementa o primeiro modelo
apresentado. Além de ser uma forma de garantir a sustentabilidade financeira para a gestão do
aplicativo, contribui para sua expansão territorial.
Ao tratar de cada ator, observa-se as diferenças de interesses ao operarem em rede. Para
o aplicativo, o foco está no número de estabelecimentos cadastrados, opções de segmentos de
estabelecimentos, volume de uso de cupom de desconto e outros. Para os restaurantes, o foco
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
90
as relações entre os atores foram formatadas e ficou explícito a simetria entre todos eles num
contexto digitalizado. Anteriormente, numa rede linear havia uma assimetria, onde
ascapacidades de agência do usuário e do fornecedor eram maiores. Numa rede com relações
interdependentes, como a que foi investigada, ambos acabam tendo uma capacidade de agência
menor quando comparado aos processos anteriores. O aplicativo digital, que agora atua de
forma direta nas relações dos atores, possibilita o acesso a diferentes opções, até mais do que o
usuário ou o fornecedor conhece ou imagina, a partir de suas configurações, que advêm da sua
programação artificial, em decorrência da digitalização.
Em termos gerenciais, identificou-se como os aplicativos digitais podem ser rentáveis e
lucrativos para cidades de pequeno porte e interioranas. O Aiqfome é todo desenvolvido com
foco em modelos de negócios específicos para cidades pequenas. E para este fim, o
conhecimento sobre os atores é imprescindível, como, por exemplo, seu perfil, estilo de vida,
objetivos e modos de comunicação. Tal conhecimento resulta na forma de comunicação
específica entre os atores, conduzida pelo próprio aplicativo e demais atores que o estruturam
internamente. Por isso, as particularidades de um estilo próprio de comunicação advêm de
estratégias que estão relacionadas ao objetivo final de lucratividade e rentabilidade.
Ademais, considerando o contexto de isolamento social em que a sociedade se
encontrou, principalmente nos meses que decorreram no ano de 2020, o aplicativo de delivery
foi de grande destaque para a sociedade. Os aplicativos foram a saída para muitas dificuldades.
Por um lado, foi a alternativa adotada por usuários como forma de ter acesso a alimentos e
outros recursos necessários para a sobrevivência. Por outro lado, impulsionou o processo de
digitalização de estabelecimentos, o surgimento de novos estabelecimentos e alternativa de
trabalho para entregadores.
Para pesquisa futuras, sugere-se a investigação da construção e programação da
inteligência artificial do aplicativo com vistas estratégicas para a sua atuação no mercado.
Também, pode-se analisar, de forma comparativa, as mudanças decorridas do processo de
logística própria ofertada pelos aplicativos.
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