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Recife
2002
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
Recife
2002
DEDICATÓRIA
A Carlos Afonso, companheiro de todas as horas, parceiro na vida, nas buscas e no amor, pelo
estímulo constante e pela ajuda incondicional nos momentos mais árduos da realização deste
trabalho.
Às minhas filhas Luana e Laura pela vivência de muitas histórias e construção de um grande
amor.
À minha mãe, pelo incentivo e presença constante, pelas histórias que embalaram a infância e
me garantiram o prazer pela leitura.
Ao meu mestre e orientador, Professor Doutor Sébastien Joachim, por mais uma vez poder
com ele compartilhar minhas histórias, assegurada por sua competência intelectual, seu rigor
científico e sua grandiosidade humana. Sébastien, obrigada!
À minha avó Eula que entre um segredo e outro foi ensinando-me o delicado e misterioso
mundo das palavras.
À minha tia Colija Pacheco por ter sido referência de amor, doação e esperança e, também,
passaporte para muitas conquistas.
À minha irmã, Conceição, pelos momentos da infância e pela cumplicidade afetiva. Estamos
juntas na “chuva com sol e festa de rouxinol”, nos nascimentos e casamentos...na vida e nos
caminhos da alma.
À Norma Menezes pelos laços construídos, pela amizade alinhavada no dia-a dia de muitas
conversas, mas principalmente por ter apresentado-me à beleza e a grandeza que existem em
muitas das pequenas coisas que pontuam a vida. Amiga, obrigada pela força e credibilidade
durante todo o percurso do desenvolvimento destes escritos.
À Márcia Basto, pela amizade de sempre.
À Elizabeth Cavalcanti, pelo respeito e amizade que nos une.
A Luiz Otávio de Melo Cavalcanti pela confiança e respeito ao ajudar-me na construção de
um tempo dividido entre o desempenho das minhas funções no DIARIO DE PERNAMBUCO
e a realização do curso de Doutorado.
À Cleide Delmácia, pela colaboração.
À Universidade Federal de Pernambuco, em especial ao Programa de Pós-Graduação em
Letras e Lingüística por ter possibilitado a realização de um desejo pessoal e compromisso
profissional: ampliar a produção dos estudos e discussões em torno dos contos de fadas no
âmbito da academia.
Às professoras Nelly Carvalho e Luzilá Gonçalves pela competência e sensibilidade com as
quais sugeriram mudanças e apontaram caminhos durante o Exame de Qualificação. As
observações foram fundamentais para a conclusão destes escritos.
Aos alunos de Pós-Graduação de Literatura Infanto-Juvenil da FAFIRE, pelas trocas e
aprendizado.
À Inês Fornari, pelo incentivo.
À Laura Cardozo pela amizade, além de muitos momentos onde pude reconhecer a dimensão
da sua sensibilidade.
À Cristhianni Beserra com quem pude contar com a acolhida imediata para a reorganização
dos texto que compõem esta tese.
À Diva e Eraldo pela constante disposição em atenuar os inúmeros problemas que surgem no
decorrer dos cursos de pós-graduação e pela cordialidade com a qual sempre me acolheram.
A Lucas, representando todas as crianças, pela inspiração diária e a crença permanente de que
devemos fazer das narrativas infantis uma janela para o mundo.
Finalmente, a todos que direta ou indiretamente colaboraram com este trabalho.
SUMÁRIO
RESUMO...................................................................................................................... 08
RÉSUMÉ...................................................................................................................... 09
ABSTRACT................................................................................................................. 10
INTRODUÇÃO........................................................................................................... 11
RESUMO
RÉSUMÉ
ABSTRACT
Through the critical analysis of the following narratives Vasalise: the Wise, Tom
Thumb, The Juniper-Tree and Beauty and the Beast, we aim to the fact that the Fairy tales
support themselves in a symbolic experience leading to the Me and to the Other, in a way they
can meet further in a dimension characterized by the fiction and the Art itself.
Viewing Fairy Tales as a road to the soul, we assure the “Love-Pain” as a passage
to an endless search which consists in letting see known-strangers that live inside us as
people in continuous search for happiness.
Through these tales and authors, which support us between the literature and
psychoanalysis besides the ones mentioned before, we took as reference Bruno Betellheim,
Sheldon Cashdan, Melanie Klein, Maud Mannoni, Alfredo Garcia-Roza, among others, to say
that tales enchant people because they teach us that life is an eternal search, challenge and
capture in a way that it gives a sense to life and without this sense we would never get a
positive resolution to our conflicts.
Reading, telling or analysing a fairy tale is a very difficult task due to the
complexity of the human being’s life. Tales demand a look to the inner. This way, we invited
the look of many authors wishing to see better the place where the body speaks. It is in this
area where the myth, the legend, the fable and the fairy tales as well as the “once upon a time”
of all our lives are born.
Due to this, since the world has begun, stories exist and fairy tales are one of the
highest symbolic expressions that the good wins the bad, that the word saves and gives hope.
Fairy tales teach us that we can be saved by love, although pain may occur.
INTRODUÇÃO
11
INTRODUÇÃO
A literatura é para a criança um espaço aberto no qual de forma dinâmica ela pode
se apropriar da realidade e desenvolver seu potencial criativo, resignificando assim o sentido
da sua existência. Os contos de fadas podem funcionar como passaporte para uma vida
interior mais “compreendida’, pois cada personagem traz em sua história de vida uma marca
que transcende a realidade textual e se faz presente no sentimento de cada leitor.
A Literatura faz compartilhar o mundo, pois com o leitor divide seu território e o
autoriza a “arriscar-se” com o Outro na dimensão da alteridade que é o espaço de conquista de
autonomia.
Dessa forma, qualquer pesquisa científica que lance um olhar para a Literatura
Intanto-Juvenil deve assumir os contos de fadas como princípio fundamental da formação de
crianças leitoras, levando em consideração não apenas seus aspectos de fantasia e
encantamento, mas principalmente, o poder de lançar uma provocação, um desafio que
transita entre o prazer e desprazer.
Por isso aproveitamentos para realizar uma análise de alguns textos que por seu
teor de crueldade sofreram censura por parte daqueles que com a “intenção de educar”
suprimiram dessas narrativas o poder de fazer ver, para além do prazer. São histórias que vão
da perda à conjunção amorosa, do corpo à alma, pois o sentido está no “alhures” de cada
abandono, de cada prova superada, de cada partida, de cada passagem e celebração. Em cada
personagem uma vida que se vive, um sentimento reatualizado, uma morte, um nascimento,
uma dor e um amor.
É necessário enfatizar o fato de que a literatura produzida para a infância tem sido
alvo de investigação de diversos campos do saber, pois trata-se de interrogá-la no âmbito da
eficiência do seu caráter de literariedade, mas também com questões da psicologia e
sociologia. O fato é que cada vez mais levamos em consideração que as crianças precisam ter
acesso aos textos de boa qualidade e se sintam instigadas à leitura como lugar de
intersubjetividade, portanto espaço simbólico, lúdico, dinâmico e fantástico para que se possa
ver a realidade a partir de um mundo resignificado pela palavra.
Escolhemos falar dos contos de fadas porque faz parte de uma literatura que chega
cedo à vida da criança, além de ser uma das mais ricas expressões simbólicas. Nesse espaço
de representação desdobra-se um mundo interior e exterior a ser revelado a cada dia e etapa
de crescimento.
A nossa investigação aponta para o fato de que os sentimentos de dor e amor são a
matriz de onde partem e convergem todas as narrativas dos contos de fadas, a dupla
desencadeadora da dramaticidade desses textos.
assim, para aprofundar os afetos das personagens, ao psicanalista Juan-David Nasio. Ele, situa
a dor e o amor na base de todos os sentimentos:
“Não existe afeto puro, pois ele é sempre reativado por uma
fantasia, expresso por uma palavra e motivo de uma
conduta(...) A dor inconsciente não é uma sensação sem
consciência, mas um processo estruturado como uma
linguagem. (...) Todo afeto doloroso é a revivescência de uma
antiga dor traumática.”1
O conto de fadas como narrativa estruturada a partir de um fio popular trata da dor
e do amor de forma muito singular, amiúde maniqueísta, e com final feliz. As personagens
que odeiam e sofrem conseguem sempre pela travessia de um estado caótico, o seu objeto de
desejo. Portanto, a visão finalista incorpora uma passagem iniciática, que implica uma
axiologia.
Quando uma criança entra em contato com esse gênero da literatura, tem a
possibilidade de estar diante de si mesma, mergulhada no seu mundo interior, identificando-se
com o bem e o mal, enfim aberta a tudo aquilo que a provoca no seu afeto e sensibilidade.
Refletir sobre os aspectos da dor e do amor nos contos de fadas é também uma
maneira de procurar compreender por que as crianças do mundo inteiro e de todas as épocas
se encantam com essas histórias e no que a leitura dessas narrativas pode contribuir para uma
vida mais feliz.
1
NASIO, Juan-David. O Livro da Dor e do Amor. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, pp. 83, 84. (Série
Transmissão da Psicanálise).
14
São essas fantasias originárias de que fala Freud que impulsionam o surgimento
dos inúmeros sentimentos que definem a afetividade humana, fruto de uma falta primeira e
congênita, resultado de um estado lacunar que é preciso preencher. Nesse sentido, os contos
podem desempenhar a função de provocar no leitor sentimentos de identificação, de projeção
no outro que resulta num despertar a si mesmo. A literatura tem o poder de nos fazer ver o
outro semelhante em nós, podendo exercer um papel fundamental para o desenvolvimento da
criança e do adolescente.
A reatualização das fantasias arcaicas faz com que o leitor se identifique com a
situação sugerida pelo conto e busque na “personagem” forças para superar as provas e vencer
o caos interno, construído a partir de sentimentos como culpa, rejeição, medo, angústia,
ansiedade, raiva, inveja, enfim dor. Mas, sobretudo o leitor aprende que é possível lutar contra
o mal e buscar uma vida feliz, onde os sentimentos positivos que geram compensação, alegria
e felicidade nos asseguram de um bem maior que está na base do amor.
2
Idem, ibidem, pp. 127, 130.
15
3
GILLIG, Jean-Marie. O Conto na Psicopedagogia. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1999, p. 68.
16
Nos importa levar ao conhecimento das pessoas que se interessam pela Literatura
Infanto-juvenil quanto os contos de fadas são importantes para a formação do leitor infantil,
na medida em que a representação literária demonstra ser um valioso instrumento de
humanização.
Por isso, decidimos apoiar e confrontar nossas conjecturas sobre a aliança entre a
literatura e a psicanálise, sugerindo algumas posições de Bettelheim, mas com a chancela de
Jean - Bellemin Nöel. Este estudioso francês é um dos melhores conhecedores do campo
psicocrítico. Ele dotou a psicanálise literária de um estilo e apropriação, olhar que não perde o
seu verdadeiro sentido do seu objeto de estudo, situando-se na força simbólica da literatura.
Em sua obra (Psychanalyse et Littérature, 1978), ele aponta para os estudos psicanalíticos que
trabalham no sentido da psico-crítica literária, confirmando suahipótese de que a literatura
consiste não somente em fazer ver o “outro”, mas especialmente ver o “outro em nós”.
Entendemos que o nosso objeto de pesquisa impõe uma certa incursão pelo
discurso veiculado por vários campos do saber, pois não podemos compreender a
complexidade da literatura produzida para crianças e jovens sem nos apropriarmos das
ciências que se ocupam em estudar e traduzir o desenvolvimento social e afetivo dos mesmos,
4
Idem, ibidem, pp. 74, 75.
18
como a psicanálise e a pedagogia. Contudo, não devemos perder de vista que nos contos de
fadas destaca-se:
Ora, o leitor deve ser um produtor de sentido, deve buscar no texto aquilo que
garanta uma experiência de transcendência e resignificação da realidade. Entretanto, somente
os textos que contém seu fio narrativo dentro de um padrão estético de qualidade podem
colocar o leitor numa situação de descoberta e transformação.
A boa narrativa sustenta-se por meio de seus recursos estilísticos entre os quais
ocupa o primeiro plano, o poder da metáfora. Pois ela, se instaura num mundo inusitado e
surpreendente no qual o leitor é desafiado na sua visão semântica. O desafio é um dos
principais componentes da literatura, pois o leitor deve ser instigado no sentido de ir buscar
no texto aquilo que se pode chamar de “o mais além”.
5
AMARILHA, Marly. Estão mortas as fadas? Literatura infantil e prática pedagógica. Rio de Janeiro: Vozes,
1997, p. 18.
19
Nesse jogo estabelecido entre texto e leitor surge o desejo de ser no outro, pois
este pode restituir-lhe a própria imagem, na medida em que o leitor identifica-se com o
personagem em tudo aquilo que resulta como enredo do destino humano.
6
Idem, ibidem, p. 19.
20
A justificativa para tanto interesse é norteada por inúmeras hipóteses, desde as que
percebem a influência dessas narrativas para a construção do imaginário popular e sua
interferência no conjunto de ideologias que fazem o social, até a interpretação simbólica
desses textos e sua ampla atuação no psiquismo das crianças. Dessa maneira, consideramos
que seja pertinente recorrer à análise simbólica dos vários elementos que aparecem nos contos
que nos propomos a interpretar, pois levamos em consideração que as palavras utilizadas no
contexto literário são mais do que expressão do desejo de comunicar, exatamente porque
possuem a força da metáfora, sendo mais do que signos elas são significantes que remetem a
um sentido, pois:
21
A literatura e a psicanálise estão unidas por um fio condutor único que é a palavra,
portanto temos aqui o interesse de focalizá-la do ponto de vista da sua função simbólica,
daquilo que está na sua origem, mas impossível de apreensão total, mas que por outro lado
nos remete a um significante essencial e que faz parte da sua natureza de símbolo.
7
NASIO, Juan-David. Op. cit., p. 150.
22
8
GILLIG, Jean-Marie. Op. cit., p. 70.
23
questões foram superadas e hoje, assistimos o seu reconhecimento tanto pela academia quanto
pelos leitores de maneira geral.
O fato é que a Literatura Infantil alcançou seu status de obra de arte, mas ainda é
vista por muitos, somente como objeto lúdico que proporciona ao leitor infantil o prazer do
jogo e da brincadeira. Então, se faz urgente a discussão em torno dessa produção que mais do
que brincadeira, tem a capacidade de nos remeter para o complexo universo da linguagem,
sobretudo para aquilo que nos constitui como sujeitos simbólicos. Assim, a nossa proposta de
discussão baseia-se na relação da literatura com outros discursos que permeiam a realidade
factual para melhor compreendê-la e transformá-la. Entendemos que o espaço do discurso
literário é campo fértil para a emergência de vários sentidos, por isso as nossas suposições se
baseiam no intercambiamento da literatura com outros dizeres, mais especificamente com a
psicanálise e a sua leitura dos contos de fadas.
seguir o modelo de análise sugerido por Nöel, não devemos reduzir nosso campo teórico de
atuação, mas ampliá-lo na medida em que:
Como a psicanálise, a literatura nos faz ver diferente e por isso ela seduz. Para
viver nessa realidade simbólica é preciso aprender a olhar, a ver, a desviar-se do banal, a ter
“olho” no corpo todo. Isso não é a função escópica que nos dá, pois o olhar sensível faz parte
da nossa competência e sensibilidade simbólica. O olhar ao qual nos referimos é captura do
invisível, somente mediado pela largueza da linguagem artística e nesse sentido acreditamos
ser fundamental que as nossas crianças tenham a possibilidade de conhecer os contos de fadas
para que aprendam a olhar para dentro, podendo reconstruir a realidade externa e ampliar a
visão de mundo.
9
OSTROWER, Fayga. Acasos e Criação Artística. Rio de Janeiro: Campus, 1995, p. 20.
25
que os conhece. Nesse espaço do “faz de conta” se pode tocar nos sentimentos mais íntimos,
nos amores mais sentidos, desejos mais estranhos e impossíveis. Desse espaço, ninguém sai
igual, ileso ou impune. Esse é o mundo onde a palavra tece o destino de todas as dores e
amores. Essas narrativas, aparentemente inocentes, são campo de batalha e confronto, mas
também de prazer e fruição, assim extrapolam o maravilhoso para compor cenas inusitadas do
nosso mundo interior. As histórias são tecidas com os mesmos fios, pois todas falam sempre
de um lugar da alma, onde a dor e o amor são base de tudo: do bem e do mal. Assim, nossas
análises tomarão como base as considerações de Juan-David Násio sobre os vários aspectos
que giram em torno da dor-amor. Os contos que nos propomos analisar estão repletos de
metáforas, capazes de nos levar do sentimento doloroso marcado por inúmeras perdas, até
aquilo que percebemos como travessia para o amor e portanto, para a transcendência.
Sendo assim, buscamos realizar uma análise dos contos de fadas: Vasalisa: a
sábia, O Pequeno Polegar, O Junípero e A Bela e a Fera, enfatizando aquilo que para nós é
importante na medida em que, pode produzir um efeito no sujeito leitor, enquanto sentido e
possibilidade. Portanto, qual mensagem subliminar existe nestes contos e qual o poder de
transformação e redimensionamento existencial os mesmos podem sugerir, estas são questões
que desejamos, aqui, aprofundar.
10
MAINGUENEAU, Dominique. O Contexto da Obra Literária. Coleção Leitura e Crítica. São Paulo: Martins
Fontes, 1995, p. 9.
26
repercussão social. Certamente, que eles podem ser assumidos em toda a sua força simbólica
influenciando a vida psíquica e afetiva da criança. Por isso, a importância acentuada de
manter na sociedade tecnológica e destituída de valores significativos, toda a riqueza do
imaginário presente nos contos.
No caso de Vasalisa: a sábia esta situação instaura-se por meio de uma marca
bastante forte e que serve como travessia para todo o desenrolar da história. No entanto, o que
a torna particularmente especial é o fato da protagonista conseguir a superação da sua dor por
meio de um objeto transacional, que é seu consolo e apoio no momento em que precisou
superar as duras provas impostas pela terrível Baba Yaga.
Essa é uma narrativa cuja a dimensão da dor é sublinhada por intensas ameaças de
ruptura como o abandono na floresta, além do corte essencial para que a criança supere o
conflito edipiano. Falaremos, então da Metáfora Paterna proposta por Freud e revisitada por
outros autores, dando ênfase à interdição como lei simbólica fundamental, pois tudo isso faz
parte da dor de crescer. Superar o conflito edipiano, talvez seja um dos maiores desafios para
que se obtenha o prazer de vencer. Assim, suportamos nossas hipóteses baseados no modelo
analítico de Bruno Bettelheim, mas sem perder de vista os conceitos sobre a dor e o amor
reelaborados por Juan–David Nasio.
fadas, tais como rejeição, canibalismo, a mãe-má, disputa entre irmãos, pai ausente e retorno.
Entretanto, no caso deste conto a dor apresenta-se de forma extrema, consubstanciando-se na
morte e destruição física do protagonista e na sua absorção canibalesca pelos demais
personagens.
De Vasalisa à Bela e a Fera, nos deparamos com um trajeto marcado pela dor e
pelo amor, sentimentos aparentemente antagônicos, mas que se revelam complementares
28
como duas faces da mesma moeda, pois como é dito por Nasio: “A dor só existe sobre um
fundo de amor”.11
11
NASIO, Juan-David. Op. cit., p. 18.
CAPÍTULO 1
e Educação da Criança
29
Afinal o que são os contos de fada e para quem são escritos? Por que conseguem
ultrapassar os limites de tempo, da História, das modificações sociais e culturais para
permanecerem cada vez mais vivos no imaginário das pessoas? Essas são perguntas feitas
com muita freqüência por todos aqueles que se ocupam em investigar essas narrativas,
tomando como referência vários pontos de vista, seja da literatura, da psicanálise, da
sociologia, entre outros.
O fato é que essas narrativas continuam intrigando e encantando pessoas no
mundo inteiro, fazendo-se presentes tanto no imaginário popular quanto em pesquisas
acadêmicas e quase sempre as investigações partem de dúvidas como as do pesquisador inglês
Sheldon Cashdan:
Essas são também questões que tentaremos esclarecer aqui, a partir de uma
concepção que une literatura e psicanálise. Sabemos, porém, que tal propósito esbarra em
inúmeras dificuldades, pois estamos não somente no campo do literário, mas também noutros
que atravessam o discurso da literatura. Por isso esse entrecruzamento é tão rico, repleto de
sentido e transcendência.
A verdade é que essas histórias que encantam crianças, jovens e adultos falam
muito mais do que de mundos encantados, onde vivem seres mágicos, pois percorrem
amplamente o sentimento do leitor, invadindo zonas do inconsciente, tocando questões
12
CASHDAN, Sheldon. Os Sete Pecados Capitais dos Contos de Fadas: Como os contos de fadas influenciam
as nossas vidas. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 16.
30
Contar histórias é algo que se perde nas noites do tempo. É uma atitude tão antiga
quanto o próprio Homem. Narrar é condição existencial para a espécie humana e sempre
significou, de certa forma, ter domínio do mundo, conhecimento do outro. A palavra deu
poder ao animal humano.
Imaginemos os tempos remotos e todos os desafios a serem enfrentados e então,
conseguiremos compreender que para sair do estado de selvageria e entrar no domínio da
cultura foi necessário um conjunto de elementos que tornassem o Homem um conquistador
das terras, mares e do espaço. Para tanto, a palavra mais do que instrumento de humanização,
13
Idem, ibidem, p.16.
31
14
PAZ, Noemi. Mitos e Ritos de Iniciação nos Contos de Fadas. São Paulo: Cultrix, 1995, p. 9. (Série
Pensamento).
32
O fato é que essas histórias têm a força da palavra interior, que fala de um lugar
muito especial, porque também constituem-se numa forma bastante original de se explicar ou
buscar uma compreensão da experiência humana. Parece que andamos sempre em busca de
dar significado para a nossa vida e tudo é “história” que se vai fabulando e construindo. Umas
vão pelo caminho do quotidiano, do conhecimento e do saber e outras seguem o caminho da
15
Idem, ibidem, p.13.
16
Idem, ibidem, p.14.
33
alma e por isso são capazes de iluminar os recônditos mais fechados e impossíveis de se
chegar, senão pela sensibilidade artística.
Note-se, à propósito, o que a crítica literária Marina Warner nos relata sobre a
história do Sultão, sua mulher e o pobre homem que alimentava sua esposa com “carne de
língua”. Diz-se que um sultão muito poderoso tinha uma mulher que vivia muito triste e
doente. O sultão tinha recorrido a todos os meios que pode, mas de nada adiantou. Até que viu
um homem muito pobre carregando uma mulher muito feliz. Então, ordenou ao homem que
trocasse de mulher. O homem prontamente atendeu e a mulher do Sultão se transformou na
imagem da saúde e felicidade.
Enquanto isso a mulher do pobre homem definhava e vivia na mais imensa
infelicidade, pois:
Esse conto aponta para a importância e o poder da palavra, tecido básico das
narrativas que se fazem histórias de toda trajetória humana. Esteja o Homem onde estiver,
haverá uma história a ser contada e recontada de acordo com o sentir e o viver do contador e
de sua comunidade.
As histórias que alimentam a alma são precisamente aquelas que nos dizem
respeito. Que de alguma maneira nos fazem olhar para dentro e encontrar um sentido ou
significado para a vida.
17
WARNER, Marina. Da Fera à Loira: sobre contos de fadas e seus narradores. São Paulo: Companhia das
Letras, 1999, p. 14.
34
Intriga mais ainda, quando nos apercebemos que a psicanálise e a pedagogia não
se fartam de buscar explicações sobre o fato de crianças do mundo inteiro ficarem fascinadas
diante dos contos.
É mesmo o “era uma vez” de cada história vivida por nós no secretismo do nosso
inconsciente, que se vai buscar na trama e nas representações arquetípicas cristalizadas nas
personagens que dão vida ao texto.
Diante do conto não temos um pensar racional e cartesiano. A realidade que nos
interessa é que se apresenta ao olhar como possibilidade, ou seja, o leitor sabe que não é o
personagem, mas é como se fosse porque o sentimento para o qual a narrativa reconduz é que
possui valor real. Pois, parece que aí reside a criança que:
Bellemin- Nöel coloca uma questão fundamental. Não se pode analisar um conto
sem o mergulho no discurso ausente. Muitas vezes, temos que correr atrás, precisamente,
daquilo que não se pode ver de imediato para enfim, realizar uma leitura simbólica. Talvez, a
universalidade dos contos e a atemporalidade que aí experimentamos tenha a ver com o fato
de eles serem um depoimento da luta permanente que o Homem trava no seu mundo interior,
habitado por imagens universais representantes de posições antagônicas experimentadas por
todos ao longo da existência: o medo, a angústia, a solidão, a raiva, o ódio, a tristeza, a
alegria, o prazer, entre tantos sentimentos que nos vão marcando durante a vida.
Tudo isso é universal e atemporal. Até se podem mudar as dores, mas elas sempre
estarão lá, marca da nossa falta. Com os sentimentos positivos acontece da mesma forma. De
certa maneira, somos constituídos também a partir da busca afetiva. Queremos ser salvos
ainda que seja por um beijo ou espada de um herói ou quem sabe por uma fada, contanto que
a vida gratifique e nos coloque diante de um mundo resignificado.
Entendemos também que o fato de essas narrativas terem chegado até meados do
séc. XVII praticamente pelo viés da oralidade, tenha até certo ponto colaborado para o
surgimento de tantas versões. Aliás, a determinação histórica da sua origem é impossível.
Existem várias teorias sobre o assunto. Maria Emília Traça19 fala, por exemplo, da corrente
defendida por Theodor Benfey que acredita nas raízes indianistas dos contos de fadas que se
contrapõe às teorias dos irmãos Grimm que apontam para origens indo-européias. Há ainda
que referir a teoria ritualista apresentada por Pierre Saintyves e finalmente, a proposta
marxista defendida por Wladimir Propp, para a qual os contos de fadas são superestruturas
refletidas no social e emergem da eterna luta de classes.
18
BELLEMIN-NÖEL, Jean. Les contes et leurs fantasmes. Paris: Presses Universitaire de France, 1983, p.6.
19
TRAÇA, Maria Emília. O Fio da Memória: do conto popular ao conto infantil. Porto: Porto Editora, 1998.
36
Existia algo de anônimo, mas paradoxalmente, muito pessoal e que refletia nos sentimentos
dos pobres e dos ricos, dos leigos e letrados e assim:
20
BELLEMIN-NÖEL, Jean. Op. cit., pp. 5,6.
37
dos desejos mais secretos, dos anseios sentidos e vividos plenamente, apenas, pelo
estabelecido como poético e verdadeiro, tecidos pelo dizer literário.
A criança “iniciada” no mundo da leitura pelo viés dos contos de fadas tem grande
possibilidade de tornar-se alguém com capacidade criativa e sensibilidade para o estético,
portanto de se acolher dentro das diversidades e antagonismos que refletem o modus vivendi
do sujeito humano.
Com isso, não queremos dizer que esse tipo de narrativa tem a capacidade de
integrar a personalidade da criança ou transformar sua estrutura psíquica, mas pode fazer
viver sentimentos possíveis de sublimação e transformação, portanto de realizar a travessia e
buscar uma melhor qualidade de vida para que se torne um adulto com capacidade de doação
e amor, além de poder estar permanentemente em contato com o seu mundo simbólico de
maneira ampliada.
Os jogos realizados durante a leitura/escuta das histórias maravilhosas conduzem-
nos para a projeção, introjeção e identificação, operando em nós imagens de diversas
naturezas. Por isso, o espaço do conto de fadas é tão fértil para que se fale da dor e do amor,
pois aí se permite enraizar pelas zonas mais secretas do inconsciente humano e talvez chegar a
conclusões conciliadoras, nas quais se pode ver “a criança como pai do homem”.
sentido e dar ritmo às narrativas. Esses, servem como ponte para que o evento literário torne-
se real, arrebatando-se para o estado de suspensão da identidade.
Julgamos que quanto mais a criança e o jovem são expostos aos contos de fadas,
mais próximos de realizar uma compreensão do humano estarão, pois é da complexa realidade
humana que fala a literatura. Possivelmente, entregar tais narrativas aos pequenos pode ser
uma das belas e mais eficientes maneiras de prepará-los para a vida.
Este primeiro conto a ser analisado tem basicamente a forma das narrativas de
tradição oral e, embora não seja dos mais conhecidos, tem sido visitado por muitos estudiosos
da psicanálise tais como Cashdan e Marie-Franz Entendemos que a fortuna crítica e teórica
tecida em torno de algumas narrativas como esta, justifica-se na medida em que se busca
alcançar um maior número possível de análises em torno dos contos que trazem o mesmo
tema como elo desencadeador da trama.
Vasalisa poderia ser a Cinderela, pois tanto quanto esta é maltratada pelas irmãs
postiças e pela madrasta. É “abandonada” pela mãe e fica a espera do pai que viaja. Mas
também, apresenta aspectos semelhantes abordados em João e Maria, como o perder-se na
floresta e encontrar uma bruxa malvada e canibal. Portanto, estamos diante de um conto rico
em representações que são constantes em diversas narrativas dessa natureza, além de conter
um elemento especial e decisivo para o desenrolar da história que é o objeto transacional.
Tal como em muitos contos de fadas, traz no início da história como motivo para
o desencadeamento da temática principal, a perda de um dos pais. A morte da mãe de
Vasalisa cria um conflito inicial que revira a vida de uma garotinha que vivia muito feliz com
seu pai e sua mãe, até que um dia tudo se transforma.
41
A história (ver anexo 1, p. 263) começa por afirmar um estado de felicidade total,
onde se desfruta uma vida plena e sem conflitos, tal qual o bebê, quando reina ainda, entre ele
e a mãe uma relação inteiramente simbiótica realizada num estado de satisfação total, pois:
21
FITZPATRICK, Jean-Grasso. Era uma vez uma família. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998.
42
É nesse tempo do “Outro” que iniciamos nossa trajetória de vida, isso parece
incontestável. É justamente por aí, que daremos início a análise crítica do conto em questão.
Mas, os contos de fadas nos ensinam igualmente, que não há bem que sempre
dure e que para crescer alcançando outros níveis de maturidade humana, precisamos superar
provas, viver as fragilidades do nosso ser, tocar com profundidade nas nossas dores.
22
BELLEMIN-NÖEL, Jean. Op. cit., p.12.
43
da mãe. Isto é, trata-se da perda do “objeto A”, o primeiro grande Outro do qual nos fala
Jacques Lacan em seus Escritos.23
Também podemos compreender o Outro como sendo aquele que tem o poder de
descentrar o eu em direção ao tu e nessa provocação produzir o estado de alteridade, tal como
diz Merleau-Ponty:
O Outro nos coloca numa situação de descentramento e por isso nos faz ver nela o
“perdido” em nós como se fosse uma brecha de onde pudéssemos olhar o inconsciente.
Vasalisa: a sábia vai desde o começo mostrar a questão da satisfação total de um corpo que
goza pela presença do Outro. Um Outro que é entrada para um lugar inacessível, que é brecha,
mas também falta. Enquanto “falta” é também presença. A choupana, referência para moradia
e lar representa o éden como imagem da paz, do amor e da confiança. Da mesma forma, pode
apelar para uma experiência satisfatória de se estar abrigado num lugar que nutre, guarda e
protege, mas que de maneira alguma é eterno.
Tal como a mãe tem de ser interditada no momento inicial da sua relação
simbiótica com a criança, pois somente dessa forma o bebê pode crescer e entrar no
simbólico, reconhecimento do Outro como diferença, assim acontece com o paraíso da nossa
protagonista. A fantasia de plenitude total é interditada quando:
23
LACAN, Jacques. Escritos. Tradução: Inês Oseki. São Paulo: Perspectiva, 1978.
24
MERLEAU-PONTY, Maurice. O Vísivel e o Invisível. 3 ed. Tradução: José Artur Gianotti e Armando Mora
d’Oliveira. São Paulo: Perspectiva, 1992, p.85.
44
25
FITZPATRICK, Jean-Grasso. Op. cit., p.38.
45
Depois de ter vivido a felicidade total, Vasalisa está diante da morte da sua mãe, o
que suscita em qualquer criança o sentimento de insegurança, medo, raiva, abandono, culpa,
enfim desamor e ameaça do “seio mau” destruidor e persecutório.
Para que a menina resgate a vida feliz terá de ser capaz de enfrentar os perigos da
existência, conquistando maturidade para superar os conflitos impostos pela vida, pois
somente se sabe viver, quando se é forte para compreender a morte, o fim que existe em tudo.
A “mãe boa” sabedora disso mesmo e da própria tristeza da sua partida, criadora
de uma situação interna caótica oferece um presente à Vasalisa, a bonequinha. Este é um
presente abençoado, identificado com a menina, já que é uma boneca. Ela vai servir-lhe não
só como lembrança da mãe morta, mas como lugar da transferência para a “mãe boa”, já que a
26
BARROS, Elias Mallet da Rocha. (coord.). Melanie Klein hoje: desenvolvimento da teoria e da técnica.
Tradução: Belinda Haber Mandelbaum. Rio de Janeiro: Imago, 1990, p. 258.
46
boneca deve ser alimentada, cuidada e ouvida. Se Vasalisa cuidar da boneca como uma mãe
acolhedora e boa, então ela ajudará Vasalisa todas as vezes que ela precisar.
Como se pode observar esse presente deverá se tornar um bem maior, objeto
transacional que ajudará a menina a enfrentar a sua dor.
A mãe também diz que a bonequinha a ajudará e a acompanhará por toda a vida.
Então, evidentemente, que é um objeto internalizado desde que a menina saiba preservar os
sentimentos bons, alimentando-os e cuidando para que estejam presentes no momento de
aflição. Certamente, isso reatualizará a presença da mãe boa e protetora, já internalizada.
27
CHEVALIER, Jean., GHEERBRANT, Alain. et al. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio,
1994, pp. 808, 809.
47
28
FITZPATRICK, Jean-Grasso. Op. cit., p. 44.
48
O fato do leitor realizar tal transferência e identificar-se com os fatos narrados não
nos surpreende, pois um texto literário é mais do que um fragmento de vida e existência. Ele é
em si, sempre, o resultado das relações humanas no contexto da dor ou do amor. Portanto, o
sangue que pulsa nas personagens não se faz apenas de jogos lingüísticos contidos na
disposição de palavras e frases, mas essencialmente, de um sentir reordenado e presentificado
na dinâmica poética da narrativa. Esta sensibilidade traduz-se num estilo que se configura
pelo ritmo, encadeamento das frases, utilização de símbolos, metáforas e metonímias que
marcam o compasso das personagens, desde a respiração ao grito, sorrisos ou lágrimas, enfim
o corpo textual invadido por uma multiplicidade de gente.
Isto está de acordo com a visão de Chevalier quando afirma que a morte é um
símbolo universal de:
29
CHEVALIER, Jean., GHEERBRANT, Alain. et al. Op. cit., p. 580.
49
30
Idem, ibidem, p. 621.
31
NASIO, Juan-David. O Livro da Dor e do Amor. Rio de Janeiro: Zahar, 1997, p.17.
50
Se o sofrimento nos conduz ao inferno da dor, ele também nos faz sentir com
maior capacidade para buscar saídas. Nele encontramos a ambivalência entre o negativo e o
positivo. Somente quando reconhecemos as perdas e sofremos por elas, somos capazes de
sentir que :
Dessa maneira, não é difícil que a maioria das crianças, desde que esteja
encorajada a viver em plenitude seus sentimentos antagônicos, se identifique com o drama de
Vasalisa, tão pequenina e tendo que enfrentar a mais terrível de todas as perdas. Perder um
32
Idem, ibidem, p. 18.
51
dos pais ou o medo disso acontecer é, na infância, algo quase insuportável. Porém, na
ausência, a mãe de Vasalisa, será presente naquilo que deixou da relação de amor com a filha.
Todas as vidas estão até certo ponto marcadas pela dor da separação. Aliás, esta
faz parte do momento inaugural de cada sujeito que ao separar-se da mãe é acometido de um
sentimento brutal de perda, mas que também por isso se tornará autônomo e independente.
33
Idem, ibidem, p. 17.
52
O que faz a mãe de Vasalisa, senão “construir um espaço” para a dor da menina
no seio da transferência ? Em momento nenhum ela consola a filha ou diz para que ela não
chore, apenas a segura como faz “o bailarino diante do tropeço da sua parceira”.
A palavra que esconde-se no espaço narrativo faz parte do indizível, daquela dor
ou desejo que tocamos pelo sentir das personagens. Pela dor do Outro, verteremos lágrimas,
expulsaremos gritos e pronunciaremos palavras. Ela é a representação do nosso fracasso e
nela nos escondemos.
Por tudo isso é que o texto tem que ter o poder da metáfora, nos fazer transcender
para o “além” de nós mesmos, porque aí estão possíveis os sentidos, pulsando com tudo que é
vida ou morte. No seio da narrativa está a palavra que falta, ou que é a própria falta, então
fracasso.
Vasalisa, investida pelo amor de sua mãe consegue superar a sua primeira e maior
prova que consiste na reparação dos danos emocionais provocados pela morte da “mãe boa”.
Mesmo mergulhada na tristeza pela ausência do seu primeiro objeto de amor, a menina
continua sua trajetória ajudada pela bonequinha.
Escravizada pela madrasta e suas filhas, ela faz todo o trabalho da casa: varre,
corta a lenha, ordenha a vaca e limpa as ervas da horta. Embora, a mulher seja muito boa para
o pai da menina, é péssima para ela e representa bem o papel da “mãe ruim”, a madrasta
temida em quase todos os contos de fadas.
53
A imagem da madrasta é uma das mais utilizadas nas narrativas infantis, tendo
grande força metafórica tanto de sedução quanto de repulsa. Representa forças interiores e
antagônicas, algo entre o amor e o ódio. Claro que a madrasta tem uma dimensão hiperbólica
do que pode ser a “mãe má”, aquela que persegue, não doa e não alimenta, portanto é ameaça
de morte e aniquilamento. Contudo, essa mãe precisa ser introjetada pela criança para que ela
sinta-se capaz de superar faltas e conflitos, alcançar a posição depressiva, realizar o luto e
atingir sua plena capacidade simbólica.
Mesmo quando nos tornamos adultos, a “mãe má” pode ser reatualizada na nossa
fantasia, provocando dor e angústia. Parece mesmo, que reside aí, toda a questão do fantasma
da dor, pois a “mãe má” fonte de destruição serve igualmente como interdito, lei que realizará
o corte, ruptura simbólica da relação incestuosa entre criança e mãe. Não por acaso, a
madrasta aparece, nos contos infantis, como “a outra mulher do pai”. Ela é a outra que surge
para separar Vasalisa do pai, portanto substituir a mãe, espaço simbólico de mulher.
Vamos aos poucos avançando para o fato de que o pai viaja para fazer negócios,
enquanto a “pobre menina” tem a sua sorte entregue a madrasta e suas filhas “invejosas”.
Parece que o estado de submissão da menina aos desejos das três mulheres, aponta
para uma fase muito inicial do sujeito no mundo, quando ainda imerso num estado caótico
envolve-se em impulsos destrutivos que ameaçam a sua integridade psíquica, mas dos quais
não pode se livrar sem correr o risco de sofrer alguns danos. O equilíbrio necessário entre as
pulsões somente será atingido quando a criança for capaz de viver os estados de depressão e
54
angústia- espaço vazio preenchido pelo desejo e ausência do Outro – buscando viver a
dimensão significante da dor da separação, por conseguinte da fantasia apaziguadora de que
se é possível recuperar o objeto de amor perdido, tal como é apontado nos estudos realizados
por Melanie Klein em obra já citada anteriormente.
Essa narrativa propõe ao leitor muito mais do que um espaço para reflexão ou
compreensão do nosso estado lacunar, pois a dor inicial de Vasalisa tocará na nossa dor como
uma tatuagem que é impressa no corpo, garantindo mais do que o processo de transferência
ou solidariedade com a dor alheia. Mais do que alheia é nossa, registro que marca a
experiência de separação do nosso primeiro objeto de amor.
Dessa forma, o pai de Vasalisa parte em viagem para realizar negócios numa
aldeia vizinha, deixando a menina entregue à madrasta e suas filha. Ao cair da noite, a
pequena entregou-se ao sono, enquanto as outras se divertiam falando mal das pessoas.
Estavam tão absorvidas que não se deram conta de colocar a lenha na lareira, até que o fogo
se apagou e então se apavoraram com a idéia de terem que buscar uma chama para acender o
fogo, pois pelo que é dito, a chama tinha que ser pega na casa da Baba – Yaga, uma bruxa
terrível que habita na floresta. Então, não tiveram dúvidas e disseram:
34
FITZPATRICK, Jean-Grasso. Op. cit., p. 39.
55
Uma vez empurrada para a noite pelas irmãs postiças, que nesse momento podem
significar os impulsos destrutivos, mas necessários para que haja equilíbrio psíquico, a
menina também adentra na floresta cheia de medo e frio para enfrentar Baba Yaga, que não é
apenas uma bruxa malvada, é também uma devoradora de crianças.
Qualquer criança que se depare com tal posição dentro de uma narrativa se sentirá
ameaçada como Vasalisa e, certamente, reatualizará seus primeiros medos, vividos na
maternagem, que consiste na fantasia de estar sendo perseguida pelo “seio mau”, ou seja, pela
“mãe má”.
O fato da Baba Yaga ser uma devoradora de crianças é muito significativo dentro
do conto. O que é devorar, senão destruir, colocar para dentro, aniquilar. No entanto, o perigo
só desaparece quando o enfrentamos com coragem e determinação.
35
CHEVALIER, Jean., GHEERBRANT, Alain. et al. Op cit., p.640.
57
Por mais esperada que seja uma dor ela faz sempre parte do inusitado, do súbito.
Não é difícil de se acreditar que nunca estamos verdadeiramente prontos para enfrentar uma
dor dilacerante. Qualquer dor para ser superada precisa de ser enfrentada, mesmo que isso
custe um sofrimento terrível.
Dessa maneira, a menina terá que adentrar no fundo da sua dor, percorrer os
caminhos serpenteantes e perigosos da floresta, representante do inconsciente e dos
sentimentos obscuros para poder encontrar-se num estágio mais elaborado do seu crescimento
pessoal. Fica muito claro que o crescimento pessoal é determinado por situações de conflito e
dor.
Nenhuma criança cresce se não passar pelas rupturas e dores necessárias. Para
andar é necessário enfrentar a queda, para falar o desafio de se fazer compreender, enfim os
contos estão sempre nos dizendo de um lugar fantasmático e que atualizamos todas as vezes
que estamos diante de uma situação de conflito.
É assim que Vasalisa encontra-se no meio da noite, tendo que superar o medo e a
angústia da solidão para enfrentar o mais desconhecido de si mesma. Pelos caminhos
serpenteantes, o que aponta para o inseguro e indeterminado, a menina pretende chegar às
colinas. Lá mora a Baba Yaga, devoradora de crianças, mas lá, também está a chama, a luz
que Vasalisa precisa trazer para a choupana , como também para desfazer-se de uma situação
de caos interior.
36
NASIO, Juan-David. Op. cit., p. 25.
58
37
GORI, Roland. Fantasma, Linguagem, Natureza : Três tipos de realidades. In : ANZIEU, Didier. et. al.
Psicanálise e Linguagem, do corpo à palavra. Lisboa: Moraes, 1977, p.24.
59
A nossa personagem traduz algo que está entre o movimento e a inércia. Ora,
trabalha e trabalha. Dorme em sono profundo para depois ser sacudida bruscamente. Segue
seu caminho andando pela floresta e caminhos serpenteantes. Anda um dia inteiro e uma noite
inteira. Exausta encontra a mais bizarra das paisagens. Defronta-se, novamente, com tarefas
difíceis de serem realizadas. A progressão das ações fazem parte dos acontecimentos e
constituem algo essencial no conto como se uma coisa dependesse da outra e assim
sucessivamente, ao que podemos inferir que o crescimento humano galga etapas que devem
ser superadas para que se seja capaz de enfrentar outros desafios, tal como nos mostra o
conto, parece que:
Para que Vasalisa cresça e assuma a dor da separação ela realizará esse
movimento de perder-se de si e do Outro, representante da mãe. A boneca aponta para a essa
ausência, mas dentro da choupana a menina não conseguirá a sua individuação, visto que está
escravizada pelos desejos caóticos das falsas irmãs. Observem que ela é posta diante da Baba
Yaga porque as três mulheres se comprazem no prazer da oralidade. Falam muito e mal de
38
Idem, ibidem, p. 12.
60
todos que conhecem. Então, a menina que dorme precisa partir e obter a distância necessária
para romper com o discurso-prazer da situação narcísica. Nela, a mãe faz ecoar sua fala todas
as vezes que no sofrimento Vasalisa a reencontra na bonequinha. Isso, a torna forte e capaz de
superar as dificuldades e enfrentar o medo.
Quando a menina chega ao local determinado pelas irmãs e encontra aquela
construção inusitada (trata-se de uma casa de madeira suspensa, bem no alto, sustentada por
gigantescas pernas de galinha e cercada por ossos humanos, os quais têm nas pontas caveiras).
Não é difícil de imaginar o horror da menina diante de tal imagem. Mais do que uma estranha
choupana estava diante dos destroços de vários corpos, cemitério que abriga o bizarro e o
grotesco. Novamente, Vasalisa está próxima da morte e seus mistérios.
Ao lermos o texto sentimos toda a dramaticidade da situação no momento em que
a narrativa descreve os olhos arregalados da menina e o susto da mesma ao ouvir a voz
assustadora e cacarejante da bruxa, que aparece montada num caldeirão voador.
Temos aí, vários componentes para supor que a menina terá que superar provas
muito difíceis para conseguir chegar até o final com vida, pois já se sabe que essa bruxa come
crianças.
De qualquer forma, alguns desses componentes são intrigantes, porque embora
formem esse conjunto assustador, não apontam para o mau completo. Pois, a choupana sendo
rodeada por ossos e crânios humanos, não somente compõem um cenário de horror, mas de
acordo com Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, os ossos simbolizam firmeza, força e virtude,
ascese, superação da noção de vida e morte, acesso à imortalidade. O crânio quando exposto e
suspenso pode significar vitória. O fato é que, de maneira geral, esses dois elementos têm uma
conotação positiva. O que nos faz pensar que, talvez Vasalisa esteja próxima da
transformação necessária para obter uma maior compreensão da vida e da morte.
Por outro lado, encontramos uma versão dessa história que intitula-se Vasalisa a
Bela, de origem russa e que difere da nossa, apenas em alguns aspectos. No entanto, o conto
que aqui analisamos possui menos elementos para o desenrolar da narrativa, como também
apresenta um final diferente. Entretanto, ambas são exatamente iguais com relação à temática
e o motivo. Assim, acreditamos ser interessante apontarmos para alguns pontos de
convergência que são significativos entre ambos, levando em consideração a análise feita pelo
pesquisador e psicanalista Sheldon Cashdan ao referir-se à importância dos objetos
transacionais e de como isso apresenta-se nessa narrativa russa.
61
A bruxa Baba Yaga aparece nas duas narrativas e representa mais do que uma
feiticeira, pois assume uma posição estratégica dentro da narrativa, até mesmo de elemento
auxiliar e mediador para que a nossa heroína possa crescer e introjetar a “mãe boa” até tornar-
se adulta. A nossa reflexão é corroborada pela afirmação de que:
Assim, induzimos que a Baba Yaga ao aparecer nesse horrendo cenário coloca o
leitor infantil diante dos seus próprios horrores que para serem transmutados necessitam ser
olhados e percebidos. Essa é uma bruxa portadora da sabedoria e conhecimento, por isso ela
tem a chama, a luz que Vasalisa procura.
Quando a menina chega à choupana da bruxa, logo é vista pela Baba Yaga que
pergunta aos gritos e com uma voz cacarejante quem está do lado de fora. Vasalisa não foge,
nem tampouco se esconde. Ao contrário disso, mesmo com muito medo, responde
enfrentando o desafio. Quando anuncia para a bruxa que está ali porque a sua madrasta
precisa da chama e mandou-lhe à floresta buscá-la, então parece não existir nenhuma
surpresa. Baba Yaga já esperava por isso e diz que já conhece bem a madrasta, em tom de
certo desprezo. Quem é a madrasta dos contos de fadas, senão a “mãe má” que, também
precisa ser internalizada? A criança precisa interiorizar os aspectos positivos, mas
compreender que a “mãe” real, pode por vezes conter aspectos negativos.
Assim, logo os desafios são postos para a pequena, pois somente depois de ter
feito todo o trabalho é que poderá levar a chama. Terá que varrer a casa, cortar a lenha,
ordenhar a vaca e limpar as ervas daninhas, ou seja, somente quando estiver com a casa
arrumada, limpa e purificada será capaz de partir.
39
CASHDAN, Sheldon. Os 7 pecados capitais nos contos de fadas: Como os contos de fadas influenciam
nossas vidas. Rio de Janeiro: Campus, 2000, pp. 145, 146.
63
Os desafios propostos pela bruxa serão o seu passaporte para que, finalmente,
reconheça e internalize a “mãe boa”, que cuida, escuta e alimenta. Então, a caminhada
começa mesmo a partir daí, pois se não conseguir realizar as provas com sucesso, Vasalisa
será devorada pela pavorosa mulher. Tal qual o bebê se sente, segundo Klein, ao se deparar
com seus impulsos destrutivos , quando fantasia que por ter sido mau com o “seio bom” que
lhe dá alimento, então será devorado. Assim, entra no processo de ansiedade persecutória,
pois não conseguiu, ainda, internalizar o “seio bom” e gratificador.
Esse é um conto que nos coloca diante de uma fase da infância que será
reatualizada durante a vida inteira, por isso necessita da superação total para que seja vivida
posteriormente com segurança. A narrativa mostrará o caminho a ser vivido sem ser óbvio,
banal ou direto. Será pela metáfora que Vasalisa se universalizará em cada criança.
Mais uma vez, a bonequinha junta-se à menina numa comprovação de que a parte
boa está ali, pronta somente aguardando ser chamada. Existe aí, uma verdadeira “conexão
simbólica” entre a mãe ausente que é presentificada pela bonequinha numa relação mágica e
lúdica, na qual mais do que fantasmagoria, a mãe é um bem maior introjetado para que a
menina sinta-se segura , acompanhada e capaz de vencer o desafio. Por isso, na exaustão
causada pelo trabalho, mas também de certa maneira, confiante na ajuda, Vasalisa entrega-se
ao sono e quando acorda fica assustada, pois pensa não ter concluído a tarefa. Diante da Baba
Yaga furiosa por ver que todo o trabalho estava feito e não mais teria o seu jantar, sentiu-se
40
Vasalisa: a sábia. In: Anexo 1, p. 263.
64
aliviada. Mas, a caminhada não acaba por aí , logo a bruxa exige mais uma tarefa. Empurra
Vasalisa para o quintal e mostra um grande monte de terra dizendo:
Tudo indica que Vasalisa está próxima da sua redenção, pois se, atentarmos para a
significação simbólica da papoula constataremos que essa flor representa sono, esquecimento,
morte e renascimento e a terra um local onde se operam transmutações, tais como: nascer,
morrer, reaparecer. No texto tudo é direção e sentido, portanto o que se metaforiza nessa
passagem é que, se a menina for capaz de superar essa prova, então renascerá de outra forma
para viver o possível da sua integridade psíquica, emocional e afetiva.
41
Idem, ibidem, p. 263.
65
Aliás, estamos diante de um conto que traz na sua temática mais do que a busca
por um final feliz, pois é como se cada etapa vencida apontasse para uma nova possibilidade
de crescimento e maturidade.
Quando a bruxa diz o que Vasalisa terá de fazer para não ser o seu café da manhã,
ela sente-se perdida, pois não está totalmente segura de que, sozinha, será capaz de viver com
segurança, equilíbrio e força. Chora muito até que, novamente, retira a bonequinha do bolso.
Ainda, não está segura de que a “mãe boa” estará sempre presente mesmo tendo sido ajudada
em outras ocasiões. Novamente, a bonequinha se coloca à disposição da menina e a narrativa
alcança seu ápice, tornando-se mais do que um momento de tensão, pois é mesmo o
acontecimento que dará origem ao momento final da história, quando Vasalisa diante de uma
tarefa tão difícil se sente perdida e acredita que não vai conseguir. Muito cansada, adormece e
ao lembrar da tarefa que pensa não ter realizado chora bastante, até que a bruxa entra
perguntando qual o seu segredo. A menina compreende que mais uma vez a bonequinha
salvou-a. Entretanto, Baba Yaga furiosa decide que vai comer a menina assim mesmo e
começa a seduzi-la para entrar em casa por meio de elogios, dizendo que para ela ser tão
pequenina é muito esperta e então lhe pergunta qual é o segredo, ao que Vasalisa responde
“Com a benção de minha mãe” (anexo n. 1, p. 263). Ora, quando Baba Yaga escuta essa
afirmação grita:
Temos então, uma pequena garota pronta para ressurgir da dor de ter perdido a
mãe e da tristeza de ver seu pai casado com uma madrasta má, da qual só recebe inveja e
desprezo. Entretanto, é preciso que Vasalisa realize o verdadeiro luto experimenta a ”mãe
boa” e doadora. No momento em que consegue, com a ajuda da boneca, ultrapassar a mais
difícil de todas as provas e dormir o seu último sono como uma pobre e ameaçada menina,
renasce como as papoulas em terra fértil.
42
Idem, ibidem, p. 263.
66
Vasalisa diz à bruxa que a sua sabedoria vem da benção de sua mãe, sendo
portanto uma filha abençoada não sofrerá derrota capaz de aprisioná-la ou aniquilá-la. Pois ser
abençoado significa encher-se de força e vigor, tal como se pode confirmar no dicionário de
símbolos:
Logo, não é difícil de compreender porque essa é a palavra que liberta Vasalisa do
seu triste destino, restituindo-a de força para prosseguir a caminhada até cumprir a tarefa que
lhe fora conferida. Para tornar-se alguém com poderes de enfrentar todo o mau, ela precisa
levar a chama para a madrasta e suas irmãs postiças E assim, prossegue seu caminho
fortalecida da energia cósmica que envolve os abençoados e pela ordem da bruxa que a manda
sair correndo, após ter-lhe dado um galho com uma caveira na ponta, a qual tinha os olhos
iluminados pela chama. Assim, com ajuda da bonequinha, depois de um dia inteiro e uma
noite inteira, conseguiu chegar a choupana de sua família.
Vasalisa estava de volta da intensa caminhada que realizou para descobrir-se forte
e compreender que o bem maior deixado pela sua mãe estava com ela muito bem guardado e
que a partir dali poderia enfrentar a maldade das três mulheres, que por sinal a aguardavam
ansiosas e com muita raiva batiam os pés, além de perguntarem zangadas e impacientes o
motivo da demora.
43
CHEVALIER, Jean., GHEERBRANT, Alain. et al. Op cit., p.129.
67
Chegamos ao “final feliz” tão freqüente nos contos de fadas e embora a madrasta
e suas filhas tenham sido destruídas, o que é pouco comum nesse tipo de narrativa, podemos
nos certificar da vitória da menina. É interessante perceber que a caveira iluminada pela
chama foi entregue pela bruxa, além de ter sido o instrumento para a destruição das três
opositoras. Portanto, Baba Yaga mostra mais uma vez o seu caráter de redentora, ou mesmo
de mediadora para que Vasalisa desse por conta da sua capacidade de amor.
No entanto, para que a nossa heroína seja capaz de superar o sentimento de luto e
perda necessita ir ao mais fundo das suas emoções, é preciso sofrer a dor do abandono e da
suposta culpa para então, ressurgir para uma vida compreendendo que o mundo interior é
fonte inesgotável de todo bem e que nele também nos deparamos com as forças do mau,
representadas pelos impulsos destruidores.
Fica claro, durante toda a narrativa, que a menina somente suportou e superou
todas as provas porque possuía um bem maior e espiritual simbolizado pelo objeto
transacional, representante da mãe ausente. O percurso que o símbolo faz conduz ao
44
Idem, ibidem, p. 263.
68
entendimento afetivo, por isso tem o poder de penetrar nas zonas mais secretas do
inconsciente, sem que se constitua num dano para a criança que lê – escuta a história, pois a
apreensão se dá pelo efeito da metáfora que ao desdobrar-se em possibilidade oferece algo
como “olhar –se na dor-amor do outro”.
Não é por acaso que no local onde a caveira é enterrada nasça uma linda roseira
de rosas vermelhas. Como a caveira foi a portadora da luz e o instrumento de destruição do
mau, além do que , como já mencionamos, possui um simbolismo de transformação e vitória,
então dela surge a roseira para fazer parte da cena familiar de Vasalisa não somente porque a
rosa pode significar beleza, mas principalmente porque tem o sentido de:
45
CHEVALIER, Jean., GHEERBRANT, Alain. et. al. Op. cit., pp. 788, 789.
69
interdito. O retorno do pai pode ser interpretado como que uma voz interna dizendo: -
“Mesmo na minha ausência você foi capaz de proteger-se e superar os perigos externos.”
“Ela sabia que teria de usar seus próprios recursos (...) para
provar que podia caminhar com os próprios pés. E ela o faz, o
que significa que internalizou completamente a boa mãe e a
levou para dentro de si. E, embora Vasilisa não precise mais de
um objeto mágico para sustentá-la, ainda assim conserva a
boneca, carregando o querido objeto em seu bolso “até o fim de
seus dias”. Nunca faz mal cercar uma aposta.”46
46
CASHDAN, Sheldon. Op. cit., p.149
70
no “lugar” da mãe, ocupando um importante lugar na relação familiar. Observem que o conto
diz que os três foram “felizes para sempre”: Vasalisa, o pai e a bonequinha, representante da
mãe.
Mesmo sendo o brinquedo um objeto transacional, o fato da menina tê-la
preservado é sinal de que a sua presença, ainda, seja necessária, pois a mãe boa internalizada
poderia dispensar a presença da boneca, entretanto esse objeto ocupa um lugar simbólico,
também na relação pai – criança e por isso não desaparece.
Nos vemos seduzidos pelas afirmações do autor, pois quantos de nós adultos não
revivemos cenas da nossa infância e tal fato emociona, fazendo sentir o cheiro de uma fruta
ou um trecho de uma história contada ao adormecer, ou mesmo uma cena familiar na qual
estão todos reunidos para uma refeição. Enfim, são tantos os pedaços de lembranças e afetos
que um conto de fadas pode suscitar que não podemos deixar de perceber tal “conexão
simbólica”.
No caso de Vasalisa, a sábia, entendemos que o medo da perda de um dos pais é
um sentimento comum durante um determinado período da infância. Sabe-se até que muitas
crianças podem se sentir culpadas da morte dos pais pelo fato de um dia, depois de uma raiva
qualquer, ter desejado isso. Afinal, qual a criança que um dia não desejou se vingar dos pais ?
47
Idem, ibidem, pp. 149, 150.
71
Vasalisa: a sábia é um conto que tem esse poder de emocionar porque sua força
simbólica nos fala diretamente ali, no espaço onde já foi dor. Aí, uma ausência se faz. A
metáfora instituída a partir da relação menina – boneca nos reconduz para o espaço doloroso
ocupado pelo perdido.
O conto também nos coloca diante da dor de perder, porém mais do que o
sofrimento provocado pela ausência do Outro, existe um espaço vacante ocupado por uma
dor-melancolia e tristeza do sentir-se incapaz de conduzir a vida sem a preciosa imagem da
proteção e salvaguarda. Ora, a imagem da mãe está quase sempre associada à presença
onipotente de que nada jamais faltará, embora essa seja uma imagem muito próxima também,
da dor-furo que nos separa do paraíso perdido.
48
Idem, ibidem, pp.153, 154.
72
Isso nos faz lembrar a dor do nascimento, ruptura do laço simbiótico que liga o
bebê a sua mãe, fonte inesgotável de alimento e prazer. No entanto, para que a criança se sinta
encorajada a viver e crescer é necessário que a ausência da mãe esteja presente na relação,
constituindo-se em dor-simbolizada naquilo que Freud vai chamar de “das-ding”, jogo da
presença-ausência da imagem da mãe.
“(...) a dor não é dor de perder, mas dor do caos das pulsões
enlouquecidas (...) A dor psíquica é uma lesão do laço íntimo
com o outro, uma dissociação brutal daquilo que é
naturalmente chamado a viver (...)A dor está sempre ligada à
subitaneidade de uma ruptura, a travessia súbita de um limite,
mais-além do qual o sistema psíquico é subvertido sem ser
desestruturado.”49
Assim, certamente a criança ao tomar contato com esse conto poderá mergulhar
na dor da perda, mas também transitar para a restauração de um eu enfraquecido pelo medo da
culpa ou do abandono. As rosas vermelhas que brotam no final do conto, não são somente um
presente para Vasalisa, mas para todos que no conto podem se confortar ao entrar em contato
com a sua “mãe boa” internalizada, metáfora de amor.
O confronto com a dor alheia nos faz reatualizar as nossas próprias dores.
Algumas caladas, silenciosas e permanentes. Outras, na necessidade de serem faladas,
discutidas, refletidas para que dali possam brotar rosas. São dessas que Vasalisa nos fala com
sabedoria, nos fazendo adentrar nos guardados do inconsciente.
49
NASIO, Juan-David. Op. cit., pp. 22, 25.
73
Complexo de Castração
74
Essa é uma história que, como quase todos os contos de fadas, possui inúmeras
versões, entretanto a nossa análise repousa no texto de Perrault, por acreditarmos que se
aproxime mais da tradição oral, sendo portanto, possivelmente, mais antiga do que as outras
existentes.
Comentar sobre a dor e a sua relação com os contos para crianças é sempre muito
polêmico. Primeiro, de uma maneira geral, a infância é tida como o paraíso perdido, lugar
50
MORIN, Edgar. Meus demônios. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.
75
desabitado das maldades humanas, espaço da inocência. Assim, para muitas pessoas, contos
que falam sobre as dores e as perversões de maneira mais contundente não servem para as
crianças.
Temos aqui uma história que trata muito diretamente dos conflitos edipianos pelos
quais todas as crianças passam num determinado período da vida. Talvez, essa seja a fase da
vida da criança vivida com mais dor, pois as questões edipianas surgem de conflitos internos
vividos na infância, os quais são muito difíceis de aceitação tanto pela criança, como pelos
pais.
A criança em fase edipiana tem uma predisposição natural ao sentimento de culpa,
porque imagina que “desejar” mamãe ou papai é uma coisa muito feia pois, significa estar
traindo alguém que se ama muito. Além disso, a criança fantasia que o pai ou mãe traídos
desconfiem desse sentimento e descubra que, secretamente, ela trama para tomar o seu lugar
76
na relação com o outro desejado. Assim, se a trama é, em fantasia, descoberta, então a pessoa
traída pode tramar e vingar-se daquele que deseja o seu lugar.
Por mais que isso pareça distante do sujeito adulto, basta lembrar da criança que
fomos e de como nos relacionávamos com os nossos pais que encontraremos, ainda que de
forma velada, qualquer resquício que seja daquilo que um dia foi para nós um verdadeiro
tormento e angústia quando nos sentíamos preteridos, abandonados ou castigados por desejar
o pai ou a mãe somente para nós.
51
BETTELHEIM, Bruno. Op. cit., p. 139.
77
O Pequeno Polegar pode nos trazer de volta um pouco desse pedaço de vida, que
sem dúvida, marcou para sempre um estágio fundamental da nossa organização psíquica, mas
também poderá reatualizar experiências de fracasso e desconfiança de que em nós, também
existe uma dose de maldade com a qual devemos nos apaziguar e enfrentar para que enfim, se
possa compreender melhor quem somos. Da mesma maneira, acontece com a criança que
busca identificar-se com um dos pais e obter um grau maior de maturidade humana.
Essa é uma história com o início bastante comum aos contos populares: um casal
de lenhadores muito pobres tinham muitos filhos e muita dificuldade para alimentá-los. Até
aí, temos a pobreza material como elemento desencadeador da narrativa. Entretanto, as
diferenças começam a aparecer a partir do momento em que temos um pobre lenhador, pai de
sete filhos homens, o mais velho com dez anos e o mais novo com sete, prova do pleno
exercício sexual dos pais, como é expresso no conto, uma mãe que era expedita nessa
função e nunca tinha menos de dois filhos de cada vez.52
São sete meninos e todos ainda sem condição de ganhar a vida, ou seja, o próprio
sustento, que é a mesma coisa de dizer que, ainda, precisam dos cuidados maternos, mesmo os
mais básicos, como a alimentação.
Além disso, os pais se sentiam muito incomodados com o mais novo, pois era
excessivamente miúdo, tamanho de um dedo polegar, não falava nenhuma palavra, o que os
fazia crer que fosse uma criança boba e sem grande inteligência. Assim, tudo que de errado
acontecia, logo o Pequeno Polegar era considerado culpado, era mesmo o bode expiatório da
casa.
A história conta que na verdade ele era o mais esperto de todos e se não falava,
tinha uma grande capacidade para ouvir. Logo, era um sábio. Não é isso que se comenta
popularmente das pessoas que falam pouco? Os sábios ouvem muito e por isso, são capazes
de solucionar conflitos e criar saídas para os problemas de todos.
Contudo, ser um sábio não é a intenção do Polegar. Nesse aspecto, o valor dessa
narrativa reside no fato de apontar um sentimento bastante comum entre os filhos mais novos
de uma família, que consiste em considerar-se inferior aos demais e até levantar suspeitas de
que se foi adotado.
52
O Pequeno Polegar. In: Anexo 2, p. 268.
78
Nesse início da história já temos inúmeros elementos que merecem uma atenção
mais precisa, pois reconhecemos o valor simbólico do número sete, como também não é por
acaso que todos os filhos do casal são do sexo masculino, estão em idade de receber os
cuidados maternos e, precisamente, o herói tem sete anos, não fala e é, pelos demais,
considerado um bobo.
53
Idem, ibidem, p. 134.
79
mesmo sendo sete irmãos eles representam uma totalidade, até do ponto de vista do gênero,
pois sete contém o feminino e o masculino.
O início está marcado pela simbologia do número sete, que anuncia a conclusão
de um ciclo e o início de outro. Travessia. Mas, para conseguir atravessar é preciso superar
obstáculos, dominar situações, controlar impulsos, construir possibilidades, obter confiança
em si, concluir etapas, enfim lutar e crescer. Quando se conclui um ciclo, então surge outro,
portanto Polegar tem um longo caminho a ser seguido até obter um maior crescimento
interior.
Assim, caminhamos com vistas para o fato de que O Pequeno Polegar é muito
mais do que uma história que fala da esperteza dos menores e menos favorecidos. Apontando
para elementos diversos, é possível conjecturar que temos aí uma palavra não-dita que encerra
uma questão de ordem universal referente à totalidade espiritual e humana.
Em geral, os irmãos mais novos são sempre alvo de brincadeiras para os mais
velhos e no caso do Polegar esse fato se acentua por ele ser tão pequenino e não falar. Ora,
sabemos que a fala nos serve como instrumento de poder, tanto que a palavra criança, infante,
tem sua origem no latim e sua etimologia significa aquele que não fala. Ora, de certa maneira
a incapacidade de voz conduz a uma incapacidade de escolha como também reconhecimento
de poder.
Portanto, existe um dito não revelado sobre a suposta condição de inferioridade
desse personagem que leva a pensar que o espaço da voz ausente é ocupado pela esperteza e
pelo desejo de reconhecimento. É comum que o filho mais novo de uma família sinta
necessidade de auto-afirmação, de conquistar um espaço diferenciado que lhes garanta o olhar
dos pais.
Numa família de pobres lenhadores com sete filhos, não é nada difícil que o mais
novo, principalmente, sendo demasiadamente pequeno e sem fala, busque o aplauso dos
demais e o reconhecimento dos pais, que é o mesmo que recompensa e afeto.
Esse também é um conto que fala da fome, da importância da comida para a
sobrevivência e da luta entre o material e o espiritual. Grande parte dos contos surgiu em um
período histórico de muita escassez de alimentos, onde o plantio e a colheita tinham um
simbolismo muito forte por tratarem-se de práticas relacionadas à sobrevivência. Fazem parte
da tradição oral e foram propagados, na maioria das vezes, durante o trabalho da colheita, da
separação dos grãos, como também nas salas de fiar e tecer ou nas lavagens de roupa e
80
círculos de oração, portanto refletiam a dura realidade vivida pelas camadas mais pobres. e
estão estreitamente relacionados ao trabalho e produção.
Contudo, sem esquecer que os contos estão profundamente relacionados às
práticas sociais do trabalho, gostaríamos de enfatizar que desde sempre retratam as
dificuldades pelas quais passamos desde o nascer até o morrer.
Não se deve negar o valor histórico e social, mas também não se pode deixar de
reconhecer que toda e qualquer representação humana tem origem na dimensão interior do
ser, por conseguinte no seu psiquismo e nas suas relações com o Outro que é da ordem do
simbólico.
Por mais que exista nos contos, uma denúncia com relação à pobreza e à miséria
vividas pelas classes desfavorecidas que passavam por muitas privações materiais, as
narrativas trazem conteúdos que atuam no inconsciente, porque refletem uma experiência
sentida na alma. A pobreza e a riqueza não são dados biológicos, mais produções sociais.
Em contrapartida, as lutas internas são de ordem psíquica, pois a origem dos
dramas coletivos inicia-se na doença de seus indivíduos que , antes de serem sujeitos
históricos e sociais, são sujeitos de si em tentativa de preenchimento do vazio, que é de ordem
existencial.
Voltemos ao conto, porque nele encontraremos os elementos para justificar nossas
hipóteses. Sendo Polegar um menino tão pequenino, embora tenha sete anos e não fale, além
de servir como parvo para os irmãos mais velhos, sem dúvida, é uma criança especial porque
é diferente.
A fome tem uma função orgânica de apontar para a necessidade do alimento, sem
o qual não sobrevivemos. Mas, também representa uma demanda interna que é da ordem do
desejo, como nos é colocado por Freud e, posteriormente, pela Melanie Klein em vários de
seus estudos. Polegar, nos possibilita um olhar para as duas fomes: material e espiritual.
Orgânica e psíquica.
Logo, temos anunciada a fome e ausência de alimentos, para em seguida ser
mencionado o abandono das crianças na floresta. Ora, tanto a fome quanto o abandono das
crianças pelos pais são temas bastante recorrentes nos contos de fadas. Não por acaso, essas
narrativas centralizam o enredo num desses temas e podemos citar inúmeros contos que
colocam tais fatores como o eixo da narrativa, tais como: João e Maria (fome e abandono),
Chapeuzinho Vermelho (devoração pelo lobo), Vasalisa: a sábia (devoração pela baba
Yaga), O Junípero (canibalismo), Branca de Neve (abandono), entre outros.
81
Vários autores dedicaram seus estudos à análise da importância desses temas nas
histórias infantis, especialmente nos contos de fada, pois é muito provável que:
Não por acaso, esses temas surgem, tão freqüentemente , juntos numa mesma
narrativa. Pois, sabemos que a alimentação ocupa um lugar muito especial na vida das
crianças, não apenas pela necessidade orgânica e vital de nutrição, mas também de tudo que
está associado aos primeiros momentos de vida da criança quando chora para saciar a fome e
logo aparece ou não um adulto para suprir essa necessidade que, também, é de ordem afetiva,
pois alimentar-se nos primeiros anos de vida significa estabelecer contato com o Outro.
Da mesma maneira, saciar a fome que dói visceralmente significa, também saciar
o desejo de amor , de contato e de afeto. O bebê que mama sente-se no céu, tal qual João e
Maria quando encontram a casinha de doces. A alimentação está fortemente relacionada às
primeiras experiências de vida. De certa forma, disso também depende as possibilidades de
leitura de mundo.
54
CASHDAN, Sheldon. Op. cit., pp. 85, 86.
82
A fome e o abandono são para a criança fruto de uma experiência correlata, pois
parece que a primeira dá origem a segunda, pelo menos nos primeiros momentos de vida,
quando saciar a fome traz, temporariamente, uma sensação de conforto. Entretanto, a fome
não corresponde apenas à função orgânica, mas também está no domínio da representação,
pois para o bebê saciar a fome é trazer para junto de si o seu objeto amado. Assim, a fome
passa da ordem pulsional ao desejo. De fato, é possível compactuar com a afirmação de que:
55
NASIO, Juan-David. Op. cit., p. 120.
83
temática da fome e do abandono seja tão recorrente nos contos de fadas que tratam com mais
evidência das questões edipianas e, consequentemente, da ameaça de castração.
A cumplicidade dos pais é outro tema que suscita o interesse das crianças, que
provocadas por tal situação colocada pela narrativa, rememoram os primeiros sentimentos
vividos com relação aos pais. Perceber a aproximação dos pais gera sentimentos de ciúme e
inveja, além do medo da exclusão e rejeição por parte deles. Não é tão difícil a criança
acreditar na fantasia de que será abandonada e que a cumplicidade dos pais pode tramar para
que isso aconteça.
56
NASIO, Juan-David. Op. cit. p. 65.
84
Em geral, quando a criança não consegue superar esse medo de forma satisfatória
é muito provável que se torne um adulto indefeso, inseguro e com pouca capacidade de
conviver com seus anseios.
O Pequeno Polegar possui uma mãe que vive em harmonia com seu marido
lenhador e o menino tem conhecimento de que junto com seus irmãos será abandonado na
floresta, mesmo sem ser o desejo dos pais. De qualquer forma, diante da dificuldade, decidem
levar os filhos para a floresta e entregá-los a própria sorte. Aquele seria um ano difícil, de
muita miséria. Assim,
O conto deixa claro que o desejo de afastar as crianças é do pai e não da mãe, pois
esta de imediato rejeita a possibilidade de abandonar suas crianças. Contudo, não luta para
encontrar solução e abandona seus pequenos filhos à própria sorte, quando os mesmos ainda
dependem dos cuidados e proteção dos pais.
Para Polegar, é perfeitamente possível que a trama de seus pais surja como castigo
e como ameaça, pois se seu pai é capaz de planejar o seu abandono na floresta, então também
poderá castrá-lo para puni-lo pelos desejos incestuosos com relação à mãe. Claro, tudo isso
faz parte de uma fantasia infantil, mas que tem uma enorme repercussão na vida real da
criança, pois tudo que se vive na imaginação pode aflorar como efeito real, porque estamos
tratando de sentimentos e representações simbólicas. Logo, não importa se o trauma ou evento
de fato aconteceu. O que importa é a marca de um afeto fracassado, principalmente se isso
provocar uma angústia de separação.
57
O Pequeno Polegar. In: Anexo 2, p. 268.
86
A criança em idade edipiana sente o seu desejo como impossível, mas isso não a
impede de fantasiar que um dia ocupará o lugar do “pai” rival, então vivendo uma experiência
discordante entre:
Portanto, aquilo que poderia ser para a criança um paraíso total, no qual o desejo é
satisfeito por meio de uma relação completa, torna-se o caos da dor prevista em qualquer
tentativa fracassada. Assim, a criança edipiana terá que substituir seu desejo de ter para si o
pai ou a mãe, por um significante que represente a falta primeira e que de certa maneira
instaura-se a partir do nascimento, quando ainda a maior luta consiste em manter um elo
simbiótico com a mãe.
58
NASIO, Juan-David Op. cit., p. 118.
87
acesso ao desejo do Outro, constituído por um dos pais. Então, é provável que Polegar lute
para ser reconhecido como esperto e cheio de qualidades, pois somente assim poderá obter o
respeito da mãe, objeto de amor afastado pelo pai.
Para o menino, ele não é incapaz de despertar na mãe o amor que tanto deseja,
mas é o pai que impossibilita o acesso ao Todo Possível, embora a interdição dê a criança a
possibilidade de vivenciar o falus como significante. Assim, também acontece com a menina,
que para identificar-se com a mãe disputa o amor do pai e reatualiza sua “mãe má”, mas de
extrema importância para que a menina compreenda que o seu pai faz parte do inacessível.
Como se pode ver o casal ao chegar em casa, além de serem premiados com
dinheiro, podendo assim satisfazer-se da fome, como até tinham comida sobrando. A mãe,
representante da função de cuidar, zelar e alimentar se sente culpada ao pensar que enquanto
se regala no prazer da “carne”, da comida, os seus pobres filhos morrem abandonados na
floresta. Chega mesmo a apanhar por insistir no remorso e acusar o marido. Não por acaso ela
compra comida a mais, quase que se preparando para o exercício da sua função, mas também
para, de alguma forma, negar o interdito e permitir que seus filhos participem da comilança.
Tanto é assim que, desesperada chora alto e fala do seu arrependimento chamando pelos
meninos, que ao escutarem entram todos, gritando que estavam ali. Ela recebe seus filhos com
euforia e felicidade, além de referir-se muito especialmente a Pierrot, o mais velho, por quem
tem um amor muito especial, por se parecer muito com ela.
59
O Pequeno Polegar. In: Anexo 2, p. 268.
89
Assim, lava Pierrot que estava enlameado e alimenta todos. Portanto, está
confirmado seu exercício de maternagem. Enquanto, matam a fome as crianças falam do
medo que sentiram na floresta. Protegidos, parece que tudo está bem. Entretanto, a felicidade
durou apenas o tempo que durou o dinheiro.
Temos uma mãe doadora e boa oferecendo a saída por meio do alimento, mas
também dificultando a partida e a conquista daqueles que precisam superar os conflitos
edipianos.
Alguns elementos simbólicos podem ser importantes nesse momento. Dessa vez,
as crianças são levadas para um local da floresta que é fechado e escuro. Como já foi visto
anteriormente, a floresta pode ser interpretada como busca interior que pode levar à
descoberta de uma nova caminhada espiritual. Além disso, como na história de João e Maria ,
os pássaros comem o pão que serviria como pista para acharem o caminho de volta para casa.
Recordamos que os pássaros são quase sempre auxiliares mágicos que ajudam o
herói a superar as provas, então é curioso que esses atrapalhem os planos de Polegar.
Podemos recorrer à explicação utilizada por Bruno Bettelheim para tais situações, nas quais o
herói é testado mais de uma vez para poder enfim, ultrapassar a prova. Segundo este autor:
90
60
BETTELHEIM, Bruno. Op. cit., p. 138.
91
Podemos, inclusive, inferir que nesse momento cada um vive seu drama
caoticamente, e o fato de não se falarem, mostra também que para alcançar maturidade e
superar o medo, é preciso viver a solidão, ainda que isso os coloque diante de todos os
sentimentos caóticos e os faça descobrirem-se na “sujeira” daquilo que está guardado nas
camadas mais profundas do seu ser.
A lógica infantil pode funcionar nesse sentido. No entanto, é preciso viver o mais
fundo desse sentimento para emergir recompensado e consciente daquilo que existe de bom
em si. Por isso, Polegar aceita o desafio, sobe em uma árvore e procura por todos os lados ver
uma saída, até que avista para “além” da floresta uma luz que vem de longe. Desce da árvore
e angustia-se muito, pois do chão não consegue ver de onde vem a luz. Então, junto com os
irmãos segue procurando a luz. Andam incansavelmente. E antes mesmo, de alcançarem o
clarão que vinha de fora da floresta, passam por vários sobressaltos, descem em grotas
perdendo a luz de vista.
61
CHEVALIER, Jean., GHEERBRANT, Alain. et. al., p. 687.
92
Contudo, depois de várias descidas Polegar avista uma luz ao longe e segue em
sua direção. Ao chegar ao clarão encontram uma casa e bateram à porta. Então, uma boa
mulher atendeu e perguntou o que desejavam. Polegar disse-lhe que eram pobres meninos
perdidos na floresta e precisavam de abrigo, um lugar para passar a noite. A mulher
sensibilizada com a situação daquelas crianças, chora dizendo:
Pela segunda vez na narrativa, o Pequeno Polegar sente medo de ser devorado
pelos lobos, preferindo o confronto com o ogro a ter que se encontrar com tais animais. O
lobo tem inúmeras representações, tanto positivas quanto negativas, sendo a selvageria uma
das mais relevantes para a nossa análise, além da de devorador, daquele que faz descer pela
goela, significação de cavidade, escuridão, inferno. Segundo o Dicionário de Símbolos, o lobo
representa, também aspectos iniciáticos ligados aos elementos de oposição, como dia-noite,
morte-vida , assim é dito que:
62
O Pequeno Polegar. In : Anexo 2, p. 268.
93
63
CHEVALIER, Jean., GHEERBRANT, Alain. et. al. Op. cit., pp.555-557.
94
Numa grande parte dos contos de fadas que trata desse tema, a criança
abandonada ou longe de casa vence o dragão, o lobo ou o ogro, obtendo assim, por meio da
sublimação o prazer de ter vencido o pai com o qual disputa e rivaliza o amor da mãe. Vencer
o inimigo significa simbolicamente vencer os impulsos caóticos de destruição e perseguição
presentes na criança edípica, como também vencer o monstro pode significar vencer o pai e
conquistar o seu lugar. Esse tipo de projeção pode diminuir a culpa da criança, uma vez que
ela sabe que o objeto de ódio destruído foi o monstro, então a sublimação pode oferecer uma
certa dose de tranqüilidade e diminuição da culpa.
64
Idem, ibidem. In: Anexo 2, p. 268.
96
embora sutil como deve ser a verdadeira metáfora literária. Para nós, fica muito evidente a
possibilidade de que um menininho que enfrenta tais conflitos consiga projetar-se no esperto
Polegar, pois este carrega no próprio nome o significante de menino fálico, tal qual nos é
colocado :
Não resta dúvida, que a nossa personagem traz em si conteúdos fálicos e conflitos
edipianos, no que se incluí o medo pela ameaça de castração. É interessante observar que,
mesmo o enquadramento simbólico é mais acentuado no significado fálico do que no herói
enquanto salvaguarda do social. Polegar é pequeno, mas está posto na narrativa, sempre em
oposição ao grande, portanto disputam o mesmo espaço (micro e macrocosmo), luta para ser
idêntico ao Outro no desejo da mãe. É mesmo um princípio que direciona a pessoa e a insere
no contexto social, pois somente a criança que consegue atravessar as questões edipianas com
sucesso se torna alguém com equilíbrio interior capaz de aceitar os códigos e convenções que
determinam a organização social. Sobretudo, somente quem sofre o interdito de maneira
amparada pode inserir-se adequadamente dentro das leis que regem o social.
65
CHEVALIER, Jean., GHEERBRANT, Alain. et. al., p. 727.
97
Ora, é exatamente disso que estamos falando, pois parece verdadeiro que a saída
humana com relação à experiência de medo pela ameaça de castração é inventar um
significante que sirva de substituto para a falta, pois o destino do pênis é bastante diferente do
destino dos outros objetos pulsionais, ao cair eleva-se ao estatuto de significante do
66
NASIO, Juan-David. Op. cit., p.119.
98
desejo, o que quer dizer que quando o investimento no objeto de desejo é esgotado, mas algo
residual permanece como lembrança – sensação, então o que fica como resto dessa pulsão não
satisfeita, obedecerá à lógica do desejo sexual.
Entendemos que esse corte é instaurador da nossa primeira grande falta, separação
e queda. A partir daí seremos marcados por inúmeras outras separações, portanto múltiplas
dores. Mutilação e castração. Assim, é preciso fantasiar, ou seja, colocar no “lugar de”. Por
isso, a nossa fantasia é de nos tornarmos inteiros, espaço pleno de realização que somente o
Outro, imaginariamente, pode complementar. Afinal, no início não estávamos sozinhos.
67
QUEIRÓS, Bartolomeu Campos. In: VASSALO, Márcio. Folha Proler – Ano V – Número 21, Rio de Janeiro:
Fundação Biblioteca Nacional, 2001, p. 01.
99
castração impõe o grito que sublimará o registro do primeiro pedaço devorado pela condição
de sermos sujeito.
Sendo assim, a dor nada mais é do que um sintoma, um significante que aponta
para o fantasma sublimado. Nesse sentido, o medo da castração necessita do fantasma
doloroso para que o desejo seja recalcado e encontre sua saída nas pequenas e permanentes
dores. Dito dessa forma, a dor como sintoma manifesta-se exterior e sensível, oriunda de uma
pulsão impossível de ser satisfeita, por isso desejo inconsciente e recalcado.
Nosso pequeno herói, diante do olhar do Ogro projeta-se na sua própria dor ,
desejo reprimido de encontrar no Outro o gozo pleno e absoluto de ser inteiro. Portanto, ser
devorado aos pedaços reatualiza os primeiros monstros interditores da vida no Paraíso do
corpo da mãe.
Tanto quanto a Bruxa do conto João e Maria, o Ogro quer alimentar as crianças
para que fiquem apetitosas, pois tendo naquele momento com o que se regalar, aceitou o
conselho da mulher. Os pobres meninos estavam tão apavorados que não conseguiam sequer
comer, pois a ansiedade de castração era muito grande, pois o perigo ainda existe e o gigante
tinha apenas adiado a matança . Os pequenos sabiam que quando ele acordasse, então tudo
começaria de novo. Comer e dormir numa situação como essa é quase impossível, ainda mais
quando o opositor tem sete filhas ograzinhas, meninas com pele bonita e macia de tanto
comerem carne crua. Eram todas parecidas com o pai. Essas ograzinhas tinham olhos
cinzentos e redondinhos, nariz adunco, boca enorme e dentes muito afiados. Eram mesmo
monstruosas.
68
O Pequeno Polegar. In : Anexo 2, p. 268.
101
Agora, as crianças estão diante de uma situação que não parece ter saída, pois são
oito criaturas monstruosas que ameaçam tanto à integridade física quanto à psíquica. Diante
do que se passa, a boa mulher não tem como ajudá-los e naquele lugar é a única figura para
uma possível identificação, já que se difere do restante da família canibal. É preciso revisitar
os conteúdos simbólicos implícitos na imagem do Ogro e do que tal imagem pode provocar
no imaginário infantil, visto que:
69
CHEVALIER, Jean., GHEERBRANT, Alain. et al., p. 651.
102
Assim, o ogro tem mesmo a significação do pai monstruoso que interdita a relação
criança- mãe e a ameaça a sua integridade física e emocional, capaz de “afiar o facão” e cortar
aquilo que acredita ser para a criança, um instrumento de poder, portanto o falus.
Numa outra análise, esse ogro também pode representar o pai onipotente, que do
alto do seu narcisismo não permite o crescimento dos filhos, pois isso pode abalar sua fantasia
de poder. Ora, será que isso é tão difícil de ser verificado? Afinal quantos pais conhecemos
que cerceiam a liberdade de escolha dos filhos e os ameaçam com todo tipo de castigo,
somente para não perderem sua espada de poder?
Podemos questionar, por que os elementos trocados são justamente aqueles que
ornavam a cabeça e por que trocá-los representou a morte por mutilação da cabeça, visto que
o Ogro ao chegar ao quarto para matar os meninos dirige-se primeiramente , para aqueles que
estão com a coroa e leva um tremendo susto por imaginar que poderia ter se enganado e
degolado as próprias filhas. Vai à outra cama, toca na cabeça e percebe o gorro e faz o
serviço. Sem hesitar, corta o pescoço das sete filhas. A castração, enfim realiza-se, portanto
por meio da troca de identidades.
O Polegar salva a si e aos irmãos porque tem coragem de trocar os gorros pelas
coroas de ouro. Portanto, introjeta o que não é seu, mesmo sendo “desconhecido” e assume a
70
O Pequeno Polegar . In : Anexo 2, p. 268.
104
identidade do outro-duplo. De alguma forma, o menino não agiu de maneira inocente, usou
sua parte maléfica para livrar-se da morte e devoração.
A partir do momento que o monstruoso foi castrado, mutilado surge a dor do pai
interditor que degolando as filhas liberta os meninos do medo da castração e concede-lhes
acesso à “Metáfora Paterna” pensada por Freud e reformulada como “Em Nome do Pai” por
Lacan.
Não acreditamos que tantos símbolos sejam entrelaçados dentro de uma narrativa
de maneira inocente e despretensiosa. Existe, mesmo uma constelação de imagens que
conspiram na narrativa para provocarem um sentido no leitor, que é o da despertença do eu
para assumir-se no “mais além” da realidade instituída pelo texto.
Não por coincidência os gorros são trocados por coroas douradas. Os primeiros
podem ser visto como passaportes mágicos de acesso a outros mundos já que podem dar
invisibilidade a quem usa, como é o caso de muitos heróis da mitologia e do folclore. Por
outro lado, as coroas são de ouro e portanto podem conter a informação de que de fato
pertencem aos meninos visto que o Polegar é considerado um herói solar. Tanto o gorro tem
significado fálico como o sol também, de acordo com o simbolismo esses elementos podem
ter uma vasta significação, tais como:
A coroa como nos é apresentado acima é um prêmio concedido após uma prova
vencida. Temos então, uma concentração de significados que nos remete para o que não é dito
no texto, mas serve como signos provocadores daquilo que se pode compreender como o
sentido do conto. As meninas “invisíveis”, simbolizantes dos impulsos destrutivos da
71
CHEVALIER, Jean., GHEERBRANT, Alain. et. al., pp. 184, 185.
72
Idem, ibidem, pp. 289, 290.
106
personalidade dos meninos abandonados são terrivelmente castigadas, são degoladas pelo pai
– Ogro. Está portanto, instituída a castração simbólica do Pequeno Polegar.
O medo sentido por esta personagem pode ser facilmente verificado em crianças
em fase edipiana e devemos atentar para o conto nos menores detalhes, pois é possível que
encontremos indícios valiosos que confirmem ou neguem as nossas hipóteses, tal como o fato
de que quando o Ogro entra no quarto e passa a mão na cabeça dos meninos, somente o
Polegar estremece de medo, enquanto os outros permanecem dormindo.
A negociação com a “mãe” serve como indício de que a sedução está bastante
presente no menino que tem o objetivo de encantar e atrair os olhares do Outro para si. Pois,
somente ele é inteligente e esperto o suficiente para salvaguardar a família dos perigos
oferecidos pelo mundo. Assim, fica fácil de provar para a mulher amada que ele deve ser o
eleito no seu sentimento, pois o outro homem, representado pelo pai, é fraco e impotente, tão
incapaz que não consegue sequer alimentar a sua família.
Podemos imaginar que toda a trajetória do nosso herói solar segue no sentido de
voltar para casa coroado, vitorioso, pois foi capaz de salvar-se e também aos seus irmãos mais
velhos. A sua intenção consiste não somente em safar-se do perigo, mas de reinar vitorioso,
negando o “olhar” alheio de que é um parvo, sem voz e sem poder. Ele, afinal, é tão esperto
que mais uma vez engana o poder apresentado na sua forma mais cruel e aniquiladora.
A dor sentida pelo Polegar tem lugar noutras dores. A ameaça de castração é o
limite que abriga o Complexo de Édipo e que marca a superação de um estado de sofrimento
desregrado para outro no qual se pode suportar a dor da perda e resignificar o “órgão” perdido
transformando-o em afeto sublimado. Esse limite é tênue e impossível de ser localizado fora
do simbólico, pois está situado entre o corpo real e o corpo imaginário, fantasmado.
Esse conto, como tantos outros com intensidade metafórica, propõe ao leitor a
situação de conflito e de dor, às vezes até um sofrimento insuportável, mas também ao
mesmo tempo, assegura-nos de que a recuperação da perda, da queda, da ferida aberta, é
possível. Pois, essa recuperação é originária desse lugar salvador onde temos acesso, somente
pelo simbólico enquanto representante da falta.
É provável que o conto perturbe o pequeno leitor e que o deixe apavorado no
momento da degolação das meninas, pois é muito cruel estar diante de um pai tão monstruoso,
como também é difícil de ver que a saída encontrada por Polegar é cúmplice da maldade do
gigante. Ao mesmo tempo que isso é visto como sendo o pior do Outro, também produz um
olhar para dentro. No exato momento em que o Ogro pega o pescoço das suas filhas e realiza
o corte sem hesitar, ficamos indignados com ele, mas também com a astúcia do menino.
73
NASIO, Juan-David. Op. cit., p. 19.
74
Idem, ibidem, p. 26.
109
Ora, o que são essas etapas senão provas pelas quais temos que passar diariamente
para podermos sobreviver no meio de todas as perdas, desde as pessoais até as coletivas ? Não
somente passar, mas sobretudo superar para que cheguemos ao lugar desejado.
Sendo as meninas mortas o duplo dos meninos abandonados, mas em luta para
atravessar os desafios, nada mais coerente no tecido da narrativa do que oferecer ao Polegar
um espaço de reação em oposição à comoção resultante da dor da castração.
Após o ataque violento do Ogro, novamente é o menino que corre atrás da solução
para poder sair ileso do perigo. Quando percebe que o gigante sai do quarto, cuida de acordar
os irmãos para partirem apressadamente. Como a batalha, ainda, não está totalmente vencida,
eles correm com muito medo. Pulam muro e correm o resto da noite sem saber para onde ir ou
que destino devem tomar.
Claro que depois de uma grande ruptura vem a luta por um espaço novo e
desconhecido no qual se precisa conquistar para confiar. Sendo assim, é mesmo preciso pular
muros, tremer diante do que está além dele e correr muito para conseguir reconhecer-se como
um novo ser, emergente do sofrimento. Ninguém, depois de transpor uma prova, um perigo
ou ameaça sente-se tranqüilo imediatamente, pois é necessário que as perdas sejam
processadas, registradas afetivamente. Isso, implica em tempo para a maturação, quase o
mesmo que se leva para superar um grande desafio.
Na verdade, a sua luta com o gigante não termina aí, embora seja a etapa mais
difícil, muita coisa acontece até que Polegar sinta-se seguro para voltar para sua casa. O Ogro
investirá na perseguição aos meninos, pois ele se desespera ao perceber seu terrível engano.
Para ele, seu objetivo fracassou. Não interessa comer o que é seu, mas precisamente o que
está na ordem do Outro. Quer carne fresca, mas não aquela que representa o pecado. Comer
suas filhas significa devorá-las, possui-las ilimitadamente. Mas, o pai interditor e mau é a lei
que proíbe o incesto, portanto o Ogro não pode comer suas filhinhas.
Contudo, logo após a fuga dos meninos a narrativa fala do desespero da mulher e
de seu marido ao se depararem com a cena grotesca, no qual encontram as sete filhas
110
degoladas e mergulhadas numa poça de sangue. A mulher desmaia e o gigante fica colérico se
perguntando como podia ter feito aquilo, assim esbraveja:
Parece que a saída encontrada é sublimar a fantasia incestuosa por meio de outra
fantasia que é a de se sentir tão poderoso como o (falus) pai. Sendo assim, não é tão perigoso
querer a mãe, pois o pai – presente não consiste mais numa ameaça, mas precisamente num
aliado identificado pelo falus.
75
O Pequeno Polegar. In : Anexo 2, p. 268.
111
Estamos diante de um gigante não somente muito feroz, como também poderoso,
pois para seguir os meninos calça uma bota de sete léguas que o faz transpor montanhas e
encontrar o que quiser. Esse pai – mau interrompe os meninos quando os mesmos estão muito
próximos da casa do pai- “bom”, que embora Polegar o veja como um rival porque tem
ciúmes dele com a mãe, ele não o ameaça com um facão.
A grande saída para que o menino edipiano encontra para aceitar o pai –rival.
Possivelmente, esses dois pais se encontram nesse momento do conto tão próximos, porque
seja necessário que o menino possa confrontá-los e assim “escolher” a melhor saída para a sua
confusão afetiva.
Por outro lado, temos elementos de conteúdo bastante mágicos, como a bota de
sete léguas, que pode levar quem as usa para qualquer lugar, transpor todo limite, enfim não
há montanha ou riacho que possa atrapalhar aquele que as calça. Além disso, o pé também
pode significar domínio da realidade. Depois, o pé é símbolo fálico, de poder e ascensão.
Junto disso, temos as montanhas que podem significar pela sua elevação, a força,
limite entre o visto e o não visto, castelo interior, morada da alma, elevação entre outras
coisas, pois estamos diante de um simbolismo dos mais múltiplos. Entretanto, para nós é mais
significativo analisar o fato de Polegar se refugiar numa reentrância rochosa. Agora, não
estamos mais nos referindo ao que se projeta para o alto, mas contrariamente, ao que está para
dentro. O texto nos diz que os meninos se esconderam, refugiaram numa reentrância, portanto
cavidade.
Ora, o que é uma cavidade senão um buraco ? Embora um buraco signifique quase
sempre o desconhecido e por isso, temível, esse do qual falamos, presta-se como abrigo e
pode servir inconscientemente como uma representação do corpo materno que protege.
Outrossim, uma “caixa” ou cavidade é sempre um lugar secreto que pode acolher ou sufocar.
nele também está o proibido, vetado, dai que é uma reentrância rochosa, imóvel, imutável e
talvez perigosa. As cavidades têm também um sentido do surpreendente, do desconhecido que
se deve ter cuidado, pois “abrir uma caixa” pode implicar num grande risco. O secreto
também relaciona-se ao inconsciente e suas possibilidades positivas ou negativas.
O texto revela que estar ali dentro sem poder sair, correndo o risco de
sufocamento ou de serem descobertos é tão amedrontador quanto ser ameaçado por um facão.
Mas, a narrativa também diz que estando o Ogro a roncar em sono profundo, o Polegar, que
está menos assustado do que os outros, sugere que os irmãos aproveitem o momento e fujam
para casa e não se preocupem com ele próprio. Assim, os meninos logo alcançam à casa dos
pais.
Vejamos: somente o mais novo não parte, sob a justificativa de ficar no local para
proteger os demais. Mas, sendo ele tão pequeno deveria ser o primeiro a retornar para os
braços da mãe e do pai. Entretanto, exatamente por ser ele a criança que vive os conflitos
edipianos, precisa da longa viagem até que esteja suficientemente maduro para retornar
vencedor.
Tendo ultrapassado a prova fundamental, ainda precisa provar para si mesmo que
alcançou outro grau de maturidade humana, portanto cresceu. Sendo que nesse momento da
história ele ainda não está pronto para ser cúmplice do pai interditor. Tanto não está, que em
vez de partir com os irmãos e aproveitar o sono do Ogro, ele fica para mais um desafio.
Dessa vez, o menino tenta novamente estar no lugar do Outro, de acordo com o
conto:
Verificamos que nessa atitude do nosso pequeno herói existe mais do que
esperteza e ousadia, pois isso não repassa para a criança um sentido maior de existência e
afinal, não estamos diante de uma narrativa despossuída de valor metafórico.
A história poderia ter sido encerrada no momento em que o Ogro dorme, dando
oportunidade de fuga para todos os meninos. Entretanto, não é isso que acontece. Na
realidade, Polegar ainda precisa de tempo para se certificar sobre o seu lugar na família e na
relação com a sua mãe. Além disso, ele precisa identificar-se com o pai bom, após ter
enfrentado o pai mau.
De qualquer maneira, o menino não é tão inocente e cheio de boas intenções, pois
para alcançar seus objetivos ele rouba, mente e apodera-se do que é do Outro. Acreditamos
que a narrativa a partir disso ganha uma nova interpretação, sendo então necessário uma
76
Idem, ibidem, p. 268.
114
interpretação mais específica com relação às conquistas do herói por um outro nível de
maturidade e crescimento, o que implica no fato de “enganar” o pai mau, roubando-lhe a
identidade e o poder (botas) para enfim, retornar gratificado e vitorioso para a casa.
Nas próximas páginas, trataremos dessa busca pela identificação com o Outro e
também, o que isso pode representar no momento de travessia da criança que enfrenta
conflitos edipianos para uma outra experiência de afeto, a qual somente se tem acesso pelo
viés da realização de uma fantasia de onipotência e salvação. Então, deixamos a análise de
símbolos e possíveis conjecturas sobre tais questões para a próxima discussão, da qual
tratamos a seguir tomando como referência o conto O Junípero.
CAPÍTULO 4
Neste capítulo, nos propomos a analisar de maneira mais enfática a dor sob a lente
de alguns pressupostos da psicanálise e dos elementos estruturantes da narrativa que possam
nos revelar por que histórias dessa natureza, ao mesmo tempo em que causam o horror da
criança são capazes também de exercer um enorme poder de sedução.
O Junípero faz parte da coletânea dos irmãos Grimm, conhecida também como A
árvore do Junípero, e não é uma das histórias mais conhecidas, principalmente das crianças
de hoje, talvez pelo fato de ser um conto com aspectos muito cruéis e que tende a mexer com
os conteúdos internos de quem a lê. No entanto, durante o período dos nossos estudos
observamos que no espaço da sala de leitura, entre muitos e muitos livros, esse é um conto
dos mais procurados pelas crianças.
O fato de ser um conto desejado pelos pequenos nos despertou o interesse, pois
muitos liam O Junípero repetidas vezes e não cansavam de se escandalizar com a madrasta e
ter reações de euforia quando a mesma é castigada. Percebemos que mesmo sendo uma
história assustadora, as crianças tinham prazer em escutá-la ou lê-la.
De fato, isso chama a nossa atenção, embora não seja tão difícil de ser
compreendido, pois é uma narrativa que trata do canibalismo, da rejeição, de uma madrasta
terrível e ciumenta, do amor entre irmãos e da superação pelo amor. Se por um lado temos
uma trama com requintes de crueldade como veremos mais adiante, por outro temos a vitória
do bem garantindo à criança, que mesmo diante das piores situações, ela encontrará forças
para superá-las e sair vitoriosa.
77
YGOTSKY, Lev S. Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1978.
116
Os contos de fadas são narrativas que falam de um mundo encantado, mas sem
destituir desse universo todos os valores que abarcam a experiência humana, tanto os do bem
como os do mal. Tratam da luta universal que compõem as esferas do individual e do
coletivo.
Ao tratarem da polaridade bem x mal , os contos abordam uma batalha originada
internamente, fruto de uma dinâmica psicológica primitiva, na qual surgem as primeiras
divisões entre mãe e filho nas quais aparecem os primeiros horizontes de conflito. Sem
dúvida, tratamos nesse momento de uma narrativa que traz essa luta de forma contundente.
Reconhecemos que não é fácil estar diante das nossas divisões básicas, não é
confortável ver em nós os impulsos instintivos que nos reconduzem para um lugar
supostamente “esquecido”, embora com muita freqüência todos nós estejamos entre escolher
o bem ou mal, pois :
significante das forças do mal e o que causa conforto e bem estar será tido como representante
do bem.
Nessa perspectiva, não podemos negar a figura materna como sendo a fonte
primeira de tudo, bem e mal nela se fundem e dão origem aos múltiplos sentimentos, por
conseguinte não é mero acaso que a mãe possua tanta importância em muitos contos de fadas,
oferecendo uma imagem de segurança e proteção ou de ameaça, abandono e aniquilação.
donde ela provém ou que ela visa, através dos vividos corporais
e depois psíquicos que ela evoca.”79
Talvez surja explicação para o fato das crianças se sentirem tão perturbadas e
atraídas pelos contos que expõem uma certa dose de horror, pois nos parece que negar o mal é
protegê-lo, guardá-lo. O que pode por vezes, ser muito mais fatal para a integridade psíquica
do que o seu enfrentamento. Pois, os contos de fadas fazem exatamente esse papel mediador,
no qual o leitor reatualiza sua dor pela dor do Outro.
79
ANZIEU, Didier. et al. Psicanálise e Linguagem: do corpo à palavra. Lisboa: Moraes, 1979, p.11.
119
algumas conjecturas a esse respeito. Assim, para nós nesse momento, interessa sublinhar
alguns aspectos da dor que consideramos fundamentais para a abordagem do nosso tema, pois
existem nessa narrativa de maneira muito especial, questões relacionadas ao desprazer que
merecem algumas considerações.
Desejamos por hora, traçar o nosso percurso de análise norteados pelo que diz
Juan David-Nasio no seu trabalho intitulado “Da Dor e do Amor”, quando refere-se aos três
tempos da dor como sendo: da ruptura, da comoção e da reação defensiva do eu, para o qual
ele sugere as seguintes premissas:
80
NASIO, Juan-David. Op. cit., pp. 20-22.
120
Assim, nos preparamos para a seguir, interpretar as várias etapas do conto à luz
daquilo que nos é colocado pela psicanálise com relação à dor e ao desprazer, na perspectiva
de realizar uma aliança que possa ser esclarecedora para os estudos que investigam a
importância dos contos de fadas na formação de leitores, mas principalmente com relação à
contribuição que oferece para a vida de fantasia do leitor infantil. Afinal, essas histórias são
muito mais do que narrativas inocentes, capazes somente de divertir. Ora, nenhum
instrumento de leitura se sustentaria no tempo e no espaço se não tivesse um significado
maior do que provocar o entretenimento.
Então, partimos para conhecer melhor o sentido da presença da dor nos contos
para a infância, nos permitindo seguir o caminho provocado pela narrativa O Junípero, dentro
da sua rede de conexões simbólicas e como isso pode ser refletido em cada leitor, a partir do
literário que se inscreve por excelência nas ordens do prazer e desprazer.
Essa é uma consideração que nos interessa na medida em que coloca a obra
literária, no nosso caso, os contos de fadas, num lugar privilegiado da diferença, pois sendo a
narrativa fundada a partir do real dos dados do inconscientes e pré-conscientes, estabelece-se
numa ordem de caráter singular, mas também universal, portanto aquilo que pode ser
considerado como complexo ou fantasma comum e banal é transformado em um texto
singular e raro, porque diz respeito à diferença da história de cada leitor.
Então, o drama da narrativa passa a ser a história do drama secreto vivido por
cada leitor, na medida em que se projeta no vivido das personagens e no emaranhado das suas
dores.
Não é engano afirmar, que toda narrativa articula-se no jogo da presença-ausência
inerente ao mundo simbólico, tudo começa nesse ponto confuso onde a presença é marca da
ausência e o contrário é verdadeiro. Assim, a narrativa está sempre marcada por um traço
subjetivo sustentado pelo desejo do Outro. Talvez, se possa dizer que a narrativa é esse
espaço onde moram as nossas histórias com tudo que elas representam. É mais de que a
narração de um acontecimento, de um fato. É mais do que trama tecida ao prazer das palavras,
pois a narrativa traz em si o ritmo, a velocidade, os cortes, a explosão de sentimentos porque
diz respeito ao vivido ou revivido por cada pessoa que lê , naquele outro que é o texto, as suas
próprias existências.
81
Idem, ibidem, p. 197-199.
122
essa história tão repleta de amargura, medo, solidão e tristeza também fala de tempos
imemoráveis, onde a presença do caos desnorteava as emoções.
Esse é um conto que traz na sua trama conflitos muito comuns presentes na vida
das crianças, embora se pareça absurdo que uma criatura seja tão cruel quanto à madrasta,
sabemos que a crueldade não é um traço tão raro na personalidade de muitas pessoas e que
com freqüência nos expomos às notícias veiculadas pela mídia que tratam de denunciar pais
que são capazes das mais terríveis atrocidades contra seus próprios filhos.
Como na maioria dos contos, O Junípero, nos convida a adentrar no tempo do Era
uma vez, nesse tempo que foge e permanece no sempre. Que é marcado por algo mágico, no
qual a nossa consciência escapa dos transtornos diários para tocar no “real” da ficção como se
tudo fosse de fato uma verdade a ser vivida. Enquanto, vivemos o tempo do conto estamos
salvaguardados, presos e reféns de uma história que é do Outro, mas que secretamente
também é nossa. A vida nesse tempo é.
“Era uma vez, há muito tempo, nada menos de dois mil anos,
um homem muito rico, casado com uma mulher bela e
virtuosa, que muito o amava, assim como ele muito a amava.
Não tinham filhos, porém, apesar das preces que a mulher
rezava diariamente, pedindo-os a Deus. Em frente de sua casa,
havia o jardim, onde crescia uma bela árvore, um junípero, e,
em um dia de inverno, a mulher estava perto dela, descascando
uma maçã, quando cortou o dedo com a faca e algumas gotas
de sangue caíram na neve.
123
Estamos aqui no primeiro tempo da dor, a ruptura. Temos até então, uma
narrativa que segue os mesmos padrões de tantos outros contos de fadas. Uma bela mulher
que vive muito feliz com seu marido rico e deseja ter um filho para complementar a sua
felicidade. O desejo do casal de gerar uma nova vida é um início bastante comum nessas
histórias. Tal qual como em Branca de Neve, que apresenta uma rainha desejosa de ter uma
filha com lábios vermelhos como sangue, e a pele branca como a neve, além do cabelo da cor
do ébano, na história do Junípero temos uma mãe que descascando uma maçã, corta o dedo e
deseja ter um filho.
O desejo de se ter um filho nos contos de fadas inicia muitas narrativas, o que de
certa forma, diz à criança que os pais desejam seus filhos e que colocar uma vida no mundo é
82
O Junípero. In: Anexo 3, p. 280.
124
algo muito especial que denota força e poder. Assim, o pedido da bela mulher é atendido após
ter cortado o dedo quando descascava uma maçã.
Tanto a maçã quanto o sangue são dois elementos com uma significação
simbólica muito rica. A maçã nos remete ao paraíso e ao pecado original, portanto à queda. O
sangue é vida, pulsão sexual e está ligado a vários rituais. Consideramos que o conto O
Junípero tem seu início por meio de símbolos com acentuado apelo à sexualidade.
Vejamos o que diz o Dicionário de Símbolos sobre esses dois signos que dão
início a história:
83
CHEVALIER, Jean., GHEERBRANT, Alain. et. al. Op. cit., p. 572.
125
Assim, seguindo na direção do que mostram os signos que dão início a essa
narrativa, compreendemos a natureza do desejo de gerar um filho, como também sendo a
maçã e o sangue simbologias ligadas à vida e à fertilidade nos serve como anúncio de que em
breve a bela e feliz mulher será mãe de um menino branco como a neve e corado como o
vermelho do sangue.
No oitavo mês de gravidez ela come das frutas do junípero, fica triste e doente. A
árvore, símbolo de vida e fertilidade é também o seu instrumento de morte. Entretanto, ao
pedir ao marido que se morresse gostaria de ser enterrada debaixo do junípero, sente alívio e
consolo, estando preparada para no nono mês dar à luz ao seu filho. E assim , acontece. Nasce
um menino branco como a neve e corado como o sangue.
No conto, fica claro que a mulher está tão feliz com a realização do seu desejo,
que ao ver a criança, morre. Estranho alguém morrer de felicidade! No entanto, a psicanálise
diz que a morte é o único momento de gozo absoluto, pleno, inércia total. Equilíbrio.
Provavelmente, o jogo entre felicidade e morte encontre ai o seu sentido. Morrer tanto é final
de ciclo como início de uma nova etapa. Nesse instante, estamos diante do fato que provocará
o surgimento de todos os conflitos que iniciarão o momento da travessia, compreende-se essa
etapa como sendo a da viagem, da partida, característico dos contos de fadas.
Quando a menina nasceu, a mulher sentiu por ela um grande amor, mas em
contrapartida ao ver o menino, filho do marido, sentiu um aperto no coração, pois ele seria
sempre uma ameaça já que, a sua filha teria que dividir com ele a fortuna da família.
84
Idem, ibidem, p. 800.
126
Interpretamos que fortuna dentro desse contexto tem um significado maior do que
o de riqueza material, pois nos parece que a mulher ama bastante sua filha, fruto da sua
relação com o pai do menino, mas sente um profundo ciúme dele, já que tem que dividir a
atenção e o amor , além dos bens materiais.
Não temos dúvida de que estamos diante de uma madrasta diabólica, capaz das
atitudes mais cruéis para alcançar seu objetivo, mas na realidade antes de chegar ao momento
de maior tensão da narrativa, imaginamos que essa mãe má fará uso dos mesmos artifícios
utilizados pelas bruxas e madrastas dos contos de fadas, até que nos damos conta do quanto
ela é terrível.
Pois, um dia a mulher está em seu quarto e sua filha pede-lhe uma maçã. A
mulher retira a fruta de uma arca que tinha uma tampa grande, pesada e com uma fechadura
de ferro muito afiada. Logo depois, entrega a maçã à filha e a mesma interroga-lhe se o seu
irmão, também como ela, receberá uma maçã. A pergunta deixa a mulher furiosa, mas ela
contém-se e responde que sim. Nesse momento, a narrativa se conduz para o outro tempo da
dor, a comoção. Certamente, é a parte mais tenebrosa da história, pois quando viu pela janela
que o menino estava voltando da Escola foi tomada pelo demônio e em vez de dar a maçã a
menina, disse que ela não iria receber a fruta antes do irmão.
127
Toda essa citação do texto é para que se possa ter a exata dimensão do quanto esse
conto apresenta uma madrasta maléfica, capaz não somente de matar o enteado, mas também
fazer com que a própria filha sinta-se culpada da morte do irmão. Estamos, possivelmente,
diante de uma das mais terríveis histórias dos contos de fadas, visto que ela apresenta o mal
em uma das suas piores versões.
Fica claro que esse não é um conto que traga a rivalidade entre irmãos como eixo
da narrativa, pois ao contrário Marlinchen, que é diminutivo de Marlene em alemão, tem amor
pelo meio irmão, tanto é assim que antes de receber a maçã, lembra-se dele e isso, na verdade
leva ao desfecho desse episódio horrendo, mesmo sendo ela inocente.
85
O Junípero. In: Anexo 3, p. 280.
129
Imaginem uma criança cuja cabeça foi-lhe decepada por uma enorme tampa de
baú e a mesma cai rolando entre as maçãs – fruta da vida, da fertilidade, do pecado e da
sedução. Ora, o menino , embora perceba o estranho olhar da madrasta, cai na tentação de ser
querido para receber os mimos daquela que lhe maltrata.
Isso nos faz lembrar, que a criança tem uma necessidade enorme de auto-
afirmação, ela precisa ser reassegurada constantemente de que é amada pelos pais. A criança
com problemas de rejeição tem uma tendência para se tornar vítima, assim sustenta-se na
certeza de que quanto mais é boa e generosa para os pais, mais eles o preterem. Assim, vai
adquirindo uma capacidade quase mórbida de agradar o Outro, fazendo coisas para atender ao
desejo dos pais, enquanto o seu sentimento de rejeição é ampliado pela fantasia de que se o
irmão é mais amado é porque é melhor: mais bonito e virtuoso.
Provavelmente, isso acontece ao nosso herói, pois se assim não fosse ele não teria
aceitado a sedução da madrasta, já que desconfiou do seu olhar, no momento em que
ofereceu-lhe a maçã. Por outro lado, é a necessidade de amor que faz com que o pequeno
receba o carinho da mulher. Além disso, temos que comunicar que :
Acreditamos, que esse seja um dos motivos pelo o qual o menino arrisca-se, pois
para ganhar força e maturidade é necessário o confronto com o diferente, é fundamental que
se aceite o desafio de conhecer o Outro. Então, o menino recebe o carinho da mãe-má porque
na sua carência afetiva precisa ser aprovado por ela, mas também porque como todo herói ele
aceita o desafio ou para o bem ou para o mal, pois isso o tornará mais maduro para buscar sua
felicidade .
O fato é que, mesmo desconfiado ele não imagina, como o leitor também não, que
a sua madrasta seria capaz de tanto. Estamos diante de uma das cenas mais grotescas dos
contos de fadas e, em conseqüência disso pouco difundido, pois muitos pais e professores
afirmam que essa história não deve ser contada para as crianças visto possuir um conteúdo tão
cruel.
Isso, faz pensar que esses adultos não conhecem adequadamente as suas crianças,
pois o conteúdo manifesto pelo conto nada mais é do que aquele já experimentado na
infância, todas as vezes nas quais existem ameaças e angústias com relação ao sentimento do
Outro por nós.
Muitas pesquisas apontam para o fato de que a maior parte das crianças já sentiu
medo de um dos pais a tal ponto de se sentirem ameaçadas de morte. Afinal, esse sentimento
faz parte de uma fantasia infantil originada numa etapa primitiva da formação do sujeito,
quando o bebê sente a divisão do eu e passa a conceber os afetos como sendo bons ou maus.
Assim, para o bebê a mãe também está dividida em duas partes distintas: a mãe boa e doadora
que o gratifica pelo alimento, representante, de acordo com M. Klein, do seio bom, e a mãe
má, que o persegue e castiga por conta dos seus impulsos devoradores, sendo portanto
representante do seio mau.
Como já foi afirmado anteriormente, tanto a mãe boa quanto a mãe má precisam
ser introjetadas para que a criança sinta-se inteira e possa compreender a complexidade dos
seus afetos. Assim, ela precisa ser encorajada a enfrentar as pulsões destruidoras
representadas pela mãe – má. Somente, uma criança que entra em contato com o seu lado mau
e perverso, consegue ser realmente doadora, portanto boa.
86
BETTELHEIM, Bruno. Op. cit., p.100.
131
Assim, o conto nos ensina que o mal existe e deve ser enfrentado, pois apenas
quando nos confrontamos com as duas naturezas da nossa personalidade estamos seguros para
ser verdadeiramente amados.
Ora, é muito comum as crianças que se sentem perturbadas por seus conflitos
edipianos acreditarem que vão ser abandonadas pelos pais como castigo, ao descobrirem o seu
desejo de livrar-se de um dos pais. Assim, o conto de fadas traz como fórmula para inverter
essa situação, a criança que é abandonada.
O mesmo acontece com o menino do Junípero, pois ainda que sem culpa, a mãe o
abandona porque morre e assim, ele está privado das satisfações afetivas originadas da relação
com a mãe, que como já dissemos, é fonte de alimento e amor.
O herói dessa história é uma bela imagem da criança desprovida dos cuidados dos
seus pais, portanto exposta às crueldades advindas de uma mãe-má.
A mãe do nosso pequeno, por mais que o desejasse, não foi forte para viver e
cumprir sua função materna, então temos uma criança atormentada, pois na fantasia a criança
cuja mãe morre logo após o parto, cultiva o sentimento de culpa e ao mesmo tempo de
rejeição, ou seja, “eu não fui bom com a mamãe, então ela me abandonou”. Evidentemente,
tal situação é experimentada inconscientemente, é uma marca afetiva deixada pela perda do
corpo da mãe, corpo simbólico, lugar da transferência de um amor total.
Além da perda da mãe –boa, o menino depara-se com uma terrível madrasta,
representação da bruxa e de todos os sentimentos maléficos que alguém pode incorporar. É
tão impiedosa, que assassina a criança e coloca a culpa na sua inocente filha.
87
Idem, ibidem, pp. 245, 246.
133
Claro, que qualquer criança saudável ficará horrorizada diante dessa madrasta
perversa que além de matar o enteado, faz a filha se sentir culpada e depois o corta em
pedacinhos para que vire chouriço e , finalmente seja servido como jantar ao pai, que o
saboreia com prazer.
88
CASHDAN, Sheldon. Op. cit., p. 288.
134
A mulher não somente corta o menino em pedacinhos como também, faz a filha
ajudá-la em tal tarefa. A pobre da menina chora tanto que o chouriço é salgado por suas
lágrimas.
Marlinchen, então é mais do que culpada, pois mesmo que não acreditasse no fato
de ter sido ela a matar o irmão, agora seria cúmplice da sua terrível mãe.
O conto diz que o pai ao sentir a ausência do filho foi enganado pela mulher que
respondeu –lhe dizendo que o menino havia partido para casa de uma tia-avó e que lá ficaria
por algumas semanas. O pai não compreendeu a atitude do pequeno, pois nem sequer ele se
despediu e isso causou-lhe tristeza.
A irmã, muito triste foi até o quarto e pegou um lenço branco com o qual enrolou
os ossos do irmão. O conto nos diz ela:
A presença do lenço branco pela segunda vez nos leva a dar importância do
símbolo dentro da evolução da história, pois não somente é recorrente, como também serve
para esconder e amarrar os ossos do menino. No seu primeiro surgimento serve para amarrar a
cabeça ao pescoço para que a menina não note que o irmão fora degolado. Na segunda vez,
serve para esconder os ossos para que a irmã os transporte até a árvore.
Ora, um lenço branco pode ser sinal de tristeza e despedida, mas também pode
ser um sinal de trégua e paz. É num lenço de seda branco que o menino morto é transportado
para a beira do Junípero, onde sua mãe havia sido enterrada. Daí , a pequena ter a sensação de
que alguém bate palmas de alegria, a natureza anuncia-se e da árvore surge uma névoa, de
cujo o centro crepita o fogo, que é vida, energia, calor e transmutação e dele surge um lindo
pássaro.
O fato da irmã depositar os ossos do menino junto ao Junípero e assim os misturar
aos ossos da mãe, nos conduz a pensar de que nesse momento uma ordem primitiva é
restaurada, reiterada simbolicamente e o elo entre criança e mãe ressurge para garantir à
criança a confiança numa mãe boa, que salva e protege. A mesma mãe que desejou o
nascimento daquele filho será aquela que o fará renascer transformado num belo pássaro.
Agora, forte e capaz de libertar-se dos perigos e artimanhas de uma mãe-má.
A ressurreição do menino poderia finalizar a história, entretanto não basta apenas
o reencontro com a mãe-boa e por isso, em vez de conclusão o surgimento do pássaro anuncia
o início de uma longa jornada, na qual o pequeno terá que cumprir algumas etapas antes de
89
O Junípero. In: Anexo 3, p. 280.
136
voltar para casa garantido de que é forte o suficiente para enfrentar os ataques de uma mãe-
má.
Essa é uma narrativa que também gira em torno da comida, pois a mãe come a
maçã e realiza seu desejo de ficar grávida, posteriormente ela come os frutos do Junípero e
fica doente. O menino, também é morto porque aceita uma maçã. Depois de morto é
transformado em chouriço e servido ao pai que se delicia. Finalmente, a história é concluída e
o final feliz realiza-se à mesa.
Entendemos que a comida não somente satisfaz uma fome orgânica, mas que
também carrega algo visceral que é da ordem do prazer e portanto relaciona-se às pulsões
orais. Por esse motivo, ela é um assunto tão visitado pelos contos de fadas, chegando mesmo a
ser o motivo, o tema gerador de muitos conflitos, apresentado quase sempre pelo canibalismo
das personagens que representam os instintos selvagens.
É verdade, o canibalismo escapa à razão e por isso ele deve ser avaliado à luz do
que representa para o mundo psíquico da criança. Reiteramos o ponto de vista de que atribuir
a bruxa ou Ogro qualidades canibalescas, confere aos mesmos o nosso olhar de repugnância.
Mas, para que a personagem antagonista da narrativa mereça um castigo drástico, não
acreditamos que isso precise ser justificado pelo canibalismo dos mesmos.
Como ela afirma em muitas das suas conferências publicadas, Inveja e Gratidão e
outros trabalhos, a origem de todos os sentimentos está diretamente ligada à relação da
criança com a mãe, portanto com o seio materno , que é fonte de alimento e amor. Mas que,
por outro lado, num momento inicial da vida do bebê ele sofre uma cisão e passa a ser tanto o
seio bom e gratificador quanto o seio mau e perseguidor.
Ora, a mãe boa representa para todos nós a fonte de alimento, carinho, proteção e
amor. Para nós ela é capaz de nos salvar de todos os perigos e dissabores existenciais, é um
Nirvana. Claro, que isso faz parte de uma fantasia de que um dia fomos plenos, inteiros e que
tudo era um paraíso. Mas, vem o corte e com ele a primeira ruptura que nos dará acesso ao
Outro, portanto ao simbólico e nesse momento o bebê sente a ameaça que vem do Outro, que
é a mãe.
Logo, a criança percebe que a mãe não é somente boa, embora exista uma
idealização da sua imagem como sendo todo o bem do mundo. Assim, as madrastas e bruxas
dos contos de fadas tomam o lugar da mãe-má e por isso elas são tão temidas, mas ao mesmo
90
CASHDAN, Sheldon. Op. cit., p. 67.
138
tempo sedutoras. Assim, a mãe representante do seio mau é necessária para que o bebê
compreenda afetivamente que a mãe é consistente e inconsistente, gratificante e frustrante,
boa e ruim.
Inclusive, Klein chegou a utilizar os contos de fadas como ponte para a descoberta
do não-dito de muitas crianças, aparentemente perturbadas por conflitos internos causadores
de ansiedades e depressão
No conto que por hora analisamos, podemos verificar que a menina acreditando
ser culpada da morte do irmão é terrivelmente acometida pelos sentimentos de dor e
depressão. Afinal, se o irmão foi perseguido pela mãe-má, representada pela madrasta, ela
também corre o risco e a ameaça de aniquilação, mesmo que acredite que de fato matou o
irmão e ajudou a mãe a cozinhá-lo. Fica então, um grande medo e angústia de ser ameaçada
na sua integridade física, além da imensa culpa por pensar que é a responsável por tal fato.
91
KLEIN, Melanie. Inveja e Gratidão e outros trabalhos (1946–1963). Rio de Janeiro: Imago, 1991.
140
Claro, que a criança ao entrar em contato com uma personagem como a madrasta
do conto O Junípero, compreenderá que se trata de uma imagem, por conseguinte de uma
representação e tal fato dá a narrativa um sentido de que para alcançarmos maturidade e
independência é preciso lutar contra aquilo que nos perturba e para tanto, basta recorremos
aos nossos próprios recursos internos, assim como fez o menino.
92
Idem, ibidem, pp. 24, 25.
141
pássaro e sair para a conquista de um ego mais inteiro, menos fragmentado e despedaçado, já
que seu corpo fora cortado em pedacinhos.
Depois, que recebeu da irmã tão generosa o carinho necessário , como o pássaro
mesmo canta, então saiu para resgatar seu objeto bom, primeiro representado pela corrente de
ouro que o ourives lhe entregou.
Nota-se que o ourives não deu a corrente, mas trocou-a pelo canto do pássaro, tal
como diz a narrativa o ourives estava fazendo a corrente quando escutou o canto e sentiu
curiosidade em saber que pássaro era aquele com tão lindo canto.
Apressado, saiu pela porta de entrada da casa e como caminhava rápido perdeu
um dos chinelos. A rua estava intensamente iluminada pelo sol forte. Então, quando viu o
pássaro, pediu que repetisse o canto e o mesmo disse que não, pois somente o repetia em troca
de algo. Assim, conseguiu a corrente e repetiu o canto.
Para nós fica claro que o Sol surge como indício de uma conquista, na qual o
menino renasce para cumprir seu destino, após ter vencido as três provas, quase sempre, nos
contos de fadas, são três provas que o herói precisa superar para chegar ao seu destino. A ave
canora ultrapassa a primeira prova quando recebe do ourives a corrente dourada ( como a luz
93
CHEVALIER, Jean., GHEERBRANT, Alain. et. al. Op. cit., pp. 839-841.
143
do sol), mais uma pista de que o menino-pássaro está como a lagarta no casulo, esperando a
metamorfose final, quando será capaz de assumir sua humanidade e destruir a madrasta.
Acentuamos ainda, que o Sol pode ser considerado símbolo fálico, representante
de poder, como também de pai. Então, o fato do Sol está presente durante a viagem da ave,
acompanhando e iluminando o vôo e o pouso dela, nos leva a pensar que na medida em que o
menino toma consciência do seu destino e do quanto precisa destruir a madrasta para poder
surgir vitorioso e finalmente, aproximar-se do pai, buscando uma identificação positiva, então
vai realizando trocas , como num verdadeiro processo de introjeção e projeção. Afinal, o
pássaro só repete o canto, ou seja, doa o seu objeto bom se receber do Outro um objeto, da
mesma natureza, bom.
Nesse sentido, podemos dizer que esse pássaro que surge, transmutado do fogo,
um dos quatro elementos da natureza, prepara-se para a conquista, pela qual todos os heróis
dos contos de fadas têm de passar.
como fio condutor para a nossa análise, mas por outro lado encontramos no mito da fênix uma
forte explicação, visto que:
Para nós, fica evidente que o pássaro surgido do fogo sobre a árvore do Junípero
fundamenta-se na idéia de que o menino ressuscita. Por outro lado, ainda temos que levar em
consideração a significação de ossos como sendo de renascimento, (ver Vasalisa: a sábia,
Anexo 2, p. 263), reforçando assim as nossas afirmações.
Para ser livre e conquistar a sua individualidade o menino terá que ressurgir de
outra forma, trazendo consigo seus sentimentos bons internalizados, mas também sendo capaz
de dizer não e até mesmo ser forte o suficiente para destruir o mal.
A irmã pode representar nesse momento mais do que um auxiliar mágico, pois
não se pode esquecer que ela serviu de instrumento para os atos da mãe e que ao mesmo
tempo que o pássaro aparece, Marlinchen sublima sua dor ao ver a liberdade e elevação
daquele pássaro nascido do fogo. É quase uma experiência alquímica.
Mais uma vez também, O Junípero representa essa árvore cósmica, que abriga e
acolhe dando à existência um significado espiritual, e sobretudo de vida, renascimento e
transformação.
94
Idem, ibidem, p. 689.
145
Estamos diante de um dos contos mais terríveis, como já foi apontado antes,
entretanto O Junípero é uma narrativa valiosa do ponto de vista da sua estrutura, não somente
porque fala de sentimentos que são freqüentes na infância, como rejeição, castração,
rivalidade, perseguição por uma madrasta e canibalismo, mas também porque a sua beleza
poética é muito grande, visto que o jogo que nela se impõe é caracterizado por uma disposição
signica de muito valor, pois de certa forma nos leva para a diferença.
Trata-se de uma etapa que podemos considerar como o momento de uma grande
tensão na narrativa, mas também constitui-se no momento de maior busca de equilíbrio, daí
ser importante nos atermos aos detalhes dos significantes que anunciam a superação da dor e
o início de uma nova etapa a ser vivida pelo herói do conto de fadas.
146
Chegamos a etapa da história onde a dor inicial, da ruptura, e por isso mais
intensa, começa a ser transformada pelo tempo da comoção onde o sujeito busca saídas para o
momento doloroso e até pode dar início a um processo de interpretação do sofrimento que o
conduziu ao desespero ou tristeza profunda.
Vimos que o herói por não ter forças suficiente para lutar contra a sua mãe má,
sofre o aniquilamento total representado pelo estado de morte e somente depois que a sua
irmã o coloca junto à mãe boa, então começa sua recuperação. Lutando por um eu mais forte e
integrado, identificado com o bem, o menino como pássaro vai em busca do seu lugar na
medida em que trabalha para cumprir cada prova da sua viagem de volta para casa.
Voltar significa recuperar-se, como também ter alcançado uma outra etapa, na
qual poderá ser gratificado, visto que agora é capaz de reivindicar sua felicidade, pois para ser
“bonzinho” para o outro terá que ser recompensado. O sofrimento ensina-lhe que não adianta
ser ilimitadamente bom se o outro não o gratifica, pois o eu precisa de reinvestimento para ser
forte e equilibrado.
O sapateiro fica tão encantado que chama a mulher dele e a filha para também
ouvirem o canto do pássaro. Não se dando por satisfeito, chama outras crianças, moços e
moças, além de seus aprendizes. Fica absolutamente fascinado com aquela ave, que nessa
altura da história, ficamos sabendo que possui lindas penas verdes e vermelhas, e, também
olhos que brilham como estrela.
Ressaltamos que a cor verde carrega uma simbologia muito rica que tanto pode
ser interpretada como esperança, como também ligações a vida uterina, paraíso materno,
como veremos a seguir:
147
A riqueza simbólica dessa narrativa chega a nos surpreender, como por exemplo,
o fato de ser mencionado que o pássaro possui plumagem verde e vermelha pode passar
completamente desapercebido numa primeira leitura e no entanto, ao nos determos nas
representações das cores verde e vermelho, vamos convergir para aquilo que o conto nos
aponta desde o seu início.
O que num primeiro olhar pode não ter importância, de repente ao entrar em
conexão com os outros elementos ganha uma feição inusitada e ao mesmo tempo, esperada,
embora não deixe de ser surpreendente, tal como o verde que tem um significado de regresso
ao útero, paraíso materno, renascimento, desencadear da vida, enquanto sendo par do
vermelho tem o seu significado reforçado, pois além do que vimos sobre o vermelho, ainda
podemos acrescentar que:
95
Idem, ibidem, pp. 938, 939.
148
96
Idem, ibidem, p. 944.
149
A ave nascida do Junípero lançou-se para o vôo da conquista, aquele que lhe
permitiria o reconhecimento e a gratificação. Entretanto, somente isso não lhe basta. Voltar
para casa com ouro e vida pode ser pouco para quem fora tão duramente ameaçado. Ele
cantou sua história, cruel e triste, mas também bela porque fala de um sofrimento
ultrapassado. Afinal, é com orgulho que o pássaro se diz a “ave canora”.
97
Idem, ibidem, pp. 407, 408.
150
A ave canora não faz um percurso errante ao contrário disso ela pousa
estrategicamente onde pode conseguir o passaporte para o próximo desafio. O ouro é mais do
que fortuna material, é um bem espiritual doado somente aqueles que o merece como
recompensa por uma etapa vencida, tanto é assim que em quase todas as narrativas antigas o
ouro é dado como recompensa por uma prova cumprida. Enquanto isso os sapatinhos
vermelhos, carregam a marca não somente de ascensão e elevação espiritual, mas também
podem significar um símbolo fálico, tal como nos diz Chevalier:
98
Idem, ibidem, pp. 802, 803.
152
99
BETTELHEIM, Bruno. Op. cit., p. 240.
153
Então, sentimos que a narrativa dos contos de fadas faz ao leitor uma proposta
segura na medida em que coloca o herói diante das provas a serem superadas e também, da
recompensa alcançada a cada dificuldade transposta. Isso, implica em algo como dizer para a
criança: “vá com calma, o momento certo chegará, mas antes terá que enfrentar seu próprio eu
– suas dores e conquistas para então obter o bem maior e ser feliz”.
Talvez seja por esse motivo que a ameaça seja um elemento de tanta importância
nos contos, pois funciona como um desafio a ser vencido, como uma prova a ser superada.
Seja ela física ou moral, indica que o herói precisa buscar forças para enfrentar o mau e sem
dúvida, a ameaça de castração significa mais do que um dano físico, um dano psíquico.
Então, não basta superar a ameaça real de mutilação e morte se a criança não se
sente capaz de enfrentar seus medos e ansiedades com relação ao que pode representar ser
abandonada ou rejeitada pela mãe-boa. Apresenta-se no conto uma mãe-má e castrada como
sendo a maior ameaça à integração física e psíquica do herói.
Dessa maneira, o nosso herói não poderia ter partido para a sua empreitada final
se não tivesse passado por todas as etapas sinalizadas pelo conto. Chegar a casa do pai apenas
com o ouro e os sapatinhos significaria ainda não estar pronto para punir a cruel madrasta,
pois para tanto teria que ter experimentado a sua força e capacidade de recuperação.
A ave canora teria que contar sua história para aqueles que são capazes de talhar a
pedra, de moldá-la para que adquirindo uma forma possa ter uma finalidade, uma função.
Ora, não por acaso as três pessoas que escutam o cantar do pássaro são do sexo masculino e
precisamente, são esses homens que oferecem a oportunidade de crescimento.
100
Idem, ibidem, p.178.
154
Fica também, a sugestão de que para crescer é fundamental que se trabalhe para
conquistar os ideais. Para se tornar adulto é necessário vencer provas e riscos, o que significa
enfrentar lutas no mundo real e imaginário, pois somos como as personagens dos contos de
fadas que ao enfrentarem os perigos da florestara ou cederem à sedução, exercitam
plenamente o poder de arriscar-se para que mais tarde se realizem como “pessoas”.
Outro dado de relevância mostrado pela narrativa e até, certo ponto enfatizado, é
que o ouro é carregado pela pata direita e os sapatinhos pela esquerda, enquanto a pedra-mó
será transportada pendurada no pescoço. Direita e esquerda nos posiciona quanto à
lateralidade, mas na verdade possuem um sentido bem mais amplo do que o de direção, nos
inserindo em valores construídos a partir da noção do bem e do mal, do feminino e do
masculino, da vida e da morte, entre outros aspectos como os que sublinhamos a seguir:
Mais uma vez a análise dos símbolos confirma a nossa hipótese de que o ouro
(sol) carregado pela pata direita, lugar da identificação com o princípio masculino será
repassado às mãos do pai, garantindo o lado bom para o qual o menino deve seguir, enquanto
os sapatinhos vermelhos são carregados pela pata esquerda, espaço do marginal, do desvio, do
sinistro e contrário ao lado do Sol.
Nesse sentido podemos inferir que o menino alcança essa identificação, visto que
repassa o ouro que carrega com a pata direita para o pai, pois é com ele que deve identificar-
se e buscar processos de projeção para que alcance o valor masculino necessário à posição
sexual que lhe garanta o reconhecimento da lei, da interdição.
Vimos que o pássaro ao chegar no moinho se depara com homens que trabalham
e, diferentemente, das outras vezes em que pousa no telhado, dessa vez fica sobre uma limeira
de onde faz soar seu canto. Depois de algumas tentativas, calma e compassadamente, o
pássaro consegue seu objetivo: obter a pedra –mó . Não é fácil consegui-la, pois isso depende
não somente do moleiro, mas também dos outros trabalhadores, que após terem ouvido o
canto se sensibilizam e pedem para repetir.
Assim, como das outras duas vezes, a ave canora consegue realizar a permuta para
seguir seu último destino, reencontrar seu pai e reagir contra a enorme dor sofrida. Parte,
carregando o ouro na pata direita, os sapatinhos na esquerda e , como coroado pelos vinte
homens, leva a pedra ao centro pendurada ao pescoço, como se fosse o colar da vitória.
101
Idem, ibidem, pp. 341, 342.
156
Não temos dúvida de que estamos diante de um conto de retorno, no qual o herói
sofre as provas e volta para casa com outro nível de espiritualidade. Temos, novamente,
confirmada a hipótese de busca pelo abrigo materno, simbolizado pelo útero, pois ele não
significa apenas o órgão reprodutor feminino, mas também o primeiro espaço ocupado pela
criança ao ser concebida.
A viagem feita pela ave também diz respeito a uma passagem, o que implica dizer
um momento de iniciação e no caso do herói do conto em questão, é uma passagem para a
conquista da verdadeira liberdade, pois o ciclo de libertação é também o de morte e
renascimento. Essa é uma etapa trazida por quase todas as narrativas de tradição oral. O ciclo
de iniciação é também o ciclo de morte, pois para a introdução numa vida diferente , a morte
funciona como condição.
Temos mais uma confirmação de que a morte do herói no início do conto acontece
como um sacrifício necessário para que o ritual de passagem e iniciação seja consumado.
Agora, após ter conseguido transitar por todas as provas o menino parece estar pronto e
equilibrado para tomar posse do seu território, tanto identificando-se com o pai, como também
102
Idem, ibidem, p. 700.
157
A narrativa diz claramente que o pássaro alçou vôo com a pedra em torno do
pescoço, como se fosse um colar, então temos na pedra furada um símbolo do ritual de
passagem e de relação uterina e uma forte semelhança com o colar, que nesse momento não
significa ornamento, enfeite, mas precisamente exerce a função de nos sugerir:
A pedra tem um sentido apropriado e reflete todo o seu simbolismo nessa etapa do
conto, uma vez que também representa um colar doado por vinte homens. Não por acaso,
segundo o Dicionário de Símbolos, inúmeras vezes citado, o número vinte tem seu
simbolismo ligado ao Deus Solar, na função de arquétipo de Homem Perfeito, e, também
unidade.
Ora, são os vinte homens que ofertam ao pássaro a pedra furada, que também
indica unidade, ordem e elo. Mais uma vez, o nosso herói conta com o princípio masculino
para que possa prosseguir a viagem de renascimento.
Por outro lado, vimos que esses símbolos podem ter uma conotação relacionada à
pulsão sexual, embora a interpretação possa ser feita nesse sentido, preferimos enfatizar a
problemática da narrativa na busca de identidade e aceitação, além de iniciação para uma
nova vida. Contudo, reconhecemos que o conto aponta em diversos momentos para problemas
103
Idem, ibidem, p. 263.
158
No entanto, a riqueza desse conto é tão grande que fica impossível nos encerrar
numa interpretação única, pois se assim fizermos corremos o risco de cair no reducionismo
interpretativo, característico da maioria das abordagens psicanalíticas da representação
literária.
Chegamos a realizar algumas conjecturas que podem conduzir nossa análise de
conclusão desse conto a um desfecho já esperado. Mesmo porque, após a terceira prova pela
qual passa a ave, então de imediato somos informados que o destino almejado será alcançado
e logo o menino estará feliz, sobretudo porque será capaz de dar à madrasta o castigo que ela
merece.
De qualquer forma, mesmo sabendo que o pássaro caminha de volta ao lar, como
ainda não foi totalmente desvelada a sua identidade, então é provável que o leitor permaneça
na dúvida se o pássaro é mesmo o menino morto que depois de ter feito essa longa viagem,
renasce para ocupar o seu lugar.
O conto de fadas não é regido por uma lógica interna qualquer, pois faz parte de
uma rede de significações tecida desde os primórdios da humanidade e por isso, por mais
complexidade que apresentem, falam diretamente a nossa alma.
O Junípero é uma história que nos aterroriza por tudo aquilo de mal que ela
representa e que, até certo ponto, reside em todos nós, mas sobretudo é uma narrativa de
resgate, que sugere ao leitor um sentido de luta e reorganização do caos interior.
Se O Junípero parece escandalizar o nosso consciente por tudo aquilo que ele
provoca, é de outra forma assimilado pelo inconsciente como alívio e apaziguamento, pois o
discurso interior que se produz a partir dos conteúdos apresentados constituem apenas a ponta
do iceberg. No espaço da nossa surpresa ou estranhamento, existem milhares de eus que
gritam pedindo passagem, se amontoam como monstros devoradores para ocupar uma página
da nossa história.
ego frágil, que deixa-se dominar pelo necessidade do Outro? Somente, numa atitude reativa
uma criança com tais sentimentos pode superar sua dor e auto-piedade e é dessa maneira que
o protagonista do conto se assume em outra condição anunciada quando o pai, sua madrasta e
sua irmã postiça estão à mesa do jantar, como veremos a seguir:
A ave que cheira à canela, chega trazendo paz para uns e inferno para outros.
Ressaltamos que a canela é uma especiaria muito utilizada pelos antigos e também, bastante
cobiçada no Oriente. A sua natureza é yang e significa princípio vital, como também pode
traduzir imortalidade. O Dicionário de Símbolos confirma essa interpretação, na medida em
que revela que os antigos preparavam com ela, um vinho , do qual bastava se beber apenas
uma gota para ficar com o corpo da cor do ouro. Mais uma vez temos a presença do ouro,
confirmando nossas hipóteses iniciais.
104
O Pequeno Polegar. In: Anexo 3, p. 280.
162
animais a serviço do mal, veículo das pulsões destruidoras que trabalham liberadas pelo id,
mas também de animais que simbolizam os instintos positivos, como no caso da ave canora.
Como diz Bruno Bettelheim, esses animais significam a nossa natureza animal e dualista em
busca de outro nível de espiritualidade, pois:
Assim, o nosso menino-pássaro consegue sua forma humana após ter vencido
todas as provas que lhe são impostas na narrativa. Voltar a ser menino significa ter
conseguido a transformação interior necessária para viver mais um ciclo da sua existência, por
isso que em geral, a transformação só acontece no momento de conquista. A mudança de um
estado de ser para o outro é a conquista que o herói precisa realizar para “integrar” os
elementos díspares da sua personalidade.
Como o pássaro tem no conto uma conotação positiva, então supomos que ele está
a serviço do bem, inclusive quando castiga a mulher malvada temos o id funcionando para
que o bem se sobreponha ao mal. Além desse sentido, existem na tradição oral muitas
referências ao pássaro que surge da luz solar ou da copa de uma frondosa árvore. Mesmo
algumas narrativas mais recentes e de cunho religioso, trazem o pássaro como veículo de
transformação.
O Junípero é uma narrativa que transcende aos limites de tempo e espaço, visto o
seu vigor simbólico, pois a cada etapa do conto nos surpreendemos pela maneira como cada
fase é fechada e fica mesmo impossível se fazer uma previsão do que acontecerá na seqüência
seguinte. Talvez, o leitor possa até ter uma idéia de que o pássaro cantará em outros lugares
por conta da repetição e da oferta do ourives, mas provavelmente, não imaginará onde e como
a cena se desenrolará.
105
BETTELHEIM, Bruno. Op. cit., p. 93.
163
Podemos dizer que a última cena traz um certo requinte de crueldade, mas mesmo
assim, a maioria das crianças se sente rejubilada ao se deparar com tal final. Algumas
chegam a dar gargalhadas de euforia pelo trágico destino que tem a madrasta. Por outro lado
também, compreendem o porquê de Marlinchen chorar tanto, pois afinal aquela mulher,
mesmo sendo pior do que uma bruxa malvada é para a menina, se é que assim podemos
considerar, a representação da mãe-boa.
Lembramos que a mãe-boa e a mãe-má fazem parte da mesma mãe, sendo que a
criança ao realizar a cisão entre o seio-bom e o seio-mau conseqüentemente realiza também
uma cisão daquela cuja função é proteger e alimentar, mas que não pode suprir todas as
necessidades da criança e por isso, falha na fantasia de abandono do bebê.
dirigir para a mãe ameaçadora, sentimentos de raiva e destruição, tal como nos é colocado
por Bettelheim ao referir-se à madrasta:
106
BETTELHEIM, Bruno. Op. cit., pp.84, 85.
165
A verdade dos contos de fadas reside numa literatura que transcende o tempo e o
espaço porque fala da vida, do homem e, sobretudo, da alma. O que presenciamos nessas
histórias aparentemente fantasiosas são cenas da vida familiar. São as dores e os amores pelos
quais vamos ao longo da nossa existência nos tornando pessoas.
Dificilmente, vamos encontrar alguém que não tenha vivido na sua cena familiar
uma raiva desesperadora pela pessoa amada ou um conflito do tipo “mamãe gosta mais dele
ou dela do que de mim”. Isso faz parte da existência e os contos de fadas reapresentam tal
sentimentos de maneira surpreendente, na medida em que nos convida a olhar para a ferida
com um certo grau de distanciamento, ou seja: tudo é tão impossível que eu não estou aí.
Assim, quem persegue é uma bruxa malvada, quem odeia e ama é o herói, quem celebra são
os vitoriosos e assim por diante.
Todos nós sabemos que a criança não vive num paraíso como muitos pais
desejam, embora sejam mais simples na maneira de falar dos seus sentimentos. Mas, talvez a
complexidade do que na infância é experimentado com relação aos sentimentos seja muito
maior do que na vida adulta e por isso, determine a construção do sujeito e da sua vivência
familiar. Essa história vivida na cena familiar funcionará como marca durante toda a trajetória
do sujeito no mundo.
É com alguma propriedade que consideramos os contos de fadas como algo que
remonta a essa cena, pois as personagens são sempre Outros que vivem e anseiam, vencem e
são vencidas, odeiam e amam tanto quanto o leitor. Certamente, por isso a psicanálise vai nos
dizer que:
166
O Junípero é um conto que nos apresenta essa cena familiar, onde um dos pais
desaparece para que um outro tome o seu lugar. Então, o menino injustiçado sofre as rejeições
pelas quais supõe-se passar todos os enteados. Entretanto, o leitor aguarda e espera que ele
seja vingado e ressurja para uma vida feliz junto ao seu pai verdadeiro e, possivelmente, sua
mãe-boa.
Qualquer leitor que se depare com o drama desse menino se sente “como se fosse
ele”, o que se dá pelo processo de identificação, mas também pelos mecanismos de introjeção
e projeção. Sentimos o desejo de vingar a triste sorte dessa criança não exatamente porque
somos generosos, mas porque essa história também faz parte dos nossos próprios dramas
internos, vividos num período onde tínhamos muitas dúvidas com relação às nossas origens,
como também uma enorme necessidade de nos livrarmos da culpa de um dia termos tido ódio
do nosso objeto de amor, fantasiando uma cena de rejeição.
107
BETTELHEIM, Bruno. Op. cit., pp. 85,86.
167
Dessa maneira, o menino nos livra de uma certa culpa na medida em que ele
próprio que é bom, prepara o castigo da madrasta que como veremos posteriormente, não é
um final muito comum nos contos de fadas, mesmo para aqueles que representam o mal. No
entanto, a situação inicial dos contos de fadas onde aparece uma mãe-boa que morre para dar
lugar a uma mãe-má é necessária na medida em que coloca diante da criança uma cena vivida
por ela própria, no silêncio daquilo que parece inominável e irrepresentável, que remete
sempre ao conflito interior vivido, muitas vezes, de forma terrificante.
Então, temos nesse conto o retrato da cena familiar, no qual a criança fantasia o
abandono, sente-se insegura quanto à sua origem, é preterida por causa de um irmão mais
novo e sofre a impotência de não conseguir lutar adequadamente contra o seu opositor e o
pior, não consegue sequer reconhecer suas qualidades positivas para se sentir amada.
Esse drama familiar não é difícil de ser encontrado, pois ao contrário do que
muitos pensam, a criança pequena sente uma enorme necessidade de ser aceita e aprovada,
portanto imagina que se pensa em fazer algo “reprovável”, poderá ser severamente castigada
pelos pais. Provavelmente, por isso:
Os contos de fadas não falam somente do amor e da paz, mas sobretudo, daquilo
que ameaça nossa capacidade de ser. Por isso, tudo nessa realidade é permitido. As dores são
descritas com a veracidade da ferida que lhe provoca, o amor é experimentado no êxtase do
final feliz, onde tudo é redenção e o bem supremacia.
Então, vemos nessa narrativa uma madrasta que personifica mais do que oposição
e antagonismo, pois encarna com vigor toda a pulsão destruidora que ameaça o Outro de
aniquilamento. O mal começa por sofrer os danos provocados pela pulsão do bem, quando o
pai se sente tranqüilo e a madrasta sofre o mal estar, chega mesmo a gritar para que o homem
não saia de casa. A casa, que tem o significado de abrigo e refúgio, começa a tremer e
desabar. O triste final dessa mulher horrenda está por se concretizar.
108
Idem, ibidem, p. 86.
169
considerada como a ânima e assim a parte que integra, por isso seu presente tem a conotação
de que logo, o menino tomará posse do seu território. Por outro lado, se queremos olhar para
os sapatinhos como símbolo fálico, ainda estaremos realizando uma análise pertinente, pois o
menino volta para assumir seu lugar e poder enfim, buscar sua identidade sexual sem sentir-se
ameaçado de aniquilamento, já que tendo introjetado à lei, poderá ter acesso ao simbólico.
Essa irmã que sofre a melancolia pelas dores que pensa ter causado no irmão
morto, só pode voltar ao apaziguamento quando recebeu do seu “Outro”, os recursos
necessários para se salvar. Então, ressurgida do caos para onde tinha sido jogada pode agora,
unir-se ao irmão renascido, visto ter sido ela própria o elemento de ligação entre a mãe morta
e o irmão. Por isso, a ave canora repete o quanto à irmãzinha é piedosa, pois ela é o
instrumento de morte e, também, de ressurreição.
Sabemos que perder faz parte da nossa condição existencial e que crescer implica
em ter que perder algumas “regalias” que se tem quando se é pequeno, mas também quando
crescemos ganhamos coisas importantes. No caso de Marlinchen, ela perde o seu irmão
amado e além disso, pensa ter sido ela própria o instrumento para o aniquilamento do menino.
Então, mergulha na melancolia e vive a profunda dor da ruptura, tal como nos afirma Nasio:
Sem dúvida, a situação vivida pela menina é traumática e nos remete à dor da
primeira perda, aquela que nos coloca na dimensão da falta. A partir da ruptura entre criança
e mãe, todas as dores instaladas no eu serão recorrentes.
A primeira fase da tristeza da menina acontece quando ela pensa ter matado o
irmão. A partir daí, chora incansavelmente e só pára quando recolhe os ossos do menino e os
deposita à beira do Junípero. Entretanto, sua tristeza inicial transforma-se em melancolia, ou
seja, durante um determinado período deixa de investir em si mesma, o que no conto é
representado pela sua “ausência” temporária.
Ausenta-se da cena para que a ave canora ocupe o centro da narrativa. Na medida
em que o pássaro reinveste sua energia pulsional numa relação de repetição e troca, onde
canta e ganha elogios, repete o canto e ganha presentes, a menina vive sua angústia e dor, até
que recebe os sapatinhos vermelhos e sente-se pronta para viver com alegria e vigor,
reinvestida de amor.
109
NASIO, Juan-David. Op. cit., pp. 183,184, 188,189.
171
No final da história vamos ter uma virada que podemos chamar de ápice da
narrativa e que acontece no momento em que a madrasta, mesmo sentindo-se muito mal e
ameaçada, também, deseja “receber” presentes do pássaro, tal qual o homem e a menina.
É fundamental que a criança entre em contato com seu drama existencial para que
possa se dar conta da sua própria condição enquanto ser em construção e em busca de
preenchimento.
De qualquer forma, é difícil para uma criança ver sua “mãe” severamente punida e
por isso, os contos de fadas apresentam-na como madrasta e ao colocar dessa maneira, oferece
à criança a garantia de triunfo e transformação. Algo como: aniquilar a madrasta e destruir as
pulsões negativas do eu para restaurar as positivas, dando à criança a esperança de que tudo
terminará bem e ela terá condições de explorar seu potencial de vida e amor.
110
CASHDAN, Sheldon. Op. cit., p. 33.
172
Cada vez que o antagonista morre, em geral a madrasta, a bruxa ou o ogro, então a
criança sente-se revigorada e com uma maior capacidade de sentir-se gratificada, não pelo
mal que sucede ao opositor, mas pelo bem que isso lhe traz.
Então, logo após a menina entrar em casa toda satisfeita, a mulher desconsolada
decide fazer a sua última investida dizendo:
111
O Junípero. In: Anexo 3, p. 280.
173
Sua tragédia, já pressentida quando a ave cantou pela primeira vez sobre a árvore
do Junípero, é marcada por fogo e chamas, ou seja, o mal foi devidamente transformado, pois
o fogo possui o poder de destruir o mal para que o resto possa ser transmutado no bem. Essa
tradição de queimar pessoas nas fogueiras por se acreditar que elas são diabólicas e impuras
remonta a antigüidade, embora isso tenha sido praticado de maneira abusiva pela Igreja
Católica durante a Idade Média. É assim que se acabam com as bruxas: queimando-as no
fogo.
Apesar da mulher ter seus cabelos arrepiados como se fossem chamas, não é no
fogo que ela tem o seu final, mas esmagada pela pedra que o pássaro trazia no pescoço,
elemento de ligação entre ele e o pai, como já foi sublinhado anteriormente. Agora, que a mãe
má teve o castigo merecido, então é possível para o menino voltar para casa e numa
identificação com o pai buscar seu crescimento e reassegurar-se da sua capacidade de reação
contra os aspectos negativos que podem colocar em risco a sua integridade psíquica.
Temos, portanto, uma referência histórica que trata das punições dirigidas aos que
praticavam ações socialmente condenáveis, como no caso da madrasta em O Junípero.
Talvez, alguns leitores achem que seu castigo foi muito severo, mas lembramos que para uma
personagem tão cruel, a criança precisa ser garantida de um final no qual a ameaça seja
completamente extirpada.
Entendemos, que o fato de a madrasta desse conto terminar de forma tão trágica
pode ser compreendida afetivamente pela criança de forma positiva, ou seja, se o mau é
destruído ela está protegida. Além disso, o nosso protagonista consegue reagir e combater a
mãe má e o faz com todas as garantias, numa confirmação de que o sofrimento o fez crescer.
112
CASHDAN, Sheldon. Op. cit., pp. 170, 171.
175
O Junípero é um conto que fala da dor em seus vários aspectos, desde aqueles que
ferem a alma e reavivam nossas primeiras faltas até os que mutilam o corpo transformando-o
numa imagem totalmente esburacada, como é o caso do menino que tem seu corpo cortado
em pedacinhos e comido pelo pai.
Os contos de fadas são histórias com uma infinita capacidade de mostrar para a
criança o pior da dor, mas ao mesmo tempo também diz que é possível sentir muitas dores, de
várias formas e sentidos, mas se formos fortes suficiente sairemos delas mais fortes e
humanos.
Entretanto, temos que trabalhar para superar as dores, aqueles que não se
aventuram nessa jornada não conquistam o crescimento necessário para obter a vitória,
portanto a satisfação pessoal. A criança ao ler um conto como O Junípero compreende a sua
função na família e no mundo, ainda que esse entendimento escape à razão, ele consegue
atingir a emoção.
Além da dor do herói e da sua mãe boa, esse é um conto que aponta para a dor das
outras personagens também, como é o caso da irmã e da madrasta. A primeira, por sentir
culpa e a segunda por viver tão intensamente suas pulsões destrutivas. Assim, a dor aparece
como sendo o eixo da narrativa, embora no final ela seja aliviada e dê lugar para as
personagens que representam o bem, isso é necessário para que a criança sinta-se garantida de
que o bem deve vencer, se recupere das perda e rumem em busca do amor.
É por isso que o herói sai vitorioso e as personagens do mal saem castigadas,
recebendo o que merecem. Assim, a criança sente-se recompensada e estimulada a confiar no
seu sentido de justiça.
113
NASIO, Juan-David. Op. cit., pp. 110, 116.
176
A felicidade é o bem maior a ser conquistado, mas é também o mais difícil de ser
alcançado, pois acreditamos, quase sempre, que ser feliz é algo que implica no gozo absoluto,
num estado de nirvana permanente e, no entanto a vida nos ensina constantemente que a
felicidade só é conquistada quando compreendemos que ela se faz de pequenos ganhos.
Todas as vezes que superamos uma dor, por menor que seja, isso funciona como
uma descarga de tensão que provoca o alívio. Então, temos a sensação de que podemos ser
“felizes para sempre”, como o menino, o pai e a irmã.
O herói desse conto sofreu as piores dores: perdeu a mãe boa, foi rejeitado e
experimentou o pior de uma mãe má. Em contrapartida, superou seus impulsos dolorosos
passando pelas provas e conquistou a maturidade para sentar-se à mesa e comemorar sua
vitória. Assim, lembramos que nos contos de fadas como na vida real :
114
BETTELHEIM, Bruno. Op. cit., p. 253.
177
A dor impressa nos contos de fadas também nos fala de um lugar no registro do
inconsciente, nesse espaço intervalar onde surgimos e temos voz, mas onde precisamente não
nos sabemos por inteiro. A dor diz da falta e a falta faz parte do sempre, da procura sem fim
que cada um busca realizar para se apaziguar com o bem e com o mal existente em cada
pessoa, em cada gesto e em cada olhar.
Depois de tanto sofrimento, o nosso herói merece retornar com maior equilíbrio
interno, capaz de doação e amor, ofertando presentes e entrelaçando as mãos com aqueles que
o aguardavam para viver o melhor da dor e do amor.
Não é à toa que o retorno do herói é marcado pela destruição da madrasta (seio
mau) e o final feliz acontece ao redor da mesa, do alimento e do apetite (seio bom). As mãos
que se acolhem fecham a cena e o bem é celebrado.
115
NASIO, Juan-David. Op. cit., pp. 84, 85, 98.
178
Se os contos de fadas nos mostram sempre o final feliz, eles também oferecem
uma aprendizagem importante ao fazerem do caminho para a conquista um percurso doloroso.
Está implícito que para crescermos e adqüirir maturidade espiritual é preciso lutar contra o
sofrimento e as pulsões internas destruidoras.
Será precisamente desse trajeto dor-amor que trataremos no nosso último capítulo
ao abordar um dos mais belos e emocionantes contos de fadas da nossa Literatura Clássica
Infantil: “A Bela e a Fera”.
Escolhemos esse conto como fechamento para as nossas análises por acreditar que
ele traz na sua estrutura narrativa um significativo movimento de ritual de passagem,
veiculado pela travessia da dor para o amor.
Embora seja muito comum acreditar que no amor temos o mundo e somos
completamente felizes, isso não corresponde à realidade, nem interna, nem externa, pois nos
parece que:
Para aliviar a dor, o ser humano encontra várias saídas e, sem dúvida, o amor é a
mais plena e construtiva forma de transcender a dor. Parece que ele é o melhor meio de
proteger-se contra a dor e o sofrimento, tal como é colocado pela psicanálise é:
A busca pelo amor parece ser a grande causa da humanidade. Tenta-se o amor das
mais variadas formas e numa sociedade como a nossa ele surge, por vezes, embalado na
fantasia de que se formos belos e famosos, então seremos amados e felizes para sempre.
116
Idem, ibidem, p. 26.
117
Idem, ibidem, p. 26.
180
Cada vez mais nos distanciamos daquilo que pode ser o mais original em nós
mesmos e andamos em busca do espetáculo efêmero e fugaz, mas plenamente capaz de
provocar o êxtase e a sensação de eternidade. E quanto mais fugimos da dor, mas ela se
apresenta assumindo diversos aspectos, convidando para um olhar mais profundo, sobretudo
sensível diante daquilo que pode ser a nossa verdadeira dor. Como transformar a dor em
sentimento positivo é a grande questão.
Na próxima análise tentaremos dar conta dessa relação entre dor-amor, seguindo
os pressupostos da psicanálise e sua aplicação aos textos literários. Pois, se na literatura
vivemos o mundo de acordo com a nossa visão de mundo, sabemos que também a partir da
força metafórica da narrativa sairemos diferentes, capazes de nos “reinventar” no espaço da
ficção, apoiados pela verdade dos sentimentos surgidos da nossa relação com o escrito e
inscrito nas personagens.
Dor-Amor
181
Após ter passado por alguns contos de fadas que focalizam a temática do
abandono e da dor de crescer, finalizamos nossas análises apresentando uma narrativa que
fala da conquista da maturidade por meio do casamento, ou seja, da conjunção amorosa.
Escolhemos o conto A Bela e a Fera pela fortuna crítica e teórica que possui, mas
também por se tratar de uma história de tamanha riqueza simbólica e beleza poética que tem
conseguido encantar crianças e adultos de todos os tempos.
Buscamos um conto que transita pela dor-amor utilizando-se dos aspectos mais
diversos que caracterizam este tipo de narrativa, tais como: a viagem do pai, a ausência da
mãe, as irmãs malvadas, as virtudes dos heróis, provas a serem superadas, perdas e abandono,
118
NASIO, Juan-David. Op. cit., p. 5.
182
o casamento como ritual de passagem e o mágico “felizes para sempre”. Portanto, uma
história de travessia e celebração.
Assim, o herói assegura ao leitor, por meio da fruição vivida no final feliz, que a
luta por mais difícil que seja vale a pena e nos recompensa, mas é preciso saber enfrentá-la
mesmo que as primeiras tentativas sejam de fracasso. Quando o herói sabe lutar, então ele
pode ser recompensado por uma das maiores conquistas que é a maturidade do amor
simbolizada pela conjunção amorosa.
Antes de entrar na análise psicocrítica dos símbolos que compõem esta história,
faz-se necessária uma breve visita ao mito, pois existe uma forte suposição de que Eros, deus
do amor, foi a primeira Fera do Ocidente, além de ser o precursor das narrativas que falam de
metamorfoses.
119
PAZ, Noemi. Op. cit., p.87.
183
Dessa forma, para sustentar melhor nossas conjecturas sobre A Bela e a Fera
decidimos traçar um paralelo entre conto e mito. Assim, logo adiante, sugerimos alguns
aspectos de convergências e divergências entre eles, que mesmo sendo muito semelhantes,
apresentam características diferentes com relação à mensagem veiculada, a finalidade e o
efeito que produz no leitor.
Estes surgem seguindo a trilha deixada pelos mitos, assim muito da estrutura
narrativa destes serviu como eixo para as narrativas conhecidas no âmbito do maravilhoso.
Inferimos que sendo o mito um produto da necessidade humana de fabular e narrar traz em si
um poder religante inerente à sua virtualidade sempre presente.
Temos que considerar que o mito funciona por meio de estruturas arquetípicas,
que são constantes e capazes de ligar o individual ao universal. Sucede que essa estrutura é
repassada e mantida na maioria dos contos de fadas. Essa é uma questão que vem ocupando
muitos estudiosos do folclore, da etnografia e da antropologia. Mesmo não sendo uma
situação resolvida, existem fortes indícios que o conto de fadas possui suas raízes no mito e
ambos estão na base de origem da linguagem. Autores como C. W. Von Sydow, V. Propp e
Wilhelm Grimm, consideram que:
120
Idem, ibidem, p. 87.
184
passagem e iniciação porque aponta para conteúdos subjacentes à complexidade humana, que
possivelmente escapam ao mito.
Para demonstrar tal afirmação, podemos tomar como referência o mito de Cupido
e Psique e o conto de fadas A Bela e a Fera. Tanto em um como no outro, somos seduzidos
pela diferença, pelo estranho e monstruoso que é transformado a partir de um encontro
amoroso.
121
COSTA, Maria da Conceição. No Reino das Fadas. Lisboa: Fim de Século Edições, 1997, p.177.
185
O conto de fadas não tem como objetivo explicar o inapreensível, nem tampouco
dar uma lição de moral. Sua dimensão é diferente da do mito e ambos tratam de questões
universais. Atraem pelo clima de mistério e suspense, além de tratarem da diferença sexual,
curiosidade feminina, inveja, esperança, transgressão, desobediência, metamorfose, desejo,
morte e nascimento, entre outros aspectos.
186
Tanto no mito quanto no conto temos como fio condutor da estrutura narrativa o
processo iniciatório, no qual o herói depois de passar por inúmeras provas mostra-se capaz de
ascender a uma vida mais plena por meio de um desprazer original superado. Assim, o que
era empecilho,
Cupido e a Fera são metáforas perfeitas para mostrar esse desejo de superação,
pois ambos precisam de uma nova existência para servir de espelho para seus pares amorosos.
É preciso amar o outro naquilo que é estranheza e fragilidade para que se obtenha o
verdadeiro significado de amar e ser amado.
O mito de Édipo é exemplar para essa afirmação, pois por meio dele é
estabelecido o tabu do incesto para a cultura ocidental. O herói é terrivelmente castigado por
apaixonar-se por Electra, sua mãe. Dessa forma, o mito instaura a proibição da conjunção
amorosa entre pais e filhos e garante a criação de novos grupos familiares.
122
BETTELHEIM, Bruno. Op. cit., p. 153.
187
O modelo serve também para explicar o interdito como algo necessário para que
as pulsões do instinto sejam controladas, pois segundo a psicanálise o limite é o corte
necessário e estruturante para a formação de uma personalidade saudável. Nesse aspecto, mito
e conto encontram-se dentro da mesma perspectiva.
Entretanto, nos parece que enquanto o mito tem como objetivo exercer a função
de censura, portanto de advertência, o conto faz o contrário: liberta e garante que se formos
capazes de superar os conflitos, então poderemos ser “felizes para sempre”.
123
Idem, ibidem, p. 18.
188
São muitos os contos que sofreram a influência dos mitos clássicos e tratam da
metamorfose e do apaixonamento entre seres diferentes como sendo um dos caminhos para
que os heróis se salvem e alcancem a vitória pretendida. Como exemplo, temos o
Panchatrantra, livro sagrado que narra muitas histórias dessa natureza.
A imagem de uma fera erotizada e investida de todo poder de sedução, vem sendo
reatualizada de geração em geração. Mesmo hoje, assistimos ao clássico filme do cineastra
Jean Cocteau, La Belle et la Bête, completamente encantados pela cena na qual a Bela
debruça-se sobre a face monstruosa do herói e completamente apaixonada entrega-se à dor do
amor. Assim, também acontece com o filme americano que retrata o amor de uma fera
terrível, King Kong, por uma bela jovem indefesa que comovida por seu sofrimento tenta
salvá-la da destruição, embora inutilmente. Pois, parece que não foram os aviões que mataram
a Fera, mas é a Bela que mata a Fera.
124
Idem, ibidem, pp. 331, 334.
189
contexto histórico-social altere o processo de recepção das mensagens, ainda assim, o pano
de fundo se desenvolverá a partir dos elementos de origem.
Apoiada na teoria dos arquétipos, a autora acredita que desde sempre a Fera foi
identificada com o masculino e com o erótico, além de seguir numa caminhada em direção do
outro que deve revelar-se com capacidade para amar e ser amado.
Eleger alguém para amar não significa concluir uma etapa, mas iniciar uma
jornada na qual se tem de alimentar o desejo pelo outro permanentemente, portanto não é a
conjunção amorosa que garante o final feliz, mas sim a busca diária de que o outro possa ser
um significante do desejo. Enquanto o eleito amado corresponder às nossas expectativas
pulsionais haverá harmonia.
125
Idem ,ibidem, p. 98.
190
De maneira alguma, Psique escapará da sua vingança e terá motivo suficiente para
arrepender-se da sua beleza.
No céu havia uma porta de nuvem que permitia a travessia para o paraíso, mas
somente os imortais podiam passar por ela. Embora os deuses tivessem as moradas distintas,
quando convocados por Júpiter compareciam para as assembléias, banquetes e festas onde se
regalavam com ambrósias e néctar, além de decidirem o destino do céu e da terra.
Vênus fica tão preocupada por não ser mais o centro das atenções que já não
consegue tirar proveito de tanta felicidade. Revoltada, manda chamar seu filho Cupido, seu
companheiro constante para pedir-lhe que destrua Psique, atingindo-lhe o peito com uma de
suas flexas. O golpe deverá fazer com que a jovem se apaixone pela mais monstruosa das
criaturas.
Cupido obedece às ordens da mãe. Vai até o jardim de Vênus, onde existem duas
fontes: uma de água doce e outra de água amarga. Enche dois vasos de âmbar, cada um com
uma das águas e parte em busca de Psique que dormia profundamente quando encontrada por
ele.
Assim, o deus vai até junto dela e derrama sobre os eus lábios a água amarga,
enquanto toca-lhe com a ponta da seta. Ao toque, Psique é despertada e ele assustado fere-se
com a própria flecha. Quando a moça abre os olhos, Cupido (invisível) é tomado de tanta
ternura que só pensa em poder sanar o mal que fizera. Decide derramar sobre os belos cabelos
dela, as gotas balsâmicas da alegria.
Assim, Psique mergulhada na solidão rejeita sua beleza, pois esta só provoca admiração, mas
nenhum amor.
Depois de tudo preparado para a sua partida, a virgem real segue o cortejo como
se estivesse indo para a morte, em vez de núpcias. Sobe o alto da montanha e de lá, observa o
triste lamento de todo o povo.
Tremia e chorava de tanto medo, até que viu surgir um vento leve e gentil
chamado Zéfiro que a levou suavemente para um vale florido. Foi-se acalmando até que
adormeceu deitada na relva. Ao despertar viu-se diante de um lindo bosque, no qual adentrou
e encontrou uma fonte de águas cristalinas, além de avistar um palácio esplendoroso. A sua
arquitetura assemelhava-se a dos mortais, mas havia algo nele que era diferente.
Mesmo temendo, aventurou-se a entrar e ao fazê-lo era tal o seu encanto que não
conseguia parar de olhar para as cenas de beleza que se projetavam diante dela. Tudo era
ouro, arte e riqueza. Deleite para os olhos de qualquer espectador.
Enquanto deslumbrava-se com tanta imponência e bom gosto, ouviu uma voz
ecoar por todo o salão, dizendo que tudo que ali se encontrava era dela. Dizia ainda, que as
vozes que ouvia pertenciam aos seus servos que ali estavam para servi-la de tudo que
precisasse .
Psique, embora bem tratada não via o marido. Este, só aparecia à noite em total
escuridão e partia antes do amanhecer. Sua presença cheia de amor despertou na jovem uma
enorme paixão. Mas, a moça queria ver-lhe, conhecer o rosto que tocava e afagava, entretanto
ele não consentia. Ao contrário, recomendou-lhe que nunca tentasse fazer nada para vê-lo.
Afinal, existiam bons motivos para que ele pedisse tal confiança.
Chega a interrogá-la sobre o porquê da sua curiosidade, pois ela possuía tudo que
desejava e não devia duvidar do seu amor. Era melhor que não o visse. Se assim acontecesse
poderia ser capaz de temê-lo ou adorá-lo como a um deus. A única coisa que ele queria é que
ela o amasse.
Embora Psique tenha ficado mais tranqüila durante um certo período, logo a
ansiedade voltou. Enquanto tudo foi novidade estava feliz. Depois, foi preenchida por um
imenso vazio. Sentia saudades dos seus pais e das irmãs. Pensava o quanto seria bom se eles
pudessem usufruir, junto com ela, de todas aquelas maravilhas.
Aquele palácio havia se transformado apenas numa rica prisão e a tristeza tomou
conta da sua alma. Até que uma certa noite quando o marido chegou e viu a sua amada
mergulhada numa melancolia sem fim, perguntou-lhe o que estava acontecendo e ela contou-
lhe dos seus sofrimentos.
Assim, pediu permissão para que suas irmãs a visitassem. Ele, mesmo relutante,
concedeu-lhe o desejo. Então, Psique chamou Zéfiro e transmitiu as ordens do marido. O
vento prontamente foi buscar as duas irmãs.
Tudo que viam era tão maravilhoso que foi impossível não sentirem inveja.
Interrogaram Psique de todas as formas a fim de saberem sobre o marido da bela irmã. Psique
disse-lhes que o marido era um lindo jovem que vivia caçando nas montanhas. Elas não
acreditaram e continuaram questionando. Com a intenção de aliviar o seu coração, Psique
confessou que nunca o havia visto.
marido era uma monstruosa serpente que a nutria com alimentos deliciosos para depois,
devorá-la.
Aconselharam-na a munir-se com uma lâmpada e uma faca afiada, mas que
tivesse muito cuidado para que o amante não descobrisse. Assim, deveria se preparar para
quando ele estivesse dormindo profundamente, ir até ele e iluminar a sua face. Se por acaso as
hipóteses fossem confirmadas, então não deveria hesitar em cortar-lhe a cabeça para obter a
liberdade.
Psique resistiu durante muito tempo, até que não mais suportando a dúvida
preparou a lâmpada e a faca afiada e escondeu-as do marido. Seguindo o conselho das irmãs,
esperou ele dormir e iluminou seu rosto. Surpresa! Em vez de um monstro, teve a mais bela
das visões. Diante dela, um belo deus, com lindas madeixas louras, pele branca como a neve,
faces róseas e lindas asas de penas brilhantes dormia tranqüilamente.
Cupido deixando-a caída no chão lamentou-se tristemente. Aos poucos Psique foi
se recompondo, mas quando olhou em torno, tudo havia desaparecido: o palácio, os jardins,
os criados. Viu, apenas, um campo aberto onde moravam suas irmãs.
Foi procurar por elas para contar o que havia acontecido. Continuaram se fingindo
de boas, mas só pensavam que, Cupido estava livre para escolher uma das duas. Sem dizerem
nada sobre o que pretendiam, cada uma delas, no outro dia acordou bem cedo e foi para a
montanha esperar o vento Zéfiro pedindo para que ele levasse ao seu senhor.
procura do marido. Até que um dia muito cansada, avistou uma imponente montanha e no seu
topo um templo magnífico. Logo, imaginou que o seu amado estivesse ali e dirigiu-se até lá.
Psique, com boa vontade, arrumou toda aquela bagunça, pois apesar do que tinha
lhe acontecido acreditava não poder negligenciar nenhum deus, então cuidou e arrumou o
templo que pertencia à santa Ceres. Observando a entrega daquela moça, Ceres disse que não
podia fazer muito por ela, pois não podia protegê-la contra a má vontade de Vênus.
Assim, fez a jovem. Foi até Vênus que a recebeu com fúria e ódio. A deusa não
poupou Psique e falou-lhe de como a achava ingrata, pois seu filho havia desobedecido às
suas ordens por ter se apaixonado por ela e o que havia recebido dela era apenas uma ferida
aberta causada pela desconfiança. Agora, Cupido estava doente e triste.
Para que fosse perdoada teria de passar por duras provas que testassem sua
capacidade como dona de casa. Psique deveria ir até o celeiro do templo e separar todos os
grãos que lá estavam e eram muitos. Depois, deveria prepará-los para servir de alimento para
os pombos sagrados, antes do anoitecer.
Entregou um pedaço de pão preto à Psique e partiu. No outro dia mandou chamar
a moça e mostrou-lhe um bosque longínquo. Disse-lhe que lá, encontraria carneiros pastando
livremente. Eles eram cobertos de lã brilhante como ouro. Assim, ordenou-lhe que trouxesse a
lã desejada de todos os carneiros que ali pudesse encontrar.
Contrariada Vênus diz que ainda não confiava na sua capacidade de realizar uma
tarefa útil sozinha. Então, impõem outra tarefa muito difícil. Deve descer até as sombras
infernais e entregar uma caixa a Prosérpina , dizendo-lhe que coloque dentro dela um pouco
de beleza para Vênus, pois com a doença do filho, estava tão cansada que perdera um pouco
da sua própria. Avisa que Psique não deve demorar.
Essa prova parecia ser impossível de ser superada. Psique, em total desânimo,
dirige-se até o penhasco para de lá se atirar. Quando está pronta para realizar tal feito, escuta
uma voz dizendo que não deve cometer essa covardia, afinal tinha conseguido realizar as
provas anteriores. Não podia desistir diante da última prova.
A voz disse que a orientaria para chegar a gruta onde habitava Plutão e como
poderia passar por Cérbero, o cão de três cabeças, e enfim convencer Caronte, o barqueiro, a
transportá-la pelo negro rio e trazê-la de volta. Avisa, ainda, que quando Prosérpina entregar a
caixa, não deverá abrir por nada desse mundo, pois não pode conhecer o segredo da beleza
das deusas.
Psique parte e logo chega ao destino certo salva. Foi bem recebida, até um
banquete lhe ofereceram. Mas, ela não quis, comeu apenas um pedaço de pão seco. Deu o
196
recado de Vênus à Prosérpina que logo entregou a caixa. Então, partiu e ao encontrar a luz do
dia, encheu-se de felicidade.
Tendo a caixa na mão, ficou muito tentada em ver os tesouros que havia dentro
dali. Além do mais, gostaria de ter um pouco daquela beleza para poder encantar o seu amado
quando o encontrasse. Assim, não resiste a curiosidade e abre a caixa. Em vez de tesouros
encontrou o infernal e verdadeiro sono estígio. Caiu como se estivesse morta.
Agora, ela deveria fazer exatamente o que Vênus havia ordenado e enquanto isso
ele tentaria fazer algo para salvá-la. Dessa maneira, foi até Júpiter e suplicou que o ajudasse.
O deus, comovido pela história de Cupido empenha-se em defender aquela causa e até
consegue convencer Vênus.
Júpiter solicita que Mercúrio leve Psique até a assembléia celestial, e, quando ela
chega, ele entrega uma taça de ambrosia dizendo-lhe para beber e tornar-se imortal, pois
Cupido jamais poderia cortar o laço que atou e que aquelas núpcias seriam perpétuas.
Finalmente Cupido e Psique unem-se num matrimônio celestial e, mais tarde eles
têm uma filha chamada Prazer.126
Parece que não existe nada tão lindamente poético e alegórico como a
imortalidade da alma representada por uma borboleta que:
126
BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia, histórias de deuses e heróis. Rio de Janeiro: Ediouro,
1999, pp. 99-109.
197
Nessa narrativa existe um apelo bastante forte aos recursos simbólicos e à nossa
capacidade de fruição. Contudo, não sentimos que existe uma intenção de apontar o amor
como um bem maior e transformador, como no conto A Bela e a Fera, cujo sentido está na
busca de transcender por meio do amor, capaz de transformação e aceitação do outro.
Apesar de muitas semelhanças com os contos de fadas, o mito não garante o final
feliz, ou seja, a esperança de que as etapas superadas concedem um nível mais elevado de
maturidade. Psique vai até a última prova sendo vítima dos seus impulsos infantis, por isso
mesmo estando quase no final de suas dores e próxima ao triunfo, cede novamente à vaidade e
curiosidade.
É salva pela paixão de Cupido, que é diferente do amor. Na verdade ele está preso
à doença da paixão e por isso desobedece à Vênus. O mito diz claramente que Psique, ainda,
não está amadurecida o suficiente para poder escolher, ela própria, o melhor caminho para a
sua vida. Ela vive sob as pulsões do id e por isso, desgoverna-se. Então, é necessário que
Cupido trabalhe por ela. Mas Cupido, embora seja o deus do Amor não é o suficientemente
forte para servir de imagem especular positiva, pois ele próprio cede aos caprichos da mãe,
portanto não possui autonomia.
127
Idem, ibidem. p.p. 109, 110.
198
Observamos que o mito não garante o “final feliz”, pois pretende apenas propagar
uma certa ordem, a finalidade consiste em assinalar que aquela realidade vivida pelos deuses
está fora do alcance humano, entretanto se não seguirmos às leis celestes poderemos ser
terrivelmente punidos, isso tem a ver com o superego. Enquanto o conto de fadas está para o
ego e para o id o mito está para o superego como representante da censura.
O que representa Psique nessa narrativa cheia de simbolismos, mas que não
assegura a conquista de uma personalidade madura? Ora, a jovem corre risco de morte mais
de uma vez por ceder aos caprichos da vaidade e curiosidade, sendo castigada e tendo que
128
MARQUES, Maria Helena. Pedagogias do imaginário. Olhares sobre a literatura infantil. Porto: Edições
ASA, 2002, pp. 122, 123.
199
passar por duras provas. Ainda assim, não percebemos que ela conseguiu dominar seus
impulsos do id.
Além disso, não existe um movimento de Cupido para romper os laços edipianos
com a mãe. Mesmo, no último momento, um pouco antes de pedir aos deuses a imortalidade
para a sua amada, ele ordena que o desejo de Vênus seja atendido.
Por isso, Psique vaga tanto e sofre desesperadamente em busca do seu amado. Os
desejos da moça estão sempre relacionados ao prazer, desde o momento em que chega ao
palácio, mesmo que não tenha consciência disso. Esta é outra questão que deve ser pontuada,
pois parece que a censura imposta nos mitos é muito severa, trata-se de um superego
controlador e cruel, pois as provas que são impostas aos heróis parecem nunca satisfazer.
Mesmo que elas sejam devidamente cumpridas, com auxílios mágicos ou não,
aquele que as impôs não aceita sua resolução e passa a propor outra mais difícil. Vênus não
perdoa a amada de Cupido, ao contrário, passa a odiá-la mais ainda depois que o filho a
escolhe como esposa. Psique é libertada pela paixão de Cupido e intervenção de Júpiter e não
por satisfazer os desejos da deusa.
O mito nos diz que quando um mortal não é capaz de seguir o que está
determinado pelos deuses, então ele é destruído por essas manifestações de censura. A
fragilidade do mortal transmitida pelos mitos pode ser representada pela situação de Psique
que não consegue ter forças para enfrentar a ira de Vênus, chegando até a pensar em se matar
pulando de um precipício.
Ora, sendo Vênus uma personagem do mundo dos deuses vive numa situação
especial e habita o paraíso do Olimpo, onde tudo é prazer, satisfação e poder. Para psique ela
é uma rival imbatível. Vejamos como Homero apresenta a sua visão do Olimpo nos seguintes
versos da “Odisséia”:
129
BETTELHEIM, Bruno. Op. cit., pp. 46-48.
201
Este mito traz um dos motivos mais freqüentes nos contos de fadas que é a inveja
de uma mulher mais velha por uma mais nova e mais bonita. Motivo que serve de eixo para
todo o desenrolar da história.
Ora, essa temática não parece ser desconhecida, pois é apresentada em muitos
contos de fadas, como por exemplo, Branca de Neve, onde a madrasta não consegue aceitar
que sua enteada tenha se transformado na mulher mais linda do universo. Com a protagonista
de A Bela e a Fera acontece a mesma coisa, só que em vez de ser uma madrasta invejosa, ela
conta com a rivalidade das irmãs mais velhas, tal como Cinderela.
130
BULFINCH, Thomas. Op. cit., p. 99.
202
Mitos são narrativas poéticas que possuem força simbólica, mas não atendem às
necessidades de fantasia da criança. Mesmo o adulto, apreende a realidade dos contos de
fadas de forma diferente da mítica.
Os contos têm um apelo afetivo, seus heróis por mais idealizados que sejam são
comuns, até um pouco banais e experimentam uma vida cotidiana. Mesmo quando belos eles
não correspondem ao ideal de perfeição absoluta, são capazes de amar e sofrer como todos os
mortais.
131
Idem, ibidem, pp. 50, 51.
203
Por mais simples que tal fato pareça, na realidade tem importância quando se trata
de apresentar elementos que provoquem um sentimento mediato de identificação e, como o
nome é o primeiro significante do sujeito no mundo. Segundo a psicanálise, então sabemos
que o fato daquela personagem do conto de fadas ter um nome genérico, facilita o
reconhecimento do leitor com aquilo que lhe é essencial no herói, que é o de “viver uma vida
como a sua”.
De fato, os jogos projetivos diante dos contos de fadas são tão intensos que em
alguns momentos as personagens funcionam como um “espelho de pele”, de modo que o
vivido na narrativa não representa uma fantasia, mas o possível de ser em cada história de
vida, em cada ritual de iniciação ou passagem, enfim em cada momento da existência que é
singular porque “vivido” por uma pessoa particular, mas também que é universal porque se
refere aos sentimentos experimentados por todo ser humano.
Em Cupido e Psique, por exemplo, temos a nomeação dos deuses, inclusive dos
seus familiares. Embora a versão de Apuleio apresente uma significativa semelhança com o
conto de fadas, ainda assim a estrutura do mito permanece na medida em que suas
personagens projetam uma personalidade ideal, que devem agir segundo as exigências do
superego.
Isso nos parece bastante claro em Cupido e Psique, pois concluímos a leitura com
o sentimento de que seus heróis não conseguiram atingir a maturidade necessária. Cupido
como diz o próprio Júpiter não “romperá jamais o laço que atou” e as “núpcias serão
perpétuas” que é muito diferente de dizer que eles foram “felizes para sempre...”, ou “até que
a morte os tenha separado”, como nos contos de fadas, onde as verdades da “ficção” são
muito mais humanas e reais. Portanto, mais próximas da pele e da alma.
204
O comentário de Bettelheim pode ser assegurado por muitos contos de fadas que
se baseiam em histórias míticas, mas apresentam possibilidades diferentes. O mito exibe uma
narrativa sobre-humana, ou seja, por mais que se aproxime de fatos reais, os seus personagens
não produzem uma identificação com o humano. É uma narrativa que, além da singularidade,
diz ao leitor que os episódios narrados somente poderiam ter acontecido no âmbito de um
mundo idealizado. No conto de fadas temos fatos inusitados e personagens fantásticas, mas
que vivem uma vida comum como a nossa e por isso são capazes de um efeito de
identificação.
Os mitos são narrativas poéticas com muita força simbólica, mas não atendem às
necessidades de fantasia da criança e mesmo o adulto apreende a realidade dos contos de
fadas diferentemente das míticas. Os contos têm um apelo muito forte ao afetivo. Seus heróis
por mais idealizados que sejam são comuns, até banais e vivem uma vida cotidiana, mesmo
quando belos eles não correspondem ao ideal de perfeição absoluta e são capazes de amar e
sofrer como os mais humano dos mortais.
Agora, realizamos a travessia do mito de Cupido e Psique para o conto que nos
propomos a analisar, na certeza de que este produz no leitor algo que é da ordem da
transcendência porque permite adentrar na dimensão do outro, identificado pela dor-amor.
pelos freudianos, mas também aqueles reformulados pela concepção lacaniana que coloca o
sujeito numa situação de falta permanente constituída pela primeira perda, a qual chama de
“objeto a”.
Lembramos uma famosa frase do grande poeta Rilke que ao falar da infância e de
uma dor fundante nos diz que:
O ser humano está permanentemente nesse espaço lacunar de onde se vive todas
as dores e onde, também buscamos amar. De modo que nunca falaremos da dor sem nos
referirmos ao amor, como também o contrário é verdadeiro. Toda busca de amor tem origem
nesse estado de inconclusão provocado pela perda primeira.
132
NASIO, Juan-David. Op. cit., p.82.
206
Se nos referimos à linguagem dessa forma é porque acreditamos que por meio
dela suportamos e representamos a nossa condição de inconclusão e temos acesso ao outro.
Tentamos nos salvar elaborando um dizer das nossas dores e sofrimentos, mas também
construindo-nos dentro de um contexto de linguagem do afeto-amor.
Assim, todas as histórias nos falaram das nossas próprias histórias como percurso
constante desse estado de nostalgia e luta por uma totalidade de ser, tal como diz o poeta
Rilke ao falar da dor e da infância como o lugar “onde outrora fomos ricos”. Por outro lado,
compreendemos que aí elaboramos, sobretudo todos os nossos sentimentos de ambivalência
com relação à vida. A dor-furo surge desse lugar que também é “permanência”.
Assim nasce o amor, desse espaço vivo e movimentado onde estão as pulsões
dolorosas que preenchem o lugar da dor. Surge como fantasia regeneradora capaz de fazer
viver o melhor e o pior de cada um de nós, tal como acontece na representação literária. O
conjunto de sentimentos que se sobrepõem na narrativa para dar voz à uma multidão de “eus”,
sugere esse espaço “esburacado” e intervalar como origem da fantasia.
Portanto, é dentro dessa elaboração de fantasia que, também, se pode dar conta de
que precisamos do outro para nos sustentar enquanto imagem investida de desejo, de forma
133
Idem, ibidem, p. 150.
134
Idem, ibidem, p.61.
207
que quando nos deparamos com as personagens estamos diante de uma possibilidade de ser e
não ser. Além disso, o que nos toca nas personagens é poder olhá-las como diferentes e iguais,
no medo e na coragem, na angústia e na plenitude, no sofrimento do abandono e da rejeição,
mas também na paixão pela vida.
É disso que nos propomos a falar no conto A Bela e a Fera, buscando apontar para
o sentido dessa narrativa que nos serve de “brecha” para que de certa forma sejam desvelados
alguns aspectos do inconsciente. Embora, exista medo de enfrentar os perigos oferecidos pela
nossa “fera” o seu confrontamento é algo decisivo para que se possa viver “bem” a
coletividade que existe no nosso reino interior.
Afinal, o que existe nesse conto que persuade tanto e nos provoca o desejo de
“arriscar-se” e que se perpétua no sentimento e na experiência de mundo das pessoas que um
dia se depararam com a Bela e com a Fera? Qual o processo de identificação que se estabelece
com as personagens e situações dessa história? Que tipo de autonomia é encontrada no ato de
sua leitura e interpretação? Enfim, por que a Bela se entrega ao amor pela Fera, antes mesmo
de descobrir e conhecer a sua face de beleza ?
Estas são questões que nortearão nossas conjecturas com relação aos sentimentos
que se colocam como eixo central do conto, na medida em que avançamos para nos colocar ao
lado da afirmação de que:
Esta é uma narrativa que diz para a criança que o sentimento de amor é muito
mais do que ser escolhida ou despertada por um príncipe. Pois amar alguém implica
compromisso que se estabelece a partir daquilo que consideramos como falta, espaço que
135
Idem, ibidem, p. 151.
208
suscita paz e guerra. Assim, entrar em contato com essa dimensão do amor pode fazer com
que a criança compreenda-se nas próprias escolhas.
Existem muitas versões para o conto A Bela e a Fera e, possivelmente, é uma das
histórias mais estimadas entre os contos de fadas.
A versão que escolhemos apresentar para servir como base de nossas análises
encontra-se na obra de Madame Leprince de Beaumont, publicada em 1757, que por outro
lado, nos remete às versões anteriores escritas por Madame Villeneuve e Madame D’Aulnoy,
comentadas por Marina Warner em sua obra intitulada Da Fera à Loira e que certamente,
deram origem às versões mais atuais.
Todas as vezes que lemos A Bela e a Fera encontramos uma janela nova, um
caminho diferente e assim, nos preparamos sempre para dizer novamente, tomados de
encantamento.
Era uma vez… um mercador que possuía três filhas muito bonitas sendo a mais
nova a mais formosa de todas. Ao contrário de suas irmãs, que eram maldosas e egoístas, a
caçula era encantadora, generosa e meiga. De beleza tão singular que a chamavam de a
Pequena Bela.
O pai que já fora rico, perdeu toda a fortuna e tal fato irritava profundamente suas
filhas mais velhas. Entretanto, ele contava com a compreensão da mais nova.
A viagem de nada adiantou para que ele recuperasse a sua fortuna perdida. Assim,
decide imediatamente retornar para casa. Cansado e com desânimo perde-se numa floresta,
até que encontra um palácio onde lhe dão abrigo: Come, bebe, dorme e repousa, mas não vê
absolutamente ninguém.
Após ter descansado, decide partir e ao fazê-lo passa por um jardim com lindas
rosas vermelhas. De repente, lembra do pedido da filha e colhe algumas flores para levar-lhe
de presente.
209
Subitamente, escuta uma voz horrenda que o recrimina por tal atitude. Afinal,
havia sido recebido naquele palácio com toda gentileza possível.
Depois do mal feito como castigo ele teria a morte. O homem desesperado
suplica-lhe pela vida e explica o porquê de ter colhido aquelas flores.
A criatura então responde que somente o libera se uma das filhas se oferecer em
seu lugar.
Chega em casa, triste e desanimado. Não conta o que aconteceu, porém, Bela
insiste e ele termina por dizer-lhe o que sucedeu.
Bela não se conforma e implora para ir em seu lugar. Mesmo sem querer o pai
consente em levá-la junto com ele. Enquanto isso, com o ouro recebido, consegue realizar
casamentos de prestígio para suas outras filhas. Logo após os casamentos Bela parte com seu
pai. Ao chegar no palácio da Fera, Bela é recebida por criados invisíveis que a tratam com
muita gentileza. Durante a noite recebe a visita da Fera que logo se apaixona por ela. A moça,
apesar de se assustar com a aparência dela, pois nunca tinha visto uma criatura tão feia, se
encanta com sua delicadeza e generosidade. Fazem uma grande amizade, mas a Fera quer
mesmo é desposá-la e todos os dias quando vai visitá-la a pede em casamento.
Embora, ela admire a extrema bondade com a qual é tratada, recusa o pedido de
matrimônio o que deixa a criatura bastante infeliz. De qualquer forma mantém a esperança de
que pelo menos a moça nunca o abandone. Bela promete que nunca fará tal coisa, mas pede-
lhe para visitar seu pai, pois ao olhar no espelho mágico onde podia ver tudo que se passava
no mundo, viu seu pai muito doente e também sentia saudade das irmãs.
A Fera que já confiava em Bela permitiu-lhe a viagem, mas avisou que teria que
voltar no prazo máximo de uma semana, caso ultrapassasse este prazo ela morreria. Ao
chegar em casa, seu pai logo, restabeleceu-se. Suas irmãs infelizes no casamento e sentindo
ciúmes dela pedem-lhe para que fique mais uma semana, pois acreditam que a criatura
monstruosa revoltada com a desobediência de Bela fosse procurá-la no intento de destruí-la.
210
A jovem decide ficar, no décimo dia sonha com a Fera agonizante. Desesperada
deseja voltar e é transportada de imediato ao palácio. Entretanto, antes de partir é induzida
pelas irmãs a iluminar o rosto da Fera, pois até então só haviam se encontrado na escuridão.
Diante do acontecido, o príncipe diz que se Bela o ama de verdade terá que
encontrá-lo no seu reinado. Ele parte e tudo em volta dela desaparece. O palácio transforma-
se num bosque fechado. Perdida no bosque, ela passa por algumas provas, porém jamais
pensa em desistir. Finalmente, encontra o reinado e o seu príncipe encantado. Casam-se e são
felizes para sempre.
O pai recebe a notícia com alegria e suas irmãs são transformadas em estátuas.136
Existem versões que omitem o fato de Bela ter seguido os conselhos das irmãs e
iluminado o rosto da Fera, como também o fato de ela ter passado por provas. Entretanto, a
versão de Madame D’Aulnoy apresenta-se muito próxima do mito de Cupido e Psique.
A passagem onde Bela descumpre a promessa e ilumina o amado é uma das mais
reveladoras, pois indica o momento no qual se desencadeia a transformação necessária para
que os heróis ressurjam com outra identidade, capazes de sentimentos maduros e
salvaguardados pelo amor.
A Bela e a Fera é um conto que produz um certo medo, visto falar de criaturas
invisíveis, faces proibidas, enfim existe um clima de mistério que provoca um certo suspense,
136
Releitura baseada na versão de Madame Leprince de Beaumont, que por sua vez baseia-se em versões
anteriores. Ver A Bela e a Fera. In: anexo 4, p. 289.
211
mas também uma certa atração. Misto de repulsa e sedução. Além disso, possui conteúdos de
eroticidade que vão norteando um pouco da própria natureza da Fera, que sendo uma criatura
monstruosa pode representar pulsões selvagens indicativas de um ego ainda pouco controlado.
Mesmo sendo generosa foi capaz de ameaçar o pai de Bela e provocar sofrimento.
O secreto também faz parte do mistério. Tanto Psique quanto Bela desejam
desvelar o segredo que existe com relação à aparência de seus pares amorosos. A diferença é
que Psique segue até o final sendo dominada por seus instintos primitivos. Desvia-se do seu
intento na intenção de satisfazer sua vaidade. Deseja ficar mais bonita ainda para continuar
seduzindo Cupido pelas virtudes da beleza física.
O mesmo não acontece com Bela que se arrepende profundamente por não ter
cumprido sua promessa de voltar no prazo previsto. Nesse instante Bela descobre que precisa
da Fera para ser feliz e realizar-se no amor. Assim, viabiliza um processo de identificação
entre o leitor e os personagens do conto, como se a partir daquele momento o espaço “vazio”
do mistério fosse preenchido de uma esperança oferecida pela imagem do outro amado.
Não encontramos nada nesse conto que possa ser julgado como feroz ou
aterrorizante. Muito pelo contrário, sentimos pelo monstro algo de extremamente positivo,
embora que, inicialmente, ele se apresente como opositor já que ameaça o pai de Bela.
Entretanto, o leitor compreende que tal fato é necessário para garanti-lo de que a
transformação acontecerá.
A Fera torna-se uma imagem de beleza e poesia, pois apesar de ser horrenda
consegue despertar o amor do outro por sua bondade, mesmo estando numa situação
desumana mantém-se com dignidade. Não deseja que Bela aceite seu pedido com desprezo,
quer ser verdadeiramente fonte de amor e amizade. Tendo força e poder poderia obrigá-la a
casar-se ou então castigá-la por não aceitar o pedido. Mas diferente disso, roga-lhe para que
ela fique para sempre e promete fazê-la feliz.
Tal fato nos leva a observar que este conto coloca a transformação como um
processo de interiorização pelo qual temos que passar, se quisermos alcançar uma forma mais
satisfatória e humana de felicidade. Mostra-nos que a conquista do amor requer uma luta
interior de aceitação pelo outro que elegemos como objeto de amor.
Entretanto, a dor e o amor que aparecem aí, não são propriamente o eixo da
narrativa, mas sim o processo pelo qual cada sujeito tem de passar para desabrochar como
individualidade. Somente quem ultrapassa a dor obtém capacidade de realizar-se em relações
de uma transferência satisfatória. Assim, Bela que ama seu pai consegue “olhar-se”
independente por meio de uma outra imagem, oferecida por uma face, a princípio proibida,
mas de onde se projeta para crescer.
Marina Warner em obra já citada levanta alguns aspectos interessantes tanto desse
conto como também do mito de Cupido e Psique. Afirma que:
137
WARNER, Marina. Da Fera à Loira. Sobre contos de fadas e seus narradores. São Paulo: Companhia das
Letras, 1999, pp. 307, 309, 310.
213
Como na maioria dos contos de fadas que trata da temática de irmãs invejosas,
Bela sofre a maldade de suas irmãs que invejam a sua beleza, tal qual como ocorre em Cupido
e Psique. As irmãs de Bela também a desafiam estimulando a sua curiosidade. Entretanto, não
sentimos que ela aceita o conselho das irmãs por curiosidade, mas sim porque deseja conhecer
mais profundamente o objeto de seu amor.
De qualquer forma, com a insistência do pai, pede-lhe uma rosa, que é símbolo de
muitos aspectos, sobretudo aqui nessa narrativa representa a sexualidade porque serve de
“passaporte” para que Bela seja entregue a Fera. A rosa que Bela pede é símbolo de travessia,
pois por meio dela a moça passa das mãos do pai para as do amado, portanto existe aí, com
toda clareza uma transferência – deslocamento de afeto, tal qual nos é sugerido por Nasio ao
declarar que:
138
NASIO, Juan-David. Op. cit., p. 38.
214
Ora, Bela era a filha mais generosa do mercador e embora ela sofra muito com o
fato de ter que partir para a companhia de alguém que sequer conhece, não poderia deixar seu
pai morrer. Então, prefere ela própria, resignadamente, ter aquele destino. Parte por amor a
seu pai, mas encontra outro capaz de também, como ele, servir de imagem-dupla para as suas
projeções. Assim, novamente sustenta-se no amor, mesmo sofrendo a ausência do pai.
A dor da perda impõe-lhe a fantasia do eleito, então aquele que poderia ser
ameaça e sofrimento ocupa a cena do seu afeto. Ele, a Fera, é aquele que a alimenta, protege,
guarda e também, interdita. O desejo, lugar de onde surge a fantasia, é caminho de dor.
Contudo, para que o eleito seja interiorizado é preciso que ele funcione como
imagem múltipla da nossa falta, que se apresente como ausência daquilo que consideramos
como uma “presença de nós” no Outro que nos serve de base e sustentação. O amor é sempre
necessário.
Talvez, por isso, Bela não atenda ao pedido de nunca olhar a Fera, pois é
necessário reconhecer-se na imagem daquele que mais do que reflexo da nossa imagem é
significante da falta, dor permanente do primeiro objeto de amor perdido. Assim, aquele que
vem para ocupar essa cena vazia e esburacada transforma-se no eleito amado, fantasia que nos
coloca lá onde outrora nos sentimos plenos. Pois;
mim, e que eu suscito nele, e que nos une. (...) o eleito existe
duplamente: por um lado, fora de nós, sob a espécie de um
indivíduo vivo no mundo, e por outro lado em nós, sob a
espécie de uma presença fantasiada – imaginária, simbólica e
real – que regula o fluxo imperioso do desejo e estrutura a
ordem inconsciente. Das duas presenças, a viva e a fantasiada,
é a segunda que domina, pois todos os nossos comportamentos,
a maioria dos nossos julgamentos e o conjunto dos sentimentos
que experimentamos em relação ao amado são rigorosamente
determinados pela fantasia. Só captamos a realidade do eleito
através da lente deformante da fantasia. Só o olhamos,
escutamos, sentimos ou tocamos envolvidos no véu tecido pelas
imagens nascidas da fusão complexa entre a sua imagem e a
imagem de nós mesmos. Véu tecido também pelas
representações simbólicas inconscientes, que delimitam
estritamente o quadro de nosso laço de amor.” 139
Pela imagem que o conto oferece nos sentimos impulsionados a concordar com a
afirmativa de Nasio, quando se refere à fantasia do amado. A Bela e a Fera é uma narrativa
que fala metaforicamente de opostos que se atraem, pois os personagens inspiram esse véu de
fantasia. A escolha da Fera por Bela não é um acaso, mas uma imagem viva do seu desejo de
perfeição e generosidade. A fantasia de que ela é perfeita é a de um ideal a ser alcançado. O
objeto de amor é uma fantasia provocada pelo desejo de que aquele é o que me falta, por isso
o amor consiste numa fantasia condensada nas expectativas do sujeito.
Por outro lado, Bela também precisa desse outro que transita entre a imperfeição
de ser uma fera, mas que ao mesmo tempo é capaz dos sentimentos mais sublimes. Os
personagens são a própria imagem dessa condição de ambigüidade onde o desejo se
representa no próprio simbolismo do quadro que nesse conto se estabelece entre uma linda
jovem e uma fera (príncipe encantado).
139
Idem, ibidem, p. 40.
216
Afinal, o que falta à Bela, senão se dar conta do seu outro lado, desprezado pelo
desejo de constantemente agradar o outro, tomado-o aqui na figura do pai? E o que falta a
Fera, senão ser vista naquilo que lhe assegura um olhar transformador e somente refletido
numa imagem de beleza?
Bela parte para um Palácio, lugar desconhecido e habitado por uma Fera que
busca atender todos os seus pedidos e que em troca pede-lhe apenas o laço de amor e por isso,
insiste no casamento que ela tanto recusa.
Não muito diferente de Cupido, a Fera se ausenta durante o dia e ressurge durante
a noite, clara alusão de que nesse momento envoltos no mistério da escuridão eles realizam-se
como homem e mulher. Entretanto, essa realização não é total, pois Bela ainda não aceita o
pedido de casamento, ela precisa reconhecer-se no desejo que o Outro lhe dá acesso, mas
para tanto precisa aceitar o laço de amor, o que acontece quando se dá conta que pode perder
a Fera e, em conseqüência, a sua possibilidade de amar.
O pai mercador leva a rosa em troca da própria vida, além disso também, pode
levar o cofre cheio de ouro para casa e assim, casar suas outras filhas com homens de
prestígio, embora mais tarde elas não sejam felizes, pois como são más estão submetidas
apenas às pulsões destruidoras do id, portanto incapazes de amar verdadeiramente.
Das filhas do mercador somente Bela pode ocupar esse lugar, pois ela é a única
capaz de oferece a imagem ideal de perfeição e beleza, qualidades necessárias para quem vive
numa situação repugnante e monstruosa.
A Fera, logo reconhece a sua imagem em Bela e investe no seu desejo de amor,
por isso não se cansa de pedir a moça em casamento, a qual o faz aflito e em sofrimento
217
porque sempre o recusa. A Fera é uma imagem de dor e sofrimento, pois está preso à sua
condição animal, por não conseguir ser amado. Somente o amor da Bela poderá libertar a Fera
para que ela alcance uma outra forma e seja transformada pelo “olhar da sua amada”.
Tudo que aquela criatura bestial deseja é ser amado por Bela. O seu maior medo
reside na possibilidade de ser abandonado por quem elegeu para amar. Assim, sofre a cada
recusa, submetendo-se apenas à promessa de que ela nunca o abandonará. Então, aparece o
espelho como cenário de todas as cenas. Nele, a moça vê o seu pai saudoso e doente. Seu
reflexo ainda está lá, junto ao amor paterno que sofre a tristeza da sua ausência.
É uma bela metáfora do amor, pois este é um sentimento sustentado pela presença
da fantasia do Outro. Quando desaparece o que resta apenas é o vazio pleno, preenchido de
ausência e dor pelo laço rompido. Ruptura e quebra do reflexo, expressão da própria imagem
do eu no Outro. Uma vez que essa representação é impossível, então o que vive é apenas uma
imagem esburacada, onde falta o eleito, falta vida. É a morte. Sublinhamos que:
Qual a criança que lendo esta história não se juntou aos lamentos da Fera e não se
colocou em seu favor, vibrando para que Bela o amasse de verdade? Mesmo no início da
narrativa quando o pai é obrigado a prometer o seu retorno, a criança sente-se encorajada a
aceitar que Bela enfrente o desafio e vá em seu lugar, pois a Fera não se apresenta como
ameaça de destruição, mas ao contrário de transformação.
“(...) Com isto, simboliza seu amor por ela e antecipa a perda
da sua condição de donzela, pois a flor partida e especialmente
a rosa arrancada – é símbolo da perda da virgindade. Para o
140
Idem, ibidem, pp. 38,45, 46, 47.
219
pai tanto quanto para ela isto soa como se ela tivesse de passar
por uma experiência “feroz”. Mas a história diz que suas
ansiedades são infundadas. O que temiam que fosse uma
experiência feroz se revela como algo profundamente humano
e amoroso.”141
Talvez por isso, as crianças ao entrarem em contato com esta história não se
sintam ameaçadas e compreendam o motivo pelo qual o pai de Bela a deixa partir. Nem
tampouco, se sentem apavoradas com a Fera, embora saibam que ela tem uma aparência
animalesca. A Fera produz muito mais o efeito de cumplicidade do que propriamente repulsa.
141
BETTELHEIM, Bruno. Op. cit., p. 345.
220
É neste espaço de dor que surge o amor, por mais contraditório que isso possa
parecer, o amor surge de um espaço doloroso e, aí, também se origina a pulsão sexual,
enquanto força positiva da libido. Então, é necessário que o sujeito envie seu olhar para o
outro para que numa atitude reflexiva o outro retorne o olhar, pois somente sendo objeto de
amor para o outro o sujeito será capaz de desejar-se no outro.
Desde o início da vida, é necessário sentir-se amado pelo Outro para que haja um
reinvestimento na própria capacidade de amar e transcender os sentimentos dolorosos
provocados pelas primeiras perdas. Assim, a passagem da dor para o amor será possível se
existir um investimento significativo na imagem oferecida pelo Outro, isso também garantirá
o acesso ao simbólico. Pois,
Dessa maneira, a Fera começa a oferecer uma imagem “esburacada” para Bela na
medida em que vai se tornando presente, comparecendo à cena que é devidamente preparada
na narrativa, quando a Fera visitando-a todas as noites durante o jantar vai seguindo o
caminho entre o prazer (oral) da comida e o prazer de realização sexual. Pede à moça em
casamento todas as noites mesmo não que não tenha uma resposta positiva de imediato, sabe
que pode confiar em Bela e por isso, permite que vá ver seu pai.
Existe algo nas atitudes de Bela que reassegura seu retorno e que de certa forma
reflete um comportamento infantil experimentado com intensidade. Em geral, as crianças
142
NASIO, Juan-David. Op. cit., p. 120.
143
Idem, ibidem, p. 142.
221
desejam ser atendidas em todas as suas necessidades, embora não gostem de ser cobradas.
Não adianta ser servido e ter todos os desejos realizados se não nos sentimos encorajados a
desafiar a monotonia. Talvez, por isso Bela que inicialmente tem medo da Fera, passa depois
a aceitar as suas visitas durante a noite.
De todos os contos de fadas este é o que deixa mais claro para as crianças que a
ligação edipiana é algo natural na vida de todos e que pode ser muito positiva se ocorrer
dentro de um processo natural, no qual a criança se sinta afetivamente capaz de transferir o
amor pelos pais para uma outra pessoa que surge como eleita de seu amor.
Portanto, este conto fala de uma transferência edipiana positiva, embora nos seja
avisado o sofrimento do pai ao deixar Bela partir e o dela ao saber que seu pai corre risco se
não cumprir com a palavra.
144
BETTELHEIM, Bruno. Op. cit., pp. 346, 347.
222
A criança que vive os laços edipianos de maneira positiva consegue transferir seus
afetos para outros objetos de amor e alivia-se do sentimento de culpa por querer um dos pais.
Vive o desejo de maneira repulsiva e por isso consegue realizar a transferência desses
sentimentos para um outro que mais tarde será o eleito para o amor.
Certamente, que a criança que conhece este conto no momento em que está
passando um problema relacionado ao conflito edipiano, pode por meio do processo de
identificação projetar-se nas personagens e conseguir uma transferência afetiva positiva, não
somente numa conduta intersubjetiva, mas, sobretudo “transubjetiva”, pois dessa forma terá o
reflexo do seu desejo reproduzido sob diversos ângulos e possibilidades, mediatizados pelo
outro e surgirá desse espaço com uma visão diferente e melhor sobre ela mesma.
Essa “permissão” que o texto oferece para um olhar “transubjetivo” do leitor com
relação às diversas possibilidades afetivas produzidas a partir dos dramas dos personagens
cabe na metáfora narrativa, como sendo espelhos que se multiplicam e se transformam a
partir dos diversos ângulos produzidos pelo olhar.
Então, consideramos que o olhar da criança com relação aos personagens do conto
A Bela e a Fera não será enviado somente aos conflitos edipianos, mas também para aqueles
que libertam a alma. O que acontece na vida desses personagens fala da vida de todo mundo
porque vivemos em busca de aceitação. Queremos ser aceitos e isso de certa forma nos
“garante” o sentimento de auto-estima.
223
Assim, com vistas para os tantos “eus” em unidade com outros é que surge a
possibilidade da narrativa produzir o efeito da “transubjetividade” e o leitor assim, carrega-se
daquilo que para ele é o sentido de uma existência melhor.
145
MANNONI, Maud. Amor, Ódio, Separação. Rio de Janeiro: Zahar, 1995, pp. 44, 45.
224
irmãs transformadas em estátuas isentos, nós leitores, da culpa de termos que ser totalmente
bons ou maus.
Sentimos esse algo especial que extrapola o entendimento racional ao nos deparar
com Bela e seu sofrimento, provocado pela dor daquele que, agora, vive na figura do seu
eleito-amado. Assim, Bela reencontra-se no espaço da sua conquista e travessia ao se dar
conta de que seu amado morre com a sua ausência, quebra de promessa – impossibilidade de
encontro. Mundo onde a Fera agoniza enquanto aguarda pela transformação final. Momento
de dor e prazer.
O crescimento provoca dor, mas também prazer porque significa superar provas
que permitam a assunção do eu e do tu, em conseqüência, do corpo e da sexualidade. Essas
provas são complexas e por isso o herói ou heroína não consegue vencê-la de imediato.
É preciso tempo para se ter o domínio necessário para passar de uma etapa a
outra, na qual se pode utilizar com equilíbrio a plena capacidade do corpo e de todas as suas
possibilidades. Quando atingimos esse estágio então existe a permissão para uma relação
plena com o outro. Assim, a conjunção amorosa no final dos contos significa celebração de
um objetivo alcançado, no qual os amantes não ficam à margem da sociedade, porque o amor
é promessa de uma vida integrada.
A imagem bestial da Fera já não assusta e então, ela pode permitir-se amá-la na
diferença, o que não implica dizer que o estado de amor proporcione exclusivamente
sentimentos de satisfação. Vemos que dor e amor se confundem tanto quanto prazer e
desprazer. Tudo acontece nesse espaço de jogo.
O eleito representa uma barreira constituída por uma pessoa real e que nos
proporciona uma satisfação tolerável, sem que para tanto impeça o sonho de um gozo
absoluto. Ao contrário, alimenta a esperança de que um dia isso será possível. A fantasia que
se faz do amado está na base do desejo.
146
NASIO, Juan-David. Op. cit., pp. 60-62.
226
são capazes de sustentar aquilo que em nós é demanda por um outro em quem se possa
projetar.
O excesso de investimento de uma dessas imagens significa amor e o desejo
apóia-se sobre a coisa real. De outra forma, se o excesso de investimento não tem uma
imagem real para se apoiar, aquilo que poderia ser amor é ocupado pela dor.
Tomemos como exemplo, crianças pequenas que ao serem deixadas pela “mãe”,
mesmo que seja durante alguns minutos, não param de perguntar por que a “mamãe não chega
logo” e se não forem logo atendidas com a chegada, fantasiam que ela partiu para sempre.
Então, o que era dor transforma-se em ódio, pois se ela foi embora não amava de verdade.
significativa nestas narrativas no que diz respeito às provas, pois Psique cumpre ordens
impostas pela sogra, sua rival. Enquanto, a Bela sai em busca da Fera impulsionada pelo
desejo, sem ter que rivalizar com outra mulher.
Agora, após ter sua imagem sustentada no amado, quem sofrerá a dor da ausência
do eleito é Bela e por isso, submete-se à situação de penúria sem desistir encontrar-se com a
Fera. Pois,
147
Idem, ibidem, pp. 27, 30, 38.
228
sentimento de estranheza pelo absurdo que pode ser real. Assim, a Fera é significante de um
estado de dor descomunal, que grita todas as perdas, mas que é esperança de transformação.
Muitas crianças ficam tão envolvidas no caráter de dualidade da Fera que parecem
apreciá-la mais do que apreciam Bela. Sentem-se profundamente solidárias com essa criatura
misteriosa porque são despertadas para suas próprias experiências internas. Inúmeras vezes,
vividas com horror. Choram quando a Fera adoece. Acreditam que não vai dar tempo de Bela
encontrá-la viva. Sentem compaixão e se comovem, não somente porque são generosas, mas
também por sublimarem suas próprias tristezas e sofrimentos no outro simbolizado pela Fera.
Essa trecho da narrativa faz suscitar angústias arcaicas (medo do abandono, sentimento de
perseguição, medo do desconhecido). A partir daí o leitor pode experimentar algo como “um
ganho de prazer”, um “bônus de sedução” que é acompanhado de um relaxamento das
tensões. O leitor vive as cenas isento da culpa e, sobretudo, deixando-se abandonar as suas
próprias fantasias.
229
A dor parece ser sempre um forte elo de identificação. Sofrer junto com a Fera
reconduz a um estado anterior no qual as ansiedades persecutórias e o medo de aniquilamento
produziam o efeito de uma dor. Pois,
É dessa dor reatualizada que nos falam as personagens do conto A Bela e a Fera,
ou seja, daquilo que por meio delas interiorizamos e reconhecemos como nosso, pois toda dor
tem no fundo a mesma origem e mesmo, quando deslocada para outros afetos, basta que um
estímulo exterior se apresente como marca indesejável, que logo surge o impulso doloroso da
dor primeira.
Cada personagem servirá de apelo para nossas fantasias, fazendo viver os
possíveis da nossa história. Na verdade, desejamos ver naquele outro que é “personagem” a
possibilidade de um encontro feliz, produzido pela travessia da dor-amor.
148
Idem, ibidem, p. 52.
230
O grito da Fera é o de Bela, do pai, das irmãs, enfim de todos nós. O texto fala das
ausências e a agonia vem daí. Do que se perdeu para sempre e gira em torno daquilo que
precisamos conquistar para fazer presente o amor primeiro e todas as suas compensações.
Das-ding é jogo de ausência e presença. Jogo de esconde-esconde que permite a esperança de
que o que um dia partiu voltará. Esse é um jogo recorrente nos contos de fadas. Há sempre
alguém que parte e abandona. Mas também, alguém que busca e encontra.
149
Idem, ibidem, p. 153.
231
Bela, sofre a dor do abandono enquanto vê tudo ao seu redor desaparecer, já não
existe palácio, nem criados, somente um bosque o qual terá que enfrentar para poder, se
quiser, reencontrar o seu eleito, agora sob a forma humana. Além disso, a moça já havia se
acostumado com a presença da Fera, já conhecia a sua beleza e humildade.
É desse lugar que Bela surge para lutar, agora, pela sua transformação. Como
Psique encontra-se abandonada e sabe que para reencontrar seu príncipe terá que suportar os
desafios necessários e o primeiro deles, está dentro de si própria e que consiste na luta para
realizar o seu desejo por meio do Outro, como representante da falta. Não tendo que ocupar o
lugar do Outro.
150
Idem, ibidem, pp. .51, 191.
232
um desinvestimento da própria imagem, que antes era projetada na figura do eleito amado.
Agora, Bela entra em contato com a dor profunda, surgida do abandono.
151
COSTA, Maria da Conceição. Op. cit., p. 100.
233
Sem dúvida, é a pulsão de vida e amor que nos sustenta e garante o renascimento
e todas as vezes que o herói do conto consegue superar suas perdas, então ele nos ensina que
somos capazes de viver a gratificação.
Com relação ao grito, ainda que isso não seja mencionado no texto, ressaltamos:
A afirmação traduz o que comentávamos antes e que tem a ver com a dor da Fera
e seu grito mudo. Seu grito ressoa nos ouvidos daqueles que com ela rememora o objeto de
amor perdido. Sentimos que ela desmorona diante da ausência da amada, não somente porque
se sente no abandono e solidão, mas também porque escapa-lhe a imagem de um amor ideal.
152
Idem, ibidem, pp. 57, 58.
235
deixa crer que ele pode levar a excitação ao máximo. Ele nos
excita, nos faz sonhar e nos decepciona. Nosso amado é nossa
carência.(...) O amado é um outro, mas uma parte de nós
mesmos que recentra o nosso desejo.”153
O dilaceramento da Fera ao sentir que o seu objeto de amor está perdido a torna
amedrontada e apavorada porque ela é reconduzida ao Isso, deparando-se com o inacessível
da dor. Como também, a Bela ao sentir que poderá nunca mais ter diante de si aquele que
descobrira ser o seu amor. Nesse momento, temos a emergência de dois sujeitos que se
sustentam no olhar do Outro e no desejo de se aliviar as dores do Isso.
Olhar-se por meio do reino do Outro é de certa maneira, poder ter acesso aos seus
vividos e por isso, Bela e Fera ao chegarem quase no final do conto se dão conta do perdido e
daquilo que sendo imagem do Outro será sempre fantasia. Então, surge a dor em toda a sua
amplitude, algo visceral e monstruoso, tanto quanto a ameaçadora face de uma fera.
153
Idem, ibidem, pp. 58-60.
236
É desse olhar que pretende ver bem, ver longe que se constrói o espaço narrativo
de transubjetividade. Nesse lugar de possibilidades surgem os múltiplos olhares. O olhar do
contemplador não pretende interpretar, mas ver-sentir por puro desejo de fruição. Quando
Bela ilumina o rosto da Fera com a intenção de desvelar o mistério é surpreendida por uma
beleza tão grande que a curiosidade transforma-se em contemplação. Esse é um olhar que
redefine a cena e conduz para outros lugares.
Certamente, que o leitor ao se projetar num espaço como o da Bela e da Fera, será
provocado para esse olhar de ampliação, onde o mundo é mais do que significado:
“resignação”. Então, o sofrimento desse par que se completa entre o horror e a beleza alcança
o que não se pode ver com o olhar passageiro. O poético convida à contemplação e por isso
faz ver longe e claro.
Quando as crianças são introduzidas no mundo das narrativas não devemos perder
de vista que a função do literário é o de “fazer ser”, sendo no outro. Quando questionamos o
fato de uma história como A Bela e a Fera atravessar culturas com o mesmo poder de
encantar e seduzir pessoas e pessoas, estamos diante de uma das mais fortes características da
obra literária que são a atemporalidade e universalidade. O espaço simbólico oferecido pela
literatura autoriza a criança o “arriscar-se” numa outra realidade.
Entrar em contato com o outro faz parte de uma possibilidade concedida pelos
personagens, que ao viverem uma vida própria e singular, são independentes, mas em
contrapartida estão atadas ao leitor por laços de identificação, pois existe um Isso na
existência das “pessoas” que é de ordem humana e universal. Assim,
154
BACHELAR, Gaston. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1986, pp. 175, 176, 178.
237
Estando no espaço aberto da ficção estamos num campo fértil, tal como as várias
realidades que se vive diariamente. Entretanto, são os personagens que nos ensinam a
subverter uma determinada ordem e desafiar o mundo.
155
AMARILHA, Marly. Estão mortas as fadas? Literatura Infantil e Prática Pedagógica. Rio de Janeiro:
Vozes, 1997, pp. 19, 20.
156
BETTELHEIM, Bruno. Op. cit., p. 318.
238
Precisa, ainda, de mais uma transição para sentir-se com coragem e força de viver
o amor de todas as formas que o dignifiquem. A busca de identidade não é algo que tem fim,
ela permanecerá durante toda a existência, porque o ser humano está sempre por fazer-se. O
processo de construção de identidade é alicerçado no período da infância, mas é contínuo
porque implica numa desconstrução permanente. A preparação da criança para viver a
transformação esperada e positiva é viável pela força do amor. A ficção pode ser um belo
espaço de estímulo à criança para que ela domine as dores do reino do Isso,
É provável que no final desse conto, a criança se sinta recompensada, pois mesmo
tendo sido revirada nos seus sentimentos mais íntimos, o alívio surge de lá, onde pode haver o
reconhecimento do si, enquanto desdobramento do Outro, ainda que seja uma experiência na
qual se depare com o horror ou mesmo com a inacessibilidade do que dói para sempre.
Não se pode viver a dor de uma transformação quando não se está devidamente
preparado para assumir uma condição diferente, então A Bela e a Fera são testados no desejo
de mudança. Ora, se existe o desejo de mudança, então o caminho deve ser preparado para
que um novo período da vida seja aceito e compreendido.
Depois de tantas dores, chega a celebração. Este é o momento ápice que abre a
vida para novas convivências, compromissos e responsabilidades. É também aquele instante
da passagem, apreendido com encantamento porque é do domínio da fantasia, daquilo que é
possibilidade de criação e transubjetividade. Ponto de autonomia do sujeito leitor que se
reconhece no espaço simbólico, pois:
157
HELD, Jaqueline, L’imaginaire au pouvoir. In: AMARILHA, Marly. Estão mortas as fadas? Literatura
Infantil e Prática Pedagógica. Rio de Janeiro: Vozes, 1997.
239
O fantástico deve nos possibilitar reflexão, como também garantir uma passagem
significativa de um estágio de maturidade para outro. Por existir uma certa necessidade de
viver narrando a vida, então os dramas humanos vão se tornando o eixo dessas histórias que
fazem compartilhar com o outro o sentido da própria existência.
A celebração no conto de fadas nos aponta o caminho, onde se pode ver o outro
lado da fronteira estabelecida entre o real e imaginário pelo reconhecimento de que somos
todos iguais, mesmo sendo diferentes. Pois, esse é o momento que atende à expectativa
amorosa de cada leitor. Afinal, desejamos merecer esse lugar da conquista por mais que isso
nos pareça difícil.
A criança vibra com o desfecho de A Bela e a Fera, não somente porque existe
uma transformação, mas também porque existe ali um ideal de amor a ser alcançado por cada
um, dentro daquilo que é possível. Mesmo depois que a Fera ressurge como príncipe, ela não
é esquecida . Inclusive, esse conto é sempre rememorado pela imagem da cena onde a Fera
pede para que Bela não a abandone.
240
É uma Fera que ama e que consegue o amor do eleito, visto ser capaz de
transformação, de generosidade e de aprendizagem, atributos necessários para o crescimento
de toda criança. Assim, partimos de um núcleo conflituoso, para o qual as personagens vão
inventando suas saídas até conseguirem estabelecer o ponto de viragem para que, depois de
muitas provas, retornem ao núcleo inicial, onde uma nova etapa surge, como sendo processo
de uma vida.
158
BETTELHEIM, Bruno. Op. cit., p. 324.
159
Idem, ibidem, p. 153.
241
Caminhamos para a conclusão do nosso estudo sobre a dor- amor nos contos de
fadas por meio daquilo que consideramos como condição essencial para que a criança
compreenda-se como sujeito contemplador, capaz de um olhar novo, desafiador e
transcendente: a conjunção amorosa. Momento de travessia, no qual o casamento é mostrado
como solução final e etapa simbólica fundamental para a transição da dor-amor.
Sendo assim, consideramos o conto de fadas como uma passagem para o “mais
além” de cada um, pois na sua riqueza simbólica é capaz de produzir a emergência de um eu
transformado, tal como acontece com a Bela, com a Fera e com todos aqueles que , ainda
buscam se encantar para reinventar a vida.
Conclusão
242
CONCLUSÃO
No meio disso, nos deixamos invadir pela reflexão sobre a dor-amor nos contos de
fadas e, provavelmente, muitos avaliarão como algo inútil, total desperdício de tempo e saber.
Afinal, para que servem tais conjecturas se o que menos importa nos dias atuais é um olhar
mais atento e desviado para tudo aquilo que é fantasia, sonho, imaginação e mesmo para as
coisas mais essenciais que preenchem nossa vida? Ora, se até a fantasia pode passar pelo
processo de industrialização, imaginem o resto! Estamos em todos os momentos sendo
engolidos, literalmente devorados por uma realidade totalmente instrumentalizada, na qual
temos que produzir e servir para que a nossa vida tenha um sentido e um significado.
mundo da representação é marcada pelo jogo, pelo simbólico e a infância é o “lugar” de onde
o homem falará de si mesmo e do outro num tempo que é eterno e inaugural. Por isso,
consideramos de fundamental importância que a criança encontre no seu ambiente familiar
um espaço motivador para a descoberta da leitura, pois sabemos bem que o gosto, o prazer
pela mundo da literatura tem seu início marcado pelas histórias contadas e encantadas no colo
da vovó ou da mãe, enfim de um adulto em quem se confia e ama. Assim, o prazer da leitura
mistura-se a uma experiência afetiva que depende de uma relação eu-outro estruturada na
cena familiar, pois:
Compreendemos que quanto mais a criança entra em contato com o seu universo
simbólico, mais estará possibilitada de conviver com seu mundo interior, podendo aceitar-se
nos seus limites e diferenças, além de tornar-se aberta aos processos criativos. Portanto, se o
ambiente familiar oferece estímulos afetivos positivos, provavelmente a criança terá mais
condições de se tornar um sujeito adulto melhor.
Neste sentido, afirmamos a literatura como algo essencial ao desenvolvimento
intelectual e afetivo da criança, pois temos aí o pleno exercício das trocas afetivas, além de
muitas janelas para se olhar-contemplar o mundo (de dentro e de fora) de cada um de nós. É
assim, que a literatura “ensina” a ver e a criança é alguém que precisa aprender a olhar de
maneira larga sem sentir-se fragmentada ou mutilada. Antes de qualquer aprendizagem, é a
orientação para o “saber olhar” que situará o nosso corpo no espaço e no tempo e o literário
por conter em si um horizonte de imagens, pessoas, histórias e sentimentos que se
entrecruzam oferece mais do que enunciação: “anunciação” da guerra e da paz existentes em
cada criança, homem ou mulher.
Na literatura aprendemos a nos ver (reconhecer) para além do que já sabemos,
somos levados a desejar o oculto contido na vida do outro que é segredo e mistério também
em nós. Então, a fantasia se veste de pele, de sentimento e de busca , procura pelo oculto
contido em todas as vidas, em todos os suspiros de dor-amor. É disso que se constituem os
160
MANONI, Maud. Op. cit., p. 63.
244
contos de fadas. Sussurram segredos que vão transbordando pelo corpo e deslizando pela
alma até nos alcançar na falta, hiância no corpo simbólico presentificada pelo desejo
dilacerante e insólito de ser para sempre marca no outro.
A leitura dos contos de fadas nos propõe algo que é dessa natureza, uma
impressão segredada de que somos falta, furo-dor em busca da plenitude e consagração do
amor. Ainda, que se viva os piores dramas como: sentir-se abandonado, ameaçado, sozinho e
assustado, se temos interiorizados sentimentos de gratidão e amor, então estaremos salvos.
Assim foi com Vasalisa, com o Polegar, com o menino do Junípero e com Bela porque todas
estas histórias nos tocam no desejo que é sempre aplacamento de uma dor, de uma tensão.
A arte tem o poder balsâmico de nos colocar frente ao desejo e a liberação de uma
certa energia provocada por uma tensão, por isso quando estamos investindo no espaço da
“invenção artística”, reinventamos o mundo e estendemos a mão para nos unir ao outro, pois
aí estamos no simbólico que é o jogo estabelecido na verdade da ficção. Pois, se não
conseguimos aplacar a tensão então temos de criar outros meios, mesmo que
inconscientemente, de brincar com o desejo e assim encontrar apaziguamento. A proposta
feita pelos contos de fadas é sempre de apaziguamente, sem que se negue o horror da dor, da
morte, do medo e da angústia.
Por tudo que os contos são capazes de provocar somos obrigados a olhá-los de
maneira diferente, pois quem “vive” um conto recebe o universo, daí o Lewis Carrol ter
afirmado que um conto é sempre um “presente de amor”. É provável que a experiência
poética vivida nos contos de fadas nos confronte com a dor e o sofrimento porque estes são
preparação para o amor como afirma o grande poeta alemão Rainer Maria Rilke ao dizer que
245
161
RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. Rio de Janeiro: Globo, 1989, pp. 55, 56.
162
MANONI, Maud. Op. cit., p. 61.
246
163
LOPES, Silvina Rodrigues. apud ANDRADE, Janilto Rodrigues. Da Beleza à Poética. Tese de
Doutoramento, UFPE, 2001, pp. 11, 12. (Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em Letras e
Lingüística. Universidade Federal de Pernambuco).
247
de mão dupla, sendo passíveis de inúmeras posturas interpretativas, sejam elas filosóficas,
sociais e antropológicas ou psicanalíticas.
Certamente, nos contos de fadas existe uma primazia pelos sentimentos, os que
têm como base o amor e os que encontram no ódio o seu caminho de consolo, escape e
retaliação. Daí, termos trilhado por este caminho na intenção de apresentar a importância da
reatualização destes afetos nas narrativas destinadas ao leitor infanto-juvenil. Pois, bem
sabemos o quanto descobrir e explorar o mundo interior é necessário para que se adquira
maturidade e sensibilidade, além de um olhar desviado que valoriza o imprevisível previsível
e que não surpreende.
164
MANNONI, Maud. Op. cit., p. 99.
248
Encontrar significado e dar sentido à existência, talvez seja o maior desafio que
temos de enfrentar enquanto sujeitos do desejo, enquanto meninos e meninas, homens e
mulheres. Todos os dias, buscamos resignificar a vida para que nela o mundo seja preenchido
de sentido. Provavelmente, o crescente interesse pelos contos de fadas tem suas raízes
também nesse universo desprovido de um significado maior, no qual nos sentimos dispersos,
impróprios e deslizantes, porque já não somos capazes de nos olhar, de viver com
profundidade a dor e o amor que nos inaugura como desejantes. Neste espaço inteverlar onde
habita a dor-furo, a qual nos referimos anteriormente, se delineia como uma hiância que diz
respeito à imagem do eu desde a sua primeira formação e de onde o sujeito falará, mesmo sem
consciência do dito ou interdito, já que muitas vezes estes escapam à razão, mas são capazes
de confessar a verdade de forma transfigurada, tal como acontece no mundo fundado pela
arte.
Nosso percurso, não resta dúvida, está preenchido por um dizer inconcluso,
inacabado, pois quanto mais respondemos, mais encontramos aberturas para outras passagens,
outras dúvidas surgidas da impossibilidade de delimitar a nossa abordagem, visto que ao falar
dos contos de fadas e da dor-amor nos deparamos com a essência da existência humana e
então, nos descobrimos. Como parte de integrante do grande mistério que é a vida. De certa
maneira, os contos analisados foram nos conduzindo, envolvendo-nos no pacto secreto entre o
texto, o lido e o vivido. Pacto de aliança e rememoração, possível apenas na singularidade do
espaço poético, porque aí estamos nas trincheiras da palavra que é verbum, linguagem
transformada que nos garante a transcendência, a travessia já que:
Dai resulta, também, a nossa preocupação em fazer valer a importância dos contos
de fadas na formação das crianças, pois a busca de sentido pela vida não é algo que se adquire
na vida adulta, ao contrário disso, tem que ser capturado no período mais tenro da infância,
quando ainda se está em busca de uma imagem que dignifique o viver, o sentir e o ser. A
literatura, os contos de fadas oferecem um espaço simbólico cuja multiplicidade traduz a
pluralidade de sentidos e garante ao leitor o espaço de renascimento.
Do que falam todas as narrativas senão dos sentimentos, dos fracassos e das
conquistas? Do que falam todas as narrativas senão do homem, da mulher e de todas as suas
histórias? Nos parece que a frase é sempre a mesma e que fala da ausência, porque nos
remete para o lugar inacessível, de onde surgem todos os sentimentos com seus fantasmas da
dor, mas possíveis de regeneração por meio da gratidão, doação, e compaixão que integram o
amor.
165
BETTELHEIM, Bruno. Op. cit., p. 11.
250
de uma complexidade que é de ordem do humano por isso destacamos o fato de que os contos
de fadas podem ser lugar privilegiado para a construção de um novo ser, principalmente é
uma das maiores expressões simbólicas de que o bem sempre vence o mal e por mais que
soframos diversas provas e muitas dores somos e seremos salvos pelo amor.
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Textos
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Artigos em Revistas
CAVALCANTI, Joana. Contos Populares. Revista Páginas Abertas. São Paulo: Paulus, ano
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CAVALCANTI, Joana. Leitura e Pluralidade Cultural. Revista Páginas Abertas. São Paulo:
Paulus, ano 28, nº. 15, pp. 26-31, 2002.
(Anexo 1)
Vasalisa: a sábia
268
(Anexo 2)
O Pequeno Polegar
280
(Anexo 3)
O Junípero
289
(Anexo 4)
A Bela e a Fera
294
(Anexo 5)
Jean Bellemin-Nöell
295
TEXTOS ORIGINAIS
VERSÃO EM FRANCÊS
Seule variété dês belles-lettres à laquelle aient accès ceux qui ne savent pás lire, les
populations et les peuples sans escriture, les enfants jusq’à l’âge de l’école s’en font de
véritables festins. Ils les cuiellent, les boivent sur les lèvres de celles qui les racontent – nos
contes dits de fées sont d’abord l’affaire des femmes : aux hommes la saga des ancêtres, les
légendes qui cimentent le groupe, les mythes où s’incarne le sacré. Regardez ces auditeurs
dévorer des yeux le visage de la discuse : leur bouche déguste à mesure, elle mâchone les
mots, les répétant, les anticipant ; on croirait qu’ils savourent des sucreries. Ou qu’ils tètent un
lait sans quoi leur coeur crierait famine.
(...) les contes satisfont une faim de nourritoures psychiques. Ils font fleurir des sourires de
béatitude lors même qu’ils devraient faire grimacer de peur ; au mieux, au pis, l’on feint de
frémir ou d’avoir pitié, on se félicite d’une heureuse solution (...) Seuls les adultes
raisonneurs imaginent qu’on se gargarise de l’héroine sauvée, de francés qui si marient, du
pauvre hère cousu d’or ; les enfants savent que le succulent, le croustillant, c’est la grand-
mère engloutie, la fillete mise en pièces, la bête étripée et le ventre rempli de briques.
296
Là réside le secret de la formule merveilleuse, Il était une fois... Quelque chose se produisit
une fois, une seule, je le sais ; comme je sais que je ne le verrai jamais se reproduire, ni même
réapparaítre sous les yeux de mon souvenir. Et il a existé un jadis où cela était réel, était du
réel, le réel ; je ne le savais pas, je n’étais pas assez moi-même pour le vivre vraiment. Une
fois, tellement autrefois que ce n’est ancune fois : c’etait si bien à l’imparfait que cela n’a
jamais disparu tout en s’étant même pas achevé. Cela revient, donc, comme impossible et
nécessaire. Comme l’etendue et l’étirement du présent reportés dans une mémoire enfuie,
rapportés à une mémoire enfouie. Notre Il etait une fois, qui ne perd sous aucun prétexte sa
majuscule initiale où se marque l’absolu du commencement, est l’emblème du caractère
historié de notre psyché : un décor ornemental avec personnages, et l’inscription de notre
existence dans une histoire que la dérborde, que l’enferme dans un cercle ouvert aux deux
bouts, celui de l’avant, celui de l’après. Nos fantasmes sont en ce sens notre historiation
première.