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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS E LINGÜÍSTICA

DOUTORADO EM TEORIA DA LITERATURA

“Dor-Amor”: Leitura e Escritura dos Contos de Fadas

Joana D’arc de Mendonça Cavalcanti

Recife

2002
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS E LINGÜÍSTICA

DOUTORADO EM TEORIA DA LITERATURA

“Dor-Amor”: Leitura e Escritura dos Contos de Fadas

Joana D’arc de Mendonça Cavalcanti

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras e


Lingüística, da Universidade Federal de Pernambuco, como
requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Teoria da
Literatura.

Orientador: Prof. Dr. Sébastien Joachim

Recife

2002
DEDICATÓRIA

Ao meu avô, José Cavalcanti (In memorian):

Pelas trocas, afetos e histórias compartilhadas. Pelo mundo


reinventado no cheiro da terra molhada, da chuva batendo no
telhado, do perfume de jasmim, da visão de acácias vermelhas,
dos riachos cristalinos e do vôo de borboleta. Pela oferta de um
tempo mágico eternizado no “Era uma vez…” .
AGRADECIMENTOS

A Carlos Afonso, companheiro de todas as horas, parceiro na vida, nas buscas e no amor, pelo
estímulo constante e pela ajuda incondicional nos momentos mais árduos da realização deste
trabalho.
Às minhas filhas Luana e Laura pela vivência de muitas histórias e construção de um grande
amor.
À minha mãe, pelo incentivo e presença constante, pelas histórias que embalaram a infância e
me garantiram o prazer pela leitura.
Ao meu mestre e orientador, Professor Doutor Sébastien Joachim, por mais uma vez poder
com ele compartilhar minhas histórias, assegurada por sua competência intelectual, seu rigor
científico e sua grandiosidade humana. Sébastien, obrigada!
À minha avó Eula que entre um segredo e outro foi ensinando-me o delicado e misterioso
mundo das palavras.
À minha tia Colija Pacheco por ter sido referência de amor, doação e esperança e, também,
passaporte para muitas conquistas.
À minha irmã, Conceição, pelos momentos da infância e pela cumplicidade afetiva. Estamos
juntas na “chuva com sol e festa de rouxinol”, nos nascimentos e casamentos...na vida e nos
caminhos da alma.
À Norma Menezes pelos laços construídos, pela amizade alinhavada no dia-a dia de muitas
conversas, mas principalmente por ter apresentado-me à beleza e a grandeza que existem em
muitas das pequenas coisas que pontuam a vida. Amiga, obrigada pela força e credibilidade
durante todo o percurso do desenvolvimento destes escritos.
À Márcia Basto, pela amizade de sempre.
À Elizabeth Cavalcanti, pelo respeito e amizade que nos une.
A Luiz Otávio de Melo Cavalcanti pela confiança e respeito ao ajudar-me na construção de
um tempo dividido entre o desempenho das minhas funções no DIARIO DE PERNAMBUCO
e a realização do curso de Doutorado.
À Cleide Delmácia, pela colaboração.
À Universidade Federal de Pernambuco, em especial ao Programa de Pós-Graduação em
Letras e Lingüística por ter possibilitado a realização de um desejo pessoal e compromisso
profissional: ampliar a produção dos estudos e discussões em torno dos contos de fadas no
âmbito da academia.
Às professoras Nelly Carvalho e Luzilá Gonçalves pela competência e sensibilidade com as
quais sugeriram mudanças e apontaram caminhos durante o Exame de Qualificação. As
observações foram fundamentais para a conclusão destes escritos.
Aos alunos de Pós-Graduação de Literatura Infanto-Juvenil da FAFIRE, pelas trocas e
aprendizado.
À Inês Fornari, pelo incentivo.
À Laura Cardozo pela amizade, além de muitos momentos onde pude reconhecer a dimensão
da sua sensibilidade.
À Cristhianni Beserra com quem pude contar com a acolhida imediata para a reorganização
dos texto que compõem esta tese.
À Diva e Eraldo pela constante disposição em atenuar os inúmeros problemas que surgem no
decorrer dos cursos de pós-graduação e pela cordialidade com a qual sempre me acolheram.
A Lucas, representando todas as crianças, pela inspiração diária e a crença permanente de que
devemos fazer das narrativas infantis uma janela para o mundo.
Finalmente, a todos que direta ou indiretamente colaboraram com este trabalho.
SUMÁRIO

RESUMO...................................................................................................................... 08

RÉSUMÉ...................................................................................................................... 09

ABSTRACT................................................................................................................. 10

INTRODUÇÃO........................................................................................................... 11

CAPÍTULO 1 – A IMPORTÂNCIA DOS CONTOS DE FADAS NA


FORMAÇÃO E EDUCAÇÃO DA CRIANÇA......................................................... 29

1.1 - Os contos de fadas......................................................................................... 29

1.2 – Os contos e a educação afetiva e moral da criança ...................................... 37

CAPÍTULO 2 – VASALISA: A SÁBIA: SÏMBOLO E NARRATIVA NA


ENUNCIAÇÃO DOS AFETOS................................................................................. 40

2.1 – No princípio… era dor.................................................................................. 40

2.2 – E a palavra se fez ação… ............................................................................ 52

CAPÍTULO 3 - O PEQUENO POLEGAR: NARRATIVA DO MEDO E


COMPLEXO DE CASTRAÇÃO .............................................................................. 74

3.1 – Complexo de castração................................................................................. 74

3.2 – Narrativa e medo.......................................................................................... 93


CAPÍTULO 4 - O JUNÍPERO E AS TRÊS ETAPAS DA DOR............................. 115

4.1 - A primeira etapa da dor: a ruptura................................................................ 120

4.2 - A segunda etapa da dor: a comoção ............................................................ 146

4.3 - A terceira etapa da dor: a reação ................................................................. 158

CAPÍTULO 5 - A BELA E A FERA: UMA TRAVESSIA POÉTICA DA DOR-


AMOR ......................................................................................................................... 181

5.1 - Mito e contos de fadas – itinerários do simbólico com resoluções


diferentes .................................................................................................... 181

5.2 - Limites da dor-amor: percurso de “transubjetividade”................................. 204

5.3 - No reino do “isso”: conquista e autonomia – travessia para o amor............. 224

CONCLUSÃO ............................................................................................................ 242

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 251

ANEXOS ...................................................................................................................... 263


8

RESUMO

“Dor-amor”: leitura e escritura dos Contos de Fadas propõe um trabalho de


hermenêutica baseado na análise psíco-crítica, assumindo como referência os pressupostos
teóricos dos especialistas Jean Bellemin-Nöel e Juan-David Nasio, nos quais fundamentamos
nossas hipóteses e interpretações para dizer que tais narrativas nos desafiam na base dos
nossos desejos mais profundos, portanto lugar de busca onde o leitor vivencia sua
subjetividade de forma mais plena possível.
Por meio da análise crítica das narrativas Vasalisa: a sábia, O Pequeno Polegar,
O Junípero e A Bela e a Fera apontamos para o fato de que os contos de fadas constituem-se
num território de transubjetividade, fonte inesgotável da experiência simbólica e do encontro
entre o eu e o outro que se podem ver no “mais-além” que caracteriza a dimensão da ficção e
da obra de arte.
Por meio desses contos e dos autores que nos apoiam na aliança entre literatura e
psicanálise, além dos já citados, visitamos Bruno Bettelheim, Sheldon Cashdan, Melanie
Klein, Maud Mannoni, Alfredo Garcia-Roza, entre outros para dizer que os contos encantam
porque nos ensinam que a vida é busca, desafio e captura de um sentido sem o qual não
conseguimos uma resolução satisfatória para nossos dramas e conflitos.
Enfim, o mágico “Era uma vez...” da história de todos nós. Por isso, desde que o
mundo é mundo as histórias existem e um conto de fadas é uma das mais elevadas expressões
simbólicas de que o bem sempre vence o mal, que a palavra salva e faz esperançar. Apesar de
todas as dores e etapas a serem vencidas, os contos de fadas nos ensinam que somos salvos
pelo amor.
9

RÉSUMÉ

“Douleur-Amour”: lecture et écriture des contes de fées propose un travail


herméneutique basé sur l’analyse psycho-critique, avec pour références les présuposés
théoriques des spécialistes Jean-Bellemin-Noel et Juan David Nasio, sur lesquels nous avons
basé nos hypothèses et nos interprétations, pour dire que telles histoires défiaient nos désirs
les plus profonds, donc lieu de recherche où le lecteur vit sa subjectivité de la forme la plus
complète possible.
A travers l’analyse critique des Histoires : Vasalise: la sage, Le Petit Poucet, Le
Juniper - l’arbre sacré et La Belle et la Bête, qui soulignent le fait que les contes de fées se
forment dans un territoire de transubjectivité. C’est une source inépuisable de l’expérience
symbolique et de la rencontre entre le moi et l’autre qui peuvent se voir dans un “ailleurs plus
lointain” et caractérise la dimension de la fiction, ainsi que l’oeuvre d’art.
Parmi ces contes et ces auteurs, permettant l’union entre la littérature et la
psychanalyse, et en plus de ceux déjà cités, nous avons exploré Bruno Bettelheim, Sheldon
Cashdan, Mélanie Klein, Maud Mannoni, Alfredo Garcia-Roza, entre autres, pour dire que les
contes enchantent parqu’ils nous apprennent que la vie est une quête, un défi, la capture d’une
signification sans laquelle nous ne trouverions pas de satisfactions pour résoudre nos drames
et nos conflits internes. Enfin le magique “il était une fois ....”de notre histoire à nous tous.
Pour cela, depuis que le monde est monde, les histoires existent et un conte de fées est l’une
des expressions symboliques les plus élevées, du bien surpassant le mal, du mot qui nous
sauve et nous fait garder espoir. Malgré toutes les douleurs et les étapes à surmonter, les
contes de fées nous apprennent que nous sommes sauvés par l’amour.
10

ABSTRACT

“Love-Pain”: reading and writing of Fairy Tales proposes a hermeneutic work


based on a psycho-critical analysis, and has as reference theoretical presumptions of
specialists as Jean Bellemin-Nöell and Juan-David Nasio, in which we supported our
hypothesis and interpretation to say that those narratives challenge us concerning our deepest
desires, consequently place of search where the reader lives his subjectivity totally.

Through the critical analysis of the following narratives Vasalise: the Wise, Tom
Thumb, The Juniper-Tree and Beauty and the Beast, we aim to the fact that the Fairy tales
support themselves in a symbolic experience leading to the Me and to the Other, in a way they
can meet further in a dimension characterized by the fiction and the Art itself.

Viewing Fairy Tales as a road to the soul, we assure the “Love-Pain” as a passage
to an endless search which consists in letting see known-strangers that live inside us as
people in continuous search for happiness.

Through these tales and authors, which support us between the literature and
psychoanalysis besides the ones mentioned before, we took as reference Bruno Betellheim,
Sheldon Cashdan, Melanie Klein, Maud Mannoni, Alfredo Garcia-Roza, among others, to say
that tales enchant people because they teach us that life is an eternal search, challenge and
capture in a way that it gives a sense to life and without this sense we would never get a
positive resolution to our conflicts.

Reading, telling or analysing a fairy tale is a very difficult task due to the
complexity of the human being’s life. Tales demand a look to the inner. This way, we invited
the look of many authors wishing to see better the place where the body speaks. It is in this
area where the myth, the legend, the fable and the fairy tales as well as the “once upon a time”
of all our lives are born.

Due to this, since the world has begun, stories exist and fairy tales are one of the
highest symbolic expressions that the good wins the bad, that the word saves and gives hope.

Fairy tales teach us that we can be saved by love, although pain may occur.
INTRODUÇÃO
11

INTRODUÇÃO

Na intenção de possibilitar a discussão acadêmica em torno da Literatura Infanto-


Juvenil no que diz respeito à importância dos contos de fadas na formação intelectual e afetiva
de crianças, refletiremos aqui sobre a dor-amor e suas representações.

Considerando os contos de fadas como leitura importante e significativa no


período da infância, buscamos nos aprofundar em alguns textos dessa literatura que se oferece
como espaço poético e fantástico para a emergência de um leitor capaz de produzir sentido e
significado para a vida.

A literatura é para a criança um espaço aberto no qual de forma dinâmica ela pode
se apropriar da realidade e desenvolver seu potencial criativo, resignificando assim o sentido
da sua existência. Os contos de fadas podem funcionar como passaporte para uma vida
interior mais “compreendida’, pois cada personagem traz em sua história de vida uma marca
que transcende a realidade textual e se faz presente no sentimento de cada leitor.

A Literatura faz compartilhar o mundo, pois com o leitor divide seu território e o
autoriza a “arriscar-se” com o Outro na dimensão da alteridade que é o espaço de conquista de
autonomia.

Dessa forma, qualquer pesquisa científica que lance um olhar para a Literatura
Intanto-Juvenil deve assumir os contos de fadas como princípio fundamental da formação de
crianças leitoras, levando em consideração não apenas seus aspectos de fantasia e
encantamento, mas principalmente, o poder de lançar uma provocação, um desafio que
transita entre o prazer e desprazer.

Muitos especialistas colocam como a principal função da Literatura Infantil a


diversão, esquecem de que a expressão artística propõe o confronto. Da experiência estética
ninguém sai igual. Talvez, essa seja uma das maiores possibilidades do texto literário,
promover no leitor algo que escapa-lhe o sentido imediato e produz uma visão de mundo
ampliada.
12

Os contos de fadas podem ser um grande contributo para a formação de um


sujeito que se reconhece numa permanente construção.

Apresentamos os contos de fadas como espaço de excelência para uma leitura


carregada de “afeto”, portanto de humanidade. Aqui a dor-amor, mais do que alternância é
convivência, espaço vivo de nossos fantasmas, presença viva do outro em nós.

Por isso aproveitamentos para realizar uma análise de alguns textos que por seu
teor de crueldade sofreram censura por parte daqueles que com a “intenção de educar”
suprimiram dessas narrativas o poder de fazer ver, para além do prazer. São histórias que vão
da perda à conjunção amorosa, do corpo à alma, pois o sentido está no “alhures” de cada
abandono, de cada prova superada, de cada partida, de cada passagem e celebração. Em cada
personagem uma vida que se vive, um sentimento reatualizado, uma morte, um nascimento,
uma dor e um amor.

É necessário enfatizar o fato de que a literatura produzida para a infância tem sido
alvo de investigação de diversos campos do saber, pois trata-se de interrogá-la no âmbito da
eficiência do seu caráter de literariedade, mas também com questões da psicologia e
sociologia. O fato é que cada vez mais levamos em consideração que as crianças precisam ter
acesso aos textos de boa qualidade e se sintam instigadas à leitura como lugar de
intersubjetividade, portanto espaço simbólico, lúdico, dinâmico e fantástico para que se possa
ver a realidade a partir de um mundo resignificado pela palavra.

Escolhemos falar dos contos de fadas porque faz parte de uma literatura que chega
cedo à vida da criança, além de ser uma das mais ricas expressões simbólicas. Nesse espaço
de representação desdobra-se um mundo interior e exterior a ser revelado a cada dia e etapa
de crescimento.

A nossa investigação aponta para o fato de que os sentimentos de dor e amor são a
matriz de onde partem e convergem todas as narrativas dos contos de fadas, a dupla
desencadeadora da dramaticidade desses textos.

Nós os abordaremos também, como representação artística e literária capaz de


produzir um efeito significativo na experiência de mundo do pequeno leitor. Defenderemos
essas hipóteses aplicando a algumas dessas narrativas o método psico-crítico. Recorremos
13

assim, para aprofundar os afetos das personagens, ao psicanalista Juan-David Nasio. Ele, situa
a dor e o amor na base de todos os sentimentos:

“Não existe afeto puro, pois ele é sempre reativado por uma
fantasia, expresso por uma palavra e motivo de uma
conduta(...) A dor inconsciente não é uma sensação sem
consciência, mas um processo estruturado como uma
linguagem. (...) Todo afeto doloroso é a revivescência de uma
antiga dor traumática.”1

Afinal os autores da narrativa infanto-juvenil estariam sempre em busca da


separação da dor pela conquista do amor. O estado de dor e de amor é motivo de toda
conduta, a base de todas as relações humanas, o pano de fundo de todos os desejos.

O conto de fadas como narrativa estruturada a partir de um fio popular trata da dor
e do amor de forma muito singular, amiúde maniqueísta, e com final feliz. As personagens
que odeiam e sofrem conseguem sempre pela travessia de um estado caótico, o seu objeto de
desejo. Portanto, a visão finalista incorpora uma passagem iniciática, que implica uma
axiologia.

Quando uma criança entra em contato com esse gênero da literatura, tem a
possibilidade de estar diante de si mesma, mergulhada no seu mundo interior, identificando-se
com o bem e o mal, enfim aberta a tudo aquilo que a provoca no seu afeto e sensibilidade.

Refletir sobre os aspectos da dor e do amor nos contos de fadas é também uma
maneira de procurar compreender por que as crianças do mundo inteiro e de todas as épocas
se encantam com essas histórias e no que a leitura dessas narrativas pode contribuir para uma
vida mais feliz.

Dor-amor anda junto. É presença e ausência, pois quando falamos de um estamos


no outro. É necessário mesmo que se compreenda a dor como furo, espaço intervalar de onde
elegemos o nosso objeto de amor, pois:

1
NASIO, Juan-David. O Livro da Dor e do Amor. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, pp. 83, 84. (Série
Transmissão da Psicanálise).
14

“A dor é o objeto em torno do qual se instaura o complexo


pulsional, gira o circuito pulsional. (...) a dor, objeto pulsional,
é também dor fantasística, objeto de fantasia. Como objeto
pulsional a dor é um furo, uma ausência; e como objeto de
fantasia, ela é esse mesmo furo, mas preenchido pelo sujeito
identificação (do sujeito com o objeto). Ora, seja como furo
vacante ou como furo habitado pelo sujeito, seja uma dor real
ou fantasística, ela permanece invariavelmente inconsciente,
tão inconsciente quanto às fantasias originárias de que fala
Freud.”2

São essas fantasias originárias de que fala Freud que impulsionam o surgimento
dos inúmeros sentimentos que definem a afetividade humana, fruto de uma falta primeira e
congênita, resultado de um estado lacunar que é preciso preencher. Nesse sentido, os contos
podem desempenhar a função de provocar no leitor sentimentos de identificação, de projeção
no outro que resulta num despertar a si mesmo. A literatura tem o poder de nos fazer ver o
outro semelhante em nós, podendo exercer um papel fundamental para o desenvolvimento da
criança e do adolescente.

Nos contos, a criança aprende estratégias de lutas para vencer as batalhas


interiores, pois a partir dos jogos de projeção e identificação se dá conta que ela também “está
ali”, no espaço do conflito. No jogo do faz-de-conta tudo é permitido, então associar-se ao
bem e ao mal faz parte da conquista.

A reatualização das fantasias arcaicas faz com que o leitor se identifique com a
situação sugerida pelo conto e busque na “personagem” forças para superar as provas e vencer
o caos interno, construído a partir de sentimentos como culpa, rejeição, medo, angústia,
ansiedade, raiva, inveja, enfim dor. Mas, sobretudo o leitor aprende que é possível lutar contra
o mal e buscar uma vida feliz, onde os sentimentos positivos que geram compensação, alegria
e felicidade nos asseguram de um bem maior que está na base do amor.

2
Idem, ibidem, pp. 127, 130.
15

Existe no conto de fadas a cumplicidade necessária para que a “fantasia” seja em


nós, o real da nossa ficção, ou melhor, do nosso “romance familiar”. Por isso, ao escolhermos
dor-amor como sentimentos de base para toda possibilidade de criação, esperamos estar
iluminando os caminhos de aliança entre a literatura e psicanálise.

Precisamos fortalecer a discussão que permite colocar o conto de fadas na sua


veradadeira dimensão de literatura, que possui várias funções, entre elas uma das mais
importantes é a estética, tal como nos diz Jean-Marie Gillig em seu livro O Conto na
Psicopedagogia. Entretanto, não é incomum encontrarmos pessoas que duvidem desta
qualidade estética dos contos de fadas, justificando-se pelo fato de que eles têm origem na
tradição popular. Por conta dessa visão preconceituosa e não fundamentada num
conhecimento apropriado, essas narrativas foram durante muito tempo postas à margem da
pesquisa acadêmica. Gillig responde magnificamente a essa desvalorização indevida:

“Esquece-se às vezes de que os contos, em particular aqueles


que tiveram versão escrita, pertencem ao gênero literário e são
obras de arte. Se fosse diferente, como explicar o
extraordinário sucesso ainda atual dos contos assimilados por
Perrault, irmãos Grimm e Andersen? Eles são portanto, uma
grande arte que pertence ao patrimônio cultural de toda a
humanidade e que representa a visão de mundo, as relações
entre o homem e a natureza, sob as formas estéticas mais
acabadas, aquelas que provocam precisamente o
maravilhamento do público, como muitas obras coroadas de
prestígio. A lógica do maravilhoso é, na verdade, necessária à
lógica da narrativa no conto de fadas. Suprimir o maravilhoso
num conto não significa impedir o prosseguimento da
narrativa, mas torna-la realista e dar outra função, inclusive no
plano estético.”3

3
GILLIG, Jean-Marie. O Conto na Psicopedagogia. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1999, p. 68.
16

Nos importa levar ao conhecimento das pessoas que se interessam pela Literatura
Infanto-juvenil quanto os contos de fadas são importantes para a formação do leitor infantil,
na medida em que a representação literária demonstra ser um valioso instrumento de
humanização.

Assim, é fundamental que a nossa investigação aponte para o literário no sentido


de possibilitar a reflexão sobre a sua capacidade de formar valor e inserir o leitor num
processo de engajamento existencial, sobretudo avaliando aspectos recorrentes nos contos de
fadas que provocam a busca interior de significado pela vida.

Interessa fundamentar tais sentimentos do ponto de vista da representação


literária, ver como e porque aspectos da vida afetiva do leitor infantil e também adulto são
elaborados nas narrativas que nos propomos a analisar. Ressaltaremos alguns trechos
narrativos particularmente ricos pela sua função múltipla: simbólica, fantasmagórica, estética,
afetiva e de encantamento, valendo-nos das análises de Jean Bellemin-Nöel e Bruno
Bettelheim.

São bastante divulgadas as pesquisas de Bruno Bettelheim sobre os contos de


fadas, a importância da sua leitura no período da infância. Muitas questões foram levantadas
com relação às idéias educativas do famoso psicanalista. Apesar das polêmicas, um fato é
certo: após a primeira publicação do livro A Psicanálise dos Contos de Fadas, no qual o autor
toma como referência as teorias freudianas, nunca mais essas histórias aparentemente
inocentes foram olhadas da mesma maneira. Mais de vinte anos se passaram e ele continua
sendo uma referência para muitos estudiosos dessa área.

Evidentemente, que em algumas das suas afirmações se encontra um certo grau de


radicalismo e pouca sustentação pragmática, no entanto não devemos esquecer que:

“O título e o índice dos seus assuntos sugerem que o leitor vai


nele encontrar, além do prazer de restabelecer o contato com
as histórias que encantaram na infância, a revelação do sentido
oculto nos contos, principalmente naqueles de Perrault e dos
Grimm. Situando-se na linha de pensamento de Freud,
Bettelheim busca nas constantes do conto maravilhoso o
17

simbólico próprio dos temas edípicos, dos processos de


maturação da criança, dos fantasmas da angústia e, de uma
maneira geral, todos os traços manifestos do inconsciente do
conto relacionados com os problemas da infância (...)
Bettelheim se encarrega de fazer-nos compreender, em mais de
quinhentas páginas de escrita muito didática e de leitura fácil
até mesmo para um leitor que não está habituado a lidar com
os conceitos psicanalíticos, que os contos de fadas são
instrumento de sublimação e permitem que as crianças não
apenas fantasiem pelo prazer, mas também resolvam seus
problemas psicológicos pessoais (...).”4

Confirmando sua hipótese, o autor ressalta o conto de fadas como leitura


importante para a criança, visto que no universo das histórias ela vai realizar um encontro
consigo mesma, naquilo que é grandeza e fragilidade, dor e amor. No entanto, temos que
concordar com algumas pessoas que o acusam de tomar liberdades excessivas do ponto de
vista da interpretação e com isso, dar uma conotação um tanto reduzida da representação
literária.

Por isso, decidimos apoiar e confrontar nossas conjecturas sobre a aliança entre a
literatura e a psicanálise, sugerindo algumas posições de Bettelheim, mas com a chancela de
Jean - Bellemin Nöel. Este estudioso francês é um dos melhores conhecedores do campo
psicocrítico. Ele dotou a psicanálise literária de um estilo e apropriação, olhar que não perde o
seu verdadeiro sentido do seu objeto de estudo, situando-se na força simbólica da literatura.
Em sua obra (Psychanalyse et Littérature, 1978), ele aponta para os estudos psicanalíticos que
trabalham no sentido da psico-crítica literária, confirmando suahipótese de que a literatura
consiste não somente em fazer ver o “outro”, mas especialmente ver o “outro em nós”.

Entendemos que o nosso objeto de pesquisa impõe uma certa incursão pelo
discurso veiculado por vários campos do saber, pois não podemos compreender a
complexidade da literatura produzida para crianças e jovens sem nos apropriarmos das
ciências que se ocupam em estudar e traduzir o desenvolvimento social e afetivo dos mesmos,

4
Idem, ibidem, pp. 74, 75.
18

como a psicanálise e a pedagogia. Contudo, não devemos perder de vista que nos contos de
fadas destaca-se:

“(...) a própria estrutura da narrativa que proporciona ao


receptor um tipo de envolvimento emocional. Através do
processo de identificação com os personagens, a criança passa a
viver o jogo ficcional projetando-se na trama da narrativa.
Acrescenta-se à experiência o momento catártico, em que a
identificação atinge o grau de elação emocional, concluindo de
forma libertadora todo o processo de envolvimento. Portanto, o
próprio jogo da ficção pode ser responsabilizado, parcialmente,
pelo fascínio que exerce sobre o receptor.(...) Do ponto de vista
da linguagem da ficção, portanto das qualidades de forma
literária, conto, pode-se dizer-se que este focaliza um momento
crucial da história de um personagem, e, assim sendo, ele é
denso de conteúdo dramático. A esse lado acrescenta-se o senso
de totalidade que a dramaticidade e brevidade do gênero
proporcionam.”5

Ora, o leitor deve ser um produtor de sentido, deve buscar no texto aquilo que
garanta uma experiência de transcendência e resignificação da realidade. Entretanto, somente
os textos que contém seu fio narrativo dentro de um padrão estético de qualidade podem
colocar o leitor numa situação de descoberta e transformação.

A boa narrativa sustenta-se por meio de seus recursos estilísticos entre os quais
ocupa o primeiro plano, o poder da metáfora. Pois ela, se instaura num mundo inusitado e
surpreendente no qual o leitor é desafiado na sua visão semântica. O desafio é um dos
principais componentes da literatura, pois o leitor deve ser instigado no sentido de ir buscar
no texto aquilo que se pode chamar de “o mais além”.

5
AMARILHA, Marly. Estão mortas as fadas? Literatura infantil e prática pedagógica. Rio de Janeiro: Vozes,
1997, p. 18.
19

Nesse jogo estabelecido entre texto e leitor surge o desejo de ser no outro, pois
este pode restituir-lhe a própria imagem, na medida em que o leitor identifica-se com o
personagem em tudo aquilo que resulta como enredo do destino humano.

A narrativa literária impõe um sentido de totalidade, convida o leitor para o


prazer de viver nesse contexto o indizível do seu próprio desejo. No inesperado e no estranho
de cada situação apreendemos um significado novo, por isso :

“A função organizadora de sentido dos fatos é, possivelmente,


um dos elementos mais engajadores da narrativa. Essa
estrutura, portanto, atinge o receptor do ponto de vista emotivo
e cognitivo. Nesse processo, o receptor da história envolve-se
em eventos diferentes daqueles que está vivendo na vida real e,
através desse envolvimento intelectual, emocional e
imaginativo, experimenta fatos, sentimentos, reações de prazer
ou frustração podendo, assim, lembrar, antecipar e conhecer
algumas das inúmeras possibilidades do destino humano. Pelo
processo de “viver” temporariamente os conflitos, angústias e
alegrias dos personagens da história, o receptor multiplica as
suas próprias alternativas de experiências do mundo, sem que
com isso corra algum risco. O personagem pode, então,
emprestar ao receptor sua grandeza e seus limites,
vislumbrando outras formas de viver e ver o mundo, o que
uma simples existência não daria conta de experimentar.”6

Para compreender a importância da leitura durante o período da infância, faz-se


necessário avaliar essa etapa do desenvolvimento humano dentro de toda a abrangência e
multiplicidade, pois a criança é o vir-a-ser de cada homem, de cada mulher. É o princípio
mágico de toda humanidade.

6
Idem, ibidem, p. 19.
20

Partimos do princípio que a linguagem artística toca o adulto na medida em que


provoca a criança permanente em cada um, pois o mundo da infância é feito essencialmente
do sentir. Isso não quer dizer que seja um lugar onde só existe felicidade, pois sabemos o
quanto o mundo interior da criança é povoado por vivências afetivas dolorosas. Contudo, as
histórias ouvidas ou lidas na infância devem ter a capacidade simbólica de remeter a criança
para um espaço plural, no qual o leitor possa olhar para o mundo com largueza e
sensibilidade, buscando o encontro com o outro naquilo que é dor e amor. Literatura é arte. É
metáfora. É vida que se faz tecida com os fios-palavras, universo pleno da linguagem e por
isso, espaço privilegiado para a emergência do sujeito simbólico. Assim, analisaremos cinco
textos orientados pelos recursos da psicanálise e da literatura. Para tanto, seguiremos os
modelos de interpretação de dois autores reconhecidos pela produção científica, como
também pela sensibilidade com a qual sugerem a aliança entre esses dois campos do saber.

Cada vez mais a pesquisa em torno da Literatura Infanto-Juvenil, especialmente


com relação aos contos de fadas, se faz presente e necessária. Nunca os contos clássicos
tiveram tanto espaço para serem investigados e discutidos por profissionais de diversas áreas
de assistência à infância. Portanto, acreditamos ser justo que além da produção dos autores já
mencionados, a nossa metodologia possa ser empregada no sentido de ampliar as
possibilidades de análise dos contos, relacionando os conteúdos que eles apresentam com
outras abordagens científicas, como alguns pressupostos teóricos da Melanie Klein e Didier
Anzieu.

A justificativa para tanto interesse é norteada por inúmeras hipóteses, desde as que
percebem a influência dessas narrativas para a construção do imaginário popular e sua
interferência no conjunto de ideologias que fazem o social, até a interpretação simbólica
desses textos e sua ampla atuação no psiquismo das crianças. Dessa maneira, consideramos
que seja pertinente recorrer à análise simbólica dos vários elementos que aparecem nos contos
que nos propomos a interpretar, pois levamos em consideração que as palavras utilizadas no
contexto literário são mais do que expressão do desejo de comunicar, exatamente porque
possuem a força da metáfora, sendo mais do que signos elas são significantes que remetem a
um sentido, pois:
21

“(...) um significante só é significante para outros significantes.


(...) O significante é assim, a relação entre o que dá lugar e cria
o lugar. O significante e o afeto é que faz o afeto e cria o lugar
do afeto. (...) As palavras ouvidas são intermediários
necessários para que o pensamento continue sendo, graças à
memória da linguagem um processo constatemente ativo (...)
Quando Deleuze e Guattari lançaram a tese de Artaud do
“corpo sem órgão” Lacan replicou que o psicótico não era
desprovido de órgão, já que possuía um, fundamentalmente,
um órgão com o qual ele coabita e com o qual coabitamos
todos: a linguagem. (...) A linguagem é pois um órgão, não no
sentido instrumental de uma ferramenta eficaz, mas um órgão
que prolonga e estende o corpo.”7

A literatura e a psicanálise estão unidas por um fio condutor único que é a palavra,
portanto temos aqui o interesse de focalizá-la do ponto de vista da sua função simbólica,
daquilo que está na sua origem, mas impossível de apreensão total, mas que por outro lado
nos remete a um significante essencial e que faz parte da sua natureza de símbolo.

Embora tenhamos a preocupação com a estrutura narrativa que se apresenta neste


gênero, o interesse da nossa investigação é colocar em evidência a construção da narrativa,
sobretudo naquilo que aponta para o sentido simbólico e que nos remete para o inominável
universo do eu-outro.

Se os contos tradicionais foram construídos segundo uma lógica e uma matriz de


símbolos, que se pode comparar a um “puzzle”, que a partir de uma base motora faz girar seus
diversos elementos, então não podemos compreendê-lo fora daquilo que é sua totalidade. Por
isso, as tantas adaptações que se fazem destas narrativas no mundo contemporâneo, sob a
justificativa do “politicamente correto” são absolutamente absurdas, principalmente porque
retiram daí, elementos que são essenciais à mensagem e efeito das mesmas, além de destituí-
las da sua totalidade.

7
NASIO, Juan-David. Op. cit., p. 150.
22

É possível se observar o quanto existe uma recorrência simbólica nos contos de


fadas, tanto de temas e motivos quanto de símbolos. Verificamos que:

“Fadas, feiticeiras, ogros, gigantes e duendes não são apenas


elementos indispensáveis ao maravilhoso, são também
personagens da ordem do imaginário que, com outros, têm
função simbólica. O símbolo não é um signo arbitrário e
convencional entre o significante e o significado; inscreve-se
numa relação de continuidade entre dois e um “dinamismo
organizador (...) tentou-se elaborar uma “chave dos contos”
que seria análoga à “chave dos sonhos”. A interpretação dos
contos a partir de sua leitura baseada em conceitos
psicanalíticos (psicanálise do texto) pode, de fato, revelar-se
fecunda (...).”8

Nossa proposta de trabalho vai além da discussão pragmática que encerra a


Literatura em conceitos fechados e reducionistas, pois entendemos que a representação
literária é da dimensão da arte, portanto pertence à grandeza do simbólico estruturada a partir
da linguagem metafórica. Discutir Literatura é falar da vida que se faz nas infinitas
possibilidades do real e do imaginário. É construção e desconstrução de visão de mundo,
portanto é “re-velação” sempre. Logo, reconhecemos que o lugar da Literatura do qual
desejamos falar é complexo e singular.

Estaremos ao longo da nossa proposta de investigação tecendo fios que nos


permitam compreender o nosso objeto de estudo que é a literatura veiculada para crianças,
especificamente traduzida nos contos de fadas.

Freqüentemente, acontecem discussões polêmicas em torno dessa literatura, visto


ser ela dirigida a um público específico e além disso, ter suas raízes históricas na tradição
oral, portanto na cultura popular. Assim, até os anos oitenta sofreu inúmeras discriminações,
como também questionamentos com relação ao seu valor estético e artístico. Entretanto, essas

8
GILLIG, Jean-Marie. Op. cit., p. 70.
23

questões foram superadas e hoje, assistimos o seu reconhecimento tanto pela academia quanto
pelos leitores de maneira geral.

O fato é que a Literatura Infantil alcançou seu status de obra de arte, mas ainda é
vista por muitos, somente como objeto lúdico que proporciona ao leitor infantil o prazer do
jogo e da brincadeira. Então, se faz urgente a discussão em torno dessa produção que mais do
que brincadeira, tem a capacidade de nos remeter para o complexo universo da linguagem,
sobretudo para aquilo que nos constitui como sujeitos simbólicos. Assim, a nossa proposta de
discussão baseia-se na relação da literatura com outros discursos que permeiam a realidade
factual para melhor compreendê-la e transformá-la. Entendemos que o espaço do discurso
literário é campo fértil para a emergência de vários sentidos, por isso as nossas suposições se
baseiam no intercambiamento da literatura com outros dizeres, mais especificamente com a
psicanálise e a sua leitura dos contos de fadas.

A representação literária é grandiosa porque nos faz viver-sentir uma realidade


construída a partir das nossas próprias histórias, em tudo que é singular e universal. Nela
encontramos a vida e a morte, o grotesco e o belo, a dor e o amor surgidos no espaço vazio,
entre o dito e o indizível que faz parte de todo homem e toda mulher.

Nosso modelo de análise apoia-se nos estudos do pesquisador e psicanalista


francês Jean-Bellemin Nöel que ao se debruçar na interpretação dos contos de fadas percebeu
a importância do literário para a vida cognitiva e afetiva, não somente da criança, mas de todo
e qualquer leitor. Nesse sentido apostamos nas nossas hipóteses de que a literatura nos faz
pertencer ao mundo e nos coloca na relação de intersubjetividade na medida em que nos
convida para “olhar” os diversos outros que habitam em nós. Na literatura temos a
oportunidade de nos encontrar no “sótão” e garantir uma experiência construída no não-dito
da nossa história. Acreditamos que a função estética da literatura extrapola a dimensão do
prazer para nos colocar numa conquista existencial. Convite sedutor para o “mais além” de
nós mesmos.

Como lançamos nossas conjecturas no sentido de sublinhar a importância dos


contos de fadas na construção de visão de mundo da criança, acreditamos ser pertinente
considerar alguns aspectos valiosos da obra de Bruno Bettelheim, como também certas teorias
da psicanalista infantil, Melanie Klein. Contudo, o nosso compromisso é estabelecido a partir
de um olhar múltiplo com relação a essa produção literária, pois compreendemos que para
24

seguir o modelo de análise sugerido por Nöel, não devemos reduzir nosso campo teórico de
atuação, mas ampliá-lo na medida em que:

“O sentido fundamental da arte é ampliar o viver e torná-lo


mais intenso, nunca diminuir ou esvaziá-lo (...). Por isto, as
obras de arte nos enriquecem: elas nos permitem reestruturar
a experiência em vários níveis de consciência sempre mais
elevados, tornando-se nossa compreensão mais abrangente de
novas complexidades e intensificando-se, assim, o sentido da
vida.”9

Provocar o sentir dentro de uma experiência maior e mais abrangente é , também,


função da literatura. No entanto, enfatizamos que esse “sentir” não está dissociado do evento
real que dá origem a todas as formas de expressão. Ao contrário, o literário nos propõe uma
visão mais crítica e transformadora do mundo dentro-fora que faz parte das tantas histórias da
caminhada humana sobre a Terra.

Como a psicanálise, a literatura nos faz ver diferente e por isso ela seduz. Para
viver nessa realidade simbólica é preciso aprender a olhar, a ver, a desviar-se do banal, a ter
“olho” no corpo todo. Isso não é a função escópica que nos dá, pois o olhar sensível faz parte
da nossa competência e sensibilidade simbólica. O olhar ao qual nos referimos é captura do
invisível, somente mediado pela largueza da linguagem artística e nesse sentido acreditamos
ser fundamental que as nossas crianças tenham a possibilidade de conhecer os contos de fadas
para que aprendam a olhar para dentro, podendo reconstruir a realidade externa e ampliar a
visão de mundo.

Os contos de fadas proporcionam ao leitor uma certa convivência pacífica entre o


bem e o mal, o amor e a dor, o sofrimento e o prazer. Nessas narrativas, até se pode gostar da
bruxa ou sentir ódio pela madrasta, pois aí tudo é permitido e garantido pelo “Era uma vez”,
ainda que se possa identificar com os aspectos mais destruidores do eu, sempre haverá o
“felizes para sempre”. Nesse sentido consideramos os contos de fadas como uma leitura
própria para se ampliar o universo interior ,enriquecendo a experiência humana da criança

9
OSTROWER, Fayga. Acasos e Criação Artística. Rio de Janeiro: Campus, 1995, p. 20.
25

que os conhece. Nesse espaço do “faz de conta” se pode tocar nos sentimentos mais íntimos,
nos amores mais sentidos, desejos mais estranhos e impossíveis. Desse espaço, ninguém sai
igual, ileso ou impune. Esse é o mundo onde a palavra tece o destino de todas as dores e
amores. Essas narrativas, aparentemente inocentes, são campo de batalha e confronto, mas
também de prazer e fruição, assim extrapolam o maravilhoso para compor cenas inusitadas do
nosso mundo interior. As histórias são tecidas com os mesmos fios, pois todas falam sempre
de um lugar da alma, onde a dor e o amor são base de tudo: do bem e do mal. Assim, nossas
análises tomarão como base as considerações de Juan-David Násio sobre os vários aspectos
que giram em torno da dor-amor. Os contos que nos propomos analisar estão repletos de
metáforas, capazes de nos levar do sentimento doloroso marcado por inúmeras perdas, até
aquilo que percebemos como travessia para o amor e portanto, para a transcendência.

Certamente, a referência que Dominique Maingueneau faz sobre o papel da


literatura na vida do sujeito diz respeito ao “mais além” da palavra, naquilo que é ausência –
presença de um afeto e que se coloca na ordem da dor e do amor, pois:

“(...) a produção literária não é condicionada por uma língua


completa e autárquica que lhe seria exterior, mas entra no
jogo de tensões que a constitui.”10

Sendo assim, buscamos realizar uma análise dos contos de fadas: Vasalisa: a
sábia, O Pequeno Polegar, O Junípero e A Bela e a Fera, enfatizando aquilo que para nós é
importante na medida em que, pode produzir um efeito no sujeito leitor, enquanto sentido e
possibilidade. Portanto, qual mensagem subliminar existe nestes contos e qual o poder de
transformação e redimensionamento existencial os mesmos podem sugerir, estas são questões
que desejamos, aqui, aprofundar.

Dessa forma, estruturamos este trabalho refletindo no Capítulo I sobre a


Importância dos contos de fadas na formação e educação da criança. Aí, se discute o que
são os contos de fadas, o que é que faz deles algo a-temporal e universal, de tão forte

10
MAINGUENEAU, Dominique. O Contexto da Obra Literária. Coleção Leitura e Crítica. São Paulo: Martins
Fontes, 1995, p. 9.
26

repercussão social. Certamente, que eles podem ser assumidos em toda a sua força simbólica
influenciando a vida psíquica e afetiva da criança. Por isso, a importância acentuada de
manter na sociedade tecnológica e destituída de valores significativos, toda a riqueza do
imaginário presente nos contos.

Em seguida, no Capítulo II, o percurso pelos contos inicia-se por Vasalisa – a


sábia: Símbolo e narrativa na enunciação dos afetos. Momento no qual trataremos a perda
e o abandono que se traduz no instante primeiro da dor e que, segundo Juan David Násio, dá
origem a todas as narrativas.

No caso de Vasalisa: a sábia esta situação instaura-se por meio de uma marca
bastante forte e que serve como travessia para todo o desenrolar da história. No entanto, o que
a torna particularmente especial é o fato da protagonista conseguir a superação da sua dor por
meio de um objeto transacional, que é seu consolo e apoio no momento em que precisou
superar as duras provas impostas pela terrível Baba Yaga.

Para a interpretação simbólica dos vários elementos que surgem no texto,


tomamos como referência teórica principal os pressupostos de Jean Bellemin-Nöel, pois estes
devem servir como roteiro de análise para todos que pretendam ver nos contos de fadas um
traço especial e singular de representação artística literária.

Se em Vasalisa: a sábia, o aspecto dominante era centralizado no objeto


transacional, agora no Capítulo III entenderemos uma outra face da dor por meio de O
Pequeno Polegar: narrativa do medo e complexo de castração.

Essa é uma narrativa cuja a dimensão da dor é sublinhada por intensas ameaças de
ruptura como o abandono na floresta, além do corte essencial para que a criança supere o
conflito edipiano. Falaremos, então da Metáfora Paterna proposta por Freud e revisitada por
outros autores, dando ênfase à interdição como lei simbólica fundamental, pois tudo isso faz
parte da dor de crescer. Superar o conflito edipiano, talvez seja um dos maiores desafios para
que se obtenha o prazer de vencer. Assim, suportamos nossas hipóteses baseados no modelo
analítico de Bruno Bettelheim, mas sem perder de vista os conceitos sobre a dor e o amor
reelaborados por Juan–David Nasio.

No Capítulo IV abordaremos O Junípero e as três etapas da dor, retomando o


contributo de Nasio para entender agora alguns temas bastante recorrentes nos contos de
27

fadas, tais como rejeição, canibalismo, a mãe-má, disputa entre irmãos, pai ausente e retorno.
Entretanto, no caso deste conto a dor apresenta-se de forma extrema, consubstanciando-se na
morte e destruição física do protagonista e na sua absorção canibalesca pelos demais
personagens.

Esta dor, de alguma forma, transfigura-se e regenera-se quando o próprio


protagonista assume uma nova forma, ainda que provisória. É nessa imagem que ele consegue
superar as provas, introjetando sua mãe-boa, para finalmente renascer numa outra etapa de
maturidade humana. Assim, reencontra o seu lugar na cena familiar.

Aqui, resolvemos nos apoiar nas perspectivas psicanalíticas da autora Melanie


Klein, quando nos traz como etapa fundamental da vida da criança, a divisão do seu objeto de
amor. Isso, resulta na cisão entre o seio-bom e o seio-mau, representante da mãe-boa e mãe-
má.

O Capítulo V, A Bela e a Fera: uma travessia poética da dor-amor, revela-


nos a outra face da dor, quando numa transferência de amor se resgata e transcende os
sentimento destrutivos.

Avaliamos aí, o encontro entre o mito de Cupido e Psique e o conto de fadas A


Bela e a Fera, à luz da concepção freudiana revisitada por Nasio, relativamente ao espaço
lacunar de todo sujeito, condição existencial de inconclusão, porém “preenchido” pelo Outro
que se constitui como objeto de desejo, portanto de amor realizado na figura do eleito.

Após as análises, chegamos à Conclusão certos de ter de alguma forma


colaborado na abertura de novas perspectivas para a investigação acadêmica ao se tentar o
entrecruzamento entre a literatura e a psicanálise. Outros caminhos seriam possíveis, mas este
corresponde ao que consideramos ser nossa postura existencial e filosófica. No entanto,
apontamos para a situação de uma inevitável inconclusão, visto que tal abordagem reside às
margens da subjetividade.

De Vasalisa à Bela e a Fera, nos deparamos com um trajeto marcado pela dor e
pelo amor, sentimentos aparentemente antagônicos, mas que se revelam complementares
28

como duas faces da mesma moeda, pois como é dito por Nasio: “A dor só existe sobre um
fundo de amor”.11

No entanto, é esta relação dialética que permite a construção do sujeito, este


sempre marcado pela falta constituinte e pela busca incessante de amor, o que significa uma
travessia permanentemente incompleta.

11
NASIO, Juan-David. Op. cit., p. 18.
CAPÍTULO 1

A Importância dos Contos de Fadas na Formação

e Educação da Criança
29

CAPITULO I - A IMPORTÂNCIA DOS CONTOS DE FADAS NA


FORMAÇÃO E EDUCAÇÃO DA CRIANÇA

1.1 - OS CONTOS DE FADAS

Afinal o que são os contos de fada e para quem são escritos? Por que conseguem
ultrapassar os limites de tempo, da História, das modificações sociais e culturais para
permanecerem cada vez mais vivos no imaginário das pessoas? Essas são perguntas feitas
com muita freqüência por todos aqueles que se ocupam em investigar essas narrativas,
tomando como referência vários pontos de vista, seja da literatura, da psicanálise, da
sociologia, entre outros.
O fato é que essas narrativas continuam intrigando e encantando pessoas no
mundo inteiro, fazendo-se presentes tanto no imaginário popular quanto em pesquisas
acadêmicas e quase sempre as investigações partem de dúvidas como as do pesquisador inglês
Sheldon Cashdan:

“Por que os contos de fada provocam reações tão fortes, mesmo


anos depois do primeiro encontro? Será que eles nos mudam de
alguma maneira? Nesse caso, de que maneira? O que há por
trás do seu apelo permanente?”12

Essas são também questões que tentaremos esclarecer aqui, a partir de uma
concepção que une literatura e psicanálise. Sabemos, porém, que tal propósito esbarra em
inúmeras dificuldades, pois estamos não somente no campo do literário, mas também noutros
que atravessam o discurso da literatura. Por isso esse entrecruzamento é tão rico, repleto de
sentido e transcendência.
A verdade é que essas histórias que encantam crianças, jovens e adultos falam
muito mais do que de mundos encantados, onde vivem seres mágicos, pois percorrem
amplamente o sentimento do leitor, invadindo zonas do inconsciente, tocando questões

12
CASHDAN, Sheldon. Os Sete Pecados Capitais dos Contos de Fadas: Como os contos de fadas influenciam
as nossas vidas. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 16.
30

indizíveis referentes ao sujeito e suas próprias histórias. Estão, portanto repletas de


significações impossíveis de serem desveladas na sua totalidade.
Ainda que essas histórias sejam aparentemente esquecidas, elas dormem num
canto qualquer e quando a oportunidade surge, então elas falam ao coração e à alma dos
pequenos e grandes, trazendo olhares, gestos, cheiros, enfim um conjunto de sensações que
fizeram parte de um encontro significativo numa determinada fase da vida. Seja na tradicional
hora do conto, onde histórias são narradas ao sabor da língua popular, ou pelos meios de
comunicação, quando aparecem personagens dos contos tradicionais em anúncios
publicitários, ou ainda em montagens para o teatro e cinema. O fato é que essas histórias
fazem parte da vida de todos nós. Ora, qual a pessoa que não experimentou um conto de fadas
na infância? Que não chorou com as dores das personagens e não vibrou com os amores,
finalmente, vitoriosos?
Cashdan nos relata isso mesmo a partir da sua experiência acadêmica. Diz que
ficava impressionado ao ver quanto seus alunos e suas alunas se tornavam apaixonados e
apaixonadas no momento no qual se falava dos contos de fadas. Cada um tinha uma história
para contar,

“(…). Todo mundo tinha um conto de fada favorito na


infância, que fazia soar um acorde emocional. Uma jovem se
lembrou de sua mãe lendo Cinderela na hora de dormir, e em
sua insistência para que a mãe repetisse a seqüência com a fada
madrinha, antes de apagar as luzes. Havia algo naquele vestido
em ouro e prata e nas jóias que era simplesmente irresistível.”13

Contar histórias é algo que se perde nas noites do tempo. É uma atitude tão antiga
quanto o próprio Homem. Narrar é condição existencial para a espécie humana e sempre
significou, de certa forma, ter domínio do mundo, conhecimento do outro. A palavra deu
poder ao animal humano.
Imaginemos os tempos remotos e todos os desafios a serem enfrentados e então,
conseguiremos compreender que para sair do estado de selvageria e entrar no domínio da
cultura foi necessário um conjunto de elementos que tornassem o Homem um conquistador
das terras, mares e do espaço. Para tanto, a palavra mais do que instrumento de humanização,

13
Idem, ibidem, p.16.
31

constituiu-se em fio mágico tecido em narrativas da luta pela sobrevivência, organização


grupal, medos, desejos, enfim histórias-rabiscos que transgrediram à ordem do real para
revelar um mundo carregado de imagens e fantasias, pois:

“(...) os relatos maravilhosos e seus análogos no âmbito de uma


rica e diversificada tradição constituem suportes insubstituíveis
de um aspecto que diz respeito, de modo substancial, à nossa
vida: o desenvolvimento espiritual e a abertura a níveis
superiores de realidade.”14

Possivelmente, na aurora dos tempos emprestava-se à vida o sentido do


sobrenatural e sagrado, maneira mágica e laboriosa de se compreender os mistérios do mundo.
Algo que explicava a origem do homem da mulher a partir de elementos fantásticos que
povoavam o dia a dia, cercado da presença do misterioso e inexplicável .
Os primeiros sons guturais, já representantes da experiência simbólica, foram
transformados no “dito” que vai caracterizar o Homem como ser racional, pensante e
transcendente. Então, partimos para o Mito, do grego Mythus, que significa palavra, narrativa.
As primeiras histórias, repassadas ao longo dos séculos, eram composições da
visão mítica e fabulosa que o humano tinha do universo. Pretendiam explicar o inexplicável, o
inacessível à razão, por isso muitos estudiosos asseguram que essa forma mágica de desvelar
os mistérios da vida tenha evoluído para os mitos, ritos, lendas, relatos maravilhosos e contos
de fadas.
Aproveitamos para revalidar a afirmação de que:

“A realidade sempre foi e é multidimensional, tendo-se somente


“desencantado” aos olhos redutivos da concepção filosófico-
cientista imposta como paradigma pela civilização racionalista.
A partir dos métodos repressivos da cultura eurocêntrica não é
possível apreender os mitos em sua natureza transreal; eles
exigiam a subjetividade- objetiva na “constituição” da
experiência, o método de redução fenomenológica e a aceitação,

14
PAZ, Noemi. Mitos e Ritos de Iniciação nos Contos de Fadas. São Paulo: Cultrix, 1995, p. 9. (Série
Pensamento).
32

como aconselhava Levy- Brunhl, da “categoria afetiva do


sobrenatural.”15

A compreensão do mito demanda um olhar para além da realidade objetiva, pois


aí se narra algo impossível de racionalidade, pois o que encontramos no relato mítico está
sublinhado de subjetividades e de um imenso desejo de dar sentido ao que se experimenta nos
diversos níveis da vida individual e coletiva. Não é difícil de se concluir que tendo os contos
de fadas se originado dessas raízes, assuma quase sempre uma dimensão transreal e influencie
tanto no âmbito psicológico quanto no social.
É interessante apontar para o fato que mesmo diante do avanço da ciência e da
tecnologia, os contos de fadas permanecem vivos e se multiplicando no imaginário coletivo.
Estão mais vivos do que nunca e se reproduzem por diversos meios. São “formas vivas”
permanentes em desdobramento contínuo, contextualizam-se sempre, embora não percam a
essência original, pois:

“Se os olharmos, em contrapartida, a partir do ângulo


totalizador e religante da visão poética, os símbolos vivos
podem “ultrapassar” a fronteira aparente e as fadas
“corporificar-se” na intersecção de duas realidades. Estaremos,
por conseguinte diante do ponto em que as duas realidades se
confundem, no dintel da “porta no muro”. (...)Mas, de modo
geral, é esquecido o valor religante e transformador ativo que
subjaz aos relatos, sua virtualidade sempre presente de
produzir uma renovatio em toda consciência alienada, através
da dinamização arquetípica que lhe é característica.”16

O fato é que essas histórias têm a força da palavra interior, que fala de um lugar
muito especial, porque também constituem-se numa forma bastante original de se explicar ou
buscar uma compreensão da experiência humana. Parece que andamos sempre em busca de
dar significado para a nossa vida e tudo é “história” que se vai fabulando e construindo. Umas
vão pelo caminho do quotidiano, do conhecimento e do saber e outras seguem o caminho da

15
Idem, ibidem, p.13.
16
Idem, ibidem, p.14.
33

alma e por isso são capazes de iluminar os recônditos mais fechados e impossíveis de se
chegar, senão pela sensibilidade artística.
Note-se, à propósito, o que a crítica literária Marina Warner nos relata sobre a
história do Sultão, sua mulher e o pobre homem que alimentava sua esposa com “carne de
língua”. Diz-se que um sultão muito poderoso tinha uma mulher que vivia muito triste e
doente. O sultão tinha recorrido a todos os meios que pode, mas de nada adiantou. Até que viu
um homem muito pobre carregando uma mulher muito feliz. Então, ordenou ao homem que
trocasse de mulher. O homem prontamente atendeu e a mulher do Sultão se transformou na
imagem da saúde e felicidade.
Enquanto isso a mulher do pobre homem definhava e vivia na mais imensa
infelicidade, pois:

“(…) a carne de língua com que o homem pobre alimentava


sua esposa não era material. Eram contos de fadas, histórias,
anedotas: alimentos transmitidos pela fala, embalados em
linguagem.”17

Esse conto aponta para a importância e o poder da palavra, tecido básico das
narrativas que se fazem histórias de toda trajetória humana. Esteja o Homem onde estiver,
haverá uma história a ser contada e recontada de acordo com o sentir e o viver do contador e
de sua comunidade.

As histórias que alimentam a alma são precisamente aquelas que nos dizem
respeito. Que de alguma maneira nos fazem olhar para dentro e encontrar um sentido ou
significado para a vida.

Por isso, o significado da leitura transcende sempre. Pois, se o texto tem a


capacidade de nos fazer viver-experimentar a metáfora verdadeira, então ele pode nos
arrebatar para o indizível de nós mesmos.
Mas essa não é uma questão tão simples quanto parece, pois nela estão envolvidos
vários aspectos da nossa experiência simbólica que precisam ser investigados e
compreendidos.

17
WARNER, Marina. Da Fera à Loira: sobre contos de fadas e seus narradores. São Paulo: Companhia das
Letras, 1999, p. 14.
34

É preciso levar em consideração o fato de que os contos de fadas não se


constituem como narrativas comuns do ponto de vista da literatura, pois falam de um lugar
singular, mas também plural e possuem uma audiência, na maioria das vezes, muito particular
já que quase sempre são narradas para crianças.
Temos que percebê-las no âmbito dos vários campos de estudo que possam
facilitar o aprofundamento lançando-nos na compreensão dos aspectos que circundam a sua
produção. De fato, é intrigante pensar que essas histórias surgiram no início dos tempos,
geralmente de autores anônimos, fizeram a travessia oral por muitos milênios até chegarem
aos nossos dias e continuam, incrivelmente, encantando leitores em todos os hemisférios.

Intriga mais ainda, quando nos apercebemos que a psicanálise e a pedagogia não
se fartam de buscar explicações sobre o fato de crianças do mundo inteiro ficarem fascinadas
diante dos contos.

Com efeito, mesmo seduzindo adultos, a sua concentração de leitores está no


período da infância. Bem sabemos, que esse é um momento da história de vida do sujeito
humano guardado com “sete chaves”, tanto pelas coisas boas que nos puderam gratificar,
como também pelas coisas ruins que colocaram em causa a nossa integridade psíquica.

É mesmo o “era uma vez” de cada história vivida por nós no secretismo do nosso
inconsciente, que se vai buscar na trama e nas representações arquetípicas cristalizadas nas
personagens que dão vida ao texto.

Diante do conto não temos um pensar racional e cartesiano. A realidade que nos
interessa é que se apresenta ao olhar como possibilidade, ou seja, o leitor sabe que não é o
personagem, mas é como se fosse porque o sentimento para o qual a narrativa reconduz é que
possui valor real. Pois, parece que aí reside a criança que:

“(...) os contos satisfazem uma fome de alimentos psíquicos.


Eles fazem florescer sorrisos de beatude mesmo que devessem
fazer caretas de medo ou pelo menos de mal a pior eles fazem
tremer ou ter pena, felicitando-os de uma solução feliz (...)
Somente os adultos racionais imaginam que nos deliciamos da
heroína salva, dos noivos que se casam, do pobre que
enriquece; as crianças sabem que o suculento, o recheio é a avó
35

engolida, a pequena feita em pedaços, a besta estripada e o


ventre cheio de sabão (...).”18

Bellemin- Nöel coloca uma questão fundamental. Não se pode analisar um conto
sem o mergulho no discurso ausente. Muitas vezes, temos que correr atrás, precisamente,
daquilo que não se pode ver de imediato para enfim, realizar uma leitura simbólica. Talvez, a
universalidade dos contos e a atemporalidade que aí experimentamos tenha a ver com o fato
de eles serem um depoimento da luta permanente que o Homem trava no seu mundo interior,
habitado por imagens universais representantes de posições antagônicas experimentadas por
todos ao longo da existência: o medo, a angústia, a solidão, a raiva, o ódio, a tristeza, a
alegria, o prazer, entre tantos sentimentos que nos vão marcando durante a vida.
Tudo isso é universal e atemporal. Até se podem mudar as dores, mas elas sempre
estarão lá, marca da nossa falta. Com os sentimentos positivos acontece da mesma forma. De
certa maneira, somos constituídos também a partir da busca afetiva. Queremos ser salvos
ainda que seja por um beijo ou espada de um herói ou quem sabe por uma fada, contanto que
a vida gratifique e nos coloque diante de um mundo resignificado.
Entendemos também que o fato de essas narrativas terem chegado até meados do
séc. XVII praticamente pelo viés da oralidade, tenha até certo ponto colaborado para o
surgimento de tantas versões. Aliás, a determinação histórica da sua origem é impossível.
Existem várias teorias sobre o assunto. Maria Emília Traça19 fala, por exemplo, da corrente
defendida por Theodor Benfey que acredita nas raízes indianistas dos contos de fadas que se
contrapõe às teorias dos irmãos Grimm que apontam para origens indo-européias. Há ainda
que referir a teoria ritualista apresentada por Pierre Saintyves e finalmente, a proposta
marxista defendida por Wladimir Propp, para a qual os contos de fadas são superestruturas
refletidas no social e emergem da eterna luta de classes.

Claro, que quando empenhados na análise de um conto, devemos buscar as fontes


de sua origem e difusão. No entanto, na maioria das vezes, temos que trabalhar no terreno das
conjecturas e suposições.

Todo esse percurso histórico contribuiu também para a efervescência do encontro


entre o narrador e os demais. Essas histórias foram compactuando com os desejos coletivos.
Na medida em que eram narradas, quase que num ritual do sagrado, elas se desdobravam.

18
BELLEMIN-NÖEL, Jean. Les contes et leurs fantasmes. Paris: Presses Universitaire de France, 1983, p.6.
19
TRAÇA, Maria Emília. O Fio da Memória: do conto popular ao conto infantil. Porto: Porto Editora, 1998.
36

Existia algo de anônimo, mas paradoxalmente, muito pessoal e que refletia nos sentimentos
dos pobres e dos ricos, dos leigos e letrados e assim:

“Tal variedade de belas letras a que tiveram acesso aqueles que


não sabiam ler, as populações e os povos sem escrita, as
crianças até a idade da escola são fonte de verdadeiros festins.
Eles as colhem, as bebem nos lábios das que as contam – os
nossos contos ditos de fadas são trabalho das mulheres: aos
homens as sagas dos ancestrais, as lendas que sustentam o
grupo, os mitos onde se encarna o sagrado. Vejam esses
ouvintes devorando com os olhos o rosto do contador: a sua
boca saboreia à medida que mastiga as palavras, repetindo-as,
antecipando-as; crereríamos que eles saboreiam a doçura. Ou
que eles mamam o leite sem o qual o seu coração ficaria
faminto.”20

Ora, que força simbólica é essa que atravessa os tempos, se eterniza no


inconsciente coletivo e fala ao espírito de maneira tão viva e atual? A verdade dessa ficção
não está suportada no evento real, não é um sistema fechado em si, mas ao contrário , abre-se
em várias direções para atender a uma demanda de ordem afetiva do sujeito leitor, que de
acordo com a sua realidade dará continuidade aos possíveis surgidos a partir do lido.

Enquanto existirem histórias no mundo, pessoas a contá-las e outras a ouvi-las,


estaremos salvos pela palavra-metáfora que pode nos fazer viajantes da dor e do amor, porque
no exercício pleno do sentir, temos oportunidade de ser.

É justamente a experiência simbólica que garante a vivência afetiva dos mais


diversificados sentimentos e por isso, os contos de fadas são de tanta importância para a
formação da visão de mundo da criança, pois neles encontramos o simbólico em toda a sua
grandeza e possibilidade.

20
BELLEMIN-NÖEL, Jean. Op. cit., pp. 5,6.
37

1.2 - OS CONTOS E A EDUCAÇÃO AFETIVA E MORAL DA CRIANÇA

Imaginemos uma criança ao nascer. Mesmo sem consciência do que é, vai


expressando seus desejos, tanto os relacionados às necessidades vitais e biológicas quanto às
afetivas. Quando sente fome chora até que seja alimentada, mas muitas vezes, já saciada da
fome e da sede continua a chorar, sinalizando que algo ainda é necessário e assim por diante.
Mães atentas reconhecem quando o choro é de fome, dor, medo, falta do colo, enfim são
capazes de interpretar o código expresso por um conjunto de sinais que vão do grito,
resmungos e sorrisos até o sono tranqüilo e regenerador, de quem por hora está plenamente
satisfeito. A capacidade de comunicação já está instaurada, tanto a mãe compreende a
criança, como o contrário.
À medida em que a criança cresce seu universo de códigos vai se tornando mais
complexo até que atinge a maturidade de articulação das palavras. Ora, isso faz parte de uma
organização biológica e psíquica por demais complexa. No entanto, mesmo sendo capaz de
interpretar e representar é necessário que seja estimulada na sua capacidade simbólica para
que possa expressar e compreender o mundo de maneira mais humana possível. Portanto,
ensinar uma criança a apropriar-se do código lingüístico é, de certa forma, oferecer-lhe algo
como uma lente que pode tornar o seu olhar sobre o mundo mais ampliado. Se o código
oferece uma leitura para além do significado imediato, provocando o pensamento e a
sensibilidade, é possível fazer do texto um excelente instrumento de reflexão.
Quanto mais utilizamos a capacidade simbólica criando formas diferentes de
interpretação, como no caso da arte, mais ficamos perto do nosso “objeto de desejo”. Isso não
significa dizer que o teremos nas mãos, aprisionado como um pássaro engaiolado. Mas,
certamente, estaremos perto de um sentimento de maior compreensão afetiva do nosso estado
de inconclusão.
Assim, pela linguagem metaforizada alcançaremos a nossa dimensão espiritual de
forma mais transcendente. Pela palavra “dita” tocaremos no silêncio necessário. Pela
linguagem e pelo símbolo nos consolaremos de um mundo absolutamente inexplicável.
Quando falamos da literatura como sendo uma porta aberta para a construção de
um sujeito mais feliz, ou pelo menos mais sensível, nos agarramos ao fato de que aí temos um
universo pleno de metáforas, de símbolos e jogos capazes de nos arremessar para o êxtase da
fantasia, da criação, por conseguinte do maravilhoso que nos lança para o mundo (re)criado
38

dos desejos mais secretos, dos anseios sentidos e vividos plenamente, apenas, pelo
estabelecido como poético e verdadeiro, tecidos pelo dizer literário.

A criança “iniciada” no mundo da leitura pelo viés dos contos de fadas tem grande
possibilidade de tornar-se alguém com capacidade criativa e sensibilidade para o estético,
portanto de se acolher dentro das diversidades e antagonismos que refletem o modus vivendi
do sujeito humano.

Com isso, não queremos dizer que esse tipo de narrativa tem a capacidade de
integrar a personalidade da criança ou transformar sua estrutura psíquica, mas pode fazer
viver sentimentos possíveis de sublimação e transformação, portanto de realizar a travessia e
buscar uma melhor qualidade de vida para que se torne um adulto com capacidade de doação
e amor, além de poder estar permanentemente em contato com o seu mundo simbólico de
maneira ampliada.
Os jogos realizados durante a leitura/escuta das histórias maravilhosas conduzem-
nos para a projeção, introjeção e identificação, operando em nós imagens de diversas
naturezas. Por isso, o espaço do conto de fadas é tão fértil para que se fale da dor e do amor,
pois aí se permite enraizar pelas zonas mais secretas do inconsciente humano e talvez chegar a
conclusões conciliadoras, nas quais se pode ver “a criança como pai do homem”.

Acreditamos que formar adultos reflexivos e conscientes depende do que nos


dispomos a fazer com as crianças de hoje. Ensinar a ler significa muito mais do que
instrumentalizar o sujeito para o exercício do código lingüístico. Contar histórias para
crianças vai muito além de diverti-las porque toca em questões essenciais da existência.

Talvez seja necessário se obter um olhar diferenciado para o discurso que se


projeta no leitor. O que se diz na Literatura não é jamais da mesma ordem de um texto
didático ou daquele que tem como finalidade máxima comunicação e informação. A
Literatura faz justamente uma quebra, desobedece ao padrão narrativo convencional para
anunciar que ali a realidade instaura-se diferentemente. Possibilita assim, não apenas uma
leitura ou interpretação, mas algo duplo, redobrado que causa eco na história de vida de cada
sujeito leitor.
A narrativa literária utiliza-se do código lingüístico para enunciar suas verdades,
mas não tem como objetivo, apenas, fazer do código a sua realidade, embora a trama, as
personagens, os fatos, o tempo e o espaço necessitem dos recursos lingüísticos para gerar
39

sentido e dar ritmo às narrativas. Esses, servem como ponte para que o evento literário torne-
se real, arrebatando-se para o estado de suspensão da identidade.

Julgamos que quanto mais a criança e o jovem são expostos aos contos de fadas,
mais próximos de realizar uma compreensão do humano estarão, pois é da complexa realidade
humana que fala a literatura. Possivelmente, entregar tais narrativas aos pequenos pode ser
uma das belas e mais eficientes maneiras de prepará-los para a vida.

No próximo capítulo temos o objetivo de apresentar algumas conjecturas sobre o


estado doloroso provocado por sentimentos de perda e abandono a partir de situações
simbólicas bastante recorrentes nos contos de fadas, tais como as que apontamos em Vasalisa:
a sábia, vistas a seguir.
CAPÍTULO 2

“Vasalisa – A Sábia”: Símbolo e Narrativa na

Enunciação dos Afetos


40

CAPÍTULO II – VASALISA - A SÁBIA: SÍMBOLO E NARRATIVA NA


ENUNCIAÇÃO DOS AFETOS

2.1 - NO PRINCÍPIO… ERA A DOR

Este primeiro conto a ser analisado tem basicamente a forma das narrativas de
tradição oral e, embora não seja dos mais conhecidos, tem sido visitado por muitos estudiosos
da psicanálise tais como Cashdan e Marie-Franz Entendemos que a fortuna crítica e teórica
tecida em torno de algumas narrativas como esta, justifica-se na medida em que se busca
alcançar um maior número possível de análises em torno dos contos que trazem o mesmo
tema como elo desencadeador da trama.

Vasalisa poderia ser a Cinderela, pois tanto quanto esta é maltratada pelas irmãs
postiças e pela madrasta. É “abandonada” pela mãe e fica a espera do pai que viaja. Mas
também, apresenta aspectos semelhantes abordados em João e Maria, como o perder-se na
floresta e encontrar uma bruxa malvada e canibal. Portanto, estamos diante de um conto rico
em representações que são constantes em diversas narrativas dessa natureza, além de conter
um elemento especial e decisivo para o desenrolar da história que é o objeto transacional.

A escolha desse conto justifica-se na medida em que o consideramos agregador de


muitos temas tratados em outros contos de fadas e também, importante por apresentar como
mediador de um conflito freqüente na infância (provocado pelo medo da perda e abandono), o
valioso objeto de transição.

É um conto que traz muitas suposições a respeito do psiquismo infantil e da


vivência de vários afetos. Mergulha profundamente naquilo que se constitui como perda, falta,
abandono e dor, ponte para que de fato se consiga a maturidade do amor.

Tal como em muitos contos de fadas, traz no início da história como motivo para
o desencadeamento da temática principal, a perda de um dos pais. A morte da mãe de
Vasalisa cria um conflito inicial que revira a vida de uma garotinha que vivia muito feliz com
seu pai e sua mãe, até que um dia tudo se transforma.
41

A história (ver anexo 1, p. 263) começa por afirmar um estado de felicidade total,
onde se desfruta uma vida plena e sem conflitos, tal qual o bebê, quando reina ainda, entre ele
e a mãe uma relação inteiramente simbiótica realizada num estado de satisfação total, pois:

“Era uma vez um homem, uma mulher e a filha deles, Vasalisa,


que moravam numa pequena choupana.”21

A fórmula “Era uma vez...” é possivelmente a maneira mais tradicional de


iniciar-se um conto de fada. A partir daí, se começa a experimentar um mundo diferente,
garantido pela riqueza simbólica e mergulho no imaginário .
O “Era uma vez...” reconduz para o tempo da eternidade, lugar onde habitam os
nossos “fantasmas” e interditos, onde podemos reatualizar imagens de nossos desejos, daquilo
que em nós permanecerá faltoso, após termos vivido as experiências internas que nos
proporcionarão a entrada no simbólico e por isso representação, tal qual algo que se sente,
mas que não se pode tocar, apreender na concretude do corpo físico, senão pelo “furo”,
espaço lacunar da reprodução fantasmática de onde se originam todos os desejos e todas as
dores.
Essa forma tão especial de se iniciar as narrativas da tradição popular, convida o
leitor para viver a realidade das tensões interiores, de um outro tempo, que não se pode fazer
no presente, passado ou futuro. Além disso, o “Era uma vez...” assegura-nos uma passagem
leve porque tem a marca da repetição do gesto e da palavra, pois milhares de gerações, ainda
que de maneiras diferentes foram seduzidas pelo convite cheio de emoção. Talvez seja como
afirma Bellemin-Nöel:

“Lá reside o segredo da fórmula maravilhosa, Era uma vez…


Qualquer coisa se produz uma vez, uma única, eu sei-o ; como
sei que não o verei mais reproduzir-se, nem mesmo reaparecer
sob os olhos da minha recordação. E ele existiu outrora onde
era real, era o real, o real; não o sei, não estava em mim
próprio para o viver verdadeiramente. Uma vez, outra vez que
não era senão uma vez : era tão bem no imperfeito que nunca
desapareceu todo mesmo que nunca se tenha encontrado. Isto

21
FITZPATRICK, Jean-Grasso. Era uma vez uma família. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998.
42

aparece como impossível e necessário. Como o entendimento e


o inteiramento do presente reportados de uma memória
sumida, reportam-se a uma memória enterrada. O nosso Era
uma vez, que não perde sob nenhum pretexto a maiúscula
inicial onde se marca o absoluto do início, é o emblema do
carácter histórico do nosso psiquismo : um décor ornamental
com personagens, e a inscrição da nossa existência numa
história que a sobrecarga, que fecha num círculo aberto em
dois pontos, o do depois, o do antes. Os nossos fantasmas são
nesse sentido a nossa historiedade primeira." 22

Assim, compreendemos essa imersão no atemporal como algo carregado da


fantasmagoria do sujeito, de todo início da narrativa individual sublinhada pela vivência do
“agora-sempre”.

É a marca da procura de um tempo onde tudo podia ser e no qual a sensação se


reflete na demanda dos primeiros afetos, aqueles enlouquecidos pelas descargas de energias,
ainda incontroláveis, pulsões vitais carregadas de libido e organizadas por um psiquismo,
ainda caótico.

É nesse tempo do “Outro” que iniciamos nossa trajetória de vida, isso parece
incontestável. É justamente por aí, que daremos início a análise crítica do conto em questão.

Primeiramente, pontuados pela observação de que a história inicia-se apontando


para uma relação familiar e triangular, vivida por um homem, uma mulher e sua filha,
habitando felizes numa pequena choupana.

Mas, os contos de fadas nos ensinam igualmente, que não há bem que sempre
dure e que para crescer alcançando outros níveis de maturidade humana, precisamos superar
provas, viver as fragilidades do nosso ser, tocar com profundidade nas nossas dores.

Finalmente, escarnar a ferida, imagem aberta daquilo que se constitui em dor da


separação do nosso primeiro objeto de desejo e investimento, promessa do paraíso no corpo

22
BELLEMIN-NÖEL, Jean. Op. cit., p.12.
43

da mãe. Isto é, trata-se da perda do “objeto A”, o primeiro grande Outro do qual nos fala
Jacques Lacan em seus Escritos.23

Também podemos compreender o Outro como sendo aquele que tem o poder de
descentrar o eu em direção ao tu e nessa provocação produzir o estado de alteridade, tal como
diz Merleau-Ponty:

“Não somos duas nadificações instaladas em dois universos de


“Em si” incomparáveis, mas duas entradas para o mesmo Ser,
cada uma acessível apenas a um de nós, aparecendo,
entretanto, para, o outro, como praticável de direito,
porquanto ambas fazem parte do Ser.”24

O Outro nos coloca numa situação de descentramento e por isso nos faz ver nela o
“perdido” em nós como se fosse uma brecha de onde pudéssemos olhar o inconsciente.
Vasalisa: a sábia vai desde o começo mostrar a questão da satisfação total de um corpo que
goza pela presença do Outro. Um Outro que é entrada para um lugar inacessível, que é brecha,
mas também falta. Enquanto “falta” é também presença. A choupana, referência para moradia
e lar representa o éden como imagem da paz, do amor e da confiança. Da mesma forma, pode
apelar para uma experiência satisfatória de se estar abrigado num lugar que nutre, guarda e
protege, mas que de maneira alguma é eterno.

Tal como a mãe tem de ser interditada no momento inicial da sua relação
simbiótica com a criança, pois somente dessa forma o bebê pode crescer e entrar no
simbólico, reconhecimento do Outro como diferença, assim acontece com o paraíso da nossa
protagonista. A fantasia de plenitude total é interditada quando:

“(...) um dia a mãe ficou muito doente. Deitada em sua cama, à


beira da morte, a mãe chamou Vasalisa e lhe deu uma
bonequinha bem pequenina.

23
LACAN, Jacques. Escritos. Tradução: Inês Oseki. São Paulo: Perspectiva, 1978.
24
MERLEAU-PONTY, Maurice. O Vísivel e o Invisível. 3 ed. Tradução: José Artur Gianotti e Armando Mora
d’Oliveira. São Paulo: Perspectiva, 1992, p.85.
44

- Fique com esta boneca e cuide bem dela – disse a mãe de


Vasalisa – não conte a ninguém que tem a boneca. Se algum dia
você estiver perdida, ou se precisar de ajuda, dê de comer à
boneca e ouça o que ela diz. Ela vai ajudá-la durante toda a sua
vida. – Então a mãe de Vasalisa tocou a cabeça da garotinha,
deu-lhe uma benção e morreu.”25

Temos desde esse momento, a sugestão de um conteúdo muito intenso provocado


pela ambivalência entre a vida e a morte. A ausência da mãe coloca Vasalisa numa situação
de perda, medo, culpa (em geral, a psicanálise registra muitos casos nos quais o sentimento de
culpa é vivido com intensidade na fantasia da criança que perde um dos pais ou quando um
deles sofre algum mal) e por conseguinte, muita dor. Mesmo o texto não se demorando em
enfatizar a tristeza da criança e do seu pai, a tensão está impressa na oposição vida x morte.
Marca o fim de uma situação anterior e o início de um novo momento na vida da menina.

Segundo a psicanalista Melanie Klein, que dedicou seus estudos à pesquisa do


desenvolvimento psíquico e afetivo de crianças, toda a vida do sujeito será pontilhada pela
experiência vivida na infância, desde os primeiros momentos, pois:

“A relação do bebê com a vida e a morte ocorre no contexto de


sua sobrevivência, depende de seus objetivos externos e do
equilíbrio de forças entre as pulsões de vida e de morte, que
limitam sua percepção desses objetos e sua capacidade de deles
depender e de usá-los. Na posição depressiva infantil, sob
condições de predomínio do amor, os bons e maus objetos
podem em alguma medida ser sintetizados, o ego torna-se mais
integrado e se experimenta a esperança de restabelecimento do
bom objeto; a superação do pesar associada e a recuperação da
segurança constituem o equivalente infantil da noção de vida.
No entanto, sob condições de predomínio da perseguição, e
elaboração da posição depressiva será em maior ou menor
medida inibida: a reparação e a síntese falham, e o mundo
interno é inconscientemente sentido como contendo o seio mau,

25
FITZPATRICK, Jean-Grasso. Op. cit., p.38.
45

devorado e destruído, persecutório e aniquilador; o próprio ego


sente-se em pedaços. A caótica situação interna, assim
vivenciada, é o equivalente infantil da noção de morte.”26

É importante esclarecer que a posição depressiva proposta por Klein é a fase na


qual, o bebê elabora os sentimentos de perda e angústia, construindo a sua capacidade de
simbolização. As crianças que não conseguem se sentir deprimidas diante dos objetos de amor
perdidos, então provavelmente terão problemas em relação à sublimação e à simbolização. Ou
seja, é imprescindível que a criança sinta o perdido e sofra todos os danos que isso possa
provocar, para que ela busque mecanismos de superação do estado de tristeza e depressão.
Então, a criança por meio do processo de simbolização poderá substituir o perdido e dessa
forma, sentir-se-á capaz e forte do ponto de vista psíquico.

Dessa forma, o estado depressivo, embora seja o momento de dor e sofrimento é


também extremamente necessário para a constituição de um ego saudável. Assim, se o bebê
entra na depressão é um sinal de que está no exercício simbólico da elaboração de sua perda.

Deve haver a contribuição externa necessária para que experimente esse


momento, sentindo-se amparado, ou seja, reassegurado pelo “seio bom”, lugar de onde retira
gratificação e amor.

Depois de ter vivido a felicidade total, Vasalisa está diante da morte da sua mãe, o
que suscita em qualquer criança o sentimento de insegurança, medo, raiva, abandono, culpa,
enfim desamor e ameaça do “seio mau” destruidor e persecutório.

Para que a menina resgate a vida feliz terá de ser capaz de enfrentar os perigos da
existência, conquistando maturidade para superar os conflitos impostos pela vida, pois
somente se sabe viver, quando se é forte para compreender a morte, o fim que existe em tudo.

A “mãe boa” sabedora disso mesmo e da própria tristeza da sua partida, criadora
de uma situação interna caótica oferece um presente à Vasalisa, a bonequinha. Este é um
presente abençoado, identificado com a menina, já que é uma boneca. Ela vai servir-lhe não
só como lembrança da mãe morta, mas como lugar da transferência para a “mãe boa”, já que a

26
BARROS, Elias Mallet da Rocha. (coord.). Melanie Klein hoje: desenvolvimento da teoria e da técnica.
Tradução: Belinda Haber Mandelbaum. Rio de Janeiro: Imago, 1990, p. 258.
46

boneca deve ser alimentada, cuidada e ouvida. Se Vasalisa cuidar da boneca como uma mãe
acolhedora e boa, então ela ajudará Vasalisa todas as vezes que ela precisar.

Portanto, existe nesse símbolo a permanência de um elo entre mãe e filha,


representante de um bem maior com o qual a menina se identificará com a função simbólica
de mãe. Ser mãe é alimentar, cuidar e proteger. Se Vasalisa cuidar bem da sua bonequinha,
ela estará introjetando o “seio bom” e por isso receberá a proteção necessária para a sua
sobrevivência.

Como se pode observar esse presente deverá se tornar um bem maior, objeto
transacional que ajudará a menina a enfrentar a sua dor.

A mãe também diz que a bonequinha a ajudará e a acompanhará por toda a vida.
Então, evidentemente, que é um objeto internalizado desde que a menina saiba preservar os
sentimentos bons, alimentando-os e cuidando para que estejam presentes no momento de
aflição. Certamente, isso reatualizará a presença da mãe boa e protetora, já internalizada.

A bonequinha não possui características de personagem, embora se alimente e


fale. Ela é um objeto investido de energia, força, doação e amor. Vasalisa continua tendo
contato com a sua “mãe boa” por meio desse segredo. Como segredo, faz parte de um pacto
de silêncio e conforme Jean Chevalier:

“O segredo é um privilégio do poder, um sinal de participação


no poder. É igualmente, ligado à idéia de tesouro, e tem os seus
guardiães. O segredo é também fonte de angústia pelo seu peso
interior, tanto para aquele que o guarda quanto para aqueles
que o temem. (...) Do ponto de vista analítico, poder-se-ia dizer
que a confissão do segredo libera a alma da angústia. (...) É
saudável livrar-se do fardo de um segredo. Mas aquele que é
capaz, sem fraqueza e embaraços de guardar os seus segredos
adquire uma força de dominação incomparável que lhe confere
um sentimento agudo de superioridade.”27

27
CHEVALIER, Jean., GHEERBRANT, Alain. et al. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio,
1994, pp. 808, 809.
47

A Boneca é o segredo-tesouro que a ajudará a alcançar a força necessária e ir em


busca de salvação e conquista de um grau maior de maturidade e superioridade. Com ela
Vasalisa poderá sentir-se mais segura diante dos vários obstáculos que irá enfrentar, mesmo
que ainda, desconhecidos, superando todas as provas pelas quais terá que passar.

A primeira parte desse conto é, possivelmente, o momento de maior tensão em


toda narrativa porque assenta no dualismo vida x morte que institui toda a carga de energia
interior vivida pelas personagens. É uma história que provoca lágrimas em crianças e adultos.
A sua leitura nos obriga a reviver sentimentos infantis relacionados às nossas perdas iniciais
que mesmo quando superadas, deixam marcas num canto qualquer da nossa história.

“Sempre que conto essa história, minha voz se engasga na


garganta no momento em que a mãe moribunda de Vasalisa
entrega a sua garotinha a pequenina bonequinha. Para a
maioria de nós, pais, é difícil desejar algo mais valioso do que a
oportunidade de oferecer a um filho nosso alguma coisa que vai
durar, que vá mantê-los em segurança diante do perigo,
alguma coisa que nunca permitirá que se sintam sozinhos.
Enquanto Vasalisa seguir as instruções de sua mãe – enquanto
ela cuidar da boneca e ouvir seus conselhos- , ela terá quem a
conforte e a ajude sempre que precisar. A boneca é uma dádiva
espiritual.”28

Simbolicamente, a mãe traz o sentido das forças positivas, o bem e o alimento.


Pois, é a matriz. Aquela que gera e guarda. Também, pode conter a mesma dualidade,
ambivalência da terra e do mar, pois aí:

“(...) a vida e a morte são correlatas. Nascer é sair do ventre da


mãe; morrer é retornar à terra. A mãe é a segurança do
abrigo, do calor, da ternura e da alimentação; é também em

28
FITZPATRICK, Jean-Grasso. Op. cit., p. 44.
48

contrapartida, o risco da opressão pela estreiteza do meio e


pelo sufocamento através de um prolongamento excessivo da
função alimentadora e guia: a genitora devorando o futuro
genitor, a generosidade transformando-se em captadora e
castradora.”29

O fato do leitor realizar tal transferência e identificar-se com os fatos narrados não
nos surpreende, pois um texto literário é mais do que um fragmento de vida e existência. Ele é
em si, sempre, o resultado das relações humanas no contexto da dor ou do amor. Portanto, o
sangue que pulsa nas personagens não se faz apenas de jogos lingüísticos contidos na
disposição de palavras e frases, mas essencialmente, de um sentir reordenado e presentificado
na dinâmica poética da narrativa. Esta sensibilidade traduz-se num estilo que se configura
pelo ritmo, encadeamento das frases, utilização de símbolos, metáforas e metonímias que
marcam o compasso das personagens, desde a respiração ao grito, sorrisos ou lágrimas, enfim
o corpo textual invadido por uma multiplicidade de gente.

O que pulsa na história é a representação larga e ampla do desejo humano de


plenitude, mas também de tudo que no homem é perversão, dor e angústia. Por isso, a
metáfora da bonequinha traz um gostinho de despedida. Ela nos coloca diante das nossas
pequenas e grandes partidas, mas também daquilo que nos alimentou e reassegurou na
caminhada. Somente quem perde, precisa ser confortado e toda partida carrega em si uma
morte.
A Morte nunca é o fim somente para aquele que passa por ela, mas também para
aqueles que a presenciam. Quando a mãe de Vasalisa morre, logo se inicia na sua vida um
período de dor e sofrimento. Essa morte representa igualmente o fim do Paraíso e entrada no
Inferno, quando terá que passar por duras provas para poder iniciar-se numa nova vida.
Assim, temos no texto a marca da própria dor expressa no simbolismo da morte, como sendo
o fim e o começo, necessários para a transformação e a vivência de outras experiências que
possam produzir o crescimento do sujeito.

Isto está de acordo com a visão de Chevalier quando afirma que a morte é um
símbolo universal de:

29
CHEVALIER, Jean., GHEERBRANT, Alain. et al. Op. cit., p. 580.
49

“(...) fim absoluto de qualquer coisa de positivo: um ser


humano, um animal, uma planta, uma amizade, uma aliança, a
paz, uma época. Não se fala na morte de uma tempestade, mas
na morte de um dia belo. Enquanto símbolo, a morte é o
aspecto perecível e destrutível da existência. Ela indica aquilo
que desaparece na evolução irreversível das coisas: está ligada
ao simbolismo da terra. Mas é também a introdutora aos
mundos desconhecidos dos Infernos ou dos Paraísos; o que
revela a sua ambivalência, como a da terra, e a aproximação,
de certa forma, dos ritos de passagem. Ela é revelação e
introdução. Todas as iniciações atravessam uma fase de morte,
antes de abrir o acesso a uma vida nova.(...).”30

Depois de ler as primeiras frases da narrativa sentimos reavivadas algumas


lembranças que nos provocaram a experiência de dor e separação. Porque distante, agora ela é
melancolia, já que a dor de qualquer separação significa a lembrança da dor da primeira
perda, pois a dor:

“(...) em si mesma não tem nenhum sentido. Em si a dor não


tem nenhum valor nem significado. Ela está ali, feita de carne e
ou pedra, e no entanto para acalmá-la, temos que destacá-la do
real, transformando-a em símbolo. Atribuir um valor simbólico
a uma dor que é em si puro real, emoção brutal, hostil e
estranha, é enfim o único gesto terapêutico que a torna
suportável (...).”31

Assim, é essa “dor inassimilável” que é transformada no texto literário em dor


simbolizada. Porque é metáfora pode ser suportada em sua revivescência, visto essa figura de
linguagem ultrapassa o código para se fazer presente. A metáfora fala mais do que ao corpo,
pois diz da marca-cicatriz de uma dor impressa na alma.

30
Idem, ibidem, p. 621.
31
NASIO, Juan-David. O Livro da Dor e do Amor. Rio de Janeiro: Zahar, 1997, p.17.
50

Se o sofrimento nos conduz ao inferno da dor, ele também nos faz sentir com
maior capacidade para buscar saídas. Nele encontramos a ambivalência entre o negativo e o
positivo. Somente quando reconhecemos as perdas e sofremos por elas, somos capazes de
sentir que :

“(...) a dor, no coração do nosso ser, é um sinal, incontestável


da passagem de uma prova. Quando uma dor aparece,
podemos acreditar, estamos atravessando um limiar, passamos
por uma prova decisiva. Que prova? A prova de uma
separação, da singular separação de um objeto que deixa-nos
súbita e definitivamente, nos transtorna e nos obriga a
reconstituir-nos. A dor psíquica é dor de separação, sim,
quando a separação é a erradicação e perda de um objeto, ao
qual estamos tão intimamente ligados - a pessoa amada, uma
coisa material, um valor, ou a integridade do nosso corpo –
que esse laço é constitutivo de nós próprios. Isso diz como o
nosso inconsciente é o fio sutil que liga as diversas separações
dolorosas da nossa existência.(...) Entretanto, seria falso
acreditar que a dor psíquica é um sentimento exclusivamente
provocado pela perda de um ser amado. Ela também pode ser
dor de abandono, quando o amado nos retira subitamente o seu
amor; de humilhação quando somos profundamente feridos no
nosso amor próprio; e de dor de mutilação quando perdemos
uma parte do nosso corpo. Todas essas dores são, em diversos
graus, dores de amputação brutal de um objeto amado, ao qual
estávamos tão intensa e permanentemente ligados que ele
regulava a harmonia do nosso psiquismo.”32

Dessa maneira, não é difícil que a maioria das crianças, desde que esteja
encorajada a viver em plenitude seus sentimentos antagônicos, se identifique com o drama de
Vasalisa, tão pequenina e tendo que enfrentar a mais terrível de todas as perdas. Perder um

32
Idem, ibidem, p. 18.
51

dos pais ou o medo disso acontecer é, na infância, algo quase insuportável. Porém, na
ausência, a mãe de Vasalisa, será presente naquilo que deixou da relação de amor com a filha.

Todas as vidas estão até certo ponto marcadas pela dor da separação. Aliás, esta
faz parte do momento inaugural de cada sujeito que ao separar-se da mãe é acometido de um
sentimento brutal de perda, mas que também por isso se tornará autônomo e independente.

As dores são muitas e assumem variadas formas, mas inevitavelmente elas


rememoram a dor da primeira perda e separação. Claro que é mais fácil lidar com as dores
localizadas e para as quais apontamos o dedo e dizemos: dói aqui. Entretanto, a psicanálise
nos apresenta farto material indicativo de que quase sempre a dor não inicia-se na ferida
exposta, mas é anterior a tudo aquilo que faz doer. Às vezes, é indizível e inscreve-se lá, onde
um dia tudo foi paraíso.

Analogamente, a Psicanálise realiza um trabalho semelhante ao processo narrativo


literário, pois tendo na “palavra” metaforizada o seu ponto estratégico para a interpretação e
compreensão do “não-dito” do analisante, ela trabalhará para fazer com que o mesmo dê
sentido a sua dor. Para tal questão Nasio, obra citada, coloca o seguinte:

“Mas o que significa então dar um sentido à dor e simbolizá-la?


Não é, de modo algum, propor uma interpretação forçada de
sua causa, nem mesmo consolar o sofredor, menos ainda,
estimulá-lo a atravessar a sua pena como uma experiência
formadora, que fortaleceria seu caráter. Não. Dar um sentido a
dor do Outro significa, para o psicanalista, afinar-se com a dor
do Outro, tentar vibrar com ela, e, nesse estado de ressonância,
esperar que o tempo e as palavras se gastem. Com o paciente
transformado, nessa dor, o analista age como bailarino que,
diante do tropeço de sua parceira, a segura, evita que ela caia e
sem perder o passo, leva o casal a reencontrar o ritmo inicial.
Dar um sentido a uma dor insondável é finalmente construir
para ela um lugar no seio da transferência, onde ela poderá ser
clamada, pranteada e gasta em lágrimas e palavras.”33

33
Idem, ibidem, p. 17.
52

É mesmo desconcertante perceber que a dor de Vasalisa é a nossa própria dor,


apanhada aí, nesse espaço entrelinhas, onde a dor do Outro faz “vibrar nesse estado de
ressonância”, tal qual no processo terapêutico.

O que faz a mãe de Vasalisa, senão “construir um espaço” para a dor da menina
no seio da transferência ? Em momento nenhum ela consola a filha ou diz para que ela não
chore, apenas a segura como faz “o bailarino diante do tropeço da sua parceira”.

A palavra que esconde-se no espaço narrativo faz parte do indizível, daquela dor
ou desejo que tocamos pelo sentir das personagens. Pela dor do Outro, verteremos lágrimas,
expulsaremos gritos e pronunciaremos palavras. Ela é a representação do nosso fracasso e
nela nos escondemos.

Por tudo isso é que o texto tem que ter o poder da metáfora, nos fazer transcender
para o “além” de nós mesmos, porque aí estão possíveis os sentidos, pulsando com tudo que é
vida ou morte. No seio da narrativa está a palavra que falta, ou que é a própria falta, então
fracasso.

2.2 - E A PALAVRA SE FEZ AÇÃO…

Vasalisa, investida pelo amor de sua mãe consegue superar a sua primeira e maior
prova que consiste na reparação dos danos emocionais provocados pela morte da “mãe boa”.
Mesmo mergulhada na tristeza pela ausência do seu primeiro objeto de amor, a menina
continua sua trajetória ajudada pela bonequinha.

Entretanto, depois de passado o tempo o pai casa-se novamente. A mulher tem


duas filhas pavorosas, semelhantes às irmãs da Cinderela.

Escravizada pela madrasta e suas filhas, ela faz todo o trabalho da casa: varre,
corta a lenha, ordenha a vaca e limpa as ervas da horta. Embora, a mulher seja muito boa para
o pai da menina, é péssima para ela e representa bem o papel da “mãe ruim”, a madrasta
temida em quase todos os contos de fadas.
53

A imagem da madrasta é uma das mais utilizadas nas narrativas infantis, tendo
grande força metafórica tanto de sedução quanto de repulsa. Representa forças interiores e
antagônicas, algo entre o amor e o ódio. Claro que a madrasta tem uma dimensão hiperbólica
do que pode ser a “mãe má”, aquela que persegue, não doa e não alimenta, portanto é ameaça
de morte e aniquilamento. Contudo, essa mãe precisa ser introjetada pela criança para que ela
sinta-se capaz de superar faltas e conflitos, alcançar a posição depressiva, realizar o luto e
atingir sua plena capacidade simbólica.

Mesmo quando nos tornamos adultos, a “mãe má” pode ser reatualizada na nossa
fantasia, provocando dor e angústia. Parece mesmo, que reside aí, toda a questão do fantasma
da dor, pois a “mãe má” fonte de destruição serve igualmente como interdito, lei que realizará
o corte, ruptura simbólica da relação incestuosa entre criança e mãe. Não por acaso, a
madrasta aparece, nos contos infantis, como “a outra mulher do pai”. Ela é a outra que surge
para separar Vasalisa do pai, portanto substituir a mãe, espaço simbólico de mulher.

Vamos aos poucos avançando para o fato de que o pai viaja para fazer negócios,
enquanto a “pobre menina” tem a sua sorte entregue a madrasta e suas filhas “invejosas”.

As irmãs postiças da menina acreditavam que se ela trabalhasse incansavelmente,


então logo ficaria cansada e feia. No entanto, Vasalisa conseguia dar conta de todo o trabalho
e ainda sobrava tempo para descansar e dormir. Alimentada pela companhia valiosa da
bonequinha, ela tornava-se cada vez mais forte e saudável.

Nesse momento do conto, a nossa protagonista já havia superado a dor do


abandono sofrido, visto ter deslocado seus afetos para um objeto de amor representante da
própria mãe, tanto é que tornava-se cada vez mais bonita. Entretanto, para que de fato supere
a dor e realize por completo seu estado de luto, Vasalisa terá que sair do subjugo das pulsões
negativas representadas pela madrasta e irmãs postiças. Somente, quando for capaz de livrar-
se delas, então terá realizado a travessia necessária para que se constitua em sujeito
apropriado do poder da voz e pronto para enfrentar os desafios interiores.

Parece que o estado de submissão da menina aos desejos das três mulheres, aponta
para uma fase muito inicial do sujeito no mundo, quando ainda imerso num estado caótico
envolve-se em impulsos destrutivos que ameaçam a sua integridade psíquica, mas dos quais
não pode se livrar sem correr o risco de sofrer alguns danos. O equilíbrio necessário entre as
pulsões somente será atingido quando a criança for capaz de viver os estados de depressão e
54

angústia- espaço vazio preenchido pelo desejo e ausência do Outro – buscando viver a
dimensão significante da dor da separação, por conseguinte da fantasia apaziguadora de que
se é possível recuperar o objeto de amor perdido, tal como é apontado nos estudos realizados
por Melanie Klein em obra já citada anteriormente.

Essa narrativa propõe ao leitor muito mais do que um espaço para reflexão ou
compreensão do nosso estado lacunar, pois a dor inicial de Vasalisa tocará na nossa dor como
uma tatuagem que é impressa no corpo, garantindo mais do que o processo de transferência
ou solidariedade com a dor alheia. Mais do que alheia é nossa, registro que marca a
experiência de separação do nosso primeiro objeto de amor.

Assim, será no lugar do simbólico, espaço de revelação, que a dor de Vasalisa


tocará na nossa dor. A função do conto é expressamente conduzir o leitor para um espaço de
luta, onde terá que enfrentar conflitos e perdas para assegurar-se da capacidade de superação e
transformação. Por isso, não basta ter perdido a mãe e estar sujeita aos caprichos maldosos
das irmãs postiças. É necessário ir mais além para que o texto produza algo verdadeiramente
significativo para o leitor e que faça parte da sua própria narrativa.

Dessa forma, o pai de Vasalisa parte em viagem para realizar negócios numa
aldeia vizinha, deixando a menina entregue à madrasta e suas filha. Ao cair da noite, a
pequena entregou-se ao sono, enquanto as outras se divertiam falando mal das pessoas.
Estavam tão absorvidas que não se deram conta de colocar a lenha na lareira, até que o fogo
se apagou e então se apavoraram com a idéia de terem que buscar uma chama para acender o
fogo, pois pelo que é dito, a chama tinha que ser pega na casa da Baba – Yaga, uma bruxa
terrível que habita na floresta. Então, não tiveram dúvidas e disseram:

“(...) vamos mandar Vasalisa. Então elas sacudiram a menina


até acordá-la e empurraram-na pela porta a fora para a noite
fria e escura.”34

34
FITZPATRICK, Jean-Grasso. Op. cit., p. 39.
55

Após a morte da mãe de Vasalisa, esse é um dos momentos de maior tensão no


conto, pois desencadeia vários significantes e propõe o desenrolar da narrativa. O fato é que
as irmãs malvadas nos enchem de ódio e medo no momento em que jogam a menina fora de
casa e diante da ameaça oferecida pelos perigos da noite e da floresta.

De qualquer maneira, a nossa heroína parece ter se preparado para enfrentar o


desafio, pois antes ela entrega-se ao sono regenerador, concedido aos que sabem que vão
encontrar uma batalha pela frente, sendo necessário encontrar no sono o repouso certo e
tranqüilo.
As palavras “noite fria e escura” são bastante significativas e aparecem em
conjunto para enfatizar o drama pelo qual a menina terá de passar para poder superar o estado
no qual se encontra desde que sua mãe se fora. A noite que Vasalisa terá que enfrentar para
descobrir-se numa nova vida não é uma noite qualquer, mas fria, escura e na floresta, portanto
densa como o desconhecido.

Após o momento de dor e angústia, a menina passa a viver sob os olhares


invejosos e perversos da madrasta e das irmãs postiças, mas para crescer terá que enfrentar o
estado de depressão, realizar o luto e adentrar no profundo da dor. É necessário encontrar-se
com o desconhecido e perigoso mundo do inconsciente. Além de ter que partir durante à
noite, a pequena sai com a missão de trazer o fogo, a chama, a luz para clarear a casa –
choupana, mundo interior.

A noite que carrega em si um significado simbólico e arquétipico muito forte.


Traz sentido de ambivalência e está intimamente relacionada às questões do tempo, tal como,
na antigüidade, acreditavam os gregos. Para os maias pode ser o interior da terra ou a morte.
Na concepção dos celtas tem uma conotação de tempo e começo do dia, isto é:

“A noite simboliza o tempo das gestações, das germinações, das


conspirações, que vão desabrochar em pleno dia como
manifestação de vida. Ela é rica em todas as virtualidades da
existência. Mas entrar na noite é voltar ao indeterminado, onde
se misturam pesadelos e monstros, as idéias negras. Ela é a
imagem do inconsciente e, no sono da noite, o inconsciente se
libera. Como todo símbolo, a noite apresenta um duplo aspecto,
56

o das trevas onde fermenta o vir a ser, e o da preparação do


dia, de onde brotará a luz da vida.”35

Ao ser empurrada para noite Vasalisa tem a oportunidade de mergulhar no seu


“indeterminado”, podendo reconhecer-se nos sentimentos velados, obscuros, pouco tocados.
A noite prepara para o dia, para o conhecimento iluminado de nós mesmos, que devemos
buscar se desejamos nos conhecer e colaborar para a harmonia coletiva.

Uma vez empurrada para a noite pelas irmãs postiças, que nesse momento podem
significar os impulsos destrutivos, mas necessários para que haja equilíbrio psíquico, a
menina também adentra na floresta cheia de medo e frio para enfrentar Baba Yaga, que não é
apenas uma bruxa malvada, é também uma devoradora de crianças.

Qualquer criança que se depare com tal posição dentro de uma narrativa se sentirá
ameaçada como Vasalisa e, certamente, reatualizará seus primeiros medos, vividos na
maternagem, que consiste na fantasia de estar sendo perseguida pelo “seio mau”, ou seja, pela
“mãe má”.
O fato da Baba Yaga ser uma devoradora de crianças é muito significativo dentro
do conto. O que é devorar, senão destruir, colocar para dentro, aniquilar. No entanto, o perigo
só desaparece quando o enfrentamos com coragem e determinação.

Para diminuir o medo, Vasalisa conversou com a bonequinha, entrou em contato


com os seus impulsos de amor e foi conduzida até um caminho serpenteante. Temos agora
dois importantes significantes: floresta e serpenteante.

De acordo com o Dicionário de Símbolos já citado, a floresta carrega um


significado simbólico com muitos sentidos, sendo por vezes lugar sagrado, outras, misteriosa
e densa, representante de conflitos e angústias, mas também lugar onde se encontra serenidade
e todas as poderosas manifestações da vida, as boas e as más.

Para a psicanálise, possui um sentido de obscuridade e enraizamento profundo,


significando o inconsciente impenetrável. Assim, Vasalisa encontra-se com o profundo de si
mesma, tendo que buscar forças para continuar sua caminhada, após ter vivido uma grande
dor.

35
CHEVALIER, Jean., GHEERBRANT, Alain. et al. Op cit., p.640.
57

Chegamos ao momento, no qual a dor sentida já não é a do primeiro momento,


quando acontece a morte da mãe, mas uma dor de outra natureza que relaciona-se à dor
impressa em qualquer busca e travessia, pois:

“A dor está sempre ligada à subitaneidade de uma ruptura, à


travessia súbita de um limite, mais-além do qual o sistema
psíquico é subvertido sem ser desestruturado.”36

Por mais esperada que seja uma dor ela faz sempre parte do inusitado, do súbito.
Não é difícil de se acreditar que nunca estamos verdadeiramente prontos para enfrentar uma
dor dilacerante. Qualquer dor para ser superada precisa de ser enfrentada, mesmo que isso
custe um sofrimento terrível.

Se aprendemos a encarar as perdas desde a infância, então nos tornamos capazes


de reagir a uma dor de maneira mais positiva. Sentir uma dor profunda e superá-la também
nos ajuda a ser auto-confiantes e determinados.

Dessa maneira, a menina terá que adentrar no fundo da sua dor, percorrer os
caminhos serpenteantes e perigosos da floresta, representante do inconsciente e dos
sentimentos obscuros para poder encontrar-se num estágio mais elaborado do seu crescimento
pessoal. Fica muito claro que o crescimento pessoal é determinado por situações de conflito e
dor.
Nenhuma criança cresce se não passar pelas rupturas e dores necessárias. Para
andar é necessário enfrentar a queda, para falar o desafio de se fazer compreender, enfim os
contos estão sempre nos dizendo de um lugar fantasmático e que atualizamos todas as vezes
que estamos diante de uma situação de conflito.

É assim que Vasalisa encontra-se no meio da noite, tendo que superar o medo e a
angústia da solidão para enfrentar o mais desconhecido de si mesma. Pelos caminhos
serpenteantes, o que aponta para o inseguro e indeterminado, a menina pretende chegar às
colinas. Lá mora a Baba Yaga, devoradora de crianças, mas lá, também está a chama, a luz
que Vasalisa precisa trazer para a choupana , como também para desfazer-se de uma situação
de caos interior.

36
NASIO, Juan-David. Op. cit., p. 25.
58

Durante algum tempo, a nossa personagem hibernou seus sentimentos e subjugou-


se aos desejos alheios até que o pai parte em viagem e, ela é sacudida pelas irmãs e jogada
para dentro de si mesma. Então, o conto vai propondo ao leitor a entrada num jogo de tensões,
no qual a menina não mais se depara diretamente com a dor da perda da mãe, pois basta que
uma parte do sentimento seja reatualizada para evocar e produzir um efeito total da dor
primeira.
No momento inicial, a menina está protegida da dor da separação pela
bonequinha, assim de tal forma:

“A criancinha protege-se da angústia depressiva da separação


na hora de adormecer através de atividades bucais como, por
exemplo, agarrar e chupar a ponta do lençol, “primeiro bem”
que não é a parte do corpo nem se reconhece pertencer à
realidade exterior. Trata-se, nesse caso, de um objeto
intermediário, de uma transição entre a atividade auto-erótica
precedente (chuchar o polegar) e a relação posterior com um
objeto externo (o urso de pelúcia). Ora entre os objetos
transacionais figura a emissão de sons diversos, de gorjeios, de
ruídos de gritaria, das primeiras notas musicais (...) é não só o
material sonoro, Mas também toda a fala que constitui um
fenômeno transicional (...) O fenômeno transicional assegura
entre o sujeito e o objeto um lugar vazio onde podem penetrar
a linguagem, o jogo e a cultura.”37

Sendo a boneca representante simbólico desse lugar de transição, portanto de


espera, Vasalisa está preparada para penetrar no vazio, espaço da sua emergência como
sujeito que se sabe e busca para além da vitória, o apaziguamento com o seu ser em
movimento e transformação. Em geral, os contos de fadas trazem a viagem e a caminhada
como elementos simbólicos de um momento de transição inscrito não somente na ordem da
ação, mas de uma ação que transforma e transgride a ordem espacial. Movimento físico e
corporal assumido no gesto de andar, caminhar, procurar, perder-se pontuado por algo
crescente e que visa uma grande tensão.

37
GORI, Roland. Fantasma, Linguagem, Natureza : Três tipos de realidades. In : ANZIEU, Didier. et. al.
Psicanálise e Linguagem, do corpo à palavra. Lisboa: Moraes, 1977, p.24.
59

A nossa personagem traduz algo que está entre o movimento e a inércia. Ora,
trabalha e trabalha. Dorme em sono profundo para depois ser sacudida bruscamente. Segue
seu caminho andando pela floresta e caminhos serpenteantes. Anda um dia inteiro e uma noite
inteira. Exausta encontra a mais bizarra das paisagens. Defronta-se, novamente, com tarefas
difíceis de serem realizadas. A progressão das ações fazem parte dos acontecimentos e
constituem algo essencial no conto como se uma coisa dependesse da outra e assim
sucessivamente, ao que podemos inferir que o crescimento humano galga etapas que devem
ser superadas para que se seja capaz de enfrentar outros desafios, tal como nos mostra o
conto, parece que:

“(...) a aquisição da fala depende da do andar, isto é da


possibilidade, para a criança, de introduzir ativamente a
separação espacial real da mãe quando, até então, ela sofria
passiva e dolorosamente a separação de que sozinha, tomava a
iniciativa. Para falar, isto é, para comunicar à distância, a
criança deve ter atravessado a angústia de separação e
estabelecido com a mãe ou o seu substituto a devida distância
entre o contato fusional em que se perde e o afastamento
extremo em que a perde. O símbolo como presença possível de
um ser ou de um objeto ausente concretiza mentalmente essa
distância. René Spitz sublinhou uma outra razão: a partir do
momento em que anda, e em que, portanto, corre riscos, a
criança torna-se um objeto de ordens e de interdições verbais
por parte das pessoas que a rodeiam, o que cria uma ruptura
no discurso-prazer anterior que ela recebia da mãe como puro
redobramento narcísico.”38

Para que Vasalisa cresça e assuma a dor da separação ela realizará esse
movimento de perder-se de si e do Outro, representante da mãe. A boneca aponta para a essa
ausência, mas dentro da choupana a menina não conseguirá a sua individuação, visto que está
escravizada pelos desejos caóticos das falsas irmãs. Observem que ela é posta diante da Baba
Yaga porque as três mulheres se comprazem no prazer da oralidade. Falam muito e mal de

38
Idem, ibidem, p. 12.
60

todos que conhecem. Então, a menina que dorme precisa partir e obter a distância necessária
para romper com o discurso-prazer da situação narcísica. Nela, a mãe faz ecoar sua fala todas
as vezes que no sofrimento Vasalisa a reencontra na bonequinha. Isso, a torna forte e capaz de
superar as dificuldades e enfrentar o medo.
Quando a menina chega ao local determinado pelas irmãs e encontra aquela
construção inusitada (trata-se de uma casa de madeira suspensa, bem no alto, sustentada por
gigantescas pernas de galinha e cercada por ossos humanos, os quais têm nas pontas caveiras).
Não é difícil de imaginar o horror da menina diante de tal imagem. Mais do que uma estranha
choupana estava diante dos destroços de vários corpos, cemitério que abriga o bizarro e o
grotesco. Novamente, Vasalisa está próxima da morte e seus mistérios.
Ao lermos o texto sentimos toda a dramaticidade da situação no momento em que
a narrativa descreve os olhos arregalados da menina e o susto da mesma ao ouvir a voz
assustadora e cacarejante da bruxa, que aparece montada num caldeirão voador.
Temos aí, vários componentes para supor que a menina terá que superar provas
muito difíceis para conseguir chegar até o final com vida, pois já se sabe que essa bruxa come
crianças.
De qualquer forma, alguns desses componentes são intrigantes, porque embora
formem esse conjunto assustador, não apontam para o mau completo. Pois, a choupana sendo
rodeada por ossos e crânios humanos, não somente compõem um cenário de horror, mas de
acordo com Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, os ossos simbolizam firmeza, força e virtude,
ascese, superação da noção de vida e morte, acesso à imortalidade. O crânio quando exposto e
suspenso pode significar vitória. O fato é que, de maneira geral, esses dois elementos têm uma
conotação positiva. O que nos faz pensar que, talvez Vasalisa esteja próxima da
transformação necessária para obter uma maior compreensão da vida e da morte.

Por outro lado, encontramos uma versão dessa história que intitula-se Vasalisa a
Bela, de origem russa e que difere da nossa, apenas em alguns aspectos. No entanto, o conto
que aqui analisamos possui menos elementos para o desenrolar da narrativa, como também
apresenta um final diferente. Entretanto, ambas são exatamente iguais com relação à temática
e o motivo. Assim, acreditamos ser interessante apontarmos para alguns pontos de
convergência que são significativos entre ambos, levando em consideração a análise feita pelo
pesquisador e psicanalista Sheldon Cashdan ao referir-se à importância dos objetos
transacionais e de como isso apresenta-se nessa narrativa russa.
61

A bruxa Baba Yaga aparece nas duas narrativas e representa mais do que uma
feiticeira, pois assume uma posição estratégica dentro da narrativa, até mesmo de elemento
auxiliar e mediador para que a nossa heroína possa crescer e introjetar a “mãe boa” até tornar-
se adulta. A nossa reflexão é corroborada pela afirmação de que:

“Baba Yaga é uma celebrada feiticeira no folclore russo.


Voando pelo ar num gigantesco morteiro e usando um enorme
pilão para abrir caminho pela floresta, ela aparece em dezenas
de contos de fada russos, inspirando medo e horror por onde
quer que passe. Sua casa, testemunho de sua natureza
indomável, é uma casa dos horrores do ponto de vista
arquitetônico, construída com caveiras e ossos de suas vítimas.
É uma bruxa tão assustadora como qualquer outra dos irmãos
Grimm (...) ela é mais do que um simples demônio que se
alimenta de vítimas indefesas. Ela é uma grande mãe – terra,
que tem domínio sobre o universo (...) dá conselhos, que tira do
seu estoque de conhecimentos (...) Uma bruxa que dá conselhos
úteis não pode ser de todo má – especialmente porque bruxas
dos contos de fada não costumam ser lembradas por sua
natureza humanitária. A rainha em Branca de Neve não diz à
princesa como deve viver sua vida, nem dá conselhos sobre
etiqueta. A bruxa em João e Maria não ensina boas maneiras
às crianças. Está ocupada demais em preparar o fogão e
engordar João. As bruxas dos contos de fada não têm a função
de educar as crianças da história. Baba Yaga é uma excepção.
Embora seja diabólica, tem virtudes redentoras.
A natureza do mundo é tal que as distinções violentas entre
bem e mal em geral são ilusórias. O bem muitas vezes está
intimamente ligado ao mal, e isso as crianças só aprendem
quando crescem e são obrigadas a enfrentar os inevitáveis
dilemas morais da vida. Ao apresentar uma bruxa que é ao
mesmo tempo boa e má, Vasalisa, a Bela comunica aos jovens
62

leitores que as questões morais da vida não são tão simples e


diretas como parecem ser.”39

Baba Yaga possui em vez de vassoura, como é comum , um caldeirão voador.


Embora seja horrorosa e reconhecida pelo canibalismo, traz algo da sabedoria dos mais velhos
e ao colocar Vasalisa numa situação limite obriga-lhe a sentir-se protegida pela “mãe boa”,
internalizada por meio da bonequinha. O caldeirão é um instrumento de simbologia muito
antiga e que diz respeito aos rituais de iniciação. Nele os alimentos são cozidos e se
transformam. Pode significar abundância e conhecimento. Portanto, estamos diante de uma
personagem capaz de representar ao máximo o seu antagonismo e dualidade. Seu instrumento
de trabalho pode servir tanto para satisfazer seus impulsos de destruição, como para iniciar
um processo de transformação.

Assim, induzimos que a Baba Yaga ao aparecer nesse horrendo cenário coloca o
leitor infantil diante dos seus próprios horrores que para serem transmutados necessitam ser
olhados e percebidos. Essa é uma bruxa portadora da sabedoria e conhecimento, por isso ela
tem a chama, a luz que Vasalisa procura.

Quando a menina chega à choupana da bruxa, logo é vista pela Baba Yaga que
pergunta aos gritos e com uma voz cacarejante quem está do lado de fora. Vasalisa não foge,
nem tampouco se esconde. Ao contrário disso, mesmo com muito medo, responde
enfrentando o desafio. Quando anuncia para a bruxa que está ali porque a sua madrasta
precisa da chama e mandou-lhe à floresta buscá-la, então parece não existir nenhuma
surpresa. Baba Yaga já esperava por isso e diz que já conhece bem a madrasta, em tom de
certo desprezo. Quem é a madrasta dos contos de fadas, senão a “mãe má” que, também
precisa ser internalizada? A criança precisa interiorizar os aspectos positivos, mas
compreender que a “mãe” real, pode por vezes conter aspectos negativos.

Assim, logo os desafios são postos para a pequena, pois somente depois de ter
feito todo o trabalho é que poderá levar a chama. Terá que varrer a casa, cortar a lenha,
ordenhar a vaca e limpar as ervas daninhas, ou seja, somente quando estiver com a casa
arrumada, limpa e purificada será capaz de partir.

39
CASHDAN, Sheldon. Os 7 pecados capitais nos contos de fadas: Como os contos de fadas influenciam
nossas vidas. Rio de Janeiro: Campus, 2000, pp. 145, 146.
63

Os desafios propostos pela bruxa serão o seu passaporte para que, finalmente,
reconheça e internalize a “mãe boa”, que cuida, escuta e alimenta. Então, a caminhada
começa mesmo a partir daí, pois se não conseguir realizar as provas com sucesso, Vasalisa
será devorada pela pavorosa mulher. Tal qual o bebê se sente, segundo Klein, ao se deparar
com seus impulsos destrutivos , quando fantasia que por ter sido mau com o “seio bom” que
lhe dá alimento, então será devorado. Assim, entra no processo de ansiedade persecutória,
pois não conseguiu, ainda, internalizar o “seio bom” e gratificador.

Esse é um conto que nos coloca diante de uma fase da infância que será
reatualizada durante a vida inteira, por isso necessita da superação total para que seja vivida
posteriormente com segurança. A narrativa mostrará o caminho a ser vivido sem ser óbvio,
banal ou direto. Será pela metáfora que Vasalisa se universalizará em cada criança.

Diante do desafio, a menina se sente desesperada. Como fazer todos aqueles


trabalhos se ela é tão pequenina? Depois que a bruxa foi embora , ela chorou e conversou com
a sua bonequinha que logo tratou de acalmá-la dizendo:

“Não se preocupe, Vasalisa (...) vai conseguir cumprir todas as


tarefas. Eu vou ajudar você. – Vasalisa deu de comer à
bonequinha, exatamente como sua mãe tinha lhe dito para
fazer, e depois as duas varreram o chão e cortaram a madeira
para a lareira, ordenharam a vaca e limparam as ervas
daninhas da horta. Então, Vasalisa deitou e adormeceu.”40

Mais uma vez, a bonequinha junta-se à menina numa comprovação de que a parte
boa está ali, pronta somente aguardando ser chamada. Existe aí, uma verdadeira “conexão
simbólica” entre a mãe ausente que é presentificada pela bonequinha numa relação mágica e
lúdica, na qual mais do que fantasmagoria, a mãe é um bem maior introjetado para que a
menina sinta-se segura , acompanhada e capaz de vencer o desafio. Por isso, na exaustão
causada pelo trabalho, mas também de certa maneira, confiante na ajuda, Vasalisa entrega-se
ao sono e quando acorda fica assustada, pois pensa não ter concluído a tarefa. Diante da Baba
Yaga furiosa por ver que todo o trabalho estava feito e não mais teria o seu jantar, sentiu-se

40
Vasalisa: a sábia. In: Anexo 1, p. 263.
64

aliviada. Mas, a caminhada não acaba por aí , logo a bruxa exige mais uma tarefa. Empurra
Vasalisa para o quintal e mostra um grande monte de terra dizendo:

“Aquele monte de terra está cheio de sementes de papoulas,


milhares e milhares de sementes – disse a Vasalisa – Quero que
você procure neste monte inteiro e cate cada uma das sementes
de papoula, todas elas. Amanhã de manhã, quero encontrar
duas pilhas aqui fora: uma pilha só de sementes e uma só de
terra. Se não conseguir terminar esta tarefa até a hora em que
eu acordar, você vai ser o meu café da manhã. – E Baba Yaga
foi para cama.”41

Estamos agora diante do último e mais difícil desafio. Separar as sementes de


papoula da terra, é uma tarefa das mais difíceis e, muito freqüentemente, as heroínas dos
contos de fadas realizam tarefas como catar, separar, selecionar para poderem se livrar dos
castigos impostos pelos antagonistas. Em geral, são auxiliados por animais como no caso da
Cinderela que os pássaros a ajudam a separar lentilhas, costurar, enfim fazer todo o trabalho.
Ora, para que a criança consiga a integração do seu eu é necessário que seja capaz de separar
suas pulsões destruidoras e negativas das boas e positivas. Somente quando consegue não se
misturar aos seus objetos maus, poderá transformá-los em algo positivo e gratificador. Assim,
a criança que se sente infeliz por acreditar na fantasia de que tem o poder de matar seu objeto
de amor, pode identificar-se com a personagem que para ser feliz precisa ser capaz de realizar
uma tarefa tão difícil como separar as sementes de papoula de um enorme monte de terra.

Tudo indica que Vasalisa está próxima da sua redenção, pois se, atentarmos para a
significação simbólica da papoula constataremos que essa flor representa sono, esquecimento,
morte e renascimento e a terra um local onde se operam transmutações, tais como: nascer,
morrer, reaparecer. No texto tudo é direção e sentido, portanto o que se metaforiza nessa
passagem é que, se a menina for capaz de superar essa prova, então renascerá de outra forma
para viver o possível da sua integridade psíquica, emocional e afetiva.

41
Idem, ibidem, p. 263.
65

Aliás, estamos diante de um conto que traz na sua temática mais do que a busca
por um final feliz, pois é como se cada etapa vencida apontasse para uma nova possibilidade
de crescimento e maturidade.

Quando a bruxa diz o que Vasalisa terá de fazer para não ser o seu café da manhã,
ela sente-se perdida, pois não está totalmente segura de que, sozinha, será capaz de viver com
segurança, equilíbrio e força. Chora muito até que, novamente, retira a bonequinha do bolso.
Ainda, não está segura de que a “mãe boa” estará sempre presente mesmo tendo sido ajudada
em outras ocasiões. Novamente, a bonequinha se coloca à disposição da menina e a narrativa
alcança seu ápice, tornando-se mais do que um momento de tensão, pois é mesmo o
acontecimento que dará origem ao momento final da história, quando Vasalisa diante de uma
tarefa tão difícil se sente perdida e acredita que não vai conseguir. Muito cansada, adormece e
ao lembrar da tarefa que pensa não ter realizado chora bastante, até que a bruxa entra
perguntando qual o seu segredo. A menina compreende que mais uma vez a bonequinha
salvou-a. Entretanto, Baba Yaga furiosa decide que vai comer a menina assim mesmo e
começa a seduzi-la para entrar em casa por meio de elogios, dizendo que para ela ser tão
pequenina é muito esperta e então lhe pergunta qual é o segredo, ao que Vasalisa responde
“Com a benção de minha mãe” (anexo n. 1, p. 263). Ora, quando Baba Yaga escuta essa
afirmação grita:

- Benção? – Benção? Não queremos nenhuma benção aqui,


nesta casa. Saia já! Leve sua chama e vá embora!42

Temos então, uma pequena garota pronta para ressurgir da dor de ter perdido a
mãe e da tristeza de ver seu pai casado com uma madrasta má, da qual só recebe inveja e
desprezo. Entretanto, é preciso que Vasalisa realize o verdadeiro luto experimenta a ”mãe
boa” e doadora. No momento em que consegue, com a ajuda da boneca, ultrapassar a mais
difícil de todas as provas e dormir o seu último sono como uma pobre e ameaçada menina,
renasce como as papoulas em terra fértil.

42
Idem, ibidem, p. 263.
66

Na realidade, a menina se salva porque guarda dentro de si, o “seio bom “ e


doador, de onde retira todo o amor para superar a solidão e a ausência da mãe. Após ter sido
colocada diante das duras provas e enfrentado a sua floresta interior, pronuncia a palavra
mágica, aquela que Baba Yaga não consegue enfrentar ou ouvir porque fala do amor, da
generosidade e do bem maior que uma mãe pode deixar para o filho, principalmente para
aquele que parte para viver sua individuação.

Vasalisa diz à bruxa que a sua sabedoria vem da benção de sua mãe, sendo
portanto uma filha abençoada não sofrerá derrota capaz de aprisioná-la ou aniquilá-la. Pois ser
abençoado significa encher-se de força e vigor, tal como se pode confirmar no dicionário de
símbolos:

“A benção significa uma transferência de forças. Abençoar


quer dizer, na realidade, santificar, tornar santo pela palavra,
i.e., aproximar do santo, que constitui a mais elevada forma de
energia cósmica.”43

Logo, não é difícil de compreender porque essa é a palavra que liberta Vasalisa do
seu triste destino, restituindo-a de força para prosseguir a caminhada até cumprir a tarefa que
lhe fora conferida. Para tornar-se alguém com poderes de enfrentar todo o mau, ela precisa
levar a chama para a madrasta e suas irmãs postiças E assim, prossegue seu caminho
fortalecida da energia cósmica que envolve os abençoados e pela ordem da bruxa que a manda
sair correndo, após ter-lhe dado um galho com uma caveira na ponta, a qual tinha os olhos
iluminados pela chama. Assim, com ajuda da bonequinha, depois de um dia inteiro e uma
noite inteira, conseguiu chegar a choupana de sua família.

Vasalisa estava de volta da intensa caminhada que realizou para descobrir-se forte
e compreender que o bem maior deixado pela sua mãe estava com ela muito bem guardado e
que a partir dali poderia enfrentar a maldade das três mulheres, que por sinal a aguardavam
ansiosas e com muita raiva batiam os pés, além de perguntarem zangadas e impacientes o
motivo da demora.

43
CHEVALIER, Jean., GHEERBRANT, Alain. et al. Op cit., p.129.
67

Quando a menina se preparava para responder, o inusitado desfecho acontece,


pois:

“(...) de repente, o galho que tinha trazido da casa de Baba


Yaga saltou fora de sua mão e a caveira em sua ponta começou
a girar, e a girar, até que os olhos começaram a lançar chamas
sobre a madrasta e as irmãs postiças e queimaram as três
completamente, de maneira que sobraram apenas três
montinhos de cinzas no chão. Vasalisa enterrou a caveira no
jardim e uma bela roseira de flores vermelhas brotou na terra,
bem naquele lugar. Naquele mesmo dia o pai de Vasalisa voltou
para casa do mercado de fazendeiros. Ela contou ao pai tudo
que tinha acontecido e ele ficou muito orgulhoso dela. E depois
daquele dia, Vasalisa, o pai e a minúscula bonequinha viveram
juntos com paz e felicidade.”44

Chegamos ao “final feliz” tão freqüente nos contos de fadas e embora a madrasta
e suas filhas tenham sido destruídas, o que é pouco comum nesse tipo de narrativa, podemos
nos certificar da vitória da menina. É interessante perceber que a caveira iluminada pela
chama foi entregue pela bruxa, além de ter sido o instrumento para a destruição das três
opositoras. Portanto, Baba Yaga mostra mais uma vez o seu caráter de redentora, ou mesmo
de mediadora para que Vasalisa desse por conta da sua capacidade de amor.

No entanto, para que a nossa heroína seja capaz de superar o sentimento de luto e
perda necessita ir ao mais fundo das suas emoções, é preciso sofrer a dor do abandono e da
suposta culpa para então, ressurgir para uma vida compreendendo que o mundo interior é
fonte inesgotável de todo bem e que nele também nos deparamos com as forças do mau,
representadas pelos impulsos destruidores.

Fica claro, durante toda a narrativa, que a menina somente suportou e superou
todas as provas porque possuía um bem maior e espiritual simbolizado pelo objeto
transacional, representante da mãe ausente. O percurso que o símbolo faz conduz ao

44
Idem, ibidem, p. 263.
68

entendimento afetivo, por isso tem o poder de penetrar nas zonas mais secretas do
inconsciente, sem que se constitua num dano para a criança que lê – escuta a história, pois a
apreensão se dá pelo efeito da metáfora que ao desdobrar-se em possibilidade oferece algo
como “olhar –se na dor-amor do outro”.

Na última parte da narrativa aparecem vários aspectos simbólicos que convergem


para todas as conjecturas realizadas na nossa análise e que de certa forma são surpreendentes,
pois ao primeiro olhar pode conduzir para uma leitura crítica bastante equivocada, o que
provavelmente destituiria o conto do seu significado maior que é de produzir um sentido
restaurador para aquele que o interpreta. Aí está o grande valor da literatura: arrebatar –
surpreender e propor novos caminhos.

Não é por acaso que no local onde a caveira é enterrada nasça uma linda roseira
de rosas vermelhas. Como a caveira foi a portadora da luz e o instrumento de destruição do
mau, além do que , como já mencionamos, possui um simbolismo de transformação e vitória,
então dela surge a roseira para fazer parte da cena familiar de Vasalisa não somente porque a
rosa pode significar beleza, mas principalmente porque tem o sentido de:

“(...) rosa cósmica Triparasundari, referência à mãe divina.


Designa uma perfeição acabada, uma realização sem defeito.
Como se verá, ela simboliza a taça de vida, a alma, o coração, o
amor(...) É preciso, diz Mircea Eliade, que a vida humana se
consuma completamente, para esgotar todas as possibilidades
de criação ou de manifestação; se vem a ser interrompida
bruscamente, por uma morte violenta, tenta prolongar-se sob
uma outra forma: planta, flor, fruta (...) A roseira, é a imagem
do regenerado, assim como o orvalho é o símbolo da
regeneração.”45

É interessante observar que quando a roseira brotou, o pai entrou em cena


novamente, como que chamado para compor a relação triangular , denominada por Freud nos
seus estudos sobre a sexualidade infantil, de Metáfora Paterna, ou seja o lugar da lei, do

45
CHEVALIER, Jean., GHEERBRANT, Alain. et. al. Op. cit., pp. 788, 789.
69

interdito. O retorno do pai pode ser interpretado como que uma voz interna dizendo: -
“Mesmo na minha ausência você foi capaz de proteger-se e superar os perigos externos.”

Nos contos de fadas não é freqüente a presença de um pai interventor. Em geral, é


uma figura sem muita representatividade, quase passiva e que aparece após o herói ou heroína
superar todas as provas. São muitas as explicações para tal fato, entretanto deve ficar claro
que o pai entra em cena na vida da criança a partir da situação simbólica, na qual a mãe
apresenta o Pai à criança, significado de lei, interdito, falus.
Assim, conjecturamos que para que o personagem supere as provas é necessário
ser capaz de romper seus próprios limites, aceitando a situação de conflito e dor, imbuído de
força e determinação. Os sentimentos e características são internalizados à medida que são
colocados à prova. Assim, um pai excessivamente protetor pode atrapalhar o desenvolvimento
da criança, pois para que uma criança cresça saudável é importante que seja estimulada para
se arriscar e adquirir auto-confiança. O desafio propõe limites.
Sendo assim, o pai de Vasalisa ressurge quando ela é capaz de “voltar para casa
portando a luz” e enterrar a caveira, símbolo da regeneração e transformação. Além disso, a
menina foi capaz de enfrentar o medo, o frio, a noite e a Baba Yaga, pois em nenhum
momento ela recuou ou fugiu do seu destino, tal como afirma Cashdan na sua já referida
análise desse conto:

“Ela sabia que teria de usar seus próprios recursos (...) para
provar que podia caminhar com os próprios pés. E ela o faz, o
que significa que internalizou completamente a boa mãe e a
levou para dentro de si. E, embora Vasilisa não precise mais de
um objeto mágico para sustentá-la, ainda assim conserva a
boneca, carregando o querido objeto em seu bolso “até o fim de
seus dias”. Nunca faz mal cercar uma aposta.”46

Sendo a bonequinha representante simbólico da mãe morta, logo concluímos que


a situação edipiana de Vasalisa está resolvida, pois a madrasta ocupa o lugar da mãe, por
conseguinte interdita uma possível situação de incesto na fantasia da menina, que perdendo a
mãe tem o pai só para ela. Após o desaparecimento da madrasta, a mãe internalizada servirá
de interdito, sendo a bonequinha conservada como lembrança, presente da mãe ausente, estará

46
CASHDAN, Sheldon. Op. cit., p.149
70

no “lugar” da mãe, ocupando um importante lugar na relação familiar. Observem que o conto
diz que os três foram “felizes para sempre”: Vasalisa, o pai e a bonequinha, representante da
mãe.
Mesmo sendo o brinquedo um objeto transacional, o fato da menina tê-la
preservado é sinal de que a sua presença, ainda, seja necessária, pois a mãe boa internalizada
poderia dispensar a presença da boneca, entretanto esse objeto ocupa um lugar simbólico,
também na relação pai – criança e por isso não desaparece.

Pontuamos que os objetos transacionais têm uma importância enorme na vida de


muitas crianças e adultos, também. Mesmo quando não mais existem permanecem na
memória e no registro afetivo do sujeito, é mesmo como nos afirma o autor acima referido,
relembrando o psiquiatra Charles Horton, ao dizer no seu livro intitulado Solace (Alívio) que:

“(...) o conceito de objeto transicional deveria ser ampliado, de


modo a incluir “objetos” intangíveis, tais como lugares
queridos (um quarto de brincadeiras, o porão dos fundos, um
armário secreto, fragmentos de poemas, jingles familiares e até
mesmo trabalhos de arte, (...) qualquer coisa capaz de provocar
uma “conexão simbólica com uma presença permanente e
predominantemente materna” ajuda a promover a “relação
transicional. (...) os objetos transicionais não habitam somente
o mundo da infância, mas também o dos adultos.”47

Nos vemos seduzidos pelas afirmações do autor, pois quantos de nós adultos não
revivemos cenas da nossa infância e tal fato emociona, fazendo sentir o cheiro de uma fruta
ou um trecho de uma história contada ao adormecer, ou mesmo uma cena familiar na qual
estão todos reunidos para uma refeição. Enfim, são tantos os pedaços de lembranças e afetos
que um conto de fadas pode suscitar que não podemos deixar de perceber tal “conexão
simbólica”.
No caso de Vasalisa, a sábia, entendemos que o medo da perda de um dos pais é
um sentimento comum durante um determinado período da infância. Sabe-se até que muitas
crianças podem se sentir culpadas da morte dos pais pelo fato de um dia, depois de uma raiva
qualquer, ter desejado isso. Afinal, qual a criança que um dia não desejou se vingar dos pais ?

47
Idem, ibidem, pp. 149, 150.
71

O fato é que o medo do abandono é muito freqüente entre as crianças pequenas,


então a qualquer ameaça de que isso se concretize, pode aparecer o objeto transicional como
elemento de vínculo e elação com o perdido, ainda que isso seja fantasia, pois o “fantasma”
faz parte do real, sentido pelo sujeito. Assim:

“Seja enfiados numa meia, guardados numa gaveta ou


encontrados num conto de fada, os objetos transicionais
possuem o mágico poder de dar amor. Eles são a ponte para
cruzar o intervalo psicológico entre a mãe enquanto objeto
externo e a mãe enquanto presença interior, que atua como
proteção contra a solidão e os sentimentos de vazio. Os objetos
transicionais são constantes lembretes de que não estamos
sozinhos. Talvez hoje você não tenha um ursinho de pelúcia
para abraçar, ou algum outro brinquedo para consolá-lo; mas
não é difícil recordar os tempos em que brinquedos especiais
fizeram a diferença. Os contos de fada remetem a esses tempos
e nos lembram que os objetos mágicos presentes nessas
histórias são também os brinquedos encantados de nossa
infância.”48

Vasalisa: a sábia é um conto que tem esse poder de emocionar porque sua força
simbólica nos fala diretamente ali, no espaço onde já foi dor. Aí, uma ausência se faz. A
metáfora instituída a partir da relação menina – boneca nos reconduz para o espaço doloroso
ocupado pelo perdido.

O conto também nos coloca diante da dor de perder, porém mais do que o
sofrimento provocado pela ausência do Outro, existe um espaço vacante ocupado por uma
dor-melancolia e tristeza do sentir-se incapaz de conduzir a vida sem a preciosa imagem da
proteção e salvaguarda. Ora, a imagem da mãe está quase sempre associada à presença
onipotente de que nada jamais faltará, embora essa seja uma imagem muito próxima também,
da dor-furo que nos separa do paraíso perdido.

48
Idem, ibidem, pp.153, 154.
72

Isso nos faz lembrar a dor do nascimento, ruptura do laço simbiótico que liga o
bebê a sua mãe, fonte inesgotável de alimento e prazer. No entanto, para que a criança se sinta
encorajada a viver e crescer é necessário que a ausência da mãe esteja presente na relação,
constituindo-se em dor-simbolizada naquilo que Freud vai chamar de “das-ding”, jogo da
presença-ausência da imagem da mãe.

A criança ao fantasiar o abandono sente mais do que a dor da perda, sobretudo


porque:

“(...) a dor não é dor de perder, mas dor do caos das pulsões
enlouquecidas (...) A dor psíquica é uma lesão do laço íntimo
com o outro, uma dissociação brutal daquilo que é
naturalmente chamado a viver (...)A dor está sempre ligada à
subitaneidade de uma ruptura, a travessia súbita de um limite,
mais-além do qual o sistema psíquico é subvertido sem ser
desestruturado.”49

Assim, certamente a criança ao tomar contato com esse conto poderá mergulhar
na dor da perda, mas também transitar para a restauração de um eu enfraquecido pelo medo da
culpa ou do abandono. As rosas vermelhas que brotam no final do conto, não são somente um
presente para Vasalisa, mas para todos que no conto podem se confortar ao entrar em contato
com a sua “mãe boa” internalizada, metáfora de amor.

O confronto com a dor alheia nos faz reatualizar as nossas próprias dores.
Algumas caladas, silenciosas e permanentes. Outras, na necessidade de serem faladas,
discutidas, refletidas para que dali possam brotar rosas. São dessas que Vasalisa nos fala com
sabedoria, nos fazendo adentrar nos guardados do inconsciente.

Deixamos Vasalisa: a sábia apontando para a dor da perda, do abandono e o


possível efeito do conto ao se constituir em estrutura narrativa com imensa força e capacidade
simbólica, possível de efeito restaurador capaz de apaziguar a dor e revelar o amor que
regenera e transforma.

49
NASIO, Juan-David. Op. cit., pp. 22, 25.
73

Na próxima parte, abordaremos outras dores, expressões simbólicas,


representantes da ameaça de castração experimentadas pela criança em fase edipiana. Para tal
propósito, visitaremos um dos contos mais tradicionais da literatura infantil: O Pequeno
Polegar, pois encontramos nessa história a linguagem selvagem das pulsões, destruidoras
somadas às imagens de canibalismo, devoração e desordem das pulsões vitais.

O Pequeno Polegar é mais um conto da literatura infantil conservado pela


tradição oral, transcrito por Charles Perrault no séc. XVII e que traz muitos simbolismos
recorrentes nos contos que tratam de temas como: a esperteza dos menores, o abandono das
crianças pelos pais, aspectos relacionados à fome, à devoração e à mutilação.

A seguir trataremos desses aspectos, analisando as metáforas que nele se


encontram como expressão da dor provocando no leitor infantil o enfrentamento de
sentimentos pouco falados, mas muitas vezes vividos com intensidade, medo e horror pelas
crianças na fase edipiana.
CAPÍTULO 3

“O Pequeno Polegar”: Narrativa do Medo e

Complexo de Castração
74

CAPÍTULO III - O PEQUENO POLEGAR: NARRATIVA DO MEDO E


COMPLEXO DE CASTRAÇÃO

“A literatura, o teatro e o cinema são escolas de vida pra


crianças e adolescentes, onde eles aprendem a se reconhecer a
si mesmos, (...) Escolas de complexidades humanas, onde se
descobrem a multiplicidade interior de cada e as
transformações das personalidades envolvidas na torrente dos
acontecimentos.”50

3.1 - COMPLEXO DE CASTRAÇÃO

Propomos uma análise do Pequeno Polegar que avalia os diversos sentimentos


dolorosos veiculados pelo conto e que tem a ver, não somente, com a dor da perda e da
separação, mas também com a dor oriunda de um dano no corpo, ainda que esse corpo seja
visto do ponto de vista simbólico.

Temos um conto de fada, a princípio conhecido pela esperteza do seu protagonista


que mesmo sendo tão pequeno como o dedo polegar, consegue superar todas as provas
impostas pelo destino, porque a sua força está na capacidade de transformar o impossível em
uma conquista real.

Essa é uma história que, como quase todos os contos de fadas, possui inúmeras
versões, entretanto a nossa análise repousa no texto de Perrault, por acreditarmos que se
aproxime mais da tradição oral, sendo portanto, possivelmente, mais antiga do que as outras
existentes.

Comentar sobre a dor e a sua relação com os contos para crianças é sempre muito
polêmico. Primeiro, de uma maneira geral, a infância é tida como o paraíso perdido, lugar

50
MORIN, Edgar. Meus demônios. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.
75

desabitado das maldades humanas, espaço da inocência. Assim, para muitas pessoas, contos
que falam sobre as dores e as perversões de maneira mais contundente não servem para as
crianças.

Mesmo O Pequeno Polegar sendo, aparentemente, uma história inocente, até


porque na maioria das vezes, se suprime dela o momento mais repugnante e tenso, deixando
apenas os momentos mais amenos, quando o protagonista dá provas da sua esperteza, existe
nessa narrativa algo de extrema importância para a nossa análise e que se refere à dor da
castração, ou seja, momento do medo fantasiado em mutilação do órgão real.

No entanto, ao se omitir um pedaço da história que do ponto de vista metafórico é


de suma importância, também se realiza uma mutilação dos aspectos que servem de ponto
nevrálgico para a compreensão afetiva dos conteúdos surgidos a partir dali. De maneira geral,
a arte tem o poder de fazer emergir uma consciência nova e transformada, ainda que para
tanto o leitor necessite “sofrer” a dor da mutilação, do abandono ou do medo e a criança não
deve ser isentada do valor da metáfora, ainda que isso pese sobre a sua pressuposta inocência.

Buscaremos nessa parte da nossa exposição, tratar dos conflitos edipianos


representados nos contos de fadas, enfocando nossas suposições nas dificuldades vividas pelo
Pequeno Polegar, mas sobretudo iluminando nossa análise a partir dos estudos de Bruno
Bettelheim. Embora seja ele alvo de muitas críticas, não podemos negar a sua imensa
contribuição para a interpretação dos contos infantis e suas implicações psicológicas,
possibilitando-nos sobretudo, olhar para a literatura e sua importância na formação de
crianças, tanto naquilo que diz respeito à construção de valores, como também às experiências
afetivas vividas no período da infância.

Temos aqui uma história que trata muito diretamente dos conflitos edipianos pelos
quais todas as crianças passam num determinado período da vida. Talvez, essa seja a fase da
vida da criança vivida com mais dor, pois as questões edipianas surgem de conflitos internos
vividos na infância, os quais são muito difíceis de aceitação tanto pela criança, como pelos
pais.
A criança em fase edipiana tem uma predisposição natural ao sentimento de culpa,
porque imagina que “desejar” mamãe ou papai é uma coisa muito feia pois, significa estar
traindo alguém que se ama muito. Além disso, a criança fantasia que o pai ou mãe traídos
desconfiem desse sentimento e descubra que, secretamente, ela trama para tomar o seu lugar
76

na relação com o outro desejado. Assim, se a trama é, em fantasia, descoberta, então a pessoa
traída pode tramar e vingar-se daquele que deseja o seu lugar.

Os conflitos edipianos, também dão origem ao medo pela ameaça de castração.


Tramar contra os pais pode implicar em severos castigos que vão do abandono à mutilação, o
que provoca uma profusão de sentimentos antagônicos dos quais para se sair inteiro é
necessário ultrapassar provas e superar muitos obstáculos. Tal qual como acontece no conto
de fada, a criança que lê sua própria dor no conto pode pela sublimação enfrentar seus medos
e conquistar uma nova consciência a respeito de si mesma e seus sentimentos “perversos”,
buscando assim um nível mais harmonioso da sua integridade psicológica, pois:

“Os primeiros passos para adquirir esta personalidade bem


integrada são dados quando a criança começa a lutar contra
suas ligações profundas e ambivalentes com seus pais – isto é,
seus conflitos edipianos. Também com respeito a esses, os
contos de fadas ajudam a criança a compreender melhor a
natureza de sua situação, oferecem idéias que lhe dão coragem
de lutar contra suas dificuldades e fortalecem as esperanças de
uma resolução bem sucedida das mesmas.”51

A criança em contato com os conflitos edipianos sugeridos pelo conto de fadas


consegue identificar-se com o que está aí, representado pelas personagens, e sente-se
encorajada a ultrapassar todas as provas para conquistar segurança e amor dos pais. Dessa
maneira, acreditamos que o Polegar tenha o poder de simbolizar para a criança que não
somente ela sofre e angustia-se com a situação edipiana, mas todas as crianças um dia
quiseram ter o amor de um dos pais apenas para si.

Por mais que isso pareça distante do sujeito adulto, basta lembrar da criança que
fomos e de como nos relacionávamos com os nossos pais que encontraremos, ainda que de
forma velada, qualquer resquício que seja daquilo que um dia foi para nós um verdadeiro
tormento e angústia quando nos sentíamos preteridos, abandonados ou castigados por desejar
o pai ou a mãe somente para nós.

51
BETTELHEIM, Bruno. Op. cit., p. 139.
77

O Pequeno Polegar pode nos trazer de volta um pouco desse pedaço de vida, que
sem dúvida, marcou para sempre um estágio fundamental da nossa organização psíquica, mas
também poderá reatualizar experiências de fracasso e desconfiança de que em nós, também
existe uma dose de maldade com a qual devemos nos apaziguar e enfrentar para que enfim, se
possa compreender melhor quem somos. Da mesma maneira, acontece com a criança que
busca identificar-se com um dos pais e obter um grau maior de maturidade humana.

Essa é uma história com o início bastante comum aos contos populares: um casal
de lenhadores muito pobres tinham muitos filhos e muita dificuldade para alimentá-los. Até
aí, temos a pobreza material como elemento desencadeador da narrativa. Entretanto, as
diferenças começam a aparecer a partir do momento em que temos um pobre lenhador, pai de
sete filhos homens, o mais velho com dez anos e o mais novo com sete, prova do pleno
exercício sexual dos pais, como é expresso no conto, uma mãe que era expedita nessa
função e nunca tinha menos de dois filhos de cada vez.52

São sete meninos e todos ainda sem condição de ganhar a vida, ou seja, o próprio
sustento, que é a mesma coisa de dizer que, ainda, precisam dos cuidados maternos, mesmo os
mais básicos, como a alimentação.

Além disso, os pais se sentiam muito incomodados com o mais novo, pois era
excessivamente miúdo, tamanho de um dedo polegar, não falava nenhuma palavra, o que os
fazia crer que fosse uma criança boba e sem grande inteligência. Assim, tudo que de errado
acontecia, logo o Pequeno Polegar era considerado culpado, era mesmo o bode expiatório da
casa.

A história conta que na verdade ele era o mais esperto de todos e se não falava,
tinha uma grande capacidade para ouvir. Logo, era um sábio. Não é isso que se comenta
popularmente das pessoas que falam pouco? Os sábios ouvem muito e por isso, são capazes
de solucionar conflitos e criar saídas para os problemas de todos.

Contudo, ser um sábio não é a intenção do Polegar. Nesse aspecto, o valor dessa
narrativa reside no fato de apontar um sentimento bastante comum entre os filhos mais novos
de uma família, que consiste em considerar-se inferior aos demais e até levantar suspeitas de
que se foi adotado.

52
O Pequeno Polegar. In: Anexo 2, p. 268.
78

Esse sentimento de inferioridade também provoca a sensação de que se é


injustiçado e abandonado por todos os membros da família. Imaginemos a situação de
angústia vivida por uma criança, que além de seus conflitos edipianos se sente rejeitada pelas
pessoas da família. Independentemente de ser o membro mais novo da mesma,

“(...) todas as crianças algumas vezes se encaram como o


homem inferior da família, no conto de fadas isso é sugerido
pelo fato dele ser o mais novo ou o menos considerado, ou as
duas coisas (...).”53

Essa é exatamente a situação do nosso pequeno herói. É o menos considerado e é ,


também, o mais novo da família. Por isso, é um personagem com a qual tantos leitores
infantis se identificam profundamente. São inúmeros os casos de crianças mais novas
perturbadas pela desconfiança de não serem queridas porque são menores, chegaram depois e
são mais simplórias. Por isso, o contato com essa narrativa, de certa forma, as gratifica.
Vivendo o drama de Polegar, a criança pensa não estar sozinha, pois existe no mundo alguém
igual a ela : lutando para crescer e ser feliz.

Nesse início da história já temos inúmeros elementos que merecem uma atenção
mais precisa, pois reconhecemos o valor simbólico do número sete, como também não é por
acaso que todos os filhos do casal são do sexo masculino, estão em idade de receber os
cuidados maternos e, precisamente, o herói tem sete anos, não fala e é, pelos demais,
considerado um bobo.

Primeiramente, vejamos a conotação simbólica do sete, considerado um dos


números de maior expressão simbólica, segundo o Dicionário de Símbolos ele representa a
perfeição, a vida eterna, mudança e transformação, ciclo concluído, totalidade, feminino e
masculino, fecundidade.

O número sete é uma das representações mais completas do universo e da


totalidade, como também da conclusão e passagem de um ciclo a outro. Nesse conto, ele
aparece em mais de um momento e encerra o significado de conclusão de um ciclo.
Inicialmente, com uma conotação evidente de fecundidade, como também de unidade, pois

53
Idem, ibidem, p. 134.
79

mesmo sendo sete irmãos eles representam uma totalidade, até do ponto de vista do gênero,
pois sete contém o feminino e o masculino.

O início está marcado pela simbologia do número sete, que anuncia a conclusão
de um ciclo e o início de outro. Travessia. Mas, para conseguir atravessar é preciso superar
obstáculos, dominar situações, controlar impulsos, construir possibilidades, obter confiança
em si, concluir etapas, enfim lutar e crescer. Quando se conclui um ciclo, então surge outro,
portanto Polegar tem um longo caminho a ser seguido até obter um maior crescimento
interior.
Assim, caminhamos com vistas para o fato de que O Pequeno Polegar é muito
mais do que uma história que fala da esperteza dos menores e menos favorecidos. Apontando
para elementos diversos, é possível conjecturar que temos aí uma palavra não-dita que encerra
uma questão de ordem universal referente à totalidade espiritual e humana.
Em geral, os irmãos mais novos são sempre alvo de brincadeiras para os mais
velhos e no caso do Polegar esse fato se acentua por ele ser tão pequenino e não falar. Ora,
sabemos que a fala nos serve como instrumento de poder, tanto que a palavra criança, infante,
tem sua origem no latim e sua etimologia significa aquele que não fala. Ora, de certa maneira
a incapacidade de voz conduz a uma incapacidade de escolha como também reconhecimento
de poder.
Portanto, existe um dito não revelado sobre a suposta condição de inferioridade
desse personagem que leva a pensar que o espaço da voz ausente é ocupado pela esperteza e
pelo desejo de reconhecimento. É comum que o filho mais novo de uma família sinta
necessidade de auto-afirmação, de conquistar um espaço diferenciado que lhes garanta o olhar
dos pais.
Numa família de pobres lenhadores com sete filhos, não é nada difícil que o mais
novo, principalmente, sendo demasiadamente pequeno e sem fala, busque o aplauso dos
demais e o reconhecimento dos pais, que é o mesmo que recompensa e afeto.
Esse também é um conto que fala da fome, da importância da comida para a
sobrevivência e da luta entre o material e o espiritual. Grande parte dos contos surgiu em um
período histórico de muita escassez de alimentos, onde o plantio e a colheita tinham um
simbolismo muito forte por tratarem-se de práticas relacionadas à sobrevivência. Fazem parte
da tradição oral e foram propagados, na maioria das vezes, durante o trabalho da colheita, da
separação dos grãos, como também nas salas de fiar e tecer ou nas lavagens de roupa e
80

círculos de oração, portanto refletiam a dura realidade vivida pelas camadas mais pobres. e
estão estreitamente relacionados ao trabalho e produção.
Contudo, sem esquecer que os contos estão profundamente relacionados às
práticas sociais do trabalho, gostaríamos de enfatizar que desde sempre retratam as
dificuldades pelas quais passamos desde o nascer até o morrer.
Não se deve negar o valor histórico e social, mas também não se pode deixar de
reconhecer que toda e qualquer representação humana tem origem na dimensão interior do
ser, por conseguinte no seu psiquismo e nas suas relações com o Outro que é da ordem do
simbólico.
Por mais que exista nos contos, uma denúncia com relação à pobreza e à miséria
vividas pelas classes desfavorecidas que passavam por muitas privações materiais, as
narrativas trazem conteúdos que atuam no inconsciente, porque refletem uma experiência
sentida na alma. A pobreza e a riqueza não são dados biológicos, mais produções sociais.
Em contrapartida, as lutas internas são de ordem psíquica, pois a origem dos
dramas coletivos inicia-se na doença de seus indivíduos que , antes de serem sujeitos
históricos e sociais, são sujeitos de si em tentativa de preenchimento do vazio, que é de ordem
existencial.
Voltemos ao conto, porque nele encontraremos os elementos para justificar nossas
hipóteses. Sendo Polegar um menino tão pequenino, embora tenha sete anos e não fale, além
de servir como parvo para os irmãos mais velhos, sem dúvida, é uma criança especial porque
é diferente.
A fome tem uma função orgânica de apontar para a necessidade do alimento, sem
o qual não sobrevivemos. Mas, também representa uma demanda interna que é da ordem do
desejo, como nos é colocado por Freud e, posteriormente, pela Melanie Klein em vários de
seus estudos. Polegar, nos possibilita um olhar para as duas fomes: material e espiritual.
Orgânica e psíquica.
Logo, temos anunciada a fome e ausência de alimentos, para em seguida ser
mencionado o abandono das crianças na floresta. Ora, tanto a fome quanto o abandono das
crianças pelos pais são temas bastante recorrentes nos contos de fadas. Não por acaso, essas
narrativas centralizam o enredo num desses temas e podemos citar inúmeros contos que
colocam tais fatores como o eixo da narrativa, tais como: João e Maria (fome e abandono),
Chapeuzinho Vermelho (devoração pelo lobo), Vasalisa: a sábia (devoração pela baba
Yaga), O Junípero (canibalismo), Branca de Neve (abandono), entre outros.
81

Vários autores dedicaram seus estudos à análise da importância desses temas nas
histórias infantis, especialmente nos contos de fada, pois é muito provável que:

“Num conto de fada, para qualquer lado que se olhe tem


alguém tentando conseguir comida – ou tentando
desesperadamente não virar comida. A procura de comida e
tudo o que está associado a ela – fome, privação ou a simples
certeza de que ela existe em quantidade suficiente – formam a
base de algumas das histórias mais interessantes da literatura
dos contos de fada (...) O que é comido, quem é comido e como
é comido são fatores que variam tremendamente de história
para história: os contos de fada têm de tudo – desde pequenas
instâncias de gula até o canibalismo declarado (...) O medo de
ser abandonado é uma idéia aterradora, algo que sempre se
apresenta como ameaça potencial às crianças. Em vez de tentar
negá-la, os contos de fada tornam essa ameaça explícita, o que
força as crianças a enfrentar sua ansiedade com relação ao
abandono.”54

Não por acaso, esses temas surgem, tão freqüentemente , juntos numa mesma
narrativa. Pois, sabemos que a alimentação ocupa um lugar muito especial na vida das
crianças, não apenas pela necessidade orgânica e vital de nutrição, mas também de tudo que
está associado aos primeiros momentos de vida da criança quando chora para saciar a fome e
logo aparece ou não um adulto para suprir essa necessidade que, também, é de ordem afetiva,
pois alimentar-se nos primeiros anos de vida significa estabelecer contato com o Outro.

Da mesma maneira, saciar a fome que dói visceralmente significa, também saciar
o desejo de amor , de contato e de afeto. O bebê que mama sente-se no céu, tal qual João e
Maria quando encontram a casinha de doces. A alimentação está fortemente relacionada às
primeiras experiências de vida. De certa forma, disso também depende as possibilidades de
leitura de mundo.

54
CASHDAN, Sheldon. Op. cit., pp. 85, 86.
82

A criança não atendida na sua demanda de “fome” sente-se abandonada e sozinha.


Segundo Melanie Klein em seu livro Inveja e Gratidão, quando a criança não sacia o seu
desejo de comer, isso é sentido como estar sendo castigada por não corresponder aos desejos
de gratificar a mãe, função simbólica de quem cuida e alimenta. Como não corresponde, então
não é recompensada com o alimento. Mesmo narrativas contemporâneas escritas para o leitor
infantil, trazem o tema do abandono, da fome ou do canibalismo como problemática central.

A fome e o abandono são para a criança fruto de uma experiência correlata, pois
parece que a primeira dá origem a segunda, pelo menos nos primeiros momentos de vida,
quando saciar a fome traz, temporariamente, uma sensação de conforto. Entretanto, a fome
não corresponde apenas à função orgânica, mas também está no domínio da representação,
pois para o bebê saciar a fome é trazer para junto de si o seu objeto amado. Assim, a fome
passa da ordem pulsional ao desejo. De fato, é possível compactuar com a afirmação de que:

“A relação da criança com o seio é uma relação dominada pelo


desejo: ela procura o seio, o consome e o abandona. Diremos
então, que o desmame é uma separação regida pelo significante
fálico, pela simples razão de que o falo é o significante do
desejo. (...) é esse processo de separação que se trata hoje de
precisar melhor, não tratando, desta vez, do seio ou do olhar,
mas da dor (...) é preciso acrescentar a dor à lista dos objetos
pulsionais e conceber o seu destacamento do corpo como uma
separação operada pelo significante fálico. Ora quais são as
condições que permitem pensar e verificar que a dor é fálica,
isto é, que a dor é um objeto consumível pelo desejo? Em
outros termos, como conceber que a dor possa satisfazer um
desejo que é, por essência, sexual?”55

De acordo com a Psicanálise, as primeiras experiências de saciar o desejo


provocado pela fome vão mais tarde pontuar os conflitos edipianos. Talvez, por isso a

55
NASIO, Juan-David. Op. cit., p. 120.
83

temática da fome e do abandono seja tão recorrente nos contos de fadas que tratam com mais
evidência das questões edipianas e, consequentemente, da ameaça de castração.

O fato é que a fase edipiana constitui-se em um dos mais densos e complexos


períodos do desenvolvimento humano, pois parece que aí não somente as vivências de amor e
ódio, experimentadas nos primeiros tempos da vida são especialmente reatualizadas como
também, surgem outras que ameaçam destruir a integridade física e psíquica da criança. Tudo
isso surge acompanhado de angústia, as quais podemos definir como:

“(...) angústia diante da ameaça de perder o ser amado, a


angústia diante da ameaça de perder o órgão amado ( angústia
de castração ), e a angústia diante da ameaça de perder o amor
do nosso amado, à guisa de castigo por um erro real ou
imaginário (...). A angústia é a reação à ameaça da perda de
objeto, isto é, à idéia de que nosso amado possa faltar. Assim, a
angústia é associada à representação consciente daquilo que
pode ser ausência do Outro amado. Em termos lacanianos
diríamos: a angústia surge quando imaginamos a falta; ela é
uma resposta a falta imaginária.”56

Ora, a situação do Polegar é de angústia. Primeiramente, pelo medo de ser


abandonado na floresta como planejam seus pais, perdendo assim o contato com o seu objeto
amado, representado pela mãe; depois a angústia de que seus sentimentos de amor, ciúme e
culpa sejam descobertos pelo pai que furioso poderá castigá-lo severamente e finalmente,
como é culpado poderá perder o amor da sua “amada”.

A cumplicidade dos pais é outro tema que suscita o interesse das crianças, que
provocadas por tal situação colocada pela narrativa, rememoram os primeiros sentimentos
vividos com relação aos pais. Perceber a aproximação dos pais gera sentimentos de ciúme e
inveja, além do medo da exclusão e rejeição por parte deles. Não é tão difícil a criança
acreditar na fantasia de que será abandonada e que a cumplicidade dos pais pode tramar para
que isso aconteça.

56
NASIO, Juan-David. Op. cit. p. 65.
84

O abandono é possivelmente um dos maiores temores do ser humano. A idéia de


que se pode ser abandonado e perder os vínculos afetivos com as pessoas que amamos, gera
ansiedade e tormento. Precisamos de elação e de nos sentirmos acompanhados, incluídos no
contexto familiar e social.

Assim, a ameaça de abandono pode remeter à situação caótica de quando, ainda,


muito pequenos temíamos que nossos pais desaparecessem ou nos abandonassem
repentinamente. Toda criança sentiu- se um dia ameaçada pela possibilidade de ser esquecida
ou abandonada, pois isso faz parte de sua situação de dependência total dos adultos, pelo
menos nos primeiros anos de vida.

Em geral, quando a criança não consegue superar esse medo de forma satisfatória
é muito provável que se torne um adulto indefeso, inseguro e com pouca capacidade de
conviver com seus anseios.

O Pequeno Polegar possui uma mãe que vive em harmonia com seu marido
lenhador e o menino tem conhecimento de que junto com seus irmãos será abandonado na
floresta, mesmo sem ser o desejo dos pais. De qualquer forma, diante da dificuldade, decidem
levar os filhos para a floresta e entregá-los a própria sorte. Aquele seria um ano difícil, de
muita miséria. Assim,

“(…) Uma noite, quando, os meninos já estavam deitados e o


lenhador se achava sentado ao pé do fogo com a mulher, ele lhe
falou, com o coração cheio de dor: “Você está vendo que não
podemos mais alimentar nossos filhos. Não tenho coragem de
vê-los morrer de fome diante dos meus olhos e estou resolvido a
levá-los amanhã à floresta e, deixá-los lá, perdidos, o que não é
difícil de fazer, pois enquanto eles se distraírem catando
gravetos nós fugimos sem que eles percebam.. “Ai, ai!”, gemeu
a lenhadora, “você é capaz, você mesmo, de abandonar os seus
filhos na floresta?”. (…)
Contudo, depois de refletir como seria doloroso ver os filhos
morrerem de fome, ela acabou consentindo, e foi-se deitar
chorando.
85

O Pequeno Polegar ouviu tudo o que eles tinham dito, pois ao


perceber da sua cama que os pais falavam dos problemas da
casa, ele se levantara silenciosamente e se metera sob o banco
do pai, para ouvi-los sem ser visto.”57

Agora, temos no próprio texto de Perrault a confirmação daquilo que apontamos


como fundamentação para nossos argumentos de que O Pequeno Polegar faz parte do
conjunto de contos de fadas que trabalham no inconsciente infantil as questões relacionadas
aos conflitos edipianos. Temos uma criança apavorada pela possibilidade de abandono e ao
mesmo tempo cheia de ciúmes da cumplicidade de seus pais.

É bastante simbólico o fato de o menino ter abandonado sua cama e ter se


colocado sob o banco do pai, o que podemos inferir como o desejo de inversão dos papéis,
pois precisamente o que Polegar quer muito é ocupar o lugar do pai e isso é representado pelo
fato de ele esconde-se “no pai”. Desejar esse lugar é perigoso, principalmente quando o pai já
planeja o afastamento do filho, para ficar sozinho com a mãe. Assim, não é difícil imaginar
que o pai descobrindo seus sentimentos queira se vingar.

O conto deixa claro que o desejo de afastar as crianças é do pai e não da mãe, pois
esta de imediato rejeita a possibilidade de abandonar suas crianças. Contudo, não luta para
encontrar solução e abandona seus pequenos filhos à própria sorte, quando os mesmos ainda
dependem dos cuidados e proteção dos pais.

Para Polegar, é perfeitamente possível que a trama de seus pais surja como castigo
e como ameaça, pois se seu pai é capaz de planejar o seu abandono na floresta, então também
poderá castrá-lo para puni-lo pelos desejos incestuosos com relação à mãe. Claro, tudo isso
faz parte de uma fantasia infantil, mas que tem uma enorme repercussão na vida real da
criança, pois tudo que se vive na imaginação pode aflorar como efeito real, porque estamos
tratando de sentimentos e representações simbólicas. Logo, não importa se o trauma ou evento
de fato aconteceu. O que importa é a marca de um afeto fracassado, principalmente se isso
provocar uma angústia de separação.

57
O Pequeno Polegar. In: Anexo 2, p. 268.
86

A criança em idade edipiana sente o seu desejo como impossível, mas isso não a
impede de fantasiar que um dia ocupará o lugar do “pai” rival, então vivendo uma experiência
discordante entre:

“(...) a impossibilidade do seu desejo e a inacessibilidade do


desejo do Outro que se situa, na etapa fálica, no momento do
Complexo de Édipo, o nascimento da sexualidade. Vamos
mudar os termos, e ao invés de dizer “nascimento da
sexualidade”, digamos aparecimento do falo como significante.
A partir desse desacordo básico entre um desejo insuficiente,
prematuro – o da criança – e o desejo intolerável e impossível
da mãe, surgirá o falo como significante que vem marcar todas
as dissemetrias entre impotência e impossibilidade, ou entre a
prematuridade e o logro imaginário de um Todo Possível.”58

Portanto, aquilo que poderia ser para a criança um paraíso total, no qual o desejo é
satisfeito por meio de uma relação completa, torna-se o caos da dor prevista em qualquer
tentativa fracassada. Assim, a criança edipiana terá que substituir seu desejo de ter para si o
pai ou a mãe, por um significante que represente a falta primeira e que de certa maneira
instaura-se a partir do nascimento, quando ainda a maior luta consiste em manter um elo
simbiótico com a mãe.

No entanto, para que o menino se torne homem e a menina se torne mulher é


necessário que busque identificar-se com o pai do mesmo sexo. O pai, enquanto função
simbólica deve servir como interdito e evitar que a situação inicial de simbiose entre criança e
mãe seja submetida ao corte e daí nasça o sujeito. Dessa forma, surge o falus como
significante do Outro, capaz de ordenar o caos e livrar da culpa. Essa dor, sentida na
separação primeira servirá de base para que a criança sinta-se fortalecida e consiga com
sucesso sublimar seus desejos incestuosos, substituindo-os de maneira saudável.

Na realidade, a criança nessa fase do seu desenvolvimento não deve se acreditar


impotente, pois isso pode comprometer sua auto-estima, mas impossibilitada por não ter

58
NASIO, Juan-David Op. cit., p. 118.
87

acesso ao desejo do Outro, constituído por um dos pais. Então, é provável que Polegar lute
para ser reconhecido como esperto e cheio de qualidades, pois somente assim poderá obter o
respeito da mãe, objeto de amor afastado pelo pai.

Para o menino, ele não é incapaz de despertar na mãe o amor que tanto deseja,
mas é o pai que impossibilita o acesso ao Todo Possível, embora a interdição dê a criança a
possibilidade de vivenciar o falus como significante. Assim, também acontece com a menina,
que para identificar-se com a mãe disputa o amor do pai e reatualiza sua “mãe má”, mas de
extrema importância para que a menina compreenda que o seu pai faz parte do inacessível.

As questões edipianas em O Pequeno Polegar vão se evidenciando cada vez mais,


na medida em que os fatos se desenrolam e o leitor infantil pode se projetar no sofrimento do
personagem. Embora o menino seja esperto, ouvir o plano dos pais o deixou
desesperadamente preocupado, tanto que nem conseguiu dormir até pensar numa saída para
ele e para os irmãos. Conta-se que ele saiu logo cedo para ir buscar pedrinhas brancas no rio,
na intenção de que estas pudessem marcar o caminho e o propósito dos pais falhasse. Nada
disse aos irmãos. Quando o dia amanheceu os pais os levaram a uma floresta tão fechada que
não se podia enxergar nada. Enquanto o lenhador cortava a lenha os meninos cortavam os
feixes de ramos. Como estavam distraídos os pais fugiram por um caminho diferente.

Ora, a criança que vive o caos da culpa ou do medo de ser abandonada ou


rejeitada experimenta uma confusão interna de sentimentos como se estivesse fechada na
escuridão da sua própria incompreensão, pois para ela é muito doloroso rivalizar com alguém
que ama para disputar a atenção do Outro amado. Assim, não é à toa que os pais fogem por
um caminho diferente, numa demonstração de que eles vivem enquanto adultos que são, um
caminho diferente, o qual deve estar fora do alcance das crianças.

Entretanto, quando os irmãos de Polegar perceberam que os pais haviam partido


gritaram muito e choraram com todo vigor. Enquanto, os meninos se desesperavam, o nosso
herói parecia tranqüilo, pois as pedrinhas brancas que conseguira no rio serviram para marcar
o caminho de volta. Acalmou os outros, dizendo que os levaria de volta para casa. Assim, eles
voltaram pelo mesmo caminho e ao chegarem em casa se agruparam perto da porta para ouvir
o que seus pais diziam.

O interessante é que ao abandonarem os filhos na floresta, os lenhadores


chegaram em casa e tiveram uma bela recompensa:
88

“(...) receberam de surpresa, enviados pelo chefe da aldeia, dez


escudos que lhes devia fazia muito tempo e dos quais eles já
tinham desistido. Isso lhes deu novo alento, pois os pobres
coitados estavam morrendo de fome. O lenhador mandou
imediatamente a mulher ao açougue. Como fazia muito tempo
que eles não comiam, ela comprou uma quantidade de carne
três vezes maior do que a necessária para a ceia de duas
pessoas. Depois que saciaram a fome, a mulher falou: “Ai, ai,
meu Deus, onde estarão agora os nossos pobres filhos? Eles
iriam aproveitar muito tudo isso que sobrou. Mas foi você,
Guilherme, que quis abandoná-lo; bem que nós iríamos nos
arrepender. Como estarão eles agora no meio da floresta? Ai,
meu Deus, com certeza os lobos já os comeram! Como você é
desumano, abandonando assim os seus filhos!”.
O lenhador acabou perdendo a paciência, pois a mulher
repetiu mais de vinte vezes que ela bem que tinha dito que eles
iam arrepender-se. Ele ameaçou de lhe dar uns tapas se ela não
se calasse (…).”59

Como se pode ver o casal ao chegar em casa, além de serem premiados com
dinheiro, podendo assim satisfazer-se da fome, como até tinham comida sobrando. A mãe,
representante da função de cuidar, zelar e alimentar se sente culpada ao pensar que enquanto
se regala no prazer da “carne”, da comida, os seus pobres filhos morrem abandonados na
floresta. Chega mesmo a apanhar por insistir no remorso e acusar o marido. Não por acaso ela
compra comida a mais, quase que se preparando para o exercício da sua função, mas também
para, de alguma forma, negar o interdito e permitir que seus filhos participem da comilança.
Tanto é assim que, desesperada chora alto e fala do seu arrependimento chamando pelos
meninos, que ao escutarem entram todos, gritando que estavam ali. Ela recebe seus filhos com
euforia e felicidade, além de referir-se muito especialmente a Pierrot, o mais velho, por quem
tem um amor muito especial, por se parecer muito com ela.

59
O Pequeno Polegar. In: Anexo 2, p. 268.
89

Assim, lava Pierrot que estava enlameado e alimenta todos. Portanto, está
confirmado seu exercício de maternagem. Enquanto, matam a fome as crianças falam do
medo que sentiram na floresta. Protegidos, parece que tudo está bem. Entretanto, a felicidade
durou apenas o tempo que durou o dinheiro.

De alguma, forma podemos interpretar que a situação simbiótica entre criança e


mãe deve ser interrompida, não devendo permanecer por muito tempo. Para crescer é preciso
partir e aceitar o interdito. É por isso, que o pai das crianças ao ver que logo, a fome estaria
presente, pois o dinheiro havia acabado, trata de planejar um novo abandono das crianças,
mas dessa vez haveria de ser bem longe para que não voltassem.

Novamente, Polegar escuta o segredo e se prepara para agir da mesma forma.


Mas, ao levantar-se bem cedinho para ir buscar as pedrinhas encontrou a porta solidamente
fechada. Ficou desesperado, mas como a mãe havia dado a cada filho um pedaço de pão,
então guardaria o seu para marcar o caminho.

Temos uma mãe doadora e boa oferecendo a saída por meio do alimento, mas
também dificultando a partida e a conquista daqueles que precisam superar os conflitos
edipianos.

Assim, os pais levaram-nos para o ponto mais fechado e escuro da floresta.


Percebendo que os meninos estavam tranqüilos, resolveram partir fugindo por outro caminho.
Polegar não parecia nada preocupado, pois, sentia-se seguro por ter espalhado as migalhas.
Até, que muito espantado, observa que o pão havia sido comido pelos passarinhos.

Alguns elementos simbólicos podem ser importantes nesse momento. Dessa vez,
as crianças são levadas para um local da floresta que é fechado e escuro. Como já foi visto
anteriormente, a floresta pode ser interpretada como busca interior que pode levar à
descoberta de uma nova caminhada espiritual. Além disso, como na história de João e Maria ,
os pássaros comem o pão que serviria como pista para acharem o caminho de volta para casa.
Recordamos que os pássaros são quase sempre auxiliares mágicos que ajudam o
herói a superar as provas, então é curioso que esses atrapalhem os planos de Polegar.
Podemos recorrer à explicação utilizada por Bruno Bettelheim para tais situações, nas quais o
herói é testado mais de uma vez para poder enfim, ultrapassar a prova. Segundo este autor:
90

“(...) Descer ao inconsciente e subir com o que a gente enterrou


lá é muito melhor do que permanecer na superfície (...) É a
razão por que é necessário mais de um teste. Tornar-se familiar
com o inconsciente, com os poderes obscuros que habitam sob a
superfície é necessário mas não suficiente. Deve-se acrescentar
ação a estas percepções; devemos refinar e sublimar o conteúdo
do inconsciente.”60

Assim, compreendemos que a permanência das crianças num ponto escuro e


fechado da floresta tem um significado muito importante dentro da narrativa, visto que a partir
disso devemos compreender que aí temos um lugar de busca, apontando para o fato de que
somente crescemos se tivermos oportunidade e coragem de descer até o mais profundo de nós
mesmos. Se a criança exercita-se na busca interior terá mais sucesso nas suas investidas de
crescimento e superação de conflitos, pois estando mais capaz de sublimar suas dores e
amores, então poderá se tornar um adulto sensível para lhe dar com o sucesso e também, com
o fracasso de forma equilibrada.

Muitas crianças ficam tremendamente chateadas com a ação dos pássaros,


demonstrando a decepção de ver a esperteza de Polegar fracassada. Entretanto, compreendem
que isso é necessário para que a história ganhe vida e tenha ação, tal qual inconscientemente
assimilam a importância de passar por dificuldades para poder enfrentar o medo e a
separação.
Além do que existe um conteúdo bastante significativo em torno das aves e em
especial dos pequenos pássaros. Representam leveza, espiritualidade e servem de elo entre o
céu e a terra, como também:

“(…) Na mesma perspectiva, o pássaro é a representação da


alma que se liberta do corpo, ou apenas o símbolo das funções
intelectuais. (…) No Ocidente como na Índia, os pássaros
pousam – hierarquicamente – sobre os ramos da árvore do
mundo (...) eles são dois: um come o fruto da árvore, o outro
olha sem comer, símbolos respectivos da alma individual
(jivatma) ativa e do Espírito universal, (Atma), que é

60
BETTELHEIM, Bruno. Op. cit., p. 138.
91

conhecimento puro. (...) no Islã, os pássaros são os símbolos


dos anjos (...) As aves viajantes – como as de Fari-od-Din Attar
e do Conto do Pássaro de Avicena – são almas engajadas na
busca iniciatória. (...).”61

Quanto mais se embrenham pela floresta mais penetram no desconhecido universo


de si mesmo. Por isso, justamente nesse momento sentem o vento forte soprando muito e
imaginam que por ali, existem lobos para devorá-los. Esse é um momento de muita tensão na
narrativa, pois os meninos estão tão apavorados que não conseguem, sequer falar ou olhar uns
para os outros. Vem uma chuva forte, eles andam, caem, escorregam e se sujam de lama.

Podemos, inclusive, inferir que nesse momento cada um vive seu drama
caoticamente, e o fato de não se falarem, mostra também que para alcançar maturidade e
superar o medo, é preciso viver a solidão, ainda que isso os coloque diante de todos os
sentimentos caóticos e os faça descobrirem-se na “sujeira” daquilo que está guardado nas
camadas mais profundas do seu ser.

A lógica infantil pode funcionar nesse sentido. No entanto, é preciso viver o mais
fundo desse sentimento para emergir recompensado e consciente daquilo que existe de bom
em si. Por isso, Polegar aceita o desafio, sobe em uma árvore e procura por todos os lados ver
uma saída, até que avista para “além” da floresta uma luz que vem de longe. Desce da árvore
e angustia-se muito, pois do chão não consegue ver de onde vem a luz. Então, junto com os
irmãos segue procurando a luz. Andam incansavelmente. E antes mesmo, de alcançarem o
clarão que vinha de fora da floresta, passam por vários sobressaltos, descem em grotas
perdendo a luz de vista.

O texto reforça o pensamento de Bettelheim colocado anteriormente. Passar pelas


provas e descer ao fundo é mesmo necessário para se obter maturidade e individuação. O
clarão é perdido de vista todas as vezes que os meninos precisam descer às grotas, então
descem, penetram e ressurgem perdidos. O movimento não é de subida, mas de penetração.
Simbolicamente, compreendemos que a descida pode nos colocar diante daquilo que não
conhecemos e que tememos, pois descer possui também, o sentido de queda.

61
CHEVALIER, Jean., GHEERBRANT, Alain. et. al., p. 687.
92

Contudo, depois de várias descidas Polegar avista uma luz ao longe e segue em
sua direção. Ao chegar ao clarão encontram uma casa e bateram à porta. Então, uma boa
mulher atendeu e perguntou o que desejavam. Polegar disse-lhe que eram pobres meninos
perdidos na floresta e precisavam de abrigo, um lugar para passar a noite. A mulher
sensibilizada com a situação daquelas crianças, chora dizendo:

“Ai, meus pobres meninos, onde é que vocês foram bater!


Vocês não sabem que aqui é a casa do ogro que come crianças?
Ai, de nós, minha senhora, respondeu o Pequeno Polegar, que
tremia dos pés à cabeça, assim como os seus irmãos. Que
podemos fazer? Com toda a certeza os lobos da floresta vão nos
comer esta noite, se a senhora não permitir que nos abriguemos
aqui. Diante disso, preferimos que seja o Sr. Ogro que nos
coma; talvez ele tenha pena de nós, se a senhora lhe suplicar
que nos poupe.”62

Chegamos a uma parte do conto das mais importantes. Os meninos encontram o


abrigo, seguindo a direção da luz. Encontram lá, uma casa e uma boa mulher, representante da
“mãe boa”, no entanto parece que a grande prova pela qual terão que passar está exatamente
nesse “abrigo”. Como o encontro com o ogro pode ser considerado um grande desafio, na
maioria dos contos de fadas, então dedicaremos uma parte da nossa análise especialmente ao
encontro das crianças com o ogro.

Pela segunda vez na narrativa, o Pequeno Polegar sente medo de ser devorado
pelos lobos, preferindo o confronto com o ogro a ter que se encontrar com tais animais. O
lobo tem inúmeras representações, tanto positivas quanto negativas, sendo a selvageria uma
das mais relevantes para a nossa análise, além da de devorador, daquele que faz descer pela
goela, significação de cavidade, escuridão, inferno. Segundo o Dicionário de Símbolos, o lobo
representa, também aspectos iniciáticos ligados aos elementos de oposição, como dia-noite,
morte-vida , assim é dito que:

62
O Pequeno Polegar. In : Anexo 2, p. 268.
93

“Esta goela monstruosa do lobo, de que Marie Bonaparte fala


na sua auto-análise como estando associada aos temores de sua
infância após a morte de sua mãe, não deixa de lembrar os
contos de Perrault: Vovó, como tu tens dentes grandes! Há,
portanto, observa G. Durand, uma convergência bem nítida
entre a mordida dos canídeos e o medo do tempo destruidor.
Cronos aparece aqui com o rosto de Anúbis, do monstro que
devora o tempo humano ou ataca até os astros que medem o
tempo.”63

Sendo o lobo um animal com tais representações e o Pequeno Polegar um menino


em fase edipiana, é pertinente inferir que o medo de encontrar com tal animal é maior do que
o de ser devorado pelo ogro, pois o primeiro implica também em destruição pelo tempo, ou
seja, ser devorado pelo tempo que mata tudo. Mais uma vez, temos elementos significativos
da busca iniciática, temida pelos que não desejam crescer, porque isso significa perder um
determinado estado, o qual já se conhece no bem e no mal.

Na próxima parte trataremos do Pequeno Polegar e o conjunto de algumas


angústias que circulam o medo de castração, o maior castigo na fantasia da criança edipiana e
de como isso é representado na narrativa.

3.2 - NARRATIVA E MEDO

Os contos de fadas possuem o mágico poder de dialogar com a criança de maneira


persuasiva, porque não despreza a capacidade dos pequenos, ao contrário, diz de forma
respeitosa aquilo que pode parecer óbvio ou assustador. Por isso, são narrativas com apelo tão
intenso e universal. O que numa primeira leitura pode ser natural, como uma criança temer
mais ao lobo do que ao gigante, numa outra leitura mais apropriada pode servir de alerta para
aspectos fundamentais emergentes no texto e que apontam para uma situação vivida no
período da infância e que é de ordem universal, como a questão do complexo de castração.

63
CHEVALIER, Jean., GHEERBRANT, Alain. et. al. Op. cit., pp.555-557.
94

Numa grande parte dos contos de fadas que trata desse tema, a criança
abandonada ou longe de casa vence o dragão, o lobo ou o ogro, obtendo assim, por meio da
sublimação o prazer de ter vencido o pai com o qual disputa e rivaliza o amor da mãe. Vencer
o inimigo significa simbolicamente vencer os impulsos caóticos de destruição e perseguição
presentes na criança edípica, como também vencer o monstro pode significar vencer o pai e
conquistar o seu lugar. Esse tipo de projeção pode diminuir a culpa da criança, uma vez que
ela sabe que o objeto de ódio destruído foi o monstro, então a sublimação pode oferecer uma
certa dose de tranqüilidade e diminuição da culpa.

O ogro do Pequeno Polegar pode ser o representante da ameaça de castração, visto


que é ele que realiza a ação de degolar. Claro, as interpretações são sempre fruto de
conjecturas e por isso são passíveis de aprovação ou não. Entretanto, quando inferimos
determinadas suposições estamos levando em consideração outras leituras que podem servir
como direção. Existem elementos simbólicos dentro desse conto que nos permite dizer até que
o Polegar se livre das ameaças de ser comido pelo inimigo, ele passa por uma dor profunda
que consiste na ameaça de castração oferecida pelo gigante, que é marido da “mãe boa”
representada pela mulher que abriga as crianças, alimenta-as e esconde-as do perigo de serem
pegas pelo ogro – pai. Vejamos o texto:

“A mulher do Ogro, acreditando poder escondê-los do marido


até a manhã seguinte, deixou-os entrar e os levou para se
aquecerem junto a um bom fogo, sobre o qual ela tinha posto a
assar no espeto um carneiro inteiro, para o jantar do Ogro.
Quando já estavam começando a se aquecer, eles ouviram três
ou quatro batidas muito fortes na porta. Era o Ogro que
chegava. Depressa a mulher esconde-os debaixo da cama e foi
abrir a porta. A primeira coisa que o Ogro perguntou foi se o
jantar estava pronto e se o vinho tinha sido tirado do tonel.
Logo depois sentou-se à mesa, pondo-se a farejar à direita e à
esquerda, e dizendo que sentia cheiro de carne fresca. “Deve
ser de vitelo que acabei de temperar”, respondeu a mulher.
“Sinto cheiro de carne fresca, estou te dizendo, repetiu o ogro.
Há qualquer coisa por aqui que não sei o que é. E assim
falando ele se levantou e foi direto à cama. (...) ai, está como
95

você me engana, maldita mulher! Não sei como ainda não te


comi também. O que te salva é que está velha demais. Eis aqui
uma boa caça, que vem bem a propósito para eu oferecer a três
ogros, meus amigos (...) E tirou debaixo da cama os pobres
meninos, que caíram de joelhos diante dele e lhe pediram
misericórdia.”64

Estamos diante de um ogro bastante cruel, faminto e devorador de crianças.


Comer carne nova é o seu maior prazer. Assim, sob a ameaça de devoração os meninos
escondidos embaixo da cama aguardam a sentença. Eles estão justamente no lugar mais
perigoso da casa, embaixo da cama do pai-ogro, castrador e feroz. Agora, a mãe já não é
cúmplice dos anseios do pai, como acontece com a verdadeira. Ela os esconde e protege
mesmo sabendo do perigo que corre, portanto não compactua com o marido que afirma que os
pequenos serão um prato apetitoso e os devora com os olhos.

Enfim, a ameaça está perto, concreta na figura monstruosa do gigante, que os


castigará severamente, no momento em que os transformar em comida. Ser transformado em
comida é um dos maiores medos quando se é criança, pois esse é também um medo que
reconduz aos sentimentos arcaicos de perseguição e retaliação, o que pode ser refletido na
ameaça de morte, e também gerar um sentimento de angústia, medo de ser devorado por
alguém que pode significar força, poder, lei. Estar submetido ao sentimento de fragmentação
é ameaçador para o ego que busca a integração.

A boa mulher esconde os meninos embaixo da cama do Ogro, o lugar do perigo


por ser o lugar do Outro, além de ser esse Outro um monstro impiedoso. Passar a noite nesse
lugar pode também ser a realização do desejo de “dormir com a mãe”, portanto o perigo
torna-se ainda maior pelo tamanho daquilo que podemos chamar de “pecado” imperdoável,
portanto não existe misericórdia e os meninos, no que depender do “pai-furioso e traído”,
estão mesmo condenados à destruição.

Um menino na idade edipiana idealiza-se como um herói que merece todos os


olhares da mãe, é mesmo um Príncipe merecedor do amor e admiração da mulher amada e
pelo menos, inconscientemente, luta para ter o lugar do pai-monstro, usurpador daquilo que
por direito acredita ser seu. Essa narrativa, nos coloca a situação de maneira muito clara,

64
Idem, ibidem. In: Anexo 2, p. 268.
96

embora sutil como deve ser a verdadeira metáfora literária. Para nós, fica muito evidente a
possibilidade de que um menininho que enfrenta tais conflitos consiga projetar-se no esperto
Polegar, pois este carrega no próprio nome o significante de menino fálico, tal qual nos é
colocado :

“Símbolo fálico. O Polegar significa a força criadora: é ele que


confere aos outros dedos da mão e à mão todo seu poder de
pegar. Daí o Pequeno Polegar, que é a miniatura do herói solar.
O grande e o pequeno são aqui idênticos, como o macrocosmo e
o microcosmo (...) é na sua origem, um símbolo fálico, e,
embora tão pequeno nos contos, é sempre dotado de atributos
superiores. (...) O conto O Pequeno Polegar se inscreve na
tradição das famílias de sete filhos, dos quais um é dotado de
poderes supranormais e leva o nome de mágico, de salvador ou
feiticeiro. (Essas lendas) são imitações do grande mito asiático
cinco vezes milenar de Krishna. Se o Pequeno Polegar
simboliza o princípio salvador da sociedade, ele é também o
símbolo do princípio que dirige a pessoa, que compartilhado
entre diversos elementos, como a sociedade se divide em
diversos membros (...).”65

Não resta dúvida, que a nossa personagem traz em si conteúdos fálicos e conflitos
edipianos, no que se incluí o medo pela ameaça de castração. É interessante observar que,
mesmo o enquadramento simbólico é mais acentuado no significado fálico do que no herói
enquanto salvaguarda do social. Polegar é pequeno, mas está posto na narrativa, sempre em
oposição ao grande, portanto disputam o mesmo espaço (micro e macrocosmo), luta para ser
idêntico ao Outro no desejo da mãe. É mesmo um princípio que direciona a pessoa e a insere
no contexto social, pois somente a criança que consegue atravessar as questões edipianas com
sucesso se torna alguém com equilíbrio interior capaz de aceitar os códigos e convenções que
determinam a organização social. Sobretudo, somente quem sofre o interdito de maneira
amparada pode inserir-se adequadamente dentro das leis que regem o social.

65
CHEVALIER, Jean., GHEERBRANT, Alain. et. al., p. 727.
97

Assim, temos um herói que busca o reconhecimento do Outro, bem determinado


pela imagem da mãe boa e que, como veremos mais adiante, consegue sublimar –se lutando
pelas causas sociais. Assim, também acontece na vida, pois a nossa condição “fálica”, que
pode ser compreendida como falta, perda, separação é sobretudo a representação simbólica da
entrada do “falus” como significante fundamental para a estruturação psíquica do sujeito,
sendo portanto a única maneira de acesso ao Outro, portanto ao simbólico, a linguagem e à
cultura.
É mesmo oportuno compreender que as histórias que tratam das questões
edipianas necessitam de muitos elementos que possam garantir à narrativa o valor de suscitar
a transcendência, por conseguinte a travessia necessária para a descoberta de um novo espaço
na relação Eu-Outro. Entende-se aqui, que:

“(...) todos os objetos que caracterizamos como objetos de


pulsão – a voz, o seio, o olhar, etc. – seguem exatamente a
mesma separação, o mesmo destacamento do corpo que o falo.
Da mesma maneira que o falo nasceu, nascerão o seio como
objeto da pulsão invocadora, e as fezes como objeto da pulsão
anal. Proponho-lhes admitir que a dor é gerada no mesmo
molde e obedece às mesmas condições de nascimento que todos
esses objetos. Vamos observar entretanto que o falo, ao
contrário de todos os objetos pulsionais, inclusive a dor, não só
se destaca do corpo, mas principalmente constitui-se como
significante. O falo é o único objeto capaz de tornar-se
significante. (...) O seio como objeto de pulsão oral, o olhar,
etc., são realmente objetos que se formam na encruzilhada do
complexo de castração, mas nenhum deles jamais terá, como o
falo, a possibilidade de tornar-se significante.”66

Ora, é exatamente disso que estamos falando, pois parece verdadeiro que a saída
humana com relação à experiência de medo pela ameaça de castração é inventar um
significante que sirva de substituto para a falta, pois o destino do pênis é bastante diferente do
destino dos outros objetos pulsionais, ao cair eleva-se ao estatuto de significante do

66
NASIO, Juan-David. Op. cit., p.119.
98

desejo, o que quer dizer que quando o investimento no objeto de desejo é esgotado, mas algo
residual permanece como lembrança – sensação, então o que fica como resto dessa pulsão não
satisfeita, obedecerá à lógica do desejo sexual.

Entendendo-se aqui, o desejo sexual como elemento pulsional de um corpo


fantasmado, portanto que não tem mais a ver com libido e energia vital do que com erotismo.

É fundamental alcançar o entendimento da dimensão da dor como também sendo


ela um corpo simbólico que destacada no afeto, instituída a partir da primeira separação,
quando o falus deve servir como interdito, corte que atravessa a relação simbiótica entre
criança/mãe. Assim, a dor do corte é fantasmada e no seu lugar surge o Outro como pulsão de
desejo, substituição da dor-furo provocada pela perda.

A esse propósito gostaríamos de lembrar o corte, marca da primeira dor da


separação por meio de uma metáfora elaborada a partir do conceito de fantasia sugerido pelo
escritor Bartolomeu Campos de Queirós:

“A fantasia é o próprio desejo. Criamos para fantasiar, para


suportar o nosso vazio. Somos a nossa falta. Quando tomamos
banho, por exemplo, temos que olhar com muito cuidado para
o umbigo, para sabermos que aquilo é a nossa marca de corte.
Fomos cortados, não estávamos sozinhos. Então, como todos,
sou um pedaço. E a minha busca é pelo inteiro.”67

Entendemos que esse corte é instaurador da nossa primeira grande falta, separação
e queda. A partir daí seremos marcados por inúmeras outras separações, portanto múltiplas
dores. Mutilação e castração. Assim, é preciso fantasiar, ou seja, colocar no “lugar de”. Por
isso, a nossa fantasia é de nos tornarmos inteiros, espaço pleno de realização que somente o
Outro, imaginariamente, pode complementar. Afinal, no início não estávamos sozinhos.

O grande medo de Polegar está aí, na realização do corte-mutilação que o fará em


pedaços, os quais serão devorados pelo seu interditor. A primeira dor da separação, a mais
dolorosa de todas servirá de matriz para todas as outras, mas possivelmente, a dor da

67
QUEIRÓS, Bartolomeu Campos. In: VASSALO, Márcio. Folha Proler – Ano V – Número 21, Rio de Janeiro:
Fundação Biblioteca Nacional, 2001, p. 01.
99

castração impõe o grito que sublimará o registro do primeiro pedaço devorado pela condição
de sermos sujeito.

Sendo assim, a dor nada mais é do que um sintoma, um significante que aponta
para o fantasma sublimado. Nesse sentido, o medo da castração necessita do fantasma
doloroso para que o desejo seja recalcado e encontre sua saída nas pequenas e permanentes
dores. Dito dessa forma, a dor como sintoma manifesta-se exterior e sensível, oriunda de uma
pulsão impossível de ser satisfeita, por isso desejo inconsciente e recalcado.

Nosso pequeno herói, diante do olhar do Ogro projeta-se na sua própria dor ,
desejo reprimido de encontrar no Outro o gozo pleno e absoluto de ser inteiro. Portanto, ser
devorado aos pedaços reatualiza os primeiros monstros interditores da vida no Paraíso do
corpo da mãe.

É muito interessante observar, como a narrativa do conto nos propõe um olhar


para além do que está revelado pelas palavras escritas-ditas no texto. É quase que um sopro
nos ouvidos, nos convidando para romper com o estabelecido, esburacar o texto e cavar
passagens que nos conduza a chegar lá, onde a palavra é apenas, uma das faces do nosso
universo fantasmagórico.

A palavra é o fio-significante que mais representa a nossa condição de falta e


fracasso. O que ela representa sempre é o Outro e onde aparece aponta para o indizível, o
impossível de cada um de nós. Então, mesmo suplicando pela misericórdia do Ogro, as
crianças não são escutadas, estão mesmo no discurso vazio, onde não existe transferência e
conseqüentemente amor.

Assim, somente a mãe-boa será capaz de salvar os pequenos e livrá-los da gula do


Ogro, que não se satisfaz apenas em suprir seu apetite feroz, mas gozar da satisfação de
devorar, deglutir o Outro que deseja “usurpar” o seu lugar junto à mãe e por isso, ameaça as
crianças com um facão, instrumento de corte e o afia numa pedra, para que o mesmo não
falhe.

Evidentemente, essa é uma imagem assustadora: um gigante afiando um facão


diante de meninos pré-puberes e apavorados. Seguindo a ação, ele pega um dos meninos para
dar início ao corte da “carne fresca”. No entanto, novamente a mulher distrai a sua fome
desmedida dizendo:
100

“Que é que você pretende fazer a uma hora dessas? Amanhã


você terá tempo de sobra para isso – Cala-se, respondeu o
Ogro, assim a carne deles ficará mais macia. – Mas,você ainda
tem tanta carne, insistiu a mulher. Veja, um vitelo, dois
carneiros e a metade de um porco. – É, você tem razão, disse o
Ogro. Dê, bastante comida a eles, para que não emagreçam, e
leve-os para dormir.
A boa mulher ficou louca de alegria; serviu aos meninos um
farto jantar , mas eles não conseguiram comer nada, tamanho
era o medo que sentiam. Quanto ao Ogro ele se pôs a beber,
encantado por ter com que regalar seus amigos. Tomou uma
dúzia de copos a mais do que estava habituado, e isso lhe subiu
à cabeça, forçando-o a ir deitar-se.”68

Tanto quanto a Bruxa do conto João e Maria, o Ogro quer alimentar as crianças
para que fiquem apetitosas, pois tendo naquele momento com o que se regalar, aceitou o
conselho da mulher. Os pobres meninos estavam tão apavorados que não conseguiam sequer
comer, pois a ansiedade de castração era muito grande, pois o perigo ainda existe e o gigante
tinha apenas adiado a matança . Os pequenos sabiam que quando ele acordasse, então tudo
começaria de novo. Comer e dormir numa situação como essa é quase impossível, ainda mais
quando o opositor tem sete filhas ograzinhas, meninas com pele bonita e macia de tanto
comerem carne crua. Eram todas parecidas com o pai. Essas ograzinhas tinham olhos
cinzentos e redondinhos, nariz adunco, boca enorme e dentes muito afiados. Eram mesmo
monstruosas.

Possivelmente representam a dualidade, a outra face escondida dos meninos


abandonados. As pulsões monstruosas não estão somente com os pais com os quais as
crianças rivalizam, mas também escondidas no inconsciente de cada um. Daí, que são
exatamente sete meninas ogras para servirem de espelho para os sete meninos.

68
O Pequeno Polegar. In : Anexo 2, p. 268.
101

Agora, as crianças estão diante de uma situação que não parece ter saída, pois são
oito criaturas monstruosas que ameaçam tanto à integridade física quanto à psíquica. Diante
do que se passa, a boa mulher não tem como ajudá-los e naquele lugar é a única figura para
uma possível identificação, já que se difere do restante da família canibal. É preciso revisitar
os conteúdos simbólicos implícitos na imagem do Ogro e do que tal imagem pode provocar
no imaginário infantil, visto que:

“O ogro dos contos lembra os Gigantes, os Titãs, Cronos.


Simboliza a força cega e devoradora. Ele precisa de sua ração
quotidiana de carne fresca, e o Pequeno Polegar engana-o
facilmente, fazendo-o engolir suas próprias filhas.
Não é o ogro a imagem do tempo que se engendra e se devora a
si mesmo cegamente? Não é a imagem hipertrofiada e
caricatural do pai que deseja guardar indefinidamente sua
onipotência e não suporta a idéia de partilhá-la ou de
renunciar a ela? Não prefere ele a morte de seus filhos ao seu
desenvolvimento, pois este os levaria a poder, um dia,
arrebatar-lhe a função? Não é o ogro a imagem desfigurada e
pervertida do pai que só pode servir de espantalho para os
filhos? É também a figura do Estado, do imposto, da guerra, do
tirano. Liga-se assim, a simbólica do monstro, que engole e
cospe, lugar das metamorfoses, de onde a vítima deve sair
transfigurada. A idéia do ogro, na perspectiva de Cronos e do
monstro, junta-se ao mito tradicional do tempo e da morte.”69

Temos aí um resumo de tudo que já havíamos conjecturado a respeito da


significação do ogro nessa narrativa e da sua representação como interdito, lei e corte. Tudo
isso ligado diretamente à questão do tempo e da morte. O tempo, Cronos, o grande devorador
de tudo, é talvez um dos elementos mais fortes de oposição à criança, que deseja permanecer
para sempre junto ao seio materno, fonte de alimento e amor.

69
CHEVALIER, Jean., GHEERBRANT, Alain. et al., p. 651.
102

Assim, o ogro tem mesmo a significação do pai monstruoso que interdita a relação
criança- mãe e a ameaça a sua integridade física e emocional, capaz de “afiar o facão” e cortar
aquilo que acredita ser para a criança, um instrumento de poder, portanto o falus.

Numa outra análise, esse ogro também pode representar o pai onipotente, que do
alto do seu narcisismo não permite o crescimento dos filhos, pois isso pode abalar sua fantasia
de poder. Ora, será que isso é tão difícil de ser verificado? Afinal quantos pais conhecemos
que cerceiam a liberdade de escolha dos filhos e os ameaçam com todo tipo de castigo,
somente para não perderem sua espada de poder?

Estamos diante de sete meninos ameaçados de serem sumariamente aniquilados


pelo desejo faminto e devorador do pai-ogro, mas que de certa forma, conseguem se safar pela
esperteza do irmão mais novo, visto que no momento em que a mulher os leva para dormirem
no quarto das monstrinhas, este percebe que elas usam coroas, então troca-as pelo gorro
usados por eles. Como são sete, então a sua astúcia obtém sucesso, pois trocar de identidade
com tais meninas não custaria muito, pois de certa forma, elas representam o Outro de cada
um deles. Além disso, elas são monstruosas, chupam sangue e mais tarde serão tão terríveis
quanto o pai.

Dessa maneira, a narrativa nos conta que:

“Tinham sido postas cedo para dormir e estavam todas sete


estendidas numa cama enorme, cada uma com uma coroa de
ouro na cabeça. Havia no mesmo quarto uma outra cama do
mesmo tamanho, e foi nela que a mulher do Ogro deitou os sete
meninos. Em seguida, foi deitar-se junto do marido.
O Pequeno Polegar tinha reparado que as filhas do Ogro
traziam coroas de ouro na cabeça. Receoso de que o Ogro se
arrependesse de não os ter matado logo, ele levantou-se no
meio da noite e, pegando o seu gorro e o de seus irmãos,
colocou-os com toda cautela na cabeça das sete filhas do Ogro,
depois de lhes tirar as coroas de ouro que pôs na sua própria
cabeça e na de seus irmãos, para que o Ogro pensasse que eles
eram as suas filhas(...) o Ogro tendo acordado por volta da
103

meia-noite, lastimou ter deixado para o dia seguinte o que


poderia ter feito na véspera.(...) pegou seu facão, dizendo:
“Vamos ver como estão aqueles idiotinhas. Não se pode deixar
para amanhã o que se pode ser feito hoje.”70

Centralizaremos, agora, a nossa interpretação na análise de dois elementos, para


nós, comprobatórios de tudo que já se afirmou anteriormente. Polegar consegue escapulir,
salvando a si e aos irmãos porque deposita toda a confiança na troca de um pelo outro. As
ograzinhas que dormiam “inocentemente” na cama ao lado deixaram de ser quem eram
exatamente à meia-noite, hora de mudança e transmutação. Momento da virada da noite para
o dia, metamorfose. As coroas usadas são de ouro, amarelas como o sol, enquanto os meninos
usam o gorro, indumentária mágica em muitos dos contos.

Podemos questionar, por que os elementos trocados são justamente aqueles que
ornavam a cabeça e por que trocá-los representou a morte por mutilação da cabeça, visto que
o Ogro ao chegar ao quarto para matar os meninos dirige-se primeiramente , para aqueles que
estão com a coroa e leva um tremendo susto por imaginar que poderia ter se enganado e
degolado as próprias filhas. Vai à outra cama, toca na cabeça e percebe o gorro e faz o
serviço. Sem hesitar, corta o pescoço das sete filhas. A castração, enfim realiza-se, portanto
por meio da troca de identidades.

É necessário que se trace várias possibilidades de interpretação, pois estamos


diante de dois objetos de extrema riqueza simbólica e que possivelmente , pela força que
possuem revelam-se ao inconsciente de maneira metafórica.

Na realidade, sendo as ograzinhas o duplo dos meninos, representantes das


pulsões monstruosas contidas neles, como em todas as crianças e , principalmente, aquelas
que estão tentando sublimar os desejos proibidos, são elas destruídas e aniquiladas para se
converterem na mensagem de que se queremos vencer e crescer precisamos nos conhecer e
aceitar nossos instintos selvagens. Somente assim, conseguiremos ser vitoriosos.

O Polegar salva a si e aos irmãos porque tem coragem de trocar os gorros pelas
coroas de ouro. Portanto, introjeta o que não é seu, mesmo sendo “desconhecido” e assume a

70
O Pequeno Polegar . In : Anexo 2, p. 268.
104

identidade do outro-duplo. De alguma forma, o menino não agiu de maneira inocente, usou
sua parte maléfica para livrar-se da morte e devoração.

A partir do momento que o monstruoso foi castrado, mutilado surge a dor do pai
interditor que degolando as filhas liberta os meninos do medo da castração e concede-lhes
acesso à “Metáfora Paterna” pensada por Freud e reformulada como “Em Nome do Pai” por
Lacan.
Não acreditamos que tantos símbolos sejam entrelaçados dentro de uma narrativa
de maneira inocente e despretensiosa. Existe, mesmo uma constelação de imagens que
conspiram na narrativa para provocarem um sentido no leitor, que é o da despertença do eu
para assumir-se no “mais além” da realidade instituída pelo texto.

Não por coincidência os gorros são trocados por coroas douradas. Os primeiros
podem ser visto como passaportes mágicos de acesso a outros mundos já que podem dar
invisibilidade a quem usa, como é o caso de muitos heróis da mitologia e do folclore. Por
outro lado, as coroas são de ouro e portanto podem conter a informação de que de fato
pertencem aos meninos visto que o Polegar é considerado um herói solar. Tanto o gorro tem
significado fálico como o sol também, de acordo com o simbolismo esses elementos podem
ter uma vasta significação, tais como:

“(...) símbolo de invisibilidade, de invulnerabilidade, de


potência. (...) protege os pensamentos, mas também os oculta:
símbolo de elevação passível de perverter-se em dissimulação
(...) desejo de escapar à vigilância de outrem acaso só poderia
satisfazer-se na morte?Ou então...não significará, talvez, a
morte invisível que está à espreita, incessantemente, em torno
de nós?(...) Poderia ser uma indicação de que procuramos
esconder algo a nós mesmos, ou de que procuramos, nós
mesmos, nos esconder – e, nesse caso, o signo desse símbolo do
poderio se inverteria, passando a exprimir apenas a
impotência, a incapacidade de um ser para exprimir-se
integralmente. A invisibilidade de nada mais serviria, a não ser
105

para fugir ao combate espiritual consigo mesmo.(...) símbolo


fálico.”71

A situação apresentada pelo Pequeno Polegar pode ser associada de maneira


bastante pertinente ao simbolismo do gorro, barrete, capacete ou capuz e também ao de coroa.
Ambos, gorro e coroa são indumentárias que servem para cobrir, ornamentar a cabeça, ponto
mais elevado do corpo e talvez por isso, nos induza a pensar em elevação espiritual,
criatividade, razão e emoção, enfim lugar do corpo privilegiado, de onde se pode “olhar” o
mundo.
O gorro que deu invisibilidade as ograzinhas, pois fez com que o pai delas não as
“visse” como eram, foi o mesmo que libertou os meninos (bons) de serem mutilados, assim
somente os meninos “maus” representados pelas monstrinhas foram castigados, castrados.
Então, eles puderam ter acesso ao sol, a coroa, ao prêmio, tal qual nos aponta o significado de
coroa:

“O simbolismo da coroa fica a depender de três fatores


principais. Sua colocação no alto da cabeça lhe confere um
significado supereminente(...) assinala caráter transcendente de
uma realização qualquer bem-sucedida.(...) Recompensa de
uma prova, a coroa é uma promessa de vida imortal. (...)
símbolo de identificação (...) estado espiritual dos iniciados (...)
identificação com a divinidade solar (...).”72

O conjunto destes elementos fecha mais um ciclo do conto e talvez, o mais


importante visto que nesse momento o Polegar confronta-se não mais com a ameaça de ser
devorado, castrado, mas precisamente com o fato de estar diante da sua maior prova a ser
superada para que alcance sua individuação.

A coroa como nos é apresentado acima é um prêmio concedido após uma prova
vencida. Temos então, uma concentração de significados que nos remete para o que não é dito
no texto, mas serve como signos provocadores daquilo que se pode compreender como o
sentido do conto. As meninas “invisíveis”, simbolizantes dos impulsos destrutivos da

71
CHEVALIER, Jean., GHEERBRANT, Alain. et. al., pp. 184, 185.
72
Idem, ibidem, pp. 289, 290.
106

personalidade dos meninos abandonados são terrivelmente castigadas, são degoladas pelo pai
– Ogro. Está portanto, instituída a castração simbólica do Pequeno Polegar.

O medo sentido por esta personagem pode ser facilmente verificado em crianças
em fase edipiana e devemos atentar para o conto nos menores detalhes, pois é possível que
encontremos indícios valiosos que confirmem ou neguem as nossas hipóteses, tal como o fato
de que quando o Ogro entra no quarto e passa a mão na cabeça dos meninos, somente o
Polegar estremece de medo, enquanto os outros permanecem dormindo.

Afinal, somente o herói está vivenciado os conflitos edipianos e por isso a


narrativa enfatiza que apenas ele sente-se ameaçado, além disso os outros que são mais velhos
estão dormindo tranqüilamente, pois já tiveram seu momento de ameaça. Então, Polegar é o
único que está atento ao gigante, pois somente ele experimenta a ansiedade de castração. Ele é
que deseja a mamãe e está sempre se colocando entre ela e o papai. Seja na casa dos
lenhadores, seja na casa do Ogro, ele está sempre intermediando as soluções para os conflitos,
como também negociando com a mãe.

A negociação com a “mãe” serve como indício de que a sedução está bastante
presente no menino que tem o objetivo de encantar e atrair os olhares do Outro para si. Pois,
somente ele é inteligente e esperto o suficiente para salvaguardar a família dos perigos
oferecidos pelo mundo. Assim, fica fácil de provar para a mulher amada que ele deve ser o
eleito no seu sentimento, pois o outro homem, representado pelo pai, é fraco e impotente, tão
incapaz que não consegue sequer alimentar a sua família.

Podemos imaginar que toda a trajetória do nosso herói solar segue no sentido de
voltar para casa coroado, vitorioso, pois foi capaz de salvar-se e também aos seus irmãos mais
velhos. A sua intenção consiste não somente em safar-se do perigo, mas de reinar vitorioso,
negando o “olhar” alheio de que é um parvo, sem voz e sem poder. Ele, afinal, é tão esperto
que mais uma vez engana o poder apresentado na sua forma mais cruel e aniquiladora.

Estamos diante de dois símbolos que se integram para não se complementarem e


identificarem, mas para iluminar uma nova etapa da narrativa, após a superação da grande
prova e garantia de um prêmio. Cabe-nos perguntar: Qual o melhor prêmio para o menino
com severos conflitos edipianos? Certamente, livrar-se da ameaça de castração, da culpa e
sobretudo, ter acesso à lei que o interditará.
107

O Ogro ao cortar o pescoço das meninas, realiza, simbolicamente, a castração dos


impulsos destrutivos causados pela dor da separação primeira, mas também pela dor-medo de
perder o “pênis” para o pai, reatualização de todas as perdas, desde os primeiros cortes, como
o corte do cordão umbilical que liga a criança ao corpo materno.

O primeiro corte pode provocar sentimentos de medo e perseguição, como


também depressão por não mais ser extensão do Outro, como se aquilo que ligasse a criança
ao corpo da mãe tivesse sido fantasmado para garantir um estado de paz e integração do bebê.
Estamos, mais uma vez no âmbito do corpo simbolizado, surgido da dor – separação e
destaque do corpo total e único.

Exatamente por pensarmos na dor como um fenômeno de destaque que extrapola


o corpo físico é que olhamos para o medo de castração, como sendo também uma retomada à
dor dos primeiros cortes, tão freqüentemente abordados nos contos de fadas de maneira
indireta e por isso capaz de provocar no leitor infantil o sentido das suas várias dores.

O Pequeno Polegar é certamente uma narrativa que consegue ultrapassar os


limites da linguagem do cotidiano para informar e comunicar mais do que a aventura de um
menino perdido na floresta. Por isso é tão atual, universal e sedutora mesmo para as crianças
contemporâneas, pois o drama humano parece continuar o mesmo desde os primeiros tempos.

Diante da dor-medo da castração anunciada e vivida no conto analisado,


gostaríamos de referenciar que:

“A dor psíquica escapa à razão. Querer demarcar um afeto é


um desafio. Os próprios Freud e Lacan raramente abordaram
esse assunto.(...) a dor física ou psíquica, pouco importa- é
sempre um fenômeno de limite. (...) seja o limite impreciso
entre o corpo e a psique, seja entre o eu e o outro, ou
principalmente entre o funcionamento regulado do psiquismo e
o seu desregramento. (...) A dor é um fenômeno misto que
surge no limite entre corpo e psique(...) é um afeto derradeiro,
a última muralha antes da loucura e da morte. Ela é como um
estremecimento final que comprova a vida e o nosso poder de
nos recuperarmos. Não se morre de dor. Enquanto há dor, há
108

forças disponíveis para combate-la e continuar a viver. É essa a


noção de dor e afeto.”73

A dor sentida pelo Polegar tem lugar noutras dores. A ameaça de castração é o
limite que abriga o Complexo de Édipo e que marca a superação de um estado de sofrimento
desregrado para outro no qual se pode suportar a dor da perda e resignificar o “órgão” perdido
transformando-o em afeto sublimado. Esse limite é tênue e impossível de ser localizado fora
do simbólico, pois está situado entre o corpo real e o corpo imaginário, fantasmado.

Esse conto, como tantos outros com intensidade metafórica, propõe ao leitor a
situação de conflito e de dor, às vezes até um sofrimento insuportável, mas também ao
mesmo tempo, assegura-nos de que a recuperação da perda, da queda, da ferida aberta, é
possível. Pois, essa recuperação é originária desse lugar salvador onde temos acesso, somente
pelo simbólico enquanto representante da falta.
É provável que o conto perturbe o pequeno leitor e que o deixe apavorado no
momento da degolação das meninas, pois é muito cruel estar diante de um pai tão monstruoso,
como também é difícil de ver que a saída encontrada por Polegar é cúmplice da maldade do
gigante. Ao mesmo tempo que isso é visto como sendo o pior do Outro, também produz um
olhar para dentro. No exato momento em que o Ogro pega o pescoço das suas filhas e realiza
o corte sem hesitar, ficamos indignados com ele, mas também com a astúcia do menino.

O gigante assassina as ograzinhas quando elas, ainda, dormem indefesas e


desprotegidas, por conseguinte incapazes de reação. Assim o eu que se depara com a comoção
e observação da perda é o do Polegar, então é justificado que a reação surja dele.

A perda nos coloca sempre diante de sentimentos de dor que acontecem


simultaneamente e que podemos dividir em momentos que se misturam entre :

“O eu que sofre a comoção, o eu que observa a comoção, o eu


que sente a dor, expressão consciente da comoção e o eu que
reage à comoção.”74

73
NASIO, Juan-David. Op. cit., p. 19.
74
Idem, ibidem, p. 26.
109

Ora, o que são essas etapas senão provas pelas quais temos que passar diariamente
para podermos sobreviver no meio de todas as perdas, desde as pessoais até as coletivas ? Não
somente passar, mas sobretudo superar para que cheguemos ao lugar desejado.

Sendo as meninas mortas o duplo dos meninos abandonados, mas em luta para
atravessar os desafios, nada mais coerente no tecido da narrativa do que oferecer ao Polegar
um espaço de reação em oposição à comoção resultante da dor da castração.

Após o ataque violento do Ogro, novamente é o menino que corre atrás da solução
para poder sair ileso do perigo. Quando percebe que o gigante sai do quarto, cuida de acordar
os irmãos para partirem apressadamente. Como a batalha, ainda, não está totalmente vencida,
eles correm com muito medo. Pulam muro e correm o resto da noite sem saber para onde ir ou
que destino devem tomar.

Claro que depois de uma grande ruptura vem a luta por um espaço novo e
desconhecido no qual se precisa conquistar para confiar. Sendo assim, é mesmo preciso pular
muros, tremer diante do que está além dele e correr muito para conseguir reconhecer-se como
um novo ser, emergente do sofrimento. Ninguém, depois de transpor uma prova, um perigo
ou ameaça sente-se tranqüilo imediatamente, pois é necessário que as perdas sejam
processadas, registradas afetivamente. Isso, implica em tempo para a maturação, quase o
mesmo que se leva para superar um grande desafio.

A verdadeira vitória se estabelece após sucessivas confirmações de que todas as


provas foram vencidas. Daí que, o conto em questão tenha continuidade e Polegar passe por
outros obstáculos para que possa enfim, gozar a coroa conquistada.

Na verdade, a sua luta com o gigante não termina aí, embora seja a etapa mais
difícil, muita coisa acontece até que Polegar sinta-se seguro para voltar para sua casa. O Ogro
investirá na perseguição aos meninos, pois ele se desespera ao perceber seu terrível engano.
Para ele, seu objetivo fracassou. Não interessa comer o que é seu, mas precisamente o que
está na ordem do Outro. Quer carne fresca, mas não aquela que representa o pecado. Comer
suas filhas significa devorá-las, possui-las ilimitadamente. Mas, o pai interditor e mau é a lei
que proíbe o incesto, portanto o Ogro não pode comer suas filhinhas.

Contudo, logo após a fuga dos meninos a narrativa fala do desespero da mulher e
de seu marido ao se depararem com a cena grotesca, no qual encontram as sete filhas
110

degoladas e mergulhadas numa poça de sangue. A mulher desmaia e o gigante fica colérico se
perguntando como podia ter feito aquilo, assim esbraveja:

“Aqueles miseráveis vão me pagar, e vai ser agora mesmo.


Atirou um balde d’água na cara da mulher, e quando ela
voltou a si ele lhe disse: “Traga depressa as minhas botas de
sete léguas, para que eu possa pegá-los.” E meteu o pé na
estrada. Depois de ter corrido para todo lado, ele acabou por
seguir o caminho por onde iam os pobres meninos, que já
estavam a apenas cem passos da casa de seu pai. Eles avistaram
o Ogro, que saltava de montanha em montanha e atravessava
os rios com tanta facilidade como se fosse regatos. O Pequeno
Polegar, ao ver uma reentrância numa rocha perto dali,
escondeu-se nela junto com os irmãos, sempre atento ao que o
Ogro ia fazer. O gigante bastante cansado da longa caminhada
que havia feito inutilmente (pois as botas de sete léguas cansam
muito quem as usa), quis repousar um pouco, e por acaso foi
sentar-se em cima da rocha onde os meninos estavam
escondidos.”75

Novamente, os meninos são impedidos de seguir caminho. Estão interrompidos,


mesmo estando tão perto de casa, agora casa do pai. Depois de escapar da prova mais terrível,
buscam a identificação com o pai, assim também fica mais fácil de “desejar” a mãe sem uma
grande dose de culpa, já que ela é o objeto de desejo da pulsão sexual do pai. Desejar a mãe é
ser como o pai, portanto quanto mais o menino se identifica com o pai, mais compreende-se
na sua sexualidade.

Parece que a saída encontrada é sublimar a fantasia incestuosa por meio de outra
fantasia que é a de se sentir tão poderoso como o (falus) pai. Sendo assim, não é tão perigoso
querer a mãe, pois o pai – presente não consiste mais numa ameaça, mas precisamente num
aliado identificado pelo falus.

75
O Pequeno Polegar. In : Anexo 2, p. 268.
111

Estamos diante de um gigante não somente muito feroz, como também poderoso,
pois para seguir os meninos calça uma bota de sete léguas que o faz transpor montanhas e
encontrar o que quiser. Esse pai – mau interrompe os meninos quando os mesmos estão muito
próximos da casa do pai- “bom”, que embora Polegar o veja como um rival porque tem
ciúmes dele com a mãe, ele não o ameaça com um facão.

A grande saída para que o menino edipiano encontra para aceitar o pai –rival.
Possivelmente, esses dois pais se encontram nesse momento do conto tão próximos, porque
seja necessário que o menino possa confrontá-los e assim “escolher” a melhor saída para a sua
confusão afetiva.
Por outro lado, temos elementos de conteúdo bastante mágicos, como a bota de
sete léguas, que pode levar quem as usa para qualquer lugar, transpor todo limite, enfim não
há montanha ou riacho que possa atrapalhar aquele que as calça. Além disso, o pé também
pode significar domínio da realidade. Depois, o pé é símbolo fálico, de poder e ascensão.

Contudo, o calçado pode representar autoridade, sinal de que um homem pertence


a si mesmo, que se basta e é responsável pelos seus atos. Pode ser ainda, um símbolo de
liberdade sem limites. Por mais que o símbolo da bota nos conduza ao princípio de realidade,
temos que ser sensíveis para o fato de que estamos falando de uma bota de sete léguas,
portanto mágica e com capacidade de dar liberdade a quem a usa.

Junto disso, temos as montanhas que podem significar pela sua elevação, a força,
limite entre o visto e o não visto, castelo interior, morada da alma, elevação entre outras
coisas, pois estamos diante de um simbolismo dos mais múltiplos. Entretanto, para nós é mais
significativo analisar o fato de Polegar se refugiar numa reentrância rochosa. Agora, não
estamos mais nos referindo ao que se projeta para o alto, mas contrariamente, ao que está para
dentro. O texto nos diz que os meninos se esconderam, refugiaram numa reentrância, portanto
cavidade.

Ora, o que é uma cavidade senão um buraco ? Embora um buraco signifique quase
sempre o desconhecido e por isso, temível, esse do qual falamos, presta-se como abrigo e
pode servir inconscientemente como uma representação do corpo materno que protege.
Outrossim, uma “caixa” ou cavidade é sempre um lugar secreto que pode acolher ou sufocar.

Sendo assim, é pertinente relacionar o esconderijo de Polegar e seus irmãos como


sendo o corpo acolhedor da mãe, mas do qual não se pode desfrutar todos os prazeres, pois
112

nele também está o proibido, vetado, dai que é uma reentrância rochosa, imóvel, imutável e
talvez perigosa. As cavidades têm também um sentido do surpreendente, do desconhecido que
se deve ter cuidado, pois “abrir uma caixa” pode implicar num grande risco. O secreto
também relaciona-se ao inconsciente e suas possibilidades positivas ou negativas.

Parece justificado o fato das crianças estarem impossibilitadas de chegarem até a


casa, mesmo estando perto. . Mais uma vez, o interditor ameaça, pois quando o gigante
cansado da longa caminhada que já tinha feito decide repousar um pouco, senta-se exatamente
perto da rocha onde os meninos estão.

O texto revela que estar ali dentro sem poder sair, correndo o risco de
sufocamento ou de serem descobertos é tão amedrontador quanto ser ameaçado por um facão.
Mas, a narrativa também diz que estando o Ogro a roncar em sono profundo, o Polegar, que
está menos assustado do que os outros, sugere que os irmãos aproveitem o momento e fujam
para casa e não se preocupem com ele próprio. Assim, os meninos logo alcançam à casa dos
pais.
Vejamos: somente o mais novo não parte, sob a justificativa de ficar no local para
proteger os demais. Mas, sendo ele tão pequeno deveria ser o primeiro a retornar para os
braços da mãe e do pai. Entretanto, exatamente por ser ele a criança que vive os conflitos
edipianos, precisa da longa viagem até que esteja suficientemente maduro para retornar
vencedor.

Tendo ultrapassado a prova fundamental, ainda precisa provar para si mesmo que
alcançou outro grau de maturidade humana, portanto cresceu. Sendo que nesse momento da
história ele ainda não está pronto para ser cúmplice do pai interditor. Tanto não está, que em
vez de partir com os irmãos e aproveitar o sono do Ogro, ele fica para mais um desafio.

Dessa vez, o menino tenta novamente estar no lugar do Outro, de acordo com o
conto:

“O Pequeno Polegar aproximou-se, então, do Ogro e tirou-lhe


cautelosamente as botas, calçando-as imediatamente. As botas
eram muito grandes, mas como eram encantadas tinham o dom
de aumentar ou diminuir o seu tamanho, de acordo com a
perna de quem as calçasse. Assim sendo, elas se ajustaram às
113

pernas do Pequeno Polegar como se tivessem sido feitas para


ele.
Ele foi direto para casa do Ogro e lá encontrou a mulher dele
chorando junto de suas filhas degoladas. “O seu marido está
em grande perigo”, disse o Pequeno Polegar. “Ele foi
capturado por um bando de assaltantes, que juraram matá-lo
se não lhes entregar todo o seu ouro e toda a sua prata. No
momento em que eles encostavam o punhal na sua garganta, o
seu marido me viu e me suplicou que viesse avisar a senhora da
situação em que se encontra e lhe dizer para me entregar tudo
o que há aqui de valor, sem esquecer nada, porque do contrário
eles o matarão sem piedade. Como tudo tem que ser feito muito
depressa, ele quis que eu calçasse sua bota de sete léguas para
me desincumbir dessa missão, e também a senhora não pensar
que estou mentindo.” Apavorada, a boa mulher entregou-lhe
imediatamente tudo o que possuía, pois aquele Ogro, embora
gostasse de comer crianças, era muito bom marido. O pequeno
Polegar, carregado com todas as riquezas do Ogro, dirigiu-se à
casa de seu pai, onde foi recebido com grande alegria.”76

Verificamos que nessa atitude do nosso pequeno herói existe mais do que
esperteza e ousadia, pois isso não repassa para a criança um sentido maior de existência e
afinal, não estamos diante de uma narrativa despossuída de valor metafórico.

A história poderia ter sido encerrada no momento em que o Ogro dorme, dando
oportunidade de fuga para todos os meninos. Entretanto, não é isso que acontece. Na
realidade, Polegar ainda precisa de tempo para se certificar sobre o seu lugar na família e na
relação com a sua mãe. Além disso, ele precisa identificar-se com o pai bom, após ter
enfrentado o pai mau.

De qualquer maneira, o menino não é tão inocente e cheio de boas intenções, pois
para alcançar seus objetivos ele rouba, mente e apodera-se do que é do Outro. Acreditamos
que a narrativa a partir disso ganha uma nova interpretação, sendo então necessário uma

76
Idem, ibidem, p. 268.
114

interpretação mais específica com relação às conquistas do herói por um outro nível de
maturidade e crescimento, o que implica no fato de “enganar” o pai mau, roubando-lhe a
identidade e o poder (botas) para enfim, retornar gratificado e vitorioso para a casa.

Nas próximas páginas, trataremos dessa busca pela identificação com o Outro e
também, o que isso pode representar no momento de travessia da criança que enfrenta
conflitos edipianos para uma outra experiência de afeto, a qual somente se tem acesso pelo
viés da realização de uma fantasia de onipotência e salvação. Então, deixamos a análise de
símbolos e possíveis conjecturas sobre tais questões para a próxima discussão, da qual
tratamos a seguir tomando como referência o conto O Junípero.
CAPÍTULO 4

“O Junípero” e as Três Etapas da Dor


115

CAPÍTULO IV – O JUNÍPERO E AS TRÊS ETAPAS DA DOR

“Toda operação mental compõe-se sempre de elementos


tomados da realidade, isto é, extraídos da experiência anterior
do homem. (...) A fantasia é o elemento ordenador da realidade,
tal como aparece para o sujeito. (...) A emoção une e combina
representações divergentes da realidade.”77

Neste capítulo, nos propomos a analisar de maneira mais enfática a dor sob a lente
de alguns pressupostos da psicanálise e dos elementos estruturantes da narrativa que possam
nos revelar por que histórias dessa natureza, ao mesmo tempo em que causam o horror da
criança são capazes também de exercer um enorme poder de sedução.

O Junípero faz parte da coletânea dos irmãos Grimm, conhecida também como A
árvore do Junípero, e não é uma das histórias mais conhecidas, principalmente das crianças
de hoje, talvez pelo fato de ser um conto com aspectos muito cruéis e que tende a mexer com
os conteúdos internos de quem a lê. No entanto, durante o período dos nossos estudos
observamos que no espaço da sala de leitura, entre muitos e muitos livros, esse é um conto
dos mais procurados pelas crianças.

O fato de ser um conto desejado pelos pequenos nos despertou o interesse, pois
muitos liam O Junípero repetidas vezes e não cansavam de se escandalizar com a madrasta e
ter reações de euforia quando a mesma é castigada. Percebemos que mesmo sendo uma
história assustadora, as crianças tinham prazer em escutá-la ou lê-la.

De fato, isso chama a nossa atenção, embora não seja tão difícil de ser
compreendido, pois é uma narrativa que trata do canibalismo, da rejeição, de uma madrasta
terrível e ciumenta, do amor entre irmãos e da superação pelo amor. Se por um lado temos
uma trama com requintes de crueldade como veremos mais adiante, por outro temos a vitória
do bem garantindo à criança, que mesmo diante das piores situações, ela encontrará forças
para superá-las e sair vitoriosa.

77
YGOTSKY, Lev S. Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1978.
116

Os contos de fadas são narrativas que falam de um mundo encantado, mas sem
destituir desse universo todos os valores que abarcam a experiência humana, tanto os do bem
como os do mal. Tratam da luta universal que compõem as esferas do individual e do
coletivo.
Ao tratarem da polaridade bem x mal , os contos abordam uma batalha originada
internamente, fruto de uma dinâmica psicológica primitiva, na qual surgem as primeiras
divisões entre mãe e filho nas quais aparecem os primeiros horizontes de conflito. Sem
dúvida, tratamos nesse momento de uma narrativa que traz essa luta de forma contundente.

Reconhecemos que não é fácil estar diante das nossas divisões básicas, não é
confortável ver em nós os impulsos instintivos que nos reconduzem para um lugar
supostamente “esquecido”, embora com muita freqüência todos nós estejamos entre escolher
o bem ou mal, pois :

“Grande parte da existência humana consiste em reconciliar as


divisões básicas no eu que governam nossos relacionamentos
com os outros: amorável versus não-amorável, leal versus
desleal, valioso versus não valioso. Essas divisões têm origem
na cruel divisão do mundo infantil entre sensações de satisfação
(boas) e de insatisfação (ruins): barriga cheia é bom, fome é
ruim; calor é bom, frio é ruim; estar no colo é bom, ser privado
de contato é ruim. Muito antes das crianças serem capazes de
dar rótulos verbais, ao que é bom ou ruim, uma inteligência
sensorial primitiva lhes capacita a reconhecer que o mundo –
ou seja lá o que for que tem lá fora – é divido entre bom e
ruim.”78

Assim, compreendemos que todas as narrativas sejam elas para crianças ou


adultos falarão sempre das lutas entre o bem e o mal, pois o mundo é concebido dentro de
uma visão humana dualística entre o que é bom e ruim, que tem a ver com valores, mas
também com sensações. Então, qualquer coisa, estímulo que cause dor será considerado como

78 CASHDAN, Sheldon. Op cit., p. 43


. .
117

significante das forças do mal e o que causa conforto e bem estar será tido como representante
do bem.

A necessidade de se compreender o sujeito dentro da sua infinita complexidade,


pois desse mundo dividido, desde a etapa primitiva, surgirá uma pessoa com sua
subjetividade, desejos e olhares, enfim singularidade. Outrossim, o singular existe dentro do
universal, portanto temos que nos encaixar no que é válido para a segurança e equilíbrio
social. Nossa vontade, deve respeitar os limites básicos para a construção de uma realidade
para o bem.

Ora, o mal ameaça não somente o coletivo, mas primeiramente a integração


psíquica do sujeito, então o fato dos contos de fadas apresentarem soluções felizes, não quer
dizer uma proposta alienante, mas que o bem é necessário e que só alcançaremos uma vida
justa e equilibrada quando houver a vitória do bem. Afinal, vivemos para esse encontro com a
felicidade, o que não quer dizer que o mal não exista e que por vezes teremos que lançar mão
desse impulso como prova vital, e também organizadora das funções psíquicas.

Nessa perspectiva, não podemos negar a figura materna como sendo a fonte
primeira de tudo, bem e mal nela se fundem e dão origem aos múltiplos sentimentos, por
conseguinte não é mero acaso que a mãe possua tanta importância em muitos contos de fadas,
oferecendo uma imagem de segurança e proteção ou de ameaça, abandono e aniquilação.

A imagem materna constitui o eixo da narrativa que analisaremos a seguir, pois a


partir do desejo de uma mãe boa, nasce a criança, mas a sua presença permanente é
impossível. Assim, a mãe benevolente dá lugar ao surgimento da mãe má, representada pela
madrasta. Contudo, O Junípero apresenta mais do que uma madrasta gananciosa e ciumenta,
mas cruelmente destruidora.

Os impulsos de destruição são a maior fonte de desprazer para o indivíduo que


para se preservar saudável tem que lutar contra a dor , embora saibamos que existe ai, uma
certa dose de prazer. Aliás, o que sustenta a dor é essencialmente, algo que escapa da pulsão
de vida para atender ao desejo inconsciente dos nossos instintos primitivos e selvagens. Pois,

“Só há comunicação significante através do peso de carne que


ela veicula, através das zonas erógenas ou dolorosas do corpo
118

donde ela provém ou que ela visa, através dos vividos corporais
e depois psíquicos que ela evoca.”79

Talvez surja explicação para o fato das crianças se sentirem tão perturbadas e
atraídas pelos contos que expõem uma certa dose de horror, pois nos parece que negar o mal é
protegê-lo, guardá-lo. O que pode por vezes, ser muito mais fatal para a integridade psíquica
do que o seu enfrentamento. Pois, os contos de fadas fazem exatamente esse papel mediador,
no qual o leitor reatualiza sua dor pela dor do Outro.

Ao falarmos da Literatura, estamos no campo da linguagem e por conseguinte ao


da fala, dita de forma muito especial, sustentada no lugar do desvio, portanto, objeto de
sedução. A linguagem dos contos deixa de ser intermediária da fala vazia para constituir-se
em fala plena, pois está engendrada no espaço faltoso, vazio entre uma palavra e outra, sendo
mais do que representante da falta, a própria falta vivida pelo leitor que surge no espaço-
campo da representação.
Nessa perspectiva, podemos considerar a Literatura como lugar intermediário
entre o dito e o não dito, capaz de estabelecer sentido para o sujeito que ai se projeta para
além da linha e da página, tornando-se linguagem do Outro, possivelmente o “lugar da
inscrição metafórica das pulsões”, como diria Didier Anzieu no seu artigo “Para uma
Psicolingüística Psicanalítica: Breve Balanço e Questões Preliminares”, ao referir-se à
linguagem como espaço intermediário, fenômeno transicional do qual emerge entre o sujeito e
o objeto um espaço vazio, mas pleno de desejo, penetrado pela linguagem, o jogo e a cultura.

É nesse espaço vazio do conto O Junípero que, lançaremos nossas conjecturas


sobre as possibilidades de interpretação à luz da Psicanálise, dentro daquilo que Freud chama
de jogo simbólico permanente entre o que é da ordem do prazer e do sofrimento.

Não pretendemos enfatizar a questão do canibalismo, embora reconheça a sua


importância como ponto crucial para o aparecimento de um afeto doloroso, visto que em
geral, as crianças com dificuldade de superar os conflitos de base do ego primitivo, sentem-se
com freqüência ameaçadas de fragmentação e mutilação.

Nem tampouco nos ateremos com profundidade no complexo de castração, muitas


vezes causador de ansiedades punitivas, visto que nos contos já analisados realizamos

79
ANZIEU, Didier. et al. Psicanálise e Linguagem: do corpo à palavra. Lisboa: Moraes, 1979, p.11.
119

algumas conjecturas a esse respeito. Assim, para nós nesse momento, interessa sublinhar
alguns aspectos da dor que consideramos fundamentais para a abordagem do nosso tema, pois
existem nessa narrativa de maneira muito especial, questões relacionadas ao desprazer que
merecem algumas considerações.

Desejamos por hora, traçar o nosso percurso de análise norteados pelo que diz
Juan David-Nasio no seu trabalho intitulado “Da Dor e do Amor”, quando refere-se aos três
tempos da dor como sendo: da ruptura, da comoção e da reação defensiva do eu, para o qual
ele sugere as seguintes premissas:

“- a dor é um afeto que reflete na consciência as variações


extremas da tensão inconsciente, variações que escapam ao
princípio de prazer. (...) - O eu é realmente um intérprete capaz
de ler no interior a língua das pulsões e traduzi-la no exterior
em língua dos sentimentos. (...) - Habitualmente, o
funcionamento psíquico é regido pelo princípio de prazer, que
regula a intensidade das tensões pulsionais e as torna
toleráveis. – (...) A dor é o testemunho de um profundo
desregramento da vida psíquica que escapa ao princípio de
prazer.”80

O Junípero é um conto que se encaixa perfeitamente naquilo que nos propõe


Nasio, pois logo no início da narrativa temos o momento da grande ruptura, estabelecida pela
primeira dor que demarcará as ações que virão a seguir, após a morte da mãe-boa. Depois,
teremos um longo estado de comoção provocado pela perda dessa mãe, o que provoca no
menino o sentimento de dor por julgar-se abandonado, ao mesmo tempo que tal fato, parece
ser confirmado pela atitude da madrasta ao rejeitá-lo explicitamente, como observaremos
durante a análise do conto.

A reação só se apresentará no momento de finalização da narrativa, depois que o


menino consegue a superação dos seus conflitos, como também realiza as provas que lhe são
impostas.

80
NASIO, Juan-David. Op. cit., pp. 20-22.
120

Assim, nos preparamos para a seguir, interpretar as várias etapas do conto à luz
daquilo que nos é colocado pela psicanálise com relação à dor e ao desprazer, na perspectiva
de realizar uma aliança que possa ser esclarecedora para os estudos que investigam a
importância dos contos de fadas na formação de leitores, mas principalmente com relação à
contribuição que oferece para a vida de fantasia do leitor infantil. Afinal, essas histórias são
muito mais do que narrativas inocentes, capazes somente de divertir. Ora, nenhum
instrumento de leitura se sustentaria no tempo e no espaço se não tivesse um significado
maior do que provocar o entretenimento.

Então, partimos para conhecer melhor o sentido da presença da dor nos contos
para a infância, nos permitindo seguir o caminho provocado pela narrativa O Junípero, dentro
da sua rede de conexões simbólicas e como isso pode ser refletido em cada leitor, a partir do
literário que se inscreve por excelência nas ordens do prazer e desprazer.

4.1 - A PRIMEIRA ETAPA DA DOR: A RUPTURA

Atribuímos ao conto a importância de ser um instrumento mais do que


intermediário entre o leitor e a vida, pois consideramos que nesse espaço vazio erguido pela
fantasia existe mais do que o “fazer de conta”, já que aí se vive todas as espécies de
existência, do sublime ao grotesco, no conto existe gente que pulsa sangue, verbo e
linguagem.
Na realidade, os contos de fadas trazem à tona os nossos fantasmas e nos
colocando diante daquilo que para nós faz parte do indizível , propõe a internalização dos
diversos sentimentos, a fim de que diante do fantasmado exista uma compreensão afetiva
daquilo que se pode interpretar como nossas primeiras faltas. Pois, é preciso se ter em conta
que:

“A obra, quer ponha em cena a existência quotidiana ou os


acontecimentos excepcionais, provém de outro lado: inventa
uma representabilidade para um sector da realidade psíquica
do autor – e do leitor – que dele está privado, como o mostra
Ehrenzweig no seu livro sobre L’ ordre cachê de l’ art (1967).
Ela engrena, em estado de vigilância e através de um acto
criador, as transformações que, durante a noite, o pré-
121

consciente opera espontaneamente nos pensamentos latentes do


sonho: deslocamento de intensidade das imagens e dos afectos,
transferências das significações, figuração, dramatização. Com
efeito, não se deve confundir o conteúdo manifesto e a gênese, o
produto e o processo de produção (...) A criação tal como o
sonho, é primeiramente a transformação de um conteúdo
latente num conteúdo manifesto, ou seja, de dados
inconscientes em dados pré-conscientes, transformação que faz
de um fantasma banal um sonho singular, um texto original.”81

Essa é uma consideração que nos interessa na medida em que coloca a obra
literária, no nosso caso, os contos de fadas, num lugar privilegiado da diferença, pois sendo a
narrativa fundada a partir do real dos dados do inconscientes e pré-conscientes, estabelece-se
numa ordem de caráter singular, mas também universal, portanto aquilo que pode ser
considerado como complexo ou fantasma comum e banal é transformado em um texto
singular e raro, porque diz respeito à diferença da história de cada leitor.

Então, o drama da narrativa passa a ser a história do drama secreto vivido por
cada leitor, na medida em que se projeta no vivido das personagens e no emaranhado das suas
dores.
Não é engano afirmar, que toda narrativa articula-se no jogo da presença-ausência
inerente ao mundo simbólico, tudo começa nesse ponto confuso onde a presença é marca da
ausência e o contrário é verdadeiro. Assim, a narrativa está sempre marcada por um traço
subjetivo sustentado pelo desejo do Outro. Talvez, se possa dizer que a narrativa é esse
espaço onde moram as nossas histórias com tudo que elas representam. É mais de que a
narração de um acontecimento, de um fato. É mais do que trama tecida ao prazer das palavras,
pois a narrativa traz em si o ritmo, a velocidade, os cortes, a explosão de sentimentos porque
diz respeito ao vivido ou revivido por cada pessoa que lê , naquele outro que é o texto, as suas
próprias existências.

O Junípero se constitui nessa narrativa de explosão porque se configura no espaço


singular de uma criança que vive a dor da rejeição, mas também porque essa criança não fala
sozinha, não sente sozinha, com ela sente e existe uma multidão de outras crianças. Assim,

81
Idem, ibidem, p. 197-199.
122

essa história tão repleta de amargura, medo, solidão e tristeza também fala de tempos
imemoráveis, onde a presença do caos desnorteava as emoções.

Esse é um conto que traz na sua trama conflitos muito comuns presentes na vida
das crianças, embora se pareça absurdo que uma criatura seja tão cruel quanto à madrasta,
sabemos que a crueldade não é um traço tão raro na personalidade de muitas pessoas e que
com freqüência nos expomos às notícias veiculadas pela mídia que tratam de denunciar pais
que são capazes das mais terríveis atrocidades contra seus próprios filhos.

Embora, a madrasta da personagem protagonista desse conto, possa ser


encontrada no mundo real, sabemos que o conto não opera diretamente os significados mais
evidentes e superficiais, pois os conteúdos submersos emergem de um lugar qualquer para
confortar a criança diante de suas aflições e angústias, restabelecendo a confiança no mundo e
no amor dos pais.

Como na maioria dos contos, O Junípero, nos convida a adentrar no tempo do Era
uma vez, nesse tempo que foge e permanece no sempre. Que é marcado por algo mágico, no
qual a nossa consciência escapa dos transtornos diários para tocar no “real” da ficção como se
tudo fosse de fato uma verdade a ser vivida. Enquanto, vivemos o tempo do conto estamos
salvaguardados, presos e reféns de uma história que é do Outro, mas que secretamente
também é nossa. A vida nesse tempo é.

Contudo, esse conto fala de um tempo cronológico devidamente localizado há


mais de dois mil anos, embora o efeito provocado seja o mesmo , pois antes o leitor é situado
seguindo o apelo de seus autores, já que essa é uma história recontada pelos Grimm. Como
todo conto de fadas esse também sugere o tempo mágico, anunciado pelo:

“Era uma vez, há muito tempo, nada menos de dois mil anos,
um homem muito rico, casado com uma mulher bela e
virtuosa, que muito o amava, assim como ele muito a amava.
Não tinham filhos, porém, apesar das preces que a mulher
rezava diariamente, pedindo-os a Deus. Em frente de sua casa,
havia o jardim, onde crescia uma bela árvore, um junípero, e,
em um dia de inverno, a mulher estava perto dela, descascando
uma maçã, quando cortou o dedo com a faca e algumas gotas
de sangue caíram na neve.
123

• Ai! – gemeu a mulher, e depois deu um suspiro profundo e


sentiu-se triste, vendo o sangue.
• E, depois de meditar por alguns instantes, murmurou:
• Quem me dera ter um filho corado como sangue e de cútis
clara como a neve!
E, enquanto assim falava, ficou, em vez de triste, muito alegre,
certa de que o seu desejo se realizaria. Então, entrou em casa, e
se passou um mês e a neve foi-se embora, e se passaram dois
meses, e tudo ficou verde, e depois três meses e as flores todas
surgiram da terra, e depois mais quatro meses e todas as
árvores do bosque se tornaram mais frondosas e os galhos,
muito verdes, se entrelaçaram todos, e os pássaros neles
pousados cantaram até que todo o bosque ressoou com seus
cantos e as flores caíram das árvores, depois o quinto mês
chegou e passou, e a mulher se sentou embaixo do junípero,
que desprendia um perfume tão suave que ela sentiu o coração
exaltar-se, e, no sétimo mês, ela colheu as frutas do junípero e
as comeu verozmente e ficou triste e doente, e se passou o
oitavo mês, e ela abraçou o marido e disse, chorando: - Se eu
morrer, enterra-me debaixo do junípero (...).”82

Estamos aqui no primeiro tempo da dor, a ruptura. Temos até então, uma
narrativa que segue os mesmos padrões de tantos outros contos de fadas. Uma bela mulher
que vive muito feliz com seu marido rico e deseja ter um filho para complementar a sua
felicidade. O desejo do casal de gerar uma nova vida é um início bastante comum nessas
histórias. Tal qual como em Branca de Neve, que apresenta uma rainha desejosa de ter uma
filha com lábios vermelhos como sangue, e a pele branca como a neve, além do cabelo da cor
do ébano, na história do Junípero temos uma mãe que descascando uma maçã, corta o dedo e
deseja ter um filho.

O desejo de se ter um filho nos contos de fadas inicia muitas narrativas, o que de
certa forma, diz à criança que os pais desejam seus filhos e que colocar uma vida no mundo é

82
O Junípero. In: Anexo 3, p. 280.
124

algo muito especial que denota força e poder. Assim, o pedido da bela mulher é atendido após
ter cortado o dedo quando descascava uma maçã.

Tanto a maçã quanto o sangue são dois elementos com uma significação
simbólica muito rica. A maçã nos remete ao paraíso e ao pecado original, portanto à queda. O
sangue é vida, pulsão sexual e está ligado a vários rituais. Consideramos que o conto O
Junípero tem seu início por meio de símbolos com acentuado apelo à sexualidade.

Vejamos o que diz o Dicionário de Símbolos sobre esses dois signos que dão
início a história:

“A maçã é simbolicamente utilizada em diversos sentidos


distintos, mas que mais ou menos se aproximam: (...)
fecundidade do Verbo divino (...) Árvore da vida e, ora o da
Árvore do conhecimento do bem e do mal: conhecimento
unificador, que confere a imortalidade, ou o conhecimento
desagregador, que provoca a queda (...) comer da maçã
significa abusar da própria inteligência para conhecer o mal,
da sensibilidade para desejar, da própria liberdade para
praticá-lo (...) Em alguns contos bretões, o consumo de uma
maçã serve de prólogo para uma profecia (...).”83

De acordo com a simbologia da maçã confirmamos a profecia da realização de um


desejo, pois gerar um filho é o maior desejo da bela mulher que ao descascar a maçã e cortar
o dedo entra em contato com o vermelho do sangue que mancha a neve, que sendo branca,
representa a pureza. Assim, o sangue anuncia a vida, e também:

“(...) todos os valores solidários com o fogo, o calor e a vida que


tenham relação com o sol. A esses valores associa-se tudo que é
belo, nobre, generoso, elevado. Também participa da
simbologia do vermelho. O sangue é universalmente
considerado o veículo da vida. Sangue é vida se diz

83
CHEVALIER, Jean., GHEERBRANT, Alain. et. al. Op. cit., p. 572.
125

biblicamente. Às vezes, é até visto como o princípio da geração


(...) o sangue divino misturado à terra deu vida aos seres (...) dá
origem às plantas e até mesmo aos metais (...) calor vital e
corporal (...) veículo das paixões (...).”84

Assim, seguindo na direção do que mostram os signos que dão início a essa
narrativa, compreendemos a natureza do desejo de gerar um filho, como também sendo a
maçã e o sangue simbologias ligadas à vida e à fertilidade nos serve como anúncio de que em
breve a bela e feliz mulher será mãe de um menino branco como a neve e corado como o
vermelho do sangue.

No oitavo mês de gravidez ela come das frutas do junípero, fica triste e doente. A
árvore, símbolo de vida e fertilidade é também o seu instrumento de morte. Entretanto, ao
pedir ao marido que se morresse gostaria de ser enterrada debaixo do junípero, sente alívio e
consolo, estando preparada para no nono mês dar à luz ao seu filho. E assim , acontece. Nasce
um menino branco como a neve e corado como o sangue.

No conto, fica claro que a mulher está tão feliz com a realização do seu desejo,
que ao ver a criança, morre. Estranho alguém morrer de felicidade! No entanto, a psicanálise
diz que a morte é o único momento de gozo absoluto, pleno, inércia total. Equilíbrio.
Provavelmente, o jogo entre felicidade e morte encontre ai o seu sentido. Morrer tanto é final
de ciclo como início de uma nova etapa. Nesse instante, estamos diante do fato que provocará
o surgimento de todos os conflitos que iniciarão o momento da travessia, compreende-se essa
etapa como sendo a da viagem, da partida, característico dos contos de fadas.

O marido cumpriu com a palavra e enterrou-a debaixo da árvore, exatamente


como ela havia pedido. Chorou muito, mas com o passar do tempo, consolou-se e casou com
outra mulher com quem teve uma filha.

Quando a menina nasceu, a mulher sentiu por ela um grande amor, mas em
contrapartida ao ver o menino, filho do marido, sentiu um aperto no coração, pois ele seria
sempre uma ameaça já que, a sua filha teria que dividir com ele a fortuna da família.

84
Idem, ibidem, p. 800.
126

Interpretamos que fortuna dentro desse contexto tem um significado maior do que
o de riqueza material, pois nos parece que a mulher ama bastante sua filha, fruto da sua
relação com o pai do menino, mas sente um profundo ciúme dele, já que tem que dividir a
atenção e o amor , além dos bens materiais.

Dessa maneira, não acreditamos que o sentimento de rejeição da mulher com


relação à criança seja oriundo apenas da sua avareza e ganância. O seu comportamento é
muito mais fruto da sua economia afetiva do que da sua cobiça. Além disso, essa é uma
madrasta cruel e destruidora, orientada pelo maligno, como diz o próprio texto, o que para nós
significa pulsão destrutiva e negativa.

Ela maltrata o menino de maneira tenebrosa, apavora-o diariamente ao ponto dele,


somente ter sossego apenas enquanto está na Escola. Mas, no momento em que chegou à
casa, então começa o seu sofrimento.

Estamos diante de um conto que trata muito diretamente da rejeição, sentimento


experimentado por toda criança em algum momento da sua vida, ainda que seja fruto da sua
fantasia com relação aos pais. Aliás, a psicanalista Melanie Klein apresenta na sua teoria
psicanalítica sobre os bebês, a concepção de que o sentimento de rejeição é vivido bastante
cedo pela criança, quando ainda está na sua formação egóica.

Não temos dúvida de que estamos diante de uma madrasta diabólica, capaz das
atitudes mais cruéis para alcançar seu objetivo, mas na realidade antes de chegar ao momento
de maior tensão da narrativa, imaginamos que essa mãe má fará uso dos mesmos artifícios
utilizados pelas bruxas e madrastas dos contos de fadas, até que nos damos conta do quanto
ela é terrível.

Pois, um dia a mulher está em seu quarto e sua filha pede-lhe uma maçã. A
mulher retira a fruta de uma arca que tinha uma tampa grande, pesada e com uma fechadura
de ferro muito afiada. Logo depois, entrega a maçã à filha e a mesma interroga-lhe se o seu
irmão, também como ela, receberá uma maçã. A pergunta deixa a mulher furiosa, mas ela
contém-se e responde que sim. Nesse momento, a narrativa se conduz para o outro tempo da
dor, a comoção. Certamente, é a parte mais tenebrosa da história, pois quando viu pela janela
que o menino estava voltando da Escola foi tomada pelo demônio e em vez de dar a maçã a
menina, disse que ela não iria receber a fruta antes do irmão.
127

Assim, colocou a maçã de volta na arca e a fechou. Quando o menino chegou, a


madrasta possuída pelo mal, o tratou com o carinho de uma mãe, oferecendo-lhe uma maçã,
mas ao mesmo tempo dirigiu ao pequeno, um olhar feroz, causando tal indignação que o
mesmo pergunta:

“- Minha mãe – disse o menino. – Que olhar esquisito! Sim,


quero uma maçã.
E a mulher teve a sensação de que alguém a obriga a dizer: -
Chega aqui, então. Abriu a tampa da arca e disse: - Tira tu
mesmo uma maçã.
E quando o menino se curvou sobre a arca para tirar a fruta, o
Diabo a instigou, e pum! Ela fechou a tampa, que, caindo com
toda a força, decepou o pescoço do menino, e a cabeça rolou no
meio das maçãs vermelhas.
Aterrorizada, a mulher pensou então: “Ah! Se eu pudesse fazer
com que os outros achassem que não fui eu que fiz isso!” E,
assim pensando subiu a escada e foi até ao seu quarto, de cuja
cômoda tirou um lenço branco, depois voltou para junto da
arca, de onde tirou a cabeça, que colocou no pescoço do
menino, amarrando-a com o lenço que trouxera. Dobrou o
lenço de maneira que nada pudesse ser visto, e sentou o menino
diante da janela, com a maçã na mão.
Um pouco depois, a menina, Marlinchen, foi procurar a mãe,
que se achava na cozinha, junto do fogão, onde fervia água em
uma panela, e disse-lhe: Mamãe, meu irmão está sentado junto
à porta, muito pálido, e segurando uma maçã, mas ele não me
respondeu. – Volta para perto dele – disse a mãe – e, se ele não
responder, dá-lhe um murro no pé do ouvido. Marlinchen
obedeceu. Pediu ao irmão a maçã, e, como ele continuasse
mudo e imóvel, aplicou-lhe um murro no pé do ouvido, que fez
a cabeça cair no chão. Apavorada, a menina saiu gritando e
chorando e foi procurar a mãe, anunciando-lhe entre soluços e
as exclamações de angústia: - Arranquei a cabeça de meu
128

irmão, mamãe! E chorou convulsivamente, sem conseguir


articular mais uma só palavra. – O que fizeste, Marlinchen? –
exclamou a perversa mulher, fingindo-se surpresa. – Mas
agora fica quietinha. Não conta a ninguém. Não adianta outra
pessoa saber. Agora, não tem mais jeito, não se pode fazer teu
irmão viver de novo. Vamos fazer ele virar chouriço, que assim
ninguém fica sabendo do que fizeste.”85

Toda essa citação do texto é para que se possa ter a exata dimensão do quanto esse
conto apresenta uma madrasta maléfica, capaz não somente de matar o enteado, mas também
fazer com que a própria filha sinta-se culpada da morte do irmão. Estamos, possivelmente,
diante de uma das mais terríveis histórias dos contos de fadas, visto que ela apresenta o mal
em uma das suas piores versões.

A terrível madrasta não somente degola o menino, mas aproveita-se da inocência


da filha para livrar-se da culpa. Como a sua maldade é sem limites, representa toda a pulsão
de morte e destruição, então não se satisfaz apenas em ter matado o menino e o prepara como
chouriço para que seu pai desavisado, se regale ao comê-lo.

Esse é um conto que veicula toda a espécie de maldade, inclusive o canibalismo.


Como as ograzinhas do Pequeno Polegar, o menino é mutilado. A ameaça de castração se
concretiza e novamente uma morte acontece tendo como elemento intermediário a maçã.
Como já vimos, a maçã é uma fruta que representa vida e fertilidade, logo nos parece
surpreendente que nessa narrativa ela seja um símbolo que anuncia a morte.

Fica claro que esse não é um conto que traga a rivalidade entre irmãos como eixo
da narrativa, pois ao contrário Marlinchen, que é diminutivo de Marlene em alemão, tem amor
pelo meio irmão, tanto é assim que antes de receber a maçã, lembra-se dele e isso, na verdade
leva ao desfecho desse episódio horrendo, mesmo sendo ela inocente.

De qualquer forma, o menino sente-se rejeitado pela mãe-má, enquanto a irmã


tem dela todo o amor. Então, de certa forma justifica-se o fato da menina ter sido manipulada
e usada pela mulher.

85
O Junípero. In: Anexo 3, p. 280.
129

Esse também é um conto que a força metafórica é muito significativa, unindo-se a


isso os recursos estilísticos da própria estrutura narrativa. Os cortes, pausas e exclamações
sugerem o suspense vivido pelas personagens e nos coloca dentro de uma perspectiva de
estranhamento, ou seja de que algo aterrorizante acontecerá a partir do olhar feroz da mulher
ao oferecer a maçã ao menino.

Imaginem uma criança cuja cabeça foi-lhe decepada por uma enorme tampa de
baú e a mesma cai rolando entre as maçãs – fruta da vida, da fertilidade, do pecado e da
sedução. Ora, o menino , embora perceba o estranho olhar da madrasta, cai na tentação de ser
querido para receber os mimos daquela que lhe maltrata.

Isso nos faz lembrar, que a criança tem uma necessidade enorme de auto-
afirmação, ela precisa ser reassegurada constantemente de que é amada pelos pais. A criança
com problemas de rejeição tem uma tendência para se tornar vítima, assim sustenta-se na
certeza de que quanto mais é boa e generosa para os pais, mais eles o preterem. Assim, vai
adquirindo uma capacidade quase mórbida de agradar o Outro, fazendo coisas para atender ao
desejo dos pais, enquanto o seu sentimento de rejeição é ampliado pela fantasia de que se o
irmão é mais amado é porque é melhor: mais bonito e virtuoso.

Provavelmente, isso acontece ao nosso herói, pois se assim não fosse ele não teria
aceitado a sedução da madrasta, já que desconfiou do seu olhar, no momento em que
ofereceu-lhe a maçã. Por outro lado, é a necessidade de amor que faz com que o pequeno
receba o carinho da mulher. Além disso, temos que comunicar que :

“O conto de fadas não deixa dúvidas na mente da criança de


que a dor deve ser suportada e que as chances arriscadas
devem ser enfrentadas, pois deve-se adquirir a própria
identidade; e, apesar de todas as ansiedades, não há dúvidas
quanto ao final feliz. Embora, nem toda criança herde um
reinado, aquela que compreende e torna sua a mensagem do
conto de fadas encontrará o verdadeiro lar de seu interior;
130

conhecendo sua mente, ela se tornará senhora de um vasto


domínio, e portanto isso lhe será útil.”86

Acreditamos, que esse seja um dos motivos pelo o qual o menino arrisca-se, pois
para ganhar força e maturidade é necessário o confronto com o diferente, é fundamental que
se aceite o desafio de conhecer o Outro. Então, o menino recebe o carinho da mãe-má porque
na sua carência afetiva precisa ser aprovado por ela, mas também porque como todo herói ele
aceita o desafio ou para o bem ou para o mal, pois isso o tornará mais maduro para buscar sua
felicidade .
O fato é que, mesmo desconfiado ele não imagina, como o leitor também não, que
a sua madrasta seria capaz de tanto. Estamos diante de uma das cenas mais grotescas dos
contos de fadas e, em conseqüência disso pouco difundido, pois muitos pais e professores
afirmam que essa história não deve ser contada para as crianças visto possuir um conteúdo tão
cruel.

Isso, faz pensar que esses adultos não conhecem adequadamente as suas crianças,
pois o conteúdo manifesto pelo conto nada mais é do que aquele já experimentado na
infância, todas as vezes nas quais existem ameaças e angústias com relação ao sentimento do
Outro por nós.

Muitas pesquisas apontam para o fato de que a maior parte das crianças já sentiu
medo de um dos pais a tal ponto de se sentirem ameaçadas de morte. Afinal, esse sentimento
faz parte de uma fantasia infantil originada numa etapa primitiva da formação do sujeito,
quando o bebê sente a divisão do eu e passa a conceber os afetos como sendo bons ou maus.
Assim, para o bebê a mãe também está dividida em duas partes distintas: a mãe boa e doadora
que o gratifica pelo alimento, representante, de acordo com M. Klein, do seio bom, e a mãe
má, que o persegue e castiga por conta dos seus impulsos devoradores, sendo portanto
representante do seio mau.

Como já foi afirmado anteriormente, tanto a mãe boa quanto a mãe má precisam
ser introjetadas para que a criança sinta-se inteira e possa compreender a complexidade dos
seus afetos. Assim, ela precisa ser encorajada a enfrentar as pulsões destruidoras
representadas pela mãe – má. Somente, uma criança que entra em contato com o seu lado mau
e perverso, consegue ser realmente doadora, portanto boa.

86
BETTELHEIM, Bruno. Op. cit., p.100.
131

Assim, o conto nos ensina que o mal existe e deve ser enfrentado, pois apenas
quando nos confrontamos com as duas naturezas da nossa personalidade estamos seguros para
ser verdadeiramente amados.

Na realidade, essa madrasta assassina e cruel é a representação da mãe malvada,


capaz de negar alimento e amor e conhecida de muitas crianças ao se sentirem preteridas pela
mãe.
O melhor dos contos de fadas é que a criança é possibilitada de viver o horror de
maneira poética, ou seja a dor sentida não tem a dimensão de uma ferida concreta, mas de
uma dor que é , somente, uma possibilidade. Portanto, por mais dolorida que seja a dor, ela é
sentida como uma representação, portanto é aquilo que poderia ser.

Ora, é muito comum as crianças que se sentem perturbadas por seus conflitos
edipianos acreditarem que vão ser abandonadas pelos pais como castigo, ao descobrirem o seu
desejo de livrar-se de um dos pais. Assim, o conto de fadas traz como fórmula para inverter
essa situação, a criança que é abandonada.

Em geral, nessas histórias, a mãe é que rejeita e abandona os filhos, enquanto o


pai é representado por uma figura fraca e ineficaz, quase que impotente para salvar o filho.
Talvez, isso tenha a ver com a expectativa da própria criança com relação aos pais. É muito
mais fácil acreditar que o outro deseja nos abandonar e castigar, em vez de assumir o
sentimento de culpa, pois tal posicionamento poderia trazer conflitos internos e inconscientes
terríveis para a criança.

Assim, a solução encontrada pelo conto é justamente o contrário, a criança que


deseja livrar-se de um dos pais para ter o outro inteiramente disponível para ela, não
conseguiria aceitar tal desejo, enquanto que ser abandonada por um dos pais até justifica seus
sentimentos negativos de desejar ocupar o lugar de um deles. Vejamos que:

“No esquema nuclear típico de família , é dever do pai proteger


o filho contra os perigos do mundo exterior, e também contra
os que se originam das tendências associais da própria criança.
A mãe deve prover os cuidados da criança e as satisfações
gerais das necessidades físicas imediatas que esta requer para a
sua sobrevivência. Por conseguinte, se a mãe não consegue, a
vida dos filhos fica em risco, como sucede em “João e Maria”
132

quando a mãe insiste em que devem se livrar das crianças. Se o


pai, por natureza, não enfrenta suas obrigações, a vida da
criança enquanto tal não corre um perigo direto, embora uma
criança privada da proteção do pai precise lutar por si da
melhor maneira possível.”87

O mesmo acontece com o menino do Junípero, pois ainda que sem culpa, a mãe o
abandona porque morre e assim, ele está privado das satisfações afetivas originadas da relação
com a mãe, que como já dissemos, é fonte de alimento e amor.

O herói dessa história é uma bela imagem da criança desprovida dos cuidados dos
seus pais, portanto exposta às crueldades advindas de uma mãe-má.

Sem dúvida, a relação com a mãe é a pedra fundamental da vida de todas as


pessoas. Ela nos assegura os primeiros afetos, sustenta os nossos primeiros desejos e talvez,
por isso exista uma tendência natural de culpar a mãe de todos os males que ocorrem na vida
do sujeito, pois inconsciente é como se ela fosse a culpada por ter permitido a divisão, o corte
a partir do qual somos apresentados ao mundo despertencido de nós, até então. A nossa visão
de mundo depende estreitamente daquilo que nos foi doado inicialmente, portanto a partir de
como se é amado na infância se pode nortear uma visão otimista ou pessimista.

A mãe do nosso pequeno, por mais que o desejasse, não foi forte para viver e
cumprir sua função materna, então temos uma criança atormentada, pois na fantasia a criança
cuja mãe morre logo após o parto, cultiva o sentimento de culpa e ao mesmo tempo de
rejeição, ou seja, “eu não fui bom com a mamãe, então ela me abandonou”. Evidentemente,
tal situação é experimentada inconscientemente, é uma marca afetiva deixada pela perda do
corpo da mãe, corpo simbólico, lugar da transferência de um amor total.

Além da perda da mãe –boa, o menino depara-se com uma terrível madrasta,
representação da bruxa e de todos os sentimentos maléficos que alguém pode incorporar. É
tão impiedosa, que assassina a criança e coloca a culpa na sua inocente filha.

87
Idem, ibidem, pp. 245, 246.
133

A imagem revelada é aterrorizante, o menino cuja cútis alva e corada torna-se


pálida e sem vida, arriscou-se por uma migalha de atenção, mas também porque arriscar faz
parte da busca do herói, faz parte da travessia.

O pesquisador e psicanalista Sheldon Cashdan, na sua análise sobre esse conto,


refere-se da seguinte forma:

“Considerada inadequada para crianças pequenas, em sua


época, por causa das imagens violentas – e um pouco realistas
demais, ainda hoje, para os menores – a história fala de
questões como preferência dos pais e relações entre irmãos,
com as quais todos os pais estão familiarizados (...).”88

Concordamos com o pesquisador em parte. Claro, que crianças muito pequenas


não devem ser expostas às histórias que apresentem imagens com requinte de crueldade, pois
isso pode provocar uma desestabilização psíquica muito grande, exatamente por produzir
uma descarga de desprazer para a qual uma criança muito pequena não está preparada para
viver.
Entretanto, o conto de fadas por mais provocativo que seja, ele assegura ao
pequeno leitor que a experiência que as personagens vivem faz parte do “faz de conta” e que
mesmo que ela se identifique com as personagens, em nada serão punidas. Afinal, quem sente
o amor ou a dor são as personagens da história, garantidas pelo “felizes para sempre”.

O Junípero é um conto que traz em si muitas imagens da dor, da angústia e do


sofrimento, mas que contém uma beleza poética bastante rara na medida em que dispõe de
metáforas carrregadas de força e simbolismo. Então, mesmo que diante do conto o leitor
experimente o horror, do mesmo modo envolve-se numa presença simbólica regeneradora e,
afinal a vida é bastante complexa , traz em si o bem e o mal.

Claro, que qualquer criança saudável ficará horrorizada diante dessa madrasta
perversa que além de matar o enteado, faz a filha se sentir culpada e depois o corta em
pedacinhos para que vire chouriço e , finalmente seja servido como jantar ao pai, que o
saboreia com prazer.

88
CASHDAN, Sheldon. Op. cit., p. 288.
134

A mulher não somente corta o menino em pedacinhos como também, faz a filha
ajudá-la em tal tarefa. A pobre da menina chora tanto que o chouriço é salgado por suas
lágrimas.
Marlinchen, então é mais do que culpada, pois mesmo que não acreditasse no fato
de ter sido ela a matar o irmão, agora seria cúmplice da sua terrível mãe.

O conto diz que o pai ao sentir a ausência do filho foi enganado pela mulher que
respondeu –lhe dizendo que o menino havia partido para casa de uma tia-avó e que lá ficaria
por algumas semanas. O pai não compreendeu a atitude do pequeno, pois nem sequer ele se
despediu e isso causou-lhe tristeza.

Então, sentado à mesa para o jantar percebeu a tristeza de Marlinchen e consolou


a menina, dizendo que o irmão voltaria, ao mesmo tempo que saboreava o chouriço. Chega
mesmo a elogiar a comida e repetir a refeição, pois quanto mais comia, mais queria. Na gula,
come todo o chouriço e joga os ossos debaixo da mesa.

A irmã, muito triste foi até o quarto e pegou um lenço branco com o qual enrolou
os ossos do irmão. O conto nos diz ela:

“Sentou-se, então, debaixo do Junípero, e deitou-se depois na


relva muito verde, e, de repente sentiu um grande alívio em seu
coração angustiado e parou de chorar. As folhas das árvores se
agitaram, os galhos se abriram e tornaram a fechar, à
semelhança de alguém que batesse palmas, em regozijo. Ao
mesmo tempo, a menina viu uma névoa levantar-se do
Junípero, e, no centro dessa névoa, pareceu-lhe crepitar uma
fogueira, e um lindo pássaro saiu voando da fogueira, entoando
um canto lindo, e foi voando, voando, até desaparecer nas
alturas. E, então, a árvore voltou a ser uma árvore comum, sem
névoa e sem frêmitos, e o embrulho do lenço com os ossos já lá
não se encontrava. E o mais estranho é que Marlinchen
continuava despreocupada, alegre, como se seu irmão ainda
estivesse vivo. E, alegre e despreocupada, ela voltou para casa,
sentou-se à mesa e jantou. Enquanto isso, o pássaro voara até a
casa de um ourives e cantou:
135

Mamãe me matou, papai me comeu


E minha irmãzinha os ossos colheu.
Num lenço de seda, piedosa, os guardou
E embaixo do zombro o lenço deixou.
E ave canora agora sou eu!”89

Agora, começamos a perceber a virada da narrativa no sentido da recuperação da


menina, que antes dominada pela angústia e culpa não conseguia agir em seu favor. Temos a
partir desse momento, no qual a irmã decide recolher os restos do irmão morto, o início de
uma etapa onde encontros bem sucedidos acontecerão para garantir ao conto o sentido de
recuperação e renascimento, portanto de superação.

A presença do lenço branco pela segunda vez nos leva a dar importância do
símbolo dentro da evolução da história, pois não somente é recorrente, como também serve
para esconder e amarrar os ossos do menino. No seu primeiro surgimento serve para amarrar a
cabeça ao pescoço para que a menina não note que o irmão fora degolado. Na segunda vez,
serve para esconder os ossos para que a irmã os transporte até a árvore.

Ora, um lenço branco pode ser sinal de tristeza e despedida, mas também pode
ser um sinal de trégua e paz. É num lenço de seda branco que o menino morto é transportado
para a beira do Junípero, onde sua mãe havia sido enterrada. Daí , a pequena ter a sensação de
que alguém bate palmas de alegria, a natureza anuncia-se e da árvore surge uma névoa, de
cujo o centro crepita o fogo, que é vida, energia, calor e transmutação e dele surge um lindo
pássaro.
O fato da irmã depositar os ossos do menino junto ao Junípero e assim os misturar
aos ossos da mãe, nos conduz a pensar de que nesse momento uma ordem primitiva é
restaurada, reiterada simbolicamente e o elo entre criança e mãe ressurge para garantir à
criança a confiança numa mãe boa, que salva e protege. A mesma mãe que desejou o
nascimento daquele filho será aquela que o fará renascer transformado num belo pássaro.
Agora, forte e capaz de libertar-se dos perigos e artimanhas de uma mãe-má.
A ressurreição do menino poderia finalizar a história, entretanto não basta apenas
o reencontro com a mãe-boa e por isso, em vez de conclusão o surgimento do pássaro anuncia
o início de uma longa jornada, na qual o pequeno terá que cumprir algumas etapas antes de

89
O Junípero. In: Anexo 3, p. 280.
136

voltar para casa garantido de que é forte o suficiente para enfrentar os ataques de uma mãe-
má.
Essa é uma narrativa que também gira em torno da comida, pois a mãe come a
maçã e realiza seu desejo de ficar grávida, posteriormente ela come os frutos do Junípero e
fica doente. O menino, também é morto porque aceita uma maçã. Depois de morto é
transformado em chouriço e servido ao pai que se delicia. Finalmente, a história é concluída e
o final feliz realiza-se à mesa.

Entendemos que a comida não somente satisfaz uma fome orgânica, mas que
também carrega algo visceral que é da ordem do prazer e portanto relaciona-se às pulsões
orais. Por esse motivo, ela é um assunto tão visitado pelos contos de fadas, chegando mesmo a
ser o motivo, o tema gerador de muitos conflitos, apresentado quase sempre pelo canibalismo
das personagens que representam os instintos selvagens.

Ora, o canibalismo é um assunto que provoca medo insegurança e reatualiza na


criança sentimentos arcaicos, sendo:

“(...) assustador para a maioria das pessoas, especialmente


para as crianças. No entanto, o consumo de carne humana – ou
sua simples possibilidade – aparece com razoável regularidade
nos contos de fadas. O canibalismo está presente não apenas
em Branca de Neve como em Tália, Sol e Lua e em A bela
Adormecida no Bosque de Perrault. (...) Por que o canibalismo
aparece nos contos de fada com tamanha freqüência, e por que
é descrito em tal nível de detalhe? A razão fica clara à luz da
intenção psicológica de um conto de fada. Comer carne
humana é um ato totalmente repreensível, que identifica seu
praticante como alguém completamente repugnante. Se a
bruxa deve parecer – como deve mesmo- é preciso convencer o
leitor de que ela merece morrer. Ainda que matar outra pessoa
possa ser compreendido, até mesmo perdoado, se existem
circunstâncias atenuantes, cortar alguém em pedacinhos
137

pequenos e consumir essa carne é algo que vai além de


qualquer limite.”90

É verdade, o canibalismo escapa à razão e por isso ele deve ser avaliado à luz do
que representa para o mundo psíquico da criança. Reiteramos o ponto de vista de que atribuir
a bruxa ou Ogro qualidades canibalescas, confere aos mesmos o nosso olhar de repugnância.
Mas, para que a personagem antagonista da narrativa mereça um castigo drástico, não
acreditamos que isso precise ser justificado pelo canibalismo dos mesmos.

Possivelmente, esse fato se justifique a partir de algumas teorias psicanalíticas


sugeridas pela Melanie Klein ao referir-se às primeiras divisões do eu e sentimentos
primitivos como sendo a base das fantasias de amor e ódio.

Como ela afirma em muitas das suas conferências publicadas, Inveja e Gratidão e
outros trabalhos, a origem de todos os sentimentos está diretamente ligada à relação da
criança com a mãe, portanto com o seio materno , que é fonte de alimento e amor. Mas que,
por outro lado, num momento inicial da vida do bebê ele sofre uma cisão e passa a ser tanto o
seio bom e gratificador quanto o seio mau e perseguidor.

Ora, a mãe boa representa para todos nós a fonte de alimento, carinho, proteção e
amor. Para nós ela é capaz de nos salvar de todos os perigos e dissabores existenciais, é um
Nirvana. Claro, que isso faz parte de uma fantasia de que um dia fomos plenos, inteiros e que
tudo era um paraíso. Mas, vem o corte e com ele a primeira ruptura que nos dará acesso ao
Outro, portanto ao simbólico e nesse momento o bebê sente a ameaça que vem do Outro, que
é a mãe.

Assim, o próprio crescimento orgânico da criança, impõe-lhe a necessidade de


maturidade e crescimento. O bebê deve ser encorajado a crescer e a lutar por uma situação de
equilíbrio interior, mas só o fará na medida em que realizar os movimentos psíquicos de
introjeção, projeção e transferência.

Logo, a criança percebe que a mãe não é somente boa, embora exista uma
idealização da sua imagem como sendo todo o bem do mundo. Assim, as madrastas e bruxas
dos contos de fadas tomam o lugar da mãe-má e por isso elas são tão temidas, mas ao mesmo

90
CASHDAN, Sheldon. Op. cit., p. 67.
138

tempo sedutoras. Assim, a mãe representante do seio mau é necessária para que o bebê
compreenda afetivamente que a mãe é consistente e inconsistente, gratificante e frustrante,
boa e ruim.

Certamente, a criança com seus poucos recursos conceituais só compreende tal


estado de coisas produzindo uma grande confusão nos sentimentos, os quais dão origem a
cisão da mãe em seio bom porque alimenta e gratifica e seio mau porque não alimenta toda
hora, nem tampouco pode atender a todas demandas do bebê. Essa, também é uma questão
provocada com ênfase por Klein, assim ela diz:

“Surgem na primeira infância ansiedades, características das


psicoses, que forçam o ego a desenvolver mecanismos de defesa
específicos. É nesse período que se encontram os pontos de
fixação de todos os distúrbios psicóticos. Essa hipótese levou
algumas pessoas a acreditar que eu considerava todos os bebês
como psicóticos; mas já tratei suficientemente desse mal-
entendido em outras ocasiões. As ansiedades, mecanismos e
defesas do ego, de tipo psicótico, da infância, têm uma
influência profunda sobre todos os aspectos de
desenvolvimento, inclusive sobre o desenvolvimento do ego, do
superego e das relações de objeto.
Tenho expressado com freqüência minha concepção de que
relações de objeto existem desde o início da vida, sendo o
primeiro objeto o seio da mãe, o qual para a criança, fica
cindido em um seio bom (gratificador); essa cisão resulta numa
separação entre o amor e o ódio. Sugeri ainda que a relação
com o primeiro objeto implica sua introjeção e projeção e, por
isso, desde o início as relações de objeto são moldadas por uma
interação entre projeção e introjeção, e entre objetos e
situações internas e externas. Esses processos participam da
construção do ego e do superego e preparam o terreno para o
139

aparecimento do Complexo de Édipo na segunda metade do


primeiro ano.”91

Embora as teorias kleinianas resultem em grandes polêmicas, temos que admitir


que a sua contribuição para a pesquisa sobre a formação psíquica dos bebês é fundamental e
por mais que possa parecer fantasiada e inconsistente traz uma verdadeira e produtiva reflexão
a esse respeito. Afinal, todo o trabalho desenvolvido por essa autora é fruto de muitos e
longos anos de pesquisa e observação do comportamento dos recém-nascidos.

Inclusive, Klein chegou a utilizar os contos de fadas como ponte para a descoberta
do não-dito de muitas crianças, aparentemente perturbadas por conflitos internos causadores
de ansiedades e depressão

No conto que por hora analisamos, podemos verificar que a menina acreditando
ser culpada da morte do irmão é terrivelmente acometida pelos sentimentos de dor e
depressão. Afinal, se o irmão foi perseguido pela mãe-má, representada pela madrasta, ela
também corre o risco e a ameaça de aniquilação, mesmo que acredite que de fato matou o
irmão e ajudou a mãe a cozinhá-lo. Fica então, um grande medo e angústia de ser ameaçada
na sua integridade física, além da imensa culpa por pensar que é a responsável por tal fato.

Enfim, temos um caos de sentimentos acentuado pelo canibalismo , embora o pai


não soubesse que o seu delicioso jantar fosse o próprio filho. Até então, o conto é preenchido
pelas imagens de morte e horror que podem provocar no leitor uma estranha mistura de
sentimentos de abandono, injustiça e dor.

Os pressupostos teóricos abordados por Klein podem ser uma justificativa


plausível para que, os contos de fadas sejam considerados como narrativas que apelam
regularmente para questões orais, como: fome, gula, comida, canibalismo e devoração, pois
como ela afirma:

“O impulso destrutivo projetado para fora é inicialmente


vivenciado como agressão oral. Acredito que os impulsos
sádicos-orais dirigidos ao seio da mãe sejam ativos desde o

91
KLEIN, Melanie. Inveja e Gratidão e outros trabalhos (1946–1963). Rio de Janeiro: Imago, 1991.
140

início da vida, embora os impulsos canibalescos se


intensifiquem com o início da dentição, um fator acentuado por
Abrahan. Em estados de frustração e ansiedade, os desejos
sádico-orais e canibalescos são reforçados, e o bebê sente ter
tomado para dentro de si o seio em pedaços. Portanto, além da
separação entre um seio bom e um seio mau na fantasia do
bebê, o seio frustrador – atacado em fantasias sádico-orais – é
sentido como fragmentado; o seio gratificador – tomado para
dentro sob prevalência da libido da sucção – é sentido como
inteiro. Esse primeiro objeto bom interno atua como ponto
focal no ego. Ele contrabalança os processos de cisão e
dispersão, é responsável pela coesão e integração e é
instrumental na construção do Ego.”92

Podemos assim, confirmar a nossa hipótese de que a cruel madrasta representa o


seio mau, fonte de desequilíbrio e frustração, mas também necessário de ser introjetado para
que a criança entre em contato com a realidade exterior, pois por mais generosa e doadora que
uma mãe seja, ela nunca será igual ao que a criança idealiza. Além disso, o seio mau,
representante da mãe que frustra é importante para a formação do ego, já que para crescer ela
precisará “saber” lutar contra os prováveis obstáculos impostos pela vida dentro de toda a sua
complexidade.

Claro, que a criança ao entrar em contato com uma personagem como a madrasta
do conto O Junípero, compreenderá que se trata de uma imagem, por conseguinte de uma
representação e tal fato dá a narrativa um sentido de que para alcançarmos maturidade e
independência é preciso lutar contra aquilo que nos perturba e para tanto, basta recorremos
aos nossos próprios recursos internos, assim como fez o menino.

Enquanto ele foi fraco e impotente não reconheceu o caráter diabólico da


madrasta, apenas achou-a estranha e feroz, mas cedeu à sedução e foi até o baú pegar a maçã.
Somente após ter entrado em contato com a sua mãe-boa, enterrada junto à arvore cósmica é
que pode introjetar o objeto bom, ser gratificado e fortalecido para então se transformar em

92
Idem, ibidem, pp. 24, 25.
141

pássaro e sair para a conquista de um ego mais inteiro, menos fragmentado e despedaçado, já
que seu corpo fora cortado em pedacinhos.

Depois, que recebeu da irmã tão generosa o carinho necessário , como o pássaro
mesmo canta, então saiu para resgatar seu objeto bom, primeiro representado pela corrente de
ouro que o ourives lhe entregou.

Nota-se que o ourives não deu a corrente, mas trocou-a pelo canto do pássaro, tal
como diz a narrativa o ourives estava fazendo a corrente quando escutou o canto e sentiu
curiosidade em saber que pássaro era aquele com tão lindo canto.

Apressado, saiu pela porta de entrada da casa e como caminhava rápido perdeu
um dos chinelos. A rua estava intensamente iluminada pelo sol forte. Então, quando viu o
pássaro, pediu que repetisse o canto e o mesmo disse que não, pois somente o repetia em troca
de algo. Assim, conseguiu a corrente e repetiu o canto.

A narrativa continua, apresentando as etapas da romaria que o pássaro realiza até


que ele possa ter introjetado o objeto bom e restaurador. Enquanto ele não internalizar
totalmente a sua mãe-boa, representante do primeiro objeto de vida e amor, ele não estará
pronto para renascer e ocupar a cena junto à família. Por isso, continua sua trajetória, agora
voando para casa de um sapateiro, onde faz a mesma cantoria.

Antes de passarmos para a análise dessa parte do conto, gostaríamos de realçar o


fato de que o vôo do pássaro é acompanhado por um sol brilhante e intenso e sendo o sol um
elemento recorrente na narrativa, seu aparecimento assume importância dentro do contexto do
ritual de passagem iniciado pelo pássaro. O sol possui uma das mais vastas simbologias,
entretanto faz-se necessário que algumas, importantes para nortear nossa análise, sejam
relacionadas. Pois, :

“O simbolismo do Sol é tão diversificado quanto é rica de


contradições a realidade solar, se não é o próprio deus, é, para
muitos povos, uma manifestação divina. (...) O Sol é o bom
olho, a Lua, o mau. É também, considerado fecundador (...)
Platão faz dele a imagem do Bem tal como se manifesta na
esfera das coisas visíveis (...) é fonte da luz, do calor e da vida
142

(...) origem de tudo o que existe, o princípio e o fim de toda


manifestação, o alimentador.(...) De uma outra maneira, a
alternância vida-morte-renascimento é simbolizada pelo ciclo
solar (...) ressurreição e de imortalidade (...) espaço da Árvore
do mundo- da Árvore da vida. (...) para Freud, censura, de
onde derivam as tendências sociais, a civilização, a ética e tudo
aquilo que é importante no ser. Sua gama de valores estende-se
do superego negativo, que esmaga o ser com proibições, regras
ou preconceitos ao ideal do ego positivo, imagem superior de si
mesmo, cuja grandeza procuramos alcançar. Portanto, o astro
do dia situa o ser na sua vida policiada ou sublimada,
representa o rosto que a personalidade apresenta nas mais
elevadas sínteses psíquicas, no nível das suas maiores
exigências, das suas mais elevadas aspirações, da sua mais forte
individualização, ou no malogro feito de orgulho ou delírio de
poder.(...) Depois, de todas as ilusões, o sol nos mostra,
finalmente a verdade de nós mesmos e do mundo. Após ter
percebido dele a iluminação, material e espiritual, podemos
enfrentar o julgamento (...).”93

Citamos apenas alguns dos simbolismos do Sol, aqueles considerados mais


pertinentes ao contexto da nossa narrativa, mesmo porque o fato dele ser mencionado em
momentos cruciais da trama nos chama a atenção, pois é certo que o conteúdo simbólico
submerso no conto por meio da representação lingüística remete a certos significados que
atuam no inconsciente do leitor, provocando um olhar para além do que é provável. Isso, faz
parte do ser que constitui qualquer narrativa com características de valor literário, pois é
assim que o jogo literário se constrói para se tornar um discurso universal, atemporal e
transcendente.

Para nós fica claro que o Sol surge como indício de uma conquista, na qual o
menino renasce para cumprir seu destino, após ter vencido as três provas, quase sempre, nos
contos de fadas, são três provas que o herói precisa superar para chegar ao seu destino. A ave
canora ultrapassa a primeira prova quando recebe do ourives a corrente dourada ( como a luz

93
CHEVALIER, Jean., GHEERBRANT, Alain. et. al. Op. cit., pp. 839-841.
143

do sol), mais uma pista de que o menino-pássaro está como a lagarta no casulo, esperando a
metamorfose final, quando será capaz de assumir sua humanidade e destruir a madrasta.

O sol vai cumprindo a sua função de iluminar e revitalizar a caminhada do


menino, mas como a vitória somente é alcançada quando o protagonista está forte o
suficiente para poder vencer o mal, então a luz solar vai sendo reguladora da conquista, se
tornando mais forte e poderosa exatamente quando a ave chega no seu segundo destino, a casa
do sapateiro e repete a mesma cantoria.

Acentuamos ainda, que o Sol pode ser considerado símbolo fálico, representante
de poder, como também de pai. Então, o fato do Sol está presente durante a viagem da ave,
acompanhando e iluminando o vôo e o pouso dela, nos leva a pensar que na medida em que o
menino toma consciência do seu destino e do quanto precisa destruir a madrasta para poder
surgir vitorioso e finalmente, aproximar-se do pai, buscando uma identificação positiva, então
vai realizando trocas , como num verdadeiro processo de introjeção e projeção. Afinal, o
pássaro só repete o canto, ou seja, doa o seu objeto bom se receber do Outro um objeto, da
mesma natureza, bom.

Se levarmos em consideração que o Sol representa o bem, então


compreenderemos porque ele surge com tanta força nesse momento da narrativa, pois a ave
canora precisa acreditar nas suas forças positivas para poder retornar para casa e fazer o que é
necessário. Ao ceder à sedução da mãe-má sofreu com toda a intensidade o mal que lhe
causaram. Agora, precisa se restabelecer dentro de uma outra ordem, que só pode ser a do
bem.
O Dicionário de Símbolos, também diz algo muito especial a respeito das
possíveis significações de pássaro, como já foi mencionado na análise do conto O Pequeno
Polegar, considerando que sua representação está sempre ligada às questões de ordem
espiritual, algo que situa-se entre o céu e a terra, pode ter a conotação de libertação da alma e
processos iniciatórios de busca.

Nesse sentido, podemos dizer que esse pássaro que surge, transmutado do fogo,
um dos quatro elementos da natureza, prepara-se para a conquista, pela qual todos os heróis
dos contos de fadas têm de passar.

Além dessas representações o pássaro pode significar destino, amizade,


fertilidade, renascimento para uma nova existência. Todas essas significações nos servem
144

como fio condutor para a nossa análise, mas por outro lado encontramos no mito da fênix uma
forte explicação, visto que:

“A mais antiga prova da crença nas almas-pássaros está , sem


dúvida, contida no mito da Fênix, pássaro de fogo, cor de
púrpura – isto é, composto de força vital - , que era o símbolo
da alma entre os egípcios. A fênix, duplo sublimado da águia,
está no cimo da árvore cósmica, assim como a serpente está na
sua base, representava o coroamento da Obra no simbolismo
alquímico.”94

Para nós, fica evidente que o pássaro surgido do fogo sobre a árvore do Junípero
fundamenta-se na idéia de que o menino ressuscita. Por outro lado, ainda temos que levar em
consideração a significação de ossos como sendo de renascimento, (ver Vasalisa: a sábia,
Anexo 2, p. 263), reforçando assim as nossas afirmações.

Para ser livre e conquistar a sua individualidade o menino terá que ressurgir de
outra forma, trazendo consigo seus sentimentos bons internalizados, mas também sendo capaz
de dizer não e até mesmo ser forte o suficiente para destruir o mal.

A irmã pode representar nesse momento mais do que um auxiliar mágico, pois
não se pode esquecer que ela serviu de instrumento para os atos da mãe e que ao mesmo
tempo que o pássaro aparece, Marlinchen sublima sua dor ao ver a liberdade e elevação
daquele pássaro nascido do fogo. É quase uma experiência alquímica.

Mais uma vez também, O Junípero representa essa árvore cósmica, que abriga e
acolhe dando à existência um significado espiritual, e sobretudo de vida, renascimento e
transformação.

Esses simbolismos presentes nos contos de fadas exercem um poder acentuado no


inconsciente do leitor, pois sendo palavras encadeadas ao longo da história humana tendem a
nos remeter para inúmeras possibilidades, todas inerentes ao próprio símbolo que por sua
natureza metafórica satisfaz à exigência polissêmica da Literatura.

94
Idem, ibidem, p. 689.
145

Estamos diante de um dos contos mais terríveis, como já foi apontado antes,
entretanto O Junípero é uma narrativa valiosa do ponto de vista da sua estrutura, não somente
porque fala de sentimentos que são freqüentes na infância, como rejeição, castração,
rivalidade, perseguição por uma madrasta e canibalismo, mas também porque a sua beleza
poética é muito grande, visto que o jogo que nela se impõe é caracterizado por uma disposição
signica de muito valor, pois de certa forma nos leva para a diferença.

Qual leitor inicia a leitura de um conto de fadas esperando encontrar a morte de


uma criança (o herói) de forma tão cruel? Será que alguém espera que uma madrasta, mesmo
sendo muito ruim, possa cozinhar a criança e servi-la ao pai como jantar? Evidentemente que
não, e isso nos serve de suporte para esclarecer que esse conto é especial porque domina de
maneira instigante os processos da narrativa, sobretudo ele surpreende o leitor, como toda boa
literatura deve ser uma proposta para o novo, um convite para a diferença, uma mão estendida
para o “estranho”.

Não se trata de colocar em evidência apenas a interpretação simbólica da


narrativa, mas também a riqueza de possibilidades para qual o leitor é remetido, além do que
basta um olhar mais dirigido para que se perceba que o lugar de onde cada símbolo emerge,
então desponta uma cena de um mundo realizado no anterior de cada palavra, de cada gesto
das personagens e de cada não-dito que oscila entre desejo e corte, vida e morte.

Seguimos adiante, para analisar mais detalhadamente os símbolos que surgem


nessa etapa que antecede a finalização do conto e que para nós enquadra-se naquilo que
consideramos a segunda premissa da dor, ou seja : a comoção.

Trata-se de uma etapa que podemos considerar como o momento de uma grande
tensão na narrativa, mas também constitui-se no momento de maior busca de equilíbrio, daí
ser importante nos atermos aos detalhes dos significantes que anunciam a superação da dor e
o início de uma nova etapa a ser vivida pelo herói do conto de fadas.
146

4.2 - A SEGUNDA ETAPA DA DOR: A COMOÇÃO

Chegamos a etapa da história onde a dor inicial, da ruptura, e por isso mais
intensa, começa a ser transformada pelo tempo da comoção onde o sujeito busca saídas para o
momento doloroso e até pode dar início a um processo de interpretação do sofrimento que o
conduziu ao desespero ou tristeza profunda.

Vimos que o herói por não ter forças suficiente para lutar contra a sua mãe má,
sofre o aniquilamento total representado pelo estado de morte e somente depois que a sua
irmã o coloca junto à mãe boa, então começa sua recuperação. Lutando por um eu mais forte e
integrado, identificado com o bem, o menino como pássaro vai em busca do seu lugar na
medida em que trabalha para cumprir cada prova da sua viagem de volta para casa.

Voltar significa recuperar-se, como também ter alcançado uma outra etapa, na
qual poderá ser gratificado, visto que agora é capaz de reivindicar sua felicidade, pois para ser
“bonzinho” para o outro terá que ser recompensado. O sofrimento ensina-lhe que não adianta
ser ilimitadamente bom se o outro não o gratifica, pois o eu precisa de reinvestimento para ser
forte e equilibrado.

Na etapa que sucede ao canto do pássaro na casa do ourives, teremos a passagem


pela casa do sapateiro, momento da narrativa repleto de significado, pois para que o nosso
herói seja capaz de confrontar-se com o opositor precisa sentir-se garantido de que está forte e
superou seus medos de castração pela mãe malvada. O sol intenso que brilhava na casa do
ourives, continua acompanhando a sua viagem de retorno, agora mais intenso, tão forte que o
homem protege os olhos com medo de cegar.

O sapateiro fica tão encantado que chama a mulher dele e a filha para também
ouvirem o canto do pássaro. Não se dando por satisfeito, chama outras crianças, moços e
moças, além de seus aprendizes. Fica absolutamente fascinado com aquela ave, que nessa
altura da história, ficamos sabendo que possui lindas penas verdes e vermelhas, e, também
olhos que brilham como estrela.

Ressaltamos que a cor verde carrega uma simbologia muito rica que tanto pode
ser interpretada como esperança, como também ligações a vida uterina, paraíso materno,
como veremos a seguir:
147

“ Situado entre o azul e o amarelo, o verde é o resultado de


suas interferências cromáticas. Mas, entra como o vermelho
num jogo simbólico de alternâncias. A rosa desabrocha entre
folhas verdes(...) cor tranqüilizadora, refrescante e humana (...)
despertar da vida (...) é cor da água como o vermelho é a cor do
fogo, e é por essa razão que o homem sempre sentiu,
instintivamente, que as relações entre essas duas cores são
análogas às de sua essência e existência (...) O desencadear da
vida parte do vermelho e desabrocha no verde (...) o vermelho é
uma cor masculina, o verde uma cor feminina (...) regressus ad
uterum.”95

A riqueza simbólica dessa narrativa chega a nos surpreender, como por exemplo,
o fato de ser mencionado que o pássaro possui plumagem verde e vermelha pode passar
completamente desapercebido numa primeira leitura e no entanto, ao nos determos nas
representações das cores verde e vermelho, vamos convergir para aquilo que o conto nos
aponta desde o seu início.

É interessante observar que a interpretação feita no Dicionário de Símbolos sobre


a cor verde, também traz como contraponto o vermelho. Portanto, estamos numa relação de
ambivalência total. Aliás, tudo nessa narrativa gira em torno desse sentido.

O que num primeiro olhar pode não ter importância, de repente ao entrar em
conexão com os outros elementos ganha uma feição inusitada e ao mesmo tempo, esperada,
embora não deixe de ser surpreendente, tal como o verde que tem um significado de regresso
ao útero, paraíso materno, renascimento, desencadear da vida, enquanto sendo par do
vermelho tem o seu significado reforçado, pois além do que vimos sobre o vermelho, ainda
podemos acrescentar que:

“Universalmente considerado como o símbolo fundamental do


princípio da vida, com sua força, seu poder e seu brilho, o

95
Idem, ibidem, pp. 938, 939.
148

vermelho cor de fogo e de sangue, possui, entretanto, a mesma


ambivalência simbólica, destes últimos (...).”96

Verificamos que essas duas cores se reiteram e reafirmam o caráter de


ambivalência da narrativa. O pássaro verde e vermelho ruma de volta para casa sustentado
pelo princípio de renascimento, agora mais equilibrado embora ambivalente. O menino-
pássaro leva consigo o masculino (vermelho) e o feminino (verde) e portanto será capaz de
ressurgir como alguém mais completo, capaz de enfrentar sua mãe-castrada e recompensar
sua irmã – “espelho de alma”.

O menino materializado em pássaro pode renascer unindo seus aspectos


dualísticos, mas diríamos que é provável que o masculino e feminino presentes no pássaro
indiquem uma certa androgenia, embora tal característica não se confirme. Entretanto,
compreendemos que o menino e a menina são lados da mesma moeda e significam que o
masculino e feminino são representações da alma.

Assim, esse pássaro é representante da busca pelo renascimento, mas também da


possibilidade de integração entre dois princípios básicos da alma humana, o feminino e o
masculino.
Diante do canto, o mesmo cantado na casa do ourives, portanto repetição,
acontece a mesma coisa. O homem deslumbrado pede para que a ave cante novamente e ela
responde-lhe que, somente repetirá o canto se receber algo em troca. Então, o sapateiro pede
a sua mulher que vá até o sótão e tire da prateleira de cima um par de sapatinhos vermelhos.
Quando a mulher aparece com os sapatinhos, ele chama o pássaro e os oferece, pedindo que
repita o canto.
A ave canora vai até junto do sapateiro e com a pata esquerda segura o presente.
Assim, tem na pata direita a correntinha de ouro e na esquerda os sapatinhos. Já que recebera
o “pagamento”, que de certa forma é uma troca, então volta para o telhado e canta a mesma
canção.
Logo em seguida, parte satisfeito e chega até um moinho que rodava sem parar:

“(…) clip clap, clip clap, clip clap. E no moinho trabalhavam


vinte homens, talhando uma pedra: ric rac, ric rac, ric rac. E o
moinho continuava: clip clap, clip clap, clip clap. O pássaro

96
Idem, ibidem, p. 944.
149

pousou em uma limeira que crescia em frente do moinho e


cantou: - Mamãe me matou – Então um dos homens parou de
trabalhar. – Papai me comeu. – Outros dois homens pararam
de trabalhar, para ouvirem o canto. – E minha irmãzinha –
Outros quatro homens pararam de trabalhar. – Os ossos
colheu. Num lenço de seda, piedosa, os guardou. – Agora
apenas oito homens estavam talhando pedra. – E embaixo do
zambro – Agora só cinco – O lenço deixou.- Agora um homem
somente. E ave canora agora sou eu! O último homem parou de
trabalhar então e exclamou: - Que beleza de canto, ave! Canta
mais para mim!
• Não – respondeu a ave. – Não repito o canto senão em troca
de algo. Dá-me a pedra de moinho, que tornarei a cantar.
• Se ela fosse só minha, eu te daria – replicou o homem.
• Se ele cantar de novo, poderá levar a pedra! – concordaram
todos os outros dezenove homens.
A ave enfiou a cabeça no buraco da pedra e levantou vôo com
a mó em torno do pescoço, como se fosse um colar. Pousou de
novo na árvore e cantou: (...).”97

Agora, temos um novo conjunto de elementos que apontam para a conclusão do


conto, embora a caminhada do nosso herói , ainda , não tenha se encerrado, pois o cantar que
consegue ouro, sapatos e uma enorme pedra, ainda, não concretiza-se na solução que deve ter
o conto, pois a viagem do pássaro precisa continuar até que o mesmo possa ressurgir de forma
diferente. Se a “serenata” que é canto, mas também narração do fatal destino do menino, se
encerrar por aqui, então de nada adiantou a viagem.

A ave nascida do Junípero lançou-se para o vôo da conquista, aquele que lhe
permitiria o reconhecimento e a gratificação. Entretanto, somente isso não lhe basta. Voltar
para casa com ouro e vida pode ser pouco para quem fora tão duramente ameaçado. Ele
cantou sua história, cruel e triste, mas também bela porque fala de um sofrimento
ultrapassado. Afinal, é com orgulho que o pássaro se diz a “ave canora”.

97
Idem, ibidem, pp. 407, 408.
150

Portanto, depois de tanta dor, sua alma inicia a viagem da recompensa,


possibilidade de amor. De fato, é a generosidade da irmã que tem o poder de restaurar a
dignidade daquele menino rejeitado e restituir-lhe a capacidade de ser amado, dai que ele não
repete seu canto se não for devidamente recompensado, pois a sua história vale muito e é tudo
que tem para garantir-se da vitória final.
Provavelmente, a irmã ocupa um lugar muito singular nesse conto. Ao mesmo
tempo em que é o instrumento da destruição do menino pela madrasta, também é o meio pelo
qual ele é salvo. Portanto, conseguimos enxergar algo de extrema dualidade, mais do que isso,
ambivalência inerente à função desempenhada por esta personagem. Talvez seja ela, uma
representação do princípio feminino, ânima.

Como já analisamos o Sol e o ouro têm relações arquetípicas muitos próximas, o


brilho, a cor amarela, enfim tudo que determina riqueza, poder e lei está contido nesses
símbolos e por isso eles são os elementos que aparecem logo que a narrativa anuncia a virada
de um momento de ruptura para o estágio da comoção, iniciada com a ação generosa da irmã
de restabelecer para o menino uma possibilidade de vida nova.

A ave canora não faz um percurso errante ao contrário disso ela pousa
estrategicamente onde pode conseguir o passaporte para o próximo desafio. O ouro é mais do
que fortuna material, é um bem espiritual doado somente aqueles que o merece como
recompensa por uma etapa vencida, tanto é assim que em quase todas as narrativas antigas o
ouro é dado como recompensa por uma prova cumprida. Enquanto isso os sapatinhos
vermelhos, carregam a marca não somente de ascensão e elevação espiritual, mas também
podem significar um símbolo fálico, tal como nos diz Chevalier:

“Andar de sapatos é tomar posse da terra (...) em caso de


resgate ou permuta, para validar o negócio, um tira a sandália
e entrega ao outro( Ruth,4, 7-8 ) Aqui o gesto sanciona...um
contrato de troca (...) o calçado torna-se símbolo do direito à
propriedade (...) símbolo do viajante (...) na China,
compreensão recíproca (...) símbolo de identificação (...) O
sapato de Cinderela na sua primeira versão, que remonta a
Elieno, orador e narrador romano do séc. III, confirma essa
identificação do sapato com a pessoa. Quando uma cortesã,
Rodopis, tomava banho, uma águia roubou-lhe a sandália e
151

levou-a para o faraó. Este impressionado com a delicadeza do


pé, fez com que procurassem a jovem por todo lugar, ela foi
encontrada e ele a desposou (...) Alguns interpretes fizeram
desse símbolo de identificação um símbolo sexual, ou, pelo
menos, do desejo sexual despertado pelo pé. Aqueles, que
consideram o pé como símbolo fálico verão facilmente no
sapato um símbolo vaginal e, entre os dois, um problema de
adaptação que pode gerar angústia.”98

O surgimento de sapatinhos nos contos de fadas, principalmente quando a


narrativa se prepara para o final, não é tão raro. Várias são as histórias que como Cinderela,
apresentam sapatinhos que salvam e dão à personagem que os usa domínio sobre a
sexualidade e poder de “caminhar” de uma etapa para outra, como também uma identidade
própria.
Entretanto, acreditamos que uma impressão forte deixada por esses sapatinhos,
relaciona-se estreitamente ao fato de que o menino volta para se reapossar do seu território e
por isso os entrega à Marlinchen. Mas, também estamos diante de sapatinhos vermelhos que
como já vimos pode carregar um significado fálico, embora a história nos induza para
diversos significados.
Sabemos que esses sapatinhos não foram calçados, portanto não possuem uma
identidade, mas ao serem atirados para a menina eles demarcam um jogo de sedução, mas por
outro lado de apropriação, como veremos mais adiante.

Assim, os sapatinhos vermelhos podem dizer respeito à sexualidade, mas, por


outro lado, principalmente de demarcação de território, e, também renascimento. Não se trata
de sapatinhos de cristal ou vidro, mas de couro vermelho. Foram retirados de uma alta
prateleira que ficava no quarto do casal.

Ora, o sapateiro não solicitou da mulher um par de sapatos qualquer, mas


determinou que fossem os vermelhos. Podemos interpretar tal situação como uma metáfora de
que a ameaça de castração está superada, visto que nesse momento o menino já iniciou o seu
processo de renascimento. A castração vista como corte simbólico faz com que a criança dê
entrada numa nova etapa da vida se sentido mais garantida e reconhecendo seu espaço na
família, no social e também no seu mundo interior. Por conseguinte, temos dois sentidos para

98
Idem, ibidem, pp. 802, 803.
152

a ida do pássaro à casa do sapateiro e , de certa maneira, eles se complementam na medida em


que associamos a castração simbólica como o corte necessário para que o sujeito adquira uma
identidade e possa demarcar seus limites, ou seja, seu território de atuação.

Assim, receber os sapatinhos vermelhos , nessa fase da história, tem uma


conotação bastante significativa para “aquele que nasce de novo”. O ouro que significa poder,
lei, recuperação, energia e força é recebido pela pata direita, enquanto os sapatinhos pela
esquerda. Munido de força, poder e identidade o menino será capaz de receber o instrumento
com o qual marcará seu renascimento e retorno a casa paterna. Somente após ter conseguido
realizar as três provas e conquistado a recompensa, a ave canora está pronta para alçar o seu
mais alto vôo, agora com o ouro, os sapatinhos e a mó pendurada no pescoço, poderá partir
para casa e recuperar –se dos danos sofridos.

Esse tempo da recuperação nos contos de fadas é de fundamental importância para


a criança, pois ela apreende pela metáfora que somente depois de superar os conflitos
edípicos, será capaz de compreender a ordem na qual está inserida e aceitar a interdição
necessária para se tornar uma pessoa “equilibrada”, apenas dessa forma poderá transcender e
conquistar uma vida feliz, pois:

“ As dificuldades edípicas, sejam declaradas ou sugeridas, e a


forma como o indivíduo soluciona-as são básicas para o
desenrolar da sua personalidade e relações humanas.
Camuflando os predicamentos edípicos, ou intimando
sutilmente seus envolvimentos, os contos de fadas permitem-
nos esboçar nossas próprias conclusões no tempo propício,
para conseguirmos uma melhor compreensão destes
problemas. Histórias de fadas ensinam pelo meio indireto.”99

É precisamente isso que colocávamos anteriormente, pois fica claro que a


recompensa, ou seja, o equilíbrio desejado, chega no tempo certo. Nem antes da criança
sentir-se pronta para compreender tais aspectos da sua vida afetiva, nem depois quando já não
mais assimilará as informações externas de maneira positiva para a estruturação de uma
personalidade saudável.

99
BETTELHEIM, Bruno. Op. cit., p. 240.
153

Então, sentimos que a narrativa dos contos de fadas faz ao leitor uma proposta
segura na medida em que coloca o herói diante das provas a serem superadas e também, da
recompensa alcançada a cada dificuldade transposta. Isso, implica em algo como dizer para a
criança: “vá com calma, o momento certo chegará, mas antes terá que enfrentar seu próprio eu
– suas dores e conquistas para então obter o bem maior e ser feliz”.

Talvez seja por esse motivo que a ameaça seja um elemento de tanta importância
nos contos, pois funciona como um desafio a ser vencido, como uma prova a ser superada.
Seja ela física ou moral, indica que o herói precisa buscar forças para enfrentar o mau e sem
dúvida, a ameaça de castração significa mais do que um dano físico, um dano psíquico.

Então, não basta superar a ameaça real de mutilação e morte se a criança não se
sente capaz de enfrentar seus medos e ansiedades com relação ao que pode representar ser
abandonada ou rejeitada pela mãe-boa. Apresenta-se no conto uma mãe-má e castrada como
sendo a maior ameaça à integração física e psíquica do herói.

Certamente, a criança que enfrenta o medo do abandono e da castração


compreenderá afetivamente que o que a narrativa apresenta é uma possibilidade que pode ser
enfrentada por ela, como foi pelo herói. Podemos dizer que:

“O consolo requer que a ordem certa do mundo seja


restabelecida; isto significa o castigo do malfeitor, equivalente à
eliminação da maldade no mundo do herói – e então nada mais
impede o herói de viver feliz para sempre.”100

Dessa maneira, o nosso herói não poderia ter partido para a sua empreitada final
se não tivesse passado por todas as etapas sinalizadas pelo conto. Chegar a casa do pai apenas
com o ouro e os sapatinhos significaria ainda não estar pronto para punir a cruel madrasta,
pois para tanto teria que ter experimentado a sua força e capacidade de recuperação.

A ave canora teria que contar sua história para aqueles que são capazes de talhar a
pedra, de moldá-la para que adquirindo uma forma possa ter uma finalidade, uma função.
Ora, não por acaso as três pessoas que escutam o cantar do pássaro são do sexo masculino e
precisamente, são esses homens que oferecem a oportunidade de crescimento.

100
Idem, ibidem, p.178.
154

Possivelmente, essas personagens são uma representação do pai, que em casa


aguarda a chegada do filho. Logo, fica claro o porquê do pássaro oferecer o canto, mas só o
repetir se for recompensado. Já salientamos anteriormente, que a criança necessita ter uma
identificação positiva com o pai do mesmo sexo para que então se sinta estimulado a ser
homem ou mulher, portanto o fato de as três personagens estarem no trabalho tem relevância,
pois identidade é algo que se constrói ao longo da existência e ter um lugar definido e
desejado, demanda trabalho . Ou seja, para sermos felizes é preciso aceitar desafios. Para nos
tornarmos homem ou mulher é necessário trabalhar por uma identificação positiva com o
Outro , representado por um dos pais.

Fica também, a sugestão de que para crescer é fundamental que se trabalhe para
conquistar os ideais. Para se tornar adulto é necessário vencer provas e riscos, o que significa
enfrentar lutas no mundo real e imaginário, pois somos como as personagens dos contos de
fadas que ao enfrentarem os perigos da florestara ou cederem à sedução, exercitam
plenamente o poder de arriscar-se para que mais tarde se realizem como “pessoas”.

Outro dado de relevância mostrado pela narrativa e até, certo ponto enfatizado, é
que o ouro é carregado pela pata direita e os sapatinhos pela esquerda, enquanto a pedra-mó
será transportada pendurada no pescoço. Direita e esquerda nos posiciona quanto à
lateralidade, mas na verdade possuem um sentido bem mais amplo do que o de direção, nos
inserindo em valores construídos a partir da noção do bem e do mal, do feminino e do
masculino, da vida e da morte, entre outros aspectos como os que sublinhamos a seguir:

“Simboliza a comunicação da causa ao efeito, do incriado ao


criado, como ação e passagem de influxo de um para o outro,
mais do que como estrutura do mundo.(...) A esquerda é a
direção do inferno, a direita, a do paraíso. Certos comentários
rabínicos assinalam que o primeiro homem (Adão) era só
andrógino mas homem do lado direito e mulher do lado
esquerdo.(...) A Idade Média cristã não escapou a essa
tradição, segundo a qual o lado esquerdo seria o lado feminino,
em oposição ao direito, masculino. Sendo fêmea, a esquerda é
igualmente noturna e satânica, segundo antigos preconceitos,
por oposição à direita, diurna e divina(...) é direito o que vai no
155

mesmo sentido do Sol; esquerdo o que vai no outro sentido


(...).”101

Mais uma vez a análise dos símbolos confirma a nossa hipótese de que o ouro
(sol) carregado pela pata direita, lugar da identificação com o princípio masculino será
repassado às mãos do pai, garantindo o lado bom para o qual o menino deve seguir, enquanto
os sapatinhos vermelhos são carregados pela pata esquerda, espaço do marginal, do desvio, do
sinistro e contrário ao lado do Sol.

Confirmamos também o caráter um tanto andrógino vivido pelo pássaro e que de


certa forma está contido na personalidade, ainda não definida, da nossa personagem que
representa o herói. Vivendo a dualidade a personalidade fica enfraquecida, portanto o ser
humano precisa de definição. A estruturação de uma personalidade saudável, depende de um
processo de identificação bem sucedido com o pai do sexo oposto.

Nesse sentido podemos inferir que o menino alcança essa identificação, visto que
repassa o ouro que carrega com a pata direita para o pai, pois é com ele que deve identificar-
se e buscar processos de projeção para que alcance o valor masculino necessário à posição
sexual que lhe garanta o reconhecimento da lei, da interdição.

Vimos que o pássaro ao chegar no moinho se depara com homens que trabalham
e, diferentemente, das outras vezes em que pousa no telhado, dessa vez fica sobre uma limeira
de onde faz soar seu canto. Depois de algumas tentativas, calma e compassadamente, o
pássaro consegue seu objetivo: obter a pedra –mó . Não é fácil consegui-la, pois isso depende
não somente do moleiro, mas também dos outros trabalhadores, que após terem ouvido o
canto se sensibilizam e pedem para repetir.

Assim, como das outras duas vezes, a ave canora consegue realizar a permuta para
seguir seu último destino, reencontrar seu pai e reagir contra a enorme dor sofrida. Parte,
carregando o ouro na pata direita, os sapatinhos na esquerda e , como coroado pelos vinte
homens, leva a pedra ao centro pendurada ao pescoço, como se fosse o colar da vitória.

101
Idem, ibidem, pp. 341, 342.
156

A pedra possui muitos significados diferentes, mas encontramos uma referência à


pedra mó com um furo no centro que consideramos importante reproduzir, pois certamente
estamos à frente de mais um símbolo que confirma nossas primeiras conjecturas, visto que:

“Existem também pedras furadas, através das quais se joga


uma moeda ou se passa a mão, o braço, a cabeça ou todo o
corpo; atribui-se a elas a proteção contra os malefícios e a
posse de virtudes fertilizantes e fecundadoras (...) a ação ritual
de passagem pelo buraco de uma pedra implicaria a crença em
uma regeneração por intermédio do princípio cósmico
feminino. No Oriente antigo e na Austrália, associada às provas
iniciáticas, a pedra furada é um símbolo de vagina. Pedras em
forma de mó furada referem-se a um simbolismo solar, a um
ciclo da libertação através da morte e do renascimento através
do útero.”102

Não temos dúvida de que estamos diante de um conto de retorno, no qual o herói
sofre as provas e volta para casa com outro nível de espiritualidade. Temos, novamente,
confirmada a hipótese de busca pelo abrigo materno, simbolizado pelo útero, pois ele não
significa apenas o órgão reprodutor feminino, mas também o primeiro espaço ocupado pela
criança ao ser concebida.
A viagem feita pela ave também diz respeito a uma passagem, o que implica dizer
um momento de iniciação e no caso do herói do conto em questão, é uma passagem para a
conquista da verdadeira liberdade, pois o ciclo de libertação é também o de morte e
renascimento. Essa é uma etapa trazida por quase todas as narrativas de tradição oral. O ciclo
de iniciação é também o ciclo de morte, pois para a introdução numa vida diferente , a morte
funciona como condição.

Temos mais uma confirmação de que a morte do herói no início do conto acontece
como um sacrifício necessário para que o ritual de passagem e iniciação seja consumado.
Agora, após ter conseguido transitar por todas as provas o menino parece estar pronto e
equilibrado para tomar posse do seu território, tanto identificando-se com o pai, como também

102
Idem, ibidem, p. 700.
157

se harmonizando com a sua ambigüidade, compensando sua natureza feminina, mas


introjetando à lei paterna.

A narrativa diz claramente que o pássaro alçou vôo com a pedra em torno do
pescoço, como se fosse um colar, então temos na pedra furada um símbolo do ritual de
passagem e de relação uterina e uma forte semelhança com o colar, que nesse momento não
significa ornamento, enfeite, mas precisamente exerce a função de nos sugerir:

“(...) o elo entre aquele ou aquela que o traz e aquele ou aquela


que o ofertou ou impôs. Nessa qualidade liga, obriga, e se
reveste, por vezes, de uma significação erótica. Num sentido
cósmico e psíquico, o colar simboliza a redução do múltiplo ao
uno, uma tendência a pôr em seu devido lugar e em ordem uma
diversidade qualquer mais ou menos caótica. Em sentido
oposto, desfazer um colar equivale a uma desintegração da
ordem estabelecida ou dos elementos reunidos.”103

A pedra tem um sentido apropriado e reflete todo o seu simbolismo nessa etapa do
conto, uma vez que também representa um colar doado por vinte homens. Não por acaso,
segundo o Dicionário de Símbolos, inúmeras vezes citado, o número vinte tem seu
simbolismo ligado ao Deus Solar, na função de arquétipo de Homem Perfeito, e, também
unidade.

Ora, são os vinte homens que ofertam ao pássaro a pedra furada, que também
indica unidade, ordem e elo. Mais uma vez, o nosso herói conta com o princípio masculino
para que possa prosseguir a viagem de renascimento.

Por outro lado, vimos que esses símbolos podem ter uma conotação relacionada à
pulsão sexual, embora a interpretação possa ser feita nesse sentido, preferimos enfatizar a
problemática da narrativa na busca de identidade e aceitação, além de iniciação para uma
nova vida. Contudo, reconhecemos que o conto aponta em diversos momentos para problemas

103
Idem, ibidem, p. 263.
158

de ordem da sexualidade vividos na infância. Inclusive, a busca de identidade e a necessidade


de aceitação têm a ver com questões sexuais.

No entanto, a riqueza desse conto é tão grande que fica impossível nos encerrar
numa interpretação única, pois se assim fizermos corremos o risco de cair no reducionismo
interpretativo, característico da maioria das abordagens psicanalíticas da representação
literária.
Chegamos a realizar algumas conjecturas que podem conduzir nossa análise de
conclusão desse conto a um desfecho já esperado. Mesmo porque, após a terceira prova pela
qual passa a ave, então de imediato somos informados que o destino almejado será alcançado
e logo o menino estará feliz, sobretudo porque será capaz de dar à madrasta o castigo que ela
merece.
De qualquer forma, mesmo sabendo que o pássaro caminha de volta ao lar, como
ainda não foi totalmente desvelada a sua identidade, então é provável que o leitor permaneça
na dúvida se o pássaro é mesmo o menino morto que depois de ter feito essa longa viagem,
renasce para ocupar o seu lugar.

Então, sugerimos uma parte de conclusão na qual tentaremos arrematar alguns


aspectos da história, tomando como referência os três tempos da dor, da ruptura e comoção
até a da reação defensiva do eu, momento no qual o herói de fato consegue se libertar da mãe-
má e ocupar um lugar de diferença no seio da família

4.3 - A TERCEIRA ETAPA DA DOR: A REAÇÃO

Diante da riqueza simbólica apresentada, de maneira geral, pelos contos de fadas e


do encadeamento dos diversos símbolos dispostos na narrativa, é natural uma certa
perplexidade com relação à elaboração mental que surge a partir do contato com essas
histórias.
É intrigante imaginar como tantos elementos eram postos nessas narrativas,
gerando uma rede tão complexa de possíveis interpretações, ainda que somente , esses
símbolos alcancem sua dimensão de significante quando apreendidos pelo inconsciente.

Portanto, por mais que mexam com a afetividade e provoquem sentimentos


antagônicos nos envolvemos com a beleza poética, pois existe aí grandeza simbólica
suficiente para nos fazer transcender.
159

O conto de fadas não é regido por uma lógica interna qualquer, pois faz parte de
uma rede de significações tecida desde os primórdios da humanidade e por isso, por mais
complexidade que apresentem, falam diretamente a nossa alma.

O Junípero é uma história que nos aterroriza por tudo aquilo de mal que ela
representa e que, até certo ponto, reside em todos nós, mas sobretudo é uma narrativa de
resgate, que sugere ao leitor um sentido de luta e reorganização do caos interior.

Se o leitor consegue ultrapassar seus próprios anseios e medo durante o desenrolar


da narrativa, então ele estará garantido de algo que somente a arte tem a capacidade de dar
que é a fruição, o ponto de passagem e travessia no qual o leitor se sente plenamente
gratificado por ter sofrido junto com as personagens, vivendo as dores do Outro, como
também a felicidade e a vitória para então, poder sair recompensado.

Se O Junípero parece escandalizar o nosso consciente por tudo aquilo que ele
provoca, é de outra forma assimilado pelo inconsciente como alívio e apaziguamento, pois o
discurso interior que se produz a partir dos conteúdos apresentados constituem apenas a ponta
do iceberg. No espaço da nossa surpresa ou estranhamento, existem milhares de eus que
gritam pedindo passagem, se amontoam como monstros devoradores para ocupar uma página
da nossa história.

Certamente, em narrativas como O Junípero esses eus explodem para se salvarem


pelo olhar que vem de fora, então é o momento da sublimação. Contudo, esse instante de
virada só é assumido quando a narrativa começa a assumir aquilo que chamamos de terceiro
tempo da dor e que se constitui na reação defensiva do eu para a psicanálise, enquanto dentro
da trama podemos caracterizar como os tempos da conquista e da celebração.

Assim, chegamos ao momento de conclusão do conto O Junípero, perplexos por


tudo que ele nos fez suscitar, mas também reassegurados de que a beleza da narrativa não é
apreendida apenas por momentos de magia e encontro, mas também por aquilo que nos faz
“olhar” na curva, no desvio e na ausência.

Agora aportamos na passagem da comoção para a conquista. De certa forma,


nos interrogamos sobre o que pode desejar uma criança que se sente abandonada e preterida.
Afinal, o que pode fazer uma criança cuja percepção do próprio eu está condicionada ao
fragmento e a uma visão caótica com relação ao amor de seus pais, senão entregar-se a um
160

ego frágil, que deixa-se dominar pelo necessidade do Outro? Somente, numa atitude reativa
uma criança com tais sentimentos pode superar sua dor e auto-piedade e é dessa maneira que
o protagonista do conto se assume em outra condição anunciada quando o pai, sua madrasta e
sua irmã postiça estão à mesa do jantar, como veremos a seguir:

“O pai, sua esposa e Marlinchen estavam jantando, e o pai


disse, então: - Como me sinto feliz, livre de preocupações!
• Pois eu me sinto tão inquieta, como estivesse se aproximando
uma terrível tempestade – disse a mulher. Marlichem, por seu
lado, chorava sem parar. E, então, a árvore veio voando e
pousou no telhado da casa.
• Sinto-me verdadeiramente feliz! – exclamou o pai – Está um
dia tão bonito lá fora! Tenho a impressão de que vou rever um
velho amigo.
• Eu estou aflitíssima! – exclamou a mulher. – Estou batendo os
dentes, tenho a impressão que o fogo está correndo em minhas
veias!
Arregalou os olhos, enquanto Marlinchen escondia com as
mãos, que logo ficaram molhadas, tantas eram as lágrimas.
Enquanto isso, a ave pousava no Junípero e cantava: Mamãe
me matou.
Desesperada a mulher tapou os ouvidos e fechou os olhos, para
não ver nem ouvir, mas parecia-lhe que trovões terríveis
ribombavam em seus ouvidos e relâmpagos constantes
ofuscavam e queimavam-lhe os olhos. – Papai me comeu,
• Que linda ave! – exclamou o homem.- E canta
maravilhosamente bem. E espalha um cheiro semelhante ao da
canela.
• E minha irmãzinha
Marlinchen não parava de chorar, mas seu pai, ao contrário,
continuava a se mostrar muito satisfeito, e disse: - Vou lá fora,
para ver de perto essa ave.
161

• Não vás! – protestou a mulher, quase gritando. – Tenho


impressão de que a casa está balançando e pegando fogo!
O homem, porém, não atendeu ao seu pedido e saiu e olhou
para o pássaro, e este cantou:
Mamãe me matou, papai me comeu
E minha irmãzinha os ossos colheu.
Num lenço de seda, piedosa, os guardou
E embaixo do zambro o lenço deixou.
E a ave canora agora sou eu. (...).”104

O final desse conto é realmente narrado de maneira dramática, todo o cenário é


preparado para que o leitor imagine a cena, tanto do enquadramento das ações que ali serão
desenvolvidas, como também da cena vista na perspectiva de uma grande ruptura interior,
passada no psiquismo desde os primeiros indícios da formação egóica.

A ave que cheira à canela, chega trazendo paz para uns e inferno para outros.
Ressaltamos que a canela é uma especiaria muito utilizada pelos antigos e também, bastante
cobiçada no Oriente. A sua natureza é yang e significa princípio vital, como também pode
traduzir imortalidade. O Dicionário de Símbolos confirma essa interpretação, na medida em
que revela que os antigos preparavam com ela, um vinho , do qual bastava se beber apenas
uma gota para ficar com o corpo da cor do ouro. Mais uma vez temos a presença do ouro,
confirmando nossas hipóteses iniciais.

Enquanto a malvada mulher tremia e se desesperava por pressentir que algo


tenebroso lhe aconteceria, o homem se sente leve e feliz, tranqüilo. A casa que parece estar
pegando fogo pode ser interpretada como a mãe-má começando a sofrer retaliação e a ser
dominada pelo menino, que mesmo estando ainda na forma animal, já anuncia o seu
renascimento, aparecendo no mesmo lugar onde o conto exibe, aquilo que para nós é
considerado o primeiro tempo da dor: embaixo do Junípero.

A transformação é um tema muito utilizado pelos contos de fadas como forma de


representar a passagem de uma situação para outra, como também de uma experiência para
outra e ainda, de um estágio de maturidade para outro. Essas histórias estão repletas de

104
O Pequeno Polegar. In: Anexo 3, p. 280.
162

animais a serviço do mal, veículo das pulsões destruidoras que trabalham liberadas pelo id,
mas também de animais que simbolizam os instintos positivos, como no caso da ave canora.
Como diz Bruno Bettelheim, esses animais significam a nossa natureza animal e dualista em
busca de outro nível de espiritualidade, pois:

“Tanto os animais perigosos como os prestativos representam


nossa natureza animal, nossos impulsos instintivos. Os
perigosos simbolizam o indomável id, ainda não sujeito ao
controle do ego e do superego, em toda sua energia perigosa.
Os animais prestativos representam nossa energia natural –
novamente o id – mas agora levados a servir aos interesses da
personalidade total. (...).”105

Assim, o nosso menino-pássaro consegue sua forma humana após ter vencido
todas as provas que lhe são impostas na narrativa. Voltar a ser menino significa ter
conseguido a transformação interior necessária para viver mais um ciclo da sua existência, por
isso que em geral, a transformação só acontece no momento de conquista. A mudança de um
estado de ser para o outro é a conquista que o herói precisa realizar para “integrar” os
elementos díspares da sua personalidade.
Como o pássaro tem no conto uma conotação positiva, então supomos que ele está
a serviço do bem, inclusive quando castiga a mulher malvada temos o id funcionando para
que o bem se sobreponha ao mal. Além desse sentido, existem na tradição oral muitas
referências ao pássaro que surge da luz solar ou da copa de uma frondosa árvore. Mesmo
algumas narrativas mais recentes e de cunho religioso, trazem o pássaro como veículo de
transformação.

O Junípero é uma narrativa que transcende aos limites de tempo e espaço, visto o
seu vigor simbólico, pois a cada etapa do conto nos surpreendemos pela maneira como cada
fase é fechada e fica mesmo impossível se fazer uma previsão do que acontecerá na seqüência
seguinte. Talvez, o leitor possa até ter uma idéia de que o pássaro cantará em outros lugares
por conta da repetição e da oferta do ourives, mas provavelmente, não imaginará onde e como
a cena se desenrolará.

105
BETTELHEIM, Bruno. Op. cit., p. 93.
163

Diante do quadro de aflição da madrasta, descrito com tal dramaticidade, o leitor


é preparado para viver a tensão necessária a tal desfecho e sentir-se “vingado” daquilo que um
dia pode ter representado sua mãe-má.

Podemos dizer que a última cena traz um certo requinte de crueldade, mas mesmo
assim, a maioria das crianças se sente rejubilada ao se deparar com tal final. Algumas
chegam a dar gargalhadas de euforia pelo trágico destino que tem a madrasta. Por outro lado
também, compreendem o porquê de Marlinchen chorar tanto, pois afinal aquela mulher,
mesmo sendo pior do que uma bruxa malvada é para a menina, se é que assim podemos
considerar, a representação da mãe-boa.

Depois, o sentimento de que os pais preferem um filho ao outro, faz parte do


relato de muitas crianças e O Junípero é um conto que permite, também, essa abordagem.
Assim, é aceitável que a filha sendo a preferida, sinta-se triste pelo destino da mãe, mesmo
reconhecendo a sua maldade.

Certamente, as crianças se identificam com a menina durante essa situação


apresentada pelo conto. Basta recorrermos à memória que surgirá na lembrança um caso
qualquer no qual uma criança deseja muito que algo de errado aconteça a um dos pais para se
vingar de algo que lhe fora recusado. Entretanto, se qualquer coisa acontece de fato, a criança
se sente profundamente culpada e deprimida, pois por pior que seja a mãe ela é sempre objeto
de amor, mesmo quando parece ser odiada.

Lembramos que a mãe-boa e a mãe-má fazem parte da mesma mãe, sendo que a
criança ao realizar a cisão entre o seio-bom e o seio-mau conseqüentemente realiza também
uma cisão daquela cuja função é proteger e alimentar, mas que não pode suprir todas as
necessidades da criança e por isso, falha na fantasia de abandono do bebê.

No conto, temos um elemento de elação entre a mãe-boa e a má representado


pelas maçãs. No início dessa história, a mãe descasca uma maçã e logo após cortar o dedo,
deseja ter um filho. No episódio da morte do menino, uma maçã é objeto de sedução que o
leva até o baú, onde sua cabeça rola por entre as maçãs. Assim, temos com clareza uma
ligação entre essas duas mães. A primeira, boa e a segunda má, perfeita representação do
primeiro objeto de amor e ódio do bebê. Ora, sabemos que a cisão da mãe é algo
que deixa a criança mergulhada num sentimento devastador de culpa, pois não é difícil
164

dirigir para a mãe ameaçadora, sentimentos de raiva e destruição, tal como nos é colocado
por Bettelheim ao referir-se à madrasta:

“Similarmente, embora mamãe seja com mais freqüência a


protetora toda dadivosa, pode-se transformar na cruel
madrasta se for malvada a ponto de negar a seu filhinho algo
que ele deseja. Longe de ser um expediente apenas usado por
contos de fadas, esta divisão de uma pessoa em duas para
manter a boa imagem sem contaminação ocorre a muitas
crianças como uma solução para um relacionamento muito
difícil de conduzir ou compreender. Com este expediente todas
as contradições são subitamente resolvidas (...) Embora as
crianças precisem algumas vezes dividir a imagem dos pais
entre aspectos benevolente e ameaçador para que sintam
plenamente protegidas pelo primeiro, a maioria não pode fazê-
lo (...) Os contos de fadas, contendo boas fadas que aparecem
subitamente e ajudam a criança a encontrar a felicidade apesar
do “impostor” ou da “madrasta”, permitem que a criança não
seja destruída por esse “impostor”. Os contos de fadas indicam
que, escondida em algum lugar, a boa fada madrinha observa o
destino da criança, pronta a afirmar o seu poder quando for
necessário e urgente. (...) diz à criança, que embora “embora
existam bruxas, nunca se esqueça que também existem boas
fadas, muito mais poderosas”. (...).”106

Os contos de fadas nos dizem isso de forma muito simbólica e a sabedoria


psicológica que ai reside é sempre surpreendente, talvez por isso o escritor Lewis Carrol tenha
afirmado que “dar um conto de fadas para uma criança é dar-lhe um presente de amor”.
Podemos também, lembrar o poeta alemão Sheller ao dizer que “há mais verdade nos contos
de fadas que li na infância do que o que aprendi a vida toda”.

106
BETTELHEIM, Bruno. Op. cit., pp.84, 85.
165

A verdade dos contos de fadas reside numa literatura que transcende o tempo e o
espaço porque fala da vida, do homem e, sobretudo, da alma. O que presenciamos nessas
histórias aparentemente fantasiosas são cenas da vida familiar. São as dores e os amores pelos
quais vamos ao longo da nossa existência nos tornando pessoas.

Dificilmente, vamos encontrar alguém que não tenha vivido na sua cena familiar
uma raiva desesperadora pela pessoa amada ou um conflito do tipo “mamãe gosta mais dele
ou dela do que de mim”. Isso faz parte da existência e os contos de fadas reapresentam tal
sentimentos de maneira surpreendente, na medida em que nos convida a olhar para a ferida
com um certo grau de distanciamento, ou seja: tudo é tão impossível que eu não estou aí.
Assim, quem persegue é uma bruxa malvada, quem odeia e ama é o herói, quem celebra são
os vitoriosos e assim por diante.

Uma criança que viva um drama interno semelhante ao do menino do Junípero


não vai sentir-se ameaçada de que a sua mãe má o degole, mas provavelmente pela força da
metáfora vai ser reconduzida aos sentimentos arcaicos, quando vivia a angústia da divisão
entre a mãe boa e a mãe má. Então, o movimento simbólico do conto não é o de fazer
assustar, contrariamente a isso é o de fazer escapar.

Vivendo o que é do Outro a criança se sente salvaguardada dos seus próprios


mecanismos de destruição e aquilo que se apresenta como ferida primária, espaço vacante da
dor, é preenchido pelo consolo. Aliás, consolar também é uma das funções da arte e por isso
ela está presente no fazer humano desde os tempos remotos.

Todos nós sabemos que a criança não vive num paraíso como muitos pais
desejam, embora sejam mais simples na maneira de falar dos seus sentimentos. Mas, talvez a
complexidade do que na infância é experimentado com relação aos sentimentos seja muito
maior do que na vida adulta e por isso, determine a construção do sujeito e da sua vivência
familiar. Essa história vivida na cena familiar funcionará como marca durante toda a trajetória
do sujeito no mundo.

É com alguma propriedade que consideramos os contos de fadas como algo que
remonta a essa cena, pois as personagens são sempre Outros que vivem e anseiam, vencem e
são vencidas, odeiam e amam tanto quanto o leitor. Certamente, por isso a psicanálise vai nos
dizer que:
166

“A universalidade destas fantasias é sugerida pelo que, em


psicanálise, conhecemos como “romance familiar” da criança
na puberdade. São fantasias ou devaneios que o jovem
reconhece parcialmente como tais, mas nos quais também
acredita parcialmente. Centralizam-se na idéia de que os pais
não são verdadeiros, que somos filhos de alguém importante e
que, devido a circunstâncias infelizes, fomos levados a viver
com outras pessoas que alegam ser nossos pais .Estes devaneios
tomam várias formas: freqüentemente achamos que só um dos
pais é falso – o que é análogo a uma situação comum nos contos
de fadas, onde um dos pais é verdadeiro e o outro, um
contraparente adotivo. A expectativa esperançosa da criança é
a de que um dia, por acaso ou por desígnio, o pai
verdadeiramente aparecerá e ela será elevada, por direito, a
sua condição sublime, e viverá feliz para sempre.”107

O Junípero é um conto que nos apresenta essa cena familiar, onde um dos pais
desaparece para que um outro tome o seu lugar. Então, o menino injustiçado sofre as rejeições
pelas quais supõe-se passar todos os enteados. Entretanto, o leitor aguarda e espera que ele
seja vingado e ressurja para uma vida feliz junto ao seu pai verdadeiro e, possivelmente, sua
mãe-boa.

Qualquer leitor que se depare com o drama desse menino se sente “como se fosse
ele”, o que se dá pelo processo de identificação, mas também pelos mecanismos de introjeção
e projeção. Sentimos o desejo de vingar a triste sorte dessa criança não exatamente porque
somos generosos, mas porque essa história também faz parte dos nossos próprios dramas
internos, vividos num período onde tínhamos muitas dúvidas com relação às nossas origens,
como também uma enorme necessidade de nos livrarmos da culpa de um dia termos tido ódio
do nosso objeto de amor, fantasiando uma cena de rejeição.

107
BETTELHEIM, Bruno. Op. cit., pp. 85,86.
167

Dessa maneira, o menino nos livra de uma certa culpa na medida em que ele
próprio que é bom, prepara o castigo da madrasta que como veremos posteriormente, não é
um final muito comum nos contos de fadas, mesmo para aqueles que representam o mal. No
entanto, a situação inicial dos contos de fadas onde aparece uma mãe-boa que morre para dar
lugar a uma mãe-má é necessária na medida em que coloca diante da criança uma cena vivida
por ela própria, no silêncio daquilo que parece inominável e irrepresentável, que remete
sempre ao conflito interior vivido, muitas vezes, de forma terrificante.

Então, temos nesse conto o retrato da cena familiar, no qual a criança fantasia o
abandono, sente-se insegura quanto à sua origem, é preterida por causa de um irmão mais
novo e sofre a impotência de não conseguir lutar adequadamente contra o seu opositor e o
pior, não consegue sequer reconhecer suas qualidades positivas para se sentir amada.

Esse drama familiar não é difícil de ser encontrado, pois ao contrário do que
muitos pensam, a criança pequena sente uma enorme necessidade de ser aceita e aprovada,
portanto imagina que se pensa em fazer algo “reprovável”, poderá ser severamente castigada
pelos pais. Provavelmente, por isso:

“(...) a divisão típica dos contos de fadas entre a mãe boa


(normalmente morta) e uma madrasta malvada é útil para a
criança. Não é apenas a forma de preservar a mãe interna
totalmente, mas permite à criança ter raiva da “madrasta”
malvada sem comprometer a boa vontade da mãe verdadeira,
que é encarada como uma pessoa diferente. Assim, o conto de
fadas sugere a forma da criança lidar com sentimentos
contraditórios que de outro modo a esmagariam neste estágio
onde a habilidade de integrar emoções contraditórias apenas
está começando. A fantasia da madrasta malvada não só
conserva intacta a mãe boa, como também impede a pessoa de
se sentir culpada a respeito dos pensamentos e desejos raivosos
quanto a ela – uma culpa que interferiria seriamente na boa
relação com a mãe. Ao mesmo tempo em que a fantasia da
madrasta malvada preserva a imagem da mãe boa, o conto
168

também ajuda a criança a não ser assolada pela vivência de


uma mãe má.(...).”108

Os contos de fadas não falam somente do amor e da paz, mas sobretudo, daquilo
que ameaça nossa capacidade de ser. Por isso, tudo nessa realidade é permitido. As dores são
descritas com a veracidade da ferida que lhe provoca, o amor é experimentado no êxtase do
final feliz, onde tudo é redenção e o bem supremacia.

Então, vemos nessa narrativa uma madrasta que personifica mais do que oposição
e antagonismo, pois encarna com vigor toda a pulsão destruidora que ameaça o Outro de
aniquilamento. O mal começa por sofrer os danos provocados pela pulsão do bem, quando o
pai se sente tranqüilo e a madrasta sofre o mal estar, chega mesmo a gritar para que o homem
não saia de casa. A casa, que tem o significado de abrigo e refúgio, começa a tremer e
desabar. O triste final dessa mulher horrenda está por se concretizar.

Logo após ouvir o canto do pássaro, o homem recebe dele um presente: a


correntinha de ouro que carregava na pata direita. A mesma cai exatamente no seu pescoço.
Assim, temos o elo entre filho e pai restabelecido pelo significante “corrente de ouro”, o sol
novamente presente, trazendo vigor, riqueza e poder. O pai fica tão contente que entra em
casa exibindo o presente e feliz por ter encontrado uma ave tão amável. Enquanto isso, sua
mulher fica tão apavorada que não consegue se sustentar, então cai no chão, fazendo sua toca
também cair, tal como a cabeça do menino que rolou entre as maças.

O pássaro começa a cantar de novo, reproduzindo a mesma cantilena e a menina


se entusiasma e decide ir para fora da casa, na esperança de ganhar um presente daquele que
havia sido tão generoso com seu pai. Quando Marlinchen sai da casa, o pássaro repete a
canção na passagem em que diz que a irmã piedosa os guardou. Então, a menina alegre e com
o coração leve calçou os sapatinhos vermelhos e saiu dançando e pulando até dentro de casa,
maravilhada com a ave que restituíra-lhe a alegria.

Do ponto de vista da nossa análise com relação às conjecturas anteriores que


dizem respeito aos sapatinhos vermelhos, podemos confirmar a hipótese de que a menina
possui uma significação do duplo, ou seja, daquele que complementa. Talvez possa ser

108
Idem, ibidem, p. 86.
169

considerada como a ânima e assim a parte que integra, por isso seu presente tem a conotação
de que logo, o menino tomará posse do seu território. Por outro lado, se queremos olhar para
os sapatinhos como símbolo fálico, ainda estaremos realizando uma análise pertinente, pois o
menino volta para assumir seu lugar e poder enfim, buscar sua identidade sexual sem sentir-se
ameaçado de aniquilamento, já que tendo introjetado à lei, poderá ter acesso ao simbólico.

Dessa forma, o fato de Marlinchen ter recebido os sapatinhos nos coloca na


dimensão metafórica do símbolo que é a de remeter sempre a outro significado, constituindo-
se assim num significante. Portanto, os sapatinhos são significantes da ligação entre a irmã e o
irmão, daquele que tem a mãe má e do outro que tem a mãe boa, de um território que precisa
ser reapropriado e também daquilo que pode ser domínio do id, lugar dos desejos mais
destruidores, embora nesse momento com a maturidade necessária para viver as coisas boas
que ele pode oferecer. Portanto, temos um certo equilíbrio entre os impulsos de ordem mais
selvagem e os de pulsões mais estruturadoras.

Essa irmã que sofre a melancolia pelas dores que pensa ter causado no irmão
morto, só pode voltar ao apaziguamento quando recebeu do seu “Outro”, os recursos
necessários para se salvar. Então, ressurgida do caos para onde tinha sido jogada pode agora,
unir-se ao irmão renascido, visto ter sido ela própria o elemento de ligação entre a mãe morta
e o irmão. Por isso, a ave canora repete o quanto à irmãzinha é piedosa, pois ela é o
instrumento de morte e, também, de ressurreição.

A melancolia vivida por Marlinchen pode ser facilmente reconhecida em algumas


crianças que não conseguem explicar aos outros o motivo de suas angústias, sequer são
capazes de verbalizar que sofre por algum motivo que elas próprias desconhecem.

Sabemos que perder faz parte da nossa condição existencial e que crescer implica
em ter que perder algumas “regalias” que se tem quando se é pequeno, mas também quando
crescemos ganhamos coisas importantes. No caso de Marlinchen, ela perde o seu irmão
amado e além disso, pensa ter sido ela própria o instrumento para o aniquilamento do menino.
Então, mergulha na melancolia e vive a profunda dor da ruptura, tal como nos afirma Nasio:

“A melancolia (...) é uma inibição psíquica acompanhada de


um empobrecimento pulsional; daí a dor. (…) Perder o amor
do amado é também perder o que era o centro organizador do
170

meu psiquismo. (...) Freud afirma que o bebê sente angústia e


dor. Em certas circunstâncias, o lactente vive esses dois afetos
confundidos, porque ainda não sabe distinguir a ausência
temporária da mãe do seu desaparecimento definitivo.
Confunde o fato de perder a mãe de vista e perdê-la realmente.
Nesse momento, experimenta um sentimento que é mistura de
angústia e dor. Só mais tarde, por volta dos dois anos, quando
souber discernir uma perda provisória de uma definitiva,
poderá diferenciar a angústia da dor (...) O perigo desperta a
angústia, o trauma suscita a dor.”109

Sem dúvida, a situação vivida pela menina é traumática e nos remete à dor da
primeira perda, aquela que nos coloca na dimensão da falta. A partir da ruptura entre criança
e mãe, todas as dores instaladas no eu serão recorrentes.

Assim, Marlinchen ao ganhar os sapatinhos reconstitui-se da falta do irmão,


saindo do estado de angústia e dor para se tornar confiante. O texto diz claramente que a
menina entra em casa dançando e pulando, portanto, provavelmente, está alegre e feliz, o que
para nós significa compensada.

A primeira fase da tristeza da menina acontece quando ela pensa ter matado o
irmão. A partir daí, chora incansavelmente e só pára quando recolhe os ossos do menino e os
deposita à beira do Junípero. Entretanto, sua tristeza inicial transforma-se em melancolia, ou
seja, durante um determinado período deixa de investir em si mesma, o que no conto é
representado pela sua “ausência” temporária.

Ausenta-se da cena para que a ave canora ocupe o centro da narrativa. Na medida
em que o pássaro reinveste sua energia pulsional numa relação de repetição e troca, onde
canta e ganha elogios, repete o canto e ganha presentes, a menina vive sua angústia e dor, até
que recebe os sapatinhos vermelhos e sente-se pronta para viver com alegria e vigor,
reinvestida de amor.

109
NASIO, Juan-David. Op. cit., pp. 183,184, 188,189.
171

No final da história vamos ter uma virada que podemos chamar de ápice da
narrativa e que acontece no momento em que a madrasta, mesmo sentindo-se muito mal e
ameaçada, também, deseja “receber” presentes do pássaro, tal qual o homem e a menina.

Percebe-se que a mãe má não se rende facilmente, chega mesmo a desafiar o


destino, pois ela personifica os aspectos poucos saudáveis do eu, difíceis de serem superados
e contra os quais todas as crianças precisam lutar para se sentirem seguras e felizes. Segundo
Cashdan:

“Os contos de fada são os psicodramas da infância. Por trás


dessas divertidas incursões pelo reino da fantasia existem
dramas reais, que espelham lutas reais.”110

Os dramas experimentados na infância, embora sejam dolorosos, são também


necessários. Eles azem parte do “romance familiar”, são pequenas narrativas dos conflitos
internos vividos pelas crianças e que na medida em que se tornam uma possibilidade de
simbolização vão aos poucos se retirando para darem lugar a outras cenas.

É fundamental que a criança entre em contato com seu drama existencial para que
possa se dar conta da sua própria condição enquanto ser em construção e em busca de
preenchimento.

Se defrontar com a mãe má proporciona a criança um certo alívio no que diz


respeito aos seus sentimentos de raiva e ódio dirigidos à mãe que totaliza o bem e o mal. Dai,
que algumas crianças diante do final trágico da história se sente pouco à vontade de se
rejubilar com a morte da madrasta, mesmo compreendendo afetivamente que aquela que
recebe o castigo é representante do mal.

De qualquer forma, é difícil para uma criança ver sua “mãe” severamente punida e
por isso, os contos de fadas apresentam-na como madrasta e ao colocar dessa maneira, oferece
à criança a garantia de triunfo e transformação. Algo como: aniquilar a madrasta e destruir as
pulsões negativas do eu para restaurar as positivas, dando à criança a esperança de que tudo
terminará bem e ela terá condições de explorar seu potencial de vida e amor.

110
CASHDAN, Sheldon. Op. cit., p. 33.
172

Cada vez que o antagonista morre, em geral a madrasta, a bruxa ou o ogro, então a
criança sente-se revigorada e com uma maior capacidade de sentir-se gratificada, não pelo
mal que sucede ao opositor, mas pelo bem que isso lhe traz.

Agora caminhamos para o desfecho do conto O Junípero, apontando essa


seqüência como o terceiro tempo da dor, portanto da reação do menino para que se possa
celebrar com o tradicional “final feliz”.

Então, logo após a menina entrar em casa toda satisfeita, a mulher desconsolada
decide fazer a sua última investida dizendo:

“ – Muito bem! – Exclamou a mulher, decidida, de repente, e


levantando-se do chão, com os cabelos arrepiados como se
fossem chamas. – Tenho a impressão de que o mundo vai
acabar. Vou lá para fora, a fim de ver se me sinto melhor. E,
mal atravessara a porta, pum! A ave soltou a pedra de moinho
bem em cima de sua cabeça, esmagando- a . Marlinchen e seu
pai ouviram o barulho e saíram para ver o que acontecera. E
viram fogo, chamas, fumaça saindo de junto do Junípero, e
quando o fogo se apagou e a fumaça se dispersou, quem
apareceu foi o menino que a madrasta matara. E que apertou a
mão do pai com uma das mãos e a mão da irmã com a outra, e
os três, alegres e felizes, entraram em casa e sentaram-se à
mesa e jantaram, com muito apetite.”111

Enfim, chegamos ao desfecho do conto com um destino bastante trágico para a


madrasta e como nos apoiamos nos três tempos da dor enunciados por Nasio, alcançamos ao
tempo da reação e em conseqüência à etapa da celebração.

É difícil compreender como um final demasiadamente trágico pode ser


comemorado com todos reunidos à mesa do jantar, num sinal de verdadeira comemoração por
parte daqueles que sofreram com as maldades da mãe má.

111
O Junípero. In: Anexo 3, p. 280.
173

Sua tragédia, já pressentida quando a ave cantou pela primeira vez sobre a árvore
do Junípero, é marcada por fogo e chamas, ou seja, o mal foi devidamente transformado, pois
o fogo possui o poder de destruir o mal para que o resto possa ser transmutado no bem. Essa
tradição de queimar pessoas nas fogueiras por se acreditar que elas são diabólicas e impuras
remonta a antigüidade, embora isso tenha sido praticado de maneira abusiva pela Igreja
Católica durante a Idade Média. É assim que se acabam com as bruxas: queimando-as no
fogo.

Apesar da mulher ter seus cabelos arrepiados como se fossem chamas, não é no
fogo que ela tem o seu final, mas esmagada pela pedra que o pássaro trazia no pescoço,
elemento de ligação entre ele e o pai, como já foi sublinhado anteriormente. Agora, que a mãe
má teve o castigo merecido, então é possível para o menino voltar para casa e numa
identificação com o pai buscar seu crescimento e reassegurar-se da sua capacidade de reação
contra os aspectos negativos que podem colocar em risco a sua integridade psíquica.

Abriremos um parênteses para comentar uma referência de Sheldon Cashdan


quando fala sobre a importância de alguns aspectos históricos que até certo ponto nortearam a
dramaticidade dos finais dessas narrativas, tal como:

“Gerhard Mueller, um destacado professor de criminalística e


estudante da tradição legal, aponta que muitas das punições
descritas pelos irmãos Grimm refletem sentenças reais,
executadas durante a Idade Média. Antes que as doutrinas
legais fossem codificadas em decretos imperiais e códigos
municipais, as condutas erradas e as punições recebidas eram
transmitidas através de parábolas, do folclore e de outras
fontes de sabedoria popular. Assim sendo, os contos de fada
funcionavam como uma forma oficiosa de jurisprudência legal.
Embora não haja uma correlação exata entre a justiça dos
contos de fada e as penalidades reais invocadas para crimes
específicos, as duas têm muito em comum. Contratação de
assassinato e tentativa real de assassinato – crimes cometidos
pela madrasta em Branca de Neve – eram ofensas punidas
historicamente com a morte na fogueira, simbolicamente
174

retratada, em Branca de Neve, na cena em que a bruxa é


forçada a dançar até a morte com sapatos em brasa. A morte
por afogamento – o destino da sogra em A Bela Adormecida no
Bosque de Perrault – também era normalmente usada para
punir tentativas de assassinato e outros crimes abomináveis. E
o apedrejamento até a morte – punição registrada na
Alemanha, durante a Idade Média – tem seu correspondente
em A Árvore do Junípero, onde a madrasta morre esmagada
por uma pedra, por incitar assassinato e praticar
canibalismo.”112

Temos, portanto, uma referência histórica que trata das punições dirigidas aos que
praticavam ações socialmente condenáveis, como no caso da madrasta em O Junípero.
Talvez, alguns leitores achem que seu castigo foi muito severo, mas lembramos que para uma
personagem tão cruel, a criança precisa ser garantida de um final no qual a ameaça seja
completamente extirpada.

Entendemos, que o fato de a madrasta desse conto terminar de forma tão trágica
pode ser compreendida afetivamente pela criança de forma positiva, ou seja, se o mau é
destruído ela está protegida. Além disso, o nosso protagonista consegue reagir e combater a
mãe má e o faz com todas as garantias, numa confirmação de que o sofrimento o fez crescer.

A ressurreição do nosso herói é apoteótica, aparece junto ao Junípero entre fogo e


fumaça como a fênix que renasce das próprias cinzas. Agora, o menino que passou pela
“morte”, ruptura, pode voltar de maneira diferente, já que tendo passado pela transformação
necessária garante um outro nível de existência.

Sabemos que as experiências dolorosas têm um significado construtivo na


formação de crianças, pois a dor provoca algo como uma liberação de energia que tanto
provoca o além-do-prazer como o prazer. Tal como nos afirma Nasio:

“(...) a dor é uma das figuras mais exemplares do gozo não no


sentido de prazer sexual, mas entendido como a tensão máxima
suportada pelo psiquismo. Assim, a dor é o último grau de um

112
CASHDAN, Sheldon. Op. cit., pp. 170, 171.
175

gozo no limite do tolerável. (...) quando há dor estamos além do


princípio do prazer.”113

O Junípero é um conto que fala da dor em seus vários aspectos, desde aqueles que
ferem a alma e reavivam nossas primeiras faltas até os que mutilam o corpo transformando-o
numa imagem totalmente esburacada, como é o caso do menino que tem seu corpo cortado
em pedacinhos e comido pelo pai.

Os contos de fadas são histórias com uma infinita capacidade de mostrar para a
criança o pior da dor, mas ao mesmo tempo também diz que é possível sentir muitas dores, de
várias formas e sentidos, mas se formos fortes suficiente sairemos delas mais fortes e
humanos.

Entretanto, temos que trabalhar para superar as dores, aqueles que não se
aventuram nessa jornada não conquistam o crescimento necessário para obter a vitória,
portanto a satisfação pessoal. A criança ao ler um conto como O Junípero compreende a sua
função na família e no mundo, ainda que esse entendimento escape à razão, ele consegue
atingir a emoção.

Além da dor do herói e da sua mãe boa, esse é um conto que aponta para a dor das
outras personagens também, como é o caso da irmã e da madrasta. A primeira, por sentir
culpa e a segunda por viver tão intensamente suas pulsões destrutivas. Assim, a dor aparece
como sendo o eixo da narrativa, embora no final ela seja aliviada e dê lugar para as
personagens que representam o bem, isso é necessário para que a criança sinta-se garantida de
que o bem deve vencer, se recupere das perda e rumem em busca do amor.

É por isso que o herói sai vitorioso e as personagens do mal saem castigadas,
recebendo o que merecem. Assim, a criança sente-se recompensada e estimulada a confiar no
seu sentido de justiça.

A dor é necessária para que a criança experimente sua capacidade de lutar e


conquistar, dai que é importante sentir-se encorajada para buscar a melhor saída, o consolo
necessário e possibilitador do final feliz.

113
NASIO, Juan-David. Op. cit., pp. 110, 116.
176

A felicidade é o bem maior a ser conquistado, mas é também o mais difícil de ser
alcançado, pois acreditamos, quase sempre, que ser feliz é algo que implica no gozo absoluto,
num estado de nirvana permanente e, no entanto a vida nos ensina constantemente que a
felicidade só é conquistada quando compreendemos que ela se faz de pequenos ganhos.

Todas as vezes que superamos uma dor, por menor que seja, isso funciona como
uma descarga de tensão que provoca o alívio. Então, temos a sensação de que podemos ser
“felizes para sempre”, como o menino, o pai e a irmã.

O herói desse conto sofreu as piores dores: perdeu a mãe boa, foi rejeitado e
experimentou o pior de uma mãe má. Em contrapartida, superou seus impulsos dolorosos
passando pelas provas e conquistou a maturidade para sentar-se à mesa e comemorar sua
vitória. Assim, lembramos que nos contos de fadas como na vida real :

“(…) antes que a vida « feliz » possa começar, temos que


colocar os aspectos maus e destrutivos de nossa personalidade
sob nosso controle. (…) a eliminação de toda turbulência
interna e externa pode contribuir para um mundo feliz.”114

Em O Junípero aprendemos que a dor tem um significado maior do que uma


insatisfação afetiva ou marca no corpo real, pois ela é precisamente aquilo que nos remete
para o estado inicial onde vivíamos uma experiência totalizadora, um paraíso que fica além do
princípio do prazer, mas de onde temos que sair para poder nos construir como sujeitos da
linguagem.
A aprendizagem sobre o bem e o mal faz parte dessa construção e a dor é quase
sempre a ponte entre um estágio de selvageria e um estágio de sabedoria, portanto o
conhecimento que se pode alcançar do si e do Outro faz parte do trajeto doloroso e como
afirma Nasio:

“Quer seja chamada de “traumática”, porque resulta de uma


agressão, ou de “inconsciente” pela sua aptidão a renascer, ou
ainda de “primordial” pois é a mãe de todos os sofrimentos,
falamos sempre da mesma dor. (...) a dor inconsciente é uma

114
BETTELHEIM, Bruno. Op. cit., p. 253.
177

aptidão, a aptidão do eu a rememorar, de forma diferente de


uma lembrança consciente, um antigo traumatismo doloroso: a
dor inconsciente é o nome que damos à memória inconsciente
da dor. (...) A dor é um afeto desagradável, mas não é
desprazer.”115

A dor impressa nos contos de fadas também nos fala de um lugar no registro do
inconsciente, nesse espaço intervalar onde surgimos e temos voz, mas onde precisamente não
nos sabemos por inteiro. A dor diz da falta e a falta faz parte do sempre, da procura sem fim
que cada um busca realizar para se apaziguar com o bem e com o mal existente em cada
pessoa, em cada gesto e em cada olhar.

Depois de tanto sofrimento, o nosso herói merece retornar com maior equilíbrio
interno, capaz de doação e amor, ofertando presentes e entrelaçando as mãos com aqueles que
o aguardavam para viver o melhor da dor e do amor.

O triângulo se fecha e o “romance familiar” toma conta da última cena. A


celebração acontece em volta da mesa, lugar do prazer. Após a reação, terceiro tempo da dor,
o bem vence o mal, então é hora de comemorar. No conto de fadas como na vida desejamos
celebrar o final feliz e é preciso acreditar que no fim de tudo encontraremos a paz.

O Junípero é um conto que apresenta seus pontos de maior tensão em torno do


alimento: maçãs, chouriço e o banquete final. Parece que nossas perdas originam-se aí. Antes,
o paraíso total quando se era nutrido pelo corpo da mãe, no cordão – plenitude. Depois, o
corte. Então, surge o seio como recompensa. Mas, ele não é total e por isso divide-se em bom
e mau. O bom é fonte de alimento e amor. O mau é inscrição da falta. Destrói, aniquila e
reatualiza a dor da primeira separação. A partir da cisão, o mundo será de amor e ódio.

Não é à toa que o retorno do herói é marcado pela destruição da madrasta (seio
mau) e o final feliz acontece ao redor da mesa, do alimento e do apetite (seio bom). As mãos
que se acolhem fecham a cena e o bem é celebrado.

115
NASIO, Juan-David. Op. cit., pp. 84, 85, 98.
178

Se os contos de fadas nos mostram sempre o final feliz, eles também oferecem
uma aprendizagem importante ao fazerem do caminho para a conquista um percurso doloroso.
Está implícito que para crescermos e adqüirir maturidade espiritual é preciso lutar contra o
sofrimento e as pulsões internas destruidoras.

A literatura nos coloca na dimensão do bem e do mal. O espaço da representação


literária é de queda, sofrimento e muita dor. É também o lugar da emergência de um sujeito
novo, nascido de um estado de suspensão onde o possível se faz verdade, por mais irreal que
pareça.
O Junípero é uma narrativa que deixa para o leitor mais do que uma lição de que a
justiça e o bem prevalecem. Compreende-se a partir dessa leitura que somente transcendemos
para o amor quando conhecemos o caminho da dor.

Será precisamente desse trajeto dor-amor que trataremos no nosso último capítulo
ao abordar um dos mais belos e emocionantes contos de fadas da nossa Literatura Clássica
Infantil: “A Bela e a Fera”.

Escolhemos esse conto como fechamento para as nossas análises por acreditar que
ele traz na sua estrutura narrativa um significativo movimento de ritual de passagem,
veiculado pela travessia da dor para o amor.

Encontramos em A Bela e a Fera a essência da dor e o resgate dos sentimentos


positivos que restituem à ordem interna e equilibram a vida no sentido de um encontro com o
amor.

Embora seja muito comum acreditar que no amor temos o mundo e somos
completamente felizes, isso não corresponde à realidade, nem interna, nem externa, pois nos
parece que:

“Quanto mais se ama, mais se sofre.(...) O sofrimento nos


ameaça de três lados: no nosso próprio corpo, destinado à
decadência e à dissolução(...); do lado do mundo exterior, que
dispõe de forças invencíveis e inexoráveis para prosseguir-nos e
aniquilar-nos. A terceira ameaça que nos interessa aqui,
“provém das nossas relações com os seres humanos.(...) o
179

sofrimento oriundo dessa fonte é talvez mais duro para nós do


que qualquer outro.”116

Essa afirmação provoca perplexidade e demanda inúmeras reflexões, pois se a dor


faz sofrer, o amor faz mais ainda, visto que ele decorre do estado lacunar, onde precisamos do
Outro como referência vital da imagem que fazemos de nós mesmos, e até da imagem que
precisamos construir para nos reconhecermos como Outro.

É pertinente apresentar a dor-amor como sentimentos que se complementam e são


indissociáveis. Entretanto, é sempre no amor que sustentaremos nossos alicerces para uma
vida feliz. Não se pode falar do lugar do amor sem que se aponte para a falta primeira, que é
dor-furo, também caminho para que se viva além do prazer.

Para aliviar a dor, o ser humano encontra várias saídas e, sem dúvida, o amor é a
mais plena e construtiva forma de transcender a dor. Parece que ele é o melhor meio de
proteger-se contra a dor e o sofrimento, tal como é colocado pela psicanálise é:

“(...) contra o sofrimento que nasce a relação com o outro (...)


remédio aparentemente muito simples, o do amor ao próximo.
De fato, para preservar-se da infelicidade, alguns preconizam
uma concepção de vida que torna como o centro o amor, e na
qual se pensa que toda alegria vem de amar e ser amado (...)
uma atitude psíquica como essa é muito familiar a todos nós.
Certamente, nada mais natural do que amar para evitar o
conflito com o outro. Vamos amar, sejamos amados e
afastaremos o mal. Entretanto, é o contrário que ocorre.
(...).”117

A busca pelo amor parece ser a grande causa da humanidade. Tenta-se o amor das
mais variadas formas e numa sociedade como a nossa ele surge, por vezes, embalado na
fantasia de que se formos belos e famosos, então seremos amados e felizes para sempre.

116
Idem, ibidem, p. 26.
117
Idem, ibidem, p. 26.
180

Cada vez mais nos distanciamos daquilo que pode ser o mais original em nós
mesmos e andamos em busca do espetáculo efêmero e fugaz, mas plenamente capaz de
provocar o êxtase e a sensação de eternidade. E quanto mais fugimos da dor, mas ela se
apresenta assumindo diversos aspectos, convidando para um olhar mais profundo, sobretudo
sensível diante daquilo que pode ser a nossa verdadeira dor. Como transformar a dor em
sentimento positivo é a grande questão.

Na próxima análise tentaremos dar conta dessa relação entre dor-amor, seguindo
os pressupostos da psicanálise e sua aplicação aos textos literários. Pois, se na literatura
vivemos o mundo de acordo com a nossa visão de mundo, sabemos que também a partir da
força metafórica da narrativa sairemos diferentes, capazes de nos “reinventar” no espaço da
ficção, apoiados pela verdade dos sentimentos surgidos da nossa relação com o escrito e
inscrito nas personagens.

Veremos no próximo conto a ser analisado personagens que vivenciam a dor e o


amor e como daí pode surgir o respeito às diferenças e o equilíbrio das nossas pulsões vitais.
“A Bela e a Fera” faz sentir que os contos de fadas vivem em nós como força simbólica e
transcendente, lindamente capaz de nos fazer viver no outro aquilo que é nosso e particular,
que faz parte da nossa história de vida. Passemos para o último capítulo dessa nossa leitura-
escritura da “dor-amor” nos contos de fadas, na intenção de dar ênfase ao que existe de mais
provocativo e surpreendente no mundo do faz de conta e que consiste na transformação da dor
em amor.
CAPÍTULO 5

“A Bela e a Fera”: Uma Travessia Poética da

Dor-Amor
181

CAPÍTULO V - A BELA E A FERA: UMA TRAVESSIA POÉTICA DA


DOR-AMOR

“O amor é uma espera


e a dor
a ruptura súbita e imprevisível
dessa espera.”118

5. 1 - MITO E CONTOS DE FADAS – ITINERÁRIOS DO SIMBÓLICO COM


RESOLUÇÕES DIFERENTES

Após ter passado por alguns contos de fadas que focalizam a temática do
abandono e da dor de crescer, finalizamos nossas análises apresentando uma narrativa que
fala da conquista da maturidade por meio do casamento, ou seja, da conjunção amorosa.

Escolhemos o conto A Bela e a Fera pela fortuna crítica e teórica que possui, mas
também por se tratar de uma história de tamanha riqueza simbólica e beleza poética que tem
conseguido encantar crianças e adultos de todos os tempos.

Indiscutivelmente, é um dos textos mais conhecidos em todo o mundo.


Impressiona leitores de todas as épocas e lugares, sobretudo porque apresenta como solução
para o conflito existencial: o encontro do amor. Sua análise é um desafio, pois exige um grau
de complexidade de respostas e intervenções equivalente ao grau de complexidade que ele
suscita.
Talvez, seja essa complexidade o motivo de tanta investigação e releitura desse
texto que parece ser fonte inesgotável de um “querer” compreender, mais e melhor, os
mistérios da alma humana. O resultado disso é uma imensa produção crítica e artística que
coloca A Bela e a Fera entre uma das obras mais conhecidas no mundo.

Buscamos um conto que transita pela dor-amor utilizando-se dos aspectos mais
diversos que caracterizam este tipo de narrativa, tais como: a viagem do pai, a ausência da
mãe, as irmãs malvadas, as virtudes dos heróis, provas a serem superadas, perdas e abandono,

118
NASIO, Juan-David. Op. cit., p. 5.
182

o casamento como ritual de passagem e o mágico “felizes para sempre”. Portanto, uma
história de travessia e celebração.

Geralmente, o “final feliz” é desencadeado pela superação das provas impostas ao


herói e a chegada do castigo para o inimigo. Tal final consiste em atender às expectativas do
leitor, pois se pode ser assegurado de que o bem (representante dos aspectos positivos e
construtivos) vence o mal (representante dos aspectos negativos e destrutivos).

O leitor projeta-se tanto no herói (representante do bem) como no seu antagonista


(representante do mal), mas é a vitória do primeiro que “garante” o sentimento de alívio e
satisfação, afinal essa é a promessa de um futuro de compensações positivas. Pois,

“O herói do conto de fadas é aquele que se aventura e padece.


Embora seja certo que, na vida, temos de aprender a escolher
“entre sofrimentos estéreis e dores fecundas”, o ser humano
procura evitar essas dores fecundas ao fracassar no seu intento,
fica restrito às dores estéreis que não permitem
amadurecer.”119

Assim, o herói assegura ao leitor, por meio da fruição vivida no final feliz, que a
luta por mais difícil que seja vale a pena e nos recompensa, mas é preciso saber enfrentá-la
mesmo que as primeiras tentativas sejam de fracasso. Quando o herói sabe lutar, então ele
pode ser recompensado por uma das maiores conquistas que é a maturidade do amor
simbolizada pela conjunção amorosa.

A temática de A Bela e a Fera circula em torno da busca por essa maturidade


espiritual consagrada pelo encontro do amor e o poder de transformação que este provoca.
Disso tratará muitas narrativas que, como este conto, supostamente surgiram do mito Cupido
e Psique (Eros) e pertencem ao ciclo do noivo-animal.

Antes de entrar na análise psicocrítica dos símbolos que compõem esta história,
faz-se necessária uma breve visita ao mito, pois existe uma forte suposição de que Eros, deus
do amor, foi a primeira Fera do Ocidente, além de ser o precursor das narrativas que falam de
metamorfoses.

119
PAZ, Noemi. Op. cit., p.87.
183

Dessa forma, para sustentar melhor nossas conjecturas sobre A Bela e a Fera
decidimos traçar um paralelo entre conto e mito. Assim, logo adiante, sugerimos alguns
aspectos de convergências e divergências entre eles, que mesmo sendo muito semelhantes,
apresentam características diferentes com relação à mensagem veiculada, a finalidade e o
efeito que produz no leitor.

Alguns pesquisadores afirmam que os contos de fadas e o mito (do grego


mhytus, que significa palavra, narrativa) têm a mesma origem, embora existam posições
discordantes a esse respeito. De qualquer forma, levamos em consideração que essas
narrativas surgiram nos primórdios da humanidade. Com a força do sagrado os primeiros
relatos realizam sua transição do mito para as lendas e das lendas, possivelmente, para os
contos de fadas.

Estes surgem seguindo a trilha deixada pelos mitos, assim muito da estrutura
narrativa destes serviu como eixo para as narrativas conhecidas no âmbito do maravilhoso.
Inferimos que sendo o mito um produto da necessidade humana de fabular e narrar traz em si
um poder religante inerente à sua virtualidade sempre presente.

Temos que considerar que o mito funciona por meio de estruturas arquetípicas,
que são constantes e capazes de ligar o individual ao universal. Sucede que essa estrutura é
repassada e mantida na maioria dos contos de fadas. Essa é uma questão que vem ocupando
muitos estudiosos do folclore, da etnografia e da antropologia. Mesmo não sendo uma
situação resolvida, existem fortes indícios que o conto de fadas possui suas raízes no mito e
ambos estão na base de origem da linguagem. Autores como C. W. Von Sydow, V. Propp e
Wilhelm Grimm, consideram que:

“(...) os contos de fadas são mitos desintegrados e que só podem


ser interpretados se tem-se em conta essa origem. Mito e conto
de fadas são homólogos em termos de estrutura e significado,
referindo-se ambos – no plano axial – ao rito de iniciação.”120

Embora, concordemos com a afirmação de que os contos de fadas possuem o


caráter iniciático, para nós sua dimensão e sua capacidade simbólica extrapolam o ritual de

120
Idem, ibidem, p. 87.
184

passagem e iniciação porque aponta para conteúdos subjacentes à complexidade humana, que
possivelmente escapam ao mito.

Como o mito, o conto de fadas possui o poder de conduzir o leitor ao mundo


secreto, tanto da consciência individual quanto da coletiva, porque o que se pretende nesses
relatos é obter uma dimensão maior de espiritualidade humana, conseguida de maneira total,
somente, por meio da experiência simbólica.

Para demonstrar tal afirmação, podemos tomar como referência o mito de Cupido
e Psique e o conto de fadas A Bela e a Fera. Tanto em um como no outro, somos seduzidos
pela diferença, pelo estranho e monstruoso que é transformado a partir de um encontro
amoroso.

Essas narrativas apresentam heróis diferentes. Aparentemente iguais já que estão


na condição animalesca, pois foram transformados em criaturas monstruosas, embora
exerçam grandioso poder de sedução. Com relação a isso, a pesquisadora portuguesa, Maria
da Conceição Costa, afirma:

“O animal em Marie-Loise Von Franz, é um equivalente do


instinto. Por seu turno Bruno Bettelheim, na Psicanálise dos
Contos de Fadas, relaciona por diversas vezes o monstro e o
animal, com o domínio da sexualidade. (...) Na perspectiva da
gestação de uma nova criatura que vai nascer dentro do sujeito
que vive estas provas, a “fertilidade” acontecerá. Mas, a
construção de uma nova identidade pressupõe “dor” e daí a
morte simbólica a que se assiste nestas provas iniciáticas. Tem
de acontecer uma mudança e a metamorfose é a sua
expressão.”121

121
COSTA, Maria da Conceição. No Reino das Fadas. Lisboa: Fim de Século Edições, 1997, p.177.
185

A transformação é um dos principais elos entre Eros e a Fera, ambos precisam


renascer para uma nova existência e servir como espelho para seus pares amorosos. É
necessário despertar o verdadeiro amor do outro e amá-lo em todas as suas estranhezas e
fragilidades para que se atinja o verdadeiro significado do amor.

A metamorfose é uma das características mais dominantes no ciclo das narrativas


do noivo-animal. Dela, o personagem renasce para inaugurar uma existência mais plena. Mas,
a ascensão não é tarefa simples para o espírito, pois crescer significa ter que realizar cortes e
confrontar-se com situações dolorosas.

Cupido ao desobedecer à Vênus é terrivelmente castigado, porém sua


metamorfose e transformação não são suficientes para ensinar à Psique o significado da
confiança no outro amado. Ela sofre muitas provas, mas dominada pela curiosidade, não
atende ao pedido do amor e, somente, é salva porque ele intercede a seu favor.

Psique não consegue dominar os impulsos instintivos, levada pela curiosidade,


sendo então impossibilitada de alcançar uma nova dimensão de humanidade, com a ajuda de
Cupido é aceita no mundo dos deuses, casa-se com ele e tem uma filha chamada Prazer
(Volúpia). O sentido do mito é cumprido, mas não existe o “felizes para sempre”.

Com Bela acontece diferente, mesmo cedendo à curiosidade, alcança a maturidade


por seus próprios méritos e consegue ultrapassar todas as provas até, finalmente, reencontrar-
se com o amor numa outra dimensão humana. Ao contrário de Eros, a Fera não interfere.
Somente, se casa quando os sentimentos de Bela são confirmados por meio da confiança e
aceitação. Além disso, somos comunicados do final feliz.

O mito produz o efeito de uma experiência interna que se aproxima do sagrado,


possibilita caminhos para uma compreensão da realidade de maneira analógica e intuitiva,
quase sempre serve de interdição e ensinamento moral, como um valor que deve ser repassado
para a sociedade e serve como um regulador para o funcionamento grupal.

O conto de fadas não tem como objetivo explicar o inapreensível, nem tampouco
dar uma lição de moral. Sua dimensão é diferente da do mito e ambos tratam de questões
universais. Atraem pelo clima de mistério e suspense, além de tratarem da diferença sexual,
curiosidade feminina, inveja, esperança, transgressão, desobediência, metamorfose, desejo,
morte e nascimento, entre outros aspectos.
186

Embora não seja nossa intenção o aprofundamento no estudo do mito, não


devemos deixar de tocar em algumas características dessas narrativas que funcionam como
ponto de encontro entre ambas. Sendo uma das principais o rito de iniciação.

Tanto no mito quanto no conto temos como fio condutor da estrutura narrativa o
processo iniciatório, no qual o herói depois de passar por inúmeras provas mostra-se capaz de
ascender a uma vida mais plena por meio de um desprazer original superado. Assim, o que
era empecilho,

“(...) vira o grande prazer de uma ansiedade mal encarada e


dominada de modo bem sucedido.”122

Superar o desprazer provocado pelas ansiedades originais surgidas a partir das


primeiras perdas não é tarefa fácil , pois demanda por parte do herói disponibilidade para o
desafio e enfrentamento dos seus próprios infernos. A metamorfose é um dos símbolos mais
representativos do surgimento do herói para uma nova vida, portanto de uma prova superada.

Cupido e a Fera são metáforas perfeitas para mostrar esse desejo de superação,
pois ambos precisam de uma nova existência para servir de espelho para seus pares amorosos.
É preciso amar o outro naquilo que é estranheza e fragilidade para que se obtenha o
verdadeiro significado de amar e ser amado.

Com Bela acontece diferente, mesmo cedendo à curiosidade, alcança a maturidade


por seus próprios méritos e consegue ultrapassar todas as provas até, finalmente, reencontrar-
se com o amor numa outra dimensão humana. Ao contrário de Cupido, a Fera não interfere.
Somente, se casa quando os sentimentos de Bela são confirmados por meio da confiança e
aceitação. Além disso, somos comunicados do final feliz, o que não acontece com a narrativa
mítica.

O mito de Édipo é exemplar para essa afirmação, pois por meio dele é
estabelecido o tabu do incesto para a cultura ocidental. O herói é terrivelmente castigado por
apaixonar-se por Electra, sua mãe. Dessa forma, o mito instaura a proibição da conjunção
amorosa entre pais e filhos e garante a criação de novos grupos familiares.

122
BETTELHEIM, Bruno. Op. cit., p. 153.
187

O modelo serve também para explicar o interdito como algo necessário para que
as pulsões do instinto sejam controladas, pois segundo a psicanálise o limite é o corte
necessário e estruturante para a formação de uma personalidade saudável. Nesse aspecto, mito
e conto encontram-se dentro da mesma perspectiva.

“(...) é uma alegoria da passagem iniciática na qual o herói


representa a alma perdida no mundo a lutar contra os poderes
inferiores de sua própria natureza e contra os enigmas que a
vida lhe propõe, até encontrar, após aceitar e realizar as
provas, os meios para a sua própria redenção.”123

Entretanto, nos parece que enquanto o mito tem como objetivo exercer a função
de censura, portanto de advertência, o conto faz o contrário: liberta e garante que se formos
capazes de superar os conflitos, então poderemos ser “felizes para sempre”.

Possivelmente, essa é uma das maiores diferenças entre mito e conto. No


primeiro, temos uma visão pessimista e repressora da realidade, no segundo um apelo ao
otimismo e liberdade.

Nos reconduzimos a alguns aspectos referentes ao mito como forma de traçar um


paralelo com o conto que propomos a analisar, pois como já referimos, existe uma hipótese
bastante forte de que grande parte dos contos de fadas incluídos no ciclo do noivo-animal,
tenha se originado precisamente daí e que Cupido seja um mito fundante da diferença sexual.

Sabemos que as narrativas pertencentes ao referido ciclo tratam da transformação


pelo amor, o que implica na aceitação da diferença de forma integral, podendo se levar anos
para que se supere todas as provas necessárias e se obtenha a metamorfose final. Segundo
Bettelheim:

“A tradição ocidental das histórias do tipo noivo-animal


começa com “Cupido e Psique” de Apuleio no século II d.c. e
remete a fontes ainda mais antigas. Esta história faz parte de
um trabalho mais extenso, Metamorfoses, que, como sugere o

123
Idem, ibidem, p. 18.
188

título, trata das iniciações que produzem estas transformações.


Em “Cupido e Psique” Cupido é um deus, mas a história tem
traços importantes em comum com os contos do ciclo noivo-
animal.(...)este mito influenciou todas as histórias posteriores
do tipo noivo-animal no mundo ocidental. (...).”124

Temos em A Bela e a Fera vários pontos de convergência com a narrativa mítica


que tem como protagonistas um deus, Cupido , e uma mortal, Psique. Entretanto, quando
comparamos as duas observamos algumas diferenças que são de ordem estrutural, mas
também de conteúdo, sobretudo no que se refere à mensagem veiculada.

São muitos os contos que sofreram a influência dos mitos clássicos e tratam da
metamorfose e do apaixonamento entre seres diferentes como sendo um dos caminhos para
que os heróis se salvem e alcancem a vitória pretendida. Como exemplo, temos o
Panchatrantra, livro sagrado que narra muitas histórias dessa natureza.

A imagem de uma fera erotizada e investida de todo poder de sedução, vem sendo
reatualizada de geração em geração. Mesmo hoje, assistimos ao clássico filme do cineastra
Jean Cocteau, La Belle et la Bête, completamente encantados pela cena na qual a Bela
debruça-se sobre a face monstruosa do herói e completamente apaixonada entrega-se à dor do
amor. Assim, também acontece com o filme americano que retrata o amor de uma fera
terrível, King Kong, por uma bela jovem indefesa que comovida por seu sofrimento tenta
salvá-la da destruição, embora inutilmente. Pois, parece que não foram os aviões que mataram
a Fera, mas é a Bela que mata a Fera.

De qualquer forma, King Kong é o retrato da masculinidade, da doçura de uma


fera e da paixão entre criaturas diferentes. Constatamos que mesmo àquelas narrativas
contemporâneas, criadas para vídeo games, como o Super Mario brothers, recorrem ao eterno
mito da força masculina e do amor que faz com que o herói passe por diversas provas até
salvar a sua amada. Freqüentemente, novelas, folhetins e anúncios de publicidade retomam
personagens dos contos de fadas para passar a mensagem que desejam transmitir.

Segundo a pesquisadora Marina Warner, a luta e o desafio estão nas raízes


humanas do desejo pelo lúdico e essas narrativas tratam precisamente disso e mesmo que o

124
Idem, ibidem, pp. 331, 334.
189

contexto histórico-social altere o processo de recepção das mensagens, ainda assim, o pano
de fundo se desenvolverá a partir dos elementos de origem.

Apoiada na teoria dos arquétipos, a autora acredita que desde sempre a Fera foi
identificada com o masculino e com o erótico, além de seguir numa caminhada em direção do
outro que deve revelar-se com capacidade para amar e ser amado.

A devida relação com os outros é capaz de produzir integração social e, também,


assimilação necessária dos códigos que regem o funcionamento da comunidade. Ao realizar a
conjunção amorosa, os amantes se inserem na vida coletiva de maneira compensatória. Pois,

“(...) A designação “conjunção amorosa” indica uma relação


“concluída” mas, nem sempre, (...) se trata de uma harmonia
definitiva. Em vários textos a “harmonia” é provisória e provas
diversas esperam ainda os heróis.”125

Eleger alguém para amar não significa concluir uma etapa, mas iniciar uma
jornada na qual se tem de alimentar o desejo pelo outro permanentemente, portanto não é a
conjunção amorosa que garante o final feliz, mas sim a busca diária de que o outro possa ser
um significante do desejo. Enquanto o eleito amado corresponder às nossas expectativas
pulsionais haverá harmonia.

Escolhemos finalizar nossos comentários interpretando o conto A Bela e a Fera e


o mito Cupido e Psique por acreditar que eles representam com força e poesia, tanto a força
do mito quanto do conto. Juntos conseguem apresentar o mais sublime da imagem do amor,
embora não deixe de mostrar a dor como elemento motivador de busca pela harmonia e
integração.

A seguir, realizamos um resumo de Cupido e Psique, procurando valorizar,


sobretudo os elementos, por nós, considerados de maior relevância literária. Buscaremos
trabalhar no terreno da análise comparativa entre mito e conto de fadas para lembrar que,
embora existam pontos comuns, diferem no essencial das suas funções simbólicas.

125
Idem ,ibidem, p. 98.
190

Primeiramente, realizamos uma síntese, a história de Cupido e Psique conta que


um rei e uma rainha possuíam três lindas filhas, mas a caçula era a mais deslumbrante de
todas. Era tão bela que nenhuma palavra seria capaz de expressar. Era o centro das atrações de
todos os homens, o que não podia ser admitido por Vênus, deusa da beleza e do amor.

De maneira alguma, Psique escapará da sua vingança e terá motivo suficiente para
arrepender-se da sua beleza.

Vênus, deusa da beleza e do amor sentiu-se negligenciada pelos homens que


prestavam todas as homenagens a uma mortal bela e virgem. Nada se comparava com a
formosura de Psique.

No céu havia uma porta de nuvem que permitia a travessia para o paraíso, mas
somente os imortais podiam passar por ela. Embora os deuses tivessem as moradas distintas,
quando convocados por Júpiter compareciam para as assembléias, banquetes e festas onde se
regalavam com ambrósias e néctar, além de decidirem o destino do céu e da terra.

Vênus fica tão preocupada por não ser mais o centro das atenções que já não
consegue tirar proveito de tanta felicidade. Revoltada, manda chamar seu filho Cupido, seu
companheiro constante para pedir-lhe que destrua Psique, atingindo-lhe o peito com uma de
suas flexas. O golpe deverá fazer com que a jovem se apaixone pela mais monstruosa das
criaturas.

Cupido obedece às ordens da mãe. Vai até o jardim de Vênus, onde existem duas
fontes: uma de água doce e outra de água amarga. Enche dois vasos de âmbar, cada um com
uma das águas e parte em busca de Psique que dormia profundamente quando encontrada por
ele.

Assim, o deus vai até junto dela e derrama sobre os eus lábios a água amarga,
enquanto toca-lhe com a ponta da seta. Ao toque, Psique é despertada e ele assustado fere-se
com a própria flecha. Quando a moça abre os olhos, Cupido (invisível) é tomado de tanta
ternura que só pensa em poder sanar o mal que fizera. Decide derramar sobre os belos cabelos
dela, as gotas balsâmicas da alegria.

Depois do acontecido, Psique continua sendo contemplada por beleza, entretanto


não consegue mais arrumar ninguém para se casar. Nem príncipe, nem plebeu. Suas duas
irmãs mais velhas, apesar de não serem tão belas, conseguem casar com príncipes herdeiros.
191

Assim, Psique mergulhada na solidão rejeita sua beleza, pois esta só provoca admiração, mas
nenhum amor.

Os pais preocupados decidem consultar o oráculo de Apolo e o mesmo revela que


Psique não estava destinada a casar-se com um mortal. Seu futuro marido a esperava no alto
de uma montanha e era um monstro, a quem nem os deuses nem os homens podiam resistir.

A profecia gerou desânimo em todos e os pais se entregaram ao desespero. A


moça com seu coração magoado, percebe que seu destino havia sido alvo da inveja de Vênus.
Sente-se vítima. Resignada pede para ser levada ao rochedo da sua desventurada sorte.

Depois de tudo preparado para a sua partida, a virgem real segue o cortejo como
se estivesse indo para a morte, em vez de núpcias. Sobe o alto da montanha e de lá, observa o
triste lamento de todo o povo.

Tremia e chorava de tanto medo, até que viu surgir um vento leve e gentil
chamado Zéfiro que a levou suavemente para um vale florido. Foi-se acalmando até que
adormeceu deitada na relva. Ao despertar viu-se diante de um lindo bosque, no qual adentrou
e encontrou uma fonte de águas cristalinas, além de avistar um palácio esplendoroso. A sua
arquitetura assemelhava-se a dos mortais, mas havia algo nele que era diferente.

Mesmo temendo, aventurou-se a entrar e ao fazê-lo era tal o seu encanto que não
conseguia parar de olhar para as cenas de beleza que se projetavam diante dela. Tudo era
ouro, arte e riqueza. Deleite para os olhos de qualquer espectador.

Enquanto deslumbrava-se com tanta imponência e bom gosto, ouviu uma voz
ecoar por todo o salão, dizendo que tudo que ali se encontrava era dela. Dizia ainda, que as
vozes que ouvia pertenciam aos seus servos que ali estavam para servi-la de tudo que
precisasse .

Assim, é aconselhada a entrar no aposento destinado a ela para dormir e


descansar. Quando acordasse, seria banhada com águas relaxantes e perfumadas e depois se
regalaria com uma deliciosa ceia.

Psique aceitou os conselhos: dormiu, banhou-se e dirigiu-se à sala de jantar. No


local não conseguia ver ninguém, somente uma mesa repleta das melhores iguarias. Uma
música tocava e ainda se podia ouvir um coro soando belas canções.
192

Psique, embora bem tratada não via o marido. Este, só aparecia à noite em total
escuridão e partia antes do amanhecer. Sua presença cheia de amor despertou na jovem uma
enorme paixão. Mas, a moça queria ver-lhe, conhecer o rosto que tocava e afagava, entretanto
ele não consentia. Ao contrário, recomendou-lhe que nunca tentasse fazer nada para vê-lo.
Afinal, existiam bons motivos para que ele pedisse tal confiança.

Chega a interrogá-la sobre o porquê da sua curiosidade, pois ela possuía tudo que
desejava e não devia duvidar do seu amor. Era melhor que não o visse. Se assim acontecesse
poderia ser capaz de temê-lo ou adorá-lo como a um deus. A única coisa que ele queria é que
ela o amasse.

Embora Psique tenha ficado mais tranqüila durante um certo período, logo a
ansiedade voltou. Enquanto tudo foi novidade estava feliz. Depois, foi preenchida por um
imenso vazio. Sentia saudades dos seus pais e das irmãs. Pensava o quanto seria bom se eles
pudessem usufruir, junto com ela, de todas aquelas maravilhas.

Aquele palácio havia se transformado apenas numa rica prisão e a tristeza tomou
conta da sua alma. Até que uma certa noite quando o marido chegou e viu a sua amada
mergulhada numa melancolia sem fim, perguntou-lhe o que estava acontecendo e ela contou-
lhe dos seus sofrimentos.

Assim, pediu permissão para que suas irmãs a visitassem. Ele, mesmo relutante,
concedeu-lhe o desejo. Então, Psique chamou Zéfiro e transmitiu as ordens do marido. O
vento prontamente foi buscar as duas irmãs.

Ao chegarem, Psique estava a espera para abraçá-las e oferecer-lhe o desfrute de


todos os bens que possuía. Após mostrar-lhes o palácio inteiro, pediu para que os criados as
banhassem, que fossem servidas à mesa e que admirassem os numerosos tesouros.

Tudo que viam era tão maravilhoso que foi impossível não sentirem inveja.
Interrogaram Psique de todas as formas a fim de saberem sobre o marido da bela irmã. Psique
disse-lhes que o marido era um lindo jovem que vivia caçando nas montanhas. Elas não
acreditaram e continuaram questionando. Com a intenção de aliviar o seu coração, Psique
confessou que nunca o havia visto.

As duas invejosas trataram de colocar dúvidas na cabeça da moça, fazendo


lembrar a profecia do oráculo, repassando que todos os habitantes do vale diziam que seu
193

marido era uma monstruosa serpente que a nutria com alimentos deliciosos para depois,
devorá-la.

Aconselharam-na a munir-se com uma lâmpada e uma faca afiada, mas que
tivesse muito cuidado para que o amante não descobrisse. Assim, deveria se preparar para
quando ele estivesse dormindo profundamente, ir até ele e iluminar a sua face. Se por acaso as
hipóteses fossem confirmadas, então não deveria hesitar em cortar-lhe a cabeça para obter a
liberdade.

Psique resistiu durante muito tempo, até que não mais suportando a dúvida
preparou a lâmpada e a faca afiada e escondeu-as do marido. Seguindo o conselho das irmãs,
esperou ele dormir e iluminou seu rosto. Surpresa! Em vez de um monstro, teve a mais bela
das visões. Diante dela, um belo deus, com lindas madeixas louras, pele branca como a neve,
faces róseas e lindas asas de penas brilhantes dormia tranqüilamente.

Deslumbrada, abaixou-se para iluminar seu rosto mais de perto. Assustada


derramou uma gota de óleo no ombro dele. Subitamente, o deus abriu os olhos e viu Psique.
Depois, sem nada dizer, abriu suas lindas asas e voou pela janela. Desesperada, seguiu-o
correndo e pulou da janela caindo estendida no chão.

Ao vê-la caída, Cupido suspendeu o vôo por um instante e dirigiu-se a ela,


dizendo-lhe que tinha sido tola em ter desconfiado dele para acreditar nas irmãs invejosas.
Enquanto ela planejava cortar-lhe a cabeça, ele, desobedecia às ordens da mãe para desposá-
la. Não lhe daria outro castigo além de vê-lo partir para sempre. Pois, o amor não pode
conviver com a desconfiança.

Cupido deixando-a caída no chão lamentou-se tristemente. Aos poucos Psique foi
se recompondo, mas quando olhou em torno, tudo havia desaparecido: o palácio, os jardins,
os criados. Viu, apenas, um campo aberto onde moravam suas irmãs.

Foi procurar por elas para contar o que havia acontecido. Continuaram se fingindo
de boas, mas só pensavam que, Cupido estava livre para escolher uma das duas. Sem dizerem
nada sobre o que pretendiam, cada uma delas, no outro dia acordou bem cedo e foi para a
montanha esperar o vento Zéfiro pedindo para que ele levasse ao seu senhor.

Confiantes, atiraram-se no ar e se despedaçaram por completo, pois Zéfiro não as


sustentou. Enquanto isso, Psique vagava noite e dia pelo mundo, sem repouso e alimento, a
194

procura do marido. Até que um dia muito cansada, avistou uma imponente montanha e no seu
topo um templo magnífico. Logo, imaginou que o seu amado estivesse ali e dirigiu-se até lá.

Ao entrar se deparou com uma tremenda desorganização. Havia um monte de


feixes de trigo misturados às espigas de cevada, junto de ancinhos e outros instrumentos de
ceifa atirados descuidadamente pelas mãos de ceifadores cansados, naquelas horas escaldantes
do dia.

Psique, com boa vontade, arrumou toda aquela bagunça, pois apesar do que tinha
lhe acontecido acreditava não poder negligenciar nenhum deus, então cuidou e arrumou o
templo que pertencia à santa Ceres. Observando a entrega daquela moça, Ceres disse que não
podia fazer muito por ela, pois não podia protegê-la contra a má vontade de Vênus.

De qualquer forma, poderia ensinar-lhe um meio de não desagradar aquela que


era a deusa da beleza. Disse-lhe que fosse até Vênus despojada de orgulho e humildemente se
subjugasse pedindo-lhe perdão. Talvez, ela tivesse compaixão e restituísse seu amado.

Assim, fez a jovem. Foi até Vênus que a recebeu com fúria e ódio. A deusa não
poupou Psique e falou-lhe de como a achava ingrata, pois seu filho havia desobedecido às
suas ordens por ter se apaixonado por ela e o que havia recebido dela era apenas uma ferida
aberta causada pela desconfiança. Agora, Cupido estava doente e triste.

Para que fosse perdoada teria de passar por duras provas que testassem sua
capacidade como dona de casa. Psique deveria ir até o celeiro do templo e separar todos os
grãos que lá estavam e eram muitos. Depois, deveria prepará-los para servir de alimento para
os pombos sagrados, antes do anoitecer.

A moça estava paralisada, não se sentia capaz de executar tamanha tarefa.


Entretanto, o amante vendo seu desespero incitou as formiguinhas nativas dos campos a terem
pena dela. Assim, a chefe do formigueiro juntou suas trabalhadoras e foram em socorro de
Psique.

Quando chegou o crepúsculo, Vênus retornou do banquete dos deuses, cheirando


a perfume e coroada de rosas. Quando viu a tarefa executada, não acreditou que ela tivesse
sido capaz de ter feito tudo aquilo, então injuriada compreendeu que ela havia sido ajudada
por Cupido.
195

Entregou um pedaço de pão preto à Psique e partiu. No outro dia mandou chamar
a moça e mostrou-lhe um bosque longínquo. Disse-lhe que lá, encontraria carneiros pastando
livremente. Eles eram cobertos de lã brilhante como ouro. Assim, ordenou-lhe que trouxesse a
lã desejada de todos os carneiros que ali pudesse encontrar.

Mesmo achando a tarefa difícil estava disposta a enfrentar. Dirigiu-se à margem


do rio para tentar atravessá-lo e então escuta a voz do rio deus que adverte do perigo, pois não
era uma boa hora para desafiar as correntezas. Além disso, naquele momento os carneiros
estavam sob a influência do sol nascente, por isso eram dominados por uma raiva cruel dos
mortais.

Outrossim, quando o sol do meio-dia tiver levado o rebanho para as sombras e o


espírito sereno do rio os tiver acalmado, poderá atravessar sem perigo. Lá encontrará nas
moitas de arbusto e nos troncos das árvores, a lã desejada. Assim fazendo, Psique voltou para
junto de Vênus com as mãos cheias de lã da cor do ouro.

Contrariada Vênus diz que ainda não confiava na sua capacidade de realizar uma
tarefa útil sozinha. Então, impõem outra tarefa muito difícil. Deve descer até as sombras
infernais e entregar uma caixa a Prosérpina , dizendo-lhe que coloque dentro dela um pouco
de beleza para Vênus, pois com a doença do filho, estava tão cansada que perdera um pouco
da sua própria. Avisa que Psique não deve demorar.

Essa prova parecia ser impossível de ser superada. Psique, em total desânimo,
dirige-se até o penhasco para de lá se atirar. Quando está pronta para realizar tal feito, escuta
uma voz dizendo que não deve cometer essa covardia, afinal tinha conseguido realizar as
provas anteriores. Não podia desistir diante da última prova.

A voz disse que a orientaria para chegar a gruta onde habitava Plutão e como
poderia passar por Cérbero, o cão de três cabeças, e enfim convencer Caronte, o barqueiro, a
transportá-la pelo negro rio e trazê-la de volta. Avisa, ainda, que quando Prosérpina entregar a
caixa, não deverá abrir por nada desse mundo, pois não pode conhecer o segredo da beleza
das deusas.

Psique parte e logo chega ao destino certo salva. Foi bem recebida, até um
banquete lhe ofereceram. Mas, ela não quis, comeu apenas um pedaço de pão seco. Deu o
196

recado de Vênus à Prosérpina que logo entregou a caixa. Então, partiu e ao encontrar a luz do
dia, encheu-se de felicidade.

Tendo a caixa na mão, ficou muito tentada em ver os tesouros que havia dentro
dali. Além do mais, gostaria de ter um pouco daquela beleza para poder encantar o seu amado
quando o encontrasse. Assim, não resiste a curiosidade e abre a caixa. Em vez de tesouros
encontrou o infernal e verdadeiro sono estígio. Caiu como se estivesse morta.

Cupido, já restabelecido não suportava a saudade da sua amada e vendo uma


janela aberta voa até o corpo de Psique, coloca estígio dentro da caixa e fecha. Depois, toca
levemente com a ponta de sua seta e a retira do sono. Quando ela acorda, ele a repreende
dizendo que mais uma vez ela quase morreu e tudo somente por conta da curiosidade.

Agora, ela deveria fazer exatamente o que Vênus havia ordenado e enquanto isso
ele tentaria fazer algo para salvá-la. Dessa maneira, foi até Júpiter e suplicou que o ajudasse.
O deus, comovido pela história de Cupido empenha-se em defender aquela causa e até
consegue convencer Vênus.

Júpiter solicita que Mercúrio leve Psique até a assembléia celestial, e, quando ela
chega, ele entrega uma taça de ambrosia dizendo-lhe para beber e tornar-se imortal, pois
Cupido jamais poderia cortar o laço que atou e que aquelas núpcias seriam perpétuas.

Finalmente Cupido e Psique unem-se num matrimônio celestial e, mais tarde eles
têm uma filha chamada Prazer.126

A história de Cupido e Psique é um dos mais bonitos relatos que compõem os


episódios míticos e sua leitura. Sua trajetória simbólica é puro deleite. Na maioria das vezes, é
considerada como alegoria, pois Psique em grego significa tanto alma como borboleta.

Parece que não existe nada tão lindamente poético e alegórico como a
imortalidade da alma representada por uma borboleta que:

“(...) depois de estender as asas, do túmulo em que se achava,


depois de uma vida mesquinha e rastejante como lagarta,

126
BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia, histórias de deuses e heróis. Rio de Janeiro: Ediouro,
1999, pp. 99-109.
197

flutua na brisa e torna-se um dos mais belos e delicados


aspectos da primavera. Psique, (...) a alma humana, purificada
pelos sofrimentos e infortúnios, é preparada, assim para gozar
a pura e verdadeira felicidade.”127

Nessa narrativa existe um apelo bastante forte aos recursos simbólicos e à nossa
capacidade de fruição. Contudo, não sentimos que existe uma intenção de apontar o amor
como um bem maior e transformador, como no conto A Bela e a Fera, cujo sentido está na
busca de transcender por meio do amor, capaz de transformação e aceitação do outro.

Apesar de muitas semelhanças com os contos de fadas, o mito não garante o final
feliz, ou seja, a esperança de que as etapas superadas concedem um nível mais elevado de
maturidade. Psique vai até a última prova sendo vítima dos seus impulsos infantis, por isso
mesmo estando quase no final de suas dores e próxima ao triunfo, cede novamente à vaidade e
curiosidade.

É salva pela paixão de Cupido, que é diferente do amor. Na verdade ele está preso
à doença da paixão e por isso desobedece à Vênus. O mito diz claramente que Psique, ainda,
não está amadurecida o suficiente para poder escolher, ela própria, o melhor caminho para a
sua vida. Ela vive sob as pulsões do id e por isso, desgoverna-se. Então, é necessário que
Cupido trabalhe por ela. Mas Cupido, embora seja o deus do Amor não é o suficientemente
forte para servir de imagem especular positiva, pois ele próprio cede aos caprichos da mãe,
portanto não possui autonomia.

O conto de fadas não tem a finalidade de advertir ou censurar, mas precisamente


de produzir um efeito construtivo de sentido pela vida, ou seja, aquilo que se pode nomear
como sendo um efeito de uma “transubjetividade”, pois apela para a capacidade imaginativa,
tal como aponta a especialista Maria Helena Ferreira Marques ao se referir ao sonho, a
imaginação e à criança:

“Sonhar acordado é um ato de transubjetividade, transpõe-nos


para as experiências de quem muito sonhou por nós, os poetas.
(...) ponto onde se experimenta a sensação do perigo de ser e

127
Idem, ibidem. p.p. 109, 110.
198

não ser, o ponto onde descobrimos em nós uma outra pessoa


(...) imaginação como um poder do sujeito para fazer frente aos
dramas que a vida lhe apresenta.(...) renovação, ao mesmo
tempo em que acentua os sonhos fantasistas ligados à infância
de cada homem, como “um início de vida profundo, de uma
vida sempre em harmonia com novas possibilidades de um
recomeço”.(...) A criança deseja interiorizar o outro,
experimentá-lo. Por um lado, deseja ser o outro, por outro
lado, sente-se motivada a libertar-se dele, pelo menos da sua
subordinação.” 128

Enquanto o mito provoca na criança uma sensação de impossibilidade de


realização, pois seus feitos não se identificam com aquilo que a capacidade humana pode
promover, o conto de fadas faz reviver conflitos que ela precisa resolver. Assim, quando no
conto surge a separação entre os amados, sentimentos como raiva e revolta transformam-se
em desafio e surge o desejo de se tornar autônomo e conquistar uma outra possibilidade de
ser.

Nesse sentido, consideramos que os contos de fadas produzem no leitor infantil


algo que não é da natureza do mito, justo porque reflete sobre aspectos que são de ordem
ontológica e que dizem respeito à experiência afetiva de todos os homens, portanto é devir e
possibilidade de ser.

Observamos que o mito não garante o “final feliz”, pois pretende apenas propagar
uma certa ordem, a finalidade consiste em assinalar que aquela realidade vivida pelos deuses
está fora do alcance humano, entretanto se não seguirmos às leis celestes poderemos ser
terrivelmente punidos, isso tem a ver com o superego. Enquanto o conto de fadas está para o
ego e para o id o mito está para o superego como representante da censura.

O que representa Psique nessa narrativa cheia de simbolismos, mas que não
assegura a conquista de uma personalidade madura? Ora, a jovem corre risco de morte mais
de uma vez por ceder aos caprichos da vaidade e curiosidade, sendo castigada e tendo que

128
MARQUES, Maria Helena. Pedagogias do imaginário. Olhares sobre a literatura infantil. Porto: Edições
ASA, 2002, pp. 122, 123.
199

passar por duras provas. Ainda assim, não percebemos que ela conseguiu dominar seus
impulsos do id.

Ao contrário do que acontece no conto A Bela e a Fera, Psique tem o amado de


volta e consegue a imortalidade porque o amor-paixão de Cupido por ela a liberta da ira de
Vênus. Na verdade não sentimos que Psique alcançou outro nível de maturidade, até a última
e terceira prova ela continua seduzida por sentimentos fúteis, como já apontamos
anteriormente.

Além disso, não existe um movimento de Cupido para romper os laços edipianos
com a mãe. Mesmo, no último momento, um pouco antes de pedir aos deuses a imortalidade
para a sua amada, ele ordena que o desejo de Vênus seja atendido.

As narrativas míticas sejam de extrema beleza, entretanto elas não possuem o


mesmo poder dos contos de fadas, pois não produzem um estado de autonomia, de “fazer
ser”, porque os dramas vividos aí não são identificados com o humano, mesmo que eles falem
de sentimentos. Isso não quer dizer que o leitor não sofra com as perdas do herói e não vibre
com as conquistas, mas como a narrativa não produz um “significante” que se identifique com
uma fantasia humana possível, então se pode constatar algumas diferenças fundamentais entre
mito e conto, tal como diz Bettelheim:

“(...) Embora as mesmas figuras exemplares e situações se


encontrem em ambos, e acontecimentos igualmente
miraculosos ocorram nos dois, há uma diferença crucial na
maneira como são comunicados. Colocado de forma simples, o
sentimento dominante que um mito transmite é: isto é
absolutamente singular; não poderia acontecer com nenhuma
outra pessoa, ou em qualquer outro quadro; os acontecimentos
são grandiosos, inspiram admiração e não poderiam
possivelmente acontecer a um mortal comum como você e
eu.(...) Em contraste, embora as situações nos contos de fadas
sejam com freqüência inusitadas e improváveis, são
apresentadas como comuns algo poderia acontecer a você ou a
mim ou à pessoa do lado quando tivesse caminhando na
200

floresta. Mesmo os mais notáveis encontros são relatados de


maneira causal e cotidiana (...).”129

Assim, podemos comprovar nossas afirmações anteriores, mesmo sublinhando


que a história de Cupido e Psique ofereça um final até certo ponto feliz, visto que a jovem
mortal é aceita pelos deuses, contudo nos é afirmado apenas que da união dos dois nasceu
uma filha chamada Prazer, então retornamos ao id como indício de que o par amoroso ainda
está submetido aos caprichos do id e, portanto, incapazes de controlar os aspectos destrutivos
do inconsciente. Pois, para que o prazer seja vivido de maneira construtiva é preciso ser
controlado naquilo que diz respeito aos seus aspectos mais primitivos.

Por isso, Psique vaga tanto e sofre desesperadamente em busca do seu amado. Os
desejos da moça estão sempre relacionados ao prazer, desde o momento em que chega ao
palácio, mesmo que não tenha consciência disso. Esta é outra questão que deve ser pontuada,
pois parece que a censura imposta nos mitos é muito severa, trata-se de um superego
controlador e cruel, pois as provas que são impostas aos heróis parecem nunca satisfazer.

Mesmo que elas sejam devidamente cumpridas, com auxílios mágicos ou não,
aquele que as impôs não aceita sua resolução e passa a propor outra mais difícil. Vênus não
perdoa a amada de Cupido, ao contrário, passa a odiá-la mais ainda depois que o filho a
escolhe como esposa. Psique é libertada pela paixão de Cupido e intervenção de Júpiter e não
por satisfazer os desejos da deusa.

O mito nos diz que quando um mortal não é capaz de seguir o que está
determinado pelos deuses, então ele é destruído por essas manifestações de censura. A
fragilidade do mortal transmitida pelos mitos pode ser representada pela situação de Psique
que não consegue ter forças para enfrentar a ira de Vênus, chegando até a pensar em se matar
pulando de um precipício.

Ora, sendo Vênus uma personagem do mundo dos deuses vive numa situação
especial e habita o paraíso do Olimpo, onde tudo é prazer, satisfação e poder. Para psique ela
é uma rival imbatível. Vejamos como Homero apresenta a sua visão do Olimpo nos seguintes
versos da “Odisséia”:

129
BETTELHEIM, Bruno. Op. cit., pp. 46-48.
201

“Disse Minerva, a deusa de olhos pulcros,


E ao Olimpo subiu, à régia e eterna
Sede dos deuses, onde a tempestade
Ruge jamais, e a chuva não atinge
E nem a neve. Onde o dia brilha
Num céu limpo de nuvens e ameaças.
Felicidades sempiterna gozam
Ali os divinos habitantes.”130

Como é apontado pelo poeta, este é um mundo de glórias e felicidades, mas


também cercado de luxúria, prazeres e rivalidades. O bem e o mal compartilham dessa
morada. Em contrapartida o mundo dos humanos é regido por leis exemplares determinadas
no Olimpo, assim acreditavam os antigos gregos de quem herdamos os vários episódios que
compõem grande parte da mitologia universal.

Este mito traz um dos motivos mais freqüentes nos contos de fadas que é a inveja
de uma mulher mais velha por uma mais nova e mais bonita. Motivo que serve de eixo para
todo o desenrolar da história.

Ora, essa temática não parece ser desconhecida, pois é apresentada em muitos
contos de fadas, como por exemplo, Branca de Neve, onde a madrasta não consegue aceitar
que sua enteada tenha se transformado na mulher mais linda do universo. Com a protagonista
de A Bela e a Fera acontece a mesma coisa, só que em vez de ser uma madrasta invejosa, ela
conta com a rivalidade das irmãs mais velhas, tal como Cinderela.

Contudo, ao contrário do conto de fadas, os heróis míticos possuem dimensões


sobre-humanas, mesmo que sofram conflitos semelhantes. Esse é um aspecto pouco favorável
à visão da criança que precisa identificar-se com uma situação de autonomia proporcionada
pela projeção e pela capacidade de relação com o outro de forma “transubjetiva”.

130
BULFINCH, Thomas. Op. cit., p. 99.
202

Mitos são narrativas poéticas que possuem força simbólica, mas não atendem às
necessidades de fantasia da criança. Mesmo o adulto, apreende a realidade dos contos de
fadas de forma diferente da mítica.

Os contos têm um apelo afetivo, seus heróis por mais idealizados que sejam são
comuns, até um pouco banais e experimentam uma vida cotidiana. Mesmo quando belos eles
não correspondem ao ideal de perfeição absoluta, são capazes de amar e sofrer como todos os
mortais.

Em muitos aspectos, os heróis dos contos de fadas podem oferecer à criança o


sentimento de identificação, começando pelos nomes, que quase sempre são generalistas ou
dizem respeito a uma característica do personagem, que pode ser física . Nisso também
encontramos uma diferença entre mito e conto de fadas, pois cada mito é a história de um
herói em particular, que possui um nome próprio e seus familiares também, pois nos parece
que:

“Não funcionaria chamar o mito de Teseu de “O homem que


imolou o touro” ou o de Niobe como “A mãe que teve sete filhas
e sete filhos”. O conto de fadas, em contraste, torna claro que
fala de cada homem, pessoas muito parecidas conosco. Os
títulos típicos são “A Bela e a Fera”, “O conto de fada de
alguém que partiu para conhecer o medo”. Mesmo histórias
inventadas recentemente seguem este padrão – por exemplo,
“O pequeno príncipe”, “O patinho feio”, “O soldadinho de
chumbo”. Os protagonistas dos contos de fadas são referidos
como “uma moça”, por exemplo, ou “o irmão mais novo”. Se
aparecem nomes fica bem claro que não são nomes próprios,
mas nomes gerais ou descritivos. (…) Mesmo quando o herói
recebe um nome, como nas histórias de João, ou em João e
Maria, o uso de nomes bem comuns os torna genéricos, valendo
para qualquer menino ou menina.” 131

131
Idem, ibidem, pp. 50, 51.
203

Por mais simples que tal fato pareça, na realidade tem importância quando se trata
de apresentar elementos que provoquem um sentimento mediato de identificação e, como o
nome é o primeiro significante do sujeito no mundo. Segundo a psicanálise, então sabemos
que o fato daquela personagem do conto de fadas ter um nome genérico, facilita o
reconhecimento do leitor com aquilo que lhe é essencial no herói, que é o de “viver uma vida
como a sua”.

De fato, os jogos projetivos diante dos contos de fadas são tão intensos que em
alguns momentos as personagens funcionam como um “espelho de pele”, de modo que o
vivido na narrativa não representa uma fantasia, mas o possível de ser em cada história de
vida, em cada ritual de iniciação ou passagem, enfim em cada momento da existência que é
singular porque “vivido” por uma pessoa particular, mas também que é universal porque se
refere aos sentimentos experimentados por todo ser humano.

Em Cupido e Psique, por exemplo, temos a nomeação dos deuses, inclusive dos
seus familiares. Embora a versão de Apuleio apresente uma significativa semelhança com o
conto de fadas, ainda assim a estrutura do mito permanece na medida em que suas
personagens projetam uma personalidade ideal, que devem agir segundo as exigências do
superego.

No conto de fadas existe uma busca de integração entre os aspectos do


inconsciente, de maneira que não prevalece nem o id, nem o superego, pois o que aí se busca
é uma melhor integração das partes que compõem a personalidade.

Se no mito encontramos um pessimismo preponderante, que favorece a


supremacia do id ou do superego, por outro lado, nos contos de fadas vamos encontrar um
otimismo essencial, correspondente à infinita busca por um bem maior que nos torne
melhores e mais felizes.

Isso nos parece bastante claro em Cupido e Psique, pois concluímos a leitura com
o sentimento de que seus heróis não conseguiram atingir a maturidade necessária. Cupido
como diz o próprio Júpiter não “romperá jamais o laço que atou” e as “núpcias serão
perpétuas” que é muito diferente de dizer que eles foram “felizes para sempre...”, ou “até que
a morte os tenha separado”, como nos contos de fadas, onde as verdades da “ficção” são
muito mais humanas e reais. Portanto, mais próximas da pele e da alma.
204

O comentário de Bettelheim pode ser assegurado por muitos contos de fadas que
se baseiam em histórias míticas, mas apresentam possibilidades diferentes. O mito exibe uma
narrativa sobre-humana, ou seja, por mais que se aproxime de fatos reais, os seus personagens
não produzem uma identificação com o humano. É uma narrativa que, além da singularidade,
diz ao leitor que os episódios narrados somente poderiam ter acontecido no âmbito de um
mundo idealizado. No conto de fadas temos fatos inusitados e personagens fantásticas, mas
que vivem uma vida comum como a nossa e por isso são capazes de um efeito de
identificação.

Os mitos são narrativas poéticas com muita força simbólica, mas não atendem às
necessidades de fantasia da criança e mesmo o adulto apreende a realidade dos contos de
fadas diferentemente das míticas. Os contos têm um apelo muito forte ao afetivo. Seus heróis
por mais idealizados que sejam são comuns, até banais e vivem uma vida cotidiana, mesmo
quando belos eles não correspondem ao ideal de perfeição absoluta e são capazes de amar e
sofrer como os mais humano dos mortais.

Assim, verificamos que contrariamente aos contos de fadas, os heróis míticos


possuem dimensões sobre-humanas e esse é um aspecto pouco favorável à visão da criança
que precisa identificar-se com uma situação de autonomia proporcionada pela projeção e pela
capacidade de relação com o outro de forma “transubjetiva”.

Evidentemente, que os aspectos simbólicos de Cupido e Psique possuem uma


riqueza incontestável e que cada símbolo tem uma representação de apelo metafórico
indiscutível, mas o conto A Bela e a Fera além da riqueza simbólica apresenta aspectos que
colocam o leitor numa conduta de identificação e desejo de superação que sobrepõe ao
moralizante.

Agora, realizamos a travessia do mito de Cupido e Psique para o conto que nos
propomos a analisar, na certeza de que este produz no leitor algo que é da ordem da
transcendência porque permite adentrar na dimensão do outro, identificado pela dor-amor.

5. 2 - LIMITES DA DOR-AMOR: PERCURSO DE “TRANSUBJETIVIDADE”

Buscamos nos aprofundar em alguns aspectos da dor e do amor tomando como


referência à posição da psicanálise, de acordo com alguns pressupostos teóricos considerados
205

pelos freudianos, mas também aqueles reformulados pela concepção lacaniana que coloca o
sujeito numa situação de falta permanente constituída pela primeira perda, a qual chama de
“objeto a”.

Lembramos uma famosa frase do grande poeta Rilke que ao falar da infância e de
uma dor fundante nos diz que:

“Entre os homens, podes encontrar às vezes um fragmento de


dor original talhada (...) Sim ela vem de lá. Outrora, fomos
ricos.”132

O ser humano está permanentemente nesse espaço lacunar de onde se vive todas
as dores e onde, também buscamos amar. De modo que nunca falaremos da dor sem nos
referirmos ao amor, como também o contrário é verdadeiro. Toda busca de amor tem origem
nesse estado de inconclusão provocado pela perda primeira.

A linguagem , o símbolo, surge precisamente para dar conta dessa cicatriz


impressa como marca no corpo simbólico. Aliás, temos impressão que a linguagem é mesmo
um órgão que se estende para além do corpo em direção ao outro e possibilita a criação de
sentido. Mas, nela estamos sempre reconduzidos para o lugar da falta, do perdido que hospeda
a dor.

É necessário que situemos a linguagem da infância enquanto lugar da diferença e


trajeto essencial para formação do imaginário. Lugar onde surgem todas as cenas, imagens do
desejo e da subjetividade, portanto narrativas que elaboradas a partir de uma situação de dor-
amor. Pois,

“(...) Ao invés de situar a linguagem apenas na sua dimensão


simbólica, convém concebê-la também na sua dimensão real de
órgão sonoro. Se sublinho esse aspecto real da linguagem, é

132
NASIO, Juan-David. Op. cit., p.82.
206

para mostrar bem que ela é não só matéria emitida pelo


sujeito, mas também armazenável na sua memória.(...).”133

Se nos referimos à linguagem dessa forma é porque acreditamos que por meio
dela suportamos e representamos a nossa condição de inconclusão e temos acesso ao outro.
Tentamos nos salvar elaborando um dizer das nossas dores e sofrimentos, mas também
construindo-nos dentro de um contexto de linguagem do afeto-amor.

Assim, todas as histórias nos falaram das nossas próprias histórias como percurso
constante desse estado de nostalgia e luta por uma totalidade de ser, tal como diz o poeta
Rilke ao falar da dor e da infância como o lugar “onde outrora fomos ricos”. Por outro lado,
compreendemos que aí elaboramos, sobretudo todos os nossos sentimentos de ambivalência
com relação à vida. A dor-furo surge desse lugar que também é “permanência”.

De qualquer forma buscaremos na nossa análise do conto “A Bela e a Fera”


pontuar esse trajeto da dor visto como reação, mas também como um estado permanente do
sujeito no mundo, e importante para que nos situemos como ser simbólico, que tem como
saída o espaço da fantasia, considerado como:

“(...) uma coleção complexa de imagens e de significantes,


dispostos em um anel giratório em torno do buraco da
insatisfação. No centro desse buraco se ergue a pessoa viva do
amado”.134

Assim nasce o amor, desse espaço vivo e movimentado onde estão as pulsões
dolorosas que preenchem o lugar da dor. Surge como fantasia regeneradora capaz de fazer
viver o melhor e o pior de cada um de nós, tal como acontece na representação literária. O
conjunto de sentimentos que se sobrepõem na narrativa para dar voz à uma multidão de “eus”,
sugere esse espaço “esburacado” e intervalar como origem da fantasia.

Portanto, é dentro dessa elaboração de fantasia que, também, se pode dar conta de
que precisamos do outro para nos sustentar enquanto imagem investida de desejo, de forma

133
Idem, ibidem, p. 150.
134
Idem, ibidem, p.61.
207

que quando nos deparamos com as personagens estamos diante de uma possibilidade de ser e
não ser. Além disso, o que nos toca nas personagens é poder olhá-las como diferentes e iguais,
no medo e na coragem, na angústia e na plenitude, no sofrimento do abandono e da rejeição,
mas também na paixão pela vida.

É disso que nos propomos a falar no conto A Bela e a Fera, buscando apontar para
o sentido dessa narrativa que nos serve de “brecha” para que de certa forma sejam desvelados
alguns aspectos do inconsciente. Embora, exista medo de enfrentar os perigos oferecidos pela
nossa “fera” o seu confrontamento é algo decisivo para que se possa viver “bem” a
coletividade que existe no nosso reino interior.

Afinal, o que existe nesse conto que persuade tanto e nos provoca o desejo de
“arriscar-se” e que se perpétua no sentimento e na experiência de mundo das pessoas que um
dia se depararam com a Bela e com a Fera? Qual o processo de identificação que se estabelece
com as personagens e situações dessa história? Que tipo de autonomia é encontrada no ato de
sua leitura e interpretação? Enfim, por que a Bela se entrega ao amor pela Fera, antes mesmo
de descobrir e conhecer a sua face de beleza ?

Estas são questões que nortearão nossas conjecturas com relação aos sentimentos
que se colocam como eixo central do conto, na medida em que avançamos para nos colocar ao
lado da afirmação de que:

“A impotência original do ser humano se torna assim a fonte


primeira de todos os motivos morais.”135

Essa afirmação de Freud vem fortalecer o que já lançamos como hipótese em


torno daquilo que constitui o sujeito como sujeito da falta , por isso inconcluso e em busca
permanente de ser fisgado por algo que o reconduza à situação primeira de satisfação total,
ainda que isso seja produzido pela revivescência da dor-amor.

Esta é uma narrativa que diz para a criança que o sentimento de amor é muito
mais do que ser escolhida ou despertada por um príncipe. Pois amar alguém implica
compromisso que se estabelece a partir daquilo que consideramos como falta, espaço que

135
Idem, ibidem, p. 151.
208

suscita paz e guerra. Assim, entrar em contato com essa dimensão do amor pode fazer com
que a criança compreenda-se nas próprias escolhas.

Existem muitas versões para o conto A Bela e a Fera e, possivelmente, é uma das
histórias mais estimadas entre os contos de fadas.

A versão que escolhemos apresentar para servir como base de nossas análises
encontra-se na obra de Madame Leprince de Beaumont, publicada em 1757, que por outro
lado, nos remete às versões anteriores escritas por Madame Villeneuve e Madame D’Aulnoy,
comentadas por Marina Warner em sua obra intitulada Da Fera à Loira e que certamente,
deram origem às versões mais atuais.

Todas as vezes que lemos A Bela e a Fera encontramos uma janela nova, um
caminho diferente e assim, nos preparamos sempre para dizer novamente, tomados de
encantamento.

Era uma vez… um mercador que possuía três filhas muito bonitas sendo a mais
nova a mais formosa de todas. Ao contrário de suas irmãs, que eram maldosas e egoístas, a
caçula era encantadora, generosa e meiga. De beleza tão singular que a chamavam de a
Pequena Bela.

O pai que já fora rico, perdeu toda a fortuna e tal fato irritava profundamente suas
filhas mais velhas. Entretanto, ele contava com a compreensão da mais nova.

Acreditando que poderia recuperar a sua riqueza fazendo negócios em outros


lugares, parte em viagem. Antes, pergunta às filhas o que elas desejam ganhar como prendas
da viagem. As irmãs pedem presentes valiosos, mas Bela diz que não desejava nada além da
sua volta. Porém, o mercador insiste tanto que a jovem termina pedindo-lhe uma rosa.

A viagem de nada adiantou para que ele recuperasse a sua fortuna perdida. Assim,
decide imediatamente retornar para casa. Cansado e com desânimo perde-se numa floresta,
até que encontra um palácio onde lhe dão abrigo: Come, bebe, dorme e repousa, mas não vê
absolutamente ninguém.

Após ter descansado, decide partir e ao fazê-lo passa por um jardim com lindas
rosas vermelhas. De repente, lembra do pedido da filha e colhe algumas flores para levar-lhe
de presente.
209

Subitamente, escuta uma voz horrenda que o recrimina por tal atitude. Afinal,
havia sido recebido naquele palácio com toda gentileza possível.

Depois do mal feito como castigo ele teria a morte. O homem desesperado
suplica-lhe pela vida e explica o porquê de ter colhido aquelas flores.

A criatura então responde que somente o libera se uma das filhas se oferecer em
seu lugar.

Além de receber um cofre cheio de ouro, o mercador promete retornar no prazo de


três meses com uma das filhas. Claro que ele não tem intenção de sacrificar nenhuma delas,
mas aceita a proposta cm o objetivo de ganhar tempo.

Chega em casa, triste e desanimado. Não conta o que aconteceu, porém, Bela
insiste e ele termina por dizer-lhe o que sucedeu.

Bela não se conforma e implora para ir em seu lugar. Mesmo sem querer o pai
consente em levá-la junto com ele. Enquanto isso, com o ouro recebido, consegue realizar
casamentos de prestígio para suas outras filhas. Logo após os casamentos Bela parte com seu
pai. Ao chegar no palácio da Fera, Bela é recebida por criados invisíveis que a tratam com
muita gentileza. Durante a noite recebe a visita da Fera que logo se apaixona por ela. A moça,
apesar de se assustar com a aparência dela, pois nunca tinha visto uma criatura tão feia, se
encanta com sua delicadeza e generosidade. Fazem uma grande amizade, mas a Fera quer
mesmo é desposá-la e todos os dias quando vai visitá-la a pede em casamento.

Embora, ela admire a extrema bondade com a qual é tratada, recusa o pedido de
matrimônio o que deixa a criatura bastante infeliz. De qualquer forma mantém a esperança de
que pelo menos a moça nunca o abandone. Bela promete que nunca fará tal coisa, mas pede-
lhe para visitar seu pai, pois ao olhar no espelho mágico onde podia ver tudo que se passava
no mundo, viu seu pai muito doente e também sentia saudade das irmãs.

A Fera que já confiava em Bela permitiu-lhe a viagem, mas avisou que teria que
voltar no prazo máximo de uma semana, caso ultrapassasse este prazo ela morreria. Ao
chegar em casa, seu pai logo, restabeleceu-se. Suas irmãs infelizes no casamento e sentindo
ciúmes dela pedem-lhe para que fique mais uma semana, pois acreditam que a criatura
monstruosa revoltada com a desobediência de Bela fosse procurá-la no intento de destruí-la.
210

A jovem decide ficar, no décimo dia sonha com a Fera agonizante. Desesperada
deseja voltar e é transportada de imediato ao palácio. Entretanto, antes de partir é induzida
pelas irmãs a iluminar o rosto da Fera, pois até então só haviam se encontrado na escuridão.

Ao chegar e ver o sofrimento do amado que agonizava, confessa o quanto ficou


triste quando sonhou com seu sofrimento e o quanto havia se arrependido de não ter atendido
seu pedido. Aceita casar-se com a Fera mesmo naquela condição. Mas decide seguir os
conselhos das irmãs e ilumina-o. Surpreende-se! Em vez de uma criatura monstruosa, vê um
lindo príncipe. De repente, um pingo de vela cai sobre seu rosto e ele acorda.

Diante do acontecido, o príncipe diz que se Bela o ama de verdade terá que
encontrá-lo no seu reinado. Ele parte e tudo em volta dela desaparece. O palácio transforma-
se num bosque fechado. Perdida no bosque, ela passa por algumas provas, porém jamais
pensa em desistir. Finalmente, encontra o reinado e o seu príncipe encantado. Casam-se e são
felizes para sempre.

O pai recebe a notícia com alegria e suas irmãs são transformadas em estátuas.136

Existem versões que omitem o fato de Bela ter seguido os conselhos das irmãs e
iluminado o rosto da Fera, como também o fato de ela ter passado por provas. Entretanto, a
versão de Madame D’Aulnoy apresenta-se muito próxima do mito de Cupido e Psique.

A semelhança entre Cupido e Psique e A Bela e a Fera é evidente. O enredo é


quase o mesmo, embora alguns símbolos sejam diferentes. A omissão de alguns elementos
dos contos em algumas releituras contemporâneas tem subtraído do conto seu verdadeiro
sentido, por isso não se deve retirar da narrativa os símbolos que fazem parte da sua origem.

A passagem onde Bela descumpre a promessa e ilumina o amado é uma das mais
reveladoras, pois indica o momento no qual se desencadeia a transformação necessária para
que os heróis ressurjam com outra identidade, capazes de sentimentos maduros e
salvaguardados pelo amor.

A Bela e a Fera é um conto que produz um certo medo, visto falar de criaturas
invisíveis, faces proibidas, enfim existe um clima de mistério que provoca um certo suspense,

136
Releitura baseada na versão de Madame Leprince de Beaumont, que por sua vez baseia-se em versões
anteriores. Ver A Bela e a Fera. In: anexo 4, p. 289.
211

mas também uma certa atração. Misto de repulsa e sedução. Além disso, possui conteúdos de
eroticidade que vão norteando um pouco da própria natureza da Fera, que sendo uma criatura
monstruosa pode representar pulsões selvagens indicativas de um ego ainda pouco controlado.
Mesmo sendo generosa foi capaz de ameaçar o pai de Bela e provocar sofrimento.

O secreto também faz parte do mistério. Tanto Psique quanto Bela desejam
desvelar o segredo que existe com relação à aparência de seus pares amorosos. A diferença é
que Psique segue até o final sendo dominada por seus instintos primitivos. Desvia-se do seu
intento na intenção de satisfazer sua vaidade. Deseja ficar mais bonita ainda para continuar
seduzindo Cupido pelas virtudes da beleza física.

O mesmo não acontece com Bela que se arrepende profundamente por não ter
cumprido sua promessa de voltar no prazo previsto. Nesse instante Bela descobre que precisa
da Fera para ser feliz e realizar-se no amor. Assim, viabiliza um processo de identificação
entre o leitor e os personagens do conto, como se a partir daquele momento o espaço “vazio”
do mistério fosse preenchido de uma esperança oferecida pela imagem do outro amado.

Não encontramos nada nesse conto que possa ser julgado como feroz ou
aterrorizante. Muito pelo contrário, sentimos pelo monstro algo de extremamente positivo,
embora que, inicialmente, ele se apresente como opositor já que ameaça o pai de Bela.
Entretanto, o leitor compreende que tal fato é necessário para garanti-lo de que a
transformação acontecerá.

A Fera torna-se uma imagem de beleza e poesia, pois apesar de ser horrenda
consegue despertar o amor do outro por sua bondade, mesmo estando numa situação
desumana mantém-se com dignidade. Não deseja que Bela aceite seu pedido com desprezo,
quer ser verdadeiramente fonte de amor e amizade. Tendo força e poder poderia obrigá-la a
casar-se ou então castigá-la por não aceitar o pedido. Mas diferente disso, roga-lhe para que
ela fique para sempre e promete fazê-la feliz.

Enquanto em Cupido e Psique existe o registro de desejos incontroláveis e a


presença de conflitos edípicos mal resolvidos, em A Bela e a Fera não verificamos instinto
de destruição, mas sim um sentimento restaurador , pois o próprio gesto do pai demonstra que
a moça está pronta para viver uma vida de maturidade sexual junto ao escolhido, ao qual tem
acesso pelas mãos paternas.
212

Tal fato nos leva a observar que este conto coloca a transformação como um
processo de interiorização pelo qual temos que passar, se quisermos alcançar uma forma mais
satisfatória e humana de felicidade. Mostra-nos que a conquista do amor requer uma luta
interior de aceitação pelo outro que elegemos como objeto de amor.

Entretanto, a dor e o amor que aparecem aí, não são propriamente o eixo da
narrativa, mas sim o processo pelo qual cada sujeito tem de passar para desabrochar como
individualidade. Somente quem ultrapassa a dor obtém capacidade de realizar-se em relações
de uma transferência satisfatória. Assim, Bela que ama seu pai consegue “olhar-se”
independente por meio de uma outra imagem, oferecida por uma face, a princípio proibida,
mas de onde se projeta para crescer.

Marina Warner em obra já citada levanta alguns aspectos interessantes tanto desse
conto como também do mito de Cupido e Psique. Afirma que:

“(...) De vários modos, a estrutura interna de A Bela e a Fera


inverte os papéis definidos pelo título: ela tem de aprender a
sabedoria (humana) superior de enxergar além das
aparências externas, compreender que a monstruosidade reside
no olhar do espectador, enquanto que a fera revela-se
irresistivelmente bela e o mais elevado bem (...).”137

Sabemos que nos contos que falam de metamorfose e transformação existe um


sentido primordial que remonta a Pandora e Eva que serve de base para enredar histórias
centralizadas na curiosidade feminina e na força que move as ações da mulher.

Esses são contos que antecipam a criatura monstruosa na situação do


desconhecido e ameaçador, enquanto a heroína padece em busca da sua verdadeira identidade.
Bela consegue restituir para o leitor essa dimensão de busca espiritual tão difícil de ser
conquistada que vem ao longo dos tempos servindo como pano de fundo para o
desenvolvimento de muitas histórias

137
WARNER, Marina. Da Fera à Loira. Sobre contos de fadas e seus narradores. São Paulo: Companhia das
Letras, 1999, pp. 307, 309, 310.
213

Como na maioria dos contos de fadas que trata da temática de irmãs invejosas,
Bela sofre a maldade de suas irmãs que invejam a sua beleza, tal qual como ocorre em Cupido
e Psique. As irmãs de Bela também a desafiam estimulando a sua curiosidade. Entretanto, não
sentimos que ela aceita o conselho das irmãs por curiosidade, mas sim porque deseja conhecer
mais profundamente o objeto de seu amor.

Desde o início da narrativa somos conduzidos numa atmosfera de humanidade,


carinho e amor e, também, de sofrimento. O pai das três moças encontra-se numa situação
financeira difícil e por isso viaja para tentar recuperar a sua fortuna. A protagonista mostra
sua generosidade e disposição para o amor, desde o primeiro conflito da história, quando diz
para seu pai que não precisa de presentes.

De qualquer forma, com a insistência do pai, pede-lhe uma rosa, que é símbolo de
muitos aspectos, sobretudo aqui nessa narrativa representa a sexualidade porque serve de
“passaporte” para que Bela seja entregue a Fera. A rosa que Bela pede é símbolo de travessia,
pois por meio dela a moça passa das mãos do pai para as do amado, portanto existe aí, com
toda clareza uma transferência – deslocamento de afeto, tal qual nos é sugerido por Nasio ao
declarar que:

“(...) o amado é uma pessoa, mas primeiramente e sobretudo


essa parte ignorada e inconsciente de nós mesmos, que
desabará se a pessoa desaparecer. (…) O eleito amado é a
pessoa que seduz, desperta e capta a força do nosso desejo.
Envolvemos (como a hera que recobre a pedra) com uma
multidão de imagens superpostas, cada uma delas carregada de
amor, de ódio, de angústia, e a fixamos inconscientemente
através de uma multidão de representações simbólicas, cada
uma delas ligada a um aspecto seu que nos marcou (...) até
transformá-la em duplo interno, nós o chamamos de “fantasia”
do eleito.”138

138
NASIO, Juan-David. Op. cit., p. 38.
214

Ora, Bela era a filha mais generosa do mercador e embora ela sofra muito com o
fato de ter que partir para a companhia de alguém que sequer conhece, não poderia deixar seu
pai morrer. Então, prefere ela própria, resignadamente, ter aquele destino. Parte por amor a
seu pai, mas encontra outro capaz de também, como ele, servir de imagem-dupla para as suas
projeções. Assim, novamente sustenta-se no amor, mesmo sofrendo a ausência do pai.

As imagens de oposição que representam este conto dão sentido ao clima


dramático que se apóia na provocação da dor e do amor. O belo se opõe ao horror bestial de
uma fera, mas ao mesmo tempo em que somos convidados a olhar para o mistério do Outro
que é interditado, nos sentimos atraídos para produzir um sentido de desvelar aquilo que está
oculto em nós, mas sobretudo faz parte do indizível de nós mesmos. Bela sente o efeito de
amor, desde o momento em que assume o desafio que é imposto ao seu pai. Sofre,
desesperadamente, por ter que partir para um lugar desconhecido, onde terá que conviver com
a face oculta do horror-dor, do Outro e dela própria.

A dor da perda impõe-lhe a fantasia do eleito, então aquele que poderia ser
ameaça e sofrimento ocupa a cena do seu afeto. Ele, a Fera, é aquele que a alimenta, protege,
guarda e também, interdita. O desejo, lugar de onde surge a fantasia, é caminho de dor.

Contudo, para que o eleito seja interiorizado é preciso que ele funcione como
imagem múltipla da nossa falta, que se apresente como ausência daquilo que consideramos
como uma “presença de nós” no Outro que nos serve de base e sustentação. O amor é sempre
necessário.

Talvez, por isso, Bela não atenda ao pedido de nunca olhar a Fera, pois é
necessário reconhecer-se na imagem daquele que mais do que reflexo da nossa imagem é
significante da falta, dor permanente do primeiro objeto de amor perdido. Assim, aquele que
vem para ocupar essa cena vazia e esburacada transforma-se no eleito amado, fantasia que nos
coloca lá onde outrora nos sentimos plenos. Pois;

“(...) A fantasia é o nome que damos à sutura inconsciente do


sujeito com a pessoa viva do desejo. Essa sutura operada no
meu inconsciente é uma liga de imagens e de significantes
vivificada pela força real do desejo que o amado suscita em
215

mim, e que eu suscito nele, e que nos une. (...) o eleito existe
duplamente: por um lado, fora de nós, sob a espécie de um
indivíduo vivo no mundo, e por outro lado em nós, sob a
espécie de uma presença fantasiada – imaginária, simbólica e
real – que regula o fluxo imperioso do desejo e estrutura a
ordem inconsciente. Das duas presenças, a viva e a fantasiada,
é a segunda que domina, pois todos os nossos comportamentos,
a maioria dos nossos julgamentos e o conjunto dos sentimentos
que experimentamos em relação ao amado são rigorosamente
determinados pela fantasia. Só captamos a realidade do eleito
através da lente deformante da fantasia. Só o olhamos,
escutamos, sentimos ou tocamos envolvidos no véu tecido pelas
imagens nascidas da fusão complexa entre a sua imagem e a
imagem de nós mesmos. Véu tecido também pelas
representações simbólicas inconscientes, que delimitam
estritamente o quadro de nosso laço de amor.” 139

Pela imagem que o conto oferece nos sentimos impulsionados a concordar com a
afirmativa de Nasio, quando se refere à fantasia do amado. A Bela e a Fera é uma narrativa
que fala metaforicamente de opostos que se atraem, pois os personagens inspiram esse véu de
fantasia. A escolha da Fera por Bela não é um acaso, mas uma imagem viva do seu desejo de
perfeição e generosidade. A fantasia de que ela é perfeita é a de um ideal a ser alcançado. O
objeto de amor é uma fantasia provocada pelo desejo de que aquele é o que me falta, por isso
o amor consiste numa fantasia condensada nas expectativas do sujeito.

Por outro lado, Bela também precisa desse outro que transita entre a imperfeição
de ser uma fera, mas que ao mesmo tempo é capaz dos sentimentos mais sublimes. Os
personagens são a própria imagem dessa condição de ambigüidade onde o desejo se
representa no próprio simbolismo do quadro que nesse conto se estabelece entre uma linda
jovem e uma fera (príncipe encantado).

139
Idem, ibidem, p. 40.
216

Afinal, o que falta à Bela, senão se dar conta do seu outro lado, desprezado pelo
desejo de constantemente agradar o outro, tomado-o aqui na figura do pai? E o que falta a
Fera, senão ser vista naquilo que lhe assegura um olhar transformador e somente refletido
numa imagem de beleza?

Estão envolvidos em camadas de hera e aos poucos, na medida em que vão se


revelando, descobrem-se como imagens que se complementam porque surgem do objeto
fantasiado. Na condição de falta que inaugura o vazio surgirá como produto de um objeto de
fantasia que o Outro deverá ocupar.

Bela parte para um Palácio, lugar desconhecido e habitado por uma Fera que
busca atender todos os seus pedidos e que em troca pede-lhe apenas o laço de amor e por isso,
insiste no casamento que ela tanto recusa.

Não muito diferente de Cupido, a Fera se ausenta durante o dia e ressurge durante
a noite, clara alusão de que nesse momento envoltos no mistério da escuridão eles realizam-se
como homem e mulher. Entretanto, essa realização não é total, pois Bela ainda não aceita o
pedido de casamento, ela precisa reconhecer-se no desejo que o Outro lhe dá acesso, mas
para tanto precisa aceitar o laço de amor, o que acontece quando se dá conta que pode perder
a Fera e, em conseqüência, a sua possibilidade de amar.

A moça está quase feliz vivendo na riqueza, no conforto, sendo alimentada e


servida goza de todos os bens, mas ainda não suporta o desconhecido, olhar-se naquele Outro
que é imagem do interdito é também o reconhecimento de que não se pode entregar à
totalidade do seu desejo. O Outro é impossível.

O pai mercador leva a rosa em troca da própria vida, além disso também, pode
levar o cofre cheio de ouro para casa e assim, casar suas outras filhas com homens de
prestígio, embora mais tarde elas não sejam felizes, pois como são más estão submetidas
apenas às pulsões destruidoras do id, portanto incapazes de amar verdadeiramente.

Das filhas do mercador somente Bela pode ocupar esse lugar, pois ela é a única
capaz de oferece a imagem ideal de perfeição e beleza, qualidades necessárias para quem vive
numa situação repugnante e monstruosa.

A Fera, logo reconhece a sua imagem em Bela e investe no seu desejo de amor,
por isso não se cansa de pedir a moça em casamento, a qual o faz aflito e em sofrimento
217

porque sempre o recusa. A Fera é uma imagem de dor e sofrimento, pois está preso à sua
condição animal, por não conseguir ser amado. Somente o amor da Bela poderá libertar a Fera
para que ela alcance uma outra forma e seja transformada pelo “olhar da sua amada”.

Tudo que aquela criatura bestial deseja é ser amado por Bela. O seu maior medo
reside na possibilidade de ser abandonado por quem elegeu para amar. Assim, sofre a cada
recusa, submetendo-se apenas à promessa de que ela nunca o abandonará. Então, aparece o
espelho como cenário de todas as cenas. Nele, a moça vê o seu pai saudoso e doente. Seu
reflexo ainda está lá, junto ao amor paterno que sofre a tristeza da sua ausência.

Apela para a generosidade da Fera e parte ao encontro da família, espaço original


do sujeito no mundo. A Fera permite a viagem, mas pede que ela retorne no prazo de uma
semana. Se não voltar, ele morrerá e com isso o elo de amor se romperá.

É uma bela metáfora do amor, pois este é um sentimento sustentado pela presença
da fantasia do Outro. Quando desaparece o que resta apenas é o vazio pleno, preenchido de
ausência e dor pelo laço rompido. Ruptura e quebra do reflexo, expressão da própria imagem
do eu no Outro. Uma vez que essa representação é impossível, então o que vive é apenas uma
imagem esburacada, onde falta o eleito, falta vida. É a morte. Sublinhamos que:

“(...) A pessoa viva do eleito me é indispensável como uma base


dotada de vida própria, sobre a qual repousa e desabrocha o
objeto fantasiado. Sem essa base, substrato de vida, nossa
fantasia desabaria e o sistema inconsciente perderia o seu
centro de gravidade. Ocorreria então, uma imensa desordem
pulsional, acarretando infelicidade e dor. A pessoa do amado é
ao mesmo tempo o suporte animado das minhas imagens e um
corpo crivado de focos de irradiação do seu desejo, que são
outros tantos focos de excitação para o meu desejo. A presença
simbólica do eleito é um ritmo, mais exatamente o compasso
pelo qual se regula o ritmo do meu desejo. A presença
218

imaginária do eleito no nosso inconsciente se resume em


espelho interior que nos remete as nossas próprias imagens.”140

A partir disso surge uma grande possibilidade de compreender o sofrimento de


Bela que, ao sentir a ausência do seu pai, ainda objeto de amor-total, é abalada nas suas bases
vitais. Mas também, a dor é intensa ao sonhar com a da Fera doente e sentir o medo de perdê-
la. Terá de escolher entre seus desejos infantis de estar junto do pai ou aceitar casar-se com a
Fera e crescer. Realizar-se como alguém capaz de superar as provas impostas pela vida exige
disposição para vencer.

Compreendemos que este conto oferece à criança a possibilidade de compreender


que também ela, se for corajosa e determinada, será capaz de ter uma vida feliz. Os
personagens funcionam como “brecha” para essa construção de sentido. Na medida em que
vai podendo deslocar seus afetos, que são focos de investimento do próprio desejo, de
maneira regeneradora, então se sente capaz de fazer a síntese do “objeto a” nos objetos de
transferência que lhe dão acesso ao eu integrado.

Qual a criança que lendo esta história não se juntou aos lamentos da Fera e não se
colocou em seu favor, vibrando para que Bela o amasse de verdade? Mesmo no início da
narrativa quando o pai é obrigado a prometer o seu retorno, a criança sente-se encorajada a
aceitar que Bela enfrente o desafio e vá em seu lugar, pois a Fera não se apresenta como
ameaça de destruição, mas ao contrário de transformação.

Existe também um simbolismo muito forte de ritual de passagem representado


pela rosa, e que mesmo não sendo explicado para a criança tal significado, ela o apreende de
forma inconsciente, visto que tal imagem está presente no inconsciente coletivo e irrompe
como força metafórica capaz de atribuir um significado remoto. Além desse aspecto,
observamos que todos os eventos fatídicos acontecem a partir de quando o pai rouba a rosa
para sua filha mais nova, que também é a sua predileta, assim:

“(...) Com isto, simboliza seu amor por ela e antecipa a perda
da sua condição de donzela, pois a flor partida e especialmente
a rosa arrancada – é símbolo da perda da virgindade. Para o

140
Idem, ibidem, pp. 38,45, 46, 47.
219

pai tanto quanto para ela isto soa como se ela tivesse de passar
por uma experiência “feroz”. Mas a história diz que suas
ansiedades são infundadas. O que temiam que fosse uma
experiência feroz se revela como algo profundamente humano
e amoroso.”141

A Fera, não somente representa o perigo desconhecido, mas também um ideal a


ser alcançado e uma realidade a ser transformada. Contudo, essa passagem ritualística é feita
com sucesso se o iniciado se encontra respaldado numa base de amor.

A Bela e a Fera fala do amor e também encoraja a criança no sentido de


enfrentar seus medos e explorar o desconhecido mundo dos afetos, ainda que eles pareçam
estranhos e ferozes, terão algo a dizer. Por outro lado, é importante que a criança sinta-se
capaz de conquistar outros objetos de amor além de seus pais.

Talvez por isso, as crianças ao entrarem em contato com esta história não se
sintam ameaçadas e compreendam o motivo pelo qual o pai de Bela a deixa partir. Nem
tampouco, se sentem apavoradas com a Fera, embora saibam que ela tem uma aparência
animalesca. A Fera produz muito mais o efeito de cumplicidade do que propriamente repulsa.

Depois, o fato de a Fera pedir a moça em casamento e ela recusar prepara o


cenário para que seja amadurecida a idéia de um amor realizado, no qual existe desejo e
pulsão sexual, o que não ocorrerá se não acontecer um movimento de transferência e
deslocamento da libido, pois:

“Para que haja desejo sexual, é preciso que o Outro esteja


presente.(...) é preciso um movimento da pulsão segundo um
trajeto circular composto de três curvas: a primeira ativa, indo
para o Outro; a segunda, passiva, vindo do Outro; e a terceira ,
ativa dirigida para si mesmo. Enfim, para afirmar que a dor é

141
BETTELHEIM, Bruno. Op. cit., p. 345.
220

um objeto de satisfação sexual, é preciso que ela demonstre ser


um objeto-furo.”142

É neste espaço de dor que surge o amor, por mais contraditório que isso possa
parecer, o amor surge de um espaço doloroso e, aí, também se origina a pulsão sexual,
enquanto força positiva da libido. Então, é necessário que o sujeito envie seu olhar para o
outro para que numa atitude reflexiva o outro retorne o olhar, pois somente sendo objeto de
amor para o outro o sujeito será capaz de desejar-se no outro.

Desde o início da vida, é necessário sentir-se amado pelo Outro para que haja um
reinvestimento na própria capacidade de amar e transcender os sentimentos dolorosos
provocados pelas primeiras perdas. Assim, a passagem da dor para o amor será possível se
existir um investimento significativo na imagem oferecida pelo Outro, isso também garantirá
o acesso ao simbólico. Pois,

“(...) o que importa na imagem não é a própria imagem, mas


que ela seja esburacada. Se não, ela não é imagem sexualizada.
Por que enfatizar esse ponto? Porque afirmar que uma imagem
é esburacada significa que ela é superfície constitutiva de uma
fantasia sexual. (...) se o Outro fosse uma imagem plena, sem
furo, o roteiro da fantasia não seria sexualizado, e, para falar
em termos freudianos, não haveria libido.”143

Dessa maneira, a Fera começa a oferecer uma imagem “esburacada” para Bela na
medida em que vai se tornando presente, comparecendo à cena que é devidamente preparada
na narrativa, quando a Fera visitando-a todas as noites durante o jantar vai seguindo o
caminho entre o prazer (oral) da comida e o prazer de realização sexual. Pede à moça em
casamento todas as noites mesmo não que não tenha uma resposta positiva de imediato, sabe
que pode confiar em Bela e por isso, permite que vá ver seu pai.

Existe algo nas atitudes de Bela que reassegura seu retorno e que de certa forma
reflete um comportamento infantil experimentado com intensidade. Em geral, as crianças

142
NASIO, Juan-David. Op. cit., p. 120.
143
Idem, ibidem, p. 142.
221

desejam ser atendidas em todas as suas necessidades, embora não gostem de ser cobradas.
Não adianta ser servido e ter todos os desejos realizados se não nos sentimos encorajados a
desafiar a monotonia. Talvez, por isso Bela que inicialmente tem medo da Fera, passa depois
a aceitar as suas visitas durante a noite.

Em algumas versões desta narrativa é dito que enquanto as irmãs de Bela se


divertem indo aos bailes e aceitando a corte dos rapazes, ela prefere fazer companhia ao pai.
Então, se pode inferir que existem entre eles fortes laços edipianos, mesmo quando a moça
decide ir ao encontro da Fera, faz por amor ao pai e por isso estabelece uma relação,
inicialmente, assexuada.

De todos os contos de fadas este é o que deixa mais claro para as crianças que a
ligação edipiana é algo natural na vida de todos e que pode ser muito positiva se ocorrer
dentro de um processo natural, no qual a criança se sinta afetivamente capaz de transferir o
amor pelos pais para uma outra pessoa que surge como eleita de seu amor.

Portanto, este conto fala de uma transferência edipiana positiva, embora nos seja
avisado o sofrimento do pai ao deixar Bela partir e o dela ao saber que seu pai corre risco se
não cumprir com a palavra.

Obtendo a permissão da Fera, ela parte no compromisso de retornar em uma


semana. Contudo, segue os conselhos das irmãs invejosas e demora mais do que o combinado.
Descobre que a Fera está doente por meio de um sonho, o que também tem um efeito
simbólico muito significativo, pois sabemos que sonhar é uma das atividades humanas mais
importantes de liberação de energia e canalização dos impulsos reprimidos. O medo de perder
a Fera faz com que Bela descubra-se no amor e então parta ao seu encontro, portanto :

“Projetada num conflito entre o amor pelo pai e as


necessidades da Fera, Bela abandona a Fera para cuidar do
pai. Mas percebe então o quanto ama a Fera – símbolo de que
os laços que a unem ao pai afrouxaram e ela transferiu o amor
para a Fera. Só depois que decide abandonar a casa do pai
para juntar-se à Fera – isto é, depois resolver os laços edípicos
com o pai – o sexo, que antes era repugnante, se torna belo.”144

144
BETTELHEIM, Bruno. Op. cit., pp. 346, 347.
222

A criança que vive os laços edipianos de maneira positiva consegue transferir seus
afetos para outros objetos de amor e alivia-se do sentimento de culpa por querer um dos pais.
Vive o desejo de maneira repulsiva e por isso consegue realizar a transferência desses
sentimentos para um outro que mais tarde será o eleito para o amor.

Quando a criança consegue dirigir esses sentimentos vividos, no inconsciente,


como “animalescos” para um companheiro da mesma idade, então faz a travessia necessária
para crescer de maneira satisfatória. Isso pode ser vivido em muitos contos de fadas que
abordam a questão edipiana.

Como A Bela e a Fera fala de uma história de transferência positiva, a criança


diante do texto vive a segurança de que com ela também será assim. Por isso, esse é um conto
considerado por muitos pesquisadores como o mais simbólico depois de Borralheira
(Cinderela) e o mais satisfatório.

Certamente, que a criança que conhece este conto no momento em que está
passando um problema relacionado ao conflito edipiano, pode por meio do processo de
identificação projetar-se nas personagens e conseguir uma transferência afetiva positiva, não
somente numa conduta intersubjetiva, mas, sobretudo “transubjetiva”, pois dessa forma terá o
reflexo do seu desejo reproduzido sob diversos ângulos e possibilidades, mediatizados pelo
outro e surgirá desse espaço com uma visão diferente e melhor sobre ela mesma.

Essa “permissão” que o texto oferece para um olhar “transubjetivo” do leitor com
relação às diversas possibilidades afetivas produzidas a partir dos dramas dos personagens
cabe na metáfora narrativa, como sendo espelhos que se multiplicam e se transformam a
partir dos diversos ângulos produzidos pelo olhar.

Então, consideramos que o olhar da criança com relação aos personagens do conto
A Bela e a Fera não será enviado somente aos conflitos edipianos, mas também para aqueles
que libertam a alma. O que acontece na vida desses personagens fala da vida de todo mundo
porque vivemos em busca de aceitação. Queremos ser aceitos e isso de certa forma nos
“garante” o sentimento de auto-estima.
223

Assim, com vistas para os tantos “eus” em unidade com outros é que surge a
possibilidade da narrativa produzir o efeito da “transubjetividade” e o leitor assim, carrega-se
daquilo que para ele é o sentido de uma existência melhor.

No entanto, esse momento no qual acontece o encontro entre narrativa – leitor –


personagem, é viabilizado por uma representação que expresse com largueza o vivido
afetivamente dentro dos processos transferenciais ocorridos ao nível do significante. Quando
isso acontece, então estamos diante do transubjetivo, tal como podemos sentir na passagem
em que Bela reconhece as necessidades de amor da Fera, porque também são suas próprias
necessidades que são da ordem do outro e para além dele.

Entrar na “transubjetividade” é aportar num lugar especial que permite ao sujeito


encontrar-se no “mais além” dele e do outro, numa história que é permanente porque faz parte
do indizível, que é desejo e marca de cada um. Nesse espaço furo, nasce o sujeito e também o
Outro. Nele, cada leitor se encontrará com o seu significante, que não é do autor, nem de
outros leitores, nem tampouco do texto, mas apenas permissão de ali se encontrar na condição
de diferença, talvez daquilo que se possa chamar de “outridade”.

O texto oferece o espaço de ousadia onde a subjetividade do autor entra em


contato com a subjetividade do leitor. A intersubjetividade requer um espaço próprio, mas
também possui o seu próprio território demarcado por uma subjetividade dela mesma. Assim,
chegamos ao espaço da “transubjetividade”, lugar de nascimento. De onde se pode amar e
odiar com autonomia, de ser “mais além” de cada fracasso, de cada vitória e de cada vida que
se vive. Ora,

“(...) o que estrutura essa relação intersubjetiva é tudo o que se


tece em torno do que é visto e remete ao essencial: o que não
está ali.(...).”145

A Bela e a Fera é um conto que permite esse espaço de apreensão do alheio.


Daquilo que em nós é despertença e significância do “Outro em nós”, tal como o querer se
reconhecer na atitude de Bela com relação à Fera, ou mesmo se comprazer com a imagem das

145
MANNONI, Maud. Amor, Ódio, Separação. Rio de Janeiro: Zahar, 1995, pp. 44, 45.
224

irmãs transformadas em estátuas isentos, nós leitores, da culpa de termos que ser totalmente
bons ou maus.

Sentimos esse algo especial que extrapola o entendimento racional ao nos deparar
com Bela e seu sofrimento, provocado pela dor daquele que, agora, vive na figura do seu
eleito-amado. Assim, Bela reencontra-se no espaço da sua conquista e travessia ao se dar
conta de que seu amado morre com a sua ausência, quebra de promessa – impossibilidade de
encontro. Mundo onde a Fera agoniza enquanto aguarda pela transformação final. Momento
de dor e prazer.

O crescimento provoca dor, mas também prazer porque significa superar provas
que permitam a assunção do eu e do tu, em conseqüência, do corpo e da sexualidade. Essas
provas são complexas e por isso o herói ou heroína não consegue vencê-la de imediato.

É preciso tempo para se ter o domínio necessário para passar de uma etapa a
outra, na qual se pode utilizar com equilíbrio a plena capacidade do corpo e de todas as suas
possibilidades. Quando atingimos esse estágio então existe a permissão para uma relação
plena com o outro. Assim, a conjunção amorosa no final dos contos significa celebração de
um objetivo alcançado, no qual os amantes não ficam à margem da sociedade, porque o amor
é promessa de uma vida integrada.

Nesse instante, motivados pela travessia realizada pelos heróis do conto,


seguiremos o trajeto da dor-amor com a certeza de que muito nos escapa porque ele é difuso,
conflituoso, cheio de ausências. Esse caminho não é linear, nem tampouco pouco acessível à
razão. Ele é passagem permanente para um lugar que a psicanálise nomeia como o “Reino do
Isso”.

5.3 - NO REINO DO “ISSO”: CONQUISTA E AUTONOMIA –


TRAVESSIA PARA O AMOR

O sonho que revela o estado agonizante da Fera vem estabelecer um olhar


diferente por parte da heroina com relação à imagem do outro que elege para amar. Nesse
momento apercebe-se que a dor da Fera a comove tanto quanto a do pai, assim é possível
apreender que houve uma transferência positiva de afeto e a jovem poderá “iniciar-se” numa
vida adulta satisfatória.
225

A imagem bestial da Fera já não assusta e então, ela pode permitir-se amá-la na
diferença, o que não implica dizer que o estado de amor proporcione exclusivamente
sentimentos de satisfação. Vemos que dor e amor se confundem tanto quanto prazer e
desprazer. Tudo acontece nesse espaço de jogo.

A fantasia de uma criatura horrenda e monstruosa desfaz-se por completo e a


diferença, antes, fator de ameaça passa a ser aceitação e amor. Então, Bela pode dizer sim ao
casamento e iniciar-se numa nova aventura.

O acontecimento que motiva a aceitação do matrimônio por parte da moça funda-


se a partir do momento em que Bela vai visitar o pai e ausenta-se durante um tempo maior. O
medo de que a Fera morra provoca em Bela o desespero. Pois a falta da imagem do outro
amado representa um limite que:

“(...) garante a consistência da minha realidade e torna


tolerável a minha insatisfação, mas também representa o freio
para o desmedido de uma satisfação absoluta que eu não
poderia suportar. (...) o eleito – que qualificamos de amado,
mas que também pode ser odiado, temido ou desejado-
representa a minha barreira protetora contra um gozo que eu
considero perigoso, embora seja inacessível. Pela sua presença
real, imaginária e simbólica, ele é, no exterior, o que o
recalcamento é no interior.”146

O eleito representa uma barreira constituída por uma pessoa real e que nos
proporciona uma satisfação tolerável, sem que para tanto impeça o sonho de um gozo
absoluto. Ao contrário, alimenta a esperança de que um dia isso será possível. A fantasia que
se faz do amado está na base do desejo.

Se o amado desaparece o sonho desaba e o desejo enlouquece, pois o eu funciona


como um espelho no qual estão as imagens do nosso corpo e os aspectos do nosso amado que

146
NASIO, Juan-David. Op. cit., pp. 60-62.
226

são capazes de sustentar aquilo que em nós é demanda por um outro em quem se possa
projetar.
O excesso de investimento de uma dessas imagens significa amor e o desejo
apóia-se sobre a coisa real. De outra forma, se o excesso de investimento não tem uma
imagem real para se apoiar, aquilo que poderia ser amor é ocupado pela dor.

Assim, quando o suporte real dos nossos investimentos afetivos desaparece é


como a morte. O perdido deverá passar pelo trabalho de luto e reconstruir um novo limite. O
sentimento de perda e o trabalho de luto são representados nesse conto pela agonia da Fera e o
sofrimento de Bela diante da sua doença. Para que amem verdadeiramente precisam saber
sobre a dimensão do perder.

A reconstrução de um novo limite é um dos principais aspectos levantados no


conto de fadas. Como os personagens estão sempre numa situação inicial de separação e
abandono, então é preciso que se mostrem capazes de elaboração das perdas para que a
criança realize uma identificação satisfatória.

Relembramos que o medo de abandono é na infância um dos maiores


desencadeadores dos sentimentos de ansiedades que às vezes, podem ser transformados em
ódio pelo outro que produz a fantasia de perda, recorrente dos primeiros cortes.

Tomemos como exemplo, crianças pequenas que ao serem deixadas pela “mãe”,
mesmo que seja durante alguns minutos, não param de perguntar por que a “mamãe não chega
logo” e se não forem logo atendidas com a chegada, fantasiam que ela partiu para sempre.
Então, o que era dor transforma-se em ódio, pois se ela foi embora não amava de verdade.

Dessa maneira também acontece no conto de fadas. Experimentamos isso em


histórias como João e Maria, O Pequeno Polegar, Branca de Neve e os Sete Anões, O
Junípero, enfim em todas as narrativas que tratam da separação e abandono. O que é amor
também pode ser ódio, dependendo de como as pulsões se sustentem na imagem real do
eleito.

Assim, a dor ocupa um lugar no centro do amor e a narrativa de A Bela e a Fera


nos coloca nessa dimensão. A dor da Fera é tão intensa que o seu corpo padece, sua ferida
escancara-se e ela expõe sua dor que é visceral. A dor de Bela não é menor. Como Psique,
terá que provar a sua capacidade de amar e cuidar desse amor. Temos uma diferença bastante
227

significativa nestas narrativas no que diz respeito às provas, pois Psique cumpre ordens
impostas pela sogra, sua rival. Enquanto, a Bela sai em busca da Fera impulsionada pelo
desejo, sem ter que rivalizar com outra mulher.

Agora, após ter sua imagem sustentada no amado, quem sofrerá a dor da ausência
do eleito é Bela e por isso, submete-se à situação de penúria sem desistir encontrar-se com a
Fera. Pois,

“Nunca estamos tão mal protegidos contra o sofrimento como


quando amamos, nunca estamos tão irremediavelmente
infelizes como quando perdemos a pessoa amada ou o seu
amor. (...) Mesmo sendo uma condição constitutiva da natureza
humana, o amor é sempre a premissa insuperável dos nossos
sofrimentos. Quanto mais se ama, mais se sofre.(...) O amado
me protege contra a dor enquanto o seu ser palpita em
sincronia com os batimentos dos meus sentidos. Mas basta que
ele desapareça bruscamente ou me retire o seu amor, para que
eu sofra como nunca.(...) experiência de uma antiga dor futura.
O que dói não é perder o ser amado, mas continuar a amá-lo
mais do que nunca, mesmo sabendo-o irremediavelmente
perdido. (...) O amor é a presença em fantasia do amado no
meu inconsciente.”147

Se o amor é essa presença constante no espaço que também é o da dor, então


quando amamos estamos na revivescência de uma dor-amor que é a imagem do nosso
primeiro objeto de investimento. Por isso que, as crianças ao entrarem em contato com as
narrativas dos contos de fadas são reconduzidas ao momento inaugural da sua existência no
mundo.
A passagem do conto A Bela e a Fera que mais emociona crianças e adultos,
provocando algo mesmo como a comoção é marcada pela agonia da Fera ao sentir-se
abandonada. O sofrimento é dilacerante e a imagem de uma dor monstruosa reforça esse

147
Idem, ibidem, pp. 27, 30, 38.
228

sentimento de estranheza pelo absurdo que pode ser real. Assim, a Fera é significante de um
estado de dor descomunal, que grita todas as perdas, mas que é esperança de transformação.

A imagem da Fera se contrapõe à imagem de Bela traçando um percurso que vai


do horror à beleza, da morte ao renascimento, da falta à presença, do corpo à alma. Quando a
Fera agonizante sofre, isso nos faz lembrar as várias etapas da metamorfose, seja humana ou
animal. Ela sempre está implicada numa dor profunda, misto de sofrimento e prazer pela
antecipação de um novo ser.

A metamorfose da lagarta em borboleta não inspira beleza, ao contrário provoca


repugnância. Mas, quando surgem as asas e a borboleta está pronta para o vôo, então
presenciamos um dos maiores espetáculos da natureza: o vôo livre.

O casulo é o momento de espera e maturação necessário para que de lá surja um


ser diferente. Como a lagarta a Fera precisa da sua imagem bestial e rastejante para operar sua
transformação. Sofre a rejeição e o abandono, mas consegue pelo amor alcançar humanidade.
O casamento será para os heróis desse conto, as asas da borboleta.

Diante da Fera transformada em príncipe, a metáfora se completa. A dor surge no


espaço físico do corpo, mas também no simbólico. Para se tornar o ideal da alma, os heróis do
conto de fadas passam pelas diversas humilhações, rastejam como lagartas, são presos e
ameaçados até que possam encontrar outro, símbolo de perfeição e por isso, imagem positiva
de transformação.

Muitas crianças ficam tão envolvidas no caráter de dualidade da Fera que parecem
apreciá-la mais do que apreciam Bela. Sentem-se profundamente solidárias com essa criatura
misteriosa porque são despertadas para suas próprias experiências internas. Inúmeras vezes,
vividas com horror. Choram quando a Fera adoece. Acreditam que não vai dar tempo de Bela
encontrá-la viva. Sentem compaixão e se comovem, não somente porque são generosas, mas
também por sublimarem suas próprias tristezas e sofrimentos no outro simbolizado pela Fera.
Essa trecho da narrativa faz suscitar angústias arcaicas (medo do abandono, sentimento de
perseguição, medo do desconhecido). A partir daí o leitor pode experimentar algo como “um
ganho de prazer”, um “bônus de sedução” que é acompanhado de um relaxamento das
tensões. O leitor vive as cenas isento da culpa e, sobretudo, deixando-se abandonar as suas
próprias fantasias.
229

A dor parece ser sempre um forte elo de identificação. Sofrer junto com a Fera
reconduz a um estado anterior no qual as ansiedades persecutórias e o medo de aniquilamento
produziam o efeito de uma dor. Pois,

“A dor de existir é a dor de estar submetido à determinação do


significante, da repetição, e até mesmo do destino. (...) a dor
psíquica é o ferimento da alma (...) a dor é a desorientação que
sentimos quando, tendo perdido um ente querido, nós nos
encontramos diante da mais extrema tensão interna,
confrontados com um desejo louco no interior de nós mesmos,
com uma espécie de loucura interior que fica adormecida em
nós, até que uma perda exterior venha a arrancar os seus gritos
de desespero.”148

É dessa dor reatualizada que nos falam as personagens do conto A Bela e a Fera,
ou seja, daquilo que por meio delas interiorizamos e reconhecemos como nosso, pois toda dor
tem no fundo a mesma origem e mesmo, quando deslocada para outros afetos, basta que um
estímulo exterior se apresente como marca indesejável, que logo surge o impulso doloroso da
dor primeira.
Cada personagem servirá de apelo para nossas fantasias, fazendo viver os
possíveis da nossa história. Na verdade, desejamos ver naquele outro que é “personagem” a
possibilidade de um encontro feliz, produzido pela travessia da dor-amor.

O processo de crescimento do ser humano é muito especial e desde o nascimento


somos preparados para o simbólico. A partir dos primeiros jogos somos convocados para a
linguagem. Nesse sentido, Freud fala da “Das ding” na sua teoria do “Fort Da”. Ele sugere
que a “Das ding” representa a “Coisa” inacessível, parte não assimilável do Outro e que é
presença estranha e invariável, tal como o jogo em que:

“(...) a criança grita e a mãe responde, a mãe grita e a criança


se lembra dos seus gritos e das suas dores. Mas a outra face do
grito, a que corresponde à segunda fração do complexo do

148
Idem, ibidem, p. 52.
230

próximo, não é mais comunicação com o Outro, mas apelo à


Coisa, clarão que a revela. Basta um grito intenso e visceral
para que se erga diante de nós, no centro do laço com a mãe, a
intensidade silenciosa de das ding, a coisa absoluta é
inassimilável. Essa coisa, exterior a mim é entretanto o que
tenho de mais central e íntimo, pois a Coisa não é nada mais do
que um vazio absoluto, impessoal e comum aos dois parceiros
do laço do amor e desejo. Lacan inventa um neologismo,
“extimidade”, para nomear a Coisa, ao mesmo tempo exterior
e íntima. Mas essa Coisa não ressoa nem vibra, ela é silêncio,
puro silêncio: eu grito, ele grita, e é o silêncio da Coisa que
jorra e se impõe.”149

Quando estamos diante da dor, então reatualizamos o sofrimento e passamos a


apelar para aquilo que é inominável e inacessível, vazio que motiva o jogo entre ser e não ser,
o qual a literatura tão bem representa no entre-dois daquilo que a palavra não revela, mas faz
“saltar” em nós como presença viva e permanente de um furo central e íntimo. A dor da Fera
é o grito que ecoa no silêncio absoluto que habita a “extemidade” da Bela, por isso surge a
dor, agora não mais a dor do Outro, mas a do próprio laço de amor surgido de um estado de
totalidade, no qual apenas o Outro existe em nós.

A partida da Fera ao se transformar em príncipe causa uma angústia intensificada


pelo fato da impossibilidade de amor, no qual o leitor já havia se projetado. Ao aparecer um
príncipe no lugar do horror, algo se faz ruptura na expectativa da criança que espera ver
aquele amor concretizado. Assim, o que surpreende também causa um sentimento nostálgico
pela ausência daquele que é o Outro do amor.

O grito da Fera é o de Bela, do pai, das irmãs, enfim de todos nós. O texto fala das
ausências e a agonia vem daí. Do que se perdeu para sempre e gira em torno daquilo que
precisamos conquistar para fazer presente o amor primeiro e todas as suas compensações.
Das-ding é jogo de ausência e presença. Jogo de esconde-esconde que permite a esperança de
que o que um dia partiu voltará. Esse é um jogo recorrente nos contos de fadas. Há sempre
alguém que parte e abandona. Mas também, alguém que busca e encontra.

149
Idem, ibidem, p. 153.
231

Bela, sofre a dor do abandono enquanto vê tudo ao seu redor desaparecer, já não
existe palácio, nem criados, somente um bosque o qual terá que enfrentar para poder, se
quiser, reencontrar o seu eleito, agora sob a forma humana. Além disso, a moça já havia se
acostumado com a presença da Fera, já conhecia a sua beleza e humildade.

Há uma clima de profundo desencanto, pois a transformação da Fera modifica


toda a cena, então no lugar daquilo que era jardim, palácio, fartura surge apenas um bosque
desencantado, repleto de galhos secos. A jovem se sente perdida, mas encontra força lá onde o
silêncio é total, mas também é presença viva de uma ausência que grita pelo amado.

É desse lugar que Bela surge para lutar, agora, pela sua transformação. Como
Psique encontra-se abandonada e sabe que para reencontrar seu príncipe terá que suportar os
desafios necessários e o primeiro deles, está dentro de si própria e que consiste na luta para
realizar o seu desejo por meio do Outro, como representante da falta. Não tendo que ocupar o
lugar do Outro.

A falta do eleito nos coloca numa desorganização psíquica caótica, representado


no conto pelo bosque destruído. Na realidade, o eleito consiste numa fantasia necessária para
que a nossa vida afetiva seja preenchida de energia, pois:

“(...) a dor é um afeto que exprime a autopercepção pelo eu da


comoção que devasta, quando é privado do seu amado. (...) a
dor exprime o encontro brutal e imediato entre o sujeito e o seu
próprio desejo enlouquecido.(...) Para Lacan, a dor não seria a
reação imediata a uma perda súbita (...) mas um estado
indefinido tão longo quanto à duração da vida. Os dois pontos
de vista: a dor considerada como uma reação, e a dor
considerada como um estado, não são incompatíveis, mas
perfeitamente complementares.”150

O desaparecimento da Fera, tanto no que diz respeito ao processo de


transformação quanto ao fato de ter ela partido, coloca a jovem numa situação desoladora, da
qual pensa provavelmente que nunca sairá. Quando se perde o objeto de amor, então acontece

150
Idem, ibidem, pp. .51, 191.
232

um desinvestimento da própria imagem, que antes era projetada na figura do eleito amado.
Agora, Bela entra em contato com a dor profunda, surgida do abandono.

Se a psicanálise aponta a dor como um estado permanente, devemos ter em conta


que dentro dessa condição constante existe também um movimento que é de reação, pois se
por um lado, somos reconduzidos a viver sempre a dor primeira, por outro somos estimulados
a produzir uma reação que nos recompense. Assim, a mesma dor pode ser capaz de fundar um
espaço de luta. A reação busca o alívio, a descarga e liberação daquilo que em nós é dor-furo.

“Em todas as variantes em que o animal, masculino ou


feminino, coabita temporariamente, com um ser humano, há
referências ao contato com o corpo quando à noite se deitam.
Não há, porém, referências à qualquer situação de prazer. A
ausência dessa informação num texto, não significa a não
existência desse prazer no contato com o corpo do outro.
Também não há referências à qualquer atitude de repulsa ou
rejeição. O que sucede é o anúncio da fertilidade, resultante
desse encontro, na seqüência do texto, com a indicação de uma
gravidez.(...).”151

O amado desaparece durante um período do dia, esta ausência temporária é


bastante comum nos contos deste ciclo. Simbolicamente, pode significar abandono, mas
também que algo de estranho se passa com aquele que não se pode mostrar à luz do dia. É
difícil amar o que não se conhece “totalmente”, ainda que exista muito prazer nos encontros
de Bela com a Fera, o momento de união é lacunar, pois existe uma proibição.

Temos novamente a situação do abandono que é o mesmo que dizer recondução


ao princípio de tudo, lugar da cicatriz e do evento primeiro, o qual jamais será esquecido pelo
inconsciente. O laço perdido estará presente em todas as nossas ações durante toda a
existência, assim o fato de isso ser colocado na literatura e mais contundentemente, nas
narrativas infantis provoca um sentimento de reatualização daquilo que se perdeu há muito.

151
COSTA, Maria da Conceição. Op. cit., p. 100.
233

A importância dessa recondução é que quanto mais a criança tem oportunidade de


viver seus afetos, de dizer-se por meio de uma linguagem que a coloca no centro, então estará
mais próxima de compreender-se no seu contexto familiar e social. Por exemplo, quando entra
na dimensão do sofrimento da Fera está podendo olhar o Outro guardado, mas presente ali,
naquele lugar onde parece ser inacessível.

A imagem da Fera agonizante e da Bela perdida no meio daquele bosque sombrio


surge de maneira dolorosa para o leitor, pois nesse momento ele já foi surpreendido inúmeras
vezes e quando pensa que tudo entrará em ordem, então ressurge a dor. Isso faz pensar nas
nossas próprias dores e ao mesmo tempo nos sentirmos encorajados para ultrapassar o estado
de melancolia que acomete todo aquele que se vê numa situação de abandono.

Sem dúvida, é a pulsão de vida e amor que nos sustenta e garante o renascimento
e todas as vezes que o herói do conto consegue superar suas perdas, então ele nos ensina que
somos capazes de viver a gratificação.

Em nenhuma versão do conto A Bela e a Fera temos notícias de que a Fera no


momento de agonia grita ou urra sua dor medonha, mas a imagem é tão forte que algumas
crianças ao verem-na doente, chegam a fechar os ouvidos e quando são interrogadas sobre tal
fato, respondem prontamente que não queriam ouvir aqueles gritos, pois ficam tristes.

O “grito” ouvido faz parte da imagem que fazemos do sofrimento desse


personagem. Surge das entranhas como dor que dilacera. Realmente, o sofrimento da Fera nos
transporta para um lugar onde nos sentimos abandonados, mergulhados numa situação de
morte. Quando estamos nesse lugar doloroso estamos lutando e o grande medo do leitor é que
a Fera não resista à dor e entregue-se à morte.

Com relação ao grito, ainda que isso não seja mencionado no texto, ressaltamos:

“(...) que a dor é sempre marcada com o selo da subitaneidade


e do imprevisível. (...) Nos primeiros instantes, a dor psíquica é
vivida como um ataque aniquilador. O corpo perde a sua
armadura e cai por terra como uma roupa cai do cabide. A dor
se traduz então por uma sensação física de desagregação e não
de explosão. É um desmoronamento mudo do corpo. Ora, os
primeiros recursos para conter esse desmoronamento, e que
tardam a vir, são o grito e a palavra.
234

O antídoto mais primitivo contra a dor ao qual os homens


recorreram desde sempre é o grito, quando pode ser emitido.
Depois, são as palavras que ressoam na cabeça, e que tentam
lançar uma ponte entre a realidade conhecida de antes da
perda e aquela, desconhecida, de hoje. Palavras que tentam
transformar a dor difusa do corpo em uma concentração na
alma.”152

A afirmação traduz o que comentávamos antes e que tem a ver com a dor da Fera
e seu grito mudo. Seu grito ressoa nos ouvidos daqueles que com ela rememora o objeto de
amor perdido. Sentimos que ela desmorona diante da ausência da amada, não somente porque
se sente no abandono e solidão, mas também porque escapa-lhe a imagem de um amor ideal.

Depois da transformação final, será Bela que terá de enfrentar os desafios se


desejar obter maturidade, inclusive a realização sexual e transferência positiva que denota a
superação dos conflitos edipianos, se concluirá quando ela conseguir provar a sua capacidade
de transformação.

Este conto de metamorfose transformação se desenrola num cenário de segredos e


encantos. Os personagens centrais passam por etapas que mais do que provas e desafios são a
forma pela qual chegam ao alcance de uma outra existência. Na realidade, o grande perigo a
ser temido não está do lado de fora, mas dentro de cada um. Talvez se possa afirmar que:

“O homem só tem que temer a si mesmo, ou melhor, o homem


tem apenas o Isso a temer, verdadeira fonte de dor. A dor
vinda do Isso é um estranho com o qual coabitamos, mas que
assimilamos. A dor está em nós, mas não é nossa. Aquele que
sofre confunde a causa que desencadeia a sua dor e as causas
profundas. Confunde a perda do outro amado e os transtornos
pulsionais que essa perda acarreta. Acredita que a razão da sua
dor está no desaparecimento do amado, enquanto a verdadeira
causa não está fora, mas dentro do eu, nos seus alicerces, no
reino do Isso.(...) O amado é um excitante para nós, que nos

152
Idem, ibidem, pp. 57, 58.
235

deixa crer que ele pode levar a excitação ao máximo. Ele nos
excita, nos faz sonhar e nos decepciona. Nosso amado é nossa
carência.(...) O amado é um outro, mas uma parte de nós
mesmos que recentra o nosso desejo.”153

O dilaceramento da Fera ao sentir que o seu objeto de amor está perdido a torna
amedrontada e apavorada porque ela é reconduzida ao Isso, deparando-se com o inacessível
da dor. Como também, a Bela ao sentir que poderá nunca mais ter diante de si aquele que
descobrira ser o seu amor. Nesse momento, temos a emergência de dois sujeitos que se
sustentam no olhar do Outro e no desejo de se aliviar as dores do Isso.

A criança ao se deparar com tal situação dos personagens sofrerá as perdas e


agonias que surgem do Isso. Como o espaço da arte oferece a possibilidade de
transubjetividade, então ela poderá produzir um significado diferente para o que existe nesse
“Reino”. As pessoas vivem seus reinos de forma própria e singular. As dores surgem sempre
do mesmo lugar e se fundamentam na primeira perda, mas a condição interna de cada um vai
determinar o circuito da reação.

Olhar-se por meio do reino do Outro é de certa maneira, poder ter acesso aos seus
vividos e por isso, Bela e Fera ao chegarem quase no final do conto se dão conta do perdido e
daquilo que sendo imagem do Outro será sempre fantasia. Então, surge a dor em toda a sua
amplitude, algo visceral e monstruoso, tanto quanto a ameaçadora face de uma fera.

O que a criança realiza ao “escapulir” para o reino do Isso é uma conquista


interior, por vezes muito dolorosa, mas sem dúvida necessária para que cresça e tenha um
olhar mais ampliado, aquilo que Gaston Bachelard chama de “olhar do devaneio, da
contemplação”. Assim, oferecendo uma das visões mais poéticas a respeito do olhar ele nos
diz:

“(...) para o contemplador que “constrói o seu olhar”, o olho é o


projetor de uma força humana. Um poder iluminador
subjetivo vem acender as luzes do mundo. Existe um devaneio
do olhar vivo, devaneio que se anima num orgulho de ver, de

153
Idem, ibidem, pp. 58-60.
236

ver claro, de ver bem, de ver longe...(...) O cosmos, soma de


belezas, é um argos, soma de olhos sempre abertos. Assim se
traduz num nível cósmico o teorema do devaneio da visão: tudo
o que brilha vê e não há no mundo nada além de um olhar.”154

É desse olhar que pretende ver bem, ver longe que se constrói o espaço narrativo
de transubjetividade. Nesse lugar de possibilidades surgem os múltiplos olhares. O olhar do
contemplador não pretende interpretar, mas ver-sentir por puro desejo de fruição. Quando
Bela ilumina o rosto da Fera com a intenção de desvelar o mistério é surpreendida por uma
beleza tão grande que a curiosidade transforma-se em contemplação. Esse é um olhar que
redefine a cena e conduz para outros lugares.

Certamente, que o leitor ao se projetar num espaço como o da Bela e da Fera, será
provocado para esse olhar de ampliação, onde o mundo é mais do que significado:
“resignação”. Então, o sofrimento desse par que se completa entre o horror e a beleza alcança
o que não se pode ver com o olhar passageiro. O poético convida à contemplação e por isso
faz ver longe e claro.

Quando as crianças são introduzidas no mundo das narrativas não devemos perder
de vista que a função do literário é o de “fazer ser”, sendo no outro. Quando questionamos o
fato de uma história como A Bela e a Fera atravessar culturas com o mesmo poder de
encantar e seduzir pessoas e pessoas, estamos diante de uma das mais fortes características da
obra literária que são a atemporalidade e universalidade. O espaço simbólico oferecido pela
literatura autoriza a criança o “arriscar-se” numa outra realidade.

Entrar em contato com o outro faz parte de uma possibilidade concedida pelos
personagens, que ao viverem uma vida própria e singular, são independentes, mas em
contrapartida estão atadas ao leitor por laços de identificação, pois existe um Isso na
existência das “pessoas” que é de ordem humana e universal. Assim,

“O Personagem pode, então, emprestar ao receptor sua


grandeza e seus limites, vislumbrando outras formas de viver e
ver o mundo, o que uma simples existência não daria conta de

154
BACHELAR, Gaston. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1986, pp. 175, 176, 178.
237

experimentar. Um outro fator determinante na atração da


narrativa é que enquanto o texto se preocupa em destacar um
evento, um momento de crise, o receptor se preocupa em
antecipar o desenvolver das ações e imaginar que significado
elas poderiam ter.”155

Estando no espaço aberto da ficção estamos num campo fértil, tal como as várias
realidades que se vive diariamente. Entretanto, são os personagens que nos ensinam a
subverter uma determinada ordem e desafiar o mundo.

Se o conto de fadas tem o poder de conduzir para tantos mundos, apontando


aquilo que deverá fazer parte da nossa aprendizagem importante, então é natural que ele
suscite em cada criança uma leitura diferente e que diz respeito ao seu mundo interior. Por
outro lado, como esse gênero da narrativa, também nos oferece o “final feliz”, fica mais
“fácil” se viver o bem e o mal que estão na base do Isso. Se a criança conseguir compreende-
se nessa dimensão, será capaz de transcender os conflitos e encontrar a felicidade, tal como
acontece em A Bela e a Fera, pois:

“(...) sofrer provações, encontrar perigos, conseguir vitórias. Só


desta forma podemos dominar nosso destino e conquistar nosso
reinado. (...) Tornando-se verdadeiramente ele mesmo, o herói
ou heroína torna-se digno de ser amado. Mas, embora este
auto-desenvolvimento seja meritório, e possa salvar nossa
alma, ainda não basta para sermos felizes. Para isso, devemos
ultrapassar o isolamento e formar um elo com o outro. (...) Eu
sem o Tu vive uma existência solitária. (...) embora seja
maravilhoso sermos amados, nem mesmo ser amada por um
príncipe garante a felicidade. Encontrar a realização pelo amor
e no amor requer mais uma transição.”156

155
AMARILHA, Marly. Estão mortas as fadas? Literatura Infantil e Prática Pedagógica. Rio de Janeiro:
Vozes, 1997, pp. 19, 20.
156
BETTELHEIM, Bruno. Op. cit., p. 318.
238

Então, compreendemos o porque de Bela não realizar a sua passagem no momento


em que ilumina a face da Fera. Descobre-a sendo quem verdadeiramente é, mas ainda não está
pronta para desfrutar com maturidade os benefícios do amor.

Precisa, ainda, de mais uma transição para sentir-se com coragem e força de viver
o amor de todas as formas que o dignifiquem. A busca de identidade não é algo que tem fim,
ela permanecerá durante toda a existência, porque o ser humano está sempre por fazer-se. O
processo de construção de identidade é alicerçado no período da infância, mas é contínuo
porque implica numa desconstrução permanente. A preparação da criança para viver a
transformação esperada e positiva é viável pela força do amor. A ficção pode ser um belo
espaço de estímulo à criança para que ela domine as dores do reino do Isso,

É provável que no final desse conto, a criança se sinta recompensada, pois mesmo
tendo sido revirada nos seus sentimentos mais íntimos, o alívio surge de lá, onde pode haver o
reconhecimento do si, enquanto desdobramento do Outro, ainda que seja uma experiência na
qual se depare com o horror ou mesmo com a inacessibilidade do que dói para sempre.

Não se pode viver a dor de uma transformação quando não se está devidamente
preparado para assumir uma condição diferente, então A Bela e a Fera são testados no desejo
de mudança. Ora, se existe o desejo de mudança, então o caminho deve ser preparado para
que um novo período da vida seja aceito e compreendido.

Depois de tantas dores, chega a celebração. Este é o momento ápice que abre a
vida para novas convivências, compromissos e responsabilidades. É também aquele instante
da passagem, apreendido com encantamento porque é do domínio da fantasia, daquilo que é
possibilidade de criação e transubjetividade. Ponto de autonomia do sujeito leitor que se
reconhece no espaço simbólico, pois:

“(...) o fantástico ensina a ver e escutar, a pensar e a viver por


si mesmo, fora do rebanho, oferece um belo risco a correr (...),
pois a descoberta do belo quebra clichês, torna-nos exigentes,
fertiliza.”157

157
HELD, Jaqueline, L’imaginaire au pouvoir. In: AMARILHA, Marly. Estão mortas as fadas? Literatura
Infantil e Prática Pedagógica. Rio de Janeiro: Vozes, 1997.
239

O trajeto fantástico vai sendo tecido desde os primeiros momentos do encontro


entre narrativa e leitor. Contudo, o momento que estabelece a passagem de um estado ao outro
é presentificado pelo momento final, quando no conto de fadas é celebrada a vitória e a
conquista dos heróis. Assim, a criança experimenta o sentimento de que mesmo que a vida
ofereça dificuldades somos capazes de superá-las.

O fantástico deve nos possibilitar reflexão, como também garantir uma passagem
significativa de um estágio de maturidade para outro. Por existir uma certa necessidade de
viver narrando a vida, então os dramas humanos vão se tornando o eixo dessas histórias que
fazem compartilhar com o outro o sentido da própria existência.

Quando uma criança nasce ela surge com a possibilidade de “olhar-sentir” o


mundo para atender demandas que são de ordem interna, mas que são estimuladas pelo
ambiente no qual está inserida. Assim, outros farão parte das suas histórias e serão a base para
a formação de novas sensibilidades. Sem dúvida, os contos de fadas são passaporte para que
se viva com força e intensidade o bem e o mal.

No entanto, é preciso que na etapa final da narrativa, a criança sinta alívio e


esperança para celebrar a vida, o que acontece quando vê suas expectativas da conquista por
um bem maior serem atendidas pelo “encontro final entre os heróis”, tal qual acontece com
Bela e a Fera que se casam e vivem felizes num reino qualquer.

A celebração no conto de fadas nos aponta o caminho, onde se pode ver o outro
lado da fronteira estabelecida entre o real e imaginário pelo reconhecimento de que somos
todos iguais, mesmo sendo diferentes. Pois, esse é o momento que atende à expectativa
amorosa de cada leitor. Afinal, desejamos merecer esse lugar da conquista por mais que isso
nos pareça difícil.

A criança vibra com o desfecho de A Bela e a Fera, não somente porque existe
uma transformação, mas também porque existe ali um ideal de amor a ser alcançado por cada
um, dentro daquilo que é possível. Mesmo depois que a Fera ressurge como príncipe, ela não
é esquecida . Inclusive, esse conto é sempre rememorado pela imagem da cena onde a Fera
pede para que Bela não a abandone.
240

É uma Fera que ama e que consegue o amor do eleito, visto ser capaz de
transformação, de generosidade e de aprendizagem, atributos necessários para o crescimento
de toda criança. Assim, partimos de um núcleo conflituoso, para o qual as personagens vão
inventando suas saídas até conseguirem estabelecer o ponto de viragem para que, depois de
muitas provas, retornem ao núcleo inicial, onde uma nova etapa surge, como sendo processo
de uma vida.

Assim, temos inicialmente uma imagem de perfeição, simbolizada por Bela, em


oposição a uma imagem feroz que passa a ser reconhecida com carinho porque pode ser
olhada na sua demanda de amor, pois:

“O afeto e a devoção da heroína é que transformam a Fera. Só


se ela amar verdadeiramente o animal ele se desencantará.”158

O casamento de Bela com o príncipe realiza o sentido do conto e provoca na


criança a percepção de que o verdadeiro amor é alcançado quando compreendemos que o
outro está em nós como presença viva do desejo. Mas para encontrar-se no amor é preciso
saber buscar uma resolução satisfatória para nossas angústias. Por isso, mesmo que a criança
tenha se identificado com o sofrimento das personagens isso não lhe bastará para que alcance
um sentido positivo pela vida. Para ser feliz é necessário amar e ser amado, pois somente o
amor é capaz de salvar. A Bela e a Fera é um conto que propõe o caminho para o amor,
mesmo que para tanto seja necessário sofrer e ultrapassar provas. Lembramos que:

“O desprazer original da ansiedade vira o grande prazer de


uma ansiedade encarada e dominada de modo bem
sucedido.”159

Assim, o leitor consegue chegar ao final da narrativa com alguma esperança de


que por mais que as dificuldades apareçam devemos ter a esperança de que tudo acabará bem.
Esse é o episódio que desejamos assistir e que no conto de fadas é metaforizado no “felizes
para sempre...”.

158
BETTELHEIM, Bruno. Op. cit., p. 324.
159
Idem, ibidem, p. 153.
241

Quando estamos no caminho da conquista do amor estamos também nos


preparando para a transformação desejada. A metamorfose faz parte de uma demanda
existencial, já que somos inconclusos, pois a natureza humana é dinâmica e contínua, inscrita
no conceito de ser inacabada e em permanente construção.

Caminhamos para a conclusão do nosso estudo sobre a dor- amor nos contos de
fadas por meio daquilo que consideramos como condição essencial para que a criança
compreenda-se como sujeito contemplador, capaz de um olhar novo, desafiador e
transcendente: a conjunção amorosa. Momento de travessia, no qual o casamento é mostrado
como solução final e etapa simbólica fundamental para a transição da dor-amor.

Antes de passarmos para nossas considerações finais gostaríamos de pontuar que


o lugar da cura é o da transferência. O amor é a possibilidade de uma transferência positiva,
portanto de cura. Sendo o espaço literário lugar da transubjetividade, entendemos que nele
podemos viver o indizível representado, paradoxalmente, pela palavra-metáfora que simboliza
a construção de sentido na busca por uma experiência que possibilita o Outro em nós.

Sendo assim, consideramos o conto de fadas como uma passagem para o “mais
além” de cada um, pois na sua riqueza simbólica é capaz de produzir a emergência de um eu
transformado, tal como acontece com a Bela, com a Fera e com todos aqueles que , ainda
buscam se encantar para reinventar a vida.
Conclusão
242

CONCLUSÃO

O mundo contemporâneo, mergulhado em profundas contradições existenciais


tem buscado um sentido para a vida que possa “garantir” entre outras coisas, a própria
existência. No meio de conflitos econômicos, éticos, morais e religiosos vivemos um período
de intensa despertença de tudo. O homem moderno vive de maneira instantânea e os dias
escapam-lhe velozmente. Os sentimentos são dissolvidos sem que exista apropriação daquilo
que é sentido, experimentado ou desejado. Tudo é embalado, etiquetado e consumido. Assim,
tudo é produto, inclusive pessoas e sentimentos, oferecidos nas grandes prateleiras do
mercado. Somos enfim, criaturas perdidas, alienadas de si mesmas e reduzidas ao não-ser,
dentro do caótico e desumano processo de reificação.

No meio disso, nos deixamos invadir pela reflexão sobre a dor-amor nos contos de
fadas e, provavelmente, muitos avaliarão como algo inútil, total desperdício de tempo e saber.
Afinal, para que servem tais conjecturas se o que menos importa nos dias atuais é um olhar
mais atento e desviado para tudo aquilo que é fantasia, sonho, imaginação e mesmo para as
coisas mais essenciais que preenchem nossa vida? Ora, se até a fantasia pode passar pelo
processo de industrialização, imaginem o resto! Estamos em todos os momentos sendo
engolidos, literalmente devorados por uma realidade totalmente instrumentalizada, na qual
temos que produzir e servir para que a nossa vida tenha um sentido e um significado.

Em contrapartida, diante desse sentir esvaziado de significado com o qual


estamos profundamente comprometidos, existe uma necessidade premente e atenta de se
levantar discussões em torno do imaginário, ético, moral, afetivo e poético, enfim ontológico.
Dentro desse conjunto, incluímos os contos de fadas por tudo aquilo que consideramos
anteriormente e, também, por acreditarmos que o futuro da humanidade depende daqueles que
estamos a formar, a construir.

Formar o gosto para a literatura significa investir na formação de novas


sensibilidades, na construção de um olhar diferente diante do mundo e da realidade histórica e
social, sobretudo para o conhecimento de si mesmo. O olhar para si mesmo de forma
apropriada ajuda a olhar para o outro de maneira mais ampla, o que torna possível entrar na
dimensão da alteridade e transubjetividade. Afinal, tudo inicia no mundo simbólico, desde
muito cedo, quando a criança ensaia seus primeiros exercícios de linguagem. A entrada no
243

mundo da representação é marcada pelo jogo, pelo simbólico e a infância é o “lugar” de onde
o homem falará de si mesmo e do outro num tempo que é eterno e inaugural. Por isso,
consideramos de fundamental importância que a criança encontre no seu ambiente familiar
um espaço motivador para a descoberta da leitura, pois sabemos bem que o gosto, o prazer
pela mundo da literatura tem seu início marcado pelas histórias contadas e encantadas no colo
da vovó ou da mãe, enfim de um adulto em quem se confia e ama. Assim, o prazer da leitura
mistura-se a uma experiência afetiva que depende de uma relação eu-outro estruturada na
cena familiar, pois:

“É essa estrutura que é ou não geradora de segurança para a


criança que cria a matriz simbólica de que ela necessita para
se situar no circuito das trocas humanas, com momentos de
harmonia, desarmonia, gozo e inventividade.”160

Compreendemos que quanto mais a criança entra em contato com o seu universo
simbólico, mais estará possibilitada de conviver com seu mundo interior, podendo aceitar-se
nos seus limites e diferenças, além de tornar-se aberta aos processos criativos. Portanto, se o
ambiente familiar oferece estímulos afetivos positivos, provavelmente a criança terá mais
condições de se tornar um sujeito adulto melhor.
Neste sentido, afirmamos a literatura como algo essencial ao desenvolvimento
intelectual e afetivo da criança, pois temos aí o pleno exercício das trocas afetivas, além de
muitas janelas para se olhar-contemplar o mundo (de dentro e de fora) de cada um de nós. É
assim, que a literatura “ensina” a ver e a criança é alguém que precisa aprender a olhar de
maneira larga sem sentir-se fragmentada ou mutilada. Antes de qualquer aprendizagem, é a
orientação para o “saber olhar” que situará o nosso corpo no espaço e no tempo e o literário
por conter em si um horizonte de imagens, pessoas, histórias e sentimentos que se
entrecruzam oferece mais do que enunciação: “anunciação” da guerra e da paz existentes em
cada criança, homem ou mulher.
Na literatura aprendemos a nos ver (reconhecer) para além do que já sabemos,
somos levados a desejar o oculto contido na vida do outro que é segredo e mistério também
em nós. Então, a fantasia se veste de pele, de sentimento e de busca , procura pelo oculto
contido em todas as vidas, em todos os suspiros de dor-amor. É disso que se constituem os

160
MANONI, Maud. Op. cit., p. 63.
244

contos de fadas. Sussurram segredos que vão transbordando pelo corpo e deslizando pela
alma até nos alcançar na falta, hiância no corpo simbólico presentificada pelo desejo
dilacerante e insólito de ser para sempre marca no outro.

A leitura dos contos de fadas nos propõe algo que é dessa natureza, uma
impressão segredada de que somos falta, furo-dor em busca da plenitude e consagração do
amor. Ainda, que se viva os piores dramas como: sentir-se abandonado, ameaçado, sozinho e
assustado, se temos interiorizados sentimentos de gratidão e amor, então estaremos salvos.
Assim foi com Vasalisa, com o Polegar, com o menino do Junípero e com Bela porque todas
estas histórias nos tocam no desejo que é sempre aplacamento de uma dor, de uma tensão.

A arte tem o poder balsâmico de nos colocar frente ao desejo e a liberação de uma
certa energia provocada por uma tensão, por isso quando estamos investindo no espaço da
“invenção artística”, reinventamos o mundo e estendemos a mão para nos unir ao outro, pois
aí estamos no simbólico que é o jogo estabelecido na verdade da ficção. Pois, se não
conseguimos aplacar a tensão então temos de criar outros meios, mesmo que
inconscientemente, de brincar com o desejo e assim encontrar apaziguamento. A proposta
feita pelos contos de fadas é sempre de apaziguamente, sem que se negue o horror da dor, da
morte, do medo e da angústia.

Quando resolvemos falar da conjunção amorosa no nosso último capítulo, fizemos


de propósito para que o leitor de certa maneira fosse provocado a olhar para a literatura como
sendo uma ponte que se ergue entre a representação (personagens, dramas e conflitos) e o
receptor com todos os seus sentimentos suscitados a partir desse encontro. Pois, ainda que o
literário nos apresente o grotesco, o absurdo, o ódio e a dor, isso acontece para que nesse
espaço o leitor se interrogue sobre o que ele é e seus mecanismos de criação e fantasia sejam
acionados pelo desejo de transformação e então, seja possível romper a fronteira da
banalidade e experimentar o sublime desta travessia que vai da dor para o amor.

Por tudo que os contos são capazes de provocar somos obrigados a olhá-los de
maneira diferente, pois quem “vive” um conto recebe o universo, daí o Lewis Carrol ter
afirmado que um conto é sempre um “presente de amor”. É provável que a experiência
poética vivida nos contos de fadas nos confronte com a dor e o sofrimento porque estes são
preparação para o amor como afirma o grande poeta alemão Rainer Maria Rilke ao dizer que
245

“Amar também é bom, porque o amor é difícil. O amor de


duas criaturas humanas talvez seja a tarefa mais difícil que nos
foi imposta, a maior e última prova, a obra para a qual todas as
outras são apenas uma preparação.”161

A Conjunção Amorosa apresentada na última parte deve ser o objetivo, o bem


maior a ser conseguido e por isso até chegar ao seu alcance temos de nos preparar, ultrapassar
provas e mostrar ser capaz de garantir a qualidade das relações humanas. É pelo amor que
transformamos, que erguemos sonhos e fundamos cidades. Não trata-se, apenas, do amor
entre um homem e uma mulher, mas sobretudo do amor pela vida, pelo outro e por si. Os
contos de fadas nos ensinam a ter o olhar da sedução, do desvio, do desejo para que no final
tenhamos o amor, a última e maior das provas a ser encontrada, a ser conquistada, porque o
amor é difícil. Implica em reviravolta, desconstrução e descoberta das nossas e alheias
fragilidades. Todo amor rememora a dor, pois lembra o primeiro objeto de amor perdido,
assim a sua busca nos é essencial, vital e visceral.
O espaço da literatura é labirinto do amor. Nele caminhamos pelas dores
adormecidas, pelos sentimentos despertencidos e estranhos e de repente nos vemos acolhidos
numa alma nova que habita no centro de uma flor. Então, renascemos com um novo sentido e
o desejo de nos encontrar no outro de nós. Segundo Lacan, o que buscamos encontrar é
determinado nas vias do significante e essa busca “(...) situa-se além do princípio do
prazer”162, ou seja : para além da dor e do amor. É desse lugar que falamos e somos.
Embora, os contos de fadas sejam alvo fácil de muitos preconceitos, entendemos
que neles existe algo que vai além do prazer, que nos faz ver a “terceira margem do rio”,
portanto ler (contar-ouvir) estas histórias é dar continuidade a um gesto inaugural do processo
de humanização, situado na necessidade da arte como apropriação da realidade, do eu e do
outro. Então, viabilizar a leitura destas narrativas é poder presentear crianças, jovens e adultos
com pequenas poções de amor e de vida. Aliás, o desejo de quem educa e forma valores
deveria ser sempre o de ensinar a ver, a ser e a ler, porque somente assim será possível abrir
muitas janelas, conhecer muitas pessoas e mergulhar na profunda busca de um mundo novo e
melhor, porque é parte da condição estética inerente a todos nós. Toda criança gosta de

161
RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. Rio de Janeiro: Globo, 1989, pp. 55, 56.
162
MANONI, Maud. Op. cit., p. 61.
246

experimentar o maravilhoso, o belo e o poético, portanto negar tais narrativas é também


empobrecer muitas vidas, além de impossibilitar o contato com a herança cultural.

A investigação em torno da Literatura Infantil avança nos dias atuais,


principalmente ao que se refere aos contos de fadas e tal fato, propõe uma relação diferente
com o leitor infantil. É verdade que, na medida em que o respeitamos como subjetividade
capaz de produzir sentido e captar o inusitado da obra, nos empenhamos em oferecer o
melhor. Sem dúvida, a literatura infantil tem que ser lida como obra de arte porque nos
convoca para um espaço de efervescência de muitos discursos, trocas , descobertas e fruição.
Espaço singular para o exercício de alteridade.

Ora, dentro dos contos encontramos a polifonia necessária ao literário em tudo


aquilo que é possibilidade verbal, plástica, cênica, musical, afetiva, enfim artística. Temos
versos, rimas, canto, ditos populares, o místico e sobrenatural, literatura de viagem,
intertextos, imaginário popular, reflexão filosófica, fantástico e maravilhoso, entre outros
elementos que são capazes de provocar o sentido estético.
Assim, estamos diante de uma literatura que suscita o interesse de vários campos
de pesquisa, que resiste aos tempos e consegue encantar pessoas de todas as épocas e idades,
sendo universal e a-temporal. Narrativas que falam do homem, dos afetos e da vida de
maneira simples, mas carregada de significado porque cumpre uma das principais funções da
obra de arte, pois nos remete ao prazer e a transcendência. Sendo assim, nos unimos em coro
com inúmeros e renomados especialistas apontados por Janilto Andrade na sua tese Da Beleza
à Poética para dizer que:

“(...) a pátria do homem é o prazer. Sendo a obra de arte um


dos lugares da rememoração, ela é aliança de verdade e beleza
(...) [e] a beleza que se sente perante uma obra de arte (...)
resulta (...) da verdade secreta que nela existe velada ou
figurada(...).”163

Sendo os contos de fadas figuras poliédricas são capazes de suscitar diversos


olhares e muitas formas de apreensão. Assim, a interpretação destes seguirá sempre uma via

163
LOPES, Silvina Rodrigues. apud ANDRADE, Janilto Rodrigues. Da Beleza à Poética. Tese de
Doutoramento, UFPE, 2001, pp. 11, 12. (Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em Letras e
Lingüística. Universidade Federal de Pernambuco).
247

de mão dupla, sendo passíveis de inúmeras posturas interpretativas, sejam elas filosóficas,
sociais e antropológicas ou psicanalíticas.

Quando escolhemos refletir sobre os contos de fadas e a sua importância para a


vida cognitiva e afetiva das crianças, sabíamos que teríamos de optar por um modelo de
análise e de certa forma reduzir a grandeza de possibilidades de interpretação que este gênero
provoca. Todavia, um trabalho científico exige um certo grau de “enquadramento” diante do
objeto percebido. Assim, nos decidimos pela psicocrítica, pois aí nos sentimos à vontade para
caminhar pelos possíveis da literatura infantil, sem cometer exageros que pudessem
comprometer a grandeza poética deste gênero e também, por acreditarmos que as histórias só
interessam na medida em que, nelas ouvimos a nossa voz ressoar em conjunto com outras
vozes.
O campo da arte, por conseguinte o da literatura é o da intersubjetividade e a obra
deverá ser sempre o lugar da emergência de vários sujeitos, garantia do “mais-além” que
ultrapassa o devaneio do autor para ser desvelação do “não-dito” de cada leitor, pois

“O que estrutura essa relação intersubjetiva é tudo o que se


tece em torno do que é visto, e que remete ao essencial: o que
não está ali. O que não está ali pode ser ódio, que pode estar
subjacente como destruição do outro, constitui um dos pólos
da relação intersubjetiva. “Se o amor”, lembra Lacan, “aspira
ao desenvolvimento do ser do Outro, o ódio quer o contrário” e
o ódio pode ter com efeito a emergência de um delírio no
Outro.”164

Certamente, nos contos de fadas existe uma primazia pelos sentimentos, os que
têm como base o amor e os que encontram no ódio o seu caminho de consolo, escape e
retaliação. Daí, termos trilhado por este caminho na intenção de apresentar a importância da
reatualização destes afetos nas narrativas destinadas ao leitor infanto-juvenil. Pois, bem
sabemos o quanto descobrir e explorar o mundo interior é necessário para que se adquira
maturidade e sensibilidade, além de um olhar desviado que valoriza o imprevisível previsível
e que não surpreende.

164
MANNONI, Maud. Op. cit., p. 99.
248

Encontrar significado e dar sentido à existência, talvez seja o maior desafio que
temos de enfrentar enquanto sujeitos do desejo, enquanto meninos e meninas, homens e
mulheres. Todos os dias, buscamos resignificar a vida para que nela o mundo seja preenchido
de sentido. Provavelmente, o crescente interesse pelos contos de fadas tem suas raízes
também nesse universo desprovido de um significado maior, no qual nos sentimos dispersos,
impróprios e deslizantes, porque já não somos capazes de nos olhar, de viver com
profundidade a dor e o amor que nos inaugura como desejantes. Neste espaço inteverlar onde
habita a dor-furo, a qual nos referimos anteriormente, se delineia como uma hiância que diz
respeito à imagem do eu desde a sua primeira formação e de onde o sujeito falará, mesmo sem
consciência do dito ou interdito, já que muitas vezes estes escapam à razão, mas são capazes
de confessar a verdade de forma transfigurada, tal como acontece no mundo fundado pela
arte.
Nosso percurso, não resta dúvida, está preenchido por um dizer inconcluso,
inacabado, pois quanto mais respondemos, mais encontramos aberturas para outras passagens,
outras dúvidas surgidas da impossibilidade de delimitar a nossa abordagem, visto que ao falar
dos contos de fadas e da dor-amor nos deparamos com a essência da existência humana e
então, nos descobrimos. Como parte de integrante do grande mistério que é a vida. De certa
maneira, os contos analisados foram nos conduzindo, envolvendo-nos no pacto secreto entre o
texto, o lido e o vivido. Pacto de aliança e rememoração, possível apenas na singularidade do
espaço poético, porque aí estamos nas trincheiras da palavra que é verbum, linguagem
transformada que nos garante a transcendência, a travessia já que:

“(...) esperamos viver não só cada momento, mas ter uma


verdadeira consciência de nossa existência, nossa maior
necessidade e mais difícil realização será encontrar um
significado em nossas vidas. É bem sabido que muitos
perderam o desejo de viver, e pararam de tenta-lo, porque tal
significado lhe escapou. Uma compreensão do significado da
própria vida não é subitamente adquirida numa certa idade,
nem mesmo quando se alcança a maturidade cronológica (...) A
cada idade buscamos e devemos ser capazes de achar uma
249

quantidade módica de significado congruente com o “quanto”


nossa mente e compreensão já se desenvolveram.”165

Dai resulta, também, a nossa preocupação em fazer valer a importância dos contos
de fadas na formação das crianças, pois a busca de sentido pela vida não é algo que se adquire
na vida adulta, ao contrário disso, tem que ser capturado no período mais tenro da infância,
quando ainda se está em busca de uma imagem que dignifique o viver, o sentir e o ser. A
literatura, os contos de fadas oferecem um espaço simbólico cuja multiplicidade traduz a
pluralidade de sentidos e garante ao leitor o espaço de renascimento.

Do que falam todas as narrativas senão dos sentimentos, dos fracassos e das
conquistas? Do que falam todas as narrativas senão do homem, da mulher e de todas as suas
histórias? Nos parece que a frase é sempre a mesma e que fala da ausência, porque nos
remete para o lugar inacessível, de onde surgem todos os sentimentos com seus fantasmas da
dor, mas possíveis de regeneração por meio da gratidão, doação, e compaixão que integram o
amor.

Numa realidade desprovida de sentido é provável que a busca pelo sentir de


maneira mais inteira, no qual se possa ver o outro, seja a única e possível saída para que
exista paz e justiça social. Almejamos a transformação do banal em sublime, do feio no belo,
somente alcançável se nos preocuparmos verdadeiramente com a educação das crianças. Falar
de literatura para crianças é também apropriar-se dos processos psicopedagógicos, dai o
porque ao discutirmos a função estética dos contos de fadas não podemos nos isentar de falar
de educação e formação de valores. Outrossim, desejamos realçar que o papel da literatura no
período da infância é de fundamental valor, não dentro da perspectiva doutrinária e
moralizante, mas fundamentalmente pelo que pode suscitar enquanto fruição estética. A
literatura é sim aprendizagem, mas é uma forma diferente de aprender, porque está ligada ao
sentir e ao apreender-se naquilo que é diferença, poder ser outro , sendo o mesmo.

A nossa conclusão aponta para o inconcluso que constitui o caráter do nosso


objeto de estudo, em tudo aquilo que lhe é específico e, também, às várias possibilidades
lançadas a partir daí. Falar de literatura para crianças e seus aspectos psíquicos, afetivos,
éticos e estéticos aponta precisamente para o que é inconclusão. O objeto literatura faz parte

165
BETTELHEIM, Bruno. Op. cit., p. 11.
250

de uma complexidade que é de ordem do humano por isso destacamos o fato de que os contos
de fadas podem ser lugar privilegiado para a construção de um novo ser, principalmente é
uma das maiores expressões simbólicas de que o bem sempre vence o mal e por mais que
soframos diversas provas e muitas dores somos e seremos salvos pelo amor.
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ANEXOS
263

(Anexo 1)

Vasalisa: a sábia
268

(Anexo 2)

O Pequeno Polegar
280

(Anexo 3)

O Junípero
289

(Anexo 4)

A Bela e a Fera
294

(Anexo 5)

Textos em Versão Original

Jean Bellemin-Nöell
295

TEXTOS ORIGINAIS

VERSÃO EM FRANCÊS

JEAN BELLEMIN-NÖEL. LES CONTES ET LEURS FANTASMES. PARIS: PRESSES


UNIVERSITARIES DE FRANCE, 1983.

Citação 20, Capítulo 1, p. 36

Seule variété dês belles-lettres à laquelle aient accès ceux qui ne savent pás lire, les
populations et les peuples sans escriture, les enfants jusq’à l’âge de l’école s’en font de
véritables festins. Ils les cuiellent, les boivent sur les lèvres de celles qui les racontent – nos
contes dits de fées sont d’abord l’affaire des femmes : aux hommes la saga des ancêtres, les
légendes qui cimentent le groupe, les mythes où s’incarne le sacré. Regardez ces auditeurs
dévorer des yeux le visage de la discuse : leur bouche déguste à mesure, elle mâchone les
mots, les répétant, les anticipant ; on croirait qu’ils savourent des sucreries. Ou qu’ils tètent un
lait sans quoi leur coeur crierait famine.

Citação 18, Capítulo 1, pp. 34, 35

(...) les contes satisfont une faim de nourritoures psychiques. Ils font fleurir des sourires de
béatitude lors même qu’ils devraient faire grimacer de peur ; au mieux, au pis, l’on feint de
frémir ou d’avoir pitié, on se félicite d’une heureuse solution (...) Seuls les adultes
raisonneurs imaginent qu’on se gargarise de l’héroine sauvée, de francés qui si marient, du
pauvre hère cousu d’or ; les enfants savent que le succulent, le croustillant, c’est la grand-
mère engloutie, la fillete mise en pièces, la bête étripée et le ventre rempli de briques.
296

Citação 22, Capítulo 2, pp. 41, 42

Là réside le secret de la formule merveilleuse, Il était une fois... Quelque chose se produisit
une fois, une seule, je le sais ; comme je sais que je ne le verrai jamais se reproduire, ni même
réapparaítre sous les yeux de mon souvenir. Et il a existé un jadis où cela était réel, était du
réel, le réel ; je ne le savais pas, je n’étais pas assez moi-même pour le vivre vraiment. Une
fois, tellement autrefois que ce n’est ancune fois : c’etait si bien à l’imparfait que cela n’a
jamais disparu tout en s’étant même pas achevé. Cela revient, donc, comme impossible et
nécessaire. Comme l’etendue et l’étirement du présent reportés dans une mémoire enfuie,
rapportés à une mémoire enfouie. Notre Il etait une fois, qui ne perd sous aucun prétexte sa
majuscule initiale où se marque l’absolu du commencement, est l’emblème du caractère
historié de notre psyché : un décor ornemental avec personnages, et l’inscription de notre
existence dans une histoire que la dérborde, que l’enferme dans un cercle ouvert aux deux
bouts, celui de l’avant, celui de l’après. Nos fantasmes sont en ce sens notre historiation
première.

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