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Dissertação Darcylene Domingues

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE – FURG

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO – PROPESP


INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E DA INFORMAÇÃO – ICHI
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – PPGH
MESTRADO PROFISSIONAL EM
HISTÓRIA, PESQUISA E VIVÊNCIAS DE ENSINO-APRENDIZAGEM

NAVEGANDO PELAS ÁGUAS TRÁGICAS: VOZ FEMININA E


RELAÇÕES DE PARENTESCO EM MEDEIA DE EURÍPIDES

DARCYLENE PEREIRA DOMINGUES

RIO GRANDE
2019
DARCYLENE PEREIRA DOMINGUES

NAVEGANDO PELAS ÁGUAS TRÁGICAS: VOZ FEMININA E


RELAÇÕES DE PARENTESCO EM MEDEIA DE EURÍPIDES

Trabalho apresentado como requisito para


aprovação de Defesa do Programa de Pós-
Graduação em História, Mestrado Profissional
em História, da Universidade Federal do Rio
Grande – FURG, sob a orientação do Prof. Dr.
Jussemar Weiss Gonçalves

RIO GRANDE
2019
DEDICATÓRIA

Dedico esse trabalho em especial a minha


família, mãe e pai que lidaram com a minha
ausência em momentos de estudo.
Conjuntamente meus amigos pelo suporte e
apoio nessa caminhada. E a pessoa especial
que recentemente se tornou a minha luz
salvadora nessa tempestade.
AGRADECIMENTOS

Primeiramente, agradeço as pessoas que em todos os momentos estiveram ao meu lado,


nessa pequena e inicial caminhada de vida, de escrita e pesquisa, minha mãe Doraci Antunes
Pereira e o meu pai de coração Xisto Costa Filho. A presença de vocês e as palavras de força
nos momentos difíceis foram e sempre serão fundamentais para minha persistência. E por isso
sempre afirmamos que não são os laços de sangue, mas os compromissos sentimentais que
determinam o valor de uma família!
Agradeço a Universidade Federal do Rio Grande pelo incentivo na minha permanência
por meio de bolsas e estágios que puderam proporcionar a ida a eventos e compra de livros para
o referencial teórico e principalmente ao Programa de Pós-Graduação em História, Pesquisa e
Vivências de Ensino-aprendizagem que possibilitou o contato com professores de diferentes
áreas das humanidades e que engrandeceram minha vida e pesquisa nos momentos de aula,
debates e nos cafés recheados de discussões.
Em especial agradeço ao meu professor-orientador que foi um mestre nessa jornada,
seus conselhos e falas foram fundamentais para o meu processo de amadurecimento e escrita,
suas palavras muitas vezes foram como caminhos luminosos traçados na escuridão do desespero
dos prazos. O professor Jussemar Weiss Gonçalves foi e é um dos mais importantes docentes
de História que eu já tive, ele fez eu me encantar por essa área tão bela e descobrir meu potencial
de escrita.
E também a professora e amiga Júlia Silveira Matos que me instigou a pensar o Ensino
de História e a prática docente no seu grupo de pesquisa Ensino de História, Sentido e
Narrativas. Nesse grupo fiz amizades para vida toda e agradeço pelo sentimento de coleguismo
e família que criamos e assim cito o nome de alguns: Virgínia Xavier, Eliane Sória e Zonete
Alves. Além disso, os colegas de graduação na Licenciatura que são além de amigas grandes
companheiras em conversas e comilanças: Aline Moura, Sophia Papacostantino e Rayane
Castro.
Agradecemos também a disponibilidade da banca para a leitura e avaliação do trabalho
que está sendo construído, e em especial a professora Marlen Martino pelas arguições na banca
de TCC que inspiraram a continuação e nomeação dessa dissertação.
Após a perda inesperada da minha mãe, acreditei por alguns momentos que não teria
força para continuar a escrita da presente dissertação. Me questionei em diversos momentos
como essas perdas nos fazem tanta falta e simplesmente me vi sem chão. Chorei por várias
noites em consequência da falta da pessoa mais importante da minha vida e cheguei à conclusão
que esse vazio existencial estará aqui, independente do que aconteça. Contudo, continuo porque
eu sei que esse era o querer dela, me ver era feliz e estudando. Em consequência dessa perda eu
consegui realmente perceber os verdadeiros amigos, aqueles que ficaram comigo nesse
momento de perda e que puderam de alguma forma ou outra me auxiliar nessa caminhada
necessária. Não quero citar nomes porque várias pessoas de diversas formas me auxiliaram,
com uma palavra amiga, com um abraço carinhoso ou estando comigo nos dias que foram
difíceis.
Para finalizar eu dedico toda essa produção a minha mãe e gostaria de verdade que ela
se sentisse orgulhosa pela minha conquista e principalmente da pessoa que ela me ensinou a
ser!
EPÍGRAFE

No soy ya uma mujer joven, pero sigo siendo


salvaje, eso dicen los coríntios, para ellos, es
salvaje la que no da su brazo a torcer. Las
mujeres de los coríntios me parecen animales
domésticos cuidadosamente amansados, me
miram como a um fenómeno extraño [...] Nunca
he olvida que um día me dijiste que, si me
mataran, tendrían que dar muerte además a mi
orgullo. Así era y así será, y sería bueno que mi
pobre Jasón se diera cuenta a tempo. (WOLF,
2014, p.19-20)
RESUMO

A presente dissertação tem por intenção debruçar-se sobre a uma fonte histórica
produzida no século V a.C, especificamente na cidade de Atenas, uma obra teatral escrita e
encenada pelo trágico Eurípides no ano de 431, a tragédia Medeia. Nesse sentido, a nossa
interpretação foi fundamentada paulatinamente a partir de uma problemática que utiliza a
categoria de gênero para realização de uma leitura especifica de Medeia. Além disso, decidimos
utilizar esse conceito pois a sociedade clássica apresenta uma organização social e política que
evidencia o masculino e atitudes referentes ao seu espaço, ou seja, o comum. Contudo, quando
interpretamos profundamente a tragédia Medeia podemos observar que de alguma forma ela
permite quebrar uma visão monocromática que reduz tudo a um antagonismo visceral, de
mulheres submissas e de homens senhores absolutos, estabelecendo papéis sociais distintos
para ambos os sexos. E é justamente esse transbordamento que a personagem realiza que nos
permite demonstrar através da escrita as discussões existentes no interior do texto trágico a
partir de um problema contemporâneo, a categoria de gênero. Neste sentido, dois tópicos são
basilares na presente pesquisa: primeiramente as relações de parentesco que alicerçam-se
justamente na problemática do gênero e posteriormente a produção de um lógos especifico ao
feminino.

PALAVRAS-CHAVE: Tragédia; Gênero; Lógos; Medeia.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 9

CAPÍTULO 1: PÓLIS E TRAGÉDIA................................................................................. 34


1.1 Contexto histórico da tragédia no interior da pólis ................................................... 35

1.2 Eurípides e as mulheres .............................................................................................. 43


1.2.1 Mulheres Euripidianas ....................................................................................... 46
1.3 Medeia de Eurípides ....................................................................................................56

CAPÍTULO 2: RELAÇÕES DE PARENTESCO: REALIZAÇÃO DO GÊNERO....... 63


2.1 As mulheres e domesticidade do feminino................................................................. 65
2.1.1 Medeia e o Coro de Mulheres ...........................................................................68
2.2 O masculino e Medeia .................................................................................................82

CAPÍTULO 3: MEDEIA AUTORA DE SI: VOZ FEMININA E O ESPAÇO


PÚBLICO...............................................................................................................................94
3.1 A voz feminina ......................................................................................................... 96
3.2 A voz de Medeia ..................................................................................................... 106

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 114


REFERÊNCIAS .................................................................................................................. 118
INTRODUÇÃO

O interesse em pesquisar as relações de gênero iniciaram no período da graduação em


História Bacharelado, na Universidade Federal do Rio Grande (FURG), especialmente nas
discussões vivenciadas no Grupo de Pesquisa Cultura e Política no Mundo Antigo 1 desde o ano
de 2014. Nesta ocasião, para escrita do trabalho de conclusão de curso decidimos nos
debruçarmos sobre a obra Medeia2, realizando uma análise de gênero, com abordagem para os
diálogos da personagem principal com o Coro feminino, composto pelas mulheres da cidade de
Corinto, e com os personagens masculinos Jasão e Creon. Nesse instante, conseguimos
visualizar que a personagem rompe, em diversos momentos, com a sua condição social de
mulher, pois a obra apresenta Medeia declaradamente bárbara, com costumes não gregos, sendo
a responsável por todo o ritmo e desfecho da peça, desde a sua primeira entrada de cena.
Pudemos observar, naquele instante, que a princesa direciona seus diálogos para o Coro
feminino, que se aproxima cenicamente para frente do oikos3 da personagem. Essas mulheres
ouvem seus questionamentos a respeito dos costumes gregos e, principalmente, suas críticas
sobre a função social e o papel do feminino dentro da cidade, além das lamentações e súplicas
da personagem. Ainda no trabalho de conclusão de curso, demonstramos que Medeia possuía
um característico potencial interpretativo, devido a sua métis4 corroborada em diversos
instantes ao longo da obra, além de seu passado mítico, que é constantemente relacionado com
suas práticas mágicas. Assim, a nossa interpretação realizada anteriormente, constitui-se em

1
Grupo de Pesquisa cadastrado no Diretório de Grupos de Pesquisa – CNPq e que tem como coordenador o Prof.
Dr. Jussemar Weiss Gonçalves
2
O trabalho apresentado para conclusão de curso se denominava “Medeia: da dor do abandono a ruptura com a
sua condição de mulher”.
3
Denominação utilizada que se refere ao modelo de organização social das cidades gregas, do período arcaico ao
período clássico.
4
Métis é filha dos titãs, Tétis e Oceano. Assim, tem o poder de se metamorfosear, podendo assumir qualquer forma
que deseja, como outras divindades marinhas. A deusa Métis é a primeira esposa de Zeus, segundo a mitologia, é
ela a primeira que o deus leva para o leito após a guerra com os titãs. Na obra Teogonia, escrita pelo poeta Hesíodo,
o autor afirma que a soberania de Zeus perante a guerra deve-se a permanência de Métis, porque ela sabe mais
coisas que qualquer deus ou homem mortal. Em consequência dessa união, Métis engravida e nesse momento Gaia
profetiza que esta teria dois filhos: a primeira, de nome Tritogenia, que seria igual a Zeus em força e sabedoria,
mas o segundo se tornaria o novo rei dos homens e dos deuses. Zeus, temendo essa profecia, engole-a, dessa forma
garantindo sua supremacia e perenidade no Olímpio. Aprisionada nas entranhas de Zeus, essa deusa tem fim brutal
à sua carreira mitológica. E como nos afirma Vernant “esposando, dominando, engolindo Métis, torna-se mais do
que um simples monarca: ele se faz a própria Soberania” (VERNANT, 2007, p. 99). Zeus, temendo que a profecia
de sua mãe viesse a se concretizar, engoliu a deusa viva, tendo depois como fruto dessa relação Atena, saída já
adulta e armada para a guerra de sua cabeça, o "parto" de Atena teria sido realizado por Prometeu e Hefesto, que
abriu a cabeça de Zeus com um machado.
9
uma leitura de gênero, demonstrando as rupturas no discurso da personagem Medeia,
principalmente em choque constante com o masculino.
Atualmente, no mestrado em História, pela mesma Universidade, continuo participando
desses diálogos, em especial na linha de pesquisa intitulada Gênero e Sexo no Mundo Antigo5.
Desse modo, para realização dessa dissertação, decidimos permanecer utilizando como fonte a
tragédia Medeia, escrita e encenada em Atenas, no ano de 431 a.C, pelo trágico Eurípides. E
nesse momento, devido a maior maturidade investigativa e, principalmente, fundamentada num
maior contato com novas leituras a respeito da temática, determinamos focar especialmente na
figura do feminino que é construído na encenação.
Medeia é uma peça que demonstra atitudes vinculadas ao femininos 6 e que,
consequentemente, evidencia tanto os limites da construção da mulher naquele período
histórico como também algumas rupturas expressivas dentro do sistema da pólis7. Para o nosso
estudo, primeiramente enfatizamos a presença do Coro feminino, personificação das mulheres
moradoras da cidade portuária de Corinto 8, local de exílio da família9 de Jasão. Lembramos que
essa cidade fora escolhida pelo herói após todo percurso da expedição dos Argonautas 10, pois a
nau nomeada de Argo, teria sido conduzida imediatamente por Jasão para cidade de Corinto,
na qual prestaria homenagem ao deus Poseidon. O Coro feminino, que pronuncia seus
posicionamentos em cena, é um personagem coletivo, que segundo Vernant (2005) possuía o
papel de exprimir os temores da cidade, suas esperanças, interrogações e julgamentos, por isso
possui destaque na tragédia. Desta forma, vemos o Coro, em diversos momentos, compadecido
com a dor de Medeia, pois somente elas, as mulheres, poderiam entender a dor do abandono

5
Grupo esse coordenado pelo Prof. Dr. Jussemar Weiss Gonçalves e cadastrado no Diretório de Grupos de
Pesquisa – CNPq.
6
Neste sentido, citamos para exemplificação o trecho compreendido entre os versos 215 a 265 no qual Medeia
perante ao Coro questiona o papel social atribuído ao feminino, citando o casamento, o dote, o silenciamento, o
divórcio, o parto e as limitações espaciais dentro da pólis
7
Compreendemos que pólis está para além da constituição de seu território denominado como Cidade-Estado, ela
também é expressão e convivência da comunidade humana e como afirma Vernant “o aparecimento da pólis
constitui, na história do pensamento grego, um acontecimento decisivo. Certamente, no plano intelectual como no
domínio das instituições, só alcançará todas as suas consequências [...] a vida social e as relações entre os homens
tomam uma forma nova, cuja originalidade será plenamente sentida pelos gregos” (VERNANT, 1984, p. 34).
8
Cidade localizada na região do Peloponeso.
9
Família está constituída por Jasão, Medeia, Mérmero e Medeio em algumas versões míticas, Graves (2018).
9 Informações contidas no mito Argonauta e juntamente com Medeia, veja os seguintes autores: Robert Graves e
Junito de Souza Brandão que se encontram nas referências ao final da dissertação.
10
Informações contidas no mito Argonauta e juntamente com Medeia, veja os seguintes autores: Robert Graves e
Junito de Souza Brandão que se encontram nas referências ao final da dissertação.
10
além de cenicamente estarem dispostas na frente do oikos11 ouvindo os clamores da princesa.
Segundo Nólibos, esse feminino vive “num Estado em que a política patriarcal atravessa os
interesses do Estado, atingindo os corpos e a história das mulheres” (NÓBILOS, 2017, p. 17).
O Coro realiza na tragédia um papel de crítica e reflexão com os personagens, expressando não
apenas uma certa visão do convencional como também se colocando em oposição aos
personagens, como podemos notar nesta obra. O Coro pressiona os personagens na busca de
sua verdade, de seu ponto de vista, busca revelar aos espectadores-cidadãos o que querem os
personagens com suas ações.
No outro extremo do palco, no interior do oikos, temos Medéia nascida na região da
Cólquida12, terra agraciada com o velocino de ouro, pele de um carneiro prodigioso e alado.
Uma personagem individual que, às vezes, é caracterizada com expressões fortes e cheias de
sentido, que tentam definir a totalidade da personagem. Brandão, por exemplo, afirma que
“Medeia, em tudo que fazia, sempre colocou a paixão como fio condutor das suas ações”
(BRANDÃO, 2015, p. 199). Logo, suas atitudes terrivelmente desmedidas, contudo muito bem
arquitetas, demonstram o poder de destruição do feminino quando os seus sentimentos são
ofendidos por um homem. Ressaltamos que esse poder mencionado é característico de um
estigma que associa o feminino ao caos, a destruição e, consequentemente, se apresenta como
uma tradução contemporânea e limitante 13.
É preciso lembrar que a tragédia está ligada a um tipo de convivência específica na pólis,
uma forma inaugurada pelos gregos entre os séculos VIII e VII a.C., favorecendo segundo
Vernant “uma extraordinária preeminência da palavra sobre todos os outros instrumentos de
poder” (VERNANT, 1984, p. 34). Assim sendo, a palavra, peithó, a força da persuasão, se torna
instrumento político no meio social largamente utilizado, principalmente em Atenas, a cidade
das palavras “logopolis” (GOLDHILL, 1986, p. 57). Consequentemente, as manifestações
sociais e artísticas são realizadas pela força da palavra e a pólis só existiria devido às instituições
de domínio público, como por exemplo, a ágora, as assembleias e o teatro.

Visando a manutenção desse sistema políade, para além da oralidade, outras estéticas
eram construídas, esse é o caso das tragédias gregas, que eram escritas para o teatro, que se

11
Este trabalho segue as normas de transliteração dos termos em grego, de autoria de Ana Lia do Amaral de
Almeida Prado, publicados na Revista Clássica v. 19, n. 2 (2006), pg. 198-199, da Sociedade Brasileira de Estudos
Clássicos – SBEC.
12
Região ao sul do Cáucaso e a leste do mar Negro.
13
Ao utilizarmos a expressão “contemporânea e limitante” estamos nos referindo as dicotomias criadas ao redor
da personagem.
11
apresentou como um espaço que viabilizava uma encenação das práticas necessárias ao
convívio humano. A tragédia se torna produto e produtora de uma realidade isonômica,
elemento fundamental para o exercício da palavra, já que expressa a concretização do universo
do diálogo. Na verdade, ela se torna elemento fundamental para a realidade isonômica pois
introduz os cidadãos em uma forma mental necessária a este tipo de convívio. O
reconhecimento da importância na elaboração das decisões da palavra de um na ação de outro.

Nesta acepção, a tragédia poderia possuir um sentido paideutico14 já que pode ser
interpretada como comparticipe na formação da mentalidade dos atenienses no século V 15. Esse
processo de formação dos indivíduos na sociedade grega era construído no público, diante
disso, o teatro é visto como um lugar onde os cidadãos aprendiam, de certa maneira, jogos
mentais necessários para a convivência na pólis. Neste sentido, segundo Gonçalves “PAIDÉIA
E POLITÉIA são conceitos construídos em um mesmo esforço de entendimento da condição
humana para além de uma percepção platônica, já que, para ele, os deveres dos indivíduos, as
noções de bem e de mal dependem dos fins perseguidos pela cidade” (GONÇALVES, 2004, p.
170). Nesse contexto, a pólis se apresenta como uma comunidade pedagógica, pois a politéia
não era simplesmente uma abstração, visto que “eram os cidadãos em ação que davam sentido
a cidade” (SILVA, 2016, p. 40). Nesta lógica social, a tragédia se torna um elemento central na
construção do cidadão, uma vez que ela é encenada, escrita e financiada por cidadãos, e,
principalmente, porque efetiva o espetáculo no interior da pólis com questões contemporâneas
a sua convivência, como corroborado por Segal a tragédia é um “espetáculo citadino” (1994, p.
193).
E ao nos debruçarmos a respeito desse processo de formação, visualizamos uma
distinção muito específica entre o masculino e o feminino. Os homens 16 eram educados para o
convívio na esfera pública, diferentemente das mulheres, uma vez que suas atividades se
realizavam a partir do exercício da palavra, e por isso eram iniciados nessa prática por outros
homens. O caso de Coriolano, um jovem criado somente pela mãe, é um exemplo claro do que
foi aludido, pois “a paidéia paterna teria conseguido o melhor de sua força de caráter e da sua
energia” (LORAUX, 1994, p. 21) e, principalmente,

14
Esse posicionamento também é corroborado por Lesky que afirma ocorrer uma “intenção educadora no poeta
trágico” (LESKY, 1976, p. 36).
15
As datas referentes a produção trágica são a.C.
16
Para exemplificar a afirmação citamos Funari “Já os rapazes, começavam o treinamento para o serviço militar.
A caça, para eles, era um treino para a guerra, assim como as competições esportivas de que participavam. A
educação dos rapazes consistia no conhecimento das letras, da poesia e da retórica, ainda que se pudesse seguir e
continuar a instrução, com o estudo da Filosofia” (FUNARI, 2002, p. 34).
12
Dotado com três das virtudes cardiais, falta a Coriolano a sophrosúne (prudência),
todavia a única virtude que o pensamento grego, e sem dúvidas e reticências múltiplas,
aceita conceder também as mulheres. No caso presente, contudo, a mãe nada poderia
dar ao filho bem-amado, já que a sophrosúne do homem, completamente diferente da
casta sophrosúne feminina, é cívica. (LORAUX, 1994, p. 21)

Desta forma, somente a educação políade, marcadamente masculina, daria recusa aos
excessos, por isso no caso de Coriolano “decididamente porque lhe faltou pai – é incapaz de
relações de troca com os seus concidadãos” (LORAUX, 1994, p. 21). Posto isso, o exercício da
cidadania e, principalmente, da peithó são instrumentos marcadamente masculinos dentro da
cidade.
A formação que as mulheres 17 recebem, é comparticipe da masculina, desse modo
observamos uma preparação para o casamento e a maternidade, pois segundo Loraux “A mulher
só realiza o seu télos (o seu objetivo) quando dá à luz e, embora não haja cidadania ateniense
no feminino a maternidade tem pelo menos o estatuto de atividade cívica” (LORAUX, 1994, p.
17). Logo, o feminino participa da cidade por meio dos seus filhos legítimos, assegurados
através das relações de parentesco, e não por meio de uma produção discursiva intelectual e
política, como o homem. Entretanto, no transcorrer da tragédia, Medeia demonstra domínio
sobre a sua capacidade de intervenção no universo masculino, a partir de um ponto de vista
singular e próprio, o que é personificado na sua ação.
A medida que notamos que a tragédia nos fornece de forma clara a construção de um
mundo no qual homens e mulheres ocupam espaços diferenciados e hierarquicamente
determinados optamos por uma análise a partir da perspectiva de gênero. Entendemos a
categoria de gênero como algo relevante devido as construções sociais que foram determinadas
historicamente para cada sexo, como nos demonstra Scott “gênero é um elemento constitutivo
de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma
primeira de significar as relações de poder” (SCOTT, 1990, p. 86), assim são construídas e
representadas social e historicamente. Dessa forma, o gênero se realiza socialmente a partir de
um terreno, no qual, ele se manifesta, nesse caso as relações de parentesco marcadamente
androcêntricas. Gênero é um produto de um determinado tipo de relação, que segundo Butler

17
O autor também afirma a respeito da diferenciação da educação: “As mulheres gregas arrastadas viviam
separadas dos homens em cômodos diferentes reservados a elas dentro da casa, chamados de gineceus, onde
ficavam confinadas a maior parte do tempo. As mansões da elite eram divididas em duas partes, masculina e
feminina. As meninas também pouco contato tinham com os meninos depois da primeira infância, como mandava
a "boa educação". Elas tinham brinquedos que se referiam à vida que teriam como adultas, basicamente como
mães e donas de casa, dedicadas à costura da lã, ao cuidado dos filhos e ao comando dos escravos domésticos.
Quando chegavam à adolescência, as meninas participavam de cerimônias que as preparavam para o casamento;
as garotas de famílias com mais recursos podiam aprender também a tocar e dançar” (FUNARI, 2002, p. 34).
13
perpetua as regras do parentesco, portanto, “ambas as posições, masculina e feminina, são
instituídas por meio de leis proibitivas que produzem gêneros culturalmente inteligíveis”
(BUTLER, 2018, p. 61).
Deste modo, articulamos a problemática da dissertação: os personagens femininos da
tragédia, o Coro e a princesa Medeia, pertencem de igual maneira ao universo androcêntrico da
pólis? Visando responder essa questão, explicitamos algumas hipóteses de trabalho que
nortearam nossa pesquisa: primeiro, as mulheres, Coro e Medeia, possuem significância e
implicação diferentes nas relações de parentesco dentro da sociedade políade, pois as coríntias
são mulheres consideradas legítimas diferentemente de Medeia, fato justificado na atitude de
Jasão buscar uma nova união. E em segundo, essas mulheres, Coro e Medeia, aproximam-se
em diversos momentos no discurso trágico especificamente no momento das lamentações sobre
suas próprias dores, entretanto afastam-se justamente no momento em que Medeia abandona a
forma de ação feminina instituída pela sociedade androcêntrica, isto é, as lamentações e passa
a ter uma atitude ativa e de decisão sobre si mesma.

Medeia – Medeias?

A figura feminina denominada Medeia18 fez-se muito presente no imaginário coletivo


na Antiguidade e, desta forma, observamos que ela atraiu distintos autores, que se dedicaram a
retratá-la, a partir de suas próprias concepções e interesses. Neste sentido, encontramos a
princesa entrelaçada, nos relatos da expedição dos Argonautas, com a figura de Jasão na
mitologia grega, posteriormente representada na poética e na encenação trágica e, por fim, em
algumas produções latinas. Além disso, contemporaneamente, permanece seduzindo leitores,
dramaturgos, cineastas 19 e pesquisadores que decidem mergulhar no mito Medeia e construir
para si uma nova interpretação.

A maioria das indagações, referentes a personagem, está centrada na sua representação


cênica, construída pelo trágico Eurípides, no ano de 431. A partir dessa poesia, reverberam
diversas interpretações, algumas se dedicam a demonstrar que Medeia era motivada pelo

18
Afirmamos inicialmente que nosso interesse nesse tópico é indicar autores e interpretações a respeito da
personagem Medeia. Nesse sentido, não buscamos uma análise profunda das diversas representações existentes,
uma vez que, cada fonte é única e apresenta um contexto de produção especifico, principalmente as fontes romanas
que aqui não serão profundamente comentadas.
19
Estamos nos referindo especificamente a obra cinematográfica de 1970, do diretor e escritor italiano, Pier Paolo
Pasolini.
14
páthos20, assim o crime contra seus próprios filhos é interpretado como um efeito do sentimento
profundo e feroz que a princesa sentia. Evidentemente, o fato de Eurípides ser caracterizado,
por muitos escritores, como um poeta dedicado a demonstrar as dores humanas, acrescenta na
justificativa. Nesta lógica, Jacqueline Romilly em seu livro A Tragédia Grega, se dedica
especialmente num capítulo intitulado Eurípides ou a tragédia das paixões a demonstrar que
“Os heróis de Eurípides são vítimas de todas as fraquezas humanas: alguns obedecem às suas
paixões, e esta influência da paixão é descrita com realismo” (ROMILLY, 2008, p. 126). Sendo
assim, esse sentimento exagerado de melancolia, muitas vezes narrado como dor profunda,
atinge a personagem que multiplica a potência das suas ações justamente por causa do páthos.
Citando novamente Romilly, evidenciamos a sua interpretação:

Medeia é o drama da mulher abandonada e dominada pela vingança: esta vingança é


monstruosa, visto que, depois de ter feito perecer a jovem princesa que tomara o seu
lugar, Medeia acaba por degolar os seus próprios filhos. Certamente ela é bárbara; ela
é feiticeira; mas há nela uma perversidade – uma mistura de astúcia e de violência,
que ultrapassa em muitas estas explicações. Ela é uma Clitemnestra que se debruça
sobre o próprio coração, que vemos sofrer, querer, fraquejar e, depois, deixar-se
arrebatar. Ela é paixão. (ROMILLY, 2008, p. 127)

A historiadora, nesse trecho, enfatiza duas características da personagem: a sua condição


de bárbara e de ser possuidora de uma sabedoria particular, destinada ao feminino, expresso em
suas ervas e filtros. Acreditamos 21 que a personagem Medeia, encenada na tragédia de
Eurípides, algumas vezes recebe uma caracterização muito simples 22 por parte de alguns autores
que afirmam que a princesa é motivada somente pelo sentimento de ódio transbordado a partir
do seu Eros, com isso as dores personificadas na tímoria23 e no páthos são vistos como peças
chaves nessas apreciações.

Acreditamos que essas leituras, que caracterizam a personagem movida somente por
esses sentimentos, são evidentemente androcêntricas porque relacionam um sentimento
considerado incontrolável e destrutivo justamente na figura do feminino. Consequentemente,
colocando um estigma sobre a personagem e, principalmente, acantonando novamente a mulher

20
Páthos é uma palavra grega que pode significar diversos sentimentos como paixão, excesso, passividade,
sofrimento ou doença. E, principalmente, devido a sua definição ser também ambígua é atribuída a Medeia.
21
Ressaltamos que essas interpretações serão contrapostas no capítulo 2 e 3 quando estudaremos profundamente
a tragédia Medeia
22
Neste sentido, citamos o autor Félix Jácome que afirma: “A Medeia euripidiana, base para qualquer referência
do mito de Medeia, é sobretudo multifacetada. Qualquer tentativa de simplificação através de dicotomias rígidas
como mortal versus imortal, bem versus mal, heroína versus heróis, bárbaro versus grego, não dará conta, senão,
de uma parte da personagem” (JÁCOME, 2010, p. 268).
23
Para título de exemplo, citamos a interpretação dos autores Margarida Pontes Timó e Ângelo Bruno Lucas de
Oliveira, o no artigo intitulado Tímoria e páthos em Medeia, de Eurípedes.
15
como ligada as forças cegas da natureza. Bem como, individualizar exclusivamente o
sentimento da personagem, deixa um abismo interpretativo para análise da racionalidade de
seus atos, pois se agimos por emoções não pensamos em nossos atos. Sendo assim, essas leituras
evidenciam uma interpretação masculinizante que focam principalmente na reação da
personagem.

Por outro lado, encontramos poucas interpretações a respeito da forma de pensar da


personagem, utilizando para tanto o estatuto da ação puramente humana como um processo
racional, como nos demonstra Filho: “Perseguir a hipótese de que a Medeia euripidiana oferece
um esboço da noção de liberdade fundada na autonomia do agente é, pois, nossa meta. Para
tanto, é preciso rastrear na peça aquilo que pode ser posto como o estatuto da ação” (FILHO,
2011, p. 65). Logo, para o autor a personagem demonstra um domínio sobre a paixão, embora
num primeiro momento lastime a sua condição de abandonada, ela apresenta também uma
capacidade deliberativa durante a encenação, portanto sua ação é resultado do cálculo
intencional. Por isso, o autor afirma “E se a possibilidade da violência, ou das maldades,
inferida da figura de Medeia não se remete apenas à força da paixão, como também a sua própria
natureza, isto é, ela tem a tendência natural para agir” (FILHO, 2011, p. 66). Dessa forma, o
processo racional está amplamente presente na encenação, mesmo que interpretem como
descontrole feminino.

Além das perspectivas já aludidas, Medeia possui um caráter mítico que muitas vezes é
enfatizado: ser neta do deus Sol24 e sobrinha da deusa Circe25, são fatos postos como agravante
do ato, pois ela representa esse passado mítico incontrolável dos deuses. Nesta perspectiva, a
autora Francisca da Silva (2014) realiza uma análise interpretativa, afirmando que “Isso posto,
indagamos: estaria Medeia, princesa e sacerdotisa da Cólquida, para além do bem e do mal ou,
antes, seria Medeia a encarnação do próprio bem e mal?” (SILVA, 2014, p. 92), esse
questionamento se fortalece pois no final da tragédia ela não teria sido punida pela intervenção
das Erínias e sim “escapa num carro puxado por serpentes, presente do deus Sol/Hélios/Apolo”
(SILVA, 2014, p. 93). A autora acima mencionada, apresenta a hipótese que aproxima de
maneira distinta, de um lado o médico Hipócrates, caracterizado como um acalentador da
loucura que sucumbia Demócrito e “que é visitado, em sonho, por três entidades ou divindades
– Alétheia (a Verdade), Doxa (a Opinião) e Asclépio (patrono da medicina, filho do deus

24
Do casamento de Hélio, o Sol, e de Perseis, filha de Oceano, e Tétis ou em algumas versões a esposa seria a
deusa Hécate, nasceram Etes, rei da Cólquida, pai de Medéia, Pasifae, Perses e Circe.
25
Deusa mítica citada na obra Odisseia, que narra as aventuras do herói Odisseu em seu retorno para Ítaca.
16
Apolo)” e do outro lado Medeia, “princesa da linhagem do Sol, filha de Eetes, irmão de Circe,
feiticeira que também terá um sonho premonitório. A sobrinha, igualmente versada nas artes
mágicas, é sacerdotisa de Hécate a quem presta culto no templo com outras 12 jovens virgens”
(SILVA, 2014, p. 92). A princesa, assim como Hipócrates, tem do mesmo modo um sonho
revelador, no qual se vê realizando as provas no lugar de Jasão e a partir de então inicia-se o
empasse, ficar em sua terra ou ir para solo estrangeiro. Logo, para a autora o sonho revelador
de ambos significa mudança completa do rumo de suas vidas através dessa ação, bem como
também a simbolização da serpente em ambos os casos.

De modo consequente, observamos que Medeia pode ser vista pelos autores como
veneno e remédio, aquela que cura ou mata 26. Algo que novamente amplifica a sua
caracterização como uma personagem múltipla, além de que “Nas crenças mais antigas, Medeia
era relacionada à Grande Deusa, à qual se integravam as deusas do Olimpo: Hera, Afrodite,
Atenas, e ainda, Hécate – a já citada representante da feitiçaria” (SOUSA, 2011, p. 4). Dessa
maneira, ela é relacionada ao período matriarcal das deusas, que com seus dons possuíam a
função de proteger e guiar os mortais e “com a existência de sacerdotisas ao culto à Grande
Deusa – como a própria Medeia – buscava-se manter um eterno ciclo de vida, morte e
renascimento por meio de magias e sacrifícios dos homens” (SOUSA, 2011, p. 4).

Outro ponto muito debatido é o aspecto referente ao seu poder de manipular e conhecer
ervas e filtros mágicos que ocasionam, segundo o mito e a fala da ama27 na tragédia, a morte de
Pélias, Glauce e Creon. Isto posto, Medeia é vista como conhecedora dessa sabedoria, afirma,
durante a tragédia28, esse conhecimento a colocando num nível de superioridade perante os
outros personagens masculinos. Assim Candido 29 afirma que:

Este domínio e saber poderiam ser encontrados em algumas mulheres que circulavam
em Atenas, sendo comum entre as mulheres gregas o uso de plantas e ervas para fins
terapêuticos. Medeia representava a mulher estrangeira que detinha esta habilidade e
o conhecimento de sua função e eficácia. A documentação textual nos indica várias
mulheres míticas que detinham o conhecimento e o domínio de ervas e filtros para
encantamentos. (CANDIDO, 2006, p. 30)

26
Indicamos como leitura, o artigo de Francisca Luciana Sousa da Silva (2014), especificamente o trecho
denominado O que não cura mata, o qual a autora se dedica, especificamente, a demonstrar essa ambiguidade para
além do bem e do mal na personagem Medeia.
27
A ama pronuncia, no início da tragédia, a respeito das mortes provocadas por Medeia “[...] Nem tinha instigado
as filhas de Pélias a matar o pai” (vv.9).
28
Medeia afirma, após a saída de Creon de cena, que “Superior é a via direta, para a qual peritas nascemos: pegá-
los com venenos” (vv. 384-385).
29
Citamos, para maiores apreciações o livro Medeia, Mito e Magia – a imagem através do tempo, escrito pela
historiadora Maria Regina Candido.
17
As outras personagens femininas da tragédia, o Coro e a ama, não expressam essa
habilidade durante a encenação, mesmo que fossem possuidoras de determinados
conhecimentos, os silenciam. Afirmamos isso pois, conforme a autora aludida, Eurípides ao
colocar em cena uma mulher que expõe essas habilidades, demonstrou o perigo deste saber,
constituindo motivo de receio para os homens de Atenas, que não controlavam e não
participavam desse domínio relacionado a natureza.
Na interpretação de alguns autores, esse tipo de conhecimento atribuído ao feminino,
não era controlável socialmente, por isso os homens da pólis temiam um possível desiquilíbrio,
personificado na figura de Medeia. Essa sabedoria muitas vezes é associada ao conceito de
métis30, exemplificado no livro Cidade das Mulheres, da escritora Marta Mega de Andrade, que
especifica um momento para discutir esse conceito nas obras de Eurípides, e destacaremos
quando a historiadora discute sobre Medeia, afirmando que “encontramos os traços de métis
principalmente na personagem Medeia. Na mitologia grega, Medeia surge ligada a um saber
mágico sob o patrocínio de Hécate, divindade ao mesmo tempo infernal e doméstica”
(ANDRADE, 2001, p. 56).
Declarações, neste sentido, enaltecem a magia e a métis da personagem, principalmente
porque é vista como um anti-modelo do regulamento comportamental feminino daquela época.
Por isso, o trágico Eurípides teria empregado de sua criatividade e inovação no gênero trágico,
personificando as mulheres como adulteras, assassinas e dissimuladas 31, dessa forma sendo
seres ativos, que atuam em espaços de predomínio exclusivo dos homens, por isso Candido
afirma:
A tragédia Medeia, apresentada no teatro de Dionisos em 431 a.C, nos remete às
práticas da magia, aos sentimentos femininos e à condição social da mulher grega no
período clássico. Compreendemos a narrativa mítica da sacerdotisa de Hécate como
um registro de memória que nos traz fragmentos do passado dos gregos. O poeta, ao
compor a sua dramaturgia, deixou vestígios de acontecimentos dos quais testemunha.
(CANDIDO, 2006, p. 19)

Deste modo, para a autora essas tragédias tinham a intenção de fazer os cidadãos
refletirem sobre determinados assuntos, encenados no universo mítico, mas que também
estavam presentes na cidade de Atenas naquele momento. E todos esses medos, a respeito do
feminino e das suas práticas mágicas, estão aglutinados na personagem Medeia.

30
Métis para a autora: “Neste estudo a métis surge como a inteligência ardilosa, inseparável da prudência, da
estratégia, e da ação no tempo: atenção, meticulosidade, subterfúgios para agarrar e não deixar passar a ocasião
certa de agir (o kaíros). As artimanhas da inteligência referem-se pois a um tipo de raciocínio ligado a um universo
prático e em movimento em que, força a força, quase confundidas a natureza e o mundo humano, os seres forjam
suas armas, escolhem o momento e o lugar para sobrepujarem um adversário” (ANDRADE, 2001, p. 54)
31
Expressões utilizadas por Junito (1990).
18
Ademais, podemos encontrar produções latinas32 com a figura dramática de Medeia,
especificamente em Roma, local que recriou diversas tragédias gregas. Primeiramente Ênio,
que se dedica a demonstrar na sua obra nomeada Medea Exul, a presença da princesa Cólquida,
por meio da fala da ama33, igualmente como Eurípides, apresentando os fatos ocorridos de
acordo com a mitologia. Nessa leitura da personagem, ela é vista como alguém exul o que é
traduzido por desterro ou afastamento do solo e da pátria, por esse motivo Medeia seria um ser
errante, e essa caracterização segundo Júnior (2014) a acompanhara em todas as suas
encenações latinas “Diante disso, Medeia foi construída como uma mulher que, ferida na alma
pelo brutal sentimento do amor, tornou-se, após seus atos funestos, errante e expatriada. Aliás,
a ferida em sua alma foi descrita de múltiplas maneiras pelos latinos” (JÚNIOR, 2014, l 34. 117).
Além disso, o autor afirma que a sua personalidade mágica também é muito corroborada nessas
produções, devido a aproximação com as divindades de Hécate e Circe. Dessarte, a sua imagem
de mulher estrangeira desterrada, possuidora de sabedorias vinculadas a magia e exilada, foi
largamente utilizada por poetas latinos. Do mesmo modo, os poetas Pacúvio 35, Lúcio Ácio36,
Varrão de Átax 37, Higino38, Ovídio39, Sêneca40, Valério Flaco 41 e Hosídio Gueta42 em seus
escritos, se utilizaram da personagem juntamente com o herói argonáutico Jasão, além de seus
filhos, para representar em Roma a desventuras dessa linhagem.
O autor Márcio Meirelles Gouvêa Júnior (2014) compreende, que essa ampla
representação da personagem, não seja evidentemente apenas pelo fato de uma moça virgem,
abandonar a pátria por um amor estrangeiro, pois temos os exemplos de Ariadna, Cila e Tarpeia,
isso também não seria unicamente pelo fato de ser estrangeira e sofrer desventuras amorosas,
possuímos Fedra, Pasífae, e finalmente tampouco porque matara seus filhos, possuímos
exemplos dessa mania em Agave e Hércules 43. Portanto, seu diferencial seria porque Medeia

32
Já afirmamos em princípio que não iremos analisar o contexto de cada obra citada e nem a produção dos
respectivos autores. Utilizamos essas obras somente para exemplificar como a figura mítica de Medeia foi
largamente representada.
33
Fala da ama “não sairia de casa a errar minha senhora, Medeia, por um sevo amor ferida na alma” (vv 25).
34
Informamos que o livro aqui referenciado é uma obra em formato Kindle, por isso utilizamos a norma (location),
para a informação da página.
35
Obra intitulada Medus, este seria filho de Medeia
36
Obra intitulada Medea siue Argunautae, apresentando os dois mitos entrelaçados.
37
Obra intitulada Argunautae, demonstrando a expedição dos Argonautas na conquista do velo de ouro.
38
Compilado de fábulas que apresenta Medeia, Jasão, Eetes, Pélias, Medo (filho de Medeia e Jasão).
39
A personagem é citada em obras diferentes: Heroides XII, Metamorphoses, Tristia e Medea.
40
Obra intitulada Medea.
41
Obra intitulada Medea.
42
Obra intitulada Tragoedia ex centonibus uirgilians conflata.
43
Os personagens aqui citados são exemplificados pelo autor
19
jamais foi vencida, controlada ou contida, sendo assim “o modelo da fronteira de tudo quanto
não fosse romano” (JÚNIOR, 2014, l. 397).
Heródoto em seus escritos em dois momentos também cita a figura de Medeia,
primeiramente envolvida num enredo a respeito dos fenícios e helenos sendo a causa de um
conflito além de ter consequências também na guerra de Tróia. Assim “Eles navegaram em uma
nau longa até Aia, na Colquis, e o rio Fásis; depois de concluir os negócios para os quais tinham
vindo eles raptaram Medeia, a filha do rei” (HERÔDOTO, L I-2). Nesse sentido, Páris filho de
Príamo, ouvindo essa história também teve a ideia de obter para si uma mulher grega através
de um rapto, “inteiramente convencido de que, da mesma forma que os helenos não havia
oferecido reparação, ele também não a ofereceria” (HERÔDOTO, L I-3). E num segundo
momento, ela está associada a nomeação de um povo e dessa forma reconhecida como mãe
“Medeia veio de Atenas para o território dos ários, eles também mudaram de nome; isso é dito
pelos próprios medos” (HERÓDOTO, L VII-62). Nessa história Medeia após sair de Atenas
devido os conflitos com Egeu e Teseu teria se dirigido para o Oriente dando origem a uma
nação, os medos.
Medeia cinematográfica também foi destaque na obra do escritor e diretor Pier Paolo
Pasolini44, que inspirou-se no mito da personagem, além da obra clássica de Eurípides, e a partir
da leitura de Platão, criou a sua representação. O filme inicia demonstrando a infância do herói
Jasão e faz alusão direta ao mito dos Argonautas e do Velocino de Ouro, trazendo a áurea mítica
para situar o espectador. A personagem Medeia surge na metade da representação e segundo
Ferraz “Pasolini prefere suprimir o encontro da feiticeira com Egeu, rei de Atenas, que lhe
garantirá proteção, e acrescenta a morte da noiva Glauce. Com uma fotografia grandiosa do
norte da Itália, Turquia e Síria, o filme é valorizado pela bela interpretação de Maria Callas”
(FERRAZ, 2014, p. 7). Nesta perspectiva, nessa representação da personagem, podemos
observar que a possível intenção de Pasolini não seria denunciar a restrição do feminino na
pólis e sim sua natureza transgressora. Medeia quase não fala durante o filme e, principalmente,
a interpretação não visa demonstrar a força da sua ira, batendo naquela interpretação
masculinizante, ela está focada em “soltar as amarras, de ressurgir, ainda que de forma trágica”
(FERRAZ, 2014, p. 7). Essa obra tornou-se um clássico, uma vez que o diretor ousou
contemporaneamente representar a sua ideia de Medeia, algo que anteriormente era imaginado

44
Neste sentido, concordamos com a colocação: “Pasolini não realiza, portanto, uma adaptação formal da peça de
Eurípides: ele a recria tão radicalmente que o seu enredo original sequer se torna inteligível ao espectador”
(COSTA, 2018, p. 19).
20
pelos apreciadores que liam silenciosamente a tragédia. Neste sentido, sua representação
inspirou também peças de teatro 45 que se dedicaram em outros momentos a interpretar uma
nova Medeia.
Nas décadas de 1970 e 1980 com o avanço do movimento feministas algumas escritoras,
como Christa Wolf46, também dedicam-se a ressignificar a personagem. Na escrita da autora, a
personagem, num primeiro momento, direciona seus diálogos a pessoa que mais a conhecia,
sua mãe47, algo não encontrado em outras versões. Wolf (2014) se utiliza de diversos estudos48
para compor sua escrita, neste sentido, alguns crimes atribuídos a princesa são retirados dessa
versão, uma vez que, o infanticídio símbolo da originalidade de Eurípides, aqui é abandonado.
Medeia Vozes, é uma obra que emana diferentes vozes, personagens que examinam seus
motivos e suas opções no desenvolvimento do jogo de poder entre Creon e Medeia.
Destarte, como apreciado, Medeia é observada e recriada por diversas perspectivas
literárias e cênicas, que desejaram evidenciar diferentes características da personagem a partir
dos interesses particulares de cada autor. Na presente dissertação, aspiramos construir também
uma leitura a respeito da personagem que nos atraiu profundamente para esse curso.
Acreditamos que o problema central da tragédia não é o fato de Medeia ter sabedoria ou possuir
métis, o ponto crucial é ousar demonstrar conhecimento, algo estritamente pertencente ao
masculino. Os gregos retiraram da humanidade as mulheres, por isso elas não poderiam exercer
ação, uma vez que ação se expressa a partir de um processo intelectivo, cívico, público e
masculino; as mulheres, consequentemente, eram simplesmente emoção e por isso reação.
Entretanto, Medeia na obra de Eurípides demonstra possuir saberes que desafiam o masculino,
visto que ela se coloca num espaço que não é determinado para ela, externalizando uma conduta
ou um ponto de vista, por isso afirmando sua singularidade na produção autônoma da ação.

45
Citamos como exemplificação a representação de Medeia Vozes, celebrado pelo grupo de teatro Tribo de
Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz.
46
Crista Wolf foi uma das mais importantes escritoras contemporâneas da língua alemã, crítica literária, novelista
e ensaísta. Nascida em 1929, se dedicou ao longo da carreira de escritora a temas ligados ao ambientalismo,
possibilidades de guerras nucleares, excessos da ciência, feminismo e o papel dos marginais. Outra personagem
significativa utilizada por Wolf é Cassandra, filha de Príamo, rei de Tróia
47
Medeia afirma: “Tenha cuidado, você me disse, o orgulho vai congelar a sua alma, pode ser, mas a dor, mãe, a
dor também deixa uma marca desoladora. Para quem eu digo isso. Por mais escuros que fossem, quando subimos
a bordo do Argo, vi seus olhos e não consegui mais esquecê-los, seu olhar me cravou em uma palavra que eu não
conhecia antes: culpa” (WOLF, 2014, p. 16).
48
Christa Wolf se utiliza dos estudos de arqueólogos e especialistas em mitos como Margot Schmidt, a socióloga
e pesquisadora do matriarcado Heide Göttner-Abendroth e Robert Graves. Assim, Wolf toma para si uma versão
mais antiga e desconhecida do mito, rejeitando os crimes.
21
Tragédia

A nossa pesquisa possuí como fonte principal, para investigação histórica, uma
tragédia49 grega e por isso iniciamos expondo o contexto histórico que fomentou o seu
surgimento. Essa conjuntura está relacionada a forma de convivência inaugurada pela cidade
de Atenas, que se apresentou como produtora dessa nova experiência humana realizada na
comunidade. Compreender o contexto histórico, no qual a obra Medeia está submersa, é
fundamental para melhor compreensão do texto e, principalmente, a constituição cênica que o
autor Eurípides desenvolveu para criar a sua representação. O historiador Vernant (2005) em
seu livro, dedicado especialmente ao tema, Mito e Tragédia na Grécia Antiga afirma que:

Cada peça constituiu uma mensagem encerrada num texto, inscrita nas estruturas de
um discurso que, em todos os níveis, deve constituir um objeto de análises filológicas,
estilísticas e literárias adequadas. Mas esse texto não pode ser compreendido
plenamente sem que se leve em conta um contexto. É em função deste contexto que
se estabelece a comunicação entre o autor e seu público do século V e que a obra pode
reencontrar, para o leitor de hoje, sua plena autenticidade e todo seu peso de
significações. (VERNANT, 2005, p. 8)

Sendo assim, o contexto que promove o teatro e, especificamente, as tragédias é o


aparecimento da pólis, uma nova forma de convívio inaugurada pelos gregos nos séculos VIII
e VII, além de se apresentar como um marco intelectual do pensamento, dado que está associada
a um contexto específico, como nos afirmam Vernant e Vidal-Naquet (2005) “a tragédia grega
aparece como um momento histórico delimitado e datado com muita precisão. Vêmo-la nascer
em Atenas, aí florescer e degenerar quase no espaço de um século” (VERNANT; VIDAL-
NAQUET, 2005, p. 2). Neste sentido, os autores desejam demonstrar que a pólis e a tragédia
surgem a partir do processo isonômico.
Por conseguinte, essa organização social e particular modifica as relações entre os
homens que anteriormente, em outros períodos, eram verticalmente hierarquizadas, ou seja,
assimétricas. Além disso, corroboramos essa afirmação com Silva:

49
Aristóteles, no livro A Poética, afirma que “nascida de um princípio improvisado (tanto a tragédia, como a
comédia: a tragédia, dos solistas do ditirambo; a comédia, dos solistas dos cantos fálicos, composições estas ainda
hoje estimadas em muitas das nossas cidades), [a tragédia] pouco a pouco foi evoluindo, à medida que se
desenvolvia tudo quanto nela se manifestava; até que passadas muitas transformações, a tragédia se deteve, logo
que atingiu sua forma natural”. (v. 1449 a). Tradução de Eudoro de Souza (1986).
22
No século V, em Atenas, esta prática torna-se alargada. A cidade dos atenienses foi
aquela que podemos dizer, efetuou um maior compromisso político, a cidade
democrática por excelência, pois sua ἐκκλησία (assembleia) era composta tanto por
membros de famílias aristocráticas como também por simples artesãos, sapateiros,
ferreiros, curtidores de couro, por exemplo. A tragédia certamente não ficou alheia a
este impulso (SILVA, 2014, p. 84).

Do mesmo modo, como já afirmado anteriormente, essa nova forma de convívio


favorece, segundo Vernant, “uma extraordinária preeminência da palavra sobre todos os outros
instrumentos de poder” (VERNANT, 1984, p. 34). Desta maneira, a palavra, peithó, a força da
persuasão se torna instrumento político no meio social, deixando de ser ritualística, reservada a
um pequeno grupo que a detinha e preservava-a dentro da tradição familiar.
Inquestionavelmente, neste momento, a palavra ganha características de debate contraditório,
argumentação, enfrentamento ou ainda discussão.
Além do mais, o autor também evidencia uma segunda característica desse sistema, “a
publicidade dada às manifestações” (VERNANT, 1984, p. 35), pois é através desse movimento
de divulgação do plano intelectual que o teatro 50 poderá surgir e manter-se como espaço da
disputa do político, assim como a ágora e as assembleias. Com o propósito de retirar a palavra
do domínio sagrado e do interior dos processos secretos, ela torna-se prática pública e aberta
para o historiador, “esse duplo movimento de democratização e de divulgação terá, no plano
intelectual, consequências decisivas” (VERNANT, 1984, p. 35), pois ampliam o demos e
possibilitam o acesso espiritual anteriormente reservado a aristocracia guerreira e sacerdotal.
Ademais, o terceiro ponto fundamental para esse surgimento é a ideia de semelhantes
que cria a unidade, um sistema de leis que busca o equilíbrio, em contraposição ao poder
absoluto, pois segundo Vernant:
O vínculo do homem com o homem vai tomar assim, no esquema da cidade, a forma
de relação recíproca, reversível, substituindo as relações hierárquicas de submissão e
domínio. Todos os que participam do Estado vão definir-se como Hómoioi,
semelhantes, depois, de maneira mais abstrata, como os Isoi, iguais. (VERNANT,
1984, p. 42)

Até a organização militar ateniense se modifica, porque a condição de soldado iguala-


se a de cidadão, e de acordo com Vernant “quem tem seu lugar na formação militar da cidade
igualmente o tem na sua organização política” (VERNANT, 1984, p. 43), logo homens livres,
hoplitas e formadores da falange estavam em pé de igualdade aos ricos proprietários.

50
A ideia de centralidade dessas práticas dentro da pólis é expressa por Gonçalves, que afirma “Atenas põe muita
importância na ideia de centro e sua relação com a democracia. Com seu próprio centro constituído pela Acrópole,
a ágora, a koinê hestia (lareira pública), o teatro e o pnyx” (GONÇALVES, 2017, p. 134).
23
Entretanto, devemos salientar que essa concepção de Isoís51,que os gregos possuíam
neste momento, não incluía todos os habitantes da pólis, pelo contrário, se caracteriza como um
sistema excludente em sua origem, como nos demonstra Mosse “A qualidade de cidadão levava
implicitamente, em efeito, o exercício de uma função, que era fundamentalmente política, de
participação nas assembleias e nos tribunais, local onde estavam excluídas as mulheres”
(MOSSE, 1990, p. 54-55, tradução nossa). Sendo assim, além das mulheres, crianças, velhos e
estrangeiros não participavam dos processos deliberativos, posto que não exerciam a função
pública e militar, pois como nos demonstra Silva (2017), mesmo após a mudança da
configuração social, da aristocracia para a isonomia, o ideal de virilidade guerreira mantém-se
no espaço da cidade e, principalmente, atrelado a cidadania:
Por isso, a partir de então, a coragem, ou andreia, que é um conjunto de qualidades
do anér passa a ser justificada, ou por sua bravura como guerreiro ou por exercer a
cidadania, estas serão duas atividades indissolúveis para o homem da pólis e
significam participar nos assuntos da cidade através dos debates na ágora, na
assembleia, conselhos e tribunais e também estar preparado para a guerra. (SILVA,
2017, p. 41)

Neste sentido, Claude Mosse, em seu livro A mulher na Grécia Clássica, define a cidade
como um clube de homens, em que o feminino é visto como um eterno menor porque
necessitava da figura de um tutor, um kyrios, por toda vida. Assim, as mulheres e os metecos 52
estavam fora da esfera comum, porque não eram considerados iguais, visto que não poderiam
deliberar sobre seus atos.
A tragédia Medeia apresenta tensões e ambiguidades, em diversos momentos da
encenação, e isso se justifica segundo Vernant porque “na perspectiva trágica, portanto, agir
tem um duplo caráter: de um lado é deliberar consigo mesmo, pesar o pró e o contra, prever o
melhor possível, a ordem dos meios e dos fins; e de outro, é contar com o desconhecido e
incompreensível” (VERNANT, 2005, p. 21). A deliberação que ocorre em cena, principalmente
no momento do monólogo de Medeia, é característico da afirmação acima, Medeia hesita em
momentos e por meio de um processo mental retorna a sua posição original e promove a ação
personificada na morte de seus filhos. Com isso, a personagem manifesta em particular um ato
de decisão, se tornando agente do seu próprio agir e da sua vontade.
A tragédia é dialética, pois ao mesmo tempo exclui e incorpora, afirmamos isso porque
Eurípides se utilizou dessa dicotomia para a construção da sua peça de maior sucesso: um

51 “Isoís” significou, primeiramente, partes iguais e, consequentemente, atingiu a construção do universo político
como igualdade perante a lei.
52
Nomeação dada a estrangeiros que residiam na pólis, porém não tinha participação nas escolhas políticas e
públicas.
24
personagem feminino e estrangeiro, um indivíduo que vive dentro da pólis, mas que não poderia
exercer processos deliberativos a respeito da sua ação. Entretanto, Medeia está em cena e ela
delibera na frente dos espectadores do teatro e possui uma ação considerada impensável para o
feminino “mães assassinas que, tal como Medeia mataram os próprios filhos para melhor
aniquilarem o marido” (LORAUX, 1994, p. 44). Logo, a tragédia anuncia, por meio da
representação e dos jogos mentais, as atitudes que não poderiam existir dentro do convívio da
cidade e, sobretudo, demonstrando os impactos de atitudes particulares no coletivo.
E é este cenário, caracterizado por nós como um redemoinho caótico de expressões
artísticas e políticas, que possibilita essa nova forma de expressão do humano, a tragédia.
Acreditamos que esse momento seja fértil e por isso mesmo caracterizado como caótico, pois
encontramos a presença do pensamento mítico na sociedade políade, juntamente com o lógos53
e a sofística. Desta forma, essas diferentes concepções de mentalidade praticamente coexistiam
e influenciavam, de variadas formas, a sociedade e os habitantes da cidade. A tragédia situa-se
numa zona fronteiriça em que os atos humanos se articulam com as potências divinas, onde
revelam seu verdadeiro sentido, inserindo-se numa ordem que ultrapassa o homem e a ele
escapa. Esse fato é evidente na escrita dos trágicos que se dedicaram a expressar, através de sua
poesia e do espetáculo, essa nova ordem social, que estava em efervescência e transformação 54.
Portanto, a palavra formava a cidade e era um instrumento político e também pertencente ao
plano intelectual e largamente utilizada nas peças teatrais.

Gênero

Indubitavelmente, observamos que “Os historiadores fizeram a historiografia do


silêncio. A história transformou-se em um relato que esqueceu as mulheres, como se, por serem
destinadas à obscuridade da reprodução inenarrável, elas estivessem fora do tempo, fora do
acontecimento” (COLLING; TEDESCHI, 2015, p. 300). Isto posto, consequentemente, as
mulheres foram escondidas/esquecidas nesse silêncio do discurso dominante, que simplesmente
as subjugou. Arguindo a afirmação anterior, acreditamos que a História deva se apropriar dessas

53 O presente autor está de acordo com o pensamento de Vernant (2002), que afirma a respeito do lógos como
um discurso que permanece reto, em pé, que é coerente e consistente.
54 Citamos como exemplo a afirmação de Vernant e Vidal-Naquet: “No conflito trágico, o herói e o tirano ainda

aparecem bem presos à tradição heroica e mítica, mas a solução do drama escapa a eles: jamais é dada pelo herói
solitário e traduz sempre o triunfo dos valores coletivos impostos pela nova cidade democrática” (VERNANT;
VIDAL-NAQUET, 2005, p. 2).
25
concepções e discussões que o conceito de gênero pode proporcionar nas pesquisas acadêmicas.
Corroborando nossa afirmação, Rago afirma que durante muito tempo fora reproduzido a ideia
de que “as mulheres, não tinham história, absolutamente excluídas pela figura divina do
Homem, que matara Deus para se colocar em seu lugar” (RAGO, 1998, p. 91). E,
contemporaneamente, sabemos que esse feminino participou ativamente dos processos
históricos, entretanto não foram visibilizadas e “nossa forma de lidar com e discutir sobre sexo
e gênero tem relação direta com os modos disciplinadores e interditos pelos quais esses temas
têm sido vivenciados em nossa sociedade” (SILVA; ROSSATO; OLIVEIRA, 2013, p. 460)
portanto, chegou o instante para essa discussão.
Afirmamos, desde o princípio, utilizar como método de análise a categoria de gênero,
pois em primeiro lugar acreditamos que as concepções de feminino e masculino, as relações de
parentesco, tanto em nossa sociedade quanto na grega, bem como o contexto histórico da fonte
Medeia, são fundamentais para observar os processos sociais em que ambos estão envolvidos
e dialogando. Além disso, nos questionamos a respeito dessa presença feminina, nas
representações cênicas características do século V a.C. na cidade de Atenas, uma vez que, como
nos afirma Loraux (1985), no seu livro Maneiras Trágicas de Matar uma Mulher, os cidadãos
gregos viam esses personagens femininos, das tragédias, como uma maneira de observar a
diferença entre os sexos e ao mesmo tempo reafirmando o lugar do feminino naquela sociedade.
O estudo histórico não pode separar o feminino do masculino para compreender uma
sociedade, visto que, as relações sociais de ambos os sexos estão interligadas, como afirma
Scott “as mulheres e os homens eram definidos em termos recíprocos e nenhuma compreensão
de qualquer um poderia existir através de estudo inteiramente separado” (SCOTT, 1995, p. 3).
Essa nova forma de observar a sociedade, e de fazer história, dependeria da forma que gênero
seria desenvolvido como uma categoria de análise.
Historicamente, esses debates são inaugurados no final da década de 1940, com o livro
de Simone de Beauvoir denominado O Segundo Sexo, obra aclamada e reconhecida pela frase
“ninguém nasce mulher, torna-se mulher” (BEAUVOIR, 2016, p. 25), referindo-se aos
processos formativos que, culturalmente, foram construídos por diversas sociedades. Portanto,
a análise de Beauvoir instigava as relações entre o sexo biológico e a construção social da

26
categoria mulher além de citar os estudos de Freud 55 e Levi-Strauss56 a respeito do feminino.
Nesse livro, a autora discute e demonstra que a mulher é silenciada na sociedade devido as suas
diferenças biológicas, como por exemplo, menstruação e gestação. Logo, esses períodos, nos
quais as mulheres eram mais reclusas das atividades junto aos homens, acabaram definindo as
mulheres como frágeis e inferiores.
Nessa lógica, as constituições sociais foram determinadas historicamente para cada
sexo, como nos demonstra Scott “identidades generificadas são substantivamente construídas e
relacionar seus achados com toda uma série de atividades, de organizações e representações
sociais historicamente específicas” (SCOTT, 1990, p. 88). Dessa forma, os ideais específicos,
para cada gênero, são social e historicamente construídos por determinada sociedade num
período. Durante diversos séculos, os termos gramaticais de forma figurada foram utilizados
para evocar traços de caráter ou traços sexuais femininos ou masculinos. Porém, as
pesquisadoras feministas americanas começaram a utilizar a palavra “gênero” como uma
maneira de referir-se à organização social da relação entre os sexos, e conforme nos demonstra
Scott (1995), em seu artigo Gênero: uma categoria útil para análise histórica, o conceito de
“gênero” começou primeiro a ser utilizado para insistir no caráter fundamentalmente social das
distinções baseadas no sexo e, principalmente, “proposto por aquelas que defendiam que a
pesquisa sobre as mulheres transformaria fundamentalmente os paradigmas no seio de cada
disciplina.” (SCOTT, 1995, p. 3). Por consequência, gênero rejeitaria o determinismo biológico
implícito no uso de termos como sexo. Assim, como evidência a autora:
O gênero se torna, aliás, uma maneira de indicar as “construções sociais” - a criação
inteiramente social das ideias sobre os papéis próprios aos homens e às mulheres. É
uma maneira de se referir às origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas
dos homens e das mulheres. O gênero é, segundo essa definição, uma categoria social
imposta sobre um corpo sexuado. (SCOTT, 1995, p. 7)

O uso do conceito gênero 57 coloca em ênfase o sistema de relações que podem incluir o
sexo, entretanto não seriam diretamente determinados por ele. O movimento feminista do final
do século XX, utilizou muito o conceito de gênero para corroborar suas hipóteses e escritas,
sobretudo impulsionando a História das Mulheres. Entretanto, alguns desses moldes
historiográficos são criticados por Scott (1995), ao afirmar que as historiadoras feministas

55
Beauvoir demonstra que o conceito de mulher mutilada empregado por Freud provém evidentemente do fato
dele se fundamentar num modelo masculino ao construir suas intepretações. Assim, ocorrendo uma comparação e
valorização do homem (BEAUVOIR, 2016, p. 70)
56
Nesse momento a autora se dedica aprofundar as estruturas das relações de parentesco, através da autoridade,
do casamento e do incesto, conceitos utilizados por Levi-Strauss. (BEAUVOIR, 2016, p. 104)
57
Essas discussões iniciaram seu período de maturação na escrita do trabalho de conclusão de curso no ano de
2016, assim trechos desse trabalho foram incorporados na dissertação.
27
utilizaram diversas abordagens para análise do gênero, que podem ser resumidas em três
posições teóricas. A primeira tentaria explicar a origem do patriarcado, a segunda estaria ligada
a uma tradição marxista e a terceira encontra-se dividida entre o pós-estruturalismo francês e
as teorias inglesas inspiradas na psicanálise, que tentaria explicar a produção e a reprodução de
identidade de gênero.
A primeira teoria concentrou-se especificamente na subordinação das mulheres perante
aos homens, e utilizava a explicação da “necessidade” do macho dominar as fêmeas. Segundo
Scott (1995), a escritora Mary O’Brien, inspirada por Hegel, definiu a dominação masculina
tendo como efeito o desejo que os homens possuíam de ultrapassar a barreira imposta pela
privação da reprodução, já que ainda necessitavam biologicamente da mulher. E dessa forma,
a libertação da mulher viria somente com a transformação tecnológica, quando não necessitaria
mais do corpo da mulher para ser progenitora, consequentemente, nessa lógica, a reprodução
seria uma “amarga armadilha” para as mulheres. Por outro lado, encontramos a crítica da autora
Gayle Rubin (2017), a respeito da utilização indiscriminada da palavra patriarcado em alguns
estudos, pois caracterizam quaisquer sociedades estratificadas de acordo com o gênero com
essa denominação. Para a autora patriarcado é “uma forma específica de dominação masculina,
e o uso do termo deveria ser reservado a autoridade e oficiais eclesiásticos, aos quais o termo
se atribui” (RUBIN, 2017, p. 20).
A segunda teoria é caracterizada pelas feministas marxistas ou materialistas que
possuem uma abordagem mais histórica e que buscavam sempre uma explicação “material”
para o gênero e, segundo Scott (1995), foi esse o maior problema dessas pesquisadoras, pois
isso atrasou ou limitou o desenvolvimento das pesquisas. As feministas marxistas, utilizavam
uma teoria baseada em dois domínios: o patriarcado e o capitalismo, além de conceitos como
modos de produção e divisão sexual do trabalho. Neste sentido, a teoria marxista evidenciou os
seres humanos como trabalhadores ou capitalistas, porém segundo Rubin (2017) não
evidenciou o fato de serem homens ou mulheres, desta forma, estando completamente alheia as
questões de sexo e gênero. Por isso, Scott (1995) cita autores, como a economista Heidi
Hartmann, que insistem na necessidade de afirmar que o patriarcado e o capitalismo estão
separados, contudo em interação. De acordo com essa interpretação, a causalidade econômica
seria prioritária e o patriarcado estaria sempre em desenvolvimento e mudando, em função das
relações de produção. Entretanto, sabemos que a dominação masculina sobre as mulheres é
anterior ao surgimento do capitalismo e continua em regimes socialistas, portanto, o capitalismo
não seria uma causa concreta da realidade social hoje existente. E segundo Scott, “no interior

28
do marxismo, o conceito de gênero foi por muito tempo tratado como subproduto de estruturas
econômicas mutantes: o gênero não tem tido o seu próprio estatuto de análise” (SCOTT, 1995,
p. 13). Deste modo, as feministas marxistas, americanas e inglesas, teriam se dedicado mais a
explicação material da sociedade, deixando em segundo plano as categorias de gênero, por isso
Gayle Rubin critica esse posicionamento afirmando que “uma coisa é explicar a utilidade das
mulheres para o capitalismo. Argumentar que essa utilidade explica as origens da opressão das
mulheres é outra bem diferente” (RUBIN, 2017, p. 14). Isto posto, afirmamos que a opressão
da mulher não se esgota no capitalismo, uma vez que ela permanece mesmo fora desse sistema.
A última teoria estaria influenciada pelo movimento pós-estruturalista, dado que esse
movimento auxilia esses estudos, devido seu caráter de “desconstrução” dos princípios
fundantes que erigiram os tradicionais sistemas de pensamento. Entretanto, devemos salientar
que a aproximação do feminismo com o pós-estruturalismo não foi tranquila, de acordo com
Guacira “ao contrário disso, a utilização de instrumentos analíticos pós-estruturalistas pelo
pensamento feminista foi – e é bastante polêmica” (GUACIRA, 1995, p. 111). Algumas
pesquisadoras feministas acreditavam que essa teoria enfraqueceria os esforços para tornar
visíveis grupos dominados. A historiadora Scott, em seu livro Gender and Politics of History,
afirma “fui forçada a tomar a teoria pós-estruturalista seriamente e a lutar com suas implicações
para uma historiadora social” (SCOTT, 1988, p. 13). Dessa forma, observamos que a
historiadora necessitou se posicionar seriamente ao utilizar as potencialidades da perspectiva
pós-estruturalista inaugurada por Foucault e Derrida.
Seguindo esse terceiro momento, caracterizado como pós-estruturalista, citamos a
autora contemporânea Judith Butler que em seu livro Problemas de Gênero (2015), critica a
diferença entre sexo e o pensamento ligado a natureza ou ao biológico, assim o conceito “sexo”,
a partir de uma visão de corpo, seria também visto como uma construção social. Em suma, se
caracteriza como um pensamento que desnaturaliza ambos os papéis, o sexual e o social. Além
disso, a autora cita diversos trabalhos para fundamentar suas explicações, entre eles, Beauvoir58
a partir da sua “construção do gênero”, Irigaray 59 que afirma que as mulheres são o sexo que
não é “uno” e principalmente discute o sistema estruturalista das relações de parentesco de
Levi-Strauss.

58
A autora se dedica a demonstrar como a teoria de Simone Beauvoir, escrita no final dos anos 40, impacta a
sociedade por meio da construção cultural que o gênero é compreendido a partir de então, evidenciando que um
conjunto de leis sociais fixam o que é ser homem e mulher (BUTLER, 2018, p. 29).
59
Nessa perspectiva, Butler afirma que as concepções de Luce Irigaray constituem um paradoxo no interior da
própria identidade, no qual as mulheres não são vistas, uma vez que “numa linguagem difusamente masculina,
uma linguagem androcêntrica, as mulheres constituem o irrepresentável” (BUTLER, 2018, p. 31).
29
Nacionalmente os estudos que utilizam o conceito de gênero, como uma categoria de
análise, chegam ao redor dos anos noventa, principalmente na região de São Paulo,
especificamente na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Consequentemente,
diversas pesquisadoras que se interessavam pelo movimento feminista migraram para essa nova
corrente de pensamento, influenciada principalmente pela historiadora já citada, Joan Scott.
Nesse período, é fundado na Unicamp, o Núcleo de Estudos de Gênero, denominado Pagu, que
se tornou um dos precursores no debate de gênero no país, promovendo eventos, palestras e
seminários. A influência e o reflexo desses estudos são expostos por Margareth Rago, no seu
artigo intitulado Descobrindo historicamente o gênero.
Construção social e cultural das diferenças sexuais, assim se definiu o “gênero”,
categoria que trazia muito desconforto para todas nós pelo desconhecimento que a
cercava. Afinal, estávamos acostumadas, principalmente as historiadores e
sociólogas, a lidar com conceitos acabados como classe, informados por todo um
sistema de pensamento extremamente articulado, e nesse contexto, gênero aparecia
solto. (RAGO, 1998, p. 89)

Portanto, como nos corrobora Rago, essa nova onda de estudos causou um certo
incomodo inicial nas pesquisadoras brasileiras, devido a fluidez e o ineditismo do conceito. Isso
fez com que percebessem que trabalhavam com narrativas extremamente “dessexualizadoras”,
como afirma Rago, pois mesmo o sexo biológico é constituído em nossas experiências e ele
raramente recebia uma dimensão analítica. Com isso as pesquisadoras perceberam que o
universo feminino era sim muito diferente do masculino, contudo não estava determinado
simplesmente por uma definição biológica, como era aceito até o século XIX, mas,
singularmente, por construções sociais. A partir desses estudos, promovidos pela revista e o
núcleo Pagu, o conceito de gênero e as pesquisas nessa área começaram a surgir e a se ampliar
por todo o Brasil. Isso foi possível devido a concentração de pesquisadores, que se dedicaram
ao tema e desenvolveram problemáticas a partir dessa categoria.

Gênero e História Antiga

Quando nos destinamos, especificamente, a tratar da temática de gênero em História


antiga, percebemos que as autoras primeiramente dedicaram-se a observar o feminino na sua
individualidade, posto que historiograficamente as produções, em sua grande maioria, focavam
na questão política, portanto marcadamente masculina. Por esse ângulo, essas historiadoras ao
realizarem suas pesquisas ambicionavam enfatizar um novo olhar sobre a sociedade, assim

30
podemos citar os clássicos 60: Claude Mosse que emprega o conceito de “clube de homens” para
se referir a pólis, Sarah Pomeroy que analisa detalhadamente as categorias que eram restritas
ao feminino e Nicole Louraux que discutiu temáticas a respeito do feminino na tragédia, nas
orações fúnebres e na democracia ateniense. Num primeiro momento, essa produção
historiográfica destinava-se a dar visibilidade a um feminino que era, muitas vezes, colocado
como pertencente restritamente ao gineuceu, assim não participando da história. Pantel afirma
que:
A etapa decisiva foi a vontade de escrever a história das mulheres, história até então
esquecida e mesmo negada. Esse empreendimento apoiou-se na explosão do
feminismo nos anos setenta e conjugou-se com o grande desenvolvimento da
antropologia e da história das mentalidades (PANTEL, 1990, p. 52)

Esses escritos impulsionadas pelo movimento feminista e posteriormente pela categoria


de gênero desenvolvida a partir das discussões de Joan Scott se ampliam e novas temáticas
envolvendo sexualidade e o espaço privado emergem. Neste sentido, temáticas como os
sentimentos e as relações de parentesco se tornam problemas de pesquisa no interior do métier
das pesquisas em História antiga. Sendo assim, essa produção, evidentemente feminina, a
respeito da temática, ganha um corpus teórico mais alargado, retirando a mulher do silêncio da
historiografia. Contudo, ao realizarmos uma pesquisa de gênero, no período da antiguidade,
devemos ter cuidado na construção da problemática para não cairmos no anacronismo. A
historiadora Nicole Loraux (1992) em seus escritos se dedica a discutir essa relação
corroborando que:
É preciso usar de anacronismo para ir na direção da Grécia Antiga com a condição de
que o historiador assuma o risco de colocar precisamente a seu objeto grego questões
que já não eram gregas; de que aceite submeter seu material antigo a interrogações
que os antigos não se fizeram ou pelo menos não formularam, ou, melhor, não
recortaram como tais (LORAUX, 1992, p. 61)

Sendo assim, não devemos projetar categorias contemporâneas e essencialmente


avaliações morais, como amor, sexualidade e erotismo, para o passado, pois estamos utilizando
concepções atuais para classificar indivíduos temporalmente muito distantes de nós. Além
disso, segundo Boehringer (2011), uma peculiaridade de nossa sociedade ocidental
contemporânea é olhar as relações eróticas e românticas, e distinguir as relações com base no
sexo da pessoa amada, opondo homossexualidade à heterossexualidade, sendo o último
considerado normal e natural. Logo, associamos a questão da identidade de gênero a uma
identidade de orientação sexual de forma errônea.

60 As autoras aqui citadas encontram-se presente na bibliografia ao final do documento.


31
Esta posição de avaliar os indivíduos a partir do parceiro sexual, como elemento de
classificação, é algo contemporâneo. As sociedades antigas possuíam outra compreensão de
sexualidade, que hoje não é mais existente e, em virtude disso, a atividade sexual era percebida
independente das outras práticas do corpo. Além disso, o ato sexual não é visto como um ato
em conjunto para ambos parceiros, e sim voltado para o masculino 61. No caso das sociedades
antigas, a identidade de gênero é um critério secundário para a sua percepção, relação social
e/ou avaliação moral, na qual não importava no erótico. Uma sociedade que coloca em primeiro
lugar a identidade das relações de parentesco, econômicas, educacionais, políticas e de poder,
e que construiu sua masculinidade a partir de dois polos que são opostos, o sistema de feminino
e masculino, deve ser interpretada de acordo com as suas representações. Em função disso, os
indivíduos dessa sociedade antiga elaboraram um sistema de valores muito diferente dos
contemporâneos, que analisa, atualmente, o caráter dos indivíduos por meio de suas ações
sexuais, algo pertencente ao particular, e não a partir de seus posicionamentos no público, algo
marcadamente característico da antiguidade.
Nessa perspectiva, a categoria de gênero está intimamente conectada com as relações
de parentesco, pois são justamente essas relações ou regras parentais que retroalimentam as
distinções entre homens e mulheres. É partir das regulações sociais/parentais impostas
culturalmente que as relações de gênero se concretizam, naturalizando-se assim as
desigualdades. A partir da nossa interpretação, afirmamos que a utilização da categoria de
gênero para análise da fonte é decorrente de um ponto de vista das leituras realizadas e das
interpretações que respaldam nossas observações, uma vez que visualizamos nessas trocas
familiares, marcadamente androcêntricas, a manutenção de um tipo de sociedade como nos
demonstra Vernant (1992) “da união de um homem e uma mulher, a engúe faz um ato social
que supera a pessoa dos dois indivíduos em questão para engajar, através deles, dois lares, duas
“casas” (VERNANT, 1992, p. 48). Neste sentido, o feminino é uma pose do masculino, que ao
realizar um laço com outro masculino, efetiva uma união denominada casamento, por meio do
trânsito/tráfico62 da mulher. Sendo assim, as relações de parentesco são afirmadas, sobretudo,
a partir da figura masculina, que utiliza-se do feminino para assegurar esses vínculos sociais
por meio do casamento, uma instituição reconhecida pela pólis. Logo, o casamento é uma forma

61
Citamos para leitura o trabalho de Vitor Naoki Miki Gomes, que em seu trabalho de conclusão de curso
demonstra que “o que permitia a possibilidade de assertividade sexual é justamente a condição de cidadão. Ser
ativo na política significava ser ativo nas relações sexuais” (GOMES, 2018, 13). Dessa forma, observamos que o
feminino nessa situação não pode ser visto como alguém ativo, visto que tal relação se destinava ao masculino
62
Expressão utilizada por Gayle Rubin em seu livro Políticas do Sexo.
32
de manter as relações de parentesco cimentadas e dentro de um oikos63 específico e escolhido,
como nos demonstra Rubin “nas sociedades pré-estatais, o parentesco é muitas vezes a
linguagem da interação social, organizando as atividades econômicas, políticas e cerimoniais,
bem como as sexuais” (RUBUIN, 2017, p. 21). Assim, estar incluído ou excluído de uma
relação de parentesco demonstra os privilégios e as responsabilidade de uma pessoa para com
a outra.
Portanto, na presente dissertação utilizamos a tragédia Medeia, escrita pelo trágico
Eurípides, como nossa fonte investigativa e histórica, realizando uma leitura a partir da
categoria de gênero e atentando, especificamente, para as relações de parentesco presentes na
obra. Além disso, observando a ação deliberativa e a produção de um lógos particular da
personagem, que ousa saber e agir dentro desse universo masculinizante. Diante do exposto, o
presente trabalho está estruturado da seguinte forma:
No primeiro capítulo, desejamos utilizar a tragédia na pesquisa como fonte histórica e
literária, uma vez que entendemos a tragédia, citando Vernant e Vidal-Naquet (2005) “não
apenas uma forma de arte, é uma instituição social que, pela fundação dos concursos trágicos,
a cidade colocado ao lado de seus órgãos políticos e judiciários” (VERNANT; VIDAL-
NAQUET, 2005, p. 10). Dessa forma, essas peças questionam os valores heroicos de grandes
personagens e essa, em especial, evidencia o lugar androcêntrico da mulher na sociedade grega.
Dando sequência no primeiro capítulo, apresentamos as peças de teatro ainda preservadas do
trágico Eurípides, dando mais atenção para suas personagens femininas. Estas sendo, na maioria
das vezes, mulheres com posicionamentos fortes em cena e que marcaram profundamente os
espectadores, consequentemente, chegamos a Medeia, a personagem aqui selecionada para
engrandecimento de nossa escrita.
No segundo capítulo, escolhemos como fio condutor de nossa análise as relações de
parentesco que compõe a obra, pois como nos afirma Vernant (1992), para compreender a
Atenas clássica, do século V e VI, devemos atentar profundamente para o pano de fundo
histórico expresso por meio das uniões matrimoniais, uma vez que elas simbolizam a união de
oikos e interesses, já que a cultura masculina se preocupa em manter laços sociais e públicos
com a mulher e não amorosos e afetivos. Nesse sentido, essa tragédia demonstra um
emaranhado de relações que são construídas na união de Medeia e Jasão e também na

63
Entendemos como oikos, local de vida privada onde as esposas atingiam sua vida social, um espaço que estaria
ligado a individualidade e a vida doméstica, e era reservado somente aos membros da família. Pode também ser
entendido como local de reclusão feminina ou menor unidade da pólis.
33
aproximação do Coro de coríntias que lastimam, juntamente com Medeia, as dores da princesa.
E desconstruídas no abandono do lar paterno, no fato de Jasão buscar um novo casamento e a
repudiar (construindo assim nova relação considerada legítima), na morte das crianças e no
afastamento do Coro. Com isso, desejamos evidenciar nesse momento, que o estatuto da mulher
e a sua aceitação, dentro no universo políade, acontece sempre relacionada a figura do
masculino, entretanto Medeia pertence e não pertence a esse sistema, entra e sai constantemente
desse regramento social.
No capítulo final, discorremos a respeito do processo intelectual que a personagem
Medeia apresenta durante a encenação e, principalmente, a partir da produção de um lógos
específico e particular, que é desqualificado pela figura do masculino, pois o lógos, como afirma
Detienne (2013), é um instrumento das relações sociais dentro da pólis e, portanto, não
pertencente ao universo feminino. Como dito anteriormente, o mal da princesa não era possuir
um conhecimento e sim ousar demonstrar esse saber e, particularmente, utilizá-lo para se impor
perante seus inimigos. Em consequência desse ato, Medeia recebe negativas por parte do
masculino que a declara como bárbara, reafirmando o seu exílio social na cidade grega,
desqualificando a sua posição e tentando subjugá-la.

34
CAPÍTULO 1: PÓLIS E TRAGÉDIA

Este capítulo inaugural dedica-se a elucidar alguns pontos fundamentais presentes na


dissertação, sendo necessária uma explanação a respeito de temáticas que envolvem a pesquisa
e que nos proporcionaram um suporte teórico ao longo da escrita. Iniciamos nos debruçando,
especificamente, no surgimento da tragédia, no universo políade, uma vez que ela se apresenta
como a principal fonte utilizada para a construção da problemática aqui apresentada.

A tragédia é um espetáculo teatral específico do século V a.C., que possui fatores


religiosos e cívicos nas suas manifestações no teatro do Dionísio. Nesse contexto desejamos
evidenciar de que forma a tragédia tornou-se significativa no interior da pólis, produto e
produtora dessa nova forma de convívio que modifica o pensamento e a prática por meio de
diferentes questionamentos, frutos do crescente diálogo social. Além disso, a pólis é o cenário
dos concursos trágicos relacionados com as celebrações, como nos afirma Vernant em seu livro
Mito e Religião: “os cultos dionisíacos fazem parte integrante da religião cívica, e as festas em
honra de Dionísio são celebradas, com os mesmos direitos que todas as outras, em seu lugar no
calendário sagrado” (VERNANT, 1992, p 78). O contexto histórico no qual a obra está
plasmada se torna fundamental, pois ele expressa através de palavras a mentalidade do trágico
Eurípides e da coletividade presente na plateia.

Num segundo momento, escolhemos mergulhar por algumas das principais obras
remanescentes do trágico, destacando principalmente a construção das mulheres Euripidianas.
Nesse ponto de vista, utilizamos as personagens femininas para corroborar nossa escrita e
ratificar as diversas facetas representadas através da figura da mulher, já que, aspectos
relevantes na singularidade do trágico que possuí como suas maiores criações as personagens
femininas, cita-se: Fedra, Ifigênia, Electra, Andrômaca, Hécuba, Alceste e Medeia, podem ser
evidenciadas.

E para conclusão do último tópico aqui apresentado iremos filtrar a pesquisa focalizando
na figura de Medeia, em particular na reconstrução que Eurípides realizou dessa figura mítica.
Como demonstrado anteriormente, a personagem foi largamente representada por outros
autores que se utilizaram de seu potencial de múltiplas formas. E aqui nos destinamos a
especificar a Medeia euripidiana, uma mulher que rompe com o silêncio delegado ao feminino,
confrontando por meio de palavras o masculino na tragédia, assim colocando-se em posição de
destaque e reconhecimento.
35
1.1 Contexto histórico da tragédia no interior da pólis

A tragédia grega surge64 num contexto específico de desenvolvimento da pólis, por isso
está intimamente conectada com essa formação social, que nesse momento, não mais deposita
o poder em torno do palácio real. A pólis se realiza justamente na ágora, um espaço comum no
qual são debatidos os problemas de interesse coletivo, e consequentemente “a política toma por
sua vez forma de ágon: uma disputa oratória, um combate de argumentos cujo teatro é a ágora,
praça pública, lugar de reunião” (VERNANT, 1984, p. 32). O antigo sistema político
aristocrático é substituído por uma elite que participa das lutas populares criando as condições
para um regime isonômico, assim observa-se a dissolução do poder absoluto e a formação de
novas estruturas de poder visualmente horizontalizadas.

Somando-se a publicidade da palavra e o aparecimento do pensamento filosófico, a


valorização do elemento deliberativo passou a ser um instrumento de comunicação e persuasão
como nos demonstra Gonçalves “o logos não era termo ritual ou fórmula justa. Era persuasão
construída através de um jogo dialógico” (GONÇALVES, 2008, p. 67). Nesse sentido, a pólis
se tornou apreciadora e até mesmo financiadora de manifestações sociais e artísticas realizadas
pela força da palavra em local de domínio público. Assim, as condições que favoreceriam o
aparecimento da tragédia se estabeleceram e segundo Vernant (1984) eram representadas pela
luta entre duas justiças: diké o agonizante mundo mítico e o efervescente mundo racionalista da
pólis. Dessa forma, “coube à tragédia, sob esta perspectiva reorganizar as experiências e dar
sentido ao mundo vivido, repensar os problemas da comunidade ateniense e representá-los em
uma nova dimensão ética e política” (MARSHALL, 2000, p. 35).

Por conseguinte, o universo trágico se fez presente como uma crise 65 onde a centralidade
gira ao redor da ambiguidade, ou seja, demonstra o choque entre duas forças opostas, de tal
modo que “as perguntas tradicionais que habitavam o coração do pensamento mítico e que
levavam a uma absolutização da hierarquização social foram superadas pela interrogação do
logos” (GONÇALVES, 2008, p. 65). Neste limiar, essa nova forma de pensar progressivamente

64
Aristóteles, em seu livro A Poética, afirma que o surgimento da tragédia se deve a variações dos festivais de
ditirambo que se faziam presentes no interior da pólis.
65
Para melhor compreensão consultar o capítulo “O Momento Histórico da tragédia grega”, da obra Mito e
Tragédia, de Jean Pierre-Vernant.
36
vai se afastar do pensamento considerado absoluto e novos questionamentos 66 surgem. É
justamente por consequência dessas mudanças que a tragédia pode ser gestada 67 no interior da
cidade de Atenas, pois tudo que está escrito na tragédia não é gratuitamente, possui uma
finalidade especifica, produzir uma reflexão no espaço isonômico. Conforme Burckhardt
(1988) nesse jogo a tragédia teria a função de substituir constantemente o novo pelo antigo,
manter vivas as velhas perguntas trazendo-as para uma nova forma de pensar e ver o mundo.

As reformas de Sólon68, na pólis, e a política exercida por Pisístrato 69 (605-527 a.C.)


forneceram também outros suportes para o surgimento do festival trágico. Como nos demonstra
Matheus Barros (2013), o apoio que o tirano recebeu da população foi fundamental para a
manutenção do poder e o surgimento das festividades dedicadas a Dioniso 70. Desta forma,
segundo Brandão “foi a partir principalmente desse tirano que em Atenas se celebravam quatro
grandes festas em honra do deus do vinho: Dionísias Rurais, Leneias, Dionísias Urbanas ou
Grandes Dionísias e Antestérias” (BRANDÃO, 2015, p. 131). Iremos expor brevemente um
esboço, focando posteriormente no nosso objeto de estudo. As Dionísias Rurais são consideras
as mais antigas festividades realizadas para o deus, uma cerimônia segundo Brandão “alegre e
barulhenta procissão com danças e cantos, em que se escoltava um enorme falo. Os
participantes dessa ruidosa falofória cobriam os rostos com máscaras ou disfarçavam-se de
animais” (BRANDÃO, 2015, p.131). E partir do século V a.C., esses festejos são enriquecidos
pelos concursos de tragédias e comédias, isso justifica-se pelo sucesso das disputas na cidade
de Atenas. As Leneias71, era uma celebração oficial em Lénaion, local onde existia o mais

66
Citamos para leitura o capítulo “A memória do Poeta”, do livro Os Mestres da Verdade na Grécia Arcaica, de
Marcel Detienne.
67
Nossa interpretação está fundamentada nos autores que compõem um movimento chamado Escola de Paris:
podemos citar Jean-Pierre Vernant, Marcel Detienne, Pierre Vidal-Naquet, Nicole Loraux, Claúde Mosse que
inspirados nos escritos de Louis Gernet repensam e inauguram uma nova perspectiva sobre os estudos na
antiguidade.
68
Em 592-591 a.C., Sólon é eleito arconte e é encarregado de uma reforma social e política, dividindo a sociedade
em quatro classes censitárias e realiza a abolição da escravidão por dívidas.
69
Pisístrato é considerado um dos maiores influenciadores para o surgimento do gênero, podemos citar por hora
os escritos de Vernant (2005, p. 157), Lesky (1976, p. 63), Grimal (1986, p.10) e Romilly (2008, p. 16)
70
Contudo, não encontramos nas peças ainda existentes a larga representação e a presença do deus, isso porque
somente uma tragédia remanescente se utiliza diretamente, a obra intitulada As Bacantes de Eurípides.
71 Nesse sentido, corroboramos que “as Leneias eram um festival de dimensões mais reduzidas, cuja assistência se

limitava aos cidadãos e residentes, já que o estado do mar impedia presenças estrangeiras na cidade. Pelo contrário,
a primavera e as facilidades de navegação que proporcionava traziam a Atenas numerosos estrangeiros, ou
motivados pela curiosidade de admirar as glórias da cidade de Palas, ou como representantes dos aliados, que ali
vinham depositar os seus tributos. Uns e outros engrossavam as fileiras de entusiastas que se aglomeravam, na
expectativa de assistirem às novidades teatrais do momento” (SILVA, 1987, p. 22).
37
antigo templo dedicado ao deus e também um teatro. Porém, pouco sabemos sobre o que
ocorriam especificamente naquele local.

As tragédias e os festivais dedicados ao deus estão intimamente conectados, desde a sua


origem, pois como nos afirma Lesky “o homem arrebatado pelo deus, transportado para seu
reino por meio do êxtase, é diferente do que era no mundo quotidiano” (LESKY, 1976, p. 62).
À vista disso, imbuídos nesse momento báquico, proporcionado pelos festivais, a cidade podia
suportar as representações teatrais. Nessa continuidade, Goldhill72 também afirma que esse
momento era uma ocasião fora do comum na cidade de Atenas, pois ela era “uma forma de
entretenimento que fala sobre a sociedade para sociedade” (GOLDHILL, 2007, p. 206). Era
justamente nessa ocasião que a cidade poderia suportar a representação das encenações, uma
vez que, “Dioniso encarna não o domínio em si, a moderação, a consciência dos seus limites,
mas a busca de uma loucura divina, de uma possessão extática” (VERNANT; NAQUET, 2014,
p. 158).

As chamadas Dionisíacas Urbanas73, nosso maior interesse, aconteciam em fins de


março e duravam entre cinco e seis dias com diversas atividades aqui delineadas:

Só nas festas deste deus é que se representavam tragédias. A grande ocasião era, na
época clássica, a festa das Dionisíacas Urbanas, que se celebrava na Primavera; mas
também havia concursos de tragédias na festa das Leneias, que tinha lugar pelo final
de dezembro. A própria representação inseria-se assim, num conjunto eminentemente
religioso; era acompanhada de procissões e sacrifícios. (ROMILLY, 2008, p. 14)

As comemorações iniciavam ao amanhecer, como nos afirma Rabinowitz (2008),


utilizando-se assim da luz natural do sol que favorecia a ambientação dos cidadãos no teatro e
que tinham por interesse influenciar visualmente os espectadores. Além disso, “o teatro onde
tinha lugar, e cujas ruínas ainda hoje visitamos, foi reconstruído por diversas vezes; mas era
sempre o teatro de Dioniso, com um belo assento de pedra para o sacerdote de Dioniso e um
altar para o deus no centro” (ROMILLY, 2008, p. 15). Dessa forma, “pode-se dizer que a
tragédia é a cidade que se faz teatro, que se coloca ela própria em cena, diante do conjunto dos
cidadãos” (VERNANT; NAQUET, 2014, p. 160), tal afirmação simboliza o impacto que esses
festivais e as suas representações possuíam no interior da urbe.

72
Goldhill também afirma que “A tragédia é encenada no território do outro – outros lugares, outros tempos, outros
povos” (GOLDHILL, 2007, p. 206) contudo a partir de um problema da sociedade ateniense que visualizava por
meio da representação teatral a ação humana.
73
A respeito dos festivais dedicados ao deus Trabulsi afirma “sem voltarmos a falar da natureza compósita da
tragédia, suas origens e seu caráter competitivo, convém insistir no fato de que as Grandes dionisíacas foram
escolhidas pelos tirados como um elemento importante de sua política, [...] as mais integradas à pólis.
(TRABULSI, 2004, p. 202)
38
Outro ponto fundamental a respeito do espaço é pensar em sua dimensão aberta e não
isolado da pólis74 favorecendo múltiplas representações e um contato próximo como os
cidadãos apreciadores e financiadores 75 do teatro. Esses locais, geralmente, eram construídos
de forma circular favorecendo a ideia de que todos estavam de forma igualitária naquele espaço,
embora “houvessem lugares separados para cada grupo social” (SILVA, 2017, p. 35).

Fonte: Blog Desenho Clássico

Nesses espetáculos76 trágicos, possuímos um personagem principal, o herói que cumpre


o seu destino e assume as consequências de seus atos e decisões deliberadas, e principalmente,
problematiza a representação dos grandes heróis, anteriormente idealizados nas epopeias.
Contudo, vale ressaltar que a estrutura aqui citada foi sendo arranjada ao longo do tempo, uma
vez que, houve uma ruptura entre o Coro e a criação de figuras que dialogam entre si. A tragédia
se tornou um veículo que levou ao debate os conceitos de limites da ação do homem e do poder,
pois os espectadores do teatro eram os magistrados, os sacerdotes, enfim os cidadãos 77

74
Pierre Grimal afirma que “O mais antigo local de espetáculos em Atenas é provavelmente o teatro de Dionysos
Eleuthereus, Dionísio de Elenteras [...] Esse teatro estava situado na encosta sul da Acrópole” (GRIMAL, 1986 p.
16).
75
Neste sentido, Goldhill afirma que o financiamento se realizava através do Estado, uma vez que “cada produção
era totalmente paga por um indivíduo abastado, eleito pelo Estado, em uma forma de taxação conhecida como
liturgia” (GOLDHILL, 2007, p. 201).
76
Destacando o processo teatral, Marshall afirma “o reconhecimento e a consagração histórica da tragédia grega
não dependeram de sua permanência discursiva, como palavra escrita legada à tradição, pois a tragédia não era
apenas uma elaboração literária sofisticada, mas também um espetáculo atraente” (MARSHALL, 2000, p. 18).
77
Destacamos a fala de José Ribeiro Ferreira “Para o grego, os cidadãos é que interessavam, eram eles que
constituíam o cerne da pólis e não o aglomerado urbano” (FERREIRA, 1992, p. 14).
39
atenienses, incluso os estrangeiros, o que nos leva a percebermos o grande alcance dessas
poesias.
A respeito da nossa visão de tragédia, afirmamos que a compreendemos como um
espaço no qual a cidade de Atenas debate os seus problemas, seguindo a perspectiva dos
autores, por exemplo, Vernant (1992), Detienne (2013), Veyne (2014), Romilly (2008),
Goldhill (2007), Edith Hall (2017), Villacéque (2013), Meier (1991), Marshall (2000) e
Gonçalves (2008). O teatro é assim apresentado como um local que proporciona a discussão e
principalmente a reflexão dos problemas inaugurados pela nova convivência. Observamos a
tragédia como um instrumento a partir do qual os atenienses discutem a crise que eles vivem.
Crise essa instalada pela nova convivência que veem ao encontro a um poder horizontalizado,
devido a isonomia e a isegoria. Dessa forma, na nossa interpretação o teatro não se apresenta
somente como um espaço que celebra um tipo de religiosidade, especificamente, um deus. Mas
sim, como um local que proporciona o questionamento através da representação que é
visualizada pelos cidadãos que financiam esse espetáculo. E é justamente esse ponto de vista
que nos proporciona observar as rupturas expressas através do discurso da personagem Medeia,
elementos trabalhados nos próximos capítulos, como nos afirma Grimal “E está história estava
sempre em relação direta ou indireta com a cidade onde se representava a tragédia, que era um
espetáculo com interesse para a coletividade dos cidadãos” (GRIMAL, 1986, p. 46).

O herói trágico deixou de ser um modelo como era representado e enaltecido nas
epopeias tornando-se para si mesmo e para os outros um problema. A tragédia assumira um
distanciamento em relação ao mito dos heróis em que se inspira e que transpõe com liberdade
questionando, confrontando os valores e as representações com os novos modelos de
pensamento. Na encenação teatral o herói era “A personagem trágica, vivida por um ator
profissional, individualizada por sua máscara em relação ao grupo anônimo do Coro. Essa
individualização, de forma alguma, faz do portador da máscara um sujeito psicológico, uma
‘pessoa’ individual”. (VERNANT, 2005, p. 12). Ademais, Romilly enaltece a figura do ator por
ser ele a “tornar pública uma emoção, uma explicação, um significado que não tinham sido
veiculados antes dele” (ROMILLY, 2008, p. 22). Percebemos assim que o humano e a sua ação,
nesse ambiente trágico, representam um descompasso no interior da cidade, esse herói do
passado reinterpretado apresenta-se como um enigma para esse espectador porque possui
sentido duplo, pois não pode ser fixado ou esgotado.
Além do herói trágico encontramos o Coro, um personagem coletivo, e ao mesmo tempo
anônimo, que era encarnado por um grupo oficial de cidadãos que tinha como papel exprimir
40
os seus temores, esperanças e interrogações. O Coro, fundamentalmente, expressa às partes
cantadas78 e traz à cena novos questionamentos que permeiam o interior da pólis, uma vez que,
“o Coro não mais se identifica com as personagens do mito; delas, fala apenas. É a palavra, não
mais a pessoa, que representa o fato” (SNELL, 2005, p. 99). Nesse sentido, Vernant (2005, p.
12) nos revela que o Coro não usava máscara, apenas disfarçado representava em cena um
personagem coletivo que encarnava a voz dos cidadãos. Existiam tragédias com Coro de
cidadãos da cidade, Coro feminino79 como no caso de Medeia, bem como, composto pelos
anciãos, citamos o caso de Agamêmnon, todavia ele será utilizado de acordo com o interesse
do trágico que poderia aproximá-lo do herói ou confrontá-lo.

Posto isto, a tragédia situa-se numa zona fronteiriça, na qual os atos humanos vem
articular-se com as potências divinas, que revelam seu verdadeiro sentido, inserindo-se numa
ordem que ultrapassa o homem e a ele escapa, pois “a tragédia não se atém rigidamente aos
acontecimentos do mito, não os considera uma realidade histórica como o faz a epopeia, mas
busca os motivos dos acontecimentos na ação humana e assim põe de lado o fato em si”
(SNELL, 2005, p. 110). As peças atualmente vistas como literatura não podem ser encerradas
somente no texto, uma vez que não conseguimos dimensionar a representação cênica dos
personagens numa leitura. Para além, o espetáculo em si possuía carácter de uma manifestação
cívica, em que cidadãos dirigiam-se a cidadãos, já que por “este fato se explica com toda a
certeza certos traços na própria inspiração dos autores de tragédia. Eles dirigiam-se sempre a
um público muito vasto, reunido para uma ocasião solene: é natural que tenham tentado
alcançá-los e interessá-los” (ROMILLY, 2008, p. 15).

É nesse ambiente trágico que ocorre a ruptura/superação do mito na tradição e na


tragédia, em razão de a tragédia ser uma criação autoral produzida a partir de um problema
contemporâneo do autor e de sua plateia. Consequentemente, ela se apresenta, como já aludido
anteriormente, como um espaço que proporciona o debate de diversos assuntos referentes a
própria convivência da pólis. Assim, o mito é o meio pelo qual o trágico se comunica com a
plateia, utilizando-se de um contexto para seus questionamentos atuais que habitam no interior
da pólis. É por meio desses três eixos, cidade, autoria e passado que a tragédia se estabelece
dependendo ativamente de todos esses eixos para manter seu impacto nos cidadãos,

78
Pierre Grimal afirma que “na sua forma mais antiga, a tragédia grega é, em grande parte, um canto lírico”, dessa
forma, não podemos esquecer das principais características da encenação trágica.
79
Em uma análise rápida podemos observar a predominância de Coros femininos como nos demonstra Silva
(2017): vinte um Coros femininos e dez masculinos.
41
consequentemente ela exprime o pensamento social80 da cidade, por isso Vernant afirma que
“a tragédia grega aparece como um momento histórico delimitado e datado com muita precisão.
Vêmo-la nascer em Atenas, aí florescer e degenerar quase no espaço de um século”
(VERNANT, 2005, p. 2).

A cidade possuía uma relação muito próxima com o teatro, uma vez que, ele se
apresentava assim como as assembleias como um local público que proporcionava a discursão
de assunto referentes ao convívio da pólis. Nesse sentido,

A tragédia não discute teoria política ou filosófica, sua preocupação é com a


demarcação de um tipo de vivencia na cidade, isto é, ela realiza uma reflexão sobre o
vivido, mistura tempos, articula práticas diferentes sempre buscando criar com
espectador cidadão uma profunda sintonia. (GONÇALVES, 2018, p. 108)

Essa nova constituição social a partir de um processo isonômico no interior da cidade


de Atenas nos demonstra o constante choque radical entre as diferentes formas da experiência
do humano no interior da cidade, por isso o teatro é questionador. Além de segundo autor acima
citado “constitui na exata medida em que se desprende das relações de parentesco”
(GONÇALVES, 2018, p. 109) pois observamos uma nova estruturação social e cultural se
desenvolvendo no interior da pólis. O teatro é a expressão da cidade de Atenas, são cidadãos
escrevendo e encenando para cidadãos, e os mesmos financiam esse espetáculo, dessa forma
proporcionando uma constante manutenção.

Logo, a tragédia proporciona grandes impactos na cidade de Atenas e na vida de seus


cidadãos que vivem um novo modelo social e político, que se findará em consequência do
extenso conflito militar entre as regiões do Peloponeso e da Ática. Crise essa gestada após a
invasão dos persas, em resposta a essa ação em 476 Atenas concentra sua força na formação de
uma liga marítima que tinha como finalidade libertar as cidades gregas do poderio estrangeiro,
assim surgindo a Liga de Delos. Além disso, “Atenas, contudo, está segura de si, e, em vez de
usar a mais elementar prudência, Péricles parece bem decidido a provocar um medir de forças
para se aproveitar dos incontestáveis êxitos que teve” (LÉVÊQUE, 1967, p. 284). Nessa
perspectiva, segundo o autor referido a causa do conflito se deve ao choque do imperialismo
intransigente de Atenas conta a vontade da independência e os interesses comerciais de algumas
grandes cidades naquela região. Não apenas no social e politicamente Atenas sentiu os impactos
do conflito, “a agricultura fica durante muito tempo arruinada” (LÉVÊQUE, 1967, p. 287)

80
Vernant chama esse pensamento de consciência trágica (VERNANT, 2005, p. 9).
42
ocorrendo assim um êxodo em direção a cidade que também já não possuía estruturas
adequados por consequência dos gastos com a guerra.

Contudo, a concentração de poder ao redor de Atenas, a transferência da liga para essa


pólis, além da imposição de seu regime político para outras cidades levou a reação dos
diferentes sistemas políticos contrários. Salientamos que a peça Medeia foi encenada meses
antes do ataque a Plateia que se caracteriza como o início da Guerra do Peloponeso, nesse
sentido “na altura da apresentação da peça já havia desentendimentos entre Corinto e Atenas,
por conta dos conflitos envolvendo Corcira, Epidamno e Corinto” (JÁCOME, 2010, p. 267).
Dessa forma, a cidade já vivia uma certa instabilidade política frente a guerra que anunciaria
uma transformação após três décadas de conflitos. Após muitos anos de guerra 81, Esparta sai
vencedora e Atenas tem seu sistema político isonômico arrasado. Sendo assim, as instituições
de domínio público, como a ágora e o teatro, deixam de ser centros de disputas e deliberações,
como no apogeu, e a tragédia se extingue na virada do século.

1.2 Eurípides e as mulheres

A respeito de Eurípides possuímos poucos subsídios, postula-se que o ano de seu


nascimento é inexato datando ser 48482 ou ano da batalha de Salamina e, o seu falecimento data
de 406, mesmo ano da morte de Sófocles 83. Ao contrário desse nada sabemos informar sobre
alguma atividade que Eurípides exerceu a serviço de Atenas, conforme Scodel (2017, p. 25)
podemos razoavelmente afirmar que ele não ocupou grande cargo público. Por outro lado,
Eurípides em seus escritos declarou profundos sentimentos à pólis, levando para o teatro
assuntos caros a convivência isonômica.

Além disso, segundo o autor ele era “porta-voz de uma nova época, Eurípides, mais que
qualquer outra personalidade de seu tempo, foi alvo da zombaria da comédia 84. Aquilo que, em
intervenções grotescas e atrevidas, foi ligado ao seu nome, em muitos casos, passou a figurar
na pseudo-história” (LESKY, 1976, p. 159). Sabemos que o poeta foi criador de personagens

81
Em seu livro denominado História da Guerra do Peloponeso Tucídides afirma que umas das principais causas
do conflito é o poderio ateniense que se tornará intolerável aos outros gregos. Ver a bibliografia.
82
Todas as datas relacionadas ao poeta Eurípides e as suas obras são a.C.
83
O trágico possui data de nascimento em 497 e falecimento em 406
84
Os trágicos Eurípides e Ésquilo foram representados pelo autor Aristófanes em sua comédia denominada As Rãs
no teatro de Dionísio (em itálico ou entre aspas), no ano de 405 a.C.
43
profundamente humanos e que privilegiou as mulheres em suas obras e as fez centro de suas
principais intrigas. Contudo, conforme Scodel (2017, p. 26)) não existe nenhuma informação
confiável a respeito de como Eurípides se tornou trágico 85 e iniciou a sua produção na
Dionisíaca de 455.

Nessa escrita, destacamos alguns aspectos relevantes na singularidade do trágico que


possuí como suas maiores criações as personagens femininas, cita-se: Fedra, Ifigênia, Electra,
Andrômaca, Hécuba, Alceste e Medeia sendo consideradas destaque em suas obras. Embora,
Eurípides 86 possuísse dramas que somariam noventa, os cidadãos atenienses só por cinco vezes
chegaram à mesma sentença e lhe premiaram também com um título póstumo. Nesse sentido,
Gibert (2017) afirma que dentro da estrutura trágica baseada na alta taxa de premiações de
Sófocles ocorreria assim uma competição na qual Eurípides desesperadamente buscava novas
táticas para compor suas obras e consequentemente teria desenvolvido ao longo do tempo um
estilo próprio.
Contraditoriamente é entre os trágicos o que possui mais peças ainda presentes, como
nos demonstra Nólibos em sua tese 87: “Eurípides é um dos três dramaturgos gregos de quem
foi preservada uma quantidade razoável de tragédias. Das centenas que foram representadas em
Atenas, conservaram-se ao todo 32: sete de Ésquilo, sete de Sófocles e dezoito de Eurípides, se
considerarmos o Reso” (NÓLIBOS, 2006, p. 83).
Como dito anteriormente, eram os cidadãos que financiavam as encenações no interior
da pólis de Atenas, e quando falamos da recepção desse público com as obras de Eurípides
percebemos que as inovações propostas pelo trágico, de certa forma, não foram muito bem
acolhidas pelos espectadores. Devido a isso Romilly afirma “no teatro, a sua carreira foi muito
notada, mas muito contestada: tendo começado em 455, só treze anos mais tarde foi classificado
em primeiro lugar e, depois disso, apenas mais três vezes em trinta e seis anos” (ROMILLY,
2011, p. 129). Destarte notamos que suas inovações cénicas nas tragédias não foram bem aceitas
pelos atenienses, uma vez que, segundo Scodel (2017, p. 25) Eurípides teve um relacionamento
conturbado com a maioria da audiência e detinha um pequeno séquito dedicado sua obra.

85
Além disso, a autora Scodel (2017) afirma que a escrita de Eurípides se assemelha muito a um filósofo devido
a possibilidade de debate de assuntos anteriormente não discutidos no interior da pólis.
86
Podemos citar suas criações ainda existentes: Alceste 438, Medeia 431, As Heráclidas 430, Hipólito 428,
Andrômaca 425, Hécuba 424, As Suplicantes 423, Electra 420, Herácles 416, As Troianas 415, Ifigênia em Táuris
414, Íon 413, Helena 412, As Fenícias 410, Orestes 408, As Bacantes e Ifigênia em Áulide 405.
87
Tese defendida em 13 de outubro de 2006 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, título: Eros e bia entre
Helena e Cassandra: Gênero e violência no imaginário clássico ateniense. Sob orientação do professor doutor
Francisco Marshall.
44
Contemporaneamente o autor continua atraindo muitos pesquisadores que se dedicam a
aprofundar suas pesquisas e tem como objeto de estudos as tragédias existentes. Nesse
segmento, iniciamos com as afirmações de Albin Lesky (1976) que observa nas tragédias de
Eurípides, a ocorrência de uma luta, precisamente no fato de que para ele a tradição perde o
valor quando se trata de enfrentar uma nova questão, a qual muitas vezes, em suas espertezas,
em um lugar claro de conhecimento, se evidenciam os aspectos contraditórios das coisas, ou
seja, “apesar de tudo, porém, é impossível negar o trágico dessa surtida batalhadora do espírito
humano, apoiado em si mesmo, para dentro do caótico e perigoso domínio das antinomias, e
isto constitui precisamente o trágico do poeta e do homem Eurípides” (LESKY, 1976, p. 163).
Historiadores como Lesky (1976, p. 165) e Grimal (1986, p. 51) afirmam que o poeta
Eurípides 88 foi fortemente influenciado pelo pensamento sofista 89 que estava em efervescência
na pólis de Atenas no século V a.C.

Também encontramos pesquisadores que desejam evidenciar o protagonismo das


personagens femininas criadas por Eurípides, pois “suas narrativas estão crivadas de
personagens protagonistas do sexo feminino e a variação temática é imensa” (NÓLIBOS, 2006,
p. 84). As mulheres de Eurípides atraíram diversas pesquisadoras, como a já citada Nólibos
(2006) com pesquisas dedicas as personagens Helena e Cassandra; Cândido (2006) e Sousa
(2011) que se dedicam a personagem Medeia e seus encantos. E autoras como Neves (1980) ou
Franciscato (2014) que visualizam nas tragédias Hécuba e As Troianas uma discussão política
a respeito do contexto da pólis de Atenas, período em que estava envolvida com a Guerra do
Peloponeso. Ainda encontramos interpretações que afirmam que Eurípides era “conhecedor do
universo cultural, conseguiu apreender perfeitamente bem o conjunto de virtudes que
compunha o modelo feminino ideal do período Clássico” (LESSA, 2001, p. 32). Porém, não

88 Diferentemente de Sófocles que elabora uma crítica à prática da sofística na condução dos assuntos de Atenas,
Eurípedes apresenta personagens que se utilizam da elaboração discursiva sofística, deixando ao espectador o
espaço da reflexão quanto as atitudes desses personagens, como por exemplo Helena nas Troianas. Também em
Orestes o jogo sofístico desenrola-se entre outros personagens, em Menelau e no próprio Orestéia que altera 7
vezes os motivos que os levaram a assassinar sua mãe.
89
Esteticamente, os sofistas receberam críticas expressas nas comédias gregas e principalmente nos escritos do
filósofo Platão, que alegava como errada as atitudes desses indivíduos que “vendiam” o poder da palavra.
Independente da forma como os sofistas foram representados para a posteridade, segundo os autores acima citados,
o poeta Eurípides foi entusiasmado por essa nova forma de reflexão. Sendo assim, existiria uma ruptura com a
tradição em todos os setores da vida e a conversão em objeto de debate de todas as relações da existência humana.
Neste movimento, o homem sai da guarda segura da tradição e é metido dentro do mundo das antinomias. Também
podemos citar, Jacqueline de Romilly (2011) que classifica Eurípides como um moderno em seu tempo e o trágico
da paixão. Além disso, encontramos afirmações a respeito de Eurípides “O requinte sofista não é engenho
praticável em fala comum; estamos, sem dúvida, diante de uma elaborada redação poética” (TRUPERSA, 2013,
p.23).
45
acreditamos que o trágico se dedicava profundamente a demonstrar um padrão de
comportamento que deveria ser conduzido na sociedade ateniense posto que sua maior
produção foi no período de desmonte do sistema isonômico, uma crise sem precedentes.

1.2.1 Mulheres Euripidianas

Neste sentido, discorreremos a respeito de algumas de suas obras, datas e personagens,


sendo nosso maior interesse utilizá-las para fundamentação da argumentação aqui pretendida.
Assim, focalizamos, as mulheres, que de alguma maneira, Eurípides concedeu voz e poder de
fala nas suas produções trágicas, especificamente no século V. Nosso objetivo nesse tópico é
concatenar as outras mulheres euripidianas, que de alguma maneira, se aproximam da
personagem Medeia, seja pela deliberação ou através das relações de parentesco.

A primeira obra que ainda dispomos foi representada antes dos confrontos da guerra do
Peloponeso e por isso apresenta uma temática mais branda em relação as posteriores. Alceste,
de 438, apresenta o tema do sacrifício até a morte, ocupando o quarto lugar numa tetralogia90.
Na poesia dedicada a personagem de Alceste, observamos que diferentemente dos pais de
Admeto, que negam-se a trocar de destino com o próprio filho embora fossem velhos, Alceste
não. A princesa vive durante um período ao lado de seu esposo, assume o seu papel de mulher
conforme o interesse da sociedade grega, sendo esposa e mãe, mas com a presença constante
da morte no seu futuro já demarcado. A respeito dessa obra conseguimos encontrar muitas
afirmações romantizadas que desconsideram o contexto de produção, por isso, ela é vista como
“a grandeza da mulher capaz de tal sacrifício em contraste com esse fundo mesquinho”
(LESKY, 1976, p. 167) ou como “símbolo de esposa virtuosa” (LESSA, 2011, p. 24)
Após a morte de Alceste na peça, o posicionamento de Admeto se altera e ele observa
que sua escolha foi muito dolorosa. Junto ao túmulo da esposa percebe que não deveria ter
aceito que Alceste morresse sacrificando-se, pois agora consegue enxergar que no fundo esse
desígnio lhe destruiu.

90
As peças anteriores eram As Cretenses com a história de adultério de duas filhas do rei de Creta; o Alcmeon em
Psofis, com o drama dos destinos de um matricida e do fiel amor de mulher e Telefo que para indignação dos
atenienses fez o rei dos músicos entrar em cena vestidos de farrapos. Essas outras três tragédias citadas,
desapareceram ao longo dos séculos e somente possuímos conhecimento dessas informações porque, segundo
Lesky (1976), outros pesquisadores contemporâneos a Eurípides como, por exemplo, o poeta Aristófanes, que
retratou o trágico em suas comédias, e o pensador Agaton, que citou essas obras em seus escritos.
46
Ó longos lutos e dores
por nossos sob a terra!
Por que me impediste saltar
no cavo sepulcro do túmulo
e jazer extinto com a melhor?
Em vez de uma, Hades teria
duas almas fidelíssimas, juntas
transpondo a lagoa subterrânea (ALC vv. 895-900)91

A tragédia, porém, tem uma reviravolta com a chegada do herói Héracles na casa de
Admeto, que é comunicado do luto do rei e decide intervir indo até o submundo resgatá-la. Essa
poesia apresenta um epílogo que pode ser considerado como feliz, se comparado as outras
tragédias escritas pelo poeta, porém mostra a diferença entre os personagens masculinos,
personificados em Admeto e seu pai, e no outro extremo a jovem Alceste. Observamos nessa
obra que, após realizar socialmente a sua função, ser mãe e esposa, Alceste renúncia de sua vida
acreditando ser o melhor para sua descendência, algo que está relacionado as relações de
parentesco dessa família. Nesse sentido, nos questionamos: estaria Alceste, igualmente como
Medeia, não aceitando que o marido adquira um novo enlace matrimonial? Seria por causa dos
filhos que a rainha pediria isso para Admeto?

A próxima criação do trágico que citaremos é a peça Hipólito, de 428, a qual


dedicaremos um mergulho mais aprofundado devido a figura feminina ser uma personagem
marcante e crucial. É uma tragédia que relata a paixão proibida de Fedra por seu enteado,
Hipólito, filho de Teseu, que mantinha-se virgem devido ao apego e veneração a deusa Ártemis.
Nessa perspectiva, Lesky corrobora que:
o caráter patológico do tema mais suportável aos atenienses, mas continua sendo algo
singular, para Eurípides, o fato de que as cenas emoldurantes da ação representam-na
como resultado da disputa entre duas deuses, Afrodite e Ártemis. [...] Para Eurípides,
Afrodite e Ártemis não representam as grandes e reais potências em que se encerra o
verdadeiro sentido dos acontecimentos, tomados pela crença popular. (LESKY, 1976,
p.178)

Desta forma, as deusas92 aqui citadas são as representações dos desejos internos de
ambos personagens, masculino e feminino, e consequentemente os seus posicionamentos

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92
Essa posição das deusas também é defendida por Romilly: “a peça é enquadrada pelas duas figuras divinas
rivais, Afrodite e Ártemis, o amor e a pureza; mas sua verdadeira luta desenrola-se no coração mesmo de Febra”
(2011, p. 131).
47
contrários em cena detém uma hybris particular. Hipólito93 porque nega a grande potência da
deusa Afrodite mantendo-se casto e Febra que deseja seu enteado suicidando-se. Teseu ao
chegar no palco encontra a esposa morta com uma carta ao lado, na qual acusa o príncipe de
ser o responsável por sua morte. O rei em um estado de hybris invoca a maldição de seu pai, o
deus Poseidon, que envia um terrível touro que emerge do mar espantando assim o cavalo do
jovem Hipólito que é arrastado para a morte. Posto isto, observamos que Febra luta com as
mesmas potências internas que Medeia, entretanto com desfechos díspares uma vez que, Febra
mata-se94. Nicole Loraux, em seu livro Maneiras Trágicas de Matar uma mulher, nos
demonstra que esse ato é visto como excesso, entretanto não é percebido como desonroso para
o feminino. Matar-se devido alguma cólera, principalmente nas tragédias, é tido como algo
considerado cenicamente impactante, uma vez que “as mulheres só morrem de morte violenta”
(LORAUX, 1985, p. 24).
Durante os anos de produção, Eurípedes também se dedicou a uma incursão já muito
utilizada por outros autores, um tema clássico, a guerra de Tróia 95. A respeito dessa encenação
a mesma pode ser associada a um dos piores momentos da Guerra do Peloponeso, e partir dessa
interpretação Eurípides demonstrara para os atenienses96 os horrores da guerra. Franciscato nos
afirma que:
Nessa época, a Guerra do Peloponeso já acumulava exemplos de situações violentas
e cruéis. No verão de 427, aconteceu a capitulação de Mitilene frente a Atenas. Após
uma assembleia popular, os atenienses decidiram que todos os guerreiros mitileneus
deveriam ser mortos e suas mulheres e crianças, escravizadas. Tal decisão foi revista
no dia seguinte e ficou definido que apenas os culpados seriam mortos. Assim, foram
executados mais de mil homens (Tucídides 3.36-50). No outono do mesmo ano
ocorreu a capitulação de Plateia e não menos de duzentos plateenses e 25 atenienses
foram mortos pelos peloponésios e tebanos, e as mulheres dos plateenses também
foram escravizadas (Tucídides 4.47 ss). Essa é a atmosfera que Eurípides respirava ao
escrever Hécuba (FRANCISCATO, 2014, p. 28)

Eurípides buscou um novo sentido ao escrever sua tragédia a respeito da guerra de Tróia
e para tanto se utiliza das mulheres para aprofundar os sentimentos de dor e sofrimento daquelas

93
Nicole Loraux afirma que Afrodite não sentia ciúmes, um sentimento tipicamente reservado ao feminino, quando
no prologo declara serem erradas as atitudes de Hipólito, a deusa na realidade acredita ser excessivamente elevada
para um mortal essa convivência tão próxima como o sagrado (LORAUX, 1990, p. 32). Por isso, nesses escritos,
a autora afirma que a castidade era um luxo destinado somente as divindades, algo não proporcionado aos
humanos.
94
Além disso, segundo Romilly “com efeito, de uma forma geral, as paixões arrastam, no teatro de Eurípides,
todas as espécies de violência devidas ao desejo de retribuir um golpe com outro golpe, de fazer sofrer porque se
sofre” (ROMILLY, 2008, p.129).
95
Romilly (2011, p. 131) afirma que essa representação nos demonstra a piedade de Eurípides pelos vencidos e
nos demonstra sem filtros os males da guerra.
96
Franciscato ainda afirma que “mesmo Eurípides tivesse Melos em mente, ele não podia insultar os atenienses,
responsáveis pelo ocorrido” (FRANCISCATO, 2014, p. 33). Assim sendo, o trágico se utiliza de um outro contexto
para pôr em cena o debate do preço da guerra e o rompimento dos limites da ação humana.
48
que veem sua cidade cair, principalmente, enfatizando a rainha troiana que amargura a perda
de seus filhos e filhas. A tragédia Hécuba, de 424, é uma representação do final da guerra,
demonstrando o feminino que se torna cativo juntamente com o espólio de guerra.
Mencionamos Lesky para demonstrar o contexto da peça:
Tróia está destruída, a frota grega pronta para a viagem de regresso, e as mulheres
prisioneiras lamentam o seu destino. Entre elas está Hécuba, golpeada pelo mais
pesado sofrimento. Viu tombarem o esposo e quase todos os filhos, sua cidade é um
monte de escombros, mas o espectro do filho Polidoro nos anuncia, no prólogo, que
seu tormento ainda não chegou ao fim. De todos os seus filhos, pelos menos a este,
queria salvar e enviara-o, com ricos tesouros, ao rei da Trácia, Polimestor, em cuja
hospitalidade confiava. (LESKY, 1976, p. 183)

Entretanto, na sequência o jovem príncipe é executado e os gregos exigem o sacrifício


da jovem Polixena, em honra do herói Aquiles. O tema do sacrifício 97 é novamente representado
e em especial evidencia-se a força da virgem, igualmente as outras personagens femininas de
Eurípides, que não rogam pela sua vida.
Leva-me, Odisseu! Leva e mata-me!
Não vejo em nós ousadia de esperar
nem de crer um dia dever estar bem.
Ó mãe, não nos imponhas empecilho
por fala ou ação! Aprova meu desejo
de morrer antes de indignos vexames! (HEB vv. 369-374)98

Na tragédia podemos visualizar que a rainha de Tróia de certa forma ainda ocupa um
certo status perante os gregos, uma vez que, a personagem apresenta um poder individual de
deliberação, muitas vezes, enfrentando seus inimigos. Numa tentativa final de vingança a rainha
pede auxílio a sua filha Cassandra, que é cativa do rei Agamêmnon99, todavia a jovem encontra-
se em delírio profético antevendo seu futuro. Agindo solitariamente, a rainha atrai para tenda
Polimestor e seus dois filhos pequenos e diante dos olhos do pai assassina as crianças e
posteriormente cega o guerreiro.
Navegando no mesmo sentido, Eurípides continua demonstrando os horrores da guerra
e do desiquilíbrio humano, dessa vez através da obra Andrômaca que, em 425, expõe a vida da

97
Loraux em seus escritos afirma “Entre as moças em flor é o sacrifício e o sangue derramado que dominam. Por
terem menos autonomia que as esposas, mesmo no universo trágico, as virgens não se matam; são mortas”
(LORAUX, 1985, p. 63).
98 Eurípedes. Eurípides - Volume 1 (Teatro Completo). Iluminuras. Edição do Kindle.
99
Cassandra, em consequência de seu poder de adivinhação, já conhece o seu destino na Grécia e profere palavras
que as outras mulheres não compreendem.
49
personagem como cativa de guerra já em território grego. A esposa do príncipe Heitor amarga
a sua desgraça como concubina de Neoptolemo, filho de Aquiles o responsável pela morte de
seu marido. O jovem vive na Tessália, pátria de seu pai, trouxe Andrômaca de Tróia e casou-se
com a Hermíone, filha de Menelau. Essa tragédia possui um desfecho intimamente ligado as
relações de parentesco que são alicerçadas nesse instante: Hermíone permanece estéril e
Andrômaca engravida, em consequência da gestação a perseguição se inicia.
Na tentativa de proteger-se Andrômaca pede auxílio no santuário de Tétis, local onde é
declarado o prólogo. Após diversas tentativas de perseguição, Menelau ameaça de morte a
criança obrigando a mãe a sair do refúgio, entregando ambas para sua filha. Contudo, todos são
surpreendidos pela presença de Peleu, avô de Neoptolemo, que num processo de ágon com
Menelau, exige a libertação das vítimas e acusa Hermíone.

Ela, por ser vitela seca, não suporta


que outros gerem, por não ter filhos.
Mas, se tem má sorte quanto à prole,
devemos nós ser privados de filhos? (AND vv. 711-712)100

Outro personagem neste instante entra em cena para o desenrolar de novos


acontecimentos, o jovem Orestes 101 que tem presença fundamental, posto que era prometido de
Hermíone quando criança, e motivado pela moça trama a morte de Neoptolemo em Delfos.
Essa notícia é declamada por um mensageiro que participa da peça para informar o final
trágico do herói:
Esperavam por ele ocultos com faca sob o loureiro,
entre os quais o autor do plano era o filho de Clitemnestra (AND vv.
1114-1115)102

Eurípides 103 nessa obra construiu uma personagem feminina audaciosa, como as
anteriormente citadas, posto que ela nos evidencia um processo de deliberação, mesmo após

100 Eurípedes- Volume 1 (Teatro Completo) . Iluminuras. Edição do Kindle.


101
Orestes é filho de Agamenon, irmão de Menelau. Esse personagem aparece como maior relevância nas tragédias
que compõem a trilogia Orestéia de Ésquilo, visto que é o responsável pela morte de Clitemnestra.
102 Eurípedes- Volume 1 (Teatro Completo) . Iluminuras. Edição do Kindle.
103
Jacqueline de Romilly afirma que “o que mais comoveu Eurípides na guerra foi menos o ímpeto da violência e
o escândalo da morte do que a mágoa das mulheres, das cativas, dos seres sem defesa. Assim não é de espantar
que tenhamos dele duas outras tragédias consagradas às mulheres de Tróia” (ROMILLY, 2008, p. 121).
50
perder a pátria, o esposo e o filho ela se mantém firme e centrada nos objetivos de sua vida:
proteger o novo filho. Em cena vemos a hybris de Menelau e sua filha Hermíone predominar
sobre a mulher troiana que busca abrigo para si e sua prole. Nessa perspectiva, Andrômaca
suplica pela vida de seu filho, exercendo assim seu papel de mulher/mãe. Embora suas falas
sejam fortes elas estão de acordo com os interesses da sociedade grega, pois ela mantém um
papel cívico de proteção da linhagem, uma vez que Tétis lhe promete imortalidade afirmando
que ao lado de seu cunhado, Heleno, ela se tornará a progenitora de uma grande estirpe. Assim,
Andrômaca não rompe com o ideário doméstico do feminino, ela delibera justamente para
manter-se no interior dessas relações, independentemente de sua origem.
A tragédia que encerra essa temática é As Troianas, de 415, que retrata o final da Guerra
de Tróia a partir da visão do feminino, demonstrando o que ocorreu com as prisioneiras
escravizadas que aguardam o embarque para a Grécia na praia de Tróia. O contexto desta data
é discutido por Lesky que afirma “quando em 415 Eurípides apresentou suas Troianas, o curto
sonho de paz se desvanecera e Atenas preparava a expedição contra a Sicília” (LESKY, 1976,
p. 193). Sendo assim, mesmo após alguns acreditarem ser uma investida perigosa, a expedição
foi realizada e logo a certeza da terrível decisão recaiu sobre a cidade.
Eurípedes a partir da voz do feminino demonstra a destruição de Tróia e o poder dos
aristocratas aqueus que disputam as mulheres, evidenciando assim a situação de Atenas aos fins
do século V a.C. dominada por facções internas que lutavam para estipular uma nova ordem,
produzindo uma destruição no modelo de convivência da pólis. As areias da praia ao mesmo
tempo território hostil por ser um lugar não civilizado, mas também areias que anunciam novas
formas de reinício, em meio a um passado em desmonte. Mulheres e aristocratas, as primeiras
revendo seus passados e descobrindo seu futuro como escravas e aristocratas, vitoriosos
disputando as rainhas e princesas, sobras de uma sociedade em extinção.
O prólogo se inicia com Poseidon 104 que descreve a destruição da cidade, cujas muralhas
ele mesmo erigiu outrora, além da presença da deusa Atena, divindade que durante o combate
esteve ao lado dos gregos, porém agora modifica sua disposição após ofensas proferidas pelo
herói Ajax. O destino das mulheres troianas é representado em cena, elas são divididas entre os
heróis como objetos 105: Hécuba é entregue a Odisseu, Andrômaca ficará com Neoptolemo,
Cassandra irá para Grécia ao lado de Agamêmnon e Polixena será sacrificada em honra ao herói

104
O deus também demonstra que a hybris causadora dos excessos na guerra serão cobradas de alguma maneira,
visto que “Tolo é o mortal devastador de urbes, pilhando templos e tumbas sagradas dos mortos, ele mesmo perece
depois.” (vv. 95-98) Eurípides - Volume 2 (Teatro Completo). Iluminuras. Edição do Kindle
105
A própria rainha afirma que suas vidas serão escolhidas por sorteio (v.186).
51
Aquiles. Neste sentido, Nóbilos, em sua tese, fala especificamente desse processo violento de
distribuição do feminino, afirmando que:

[...] a distribuição de mulheres era prática corrente, parte integrante do butim a ser
escolhido, presenteado ou sorteado aos exércitos depois de uma vitória.
Especialmente relacionada como o modelo aristocrático, que, na ausência de moedas,
prestigiava guerreiros com presentes e mulheres. (NÓLIBOS, 2006, p.95)

Dessa forma, ressaltamos que Eurípides em suas tragédias representou a queda da


famosa cidade de Tróia aos olhos das mulheres que choram seus maridos e filhos. É uma peça
que encena a dor vinculada a família e a sua pátria, pois como nos afirma Zimmermann (1991)
a guerra não faz distinção entre os vencedores e vencidos, entre os triunfantes e humilhados,
uma vez que traz morte e sofrimento para todos. Nessa perspectiva, o confronto de Hécuba com
Menelau traz a essa questão: o que se fará agora com a responsável pelo início dessa guerra,
Helena106. O feminino troiano personificado na rainha e no Coro107 de cativas reivindicam
punição, pois Helena seria responsável por todos esses males.

Ó Menelau, saibas como concluirei:


Coroa a Grécia de modo digno de ti,
mata-a, e esta lei às outras mulheres
aplica: morrer quem trair o marido! (TRO vv. 1029- 1032)108

Romilly, nessa perspectiva, também afirma que “tiradas brilhantes sublinham, aqui e
ali na peça, o absurdo desta guerra que, por um motivo tão mesquinho, devia provocar tanto
sofrimento, e que, também desta vez, os vencedores não são apresentados mais felizes do que
os vencidos” (ROMILLY, 2008, p.123). Desta maneira, o feminino revolta-se e deseja que a
culpada também sinta as dores da perda, contudo Helena não é morta por Menelau e retorna
para Esparta.

106
Citamos novamente a tese de Nólibos que se utiliza da personagem Helena para composição de seus escritos,
afirmando que “Helena precisa justificar sua atitude e estrategicamente toma ‘o ataque como a melhor defesa’:
começa acusando a mãe de Alexandre, Hécuba, por tê-lo gerado; depois o pai, Priamo por não tê-lo morto; e a
deusa Afrodite, pois no concurso de beleza entre as deusas, ofereceu em troca do título a própria Helena”
(NÓLIBOS, 2006, p. 238).
107
“Ó rainha, defende teus filhos e pátria da persuasão destrutiva dela, que fala bem, sendo maléfica! Isso é
terrível!” (vv. 596- 598) Eurípides - Volume 2 (Teatro Completo). Iluminuras. Edição do Kindle.
108 Eurípides - Volume 2 (Teatro Completo). Iluminuras. Edição do Kindle.

52
Após discutir temáticas envolvendo o conflito bélico entre gregos e troianos, Eurípides
manteve pela mesma direção em As Suplicantes, de 423, sendo a única peça que permanece da
tetralogia composta ainda por: Os Egípcios, As Danaides e o drama sátiro Amimone. Essa poesia
se dedica a evidenciar a palavra das mães dos heróis que tombaram no combate representado
na obra Sete contra Tebas do poeta Ésquilo. Por consequência, as mães dos jovens simbolizam
um coletivo que suplica o auxílio de Teseu para enterrar seus filhos após o conflito que marcou
a cidade. Neste sentido, encontramos interpretações que afirmam que “As Suplicantes têm como
centro de ação a preservação do nómos preservação que é um dos predicados da cidade, pois é
pelos nómos que ela guia suas decisões” (NEVES, 1980, p. 100).
O ponto principal dessa encenação consiste na cidade de Atenas ser vista como
defensora da justiça, personificada na figura de Teseu109, que auxilia as mulheres a recuperar
os corpos e que é contra um confronto bélico naquele instante. Porém, nesse período, a cidade
de Atenas estava diretamente envolvida com a Guerra do Peloponeso, e novamente Eurípides
demonstra as dores, pela visão feminina.
Nessa perspectiva, observamos que essa violência, que estava pairando sobre o contexto
de produção autoral do trágico, foi muito impactante nos seus escritos, visto que diversas obras,
acima citadas, ambientam-se em momentos de conflito ou após a sua devastação. Romilly
corrobora nossa afirmação “Eurípides conhecia demasiado o coração para não sentir a nostalgia
de um mundo mais puro. E a Guerra do Peloponeso, com os seus horrores crescentes, não era
feita para atenuar este sentimento” (ROMILLY, 2008, p. 140)
Continuando a linha escolhida aportaremos na peça Electra, de 420, que diferentemente
de Sofócles, não está ambientada na frente do palácio dos Atridas, e sim em uma choupana no
campo. No prólogo descobrimos que a rainha Clitemnestra entregou a sua filha a um homem
caracterizado como camponês e a partir deste instante Electra 110 vive na pobreza. A escrita do
poeta se distancia consideravelmente se comparada a peça Coéforas, citamos por exemplo o
instante de reconhecimento entre os irmãos que ocorre de maneira distinta em ambas escritas e
o local da morte da rainha.

109
Seguindo esse raciocínio, Maria Helena de Moura Neves afirma que “Nos argumentos de Teseu Atenas encontra
boas razões para atender a Adastro e, consequentemente confrontar Tebas. A guerra a que será levada é,
aparentemente, a própria negação de tudo o que Teseu defende como ideia de democracia, regida por leis sabias e
bem-comum. (NEVES, 1980, p. 101).
110
Na tragédia de Ésquilo, a personagem de Electra é proibida de casar e dessa forma não constitui uma ameaça
direta para sua mãe, posto que deve ficar sempre casta e não perpetua a linhagem dos Átridas.
53
Electra nessa representação possui um papel ativo, já que é ela quem trama a vingança
contra sua mãe simulando um parto 111, justamente o que lhe era proibido na versão de Ésquilo.
É neste instante que acontece o confronto entre as personagens, uma vez que Clitemnestra não
se apresenta como uma mulher viril e combativa, seus argumentos desmoronam perante a
Electra de Eurípides. Além disso, “Na choupana é atingida pelo golpe mortal e, mais uma vez,
o palco ático mostra seu corpo e o de Egisto” (LESKY, 1976, p. 198). Portanto, mergulhada
num sentimento de ódio Electra induz seu irmão Orestes a cometer o crime, que sozinho não
conseguiria, ela se apresenta como as figuras outrora criadas por Eurípides, que ultrapassam os
limites do humano que trazem sofrimento porque sofrem. Electra afirma logo após matar sua
mãe:
Exortei-te e junto contigo
desferi a faca. Cometi
a mais terrível calamidade (ELE vv. 1224-1226)112

Nessa representação o peso de seus atos aparecem e Electra e Orestes “depois do


assassínio da mãe, subitamente horrorizados com o que fizeram: acalmado agora o seu ardor,
eles reencontram sentimentos completamente diferentes” (ROMILLY, 2008, p. 132).
Retornando o curso a respeito da guerra de Tróia, o espetáculo intitulado Helena, em
412, analisa a possibilidade da belíssima jovem, esposa de Menelau, nunca ter ido para Tróia,
pois segundo Lesky: “A verdadeira Helena teria passado no Egito todo o transcurso da longa
guerra de Tróia, e a guerra, segundo a vontade dos deuses, travara-se por uma miragem.
Eurípides traz a palco essa Helena do Egito” (LESKY, 1976, p. 202).
A presença do feminino é marcada a partir do prólogo proferido por Helena que anuncia
o seu infortúnio em terra estrangeira, na qual reside no palácio de Proteu no Egito, desde que
foi raptada pelo deus Hermes, a pedido da deusa Hera. A estadia da rainha espartana estava
segura até a morte de Proteu 113, pois o filho mais velho do rei, Teoclimeno deseja esposar com
a bela mulher. Sendo assim, segundo Nólibos “o direito a posse de uma mulher é profundamente
discutido nesse drama, pois embora Teoclimeno não devesse pensar nela como uma

111
A respeito disso, no início da tragédia Electra informa que o camponês jamais lhe tocou, permanecendo assim
casta “Ele não ousou nunca me tocar o leito.” (v. 255) Eurípides - Volume 2 (Teatro Completo). Iluminuras. Edição
do Kindle.
112 Eurípides - Volume 2 (Teatro Completo). Iluminuras. Edição do Kindle.
113
Entretanto, diferentemente de outras representações dessa personagem, ela se mantém fiel ao esposo e se refugia
no túmulo do rei Proteu. Neste local, encontra um homem grego que está de passagem e interpreta de maneira
indireta o papel do mensageiro que lhe anuncia a sorte dos gregos em Tróia.
54
possibilidade como esposa, visto tratar-se de uma mulher já comprometida” (NÓLIBOS, 2006,
p. 109).
Além disso, vale ressaltar que essa peça também é composta por um Coro de mulheres
gregas que vivem no Egito após um rapto, por isso compreendem a dor da rainha. A bordo do
navio, juntamente a Menelau, encontra-se o espectro da segunda Helena, que se revela ao rei e
se decompõe perante seus olhos, obviamente o herói não consegue compreender a princípio a
dimensão do engano. Entretanto, ele consegue encontrar a verdadeira Helena em terra bárbara
e depois de alguns apuros consegue fugir com auxílio da vidente.
Nossa última ancoragem a respeito das tragédias de Eurípides 114 será As Bacantes, de
405, a qual é caracterizada como a última produção do trágico, além ser encenada póstuma a
sua morte. Nesta peça, o trágico demonstra a ira do deus Dionísio 115 ao rei Penteu de Tebas
devido a recusa de venerá-lo durante os cerimoniais.
Já no prólogo temos a presença do deus Dionísio 116 que se apresenta em forma humana
dirigindo um cortejo, com as mênades, em direção a cidade de Tebas. Dentro da pólis encontra-
se Tirésias, o vidente que aparece nas obras de Sófocles, e o velho Cadmo, avô de Penteu. Os
dois anciãos ponderam a situação atual da cidade e curvam-se ao novo culto que, devido ao
desrespeito do rei, retirou as mulheres da cidade. Penteu continua a recusar a adoração ao novo
deus e é ludibriado por Dionísio, que afirma poder levá-lo até o monte Citerion para espiar as
mulheres, desde que esteja vestido com trajes femininos de bacantes. O rei acaba se escondendo
em cima de um pinheiro e por um período acredita que a situação está sob controle, até o
momento que o deus incita as mênades contra o homem que é destroçado pelas mulheres.
Visualizando um triunfo, Agave, sua mãe, espeta-lhe a cabeça numa lança acreditando se tratar
de um terrível leão. Logo:
As mulheres loucas de Dioniso, as Bacantes, são, antes de mais, no imaginário dos
Gregos, figuras míticas que representam a inversão da ordem da cidade e da família.
Esposas que esquecem os seus deveres e que, para cúmulo do sacrilégio, despedaçam
os próprios filhos no espaço selvagem da montanha. (ZAIDMAN, 1990, p. 434, 435)

A tragédia mostra justamente o êxtase, o catártico que essas representações desejavam


ao alcançar os espectadores, uma vez que segundo Romilly “Este desejo de evasão encontrou a
sua expressão mais forte em As Bacantes. Porque o que os homens procuram, no culto de

114
Essa peça foi escrita no final de sua vida, quando já se encontrava na Macedônia (TRABULSI, 2004, p. 156).
115
Como dito anteriormente, essa é a única peça ainda existente que podemos observar uma atuação direta da
presença do deus responsável pelos festivais trágicos
116
Nessa perspectiva o deus é tido como estrangeiro, pois ele afirma que “Sou de lá, tenho Lídia por terra pátria”
(v. 4464) Eurípides - Volume 3 (Teatro Completo). Iluminuras. Edição do Kindle.
55
Dioniso, é a fuga para outro sítio: a fuga para a montanha, para longe de si mesmos; e querem
perder-se num contacto reencontrado com a natureza e o deus” (ROMILLY, 2008, p. 141).
Outro autor que também corrobora essa perspectiva é Trabulsi que afirma “a busca de uma
evasão é já afirmada pelo tema da peça” (TRABULSI, 2004, p. 166).
Posto isso, em duas décadas de produção, Eurípides navegou por diversos temas e se
utilizou de muitos personagens para compor suas tragédias. Na presente dissertação, não
abordamos todas as suas obras ainda existentes, visto que, como citado no início do tópico,
acreditamos que a produção do trágico seja cheia de possíveis interpretações e problemáticas.
Corroboramos essa afirmação a partir da fala de Romilly a qual evidencia que “entre todas estas
tragédias é a presença concreta do sofrimento humano, venha ele da paixão, da guerra, do erro,
ou então, como aqui dos deuses. (ROMILLY, 2011, p. 133). Portanto, ao discutir a produção
autoral de Eurípides e o impacto de sua produção no século V, nos dedicamos, principalmente,
a visibilizar algumas tragédias que possuem como personagem principal, ou de maior destaque
discursivo, o feminino, em razão de acreditamos que essa seja uma das maiores inovações do
trágico. Dar visibilidade ou voz para determinadas mulheres, embora trágicas, nos demonstra a
percepção que ele possuía de seu período e de qual maneira o desmoronamento da sociedade
ateniense impactou em seus escritos, pois de “qualquer maneira, Eurípides não nos deixa
ignorar nada do que se passo com eles e que se poderia passar com qualquer ser humano”
(ROMILLY, 2008, p. 126).

1.3 Medeia de Eurípides

Nosso interesse nesse tópico não é discutir o mito 117 em sua integra e nem mesmo
comparar ou refletir as diversas versões 118 e suas implicações da tradição mítica. Neste sentido,
nosso objetivo é observar qual a versão euridipiana da personagem Medeia 119 encenada no ano

117
Para melhor compreensão do mito dos personagens Jasão e Medeia recomendamos as obras de Robert Graves
e Junito de Souza Brandão presentes na bibliografia.
118
Podemos encontrar duas a três versões a respeito de diversos acontecimentos presentes no mito de Jasão e
Medeia e dessa forma a interpretação se tornaria uma rede de diversos pontos a serem tratados, contudo decidimos
focar nossa pesquisa a partir de uma perspectiva de gênero que fundamenta nossa problemática.
119
A autora Scodel (2017) utiliza o conceito de “bad women” em seus escritos, afirmando que Eurípides teria
desenvolvido em seus personagens essa característica, especialmente na personagem Medeia. A princípio já
afirmamos que não concordamos completamente com a afirmação da autora, uma vez que, entendemos a
personagem Medeia para além de um maniqueísmo tão fixo, fato justificado durante a dissertação.
56
de 431 a.C na cidade de Atenas 120. É evidente que a tragédia, uma obra autoral, se inspirou em
criações coletivas presentes na sociedade do século V e dessa forma ambientou os diálogos e
encenações em um mito conhecido pelos cidadãos, algo ainda presente através da narrativa oral
e posteriormente nas tragédias. Corroboramos nossa explicação através da citação de Lesky que
afirma, “mas é preciso que nos fique clara, sob outros aspectos, a importância do mito para o
poeta trágico. O mito em que ele se inspirou era um bem comum de seu povo, história sagrada
da máxima realidade” (LESKY, 1976, p. 66). Assim, o mito era uma forma de expressão da
vida, um modo de pensar e de compreender o mundo.

O pensamento mítico expresso pelos trágicos era chave para o ordenamento da


sociedade que visualizava a ordem através mito. Essas informações eram transmitidas
anteriormente de forma oral por meio dos aedos121, que declamavam sobre esse mundo superior
utilizando sempre um discurso indireto. Utilizamos essa citação de Veyne122 para exemplificar:
“dizem que ...”, “a Musa canta que...”; o locutor direto nunca aparecia, porque a própria Musa
inspirava “redizia, o recordava esse discurso que era pai dele próprio” (VEYNE, 2014, p. 45).
Em suma, ele era recitado como uma narrativa viva, fluída e inspirada pelos deuses, e nas mãos
dos trágicos tornam-se uma produção esteticamente encenada para o teatro. Assim, os mitos
que envolvem os personagens Jasão e Medeia são reinterpretados a partir dos interesses do
trágico, de um problema contemporâneo a sua sociedade.

Eurípides sentiu-se atraído pela figura de Medeia123 já no início dos seus escritos, uma
vez, na obra Pelíades, de 455, ele apresentou a personagem como a destruidora de Pelías em
um ardil, no qual, as próprias filhas inocentes são levadas a matar o pai. A terceira obra dessa
trilogia seria Egeu, que mencionava uma lenda ática relacionando Medeia e Egeu numa
conspiração contra Teseu. Entretanto, somente a tragédia Medeia resistiu ao tempo e ela é vista
como o “apogeu a arte do poeta em fazer que os feitos e destinos do homem nasçam do demônio
que habita em seu peito” (LESKY, 1976, p. 171). Em consequência disso, a obra é vista como
o auge de sua carreira; Medeia se tornou uma personagem que passou pelos tempos, sendo

120
Como dito anteriormente a peça teatral foi encenada alguns meses antes do conflito da Guerra do Peloponeso,
além disso segundo Gibert (2017) Corinto era aliada dos espartanos nesse conflito, e era hostil a Atenas.
121
A respeito dos aedos citamos Detinne que afirma “o poeta celebra com sua palavra cantada os feitos e as ações
humanas que, assim, entram no esplendor e na luz e recebem força vital e plenitude do ser” (DETIENNE, 2013,
p. 8).
122
No livro Os gregos acreditavam em seus Mitos? Paul Veyne irá discorrer sobre o universo mítico e a
significação do sagrado para os gregos.
123
Scodel (2017) corrobora que Sófocles tem sua personagem Antiga, Ésquilo possui a sua Clitemnestra e
Eurípides destaca a sua Medeia.
57
recriada, interpretada e representada de diversas formas, como demonstramos na introdução.
Além disso, conforme Swift124 (2017) Medeia continua sendo umas das tragédias mais
poderosas entre todas as produções da época clássica, uma vez que temas como ciúme, amor,
vingança e infanticídio continuam atraindo espectadores após dois mil anos. Considerando esse
prisma, no presente trabalho, também buscamos visualizar a personagem a partir de uma
perspectiva particular fundamentada numa determinada problemática.

Na sua construção teatral Eurípides representou uma personagem feminina que tinha
conhecimento sobre seus saberes 125, por isso Medeia se coloca em um ponto de vista de um
lugar de saber e de poder, mostrando como fazer e definindo caminhos não somente seus, mas
também de Jasão. O posicionamento ativo da personagem trágica se torna fundamental nas
conquistas do herói, em função disso se realiza a cobrança do vínculo na tragédia, assunto
vigorosamente presente nos diálogos. Para além, existe um juramente126 realizado por Jasão
prometendo casamento e fidelidade à moça no templo da deusa Hécate pois, segundo Graves
(2018), a princesa era sacerdotisa dessa divindade e Eurípides retoma esses argumentos logo
no início da tragédia127 para fundamentar o impacto da separação. Nessa perspectiva, o trágico
demonstra já nos primeiros versos que existe um compromisso desfeito, um juramente quebrado
e os personagens, masculino e feminino, que não conseguem se compreender, posto que estão
em dimensões distintas, embora complementares.

Medeia euripidiana é uma mulher que rompe com o silêncio delegado ao feminino,
confrontando por meio de palavras o masculino na tragédia, assim colocando-se em posição de
destaque e reconhecimento. Toda encenação teatral ocorre na frente do oikos de Medeia, que
sai do particular e vocaliza suas queixas no espaço público para outras mulheres que lhe
assistem e participam, representadas no Coro de coríntias. Desde a sua primeira cena, a
personagem traz para o palco um discurso específico sobre a condição feminina, enfatizando
sua condição de estrangeira, abandonada pelo marido que buscou uma nova aliança com Creon,
“transforma-se em porta-voz de uma insatisfação que ultrapassa a fronteira da cidadania entre

124
O estudo da autora Laura Swift (2017) está estruturado em dois tópicos a respeito de Medeia: primeiramente a
sua condição de estrangeira que é amplamente debatida ao longo da tragédia e a sua condição de mulher que é
representada e debatida em diversos diálogos.
125
Aprofundaremos essa questão no capítulo 3.
126
Esse casamento é também demonstrado por Apolônio de Rodes em sua obra Argonáuticas, e segundo o autor
ele ocorre devido a necessidade de consumação do ato sexual, uma vez que, se Medeia ainda fosse virgem seria
entregue novamente a seu pai
127
“Ó grande Têmis e soberana Ártemis, vede o que sofro, atrelada ao marido por juras solenes” (vv. 160-163)
tradução Trupersa.
58
as mulheres, insatisfação com o lugar ‘reservado’ às mulheres na sociedade” (ANDRADE,
2003, p. 133). Por isso, Medeia128 traz em sua fala inicial, diante do Coro, os problemas que
esse feminino também compreende: as dificuldades no casamento, o convívio na casa do
marido, a reclusão no oikos e a procriação de filhos legítimos. Existe uma aproximação entre
as personagens, posto que são mulheres e concebem, por meio de sua realidade, qual o espaço
do feminino nessa sociedade. O reconhecimento pretendido pela personagem está fora desse
espaço, ele está vinculado a um valor pessoal perante o coletivo, algo relevante para a sociedade
grega que denominava de timé, traduzido por honra, ou valor atribuído a alguém por seus pares.
Entretanto, Medeia não era considerada socialmente igual a Jasão, pois ela é mulher, como nos
demonstrou Loraux (1993), não pertencente ao cosmo político. A mulher socialmente vai ter
seu valor associado à sua condição de mãe e esposa, pois participa do sistema cívico na esfera
do particular e Medeia rompe com esse sistema, já que coloca seus problemas no público.

O masculino euripidiano da peça se comporta de maneira diferente em relação a


capacidade de Medeia ser ativa em relação ao seu saber particular, justificamos isso porque
Creon a expulsa por temer seus conhecimentos afirmando “tua sábia natura, uma perícia pra
muitos males” (v. 285). Demonstrando que Medeia é um perigo para as escolhas políticas do
masculino no interior da pólis, reconhecendo assim, de certa maneira, o poder de decisão e ação
da personagem. Evidentemente, o rei acredita que acometida de uma hybris ela poderia ser
capaz de males terríveis e por isso deseja mantê-la apartada socialmente. Contudo, permite que
permaneça mais um dia na cidade ludibriado pelo discurso de mulher frágil que Medeia enfatiza
na sua presença, evidenciando que não possuí força para enfrentar as escolhas do masculino.

Por outro lado, Jasão não expulsa Medeia, ele somente obedece às ordens de Creon
posto que afirma “queria que permanecesses” (v. 456) garantindo que a posição de enfrentar o
rei que a colocou nessa situação. O herói argonauta somente impõe a Medeia o silêncio,
assegurando que são suas próprias falas129 que a condenaram ao exílio, logo, se tivesse ficado
quieta, adotando o posicionamento de mulher, não teria sido expulsa. Jasão, o personagem mais
próximo da princesa não consegue dimensionar a potência da ação em Medeia, somente de suas
palavras quando reconhece ocorrer um “embate verbal” (v. 546). Ele tenta desqualificar a
participação do feminino em suas conquistas pessoais a partir de um discurso falso, afirmando

128
Recebem destaque o trecho entre os versos 214 a 265 que serão utilizamos nos próximos capítulos.
129
O herói afirma que: “Pragas ímpias contra os tiranos praguejaste!” (607).
59
que foi a sua posição de herói que beneficiou Medeia e não ao contrário 130. E é justamente nesse
discurso enganoso que ele acredita, esquecendo-se da capacidade de decisão de sua mulher.

A simulação que ela faz, ao fingir que aceita as premissas de Jasão, cria um efeito
estético interessante, na medida em que simula o que seria a afirmação do curso
habitual dos fatos na ótica dos gregos como Jasão e Creonte. Essa afirmação de uma
ordem é baseada na idealização de Jasão acerca de uma mulher sensata seria aquela
que se volta para o que é mais vantajoso e aceita submissamente perder o marido se
assim for útil. (JÁCOME, 2010, p. 275)

Ao se utilizar de contraste entre os personagens masculino e feminino, Eurípides


demonstra, por meio de sua obra autoral, o desmonte do sistema cívico o qual a sociedade
ateniense estava prestes a sofrer, devido a longa guerra do Peloponeso. As palavras proferidas
durante o espetáculo não podem ser caracterizadas como um discurso político, uma vez que são
proferidas por uma mulher, Medeia. Contudo, a peça encenada no teatro de Dionísio, composta
somente por homens, escrita por um homem, de certa maneira amplifica e reforça os problemas
latentes no sistema isonômico ateniense. Neste sentido, a historiadora Marta Mega Andrade diz
que:

Além disso, a figura mítica de Medeia não era a de qualquer mulher, mas uma
feiticeira bastante temida, que no fim das contas se torna a assassina da noiva do
marido, dos próprios filhos e do rei de Corinto. Não seria exagero imaginar na peça
de Eurípides um “temor” bem real dessa inversão da condição feminina pelas próprias
mulheres (ANDRADE, 2003, p. 134)131

Não podemos esquecer, antes de tudo, que a tragédia é teatro e, dessa forma, as escolhas
do autor se vinculam a um tipo de representação específica 132 ainda que ela seja uma obra
autoral, destinada a encenação. Sendo seu maior interesse atingir através de sua obra os
espectadores cidadãos da pólis, assim, segundo Snell para esses autores “o homem torna-se
fonte de efeitos e de ações, deixa-se guiar apenas por suas paixões e pelo conhecimento”
(SNELL, 2005, p. 114). Impactar os cidadãos por meio do teatro é instigá-los a pensar a própria
convivência dentro da pólis, questionar suas escolhas e vontades particulares, tanto no ambiente

130
Jasão afirma: “Mas de qualquer forma, pela minha salvação mais recebeste do que deste, isto eu vou provar:
em primeiro lugar, em vez de chão bárbaro habitas a terra grega, conheces a justiça, fazes uso das leis, não do
favor da força. Todos os gregos notam tua sábia essência, tens fama”, tradução Trupersa.
131
Afirmamos que a citação aqui utilizada exemplifica a leitura realizada pela autora a respeito de Medeia, não
concordamos plenamente com a posição da mesma, uma vez que na nossa interpretação a personagem apresenta
características que estão além de sua personificação na cultura mítica. E principalmente porque não visualizamos
uma inversão em Medeia, pelo contrário, ela se utiliza de um discurso feminino para convencer o Coro de mulheres
e personifica sua ação através de um tecido, algo fabricado somente por mulheres.
132
Nesse instante queremos relembrar que essas encenações acontecem num período determinado e,
principalmente, dedicado ao deus Dionísio e todo seu poder de transformação, deste modo, assuntos latentes ao
convívio político são retratados de forma cênica e instigante para a reflexão dos cidadãos.
60
do oikos como na ágora, uma vez que esse sistema cívico necessita de manutenção por parte
de todos os cidadãos.
Neste sentido, ao escolher uma cena de morte praticamente finalizando sua obra,
Eurípides desejava, de certa forma, alcançar cenicamente seus espectadores, pois esses
homicídios não são representados para o público, ocorrem no interior do oikos e somente as
vozes dos meninos anunciam o crime. Logo, “Medeia não mata seus filhos, ela mata todos os
correlatos que determinam a relação matriz e filial: os herdeiros, a prole, os rebentos, frutos,
crias, a estirpe, os descendentes” (TRUPERSA, 2013, p. 38). Existe uma tradição que afirma
que as mortes seriam uma criação autoral de Eurípides, sendo assim, elas não estavam presentes
no mito. Segundo essa tradição defendida por alguns autores 133, o trágico teria se inspirado no
mito de Procne134, uma mulher que mata seus filhos para ferir seu marido e a sua linhagem.

Além disso, segundo Rinne existe uma outra versão: “segundo observações de um
escoliasta, os coríntios teriam subornado Eurípides, por quinze talentos de prata, para que
alterasse a história dos assassínios dos filhos de Medeia, de tal modo que não lhes coubesse
nenhuma culpa” (RINNE, 2017, p. 12). Independente do possível suborno, a encenação da
morte das crianças tem uma fundamentação cênica para o desfecho da obra, não é simplesmente
uma morte gratuita. Medeia euripidiana, como veremos mais adiante, ao realizar essa ação
rompe com todos os limites impostos a uma mulher, progenitora de uma prole e mantenedora
dos costumes e da linhagem do masculino. Afirmamos isso, porque segundo Loraux:

Essas mulheres, tal como Medeia, matam os próprios filhos para melhor aniquilarem
o marido. Mas são ainda e sempre os filhos que elas matam, tirando do marido a
arrogante tranquilidade do pai cujos filhos perpetuarão o nome e a estirpe. Não é que
estas mães não amem, dilaceradas, os filhos que puseram no mundo: mas, uma vez
que o pai os anexava para a esfera do seu poder, elas destroem o pai que existe no
marido (LORAUX, 1994, p. 44)

Essa Medeia de Eurípedes anuncia pelas suas ações uma crise. Uma crise que passa pela
dissolução da ordem familiar, dos tipos de poder engendrados a partir e nas relações de
parentesco e que atingem a cidade no seu todo. Ou melhor dizendo, Eurípedes nos remete a
uma crise de convivência na pólis, nas formas de atuação do cidadão que são teatralizadas em
Medeia.

133
Essa versão é sustentada pelo tradutor Trajano Vieira (2010), pela também literata alemã Olga Rinne (2017) e
pelo autor Junito Brandão (2015) que afirmam igualmente essa autoria de Eurípides.
134
O mito de Procne demonstra que Tereu, rei da Trácia, considerado um semi-bárbaro, casou-se com Procne filha
do rei de Atenas, irmã de Filomena. Tereu se aproveitando da viagem da esposa, abusa de Filomena e para impedir
que seja acusado corta-lhe língua. Procne ao descobrir da violação através de uma tapeçaria bordada pela irmã,
mata Ítis, filho de Tereu. (LORAUX, 1994)
61
A personagem criada pelo trágico encontra-se no interior do oikos lamentando o
abandono de Jasão, nesse instante o Coro de mulheres se aproxima e Medeia sai do interior da
residência, e o espetáculo trágico inicia-se. Toda a representação ocorre cenicamente nesse
local: Creon chega para expulsá-la e não finaliza sua intenção, Jasão se aproxima na tentativa
de um novo acordo com Medeia mas é banido pelo discurso ácido da personagem e Egeu se
apresenta como a alternativa de fuga da princesa. Além disso, as mortes das crianças ocorrem
no interior casa, somente os gritos são ouvidos pelos moradores de Corinto, representados no
Coro de mulheres. E é justamente nesse mesmo local que Medeia irá subir num carro alado e
fugir levando consigo os corpos dos seus filhos.

Abaixo ilustramos, por meio de uma tabela, as entradas e saídas dos personagens durante
o espetáculo, além dos versos que compõem a tragédia. Essa visualização cênica poderá auxiliar
na compreensão dos discursos produzidos em determinados momentos da encenação e,
principalmente, assessorar o leitor a compreender o posicionamento dos trechos utilizados na
dissertação.

Espetáculo Versos Personagens


Prólogo 1-130 Nutriz, Pedagogo e Medeia
Párodo 131-213 Coro, Medeia e Nutriz
Primeiro Episódio 214-409 Medeia, Creonte e Coro
Primeiro Estásimo 410-455 Coro
Segundo Episódio 446-626 Jasão, Medeia e Coro
Segundo Estásimo 627-662 Coro
Terceiro Episódio 663-823 Egeu, Medeia e Coro
Terceiro Estásimo 824-865 Coro
Quarto Episódio 866-975 Jasão e Medeia
Quarto Estásimo 976-1001 Coro
Quinto Episódio 1002-1080 Medeia e Pedagogo
Interlúdio Anapéstico 1081-1115 Coro
Sexto Episódio 1116-1250 Medeia e Mensageiro
Quinto Estásimo 1251-1292 Coro e filhos de Medeia
Êxodo 1293-1419 Jasão, Medeia e Coro

62
CAPÍTULO 2– RELAÇÕES DE PARENTESCO: REALIZAÇÃO DO
GÊNERO

Nesse segundo capítulos iremos utilizar o método de análise histórica juntamente com
a categoria gênero para análise da tragédia Medeia, já que, não desejamos encontrar uma
representação uniforme de homens e mulheres em todas as áreas e atividades de uma sociedade.
Salienta-se que cada documento é único e dá acesso a um campo particular, uma vez que
“partiremos do princípio de que os textos escritos e as imagens se constituem em discursos.
Enquanto discursos, ambos são falas – textos – que oferecem indícios à construção
historiográfica” (LESSA, 2004, p. 19) e, principalmente, estão submersos ao seu tempo de
produção.
A leitura de gênero é possível não pelos interesses autorais da obra que se lê, uma vez
que, essa problemática se apresenta como um questionamento da sociedade contemporânea que
vivemos. Mas inegavelmente todas as sociedades constituíram-se a partir de relações sociais de
gêneros, independe da nomenclatura desse sistema. Assim, encontramos uma história
constituída pela hierarquização da sociedade mediada por diferentes papeis distribuídos sobre
o que ser feminino e masculino.
Além disso, a sociedade grega apresenta uma mentalidade diferente da nossa, as
identidades de gênero estavam ligadas ao sexo biológico e os papéis sexuais estavam
determinados pelos papéis sociais que cada indivíduo exercia na sociedade. Assim, segundo
Gonçalves:
A escolha não é livre criação de uma subjetividade, mas negociações que se constitui
a partir de uma relação com os limites que a prática social impõe aos papéis sexuais.
No caso ateniense, o que se vê pela documentação é a imposição de uma prática
sexual, através de uma ação política. Essa ação política se articula à uma visão do
humano no qual é patente os limites de escolha pessoal, particular, pois, este tem sua
ação limitada por um exercício limitado de sua autonomia, isto é, sua escolha sexual,
não é totalmente uma escolha individual. (GONÇALVES, 2015, p. 107)

Desta forma, os papéis sociais e sexuais para os gregos estavam intimamente ligados
com a sua formação social e exerciam uma forte influência dentro da pólis. De tal modo,
masculino e o feminino embora vistos como opostos, devido a função 135 exercida na sociedade

135
Desta forma, afirmamos que: “A realização de uma análise de gênero no conjunto das produções, tanto antigas
como modernas, justifica-se pelo fato de que a maioria das sociedades organiza, primordialmente, uma divisão das
atividades sociais baseadas na diferença sexual, ou seja, nas culturas em geral, a distribuição de atividades
conforme o sexo dos indivíduos (masculino e feminino) ‘faz sentido’ – daí a pertinência de se falar de gênero”
(SILVA, 2011, p. 65).
63
grega, também eram comparticipe desse sistema, já que ambos estavam implicados na
manutenção de um modelo de convivência, isto é, a pólis.
No caso da sociedade grega, essas relações se apresentam mais evidentemente porque
elas simbolizam, segundo Vernant (1992), a união de casas, ou seja, os interesses dos homens
que realizam alianças por meio da instituição denominada casamento. Contemporaneamente, o
envolvimento afetivo e sentimental se tornou algo fundamental para as relações matrimoniais
e os acordos masculinos, realizados no período aqui analisado, foram gradativamente afastados
da sociedade ocidental.
Nossa perspectiva consiste em observarmos como as relações de parentesco, que
atrelam os indivíduos a famílias, se dão mediante uma visão de gênero, já que esta questão é
importante na manutenção da própria estrutura familiar de poder. As relações sociais de gênero
se constituem como os primeiros elementos de diferença no interior de uma organização de
poder nas relações de parentesco.

Nesse momento, nos dedicamos a retornar à primeira hipótese anteriormente


apresentada: as mulheres (Coro e Medeia) possuem relevância e implicação diferentes nas
relações de parentesco dentro da sociedade políade, pois as coríntias são mulheres consideradas
legítimas diferentemente de Medeia, fato justificado na atitude de Jasão buscar uma nova união.
Pensar gênero é descobrir a fundação social vinculada a uma construção masculinizada. Dessa
forma, é preciso observar como a sociedade se organiza, age e valoriza as atitudes a partir de
um modelo androcêntrico. Ademais, esta forma social estipula formas de poder e de corpos 136
que interagem mediados por uma naturalidade constituída a partir de identidades de gênero
claramente definidas. Medeia desborda os limites dessa sociedade, pois ela começa a constituir-
se através dessa destruição de seu corpo. Para a sociedade masculina, Medeia é uma alteridade
excessiva, descrita como descontrolada e rebelde.

Levi-Strauss, ao escrever o livro Antropologia Estrutural, demonstra que é justamente


esse sistema de parentesco, que possui diversas formas de expressão em diferentes sociedades,
o principal meio de regular as relações individuais. Por isso, “o parentesco não é um fenômeno
estático; existe apenas para perpetuar-se” (LÉVI-STRAUSS, 2017, p. 56). Assim, de acordo
com o autor, a partir do momento que se concede uma mulher aquele que a recebe possui
contraprestações, “até mesmo a mais elementar das estruturas de parentesco existe

136
Indicamos para leitura o texto Corpo e cidadania na Atenas Clássica do autor Fábio de Souza Lessa que se
encontra nas referências.
64
simultaneamente na ordem da sincronia e na da diacronia” (LÉVI-STRAUSS, 2017, p. 56).
Esse assunto também é discutido na obra As estruturas elementares do parentesco 137 que se
apresenta como um estudo realizado no século XX, o qual deseja compreender o casamento
entre os seres humanos, concebendo a existência de uma imposição de um tipo de organização
social. Complementando a teoria de Lévi-Strauss, a autora Gayle Rubin afirma que os sistemas
de parentesco são e fazem muitas coisas, assim “são compostos de formas concretas de
sexualidade socialmente organizadas, além de reproduzi-las. Os sistemas de parentesco são
formas observáveis e empíricas do sistema sexo/gênero” (RUBIN, 2017, p. 21). E é justamente
nessa perspectiva que seguiremos a nossa escrita nesse segundo capítulo, observando as
relações de parentesco mediante uma visão de gênero.

2.1 As mulheres e a domesticidade do feminino

Principiaremos com a condição do feminino 138 no período arcaico, representado nas


epopeias Ilíada e Odisseia, ambas escritas pelo poeta Homero. Ainda que nossa fonte seja
produzida no contexto da pólis, ela mantém algumas estruturas dessa sociedade homérica
marcada pelos heróis e com a autoridade concentrada na figura de um homem que comandava
o oikos a partir de seus interesses particulares. Assim, dois períodos distintos encontram-se no
plano cênico da peça Medeia e se apresentam como fundamentais para análise das relações de
parentesco139.
O estatuto que o feminino exerceu na Grécia Antiga depende, primeiramente, do
momento estudado, bem como, a sua relevância e implicação nas relações de parentesco são
consequências dessa “posição social”. O período de valores honrosos e característico da
presença dos palácios, que guardaram em seu interior um valor incalculável da vida cotidiana
expressou, segundo Mosse (1990) a realidade das mulheres que foram classificadas em dois

137 Judith Butler expressa uma crítica a respeito dos trabalhos de Claude Lévi-Strauss sustentando que “No fim
As estruturas elementares do parentesco, a troca de mulheres é considerada como tráfego de um signo, a moeda
linguística que facilita um laço simbólico e comunicativo entre os homens. A troca de mulher é comparada à
troca de palavras, e esse circuito linguístico particular torna-se a base para repensar o parentesco a partir das
estruturas linguísticas, cuja totalidade é chamada de simbólico” (BUTLER, 2014, p. 52).
138
Além disso, também lembramos ao leitor que não buscamos uma representação universal do feminino no
período analisado, uma vez que “O estudo da condição feminina, tanto na Antiguidade como modernamente, deve
repudiar uma visão estanque e homogênea do gênero e, ao contrário, considerar a multiplicidade e a variedade de
faces que o feminino pode encarnar da Grécia” (SILVA, 2011, p. 85).
139
Indicamos para leitura o estudo antropológico de Claudine Leduc que propõe uma hipótese a respeito do
casamento que é visto como um princípio organizador da cidade, através de número e bens
65
grupos socialmente diferenciados: as mulheres/filhas dos heróis e as servas 140. Somente as
primeiras exerciam a tripla função de serem esposas, rainhas e senhoras da casa, de tal modo,
que o matrimônio é uma realidade social sólida que visa a manutenção dessa linhagem heroica,
e “a união do homem e da mulher não é pensada em termos de matrimonialidade, mas de
consanguinidade” (LEDUC, 1990, p. 299). É um sistema de intercâmbios, de troca de dote-por-
dote, pois “o pai da jovem pode escolher o futuro genro por outras razões que as puramente
materiais, e se bem que é certo que entre os vários pretendentes escolherá aquele que oferecerá
os hednas mais valiosos” (MOSSE, 1990, p. 19, tradução nossa) 141. Além de ser um modo de
manter e fortalecer as alianças econômicas e militares que sustentavam o status que esses
indivíduos masculinos 142 possuíam. Esse contexto é amplamente representado nas epopeias que
demonstram uma rede de relações de parentesco 143 que visam a manutenção do poder
concentrado em certos heróis, assim “o primeiro instrumento de aliança era o casamento que,
entre outras coisas, servia para estabelecer novas linhas de parentesco, e, portanto, de
obrigações mútuas, que se entrecruzavam através do mundo grego” (FINLEY, 1965, p. 94).
Além da união entre famílias 144 ilustres, existiam também outras práticas que poderiam
coexistir, uma vez que correspondiam a diferentes interesses e objetivos na sociedade grega
homérica.. Neste sentido, vale ressaltar o estatuto das mulheres na condição de cativas 145,
principalmente após as guerras eram condenadas a serem parte do espólio e, muitas vezes,
possuíam a infeliz sorte de serem unidas ao guerreiro responsável pela morte de seu marido e
filho. A obtenção de mulheres nessa condição variava, poderia ser para prazer sexual ou para
exercer atividades 146 como serva dentro do oikos ou ainda devido algum atributo que esse

140
A segunda “categoria” de mulher acaba permanecendo a sombras das rainhas. As servas mantêm-se num
anonimato constante e exercem atividades domésticas, preparando as camas, dispondo o banho para os hóspedes,
além de atividades culinárias e servindo a mesa.
141
“El padre de la joven puede escoger a su futuro genro por otras razones que las puramente materiales, y si bien
certo que entre varios pretendientes escogerá a aquel que ofrezca los hedna más valiosos” (MOSSE, 1990, p. 19).
142 “Nesse ambiente continuamente hostil, os heróis podiam procurar aliados; o seu código de honra não lhes exigia

que enfrentassem sozinhos o mundo. Mas o seu sistema social não criava a possibilidade de concluir uma aliança
entre duas comunidades enquanto tais. Era necessário recorrer a artifícios pessoas, ao nível doméstico e do
parentesco” (FINLEY, 1965, p. 95)
143 Os escritos do historiador Moses Finley a respeito das relações de parentesco no mundo grego afirmam que

“Ao longo de toda a sua história, a profundidade do apego dos Gregos aos vínculos familiares afirma-se na sua
paixão pelas genealogias” (FINLEY, 1965, p. 74)
144
Neste sentido, encontramos autores como Vrissmtzis que afirmam “se examinarmos de perto o mundo dos
mortais, verificaremos que na sociedade aristocrática retratada por Homero o casamento era a norma e a instituição
sobre a qual se baseava a administração do lar (oikos) para a criação de filhos legítimos como herdeiros e,
naturalmente, para a manutenção do poder” (VRISSMTZIS, 2002, p. 27).
145
Podemos citar o caso de Cassandra cativa de Agamêmnon, Andrômaca cativa do filho de Aquiles, Neoptolemo.
146
Devido à falta de uma definição jurídica específica para essa classificação de mulheres, elas poderiam sem
dúvida serem conquistas de guerras ou raptadas.
66
feminino possuísse, situação próxima a categoria de concubinas 147. Para mais, as mulheres
também poderiam ser objeto de desejo masculino e, neste sentido estavam além da aliança entre
famílias. O caso mais conhecido seria Helena como nos demonstra Nóbilos “Helena é aquela
que, dentro todas as jovens, escolheu o marido. Nenhum homem poderia ser seu kyrios, seu
representante legal – frente ao poder de sua beleza, dobravam-se à sua vontade” (NÓBILOS,
2017, p. 42). Logo, nessa interpretação a união realizada não se apresenta como um acordo
particular e masculino, pois Helena teria participado dessa escolha148 de alguma maneira.
Como já foi dito, a nossa fonte149 de pesquisa foi produzida no século V a. C.,
especificamente no ano de 431 a.C. e para tanto “as análises da tragédia e da comédia áticas na
época clássica mostraram como a divisão dos sexos e a encenação do feminino serviram para
pensar problemas fundamentais para a cidade, com os limites do poder, a guerra, a reprodução
do corpo cívico” (PANTEL, 1990, p. 593). Nesse período, segundo Vernant (1992), a cidade
não possui uma instituição matrimonial 150 perfeitamente definida, uma vez que existiam vários
tipos de uniões que a cidade democrática apresentava, todavia, privilegiando algumas em
detrimento de outras.
No contexto da cidade antiga existia uma certa formalidade do casamento e,
consequentemente, uma sustentação constante nas relações de parentesco, além de serem, como
afirma Rubin, “uma forma absolutamente fundamental da troca de presentes, na qual, as
mulheres são os presentes mais preciosos” (RUBIN, 2017, p. 24). O estabelecimento do
dispositivo matrimonial no interior da cidade é associado primeiramente a Sólon 151, como nos
demonstra Leduc (1990, p. 321), dessa forma o legislador teria redefinido a comunidade cívica
assim como também o casamento. Neste sentido, o casamento é visto como algo partilhado por
homens, que segundo Vernant realizam “um comércio social entre as grandes famílias nobres,
comércio este no seio do qual a troca de mulheres aparece como um meio de criar vínculos de
solidariedade ou dependência, adquirir prestigio, confirmar uma vassalagem” (VERNANT,

147
No presente escrito não adentramos profundamente na situação do concubinato que também poderia ocorrer,
pois como nos afirma o autor “quando partiam para guerrear em terras estrangeiras, os heróis não podiam ficar
desprovidos de mulheres” (VRISSMTZIS, 2002, p. 30).
148
A nossa fonte apresenta a versão do mito Medeia, a qual afirma que ela também, de certa forma, teria
“escolhido” Jasão e, portanto, sua união não seria um contrato entre homens, posteriormente trataremos dessa
questão.
149 Conforme Mueller (2017) a estreita associação das mulheres com o interior do oikos é dado como certo na

tragédia, ainda assim suas ações ainda têm consequências políticas, portanto no interior da pólis.
150
O casamento adquire uma forma mais definida somente a partir das resoluções de Sólon no século VI a.C. e,
posteriormente, com Péricles em 451 a.C. que determinou como legítima as uniões realizadas somente entre
famílias atenienses, assim excluindo todos os estrangeiros das relações de parentesco da cidade.
151
Assim segundo Leduc “Sólon tentou resolver este problema instituindo uma troca generalizada das mulheres”
(LEDUC, 1990, p. 339)
67
1992, p. 53). Dessa forma, as relações de parentesco no interior da pólis devem estar
estritamente cimentas, pois justamente elas irão fortalecer esse sistema.

É justamente a questão da funcionalidade do feminino que Medeia crítica, uma vez que,
a princesa não se compreende somente como um ser humano destinado a criação de uma prole.
Ela consegue se perceber para além desse sistema androcentrico cívico, por isso reivindica
espaços além do particular. Medeia diferentemente do Coro reverbera uma tentativa de ocupar
no interior da cidade um novo espaço para o feminino, contudo é drasticamente acantonada
pelo masculino da peça que sempre enfatiza a funcionalidade do feminino, a sua utilidade.
Assim, Medeia se utiliza de um discurso feminino 152 para se aproximar do Coro de mulheres
moradoras da cidade de Corinto, discurso agora analisado.

2.1.1 Medeia e o Coro de Mulheres

Medeia demonstra, já no primeiro episódio, por meio de suas falas uma crítica a esse
sistema marcadamente masculino que busca a domesticidade/controle e principalmente
funcionalidade do feminino em todas esferas da cidade. Logo, na nossa perspectiva os papéis
sociais e a dinâmica das relações de gênero estão imbricadas na tragédia Medeia, pois a peça
descreve o embate de uma mulher que percebe o enredo do androcentrismo na construção de
sua vida e se expressa através de um processo deliberativo. Como já afirmado acima, nosso
interesse não é compreender a intenção autoral do autor, uma vez que, encontramo-nos muito
distante temporalmente da sociedade políade ateniense e principalmente porque utilizamos uma
problemática da sociedade contemporânea para interpretação da tragédia. Deste modo,
utilizamos a perspectiva da categoria de gênero como uma lente 153 especifica para a leitura da
fonte em questão, demonstrando através da escrita os pontos que desejamos evidenciar.

Lembramos que a personagem se encontra cenicamente posicionada na frente do oikos


falando para Coro composto pelas mulheres moradoras da cidade de Corinto 154. Essas mulheres

152
Utilizamos essa expressão porque acreditamos que o discurso proferido por Medeia pode ser caracterizado
como feminino, uma vez que, ela se utiliza de expressões do cotidiano das mulheres como, por exemplo, a
domesticidade, o oikos, a arte de tecer, a reclusão e o silêncio.
153
Nesse sentido, “a natureza doméstica do festival, por outras palavras, dá ao poeta mais ampla liberdade de
manobra, já que, ao atacar o político proeminente perante um público local, só o indivíduo é ameaçado, não a
imagem do estado, que se veria envolvida se tal ataque ocorresse perante umA assembleia de aliados, nas
Dionísias” (SILVA, 1987, p. 22)
154
Nesse sentido a tradução aqui utilizada comenta a respeito do Coro: “E o Coro? Como falaria o Coro? O que
temos neste Coro de Eurípides? Ora, são mulheres e deviam se portar como mulheres (as que cuidam da cozinha,
das notícias domésticas – e da casa real em litígio -, das dores femininas); são, pois, mulheres, mas mulheres de
68
compreendem a situação do feminino, posto que também estão implicadas nesse sistema cívico
que lhes atribui uma função especifica. Medeia ao entrar em cena já afirma:

Mas o homem, quando se irrita com os de casa,


sai e fora faz cessar o fastio do coração
[seja com um amigo, seja com um colega].
Já nós somos obrigadas a mirar uma só alma,
E dizem que nós vivemos uma vida segura,
em casa, e eles guerreiam com suas lanças,
Bobagem! Como queria junto do escudo
três vezes lutar a parir uma só vez. (MED vv. 244-251)[grifo nosso]155

Nesse sentido, Medeia produz um discurso que reclama a funcionalidade do feminino,


e principalmente o acantonamento social, sendo assim ela se apresenta como uma mulher que
fala para mulheres e, principalmente, utilizando um discurso deliberativo que busca uma
identidade entre elas. Ela deseja através de sua fala demonstrar que tem interesse em outras
atividades, não somente em produzir filhos que serão incorporados pela cidade. Ela realiza uma
crítica a respeito de uma certa liberdade que o masculino possui, liberdade de ir e vir, em
comparação ao isolamento e funcionalidade do feminino recluso156 ao oikos e destinada a
reprodução, posto que Medeia afirma: “Se não tivesse filhos, era perdoável o desejo por tal
cama” (vv. 490-491).
Com o surgimento do sistema políade157 fez-se necessário outorgar à mulher um lugar
e uma função social específica, evidentemente vinculada a família e ao oikos, principalmente,
limitando e mantendo a domesticidade feminina constantemente, o que é justamente criticado
pela personagem. Claude Calame afirma que é justamente essa formação que “introduziram-nos a uma
forma social de orientação essencialmente masculina” (CALAME, 2013, p. 81) . Logo “a emergência
das cidades, a partir do século VIII traduz-se por uma reestruturação das casas e do casamento”

um porto, o porto de Corinto, ou seja, elas seriam aquelas que estavam disponíveis para os marinheiros recém-
chegados, submetidas a eles, ávidas por notícias de outras terras” (TRUPERSA, 2013, p.29)
155
Já sinalizamos que os trechos utilizados durante a escrita desse capítulo serão retirados da tradução realizada
pelo grupo Trupersa presente nas referências do trabalho. Quando utilizado outra tradução será sinalizado no texto.
156
Historiograficamente as obras do historiador Fábio de Souza Lessa, denominada As mulheres de Atenas:
Mélissa – do Gineceu à Ágora (2010) e O feminino em Atenas (2004), já discutem que esse sistema de reclusão
era flexível, posto que mulheres pobres trabalhavam fora do seu oikos. Dessa forma, as mulheres não poderiam
ficar isolada completamente no gineceu.

69
(LEDUC, 1990, p. 299) por isso o historiador Vernant (1992) também afirma que o casamento
está para rapariga assim como a guerra está para o rapaz, é necessário uma funcionalização de
ambos os sexos. Mulheres funcionalizadas pela cidade, caseiras, operosas e fieís. Elas sempre
estão nas costas da pólis e principalmente dos homens, mulheres essas que olham, escutam, ora
valente e ora covarde, mas sempre silenciosas. E é justamente isso que a presença de Medeia
lhes proporciona, um momento de interrogação sobre si em um espaço além da cozinha.

Esse modelo de enquadramento sociocultural androcêntrico empregado pelos gregos no


sistema cívico, destinava-se segundo Pantel (1990) a reafirmar a domesticidade do feminino e
a sua exclusão do público, relegando as mulheres o interior, o privado, o desconhecido, algo
repreendido pelo discurso da personagem Medeia. Indubitavelmente, “se o casamento é a última
etapa da sua domesticação, é desde a idade dos sete anos que as rapariguinhas entram no
processo que fará delas esposas perfeitas” (ZAIDMAN, 1990, p. 415). Sendo assim, sendo
Gibert (2017) o crescimento da democracia ateniense foi acompanhado por um esforço
crescente por parte dos cidadãos masculinos em regular a vida das mulheres, logo podemos
observar que desde cedo as mulheres começam o seu processo de educação/submissão ao
masculino no interior da pólis grega.

Por isso, Medeia se utiliza dos opostos para expressar os seus interesses, é como se
construísse através de sua fala uma paidéia própria do feminino, pois ela dialoga com o Coro
que vive uma realidade semelhante, a funcionalização de seus corpos. É através desse discurso
feminino que Medeia demonstrará a realidade cotidiana das mulheres de Corinto e justamente
em consequência disso receberá a aproximação do Coro. Nessa sociedade as mulheres são vistas
como:

Pouco ousadas por natureza, por falta de audácia que as constitui tais como são, as
mulheres receberão, desde a mais tenra idade, uma educação, uma verdadeira
domesticação que, compensando o seu defeito inato, lhes permitirá prestações menos
brilhantes e gloriosas que as dos andres (SISSA, 1990, p. 115, 116)

Nessa mesma ótica, Redfield (1994) define a cidade a partir do político como uma
comunidade que possui uma pluralidade de pessoas, os cidadãos, e que se mantém estruturada
através dos laços recíprocos de hospitalidade e casamento. Como também “esta manipulação
do parentesco que constitui, creio eu, o acto fundador da cidade grega” (LEDUC, 1990, p. 302).
Esse convívio, inaugurado pelos gregos, é também amplamente discutido por Claude Mosse
em seu livro A mulher na Grécia Clássica, obra em que a historiadora define a cidade como um
clube de homens, na qual o feminino é visto como uma “eterna menor” porque necessitava da
70
figura de um tutor. É esse tutor158 que se figura no pai ou algum parente masculino mais
próximo, responsável por manter a condição social do feminino, primeiramente como filha,
posteriormente esposa e mãe. Nessa perspectiva, observamos que o feminino necessita do
masculino para ter uma representação pública ou social, por isso “é o chefe da família quem
assegura a ligação entre o oikos e a comunidade cívica, é ele que realiza os gestos decisivos de
integração” (ZAIDMAN, 1990, p. 452).

E é justamente essa determinação social que condiciona o exercício da função de ambos


os gêneros no interior das relações de parentesco, uma vez que, “os sistemas de parentesco
determinam que a sexualidade de ambos os sexos seja esculpida de uma determinada forma”
(RUBIN, 2017, p. 33). Deste modo, as atividades femininas são necessárias a cidade, já que
elas desempenham funções fundamentais a existência biológica da mesma, fato marcado no
discurso de Medeia. Neste campo elas são valorizadas e encontram um lugar de visibilidade no
mundo cívico, fornecendo segundo Loraux (1994) cidadãos legítimos, à continuação da pólis.
Esse modelo binário159, especificamente grego, era constantemente reafirmado pela
própria organização social da pólis que separava o espaço público do particular, bem como os
papéis femininos e masculinos, portanto “na sociedade políade, as mulheres definiam-se,
principalmente, pelo seu lugar e pelos seus deveres” (LESSA, 2004, p. 14). Claro que o cidadão
masculino define o comum como o dele, o particular com o dela, contudo é ele que determina
um grau de importância a esses espaços assim atribuindo maior valor para um em detrimento
do outro. O feminino se encontra constituído por uma concepção de sociedade e mundo
amplamente androcêntrica, como afirmado anteriormente, necessitando da figura masculina
para sua representação em quase todas instâncias. Logo, as mulheres não eram mais filhas dos
heróis homéricos e sim filhas de cidadãos que participavam da cidade em uma função
especifica, mulheres representadas no Coro de coríntias. Posto isso, é nesse novo cenário, que
o casamento é visto como um meio para fortificar as relações de parentescos num princípio
normativo e necessário para sobrevivência da pólis além de regulamentar o comportamento de
ambos os gêneros. E é precisamente essa funcionalidade/regulamentação que Medeia critica

158
Esse tutor, denominado como kyrios será utilizado por diversos autores. Além Mosse, podemos citar Vrissimtzis
(2002), Pantel (1990), Zaidman (1990), pois é evidente que o feminino necessita de uma representatividade no
público e dessa forma o masculino permeia sua vida
159
Mueller (2017, p. 500) afirma que enquanto os poemas homéricos adotam uma visão de mundo misógina
delineadas também pelos poemas de Hesíodo, a tragédia grega por outro lado desafia essa estrutura binária de
relações de gênero representadas como normativas no período arcaico.
71
perante o Coro que reconhece a situação cotidiana que vivenciam, elas conseguem observar que
estão envoltas a esse sistema, embora não produzam uma ruptura.
A prática da domesticidade é uma forma de construir um tipo especifico de feminino
imbricado em relações de parentesco claramente heterossexuais. Consequentemente, era
considerado fundamental na vida de todo cidadão já que significava a continuação de sua
descendência além do nome da família. Destarte, homens e mulheres160 deveriam contribuir
fornecendo cidadãos legítimos.

Nessa acepção, Medeia realiza entre os versos (214-266) uma paideia a respeito do lugar
do feminino no interior da sociedade, colocando em evidencia qual o posicionamento das
coríntias e principalmente dando destaque para a funcionalidade das mulheres no interior da
sociedade políade. Nesse sentido, iremos nos utilizar de alguns versos no interior desse
monólogo, expressivo do posicionamento da personagem.

Em seus argumentos perante o Coro feminino ela crítica esse sistema de troca
demonstrando uma resistência a essa constituição social, na qual as mulheres são a peça chave
nos matrimônios no interior da pólis.
Primeiro, a preço exorbitante, é preciso
comprar um marido, um déspota de corpo
tomar: da desgraceira a mais dolorosa desgraça.( MED vv. 233-
235)[grifo nosso]

Lembramos que a personagem aqui analisada não realizou um casamento oficial na sua
cidade de origem, dessa forma já observamos uma certa resistência a essa instituição
consolidada no matrimônio. E como expresso anteriormente Medeia constrói uma
argumentação próxima ao Coro feminino, o que poderíamos afirmar como uma paidéia do que
é ser mulher no interior da pólis, quais os lugares e deveres dessas coríntias. Embora, sejam
mulheres, Medeia e Coro, a princesa estrangeira não se assemelha a essas mulheres, ela pertence
ao grupo mais sabe que sua posição não é igual, não somente pela sua condição de bárbara, mas
principalmente porque ela não se condiciona ao julgo social. Assim, Medeia consegue observar
a funcionalidade sobre o feminino e critica esse sistema.

160
Encontramos no livro História das Mulheres a definição dessa palavra para o pensamento grego: “Mulher = ser
humano no feminino, sendo o feminino o contrário do masculino. As mulheres são simultaneamente uma parte do
gênero humano e uma forma oposta à forma masculina. Parte de um todo, é certo, mas também parte contrária a
uma outra parte” (SISSA, 1990, p. 92).
72
O vínculo de Medeia e Jasão não se fundamenta na troca de presentes ou aliança, pois
no caso de Medeia, pelo contrário, o rei Etes fica desprovido primeiramente da filha que vivia
em sua casa e do precioso velocino de ouro que foi usurpado indignamente por Jasão. Nessa
perspectiva Cairns (2017) afirma que a união de Jasão e Medeia evidenciam muita das
características regulares de um casamento presente na sociedade ateniense, contudo de forma
extrema. Além disso, Medeia e Jasão que arranjaram sua união, sem a permissão do pai da
princesa, uma vez que, ela fugiu e deixou sua casa e terra natal para trás, abandonando assim a
sua família em busca de um marido. Por isso segundo a teoria de Cairns (2017) Medeia seria a
imagem espelhada de Antígona de Sófocles, que recusou o matrimônio para manter-se ao lado
de sua família. Nesse sentido, Medeia diferentemente da personagem de Sófocles despedaça as
relações de parentesco de sua linhagem paterna, uma vez que, mata seu irmão, o oposto de
Antígona que está disposta a morrer por seus afins.
Assim, o rei Sol somente recebe prejuízos com a presença da expedição em sua terra
além de não assegurar por meio de rituais 161 próprios a união dos noivos, a tornando ilegítima.
Jasão por outro lado nessa relação desigual ganha como “dote” 162 de seu casamento a relíquia
mais preciosa do reino e o auxílio da princesa que traí o próprio pai. Além disso, a pior revés
do rei será a morte de seu único primogênito homem, Apsitor, que é morto em algumas versões
por Medeia e outras por Jasão. Em suma, as relações de parentesco foram completamente
despedaçadas na linhagem de Etes163 que perde os seus descentes. Por consequência de suas
ações, Medeia também abriu mão da estabilidade 164 que teria caso seu casamento não fosse
bem-sucedido, assim observamos que ela aposta na realização dessa união.
Em um discurso logo no início da tragédia Medeia relembra a sua situação perante o
Coro de mulheres e demonstra o abismo que existe entre elas:

161
Em seu artigo intitulado: As filhas de Pandora – mulher e rituais da cidade a autora Louise Bruit Zaidman cita
as diversas etapas necessárias para a consumação dos ritos matrimoniais no interior da pólis, algo que não é
representado na tragédia de Eurípides.
162
A respeito do matrimônio Swift (2017) corrobora que a intenção do dote era incentivar casamento estáveis,
uma vez que o divórcio no homem deveria devolver o dote caso ele escolhesse se separar. Dessa forma, o sistema
foi projetado para fornecer incentivos financeiros para que os maridos se mantenham leais as relações de
parentesco firmadas.
163
Por outro lado, segundo algumas versões da mitologia esse sentimento arrasador que desperta essa sequência
ocorreria por meio da interferência da deusa Hera, protetora de Jasão e responsável pelo enlace amoroso na
princesa cólquica.
164
Segundo Swift (2017) ao recusar a casa do pai Medeia teria ficado em total dependência de Jasão, posto que
não poderia retornar a sua pátria. Entretanto não concordamos plenamente com esse argumento, uma vez que,
acreditamos que Medeia não se apresenta como uma mulher dependente do masculino, pelo contrário, ela ousou
apostar nessa relação, foi uma escolha.
73
Mas uma mesma história para mim e para ti não dá
Tu tens essa cidade, a casa do pai,
vantagens na vida e a companhia de amigos;
já eu, solitária e sem pátria, afrontada
pelo marido, arrastada da terra bárbara,
sem mãe, sem irmão, sem família
de porto em porto busco refúgio dessas desgraças (MED vv. 252-
258)[grifo nosso]

O retorno e proteção que a sua casa paterna poderia lhe proporcionar foram deixados
para trás, além disso, ela também não tem mais o amparo de seu irmão, pois segundo o mito ele
teria sido morto durante a perseguição ao navio Argos. Assim, Medeia diferentemente das
outras mulheres não possuía um representante masculino/kyrios que lhe assegurasse um retorno
para a sua origem. A situação de Medeia num possível divórcio 165 seria a pior possível, uma
vez que, como exposto ela não poderia retornar a casa paterna. Contudo, visualizamos essa
atitude de Medeia como uma escolha particular, pois ela aposta na relação a tal ponto que quebra
com seu passado, assim realizando uma atitude através desse gesto. Ela rompe com seu passado,
como expresso no mito, justamente porque acredita existir uma relação de justiça e igualdade
na sua relação com Jasão.
A personagem, por meio do seu diálogo, confirma esses princípios, uma vez que é “o
casamento, instituição que está no cerne do funcionamento econômico, social e político da
cidade” (PANTEL, 1990, p. 599). Sendo assim, as relações de parentesco são moldadas a partir
do interesse do cidadão que realiza essa troca de dote/mulher166 entre os oikos no interior da
cidade. Além disso, segundo Mueller (2017) as transações materiais presentes nesse sistema
cívico de matrimônio estão embutidas de complexas redes de relações sociais, uma vez que, em
circunstâncias normais espera-se que os participantes desse sistema não apenas ofereçam, mas
também recebam e devolvam os presentes recebidos caso seja necessário.

165
Segundo Vrissimtzis geralmente as motivações para um divórcio na sociedade grega seria adultério por parte
da esposa ou infertilidade da mesma, assim seriam duas situações em que a “separação” seria aceita socialmente
pela cidade. Além disso, conforme o autor “em Atenas, e também em outros lugares, se o marido enfrentasse um
sério problema com sua esposa (como o de ela ser estéril ou não conseguir gerar crianças do sexo masculino) e,
no entanto, não quisesse conceder o divórcio – para não ter de devolver o dote -, podia recorrer ao concubinato
como solução” (VRISSIMTZIS, 2002, p. 61)
166
Leduc em seus escritos afirma que as falas que Medeia profere contra esse sistema de intercâmbio de valores e
mulheres demonstra “uma desvalorização da condição do feminino” (LEDUC, 1990, p. 328).
74
A partir da nossa interpretação vinculada a uma análise de gênero, as críticas proferidas
pela personagem perante a sua casa, local fortemente representativo desse sistema
androcêntrico, e perante o Coro de mulheres demonstra o impacto de suas falas concentradas
nos versos 214-266 posteriormente trabalhados. Indubitavelmente, Medeia expressa com a sua
voz as interrogações desse feminino que a escuta, pois, elas também compreendem a definição
de um lugar próprio do feminino, lugar de identidade.
Por não poderem participar do espaço político masculino e institucional, mas ao
mesmo tempo serem “metade” da cidade, segundo a expressão de Aristófanes nas
Tesmóforas, as mulheres de Atenas permaneciam no meio do caminho, em uma
situação ambígua e por vezes contraditória, ora mais próximas das outras mulheres no
que diz respeito à solidariedade e às interações, ora realizando certos rituais religiosos
e tendo seus filhos, dando à cidade futuros cidadãos, e ao oikos do marido, seus
herdeiros. Ora articulando um lugar próprio, ora aparecendo no horizonte da vida
privada de um cidadão, seu pau, seu marido, seu kurios. (ANDRADE, 2003, p. 118)

Ela expressa a partir de suas falas a realidade cotidiana desse feminino, representado no
Coro de mulheres moradoras de Corinto, mulheres essas que a escutam e a compreendem,
principalmente, porque aceitam manter-se em silêncio a respeito da vingança a Jasão posto que
o mesmo afirma:

Isso farei, pois é justo dar troco ao marido,


Medeia. E lamento, não admiro tua sorte (MED vv. 267-268) [grifo
nosso]

Podemos observar que o Coro se aproxima da princesa após ouvir suas lamentações e,
principalmente, após discorrer a respeito da domesticidade do feminino, formando um laço de
reciprocidade167 entre essas mulheres que afirmam ir juntamente com Medeia nessa vingança.
Reiteramos isso porque em diversos momentos específicos Medeia se pronuncia diretamente
para essas mulheres, buscando seu convencimento e seu apoio como demonstrado no quadro
abaixo:

167
A historiador Marta Mega de Andrade corrobora: “trata-se da solidariedade entre figuras femininas no teatro
de Eurípides. Surge entre elas uma relação de afinidade, independente da pertença a um mesmo grupo social, ou
seja, independente da cidadania. A solidariedade vem reforçar a união do feminino dentro do lugar reservado a
ele: o génos das mulheres” (ANDRADE, 2001, p. 62)
75
Medeia direcionada ao Coro:
Mulheres de Corinto (v. 214)
Mulheres somos as mais lamentáveis criaturas (v.232)
Mulher é cheia de medo (v. 263)
Amigas (v. 377)
Agora belas vitórias sobre meus inimigos, queridas, teremos! (vv. 765-766)
Vamos ter que matar os meninos (v. 793)
Não suporto, amigas, ser motivo de riso pros inimigos (v. 797)
Não contes nada do que planejei, se entendes bem tua senhora e és mulher. (vv. 823-824)
Nós os mataremos, nós, que os geramos! (v. 1064)
Amigas, há muito espero a solução do acaso e aguardo o que lá se passará. (vv. 1116-1117)
Queridas, o ato está decidido. (v.1236)
Nós mataremos, nós que os geramos (v. 1241)

Nas falas aqui selecionadas, Medeia se aproxima vocalmente do Coro procurando criar
um vínculo com essas mulheres que irão acompanhá-la durante a encenação, mantendo o
segredo a respeito da vingança à Jasão. Nesse ponto de vista:

O afastamento pela cidadania, entre Medeia e as coríntias, não impede, entretanto, que
entre elas se estabeleça um elo de solidariedade no silêncio: as coríntias não se
levantarão contra a vingança de Medeia, nem mesmo quando esta vingança atinge
uma outra mulher, a filha do rei, e o próprio rei de Corinto (ANDRADE, 2003, p. 133)

Sendo assim, segundo Swift (2017) Medeia se depara com um Coro amigável/reciproco,
mas não necessariamente leal, já que, em suas falas iniciais Medeia sabe que é uma estranha
naquele meio afirmando “Mulheres de Corinto”. Assim, sua estratégia é construir uma
identidade com base na experiência que é comum as mulheres, a domesticidade.

Por isso, ela enfatiza um reconhecimento de suas diferenças em relação aos homens,
Medeia as chama para uma tomada de posição como mulheres, não como mães ou filhas. Assim,
segundo Mueller “o crucial para a estratégia de vingança de Medeia é o apoio do Coro”
(MUELLER, 2016, p. 508) 168. Medeia em suas falas busca um terreno comum com essas
mulheres, uma identidade para que se crie um vínculo. A autora ainda afirma que a identidade

168
Citação traduzida do original: “Crucial to Medea’s revenge strategy is the support of the Chorus”.
76
de Medeia está concentrada no fato dela construir cênicamente a sua representação como
mulher e o seu status de vítima e ao mesmo tempo vingadora, torna-a profundamente
sintonizada com o Coro que vive a mesma realidade subjetiva, familiar e social. Como já dito
antes, Medeia a partir do seu discurso busca primeiramente convencer o Coro lhe acompanhar
nesse processo de ação, e principalmente, reivindica um lugar para além do espaço particular
do oikos.

O Coro, desde o princípio, se conduz juntamente com Medeia afirmando que:

Um choro, ouvi! Triste ... Tão gemido ...


Uma agonia clara e doída reclama
na cama o esposo ruim .... Infiel
Injustiça sofreu e aos deuses exora
a promessa de Zeus, Têmis (MED vv. 205-209)

Nesse instante, o Coro169 está na frente do oikos ouvindo suas lamentações e alegando
que o corrido com a princesa é um caso de injustiça, por isso suplicam aos deuses vingança
pelo ato de Jasão. Essas mulheres coríntias conseguem dimensionar a dor do abandono numa
sociedade marcadamente androcêntrica e que concentra a visibilidade do humano no público e
principalmente condicionam as mulheres a viverem funcionalizadas reproduzindo filhos para
pólis. Essa realidade é amplamente discutida por meio de um processo deliberativo construído
por Medeia ao longo de toda tragédia, assunto esse abordado no terceiro capítulo da presente
dissertação.
Ao observar o discurso produzido na tragédia tanto as mulheres de Corinto como
Medeia se utilizam do conceito de justiça para cobrar um posicionamento do personagem Jasão,
uma vez que, ambas acreditam ocorrer um processo de desrespeito. Nesse sentido, podemos
afirmar que Medeia reclama algo próximo a uma philia, um contrato que foi acordado entre ela
e Jasão e que foi desfeito sem nenhuma honra pelo masculino.

169
Nessa perspectiva a respeito da solidariedade do Coro “As mulheres de Corinto procuram Medeia para consolá-
la diante da perda do leito conjugal. O que se segue é uma interação entre o grupo de mulheres, em que surge a
condição feminina frente ao mundo humano, e o destino da raça das mulheres, marcado pela reprovação e pelo
descrédito. Apesar de ser usada pelo coro de mulheres coríntias, por uma vez, a expressão do temor pela perda de
uma pretensa cidadania, as coríntias estão menos próximas de sua cidade do que daquilo que as une a Medeia: a
condição feminina” (ANDRADE, 2001, p. 63)
77
E é justamente nesse elo 170 existente entre os femininos, Medeia e o Coro, que a
personagem trágica irá fundamentar seus diálogos para melhor convencimento das moradoras
de Corinto. Marcando sua argumentação pela domesticidade, pela exclusão do feminino, pelo
afastamento do espaço comum/deliberativo, pela falta de autonomia e representação. É
utilizando de um discurso marcadamente feminino que Medeia consegue convencer o Coro a
acompanha-la por quase toda tragédia.

De tudo que é vivo e tem vontade,


mulheres somos as mais lamentáveis criaturas. (MED vv. 231-232)
[grifo nosso]

Contudo, as mulheres que compõem o Coro em nenhum momento da tragédia


demonstram um posicionamento ativo se comparadas a Medeia, elas suplicam por justiça aos
deuses, concordam com infidelidade de Jasão mas não demonstram uma tentativa de ação. Em
suma, essas mulheres gregas não se veem realizando uma ruptura no sistema cívico, elas
somente observam e acompanham a princesa até determinado ponto, a decisão da morte das
crianças. Medeia consegue conduzir o Coro, juntamente como o espectador, até o momento que
define como se findara a sua vingança.
Para enfatizar a dominação masculina a princesa continua tecendo críticas ao casamento
afirmando que:
Aí, ao se deparar com novos costumes e leis,
é preciso ser advinha: não se aprende em casa
como melhor servir ao companheiro. E se,
lida acabada, a nós o marido leva bem,
sem violência, aí, no cabresto, a vida
é invejável. Se não, é útil morrer. (MED vv. 238-242) [grifo nosso]

Primeiramente, destacamos que Medeia perante ao Coro de mulheres coríntias, em sua


fala, alega que “não se aprende em casa como melhor servir ao companheiro”; segundo,
salientamos sua condição de estrangeira. Contudo, isso seria algo impensável para sociedade

170
Assim, observa-se uma solidariedade existente entre o Coro de mulheres e a personagem Medeia, uma vez que,
essas mulheres em nenhum momento se perguntam ou se posicionam contra a morte do rei da cidade e de sua
filha.
78
grega naquele período, uma vez que, as jovens eram educadas 171 para vida matrimonial172 e
reservada desde a tenra infância, posto que “tornada adulta, a filha do cidadão ateniense –
qualquer que tenha sido a forma de sua educação – é devotada ao casamento” (CALAME, 2013,
p. 104).

Medeia ao se referir ao casamento 173 sempre lhe apresenta como um jugo 174 sob o
feminino, algo que condiciona a mulher a viver sobre os interesses do masculino, no interior e
no exterior da casa. Assim, quando se refere a jovem esposada por Jasão corrobora essa
domesticidade175 que o casamento assegura sob o feminino, afirmando que ela é uma “moça
recém-domada” (MED v.623), como nos corrobora o autor acima citado “o casamento grego
é concebido justamente como uma passagem da “natureza” à cultura pela união entre os sexos”
(CALAME, 2013, p. 112).). Dessa forma, esse jugo social expresso no casamento mantém a
mulher sobre vigilância e regramento constante dentro da pólis, cimentando a sua função de
mantenedora do corpo cívico e sem participação no espaço comum. E é justamente esse sistema
de regramento social/cultural androcêntrico que Medeia critica em suas falas, posto que, ela se
posiciona e questiona a validade desse sistema cívico.

171
Autoras como Loraux, Mosse, Pomeroy, Zaidaman e Sissa demonstram, em seus escritos, que o feminino era
educado justamente para ter um comportamento condizente com sua função social dentro da pólis, assim o
masculino condiciona o espaço do feminino e lhe subjuga a partir de seus interesses.
172
A respeito da temática do matrimônio, podemos citar diversas produções que analisam o casamento em
diferentes contextos históricos do sistema políade, só para exemplificar; Mosse (1990) debate a relevância do
casamento no interior da pólis grega e o processo de tutela do feminino nesse contexto; neste mesmo sentido,
Pomeroy (1987) classifica o feminino em categorias e quais suas funções no interior da cidade demonstrando assim
o papel da mulher cidadã. Além disso, podemos citar Vrissmtzis (2002) que nos seus escritos revela o processo
ritualístico realizado na cerimônia, as trocas entre as famílias e a legitimidade dessa união. O historiador Vernant
(1992) rapidamente discorre a respeito da temática, mas deixa nítido o peso dessa instituição no interior da cidade,
uma vez que ela é a responsável pela união de casa no interior da pólis. Para finalizar essa breve explanação,
citamos Andrade que nos evidencia o “reconhecimento de um elo específico das mulheres com a pólis”
(ANDRADE, 2003, p. 118).
173
A respeito da temática, podemos citar para exemplificação: “Os rituais matrimoniais, porque não existe uma
cerimônia religiosa oficial, mas antes uma constelação de ritos, tornam-se mais compreensíveis à luz destas
múltiplas dimensões do casamento e delas retiram a sua coerência. Esses rituais constituem, simultaneamente, a
celebração de um momento da vida privada que se integra na vida da cidade, porque o casamento é uma
oportunidade para reforçar os laços da comunidade, uma festa propiciatória destinada a assegurar a prosperidade
futura dos esposos, e um conjunto de ritos que têm por função assegurar esta passagem decisiva que é para a
mulher o acontecimento mais importante da sua vida” (ZAIDMAN, 1990, p. 442).
174
Essa palavra é traduzida em diferentes obras: cabresto (TURPRESA, 2013), ou jugo (TORRANO, 2015) e
(VIEIRA, 2010).
175
Nesse sentido, Claude Calame refere-se ao casamento como: “domesticação, traduzida pela imagem de jugo é
dupla – lembremos ela é submissão ao desejo animado por Eros e, para a mulher ateniense, sujeição à autoridade
do esposo na união sexual e na coabitação. Na prática social, a liturgia do matrimônio tem precisamente por função
fazer do constrangimento sexual, simbolizado na perseguição e no rapto, uma domesticação culturalmente regrada
e socialmente admitida: a aceitação do poder masculino, inscrita no papel social (gender) da mulher adulta,
exprime-se pela metáfora da passagem à civilização” (CALAME, 2013, p. 145).
79
O casamento nessa perspectiva é apresentado como uma ferramenta fundamental para
o processo de domesticidade do feminino, uma vez que, é sobre o cabresto social e masculino
que essas mulheres são formadas e forjadas no interior da cidade. “essa domesticação, traduzida
pela imagem do jugo é dupla – lembremos: ela é submissão ao desejo animado por Eros e, para
a mulher ateniense, sujeição a autoridade do esposo” (CALAME, 2013, p. 145). Assim, o
matrimônio teria, segundo o autor citado, a função de constrangimento sexual simbolizados na
perseguição e no rapto 176, e principalmente, na domesticidade cultural regrada e socialmente
admitida. Na história de Herôdoto, citada na introdução da dissertação, Medeia teria sido
raptada de seu reino na Cólquida e “quando o rei dos cólquidos mandou um arauto para pedir
reparação pelo rapto e a restituição da filha, os helenos responderam que lhes tinha sido negada
a reparação pelo rapto da argiva Io” (HERÔDOTO, LI-2). Assim, observamos que a figura de
Medeia nessa visão teria sido raptada 177 pelos gregos e conduzida para Hélade sem a sua
vontade.

Em suma, podemos perceber que:

Os rituais em torno do casamento representam o culminar da integração da rapariga


na vida adulta e por isso na cidade. O casamento constitui para ela o momento decisivo
em que, mudando de estatuto, de parthenos (rapariga solteira) se transforma em gynê
(mulher casada). Relativamente ao seu lugar na vida social isto significa que ela muda
de oikos, deixando a casa de seu pai para entrar na de seu marido, através da qual se
definirá doravante na sua posição na cidade (ZAIDMAN, 1990, p. 441)

Nesse prisma podemos observar que a mulher é sempre intermediada/tutelada ou


representada pelo masculino, posto que “a legitimidade do estatuto da mulher passa sempre,
como se vê, pelo do pai ou pelo do marido” (ZAIDMAN, 1990, p. 413). Destarte, as relações
de parentesco e de gênero se baseiam, na grande maioria, pela linha paterna, deixando evidente
um posicionamento de sociedade marcadamente androcêntrico. Salientamos isso porque o “
casamento era uma condição fundamental para a continuidade da cidade e por isso era tratado
como assunto de Estado” (VRISSIMTZIS, 2002, p. 47). Consequentemente, masculino e
feminino, estão implicados nessa condição no interior da pólis, evidentemente de maneira
distinta como exposto nas falas dos próprios personagens. Entretanto, ambos devem fornecer

176
Assunto brevemente debatido na introdução nesse trabalho, página 20.
177
Nesse sentido Nólibos nos afirma que “uma mulher e a sua castidade não eram propriamente protegidas em
função delas mesmas, mas porque serviam de veículo de continuação do óikos. O desejo da legislação ao protege-
las significa a vontade de proteger a honra de uma casa e de um homem, marido ou guardião” (NÓLIBOS, 2006,
p. 54). Dessa forma, se Medeia foi raptada por Jasão todas as relações de parentesco que poderiam ser constituídas
foram desconsideradas, e o rei Etes não conseguiu assegurar por meio de rituais específicos a união de sua filha.
80
quando necessários filhos 178 legítimos para manutenção desse sistema cívico. Posto isso,
manter-se casto179 no interior da cidade se torna um problema.

Na fonte aqui analisada, a partir dos versos anteriormente demonstrados, observamos


que são os homens que trocam mulheres e não o contrário, por isso Medeia se aproxima
cenicamente do Coro que está na frente do seu oikos. Medeia quando sai do interior de sua casa
destina suas falas justamente para o Coro que a observa as chamando de “Amigas” ou
“Mulheres” dessa forma representando uma proximidade entre o feminino estrangeiro e grego
São essas mulheres, que da mesma maneira são atingidas por esse sistema de relações de
parentesco, que concretizam as relações de gênero na sociedade grega, determinando,
sobretudo, quais as funções que o feminino deve exercer.

Em suma, visualizamos nesse tópico a aproximação e a reciprocidade existente entre a


personagem Medeia e o Coro de mulheres moradoras da cidade de Corinto. Mulheres essas que
aproximam, embora sempre se diferenciem, posto que Medeia visualiza o modelo de sociedade
cívica e androcêntrica a partir de um ponto de vista distinto do Coro pois a sua situação de
estrangeira lhe torna ímpar. Assim, ela realiza uma crítica a funcionalidade do feminino, algo
enraizado nas relações de parentesco, dando assim voz para os questionamentos dessas
mulheres que se mantêm silenciosas durante a tragédia e principalmente socialmente devido a
domesticidade que lhes subjugam. Medeia as chama para cena, mostra o acantonamento do
feminino, problematiza a convivência na pólis e as relações imbricadas no matrimônio assuntos
demonstrados ao longo da escrita. O Coro acompanha Medeia durante a sua trama que busca a
justiça, palavra utilizada pelas mulheres, elas silenciam as verdadeiras intenções da princesa
estrangeira e não lhe abandonam até mesmo no momento da morte de Glauce. Essa
reciprocidade será mantida até o instante da morte das crianças, algo inconcebível ao feminino
que não consegue se desvincular totalmente de sua funcionalidade cívica, gerar filhos.

178
Essa recusa ao matrimônio é amplamente discutida por Nicole Loraux (1990) em seus escritos que demonstram
que a virgindade era algo restrito as deusas que se mantinham castas, dessa forma, um comportamento não propício
para cidade. Nessa perspectiva, a autora afirma que o mito de Hipólito representa justamente essa “excessividade
elevada para uma mortal” (LORAUX, 1990, p. 32) que recusa o matrimônio, desejando se manter virgem e
próximo da deusa Ártemis. Posto isso, manter-se virgem no sistema políade seria um problema para manutenção
dessa estrutura
179
“É que a recusa do casamento ameaça toda a cidade; longe de ser um assunto privado, põe em causa toda a
ordem humana, e é isto que explica a multiplicidade dos mitos que, de forma dramática, representam o momento
de crise desencadeado pela recusa individual. Na cidade, o casamento como instituição ocupa um lugar central
[...]” (ZAIDMAN, 1990, p. 444).
81
2.2 O masculino e Medeia

Em relação ao tratamento que o masculino na tragédia possui perante Medeia


observamos um nítido contraste, uma vez que os três personagens masculino (Creonte, Jasão e
Egeu) estão em diferente situação nesse enredo. Creonte, desde o princípio, quer retirá-la da
convivência da pólis, ele adentra no primeiro episódio com a certeza da expulsão e que essa sua
atitude afastaria terríveis problemas pois ele não confia em Medeia. Por outro lado, Jasão, o
masculino que mais conhece a potência da personagem feminina lhe recrimina por não manter-
se em silêncio:

Não foi essa a primeira vez. Várias vezes notei


que um modo rude é um mal sem meios.
Estava à tua disposição ter esse chão e essa casa,
se suportasse com leveza as decisões dos mais fortes. (MED vv. 446-
449)

Esperando uma atitude contida de sua ex-mulher, fato justificado, uma vez que,
“qualquer iniciativa tomada activamente por uma mulher só pode ser do domínio da sedução,
da feitiçaria, do despudor. A esposa deve limitar-se a uma passividade que consente, a uma
adequação sistemática ao modo de vida do marido” (SISSA, 1990, p. 118). E o personagem
Egeu adentra cenicamente para proporcionar um final para a princesa Medeia que necessitará
de um local de refúgio, não acrescentando um posicionamento decisivo para a tragédia.

Dessa forma, como explanado no quadro abaixo os personagens masculinos se


posicionam diferentemente, porém produzem um discurso marcadamente androcêntrico em
relação a Medeia, pois esse discurso visava a opressão do feminino no interior da pólis, “uma
vez que ele convence a mulheres de sua incapacidade, de sua inferioridade e de fragilidade
perante os homens no geral” (SILVA, 2011, p. 87). Esse posicionamento é perceptível até
mesmo no personagem Egeu, como dito anteriormente não acrescenta muito ao enredo, porém
o fato de Medeia lhe pedir um juramente180 perante aos deuses, para fortalecer a sua promessa,

180
“Jura pelo chão da Terra e pelo Sol, pai do meu pai! Invoca toda a ração dos deuses!” (vv. 746-747)
82
demonstra o nítido desnível social existente entre o masculino e o feminino no interior da
cidade.

A seguir evidenciamos através de um quadro o tratamento que o masculino destina a


princesa Medeia:|

Creonte – 1º Episódio Jasão – 2º Episódio Egeu – 3º Episódio

“Por ti, a tenebrosa, a com o “Estava à tua disposição ter “Medeia, viva! Ninguém
marido irritada ....” (v.271) esse chão e essa casa, se conhece cumprimento mais
suportasses com leveza as belo do que este para saudar
decisões dos mais fortes” os amigos!” (vv. 663-664)
(vv. 448-449)
“Tua sábia natura, uma “Eu me esquive do teu “Quero lhe contar o oráculo
perícia pra muitos males ...” falatório, mulher, de tua do deus” (v. 685)
(v. 285) língua nervosa” (vv. 524-
525)
“És mulher, impulsiva, tal “Nada dirias, se não tivesse “É, mulher .... é
qual macho” (v. 319) aranhado tua cama. A tal compreensível teu
ponto chegais, mulheres, que sofrimento” (v. 703)
com uma cama arrumada
julgais tudo ter” (vv. 568-
570)
“Vai, ô louca, e me liberta de “Pragas ímpias contra os “Por muitos motivos te farei
pelejas” (v. 333) tiranos praguejaste!” (v. 607) este favor; de bom grado,
mulher” (vv. 719-720)
“Farás confusão, como é de “Mas então as divindades
costume, ô mulher” (v. 337) tomo por testemunha de
quem em tudo quero ajudar:
a ti e também às crianças.
Mas o que é bom não te
satisfaz e com arrogância
afastas os amigos” (vv. 619-
621)

Estruturalmente a tragédia divide cada episódio para a entrada de determinado


personagem masculino, como representado no quadro, e cada um deles corrobora na
representação teatral de maneira distinta.

Iniciamos com o personagem Creonte, que já no início do primeiro episódio é anunciado


pelo Coro de Coríntias: “Mas vejo chegando Creonte, desta terra o rei e dos novos planos o

83
mensageiro” (vv. 269-270). O rei se dirige até a frente do oikos da personagem Medeia para lhe
comunicar a respeito da sua expulsão da pólis. Assim, observamos que a preocupação com a
retirada da personagem se torna algo primordial para o masculino, uma vez que, é o próprio rei
que pronuncia o discurso do exílio já nos primeiros versos. E em suas falas Creonte demonstra
e reconhece a potência de Medeia, tanto em suas falas como em suas atitudes, por isso afirma
ter medo pois ela teve seu leito 181 ultrajado e é impulsiva como macho.

Falas doçuras de ouvir, mas no fundo


me dá horror que trames algum mal.
Por tais coisas fio menos em ti:
és mulher, impulsiva, tal qual macho,
porém, é mais fácil vigiar um sábia calado. (MED vv. 316-320)[grifo
nosso]

Consequentemente, por temor ele deseja retirá-la da convivência da cidade para que
nenhum mal possa ocorrer a sua filha. Dessa forma, o primeiro personagem masculino no
interior da tragédia de Eurípides reconhece o processo deliberativo na personagem, assunto
abordado no próximo capítulo, além do poder de decisão que Medeia apresenta durante sua
trajetória pessoal (vv. 282-291 e 316-323). Creonte identifica uma ameaça, mesmo quando a
chama de louca, pois ele reconhece em Medeia que ela desborda o feminino ousando falar. O
rei afirma a impulsividade da personagem, pois ela não se apresenta como uma mulher contida,
algo representado no Coro. Pelo contrário, Medeia se apresenta a busca por um espaço de
reconhecimento numa sociedade androcentrica, algo inconcebível para o masculino, por isso
Creon deseja controlá-la retirando-a da pólis.

Nesse instante Medeia se utiliza de um discurso própria da mãe preocupada com os


filhos e principalmente com o futuro da família, por isso ela afirma perante Creon:

Mas me deixa ficar só mais este único dia,


para organizar a cabeça quanto ao exílio
e a segurança dos meus meninos, já que o pai
prefere não preparar nada para os filhos.

181
“O leito do casal representa o lugar das mulheres, a partir do qual irradia todo um simbolismo ligado à força do
elemento feminino em sociedade: o ato sexual e, mais do que isso, a fertilidade, a concepção dos filhos, o
nascimento dos filhos, enfim, elementos que trazem à tona aquilo que pertence às próprias mulheres, mesmo em
uma casa que lhes é estranha, como a casa do marido” (ANDRADE, 2003, p. 135, 136)
84
Tem dó! Tu também és pai! Tens teus
filhos! Por isso mesmo, tem boa vontade!
A preocupação não é por mim, é se escapamos!
E choro por estes, os fadados à desgraça! (MED vv. 340-347)

O argumento utilizado pela personagem é característico do feminino, pois ela evidencia


o seu amor materno 182 (vv. 340-347) e a preocupação com seus filhos para conseguir um
convencimento concreto de Creon. Medeia assumi assim neste momento uma posição
meramente formal utilizando a sua funcionalidade, gerar filhos, justamente para ganhar tempo.
Ela produz um discurso reconhecido como retórico, pois o que ela deseja é convencimento do
rei para chegar a uma finalidade maior. Assim o rei cede ao pedido da princesa que suplica mais
um dia para organizar sua partida acreditando ter realizado uma ordem tirânica no princípio
assim deixando Medeia ficar.

O personagem masculino que possui maior participação no enredo trágico é Jasão e


consequentemente será mais explorado nesse tópico. No segundo episódio ele é afrontado
diretamente por Medeia que afirma ter ampla participação em todas as suas conquistas:

Mas, de qualquer forma, pela minha salvação


mais recebeste do que deste, isto vou provar;
em primeiro lugar, em vez de chão bárbaro
habitas a terra grega, conheces a justiça,
fazes uso das leis, não do favor da força.
Todos os gregos notam tua sábia essência,
teu fama. Se os limites finais da terra
habitasses, não haveria palavra sobre ti. (MED vv. 534-541)[grifo
nosso]

O herói argonauta nessa situação precisa se defender e para tanto arquiteta uma resposta
de retorno para Medeia, retirando toda a sua participação dos feitos mitológicos e lhe atribuindo
autovalor183. Nesse sentido, segundo Swift (2017) o interesse de Jasão nesse momento é
demonstrar a superioridade dos gregos perante os bárbaros, enfatizando o estereótipo de que os
bárbaros não reconhecem o estado de direito por isso ele desqualifica a participação de

183
A resposta o personagem Jasão encontra-se entre os versos 522 a 575.
85
Medeia184, tentando inferiorizá-la. Além disso, alega que lhe retirou de terra bárbara e que
atualmente a princesa se encontra em melhor situação, em local civilizado (vv. 522-575).
Segundo a autora citada Eurípides não teria construído gratuitamente esse posicionamento no
personagem Jasão, uma vez que, ele usa uma retórica familiar para os gregos, contudo o
público185 observa a sua tentativa de encobrir sua culpabilidade nesse discurso.

Jasão ao retirar total participação de Medeia de seus atos, lhe atribuí uma autoridade de
homem perante a princesa. Ele articula a sua fala a partir de experiências que afirmam ser
representativas dos humanos como tal, ou seja, exclusivamente homens. Ele se coloca como
um sujeito que engloba e dá sentido as falas de Medeia, por isso ela é vista pelo masculino
como num estado de semiconsciência, quase infantil. Jasão dessa forma tem um olhar
pragmático a respeito de Medeia, visando assim a sua funcionalidade, o utilitarismo da mulher
ao contrário do esperado pela princesa, algo que se fundamentaria em philia e no acordo
recíproco.

A conduta que Jasão espera da personagem é o silêncio e a submissão por isso afirma
que são as próprias palavras de Medeia que lhe expulsaram da pólis, como demonstrado no
quadro acima. Dessa forma, se tivesse comportamento feminino esperado pelo masculino em
Atenas, principalmente, não teria sido exilada, continuaria na cidade com seus filhos vivendo a
sombra dessa sociedade masculina. Contudo, quando Jasão esperou esse tipo de atitude de
Medeia se equivocou, uma vez que, ele é o masculino que mais conviveu com a personagem, e
desejou uma atitude que ela nunca teve, passividade. Esta decisão fundamenta a ação dela, para
Jasão que familiarizado com as práticas masculinas de tratamento do feminino não percebeu o
sentido para medeia de seu abandono. Ele a tratou como uma mulher grega e enganou-se.

Além disso, Medeia até o monólogo (vv. 870-905) recusa-se a desempenhar o seu papel
de mãe, mas revela que compartilha parcialmente do raciocínio ético que molda a concepção
de maternidade para Jasão. Assim, como nos demonstrar Given (2008) ela rejeita a concepção
de felicidade de Jasão, pois para ela, a vida familiar não está fincada na prosperidade material,
mas sim, correlacionadas a demandas recíprocas, de philia186. Por isso, ela cobra uma posição

184 Além disso, Jasão declara que Medeia possui uma natureza violenta/bárbara quando afirma “Não há mulher
grega, nenhuma, que faria isso” (vv. 1340-1341)
185 Nesse sentido, Swift (2017) afirma que o público já visualizou o desespero de Medeia sem família para protege-

la da situação de exílio no qual foi colocada por Creon, assim as palavras de Jasão são vistas como vazias e egoístas.
186
Nesse sentido, philia seria “uma das partes de um vínculo voluntário de afeição e boa vontade, e normalmente
exclui tanto os parentes próximos quanto os conhecidos mais distantes, vizinhos e concidadãos” (KONSTAN,
2005, p. 77)
86
honrosa do marido que deveria exaltá-la depois de todos os feitos. Contudo, Jasão não consegue
lhe atribuir sentimento de philia187 pois Medeia é mulher, e dessa forma não se apresenta em
nível de igualdade a ele, um homem. Dessa forma ocorreria nessa situação segundo Muller
(2008) uma violação de philia por parte de Jasão e além disso “amizade é uma coisa, relação
por casamento, outra” (KONSTAN, 2005, p 78).

Durante a discussão do casal, Jasão realiza uma afirmação a respeito da procriação de


filhos no interior dessas relações de parentesco que cercam a sociedade ateniense:

Preciso era mesmo que viventes de outro modo


crianças gerassem e que não houvesse raça feminina.
Só assim não haveria mal nenhum para a humanidade (MED vv.
573-575) [grifo nosso]

Jasão não deseja para si a posição de mãe 188, mas sim ter filhos pois isso era considerado
bom além do reconhecimento social e da continuação da memória da sua família, contudo essa
situação tinha uma contrapartida, conviver com as mulheres. Este é o problema do masculino,
conviver com alguém que aos seus olhos, naquela época, era totalmente incompreensível por
isso controlado/funcionalizado. Loraux (1981) corrobora que para a sociedade grega a raça das
mulheres era uma praga insuportável tanto na prosperidade como na desgraça. Assim, segundo
Silva (2017) “para os homens, portanto, a mulher é um mal necessário, levando em
consideração que sem ela não há procriação, geração de descendência” (SILVA, 2017, p. 44)
O interesse do masculino em manter uma linhagem considerada legitima e
principalmente aceita pela pólis é algo fundamental no interior dessa sociedade cívica, uma vez
que, os filhos são considerados pertencentes ao pai, porém necessitavam biologicamente das
mulheres para essa função. Nesse sentido, “só o nascimento do primeiro filho dará o nome
reservado às mulheres completas, quando pai 189, tendo-o tomado nos seus braços e dado com

187 Mueller (2017, p. 476) afirma que embora Medeia deseje uma relação de philia com Jasão isso não seria
possível, uma vez que a posição de Jasão nessa relação é extremamente escorregadia, além disso essa relação era
destinada entre iguais, ou seja, aristocratas/cidadãos da pólis.
188
Para melhor esclarecimento a respeito do assunto da maternidade e a sua significação social citamos o autor
que afirma: “a maternidade é uma relação não somente de uma mulher com seus filhos, mas desta mulher com
todos os outros membros do grupo, para os quais não é mãe, mas irmã, esposa prima ou simplesmente estranha no
que respeita ao parentesco” (LEVI-STRAUSS, 1982, p. 522)
189
O pai espera até ao sétimo dia de nascimento da criança, quando então, superado os problemas do parto o
recém-nascido vem para o pai que com ele anda a volta do oikos e realiza uma festa de apresentação do filho aos
parentes e amigos. A partir desse gesto masculino a criança nasce socialmente.
87
ele uma volta à lareira, reconhecerá nele um filho semelhante a si, ou, se for uma filha, a
promessa de futuras alianças” (ZAIDMAN, 1990, p. 448).
Nessa perspectiva, durante a tragédia de acordo com a tradução “Medeia não mata seus
filhos, ela mata todos os correlatos que determinam a relação matriz e filial: os herdeiros, a
prole, os rebentos, frutos, crias, a estirpe, os descendentes” (TRUPERSA, 2013, p. 38). Ela era
pertencente a essas relações cívicas de produção de filhos para cidade, entretanto ela abandona
a sua condição de mãe e esposa e ressalta sua posição de mulher quando decide ter um
posicionamento deliberativo na tragédia. Para o modo de pensar ateniense as crianças que
deveriam enterrar seus pais, e não os pais seus filhos. E para Jasão é negado até mesmo a
oportunidade de enterrar os seus, conforme Cairns (2017) porque Medeia destruiu a sua casa e
o contrato entre as gerações. Segundo o autor os adultos cuidam das crianças para
posteriormente as crianças cuidarem dos mais velhos, um contrato que instaura e depende a
continuidade dos filhos. Contudo, nesse caso a família se despedaçou, Jasão não terá ninguém
para manter viva a sua memória, parte do culto da família e para que isso acontecesse Medeia
se certificou de todos os lados, matando a futura esposa juntamente com a possibilidade de nova
descendência, os filhos já existentes e deixando Jasão com um miasma jamais esquecido. Filhos
homens já reconhecidos pelo pai e pertencentes a Jasão na perspectiva patrilinear grega, em
suma Medeia lhe retira um futuro junto aos seus.

A preferência na busca de uma união considerada legítima se expressa como um


interesse masculino, quando Jasão decide esposar a filha de Creon, ele busca uma nova
aliança190 dentro da sociedade políade, em que está inserido, em completo detrimento de sua
antiga aliança191. Seus interesses particulares e masculinos são evidentes em sua fala no
segundo episódio característico pelo embate dos personagens:

Obstino-me em propiciar aos filhos irmãos,


reunir estirpes, congregar
as duas numa. Eis como prosperamos.
A mim convém que os filhos do
futuro auxiliem os que hoje vivem. (MED vv. 563-567)

190
O pedagogo no início da tragédia já anuncia: “As velhas pelas novas! As alianças são deixadas e aquele não é
amigo desta casa” (vv. 76-77).
191
Utilizamos uma nova tradução: EURÍPIDES. Medeia. Tradução de Trajano Vieira. 1. ed. São Paulo: Editora
34, 2010.
88
Jasão espera nesse sentido que Medeia mantenha um comportamento condizente com o
adequado, ou seja, aceitando o seu compromisso oficial com a princesa da cidade que visa
claramente o seu favorecimento mantendo assim em silêncio. Entretanto, estamos falando sobre
Medeia, uma mulher com comportamento deliberativo com métis reconhecida e estrangeira, o
oposto do ideário grego. Nessa perspectiva oposta encontramos, “Penélope, por sua vez é a
representante máxima desse ideal de mulher, a recatada, casta e silenciosa esposa que espera,
incólume, a volta do marido Odisseu da guerra de Troia” (SILVA, 2017, p. 42)192.

Ele não questiona o sentimento dela, mas sim sua audácia em exigir respeito no interior
de um acordo que ela pensou ser válido 193 para os dois, por isso ele recrimina as atitudes
lamentosas de Medeia:
A tal ponto chegais, mulheres, que
com um cama arrumada julgais tudo ter
mas se, algum infortúnio pra cama acontece,
a coisa mais desejável e mais bela vira a mais hostil (MED vv. 569-
572)

E, acima de tudo ele não compreende a dor do abandono, não dimensiona o repúdio que
ele gera, uma vez que isso simboliza a exclusão do feminino naquela sociedade. Sob esse ponto
de vista “Medéia teria morrido de desespero se não tivesse se tornado Medeia, se não tivesse se
encontrado, no momento da maior humilhação que pode acontecer a uma mulher abandonada”
(STENGERS, 2000, p. 30). Essa exclusão social não ocorre no caso do masculino, uma vez
que, o homem194 se expressa no público, não necessitando do feminino para existir nessa esfera
social. Como nos demonstra Rubin (2017) os interesses do feminino não contam nos acordos

192
A autora aqui citada nesse trecho da sua dissertação está debatendo a respeito do ideal de mulher construída
principalmente nos escritos de Xenofonte, assim a sociedade grega possuía essa concepção de comportamento, e
nesse sentido, a personagem Penélope seria a sua representante maior.
193
Nesse sentido, Andrade afirma que: “A razão pela qual se julga e se faz justiça expulsando Medeia da cidade
opõe-se ao que a protagonista reclama como sendo o justo: punição contra a quebra de um juramento, contra o
abandono do leito. A razão política e em certa medida a razão jurídica que fundamenta, à legitimidade do leito
viril, ao assassinato da prole, não a de Medeia, mas aquela que constituía a descendência de Jasão” (ANDRADE,
2001, p. 58)
194
Para exemplificação da afirmação acima utilizamos uma citação da historiadora Marga Mega de Andrade que
afirma que: “O gênero masculino se reproduz como “gênero da cultura”. Isto não representa necessariamente uma
inferioridade da mulher, mas, certamente, uma valorização negativa e a subordinação do “campo” no feminino,
em grande parte das esferas institucionalizadas da vida social – família, justiça, governo; as mulheres atenienses
padecem de uma espécie de “menoridade”, aparecendo sempre precedidas da figura de um kurios. Neste ponto,
elas estavam mais próximas dos estrangeiros e dos escravos do que de seus maridos cidadãos, na medida em que
os não cidadãos dependiam também da intermediação institucional de um “protetor” (ANDRADE, 2003, p. 116)
89
masculinos, dessa forma elas não tem lugar e nem voz, por isso Jasão não compreende a
tentativa de participação e reconhecimento que Medeia deseja

Logo, como exposto acima, o interesse do masculino é ter uma linhagem considerada
grega e legítima, segundo Vrissimtzis “para um cidadão, o principal motivo de se casar era o
de vir a ter filhos do sexo masculino que assegurariam a continuação da família e cuidariam
dele na velhice” (VRISSIMTZIS, 2002, p. 44). Dessa maneira, o casamento195 é visto como um
acordo entre homens que decidem parentescos, esse acordo, para ser considerado válido dentro
da pólis, depende de duas condições: a engýesis (garantia), que poderia ser definida como um
contrato entre o masculino e a ékdosis, a entrega da noiva à família do noivo, à vista disso
“somente o casamento que tivesse cumprido essas formalidades poderia assegurar todos os
direitos civis e políticos aos filhos provenientes de tal união” (VRISSIMTZIS, 2002, p. 42).
, por isso Medeia argumenta a respeito de sua condição de estrangeira196:

Foi que na velhice


a cama bárbara acaba em má reputação (MED vv. 591-592) [grifo
nosso]

Assim, os filhos frutos da união com Jasão não eram considerados legítimos e
representantes da linhagem do herói argonauta, fato justificado na busca de uma nova união,
pois “o filho de mãe estrangeira é bastardo (nothos)” (CABANES, 2009, p. 159).

Corroborando a fala da princesa o herói argonauta responde no mesmo instante para


Medeia.

Agora sabe bem isto: não foi por mulher (MED v. 593) [grifo nosso]

Deixando evidente seu interesse em manter uma linhagem legitima e reconhecida pela
pólis. Nesse sentido, o fundamento primordial do casamento que seria, conforme Cairns (2017),
a procriação de crianças e a continuação do oikos não estaria assegurado nesse caso. Dessa
forma, a justificativa de Jasão buscar uma nova aliança no interior da cidade de Corinto revela
o seu interesse particular em realizar uma aliança matrimonial legitima deixando de ser hospede
e tornando-se assim de alguma forma pertencente a aquele local. Jasão ao fazer isso quebra com

195
Em seus escritos sobre as leis na Grécia Antiga, Ilias Arnaoutoglou afirma que “se a mulher for dada em
casamento pelo pai, ou por um irmão dela, ou ainda por seu avô por parte de pai, seus filhos serão legítimos”
(ARNAOUTOGLOU, 2003, p. 18), demonstrando assim um regramento social e público na pólis.
196
A respeito de Medeia os autores afirmam que “Medeia é considerada bárbara não só pelo seu nascimento,
mas, também, pelo seu modelo de conduta” (CHEVITARESE; GUEDES, 2003, p. 20)
90
toda a proximidade que tinha possuía com Medeia em nome daquilo que lhe seria mais
conveniente.

Egeu está restrito ao terceiro episódio e tem uma participação pouco expressiva ao
enredo principal da tragédia. O personagem do rei de Atenas se apresenta como um fio condutor
para as outras peças teatrais que Medeia estaria também envolvida e que foram perdidas ao
longo do tempo e também como um possível local de proteção após todos os crimes. Esse
personagem masculino, diferentemente dos outros já citados, não espera nenhum tipo de
comportamento ou conduta da personagem Medeia. Ele está de passagem pela cidade de
Corinto após a visita a um oráculo e a princesa se dispõem a auxiliá-lo no infortúnio de não
conseguir ter filhos:

Acabarei com tua falta de filhos e de filhos


te farei semear gerações! Conheço bons remédios! (MED vv. 717-
718).

Para tanto Medeia necessita somente que Egeu realize um juramento utilizando os
deuses como testemunha para assegurar a sua proteção após a fuga da pólis. Dessa forma,
observamos que o personagem masculino aqui citado apresenta um comportamento diferente
perante Medeia, se compadecendo com o seu abandono e lhe oferecendo de certa maneira um
auxílio final.

Em suma, o masculino da tragédia euripidiana se porta de maneira diferente, como


brevemente demonstrado e apresentado no quadro exemplificativo, no qual foi selecionado os
diálogos que apontam diretamente o posicionamento dos homens com Medeia. Assim, não
existe uma uniformidade no comportamento desses homens que compõem o espetáculo trágico,
uma vez que, cada um corrobora uma característica da personagem Medeia e engrandece a
construção cênica de maneira distinta, evidenciando assim o descontrole do feminino, a situação
de estrangeira, a falta da pátria, o conhecimento com ervas e a produção de um discurso próprio.
Contudo, o masculino num modo geral deseja uma conduta passiva da princesa, uma
domesticidade feminina, seja personificado no seu exílio longe da cidade de Corinto, pois não
tem meio termo para mulheres que apresentam comportamento igual a Medeia.

Como demonstrado ao longo do capítulo observamos dois movimentos na tragédia: o


Coro que se aproxima da princesa Medeia e é conduzido até certo ponto juntamente com ela e
o masculino que se apresenta em outro extremo. Consequentemente, observamos que embora

91
o Coro de coríntias e Medeia estejam ambos presentes nas relações de parentesco cimentadas
em uma sociedade de predominância masculina, elas possuem diferentes implicações nessas
relações, além disso “nas relações desse tipo de sistema, as mulheres não estão em condições
de se dar conta dos benefícios de sua própria circulação” (RUBIN, 2017, p. 26). As coríntias
representam as mulheres passivas e desejadas para compor a sociedade políade, uma vez que,
se mantem em silencio e não assumem um posicionamento ativo:

As mulheres virtuosas eram, assim, as mulheres de Atenas. Este aspecto da cidadania


feminina traz algumas nuances para o modelo de mélissa. Já não se trata mais daquela
esposa do pequeno camponês, na aldeia rural, que vai dar-lhe a descendência e a qual
ela ele precisa alimentar. Esta boa mulher é agora uma citadina, em larga medida, e
vê sua virtude se traduzir no casamento e fertilidade, na fidelidade conjugal, no
silêncio, na atividade ritual pública em solo ático” (ANDRADE, 2003, p. 130)

Por outro lado, Medeia tem o seu potencial discursivo e de ação reconhecido antes
mesmo de entrar em cena, e suas atitudes são corroboradas pelos masculinos da tragédia que
deseja a todo custo retirá-la da convivência ou silenciá-la. A personagem criada por Eurípides
para compor sua principal obra teatral não se apresenta como uma mulher enquadrada no
modelo mélissa197, pelo contrário, ela busca autonomia e reconhecimento, algo pertencente ao
masculino. Medeia se utiliza da própria deliberação para construir ainda mais a sua situação de
estrangeira, mulher abandonada e com filhos para arquitetar sua vingança e deixar uma marca
em todos aqueles que não a reconheceram. Bem como nos demonstra Mueller (2016) afirmando
que Eurípides estava dando a sua audiência mais do que uma simples questão a respeito de
Medeia ser uma mãe e esposa “ruim” ou “boa”. A peça desafia os espectadores a repensar as
fundações do raciocínio sobre a ética e o caráter tanto para o masculino quanto para o feminino.

Além disso, conforme Swift (2017) Medeia combina características que são
estereotipadamente femininas com outras surpreendentemente masculinas. Assim sua
capacidade de enganar teria sido considerada tipicamente feminina, pois em todas as cenas da
peça vemos Medeia manipulando os personagens para alcançar seus objetivos. Medeia expressa
as dificuldades de ser mulher, o seu discurso ajuda o expectador a entender porque a sua
vingança é justificada, pois ela explica a relevância do casamento para a mulher nesse sistema

197
Para esclarecimento: “as mulheres virtuosas eram, assim, as mulheres de Atenas. Este aspecto da cidadania
feminina traz algumas nuances para o modelo mélissa. Já não se trata mais daquela esposa do pequeno camponês,
na aldeia rural, que vai dar-lhe a descendência e a qual ele precisa alimentar. Esta boa mulher é agora a citadina,
em larga medida, e vê sua virtude se traduzir no casamento e fertilidade, na fidelidade conjugal, no silêncio, na
atividade ritual pública em solo ático” (ANDRADE, 2003, p. 119, 130)
92
androcêntrico de sociedade. Ela cumpriu com suas obrigações como esposa, permanecendo fiel
e leal a Jasão e, o mais importante, fornecendo a ele dois filhos homens saudáveis, que ele Jasão
reconheceu após o sétimo dia, por isso ela enfatiza a sua fertilidade não deixam espaço para os
argumentos do masculino. Jasão não consegue dimensionar o peso da ação de Medeia pois não
foi educado para isso, como de resto todos os homens a entender a exigência de reciprocidade
no acordo que faz com ela. A relação assimétrica de gênero entre Jasão e Medeia colocando
cada um em funções especificas em uma ordem androcêntrica. A estabilidade do casamento é
de fato uma questão crucial para as mulheres por isso Medeia nos evidência através de suas
inúmeras falas essa relevância.
Em vista do que foi aludido durante esse tópico podemos observar que os homens se
comportam de maneira distinta em relação a presença de Medeia durante a encenação. Contudo,
eles mantêm um ideário de conduta masculina assim sempre lhe subjugando ou a colocando em
nível de inferioridade, em momentos mais marcados ou não. Dessa forma, Creon, Jasão e até
mesmo Egeu se consideram superiores a personagem, uma vez que, acreditam serem os
responsáveis por decisões que ocorrem durante a tragédia, embora saibamos que simplesmente
estão sendo guiados pelos caminhos anteriormente já determinados por Medeia.
Portanto, esse capítulo teve por finalidade discutir as relações de parentesco a partir da
categoria de gênero, pois acreditamos que são justamente essas relações familiares que
anunciam uma diferenciação entre masculino e feminino. Podemos observar ainda o processo
de reciprocidade existente entre o Coro feminino e a personagem Medeia posto que se
aproximam em diversos momentos da tragédia. Porém, como demonstrado durante a escrita
Medeia não se confundi com essas mulheres, ela continua apartada desse grupo, uma vez que,
seu posicionamento diferenciado lhe faz capaz de observar e criticar essa sociedade
androcêntrica através de um discurso que busca identidade com o Coro. E para finalizar
discutimos o posicionamento de superioridade que o masculino apresenta durante o percurso
da tragédia, fato justificado no desejo de manterem Medeia e todas as mulheres sob controle e
funcionalidade/utilitarismo social.

93
CAPÍTULO 3: MEDEIA AUTORA DE SI: VOZ FEMININA E ESPAÇO
PÚBLICO

Esse capítulo final está, intimamente, unido com o anterior, em virtude de acreditarmos
que as relações de parentesco, assunto já debatido, juntamente com a produção de um discurso
próprio vinculado ao feminino são os pontos fulcrais na exposição do trabalho. A nossa
interpretação foi construída paulatinamente por meio da análise da tragédia Medeia e também
de leituras fundamentais que gotejam novas inspirações durante o processo, além de
fundamentarem nossa escrita que se utiliza uma perspectiva de gênero. Neste sentido, a nossa
interpretação da personagem, a partir da obra de Eurípides, é uma leitura contemporânea, por
isso as ressalvas a respeito do contexto cultural e social da Atenas clássica se tornam
fundamentais e anteriormente expostas no primeiro capítulo.

Iniciamos o assunto a respeito do saber afirmando que, por muitos anos, a


historiografia198 helênica acreditou e defendeu a concepção de “milagre grego”, a respeito da
racionalidade, para tanto, mantinha-se uma ideia de transformação abrupta e não consideravam-
se as relações existentes entre o social, econômico ou político do período ou seja, o contexto
era desconsiderado. Sendo assim, a racionalidade grega é vista, nessa interpretação, como algo
que ocorre sem receber influências da conjuntura histórica. Entretanto, Louis Gernet com suas
pesquisas demonstra que o humanismo grego não é somente emanação da razão absoluta, já
que ele era existente fora dos homens tornando-se algo pertencente ao social, portanto uma
criação humana e absolutamente limitada as contingências do seu tempo. Os escritos de Gernet
influenciam muito as pesquisas e publicações do historiador e antropólogo Vernant199 no século
XX, uma vez que para o autor é por meio da utilização e alargamento da peithó200 que a
sociedade grega, especificamente a políade, constrói uma nova concepção de humano e de
sociedade.

198
Indicamos como referência para leitura a obra Antropologia de la Grecia Antigua de Louis Gernet.
199
Para exemplificar a afirmação a respeito da influência citamos Vernant que endossa: “Gernet era um especialista
em todos os campos, um mestre em filologia, em ciência do direito, em história social e econômica. Era também
um daqueles que entendeu de uma forma mais refinada e profunda as formas de religiosidade grega. [...] Gernet
podia sempre considerar o homem grego total, respeitando, contudo, a especificidade dos diversos setores da
experiência humana, sua língua e sua lógica própria” (VERNANT, 2002, p. 158).
200
Marcel Detienne especifica em seu livro Os Mestres da Verdade na Grécia Arcaica a sua concepção de Peithó
que está alinhada a perspectiva de Vernant: “No panteão grego, Peithó corresponde ao poder do discurso sobre
outrem; no plano mítico, traduz o encanto da voz, a sedução do discurso, a magia das palavras [...] ela é
fundamentalmente ambivalente: benéfica e maléfica” (DETIENNE, 2013, p. 68).
94
A racionalidade grega, o lógos201, é algo muito característico do período histórico no
qual as obras trágicas foram construídas, o século V, e juntamente com a ascensão da sofística 202
na pólis de Atenas, visto que citando Gonçalves “em um momento inicial, era um logos político,
que se espalhava na cidade e se fazia lei. A partir do logos político surge o logos sofístico, que
nada mais é do que a forma aprimorada do primeiro” (GONÇALVES, 2008, p. 68). Assim
podemos observar que o processo de deliberação, no transcorrer do século V, possuiu múltiplas
facetas e, do mesmo modo, podemos afirmar que influenciou drasticamente na representação
cênica e textual nas tragédias celebradas no teatro de Dionísio. Contudo, como já mencionado
na introdução, somente para o humano masculino era legitimado o exercício da palavra, de tal
modo nos questionamos: as mulheres não são consideradas humanas nesse prisma, uma vez que
lhes é negada a voz?
Por isso, desejamos deixar evidente que, na nossa interpretação, Eurípides203 não tinha
o objetivo dar destaque ao feminino simplesmente porque era muito afeito as mulheres ou um
poeta caracterizado como o responsável pela paixão 204 dramática. Além disso, vale lembrarmos
que “as mulheres são representadas antes de serem descritas ou narradas, muito antes de terem
elas próprias a palavra” (DUBY; PERROT, 1990, p. 8). E a tragédia, acima de tudo é teatro e a
incorporação ou exclusão de determinados personagens, atitudes, roupas e cenas é pensado para
que se atinja uma finalidade.

Nesse próximo tópico iremos discorrer a respeito da condição das mulheres a partir da
produção de um discurso próprio do feminino, algo realizado pela personagem Medeia durante
a encenação tragédia. Dessa forma, desejamos destacar a voz do feminino e analisar as suas
intenções nessa produção trágica.

201
Para demonstrar esse fluxo, proporcionado pela linguagem, citamos Gonçalves: “Podemos pensar não em um
logos, uma razão entre os gregos, mas sínteses temporárias que davam conta de momentos em um movimento de
expansão do logos em toda a atividade humana. O logos, a razão se refaz em novas práticas, o que lhe possibilitou
trafegar do discurso político à filosofia” (GONÇALVES, 2008, p. 68).
202
Para exemplificar: Com efeito, a Sofística e a Retórica, que surgem com a cidade-estado grega, são formas de
pensamento fundamentalmente centradas no ambíguo, tanto porque se desenvolvem na esfera política, que é o
mundo da ambiguidade, quanto porque se definem como instrumentos que, por um lado, formulam a teoria, a
lógica da ambiguidade num plano racional e, por outro lado, permitem agir com eficácia nesse mesmo plano da
ambiguidade (DETIENNE, 2013, p. 128)
203
Nesse sentido: “Em Eurípides, a ligação do feminino à métis revela-se na habilidade em criar subterfúgios, em
maquinar armadilhas e preparar venenos. Conferindo ao feminino a habilidade em conceber armadilhas, em
aprisionar em laços, envenenar e enfeitiçar com filtros mágicos, o teatro de Eurípides confere à mulher um saber,
um domínio, que é perigoso e negativo, na medida em que a ação é aí escusa, oculta (ANDRADE, 2001, p. 54 e
55)
204 Assunto já discutido na introdução da dissertação.

95
3.1 A voz feminina

Aqui nesse tópico iremos demonstrar como Medeia tece seus argumentos a partir de
relações que ora ela defende, o papel da mulher convencional, e ora ela se põe em total
antagonismo. Essas mudanças dizem respeito aos personagens nos quais ela está em diálogo,
Coro de mulheres, Creon e Jasão. Nessa perspectiva analisaremos o discurso feminino
produzido por Medeia diante dos personagens citados, uma vez que, seu interesse é o
convencimento dos mesmos.

Quando nos questionamos a respeito da presença de uma humanidade no ser feminino


justifica-se porque a mulher somente é concebida como cidadão, em síntese “humano grego”,
quando associada a figura do masculino205, por exemplo, um pai, irmão, tio, filho ou marido. O
processo deliberativo realizado na cidade de Atenas estava associado ao exercício da vida
pública, portanto estritamente masculino. Quando nos deparamos com conceito de “logopolis”
(GOLDHILL, 1986, p. 57) ele está associado a um pequeno grupo de indivíduos masculinos
que possuíam a premissa e o direito de pronunciarem seus interesses em público. Esse pequeno
grupo, denominado de cidadãos 206, era privilegiado com a Isonomia e a Isegoria, entretanto,
todo o restante da sociedade estava apartado desses direitos.

Nessa sociedade androcêntrica, na qual o homem tinha o poder sobre o sexo feminino,
como nos afirma Lessa (2010) restou à essas mulheres a condição de passividade 207. Foi através
de um modelo de educação cívica que foi imposto às mulheres, que deveriam ser submissas208
e silenciosas. Essa paidéia feminina é constantemente reafirmada na sociedade políade, uma
vez que, a funcionalidade das mulheres e a utilidade das mesmas no espaço da cidade é algo
delimitado e contido pelo masculino, como discutido no capítulo anterior. Assim, são os

205
O conceito de kyrios já discutido no segundo capítulo.
206
Segundo Andrade “o cidadão, nascido de pai e mãe atenienses, é um homem e não uma mulher. A exclusão,
intrínseca à compreensão da cidadania ateniense, deveria negar ao feminino não só a cidadania, mas ainda a relação
mais íntima, sem mediação do sexo masculino com a pólis. Em outras palavras, cidade e feminino seriam, por
definição, figuras incompatíveis” (ANDRADE, 2001, p. 30)
207
Acreditamos que essa passividade era relativa, como nos demonstra Lessa em seu outro livro denominado
Mulheres de Atenas. Contudo, o autor está se referindo a capacidade da mulher realizar tarefas para além do oikos,
assim exercendo funções como parteiras, lavadeiras ou vendendo algum alimento. Evidentemente, as mulheres
eram consideradas como subordinadas aos homens, não decidindo assim seus próprios futuros e, portanto, não
poderiam dirigir a sociedade.
208
Loraux afirma que “A mulher é passiva e, na melhor das hipóteses inferior, em relação, escusado será dizer, ao
padrão anatómico, fisiológico e psicológico: o homem” (LORAUX, 1990, p. 85)
96
homens os responsáveis por essa educação/domesticidade que o feminino realiza durante toda
a vida.

Além disso, “para estas mulheres excluídas da ágora e das assembleias onde são tratados
os assuntos dos homens e dos deuses e, definidas pela sua reclusão na casa, o oikos. ”
(ZAIDMAN, 1990, p. 412), de tal modo que a mulher não possui exercício da palavra no espaço
comum nessa sociedade. Dessa forma, “pelo discurso político corrente, o feminino tem seu
espaço de direito no universo doméstico, onde deve permanecer em silêncio, evitando
apresentar-se, perguntar, escutar conversas” (ANDRADE, 2001, p. 29).
Contudo, quando nos reportamos para o ambiente trágico a perspectiva muda, uma vez
que os trágicos se utilizaram desse “discurso feminino” para compor suas peças teatrais e dessa
forma visualizamos mulheres com posicionamento deliberativo em cena. Assim podemos nos
questionar “Em que se baseia a palavra de uma mulher? No caso de Clitemnestra ela se baseia
nos sinais divinos” (SILVA, 2017, p. 142)209, para convencer o Coro de anciãos a rainha se
utiliza desse discurso divino na tragédia Agamêmnon, já Medeia se aproxima do Coro feminino
e da identidade existente entre elas.
Ambas personagens femininas apresentam um processo deliberativo forte, contudo se
utilizam de recursos diferentes para convencimento de seus atos. Clitemnestra é uma mulher
que está a frente da cidade a 10 anos a espera do marido e no momento da encenação o Coro é
masculino dessa forma não existindo vínculo entre os personagens. Medeia por outro lado se
apresenta como uma mulher estrangeira e abandonada e para tanto busca auxílio no Coro de
mulheres e se utiliza durante o diálogo uma identidade comum entre elas.
Indubitavelmente, o questionamento a respeito das origens de Medeia pode ocorrer, pois
a princesa não é considerada grega, fato que é evidenciado na sua própria fala, “Ao forasteiro
só cabe achegar-se muito a cidade” (MED vv. 220) [grifo nosso]. Assim podemos observar
que a personagem reconhecia a diferenciação existente entre ela e o Coro de mulheres, pois
embora exista uma reciprocidade entre ambas, Medeia se diferencia desse coletivo justamente
por suas atitudes e discurso ativo. Acreditamos que devido sua condição de estrangeira Medeia
consegue observar esse sistema cívico e criticá-lo e mais ainda, utiliza-o para construir sua
deliberação, posto que experiencia de maneira diferente essa realidade compara a das coríntias.

209
A problemática a respeito do discurso de Clitemnestra está na parte central da dissertação intitulada A
fabricação androcêntrica do feminino: a construção das rel8ações de gênero como um processo educativo na
tragédia Agamenon de Ésquilo, defendida pela mestra Lisiana Lawson Terra da Silva.
97
Medeia emprega um discurso particular e feminino, uma vez que, ela deseja convencer
os homens enfatizando assim o amor materno210 por seus filhos. Já no primeiro episódio ela
começa a empregar essa narrativa quando está diante de Creon, logo após o anuncio de sua
expulsão da pólis. Medeia fala:
Mas me deixa ficar só mais este único dia,
para organizar a cabeça quanto ao exílio
e a segurança dos meus meninos, já que o pai
prefere não preparar nada para os filhos.
Tem dó! Tu também és pai! Tens teus
filhos! Por isso mesmo, tem boa vontade!
A preocupação não é por mim, é se escapamos!
E choro por estes, os fadados à desgraça! (MED vv. 340-347) [grifo
nosso]

Desejando corroborar nas suas falas todos os males que sofre alegando ser mulher,
expatriada, abandonada pelo marido, estrangeira e com dois filhos sem um rumo certo. Ela
enfatiza justamente a funcionalidade do feminino, a maternidade, para persuadir Creon a
respeito da sua necessidade de proteção. Assim, ela se utiliza de uma linguagem que o
masculino reconhece como linguagem feminina, não rompendo assim com a sua posição de
mulher e, portanto, não oferecendo uma ameaça significativa. Empregando um “discurso”
vinculado ao convencional211 que Medeia consegue de alguma forma se aproximar de Creon e
não evidenciar uma resistência a esse sistema cívico. Ela tece uma teia de discurso com o
masculino que ela mesma controla, assim convencendo cada personagem de acordo com seu
interesse previamente planejado.
Consequentemente, para não transparecer suas intenções e a sua força de ação 212, a
personagem se sujeita aparentemente, deixando suas “vulnerabilidades” femininas a mostra e
roga ao rei:
Isso não, por favor! Te imploro, Creon! (MED v. 336)

210
Versos (340-347) trabalhados posteriormente no próximo tópico.
211
Nesse sentido, acreditamos que o conceito “práticas que moldam o cotidiano das mulheres” empregado pela
autora Lissarrague (1990) seja fundamental para entendimento da situação, uma vez que, é justamente essas
práticas cotidianas que Medeia se utiliza no discurso.
212
Como nos demonstra Butler (2014) a ação é sempre mediada por atos de fala, assim Medeia age a partir da
construção de um discurso próprio.
98
Ela deseja cativar por meio das suas palavras a sua condição de boa mãe, pois ela diz
justamente o que eles querem ouvir, partindo assim para a ação a partir do terreno masculino.
Expressando o ponto de vista comum que o masculino possuí sobre o feminino, dessa forma,
conseguindo convencer o rei e a sua permanência por mais um dia.
Essa atitude da personagem é caracterizada por muitos autores 213 como um momento no
qual Medeia se utiliza de declarações mentirosas para enganar o personagem Creon. Contudo
acreditamos que palavras como enganar, mentir ou manipular 214 somente afirmam a exclusão
do feminino e acabam realizando uma leitura androcêntrica da personagem. Esses conceitos são
empregados pelos masculinos quando se referem a Medeia na tragédia, e atualmente as
interpretações existentes continuam afirmando essa leitura.
Andrade assevera que:
Agir às escondidas; dissimular, mentir. A ação escusa do gênero feminino se opõe ao
modo próprio de ação do homem, aberto e guerreiro. A métis, desprovida na época
clássica de sua relação fundamental com a ação e com o pensamento em prol do
pensamento racional, político e filosófico, torna-se um atributo que delimita modos
de agir de mulheres, por oposição aos homens. (ANDRADE, 2001, p. 56)

Assim, nessa interpretação restou as mulheres agir as escondidas, uma vez que, elas não
possuem espaço político no interior da pólis215. Entretanto, Medeia não engana ao enfatizar a
sua condição de abandonada, ela somente se utiliza de um discurso que tem por interesse
emocionar o masculino e, portanto, convencer a respeito da sua permanência. Ela somente
expressa o lugar subordinado do feminino e ressalta o estatuto 216 da mãe preocupada com os
filhos, agora abandonados pela principal figura das suas vidas, o pai.

Ao aceitar essa linguagem tanto dos historiadores como do trágico estaríamos


corroborando uma visão já consolidada a respeito da personagem, algo que não concordamos
plenamente. Além disso, alguns autores afirmam que:

O discurso dissimulado tem por princípio a arte da persuasão, da força da palavra que
convence e permitindo a realização de sua vingança. Como mulher, ela não tinha a
capacidade do uso da força física precisando, portanto, buscar meios alternativos para
fazer valer a sua vontade e vencer o inimigo. (CANDIDO, 2007, p. 29)

213
Podemos citar a título de exemplificação Maria Regina Candido (2006), Lessa (2001), Andrade (2001), Dolores
Sousa (2011) e até mesmo os tradutores utilizados e recomendados na bibliografia.
214 Palavras que vão marca a moralidade de Medeia e realizadas a partir de uma interpretação androcêntrica e

negativa, acantonando a personagem como um ser que não se pode confiar.


215 Como nos afirma Mosse (1990) as mulheres estavam integradas na sociedade grega e se apresentavam ao

mesmo tempo como marginais, a parte do “clube de homens”.


216
Lembramos que anteriormente já demonstramos por meio da fala da autora Zaidman (1990) o estatuto da mulher
sempre é intermediado pelo masculino, num primeiro momento pelo pai sendo considerada assim filha e
posteriormente pelo marido, assim ocupando o lugar de esposa e mãe.
99
Nessa leitura, a historiadora novamente enfatiza que Medeia se utiliza de um discurso
dissimulado, algo negativo, para persuadir os outros personagens, uma vez que, não poderia
pela força física. Contudo, ela evidencia somente a capacidade que a personagem possui de
realizar filtros e poções, assim não analisando profundamente as atitudes da personagem ou o
discurso racional realizado ao longo da tragédia. Dessa forma, personagem carrega ainda em si
um julgamento moralizante217 a respeito de seus atos e falas e permanece considerada como um
ser que não se pode confiar a partir de uma leitura masculina.
Creon sabe que as falas de Medeia são direcionadas exclusivamente com doçura para
seus ouvidos218, pois, ela demonstra o seu estatuto de mãe abandonada e até mesmo recorre aos
deuses:
então me expulsas e não respeitas minhas preces?! (MED v. 326).

E assim o masculino é convencido pelo discurso enfático moldado ao longo do primeiro


episódio. O rei conhecia o passado de Medeia e possuía motivos suficientes para não querer sua
presença no interior da pólis porque ela era uma mulher que poderia arquitetar um plano por ter
seu leito ultrajado. Mesmo após identificar habilidades que a princesa estrangeira possui ao
gerir suas próprias ações, tal qual um homem, Creon permiti a sua permanência ao afirmar:

Minha ordem muito pouco foi tirânica,


acanhado muitas vezes me apaguei,
Também agora me vejo errar, mulher. (MED vv. 348-350) [grifo
nosso]

Posto isto, o rei acredita que não será possível um ato, e visualiza a sua atitude como
um erro tirânico, uma ordem demasiada, pois Medeia recorre a sua condição de pai para cativá-
lo. Medeia leva Creon a dizer que também comete erros, ela consegue ao contrário das mulheres
de Corinto, mostrando o erro do próprio rei.

217
Conceito utiliza pela historiadora Paulina Nólibos em seu artigo intitulado Clitemmnestra e Helena: as
espartanas, o patriarcado e o poder nas mãos da mulher. Nessa escrita a autora se refere a esposa de Agamêmnon
e toda a carga moralizante que ainda é emprega sob a personagem.
218
Butler apresenta uma interpretação a respeito do masculino ouvir o feminino, ela afirma “Caso ouça, ele
aparentemente perderá a sua masculinidade. Ouvir é figurado como um tipo de entrega, uma atividade feminina
que o transforma em uma mulher. Se ele ouve e aceita o que ouve, então perderá sua posição como um homem”
(BUTLER, 2017, p. 121). Nesse momento a autora está se referindo ao ato de Creon escutar a personagem
Antígona na obra de Sófocles.
100
Nesse sentido, ele concede a Medeia que fique mais um dia na cidade organizando a sua
partida juntamente com seus filhos. E é especificamente esse dia que a princesa necessita para
aproximar o Coro de mulheres por meio de seu discurso feminino que se fundamenta nas
relações de parentesco e na paidéia.
Em relação a Jasão, Medeia num primeiro momento confronta o personagem, contudo
ao perceber que chocando-se diretamente com o ele não irá conseguir permanecer na pólis,
muda de estratégia. Ela de novo ressalta a sua posição de mulher e sobretudo de alguém que
não tem capacidade intelectiva apresentando se assim como emocional e insuficiente 219, posto
que para realizar seu objetivo Medeia terá que se submeter:

Jasão, pelo que disse, peço-te:


me perdoe. Minha sanha convém aturar
depois de nós dois tanto amor vivermos.
Eu, por mim ao bom senso cheguei
e me xinguei: “Tonta! Fiquei louca?”
[....]
Aí, pensei e percebi a insensatez que tenho
tão descuidada por nada tão desalmada.
Mas agora aprovo tudo: me pareces ter razão (MED vv. 869-884)
[grifo nosso]

É justamente se utilizando de argumentos que acantonam o feminino e que colocam as


mulheres na condição de seres que não possuem racionalidade que Medeia fundamenta seu
diálogo com Jasão. Ela concentra sua fala nas limitações e indignidades da vida das mulheres
e as maneiras pelas quais elas são realizadas, por isso consegue a atenção do masculino e
principalmente obtém o convencimento, uma vez que, ela reproduz uma visão androcêntrica da
sociedade em que está vivendo. Medeia se torna através do discurso uma mulher domesticada.
Afirmando ser uma pessoa insensata ela exalta a sabedoria de Jasão ao perceber que
buscar uma nova aliança no interior da pólis e que isso seria a melhor alternativa para ambos.
Assegurando ser desalmada ela reconhece que ele, Jasão só quer o bem e ao afirmar que é tonta
justifica que é Jasão que deve escolher o futuro para a família. Portanto ela demonstra não ter

219
Sissa afirma que na interpretação dos gregos “a mulher é passiva e, na melhor das hipóteses, inferior, em
relação, escusado será dizer, ao padrão anatómico, fisiológico e psicológico: o homem” (SISSA, 1990, p. 85)
101
domínio sobre as suas ações se tornando assim um ser insuficiente. Dessa forma, Medeia
novamente tece uma rede de argumentos que visa o convencimento deles através de palavras
que eles mesmos se utilizam para descrever as mulheres. Ela não fala gratuitamente, ela usa
palavras que eles desejam ouvir.
E assim Jasão afirma:

Alegro, mulher, com isso, nem condeno o de antes.


É normal na raça feminino rancor
contra o marido – afinal outras bodas escondi. (MED. 908-910) [grifo
nosso]

Nesse prisma, Jasão realmente acredita na possibilidade de Medeia estar arrependida e


aceita a permanência das crianças na cidade e principalmente que seus filhos levem presentes
para a noiva. Jasão coloca as mulheres como pertencentes a uma raça especifica por meio do
seu discurso, uma vez que, “E se os deuses criaram belo o mal, reverso de um bem. Pudesse os
homens procriar sem as mulheres, essa dolosa praga, que mesmo sendo a mulher-abelha,
esconde em sua origem a raça de Pandora” (NDRADE, 2003, p. 119). Assim, essas mulheres
são vistas como seres em coletivo e que principalmente não apresenta características distintas.
Além disso, ressaltamos que a atitude de expulsão da personagem do interior da cidade
foi realizada por Creon, Jasão em nenhum momento afirmou ser necessária à sua retirada
daquele local. O herói argonauta somente critica a fala exagerada da personagem e justifica que
a sua expulsão é em consequência disso.

Pragas ímpias contra os tiranos praguejaste! (MED v. 607) [grifo


nosso]

Assim, como já demonstrado no segundo capítulo, Jasão não deseja afastar Medeia da
convivência da pólis, ele somente espera um comportamento comedido/submisso da
personagem. Por isso, ele é persuadido por Medeia quando ela se coloca na posição que ele
deseja, silenciosa e obediente. Ela consegue trafegar e construir um discurso que o masculino
deseja escutar, palavras que os homens desejam das mulheres. Ela retira de si toda a certeza que
possuía no primeiro embate com Jasão e coloca sobre ele toda a razão e é justamente dessa
forma que ele visualiza a situação num todo.

102
Assim, Medeia prossegue:

Enfim, somos o que somos, não direi ruins,


mas mulheres. Então não deves imitar meu gênio,
nem pagar criancice com criancice. (MED vv. 889-891) [grifo nosso]

Esses homens que limitam e coordenam o comportamento do feminino, segundo


Zaidman (1990), compreendem essa situação e evidentemente desejam o silencio220 e
submissão de suas esposas, e é justamente através dessa perspectiva que Medeia sustenta suas
falas. Nesse sentido, segundo Swift (2017) o discurso da personagem não está sozinho, mas
cumpre uma retórica especifica pois tem uma finalidade dentro do jogo cênico. Assim, podemos
observar no relato de Medeia a persuasão e ela deliberadamente elucida ou suprime em
determinados momentos aspectos de um sistema cívico que acantona o feminino, dando dessa
forma visibilidade aos privilégios dos homens.
Para satisfizer Jasão a respeito do seu erro Medeia se utiliza do estereótipo do
desequilíbrio e da imaturidade feminina e para tanto até chora na presença de seu marido para
lhe garantir um arrependimento verdadeiro. Nesse momento ela deseja convence-lo de que as
crianças devem ficar na cidade e levar os presentes para a noiva de seu pai. A princesa se utiliza
de um tecido para enganar Glauce, justamente algo produzido especificamente só por mulheres.
Medeia afirma:

É, se ela é mulher como todas as outras ....


tomarei então contigo, também eu, essa peleja:
mandarei para ela presentes os que muito
mais belo existem agora pros homens!
Já vejo: fino vestido e tiara de ouro! (MED vv. 945-949)[grifo
nosso]

A arte da tecelagem é um exercício unicamente feminino, e é justamente essa artimanha


que ela emprega para ludibriar a princesa da pólis. Nessa perspectiva, Medeia tanto se utiliza
desse discurso próprio do feminino na tentativa de persuasão dos homens ressaltando sua

220
Utilizando as palavras “elo silêncioso” (LEDUC, 1990, p. 333) para caracterizar o feminino.
103
condição de mulher e estrangeira, como também para se aproximar do Coro 221 representado nas
mulheres de Corinto. Assim, ressaltamos que essas palavras possuem duplo interesse na
construção de Medeia, uma vez que, ela deseja manter Creon e Jasão sob ilusão durante sua
ação e principalmente busca a reciprocidade do Coro que permanece em silêncio mesmo após
conhecimento dos seus atos. É através do discurso da utilidade/funcionalidade do feminino que
ela se aproxima dessas mulheres do oikos, é demonstrando por meio de sua fala as relações de
dominação masculina existentes dentro desse sistema cívico que Medeia convence o Coro a
acompanha-la.
Medeia chama o Coro para participar mesmo que seja de forma silenciosa:

Não contes nada! Mulher é cheia de medo,


Fraca para ver batalha e ferro,
mas quando acontecer ser, na cama, injuriada,
aí não existe outra mente mais sanguinária (MED vv. 263-266) [grifo
nosso]

Como dito anteriormente, é através de um discurso que se fundamenta nas relações de


parentesco, assunto já debatido, que Medeia cria um vínculo com esse Coro de mulheres e
consegue a aproximação delas. Mesmo que esse elo seja realizado a partir do silêncio que esse
feminino mantém a respeito dos planos da princesa, ele se apresenta como reciproco, pois, elas
sabem que Medeia busca justiça nos seus atos e lhe acompanham. O Coro afirma:

Isso farei, pois é justo dar troco ao marido, (MED v. 267) [grifo
nosso]

Dessa forma, observamos que o Coro de mulheres de Corinto também é convencido


pelo discurso da personagem principal, uma vez que, elas sabem que a intenção de Medeia é
matar a princesa da cidade e afirmam ser justa essa escolha. Elas acompanham a fala e aceitam
manter-se em silêncio mesmo que algo seja feito a uma outra mulher que pertence a sua própria
cidade.
O lugar ocupado pelas mulheres na sociedade grega é nitidamente representado pelo
Coro de coríntias, uma vez que, elas vivem cotidianamente no interior do oikos e compartilham

221
Versos já trabalhados no capítulo dois, pois durante esse discurso Medeia se utiliza justamente das relações de
parentesco para aproximar essas mulheres.
104
com Medeia da experiência reservada ao particular. E principalmente, demonstram um
posicionamento “passivo” pois elas acompanham as resoluções da princesa Medeia e a apoiam
até certo momento. Contudo, no momento da ação e do processo deliberativo Medeia realiza-o
sozinha, pois “a glória das mulheres é não terem glória” (LORAUX, 1985, p. 23) não realizando
ação/escolha. Apesar de existir um ponto de solidariedade em que o gênero supera a lealdade
local, mesmo em face de uma trama de assassinato, o Coro não deixa de estar junto em sua
identificação com Medeia. Suas respostas evoluem com a ação e servem como um som sensível
contra o qual o público da peça pode medir suas próprias reações.
Em suma, o discurso realizado pela princesa se apresenta como uma potência na peithó,
pois ela destina as suas palavras para induzir o masculino aos seus próprios interesses.
Observamos que a princesa se utilizou de sua sabedoria para confundir 222 os homens da
tragédia, posto que “o discurso ambivalente é uma mulher” (DETIENNE, 2013, p. 72), além
disso segundo Swift (2017) sua capacidade de enganar teria sido considerada tipicamente
feminina. Assim, novamente observamos que as interpretações contemporâneas ainda
permanecem associando uma atitude moralmente ruim, enganar, justamente ao feminino.
Nesse sentido, é como se Medeia fosse tramando em sua teia argumentativa223 e cênica
todos os personagens masculinos, e que somente o Coro de mulheres, sabe a sua decisão a
respeito da morte224 de Glauce. Ela chama a participação dessas mulheres no seu processo de
ação, pedindo que permaneçam em silêncio a respeito dos seus planos, pois somente elas sabem
quais são as intenções até aquele momento. Vemos Medeia realizar três falas diferentes, com
personagens distintos, Creon, Jasão e o Coro de mulheres e justamente por isso acreditamos
que ela apresenta um processo deliberativo muito significativo, uma vez que, consegue tecer
argumentos diferentes.
Medeia vai aos poucos penetrando no terreno da ação, isto é, do mundo propriamente
masculino. “És mulher, impulsiva, tal qual macho” (v. 319), ao dizer essa frase Creon reconhece

222
Nesse sentido, as mulheres sempre são vistas como pessoas perigosas de se ter por perto, como nos demonstra
Marta Mega Andrade: “De forma geral, os atributos da alteridade do feminino são qualidades ligadas à
0+proveniência ardilosa das mulheres, que as tornam suscetíveis ao estranhamento. Em primeiro lugar o ardil.
Fundamento do ser feminino, a métis marca a presença da mulher entre os homens que, pela métis, se tornam
imprevidentes (incapazes de antecipar e projetar-se contra um artifício) ” (ANDRADE, 2001, p. 52).
223
A respeito desse processo podemos afirmar que “Peithó, que é sem dúvida a potência do discurso no modo
como este se exerce sobre outrem, sua magia, sua sedução, o modo como o outro o recebe” (DETIENNE, 2013,
p. 67)
224
Lembramos que até o momento o Coro tem conhecimento somente sobre a morte de Glauce, a decisão a respeito
das crianças é posterior. Nesse sentido “A advertência está feita - a queda de Medéia é abissal; nem a inocência da
infância escapará à dor.” (GALDINO, 2002, p. 443)
105
uma importante diferença entre Medeia e as outras mulheres, já que, afirma sua capacidade de
decisão. Medeia por um esforço discursivo consegue o tão almejado mais um dia.

3.2 A voz de Medeia

Nesse tópico final, analisaremos os momentos em que Medeia se utiliza de uma métis225
particular, expressa em sua fala, demonstrando de tal modo ter controle sobre suas próprias
ações, perspectivando seu futuro e principalmente o direcionamento dos seus diálogos. Ao se
utilizar de discursos que rompem com o convencional feminino a personagem evidencia o
acantonamento social das mulheres e para tanto realiza uma ruptura no sistema cívico da pólis
de Corinto.
Como apresentado na introdução da dissertação encontramos poucas interpretações a
respeito da forma de pensar da personagem, utilizando para tanto o estatuto da ação puramente
humana como um processo racional, como nos demonstra Filho: “perseguir a hipótese de que
a Medeia euripidiana oferece um esboço da noção de liberdade fundada na autonomia do agente
é, pois, nossa meta. Para tanto, é preciso rastrear na peça aquilo que pode ser posto como o
estatuto da ação” (FILHO, 2011, p. 65). Logo, para o autor a personagem evidencia um domínio
sobre a paixão, embora num primeiro momento lastime a sua condição de abandonada, ela
apresenta também uma capacidade deliberativa durante a encenação, portanto sua ação é
resultado do cálculo intencional. Por isso, o autor alega “E se a possibilidade da violência, ou
das maldades, inferida da figura de Medeia não se remete apenas à força da paixão, como
também a sua própria natureza, isto é, ela tem a tendência natural para agir” (FILHO, 2011, p.
66). Dessa forma, o processo racional está amplamente presente na encenação, mesmo que
alguns autores interpretem como descontrole feminino as ações de Medeia.
Nosso interesse não é evidenciar os saberes considerados exóticos ou míticos que são
personificados em seus filtros, ervas ou encantos e que são largamente explorados por outros
autores226. Acreditamos que as explicações que desejam evidenciar somente os saberes exóticos

225
A métis é uma potência de astúcia e engano. Ela age por disfarce. Para ludibriar sua vítima, ela toma emprestada
uma forma mascara, em lugar de revelar seu ser verdadeiro. Nela a aparência e a realidade desdobradas opõem-se
como duas formas contrárias, produzindo um efeito de ilusão, apáte, que induz o adversário ao erro e deixa-o, em
face de sua derrota, tão ofuscado quanto diante dos sortilégios de um mágico. (VERNANT, 2016, p. 29)

226
Nacionalmente, o principal destaque nas pesquisas a respeito da temática é a professora historiadora Maria
Regina Cândido com seu livro intitulado Medéia, Mito e Magia: a imagem através do tempo. Nesse sentido, a
historiadora se tornou referência quando o assunto é a personagem Medeia e seus poderes mágicos.
106
que a personagem apresentada, ressaltam a posição de mulher descontrolada ou alguém que
domina algo pertencente a natureza, não civilizado e, portanto, contrário a construção
androcêntrica. Sendo assim, essas leituras acantonam a posição da mulher novamente pois as
unem com algo relativo ao desconhecido. Além do mais, identificar em Medeia um saber
exótico revela por um lado que se reconhece na personagem um saber, porém de um outro tipo,
saberes que agora desqualificam sua conduta, uma vez que, não são mais úteis a pólis.
Como já debatido na seção anterior, o primeiro episódio expressa a entrada de Creon no
interior do palco já seguro da decisão a respeito da expulsão de Medeia. Contudo, por meio do
discurso maternal/feminino, já analisado, Medeia consegue convencê-lo a respeito da
necessidade de sua permanência. Dessa forma num primeiro momento ela não apresenta uma
ruptura que possa ser analisada nesse instante.
Medeia nesse sentido discursa a respeito da sua participação 227 nas conquistas do herói,
atribuindo autovalor nas próprias atitudes que somente honram o masculino. Ela enfrenta Jasão
por meio da produção de uma fala que se fundamenta nas suas ações durante a conquista do
velocino de ouro e principalmente no compromisso firmado entre ambos.

te salvei, como sabem todos os gregos que


contigo embarcaram no navio Argo, (MED vv. 476-477) [grifo nosso]

Sua fala anuncia o valor de tais atitudes e que os gregos reconhecem a sua importância
e participação em tal empreitada. Nesse sentido, ela não emprega um discurso feminino da
subordinação e das exclusões, pelo contrário se coloca em pé de igualdade do ponto de vista de
ação com Jasão. Medeia produz assim uma ruptura.
Ao analisar a participação de Medeia nas conquistas do herói argonauta, fica nítido a
necessidade que o personagem apresenta do auxílio da princesa, dessa forma reconhecendo que
ela possui um saber que ele não. Medeia evidência todas as suas atuações no processo de
conquista do velocino e que os gregos presentes na nau sabem que foram os seus conhecimentos
que salvaram Jasão.
eu matei, erguendo para ti a luz salvadora. (MED vv.482) [grifo
nosso]

227
Versos 465 a 519
107
Assim, Medeia lhe afirmar ser a luz salvadora que o auxiliou no momento em que ele
não sabia como realizar tais tarefas. E se não fosse a sabedoria da personagem feminina e
principalmente a sua intervenção, o herói não teria conquistado a relíquia. Contudo, Medeia
acredita ter errado ao abandonar sua casa por Jasão, posto que afirma ter sido “Mais dedicada
do que esperta ....” (MED v. 485) [grifo nosso]. Esse sentido prossegue afirmando suas ações
em outros momentos

E matei Pélias, de mais doloroso morrer,


pelas próprias filhas e retomei o palácio.
E isso por nós! (MED vv. 486-488)[grifo nosso]

A personagem relembra até mesmo a morte do tio de Jasão e que foi justamente os seus
conhecimentos e a arte na persuasão que levou as próprias filhas a matar o pai. Medeia afirma
ter realizado tal atitude em benefício do casal, e não pensando somente em si, algo que
atualmente Jasão realiza. Ela enfatiza que suas ações foram para benefício de ambos e que
estava pensando coletivamente.
Além disso, Medeia lhe cobra o vínculo 228 firmado anteriormente, questionando a
palavra de Jasão, e afirma não saber se entre os homens agora existem novas leis.

Mas tu sabes bem: não cumpristes as juras que me fizeste. (MED


v. 494) [grifo nosso]

Nesse sentido, a personagem feminina cobra 229 do masculino uma atitude a respeito das
juras realizadas anteriormente, assim rompendo com a sua posição de submissa e confrontando
Jasão a respeito de suas ações. Ela afirma que o discurso de Jasão é desleal e dessa forma busca
a justiça em suas falas. Para tanto o chama de covarde (v. 466) e canalha (v. 471), ela se opõe
a postura moral de Jasão, buscando com isso recuperar o acordo que ele atualmente não honra.
Ela enfrenta Jasão no seu próprio terreno, isto é, a produção de um discurso que se realiza no
espaço comum. Assim, “ela exerce o movimento de subjugação e de resistência ao poder

228
Nesse sentido Konstan afirma que “as relações que são feitas podem ser desfeitas; embora os gregos atribuíssem
um grande valor à lealdade dos amigos, eles reconheceram que a relação é mutável” (KONSTAN, 2005, p. 80). O
vínculo que Medeia cobra é relacionado a philia, algo existente entre os gregos masculinos, não entre ambos os
sexos.
229
A quebra do compromisso de fidelidade que Jasão tinha com Medeia é segundo Ferreira (1997) o principal
motivador para a buscar de uma vingança.
108
exercido pelo masculino de forma explícita” (BALDIN; BRITO, 2014, p.118) demonstrando
nitidamente as relações de gênero presentes naquele espaço e como ela se utiliza dessa
diferenciação entre os sexos para construir seu discurso
Medeia rompem com o ideário feminino a partir do momento que questiona Jasão a
respeito da sua palavra, quando ela se coloca numa posição que impõem uma cobrança, um
vínculo. Ela afirma que foram realizadas juras e que ele sabe disso, e justamente como homem
deveria manter a sua palavra, a sua honra. Destarte, Medeia afirma que: “fazer mal a um amigo
e ainda lhe olhar na cara” (MED v. 471)[grifo nosso].
Contudo, devido a utilidade Jasão repudia230 Medeia e busca uma nova aliança
matrimonial que lhe favoreça, não se importando com o acordo anteriormente firmado, assim
“philia e philos são conceitos recorrentes na boca da protagonista, no contexto do
reconhecimento do pacto outrora selado, quando Medeia ofereceu o seu auxílio para que Jasão
consiga alcançar o Velo de Ouro” (FIALHO, 2014, p. 23). Porém, como nos afirma Vernant
isso era presente somente no mundo entre os homens, assim Medeia jamais teria o
reconhecimento de Jasão nesse sentido.
Essa semelhança cria a unidade da polis, porque, para os gregos, só os semelhantes
podem encontra-se mutuamente unidos pela Philia, associados numa mesma
comunidade. O vínculo do homem com o homem vai tomar assim, no esquema da
cidade, a forma de uma relação recíproca reversível, substituindo as relações
hierárquicas de submissão e de domínio” (VERNANT, 1984, p. 42)

Ela apresenta um processo de ação, algo inconcebível na sociedade grega pois “qualquer
iniciativa tomada activamente por uma mulher só pode ser do domínio da sedução, da feitiçaria,
do despudor. A esposa deve limitar-se a uma passividade que consente, a uma adequação
sistemática ao modo de vida do marido” (SISSA, 1990, p. 118). Medeia tem um saber próprio,
uma capacidade de interpretar situações e agir, ela se coloca em relação aos outros personagens
no campo da ação, local eminentemente masculino, porque ela compreende a si e o lugar que
ocupa como diferente. Dessa forma, “Medéia é sobretudo uma personagem de inversões. A
mesma inversão que poderia provocar o riso na comédia, na tragédia de Medéia pode levar – e
leva – ao páthos. Isso porque Medéia, já foi dito, era regida por um estatuto do diferente, e essa
alteridade terrificava” (CAIRUS, 2005, p. 09), principalmente a parte masculina da sociedade.
O personagem Jasão, quando adentra no palco tenta com seu falatório desqualificar a
participação de Medeia nos seus atos, afirma que é necessário “que me esquive, do teu falatório,

230
Assim podemos afirmar que “ao ser repudiada, confronta-se com sua realidade e percebe que seu mundo está
vazio, ela traiu seus valores e não se considera grega” (GALDINO, 2002, p. 446)
109
mulher, de tua língua nervosa” (vv. 524-525). É evidente a tentativa de proteção aos seus feitos
que ele realiza, dessa forma ele constrói seus argumentos no sentido de retirar a participação de
Medeia nas suas conquistas e atribuir a si mesmo glória.

Mais recebeste do que deste, isto eu vou provar:


em primeiro lugar, em vez de chão bárbaro
habitas a terra grega, conheces a justiça,
fazes uso das leis, não do favor da força. (MED vv. 535-538) [grifo
nosso]

Essa passagem da tragédia é característica do enfrentamento, por meio do diálogo, de


dois posicionamentos antagônicos, Medeia a mulher que busca reconhecimento e
principalmente o acordo anteriormente firmado, e Jasão, o herói argonauta que deseja
desvalidar a participação do feminino nas suas conquistas particulares. É justamente nesse
instante que ocorre o “embate verbal” (v.546) expressão utilizada por Jasão que tenta esquivar-
se ao máximo das acusações de Medeia, o qual afirma ter atuação direta em suas glórias perante
aos gregos.
O masculino na peça em diversos momentos tenta, de alguma maneira, corromper
qualquer processo deliberativo ou ação que Medeia poderá ter no decorrer da tragédia,
entretanto acaba sendo ludibriado pelo seu discurso dela e permitem-lhe uma ação. Além disso,
ela é chamada de bárbara231 pelo masculino, justamente para retirá-la da convivência da pólis,
deixando-a isolada e subordinada.
Esse tipo de expressão, deseja desqualificar a produção do lógos232 da personagem, já
que para o masculino a mulher é um ser que não possui saber no sentido intelectivo e

231
Neste sentido, vale ressaltar que os escritos de Heródoto (2006) solidificam a identidade do povo grego, pois
ele demonstra, através de relatos, a diferenciação que existia entre os gregos e os outros povos considerados
bárbaros ou selvagens. Segundo Eyler (2012) os outros significavam o negativo, o incontrolável, o desconhecido,
daqueles que não falavam grego. E essa diferença existente entre ambos, deveria ser mantida, visto que era isso
que separava os gregos dos bárbaros. Além disso, os gregos tinham inventado a política que se apresenta como o
contrário da violência, porque era através do diálogo que os homens podiam discutir e resolver os diferentes
interesses da cidade. Assim como nos demonstra, a pólis representava a vida política ancorada nos princípios da
justiça (Diké) e das leis (Nomos) expressos na Polytheia. A sociedade grega demarcou muito a fronteira que existia
entre o cidadão e o estrangeiro, como nos afirma Nicole Loraux (1993), embora a pólis não poderia existir sem a
presença do outro.
232
Ressaltamos que as pesquisas de Louis Gernet foram fundamentais para melhor compreensão da racionalidade
grega, que anteriormente era vista sob o signo do “milagre grego” que mantinha uma ideia de transformação
abrupta e não mantinha relações com as condições do contexto. Com as pesquisas de Gernet “o humanismo grego
deixa de ser considerado emanação da razão absoluta, existente fora dos homens, e passa a ser tomado como um
fato social, uma criação humana, determina pelas contingências de seu tempo” (JULIEN, 2014, p. 40).
110
deliberativo, pois pensar significa decidir o próprio futuro, planejar a vida, fazer a “coisa”
pública233, o que era completamente negado as mulheres nesse contexto. E principalmente
porque “a traição de Jasão por seus juramentos que levou Medeia à violência, ao invés de algum
aspecto inerente bárbaro da personagem” (SWIFT, 2017, p. 25). Medeia planeja uma ação que
atinge Jasão, Clauce e Creon, demonstrando que ela projeta o seu próprio futuro, e
principalmente os seus atos e as consequências.
Um personagem que ratifica esse temor que os homens possuem da princesa é o rei
Creon234, pois já no primeiro episódio ele expressa o receio que possuí a respeito de Medeia,
por isso deseja retirá-la da cidade, afirmando que:

Medo de ti – não preciso embaralhar palavras -


de que não causes à minha filha incurável mal.
Muita coisa junta motiva isto:
tua sábia natura, uma perícia pra muitos males ... (MED vv. 282-
285)[grifo nosso]

Nesse instante o diálogo se realiza em frente ao oikos e Creon está determinado a


expulsá-la o mais rápido possível do interior da cidade, porque ele admite que a personagem
carrega dentro de si muitas vezes maneiras de agir que transbordam o convencional destinado
as mulheres. Nesse sentido, “nas palavras do rei de Corinto, os motivos que levam a cidade a
banir Medeia são de ordem do temor da mulher hábil (sophé pèphukas)” (ANDRADE, 2001,
p. 58). Ele evidencia na sua fala um reconhecimento da sabedoria da personagem, marcada pela
sua perícia no mal, deixando claro que conhece os meios pelos quais ela consegue suas vitórias,
ou seja, matando pessoas. Além disso, como demonstrado no capítulo anterior, Creon afirma
que Medeia é impulsiva: “és mulher, impulsiva, tal qual macho” (MED v. 319), assim ele
compreende que a subordinação e o silencio não condizem com a conduta da personagem.

233
Nesse sentido citamos “Com o advento da cidade-Estado, ele ocupa o primeiro plano. É a ferramenta política
por excelência, o instrumento privilegiado das relações sociais. É por meio do discurso que os homens agem em
assembleias, comandam, exercem domínio sobre outrem” (DETIENNE, 2013, p. 110). Assim, são os homens que
decidem a vida pública e não as mulheres.
234
Na interpretação da historiadora Marta Mega de Andrade, em seu livro A “cidade das mulheres”: cidadania e
alteridade feminina na Atenas Clássica, as atitudes referentes ao banimento são vistas nessa perspectiva: “Nas
palavras do rei de Corinto, os motivos que levam a cidade a banir Medeia são da ordem do temor contra uma
mulher hábil (sophé), magoada pelo leito viril. Para que se compreenda o alcance deste temor, é preciso ter em
mente o significado de que se reveste o leito. Em relação à Medeia, o leito representa legitimidade, engajamento
através do juramento. Pode-se afirmar que representa o centro de um espaço, cujo domínio é da mulher, conferindo
a ela um status e uma posição em relação a outras mulheres naquela sociedade” (ANDRADE, 2001, p. 56, 57).
111
Medeia transita entre esses dois mundos, feminino/masculino, particular/comum. Sua
forma de ação e principalmente a preocupação com sua honra perante os cidadãos lhe deixam
características masculinas evidentes 235. Além disso, segundo Faria (2008) o texto de Medeia é
representativo dos conflitos existentes entre o masculino e o feminino no interior da pólis e
aborda os principais momentos sociais e culturais da vida da mulher: o parto, o dote, o
casamento, a fidelidade, o divórcio e até mesmo a personalidade desses seres.
Com o uso manipulado da linguagem e a personalidade ativa e ousada de Medeia, sua
inteligência e argumentação sobre seus poderes e ações além do desejo de agir por conta própria
para obter respostas teriam sido, conforme Swift (2017) características masculinas; além disso
seu desejo de evitar zombaria e de proteger agressivamente a sua honra é uma reminiscência de
homens heroicos. Essa mistura transgressora de elementos do masculino e do feminino em
Medeia a faz uma personagem formidável e ao mesmo tempo aterrorizante, capaz de superar
aqueles ao seu redor na busca de seus objetivos “a essa métis envolvente, em ação nas
palavras 236 e nos atos das mulheres que tece as redes mortíferas ou apertam os nós de inúmeros
laços, a tragédia contrapõe tudo que corta e dilacera, em suma, que derrama sengue”
(LORAUX, 1984, p. 32). Odisseu, o herói considerado polimétis, é mentiroso por excelência e
nem por isso seu status de masculino é colocado em cheque quando realiza tais ações. Pelo
contrário, ele é visto como alguém que possuí uma sabedoria muito elevada e principalmente é
protegido pela deusa Atena.
Reconhecemos na personagem a produção de um lógos específico a partir de seu lugar
de fala, uma mulher estrangeira cerceada pela pólis masculina. Por isso, Jasão desconsidera
Medeia e, principalmente, o seu discurso que é caracterizado por ele como algo negativo,
verborrágico. Diante disso, desejamos observar os discursos237 que compõe a encenação trágica
e o processo que Medeia realiza quando ousa saber e, particularmente, quando atreve-se a falar.
A personagem aqui analisada quando está diante do Coro de mulheres de Corinto afirma
“é preciso ousar” (v. 1052) dessa forma demarcando a ruptura que ela realizará ao construir um
discurso que combate o sistema androcêntrico da polís grega. Medeia em frente ao oikos chama

235
A autora Swift (2017) afirma que a busca por manter a sua honra e principalmente o desejo de não se tornar
motivo de zombaria entre as pessoas que leva a personagem Medeia a uma ação.
236
Se utilizando do discurso, algo impensável paras mulheres que Medeia constrói sua ação, contudo “era a palavra
que formava, no quadro da cidade, o instrumento da vida política” (VERNANT 1984, p. 36) assim algo pertencente
somente aos homens e Medeia justamente transborda esse limite.
237
“O discurso é realmente concebido como uma realidade natural, uma parte da phýsis” (DETIENNE, 2013, p.
59)
112
essas mulheres a participarem na construção de uma crítica ao sistema cívico que subjuga238 de
igual maneira todas elas. Como demonstrado no capítulo anterior através de um quadro
exemplificativo Medeia cria um vínculo com as moradoras de Corinto, ela as chama de amigas,
assim as convidando para compartilharem a crítica.

Mulheres somos as mais lamentáveis criaturas. (MED v. 232) [grifo


nosso]

A personagem convida por meio da palavra amigas a participação do Coro de mulheres


de Corinto, pois ela admite não ser pertencente 239 aquele local. Contudo, a partir do vínculo
existente entre essas mulheres elas a convida a cooperarem com seus objetivos, mesmo que seja
através do silêncio. Medeia nesse sentido se utiliza do discurso para demonstrar um ponto de
vista particular a respeito do que ela pensa, assim contrapondo os dois lados: o masculino e o
feminino considerado convencional. A personagem busca reconhecimento a respeito de suas
ações e principalmente cobra de Jasão o acordo realizado por ambos anteriormente. É
justamente a questão da justiça e da utilidade que Medeia emprega nas suas falas.
Em suma, como abordado nesse capítulo final podemos observar a tentativa de produção
de um discurso próprio que a personagem Medeia realiza durante a peça teatral. Nesse sentido,
primeiramente fundamentando seus diálogos na condição de mãe ela consegue convencer
Creon a lhe dar mais um dia de permanência e principalmente aproxima o Coro de mulheres. e
num segundo momento ao enfrentar seu marido, Medeia ousa afirmar sua participação nas
glorias do herói argonautas e evidencia a falta de compromisso com a própria palavra que Jasão
lhe deu. Assim ela lhe cobra um vínculo/acordo anteriormente firmado que agora é desfeito
sem a menor preocupação por parte do masculino.

238 Nesse sentido “Mas falarão elas? Esses gritos, choros, cantos, tagarelices, línguas estrangeiras, exprimem muito
claramente a impossibilidade de as mulheres acenderem à única palavra reconhecida, a palavra política”
(PANTEL, 1990, p. 605). Por isso Medeia não consegue penetrar de maneira eficiente no espaço comum mesmo
que se utilize de um discurso para tanto.
239Esse sentimento de pertença aparece nas falas da personagem quando afirma ser estrangeira e ter abandonado
o seu lar paterno, como anteriormente demonstrado nos diálogos.
113
CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Medeia: com quais exclusões o sujeito feminino é construído?

Fizemos uma trajetória no texto que buscou mostrar como as relações de gênero se
edificam em meio a um tipo de relações de parentesco definidas por práticas heterossexuais.
São no interior dessas relações que mulheres e homens tornam-se seres culturais, sociais
apreende, a dizer de si, a expressar sua compreensão de mundo. Estamos sempre mergulhados
em experiências compartilhadas que são experiências culturais.

Assim compreendida a obra teatral Medeia adquire uma dimensão a partir da qual a
sociedade ateniense se torna presente na própria obra. Presente na medida em que a tragédia é,
antes de tudo teatro e, portanto, dialogando com os problemas reais da cidade. O teatro articula-
se a cidade, como a cidade ao teatro através de uma mediação crítica que viabiliza a cidade
pensar-se. Este trabalho que o teatro faz em meio a uma cidade na qual a palavra é instrumento
de poder, já que, a isegoria é franqueada a todos os cidadãos, permite que os cidadãos enquanto
espectadores revejam suas ações, dialoguem com a crise, visando a construção de uma saída.
Não há tragédia sem a isegoria ateniense, pois é ela que dá sentido à tessitura do texto. O texto
trágico se realiza na encenação que projeta a cidade para uma outra dimensão. Esta dimensão
que torna possível a encenação, ao jogo do faz de conta que instaura a possibilidade de levar a
ação humana para um território no qual a cidade pode ser vista, observada e, por fim criticada.

Medeia, Eurípedes, 431 Atenas: Abre a cena:

Uma mulher em desespero grita no interior do palácio. Como diz a ama:

E jaz, em jejum, corpo entre as dores,


Derretida em lágrimas todo o tempo,
Desde que se viu enganada pelo homem... (MED vv. 24-26)

A ama descreve a dor física de Medeia. Medeia sofre nos ossos e na carne a dor do
abandono por parte de Jasão. Assim ela é chamada para frente do oikos juntamente como o
Coro de mulheres de Corinto. Medeia lamenta sua condição atualmente abandonada por aquele
que tudo lhe tirou. O homem que recebeu o título de herói devido uma expedição na qual ela
que conquistou o velocino de ouro e salvo sua vida.

114
Contudo, Medeia inicia uma transição no processo trágico e abandona suas lamentações
e parte para o campo da ação. Medeia traça para si cenário, um caminho de luta, após o
desespero da descoberta da ação de Jasão, ela vais aos poucos construindo para si uma solução
que rompe com o pensável, ora articulando–se com o Coro e tornando-se para aquelas
comportadas mulheres coríntias uma porta-voz, já que com ela dialoga, expõe as dores de ser
mulher neste tempo, escuta e propõe. Caminham juntas

Quando interpretamos a tragédia de Eurípides podemos observar que de alguma forma


ela permite quebrar uma visão monocromática que reduz tudo a um antagonismo visceral, de
mulheres submissas e de homens senhores absolutos, estabelecendo papéis sociais distintos
para ambos os sexos. E é justamente esse transbordamento que a personagem realiza que nos
permite demonstrar através da escrita as discussões existentes no interior do texto trágico a
partir de um problema contemporâneo, a categoria de gênero.

A personagem criada por Eurípides e representada no teatro em diversos momentos


autoafirma os seus saberes perante os cidadãos (homens e mulheres) de Corinto. Neste sentido,
Medeia nos faz percorrer com ela o caminho que seu próprio pensamento. A peça desafia seu
público a repensar os fundamentos de seu raciocínio sobre a ética do caráter - tanto para homens
quanto para mulheres. Por um lado, Medeia mostra seu soberbo domínio retórico dos provérbios
misóginos que descrevem as mulheres como criaturas irracionais da paixão; por outro lado, ela
não refuta esses provérbios com suas próprias ações. Tendo usado sua habilidade retórica para
reconquistar a confiança de seu marido, ela articula estratégias, formas de ação; ora se volta aos
homens da peça com uma perfeita mulher, serena, levemente submissa, uma mulher para
homem nenhum colocar defeito (MED vv. 870-905). Ora ela se volta as mulheres de Corinto,
pobres mulheres submissas. O apoio do Coro é crucial para a estratégia de Medeia. Sendo
estrangeira, ela busca um terreno comum com essas mulheres coríntias, aludindo ao seu
sofrimento compartilhado nas mãos dos homens. O Coro expressa sua simpatia por Medeia em
seu primeiro estásimo, onde cantam os rios que correm para trás. Aqui eles se aventuram a
esperar que as mulheres não sejam mais alvo da "fama que parece má" (MED v. 420). Esse
medo e o desejo de punir o marido a impulsionam para uma ação que faz o Coro estremecer;
Jasão a denúncia como "um monstro, não uma mulher" (1342). Ela é simplesmente o monstro
que Jasão a faz parecer?
A identidade de Medeia como mulher e seu status de vítima e portadora de uma palavra
que revela a condição do feminino a tornam profundamente compreensiva. Medeia as tocas
com sua compreensão, com sua vocação de vocalizar para elas e por elas as agruras de sua
115
condição feminina. Medeia deu a elas outra voz. Uma voz que as faz perceber o mundo
masculino de outra forma. Essas mulheres voltam ao silêncio, após sua experiência com
Medeia, mas elas sabem mais de si e dos homens. Percebem com clareza a diferença entre viver
como um ser funcionalizado pelo masculino para um ser que se autoproduz e que redimensiona-
se no espaço a partir de reconstrução de si que se faz pela ação.
E com Jasão Medeia nos leva ao interior de uma problemática fundamental para a cidade
e para as próprias mulheres. Devemos aceitar tudo, toda a ação que se coloca como justificada
por ela mesma.
Em seu primeiro intercâmbio verbal prolongado com Medeia, Jasão proclama que
“vocês mulheres entraram em tal estado de espírito que, se sua vida noturna é boa, você acha
que tem tudo; mas, se nesse trimestre as coisas derem errado, você considerará os seus melhores
e mais verdadeiros interesses os mais odiosos” (MED vv.569–73). Podemos ouvir isso como
um esforço infundado de descartar as alegações cuidadosamente formuladas pela Medeia sobre
os benefícios recíprocos do casamento. Medeia acusa Jasão de não tratá-la com philia, isto é,
sem nenhum tipo de reciprocidade. Fazer mal a um amigo, diz Medeia referindo-se a si, e ainda
olhar na cara. (MED v.470). Nesse sentido, a personagem acredita que o ato de Jasão ter
apertado sua mão é um sinal inquebrantável dos laços de reciprocidade que deveriam existir
entre ambos, e que a partir daquele momento passou a uni-los.

Para Medeia Jasão é um doente, e sua doença é a maior das doenças humanas, canalhice
(grifo nosso). Mas o diálogo final deles lança as palavras anteriores de Jasão sob uma luz
diferente. Medeia acaba de mencionar a arrogância do novo casamento de Jasão. Em resposta,
Jasão pergunta incrédulo, em relação aos filhos mortos: "E apenas por isso você escolheu matá-
los?" (MED v.1367). Medeia responde zombeteiramente: “O amor é tão pequeno para uma
mulher?” (MED v.1368).
Como podemos avaliar o tom de Medeia aqui? Ela está zombando de Jasão por suas
trivialidades misóginas? Suas palavras são ditas com ironia? Ou com raiva e desprezo? A
personagem é cheia de contradições: ela explora estereótipos misóginos sobre as mulheres para
manipular os homens ao seu redor 240. Portanto, observamos que Medeia de alguma forma não
consegue condizer socialmente a esse universo androcêntrico que é a pólis, porque
evidentemente ela e as outras mulheres estão sempre cerceadas por uma concepção masculina

240
Gonçalves, Jussemar Weiss. Me Chamo Medeia: Gênero na Tragédia Medeia de Eurípedes. Artigo apresentado
no II Congresso Internacional de História- Cultura, Poder e Sociedade, UFSM,5,6 e 7 de novembro de 2019
116
que as tolhe, e segundo Loraux “as cidades protegem a esfera do político das condutas e dos
afectos que arriscam ameaçar-lhes a ordem” (LORAUX, 1994, p. 23). Sendo assim, o feminino
é visto como uma “ameaça” para a ordem da pólis, por isso sua função é fortemente demarcada.
Dentre os personagens femininos da tragédia é, talvez, Medeia aquela que mais passou
por um processo de revisão. Desde a antiguidade e, chegando aos nossos dias quando esta
mulher a partir de visões literárias sofre variações em sua construção que vão desde a
destruidora de lares até a representante de uma mulher apaixonada. Todas essas construções
foram produzidas em contextos nos quais a figura do feminino ocupava um lugar
fundamentalmente determinado pelo masculino, por isto sua definição como bruxa, feiticeira
ou mulher apaixonada. Das mulheres trágicas que ousam agir, isto é, assumir a construção de
seu destino é Medeia a única que escapa da morte. Clitemnestra, mulher de Agamêmnon é
morta por seu filho Orestes, que justifica seu ato dizendo “não podemos deixar viva uma mulher
que assassina homens”. Já Antígona escolhe morrer a ter que viver um mundo no qual a
estrutura familiar não seja também a estrutura legitima de poder.

Medeia sobrevive ao seu próprio drama pois na criação que faz Eurípedes, ela percebe
com exatidão o limite da convivência com masculina em uma sociedade marcadamente
androcentrica. Ela vence a morte não apenas física, mas moral, ou seja, ela dá continuidade à
sua proposta ética ao enfrentar Jasão de igual para igual no mesmo terreno argumentativo. Ela
percebe que o acordo que os homens fazem com as mulheres não tem força de contrato, não
tem peso moral, podendo ser desfeito sem prejuízo. Ela percebe o lugar que ocupa naquela
oikos, ao lado das outras mulheres fazendo com que se rebele contra sua condição de mulher
antes que sua condição social. As vozes das mulheres perdem-se pelas paredes de seus
aposentos, como falas sem sentidos para os ouvidos masculinos. Elas não são mudas, elas falam,
mas sua voz é mediata por um conjunto de regras que as tornam subordinadas, presas ao mundo
doméstico.

As representações de papéis de gênero e o papel de gênero em Eurípides são tópicos


desafiadores e multifacetados que iludem a soma pura. Os leitores de hoje, no entanto,
geralmente são menos rápidos em julgar ou aplicar rótulos do que nos anos anteriores. Em vez
de denunciar Medeia como uma mulher "ruim" ou celebrar Eurípides como uma protofeminista,
podemos estar mais inclinados a apreciar a complexidade e a diversidade de personagens que
povoam seu palco, e a apreciar que o manejo muitas vezes sofisticado de suas identidades de
gênero são uma característica distintiva e provocativa da arte euripidiana.

117
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