Nós Jade Garcia Rocha
Nós Jade Garcia Rocha
Nós Jade Garcia Rocha
São Leopoldo
2021
JADE GARCIA ROCHA
São Leopoldo
2021
À Tina Hatem (in memoriam), por dar cores à minha
vida!
3
AGRADECIMENTOS
Gilberto Gil
6
RESUMO
Figura 1: Velho indígena narrando o mito “Wʉhʉ Siburu: Peneira de Arumã” .......... 37
Figura 2: Ʉmʉkorĩ gaapida (Gaapi do dia), que representa Abe (sol) ....................... 39
Figura 3: Dinâmica do ʉmũsĩ Pahtoro de Abe e Bʉhpo - antes da origem do mundo
.................................................................................................................................. 42
Figura 4: Peneiras de arumã desana ........................................................................ 49
Figura 5: desenho que demonstra minha depreensão da estrutura da Terra ........... 51
Figura 6: Representação do DNA. ............................................................................ 52
LISTA DE SIGLAS
.
SUMÁRIO
1 NASCEMOS DE HISTÓRIAS
1 Estudei no IFRS – Câmpus Osório e atuei como bolsista de iniciação científica no projeto “Resgate
histórico e cultural da comunidade indígena Sol Nascente (Kuaray Rexé)” do NEABI.
2 Sentido aqui entendido como sentimento, direção e significado ao mesmo tempo.
11
“Se as pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral,
com as referências que dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas
neste mundo maluco que compartilhamos” (KRENAK, 2019, p. 9).
3 Uso o termo cunhado pelo cantor e compositor Chico César que define “estado de poesia” como
“um estado alterado de dentro para fora, é como vi meu estado de origem e como me vi”. Disponível
em <https://www.chicocesar.com.br/index.php/release/estado-de-poesia/>. Acesso em 20 mar 2021.
12
No tempo que agora passa, não vivemos em período de Guerra Mundial, mas
há outro mal que assombra a sociedade moderna: escrevo estas linhas no contexto
brasileiro de pandemia da COVID-19. Neste exato momento, há milhares de
pessoas no mundo à beira da morte; há governantes e civis que pouco se importam
com isso; e há milhares de pessoas em quarentena há mais de um ano
(sobre)vivendo dentro de quatro paredes em diversas condições socioeconômicas.
Depois de haver escrito a primeira parte do texto que havia planificado no início do
curso, pensava sobre o real sentido dele dentro dessa realidade incomum e inédita.
De fato, não o encontrei. Até que, no meio dessas indagações, li o livro “Ideias para
adiar o fim do mundo”, do antropólogo indígena Ailton Krenak, e comecei a entender
os reais sentidos de para onde eu precisava me aventurar.
Viver uma pandemia e ter tantas outras frustrações na vida faz com que a
nossa saúde mental fique fragilizada e, no meio de uma busca de sentidos, nos
encontramos com a necessidade da experiência, com a necessidade de que algo
nos aconteça. Entretanto, essa experiência é cada vez mais rara (LARROSA, 2011).
E a nós (sociedade moderna) carece, cada vez mais, confessar essa pobreza de
experiência para que possamos lidar com ela (LIMA; BAPTISTA, 2013).
Krenak, em seu livro, nos convida a realizar exatamente essa confissão e
fazer algo com ela para que possamos seguir experienciando:
experiência, sendo uma relação com o texto, com isso que me passa, com algo que
tem lugar em mim e me (trans)forma. Relacionando a Benveniste (1974/1989), faz
eu dizer de mim para ti (eu-tu) em um espaço único e irrepetível (aqui-agora). O
texto da leitura funciona como uma relação entre experiência e subjetividade, logo é
necessário “pensar a experiência desde um ponto de vista da formação e da
transformação da subjetividade” (LARROSA, 2011, p.15), já que “pensar a leitura
como formação supõe cancelar essa fronteira entre o que sabemos e o que somos”
(LARROSA, 2007, p. 133).
É aí que entra a Literatura indígena. Os povos originários do nosso território
nos ensinam com as suas narrativas como podemos saber das nossas: “Vi as
diferentes manobras que os nossos antepassados fizeram e me alimentei delas, da
criatividade e da poesia que inspirou a resistência desses povos” (KRENAK, 2019,
p.14). Nos últimos tempos, eles se preocuparam não só em registrar suas narrativas,
mas também compartilhar conosco esse saber ancestral para que o “fim do mundo”
seja adiado e para que todos possamos andar juntos. O escritor indígena Daniel
Munduruku, na contracapa do livro “NÓS” (que posteriormente iremos comentar),
escreve que ouvir, sentir e ler Literatura indígena “é mergulhar em um infinito que
nos une com o desconhecido. É, sobretudo, alimentar nosso espírito com o mistério
presente em todas as coisas, independente de quem somos, de como vivemos e do
que temos”. Assim, não padecemos de repetir a história.
Por fim, cabe aqui comentar que a estrutura deste trabalho de conclusão de
curso se dá com a construção de, em um primeiro momento, uma introdução, que
traz a justificativa, os escopos e a delimitação da temática do estudo. Em um
segundo momento, um capítulo aborda bibliograficamente os pilares da experiência
a partir das teorias desenvolvidas por Émile Benveniste, Walter Benjamin e Jorge
Larrosa. Em um terceiro momento, abordo a metodologia, a partir da perspectiva de
Benveniste de análise da escrita a partir da interpretância e dos termos e
procedimentos que tornam e retornam. Por fim, apresento os resultados obtidos, a
discussão feita relacionando a bibliografia e o que encontrei no conto, a conclusão,
as referências e o anexo do mito.
14
2 PILARES DA EXPERIÊNCIA
[...] isto, o sentido ou o sem-sentido, é algo que tem a ver com as palavras.
E, portanto, também tem a ver com as palavras o modo como nos
colocamos diante de nós mesmos, diante dos outros e diante do mundo em
que vivemos. E o modo como agimos em relação a tudo isso. (LARROSA,
2002, p. 21)
esse sentido. Por essa razão, para significar, é preciso comunicar, pois assim eu
marco minha existência no mundo.
Pensamento
Mesmo o fundamento singular do ser humano
De um momento
Para o outro
Poderá não mais fundar nem gregos nem baianos
Gilberto Gil
Eu creio no poder das palavras, na força das palavras, creio que fazemos
coisas com as palavras e, também, que as palavras fazem coisas conosco.
Jorge Larrosa
Eu não tenho velhos livros como eles [os brancos], nos quais estão
desenhadas as histórias dos meus antepassados. As palavras dos xapiri
são gravadas no meu pensamento, no mais fundo de mim.
Davi Kopenawa – A queda do véu
experiência tem lugar.” (LARROSA, 2011, p. 6). A ela o autor atribui o conceito do
princípio da reflexividade, pois experiência é um movimento de ida e volta. Um
movimento de
Durante séculos, o saber humano foi entendido como pathen máthos, como
uma aprendizagem seja pelo sofrimento, seja por aquilo pelo qual alguém
passa. Esse é o saber da experiência: o que se adquire pelo modo como se
vai respondendo àquilo que se passa ao longo da vida e o que vai
conformando o que alguém é (LARROSA, 2011, p. 137)
Um livro deve ser um pico de gelo que rompa o mar congelado que temos
dentro.
Franz Kafka
É por isso que pensar formação como leitura implica uma relação de
produção de sentido. E cada sentido que se produz é exclusivamente novo e
irrepetível: essa construção não pode ser planejada de modo técnico, não se pode
reduzir e tampouco se pode antecipar o seu resultado. Como já dissemos, a leitura
não se resume a compreender e decifrar e, se formos entender que tudo o que nos
passa pode ser considerado um texto, imprescindivelmente, temos que ter
capacidade de escuta e de prestar atenção, pois cada texto (situação na nossa
vida), tem muito a nos dizer.
Podemos também “imaginar”, dentro desse contexto, uma forma da vida
humana e se “a vida humana tem uma forma, ainda que seja fragmentária, ainda
que seja misteriosa, essa forma é a de uma narrativa: a vida humana se parece a
uma novela.” (LARROSA, 2007, p. 141). Mais atrevidamente, poderíamos “imaginar”
que há uma magia dentro dessa forma. E essa “magia” podemos chamar de
literatura. Daí, elevamos a leitura a outra instância: diferente dos textos jornalísticos,
a escrita/leitura literária envolve “suspender a segurança de todo código [linguístico],
levá-lo ao limite de si mesmo, e permitir a sua transgressão” (LARROSA, 2007, p.
145). Dessa forma,
28
[...] está nessa palavra mesma e não fora dela, em uma espécie de
enroscamento da linguagem. E esse jogo, aberto e não finalizado,
indefinido, é o que faz com que a experiência da leitura possa ir mais
adiante da ‘leitura’ de um texto a partir do sistema formal em que está
construído.” (LARROSA, 2007, p. 145)
À vista disso, tanto na educação formal como na educação “da vida”, torna-se
cada vez mais pensar e abordar a leitura literária como (trans)formação e (re)criação
de sentido. Nesse seguimento, a literatura indígena, carregada de oralidade e de
saber ancestral, aparece como uma possibilidade de encontro isso que nos põe em
questão com aquilo que somos.
Em encontro a isso, Benjamin (1994, p.) muito bem nos explica que a
“experiência propicia ao narrador a matéria narrada. E, por sua vez, transforma-se
na experiência daqueles que ouvem a estória”. Dessa forma, quando um narrador
(locutor) ocupa a posição de “eu” no discurso (ou seja, quando narra), ele reconhece
a si mesmo um direito no espaço simbólico e se assegura da própria existência
(TEIXEIRA, 2006, p. 240).
Relacionar esse entendimento com a literatura indígena nos possibilita
indagar sobre uma experiência por meio da leitura dessas produções. Como os
povos originários possuem uma tradição oral coletiva, a “cada ato de contar, não é
apenas a narrativa em si que é repetida, mas também toda a tradição oral da [de
uma] comunidade é revivida” (SOUZA, 2006). Muito disso pode ser observado no
conteúdo dessa própria literatura como abaixo é demonstrado nas palavras do
yanomami Davi Kopenawa:
Eu não tenho velhos livros como eles [os brancos], nos quais estão
desenhadas as histórias dos meus antepassados. As palavras dos xapiri
são gravadas no meu pensamento, no mais fundo de mim. São palavras de
Omama. São muito antigas, mas os xamãs as renovam o tempo todo.
Desde sempre, elas vêm protegendo a floresta e seus habitantes. Agora é
minha vez de possuí-las. Mais tarde, elas entrarão na mente de meus filhos
e genros, e depois, na dos filhos e genros deles. Então será a vez deles de
fazê-las novas. Isso vai continuar pelos tempos afora, para sempre. Dessa
forma, elas jamais desaparecerão. Ficarão sempre no nosso pensamento,
mesmo que os brancos joguem fora as peles de papel deste livro em que
elas estão agora desenhadas. [...] Não poderão ser destruídas pela água ou
pelo fogo. [...] Muito tempo depois de eu já ter deixado de existir, elas
continuarão tão novas e fortes como agora [...]. Eu, um Yanomami, dou a
vocês, os brancos, esta pele de imagem que é minha. (KOPENAWA;
ALBERT, 2015, p. 65-66)
Como podemos ler, é da cultura dos Yanomami que a forma com que eles se
relacionam com o mundo seja literária, seja narrativa e esteja atemporalmente
presente aqui-agora, sempre sendo recriada e continuando, em alusão às palavras
de Kopenawa, “tão novas e fortes como agora”.
Outrossim, Larrosa (2011, p. 9), ao comentar sobre a leitura como
experiência, ressalta a importância da presença da relação que temos com o texto
lido. Texto este que funciona como algo que nos acontece. Nesse sentido, levando
em consideração as dimensões da experiência (ver item 2.3.1), o “texto tem que ter
algo de incompreensível para mim, algo de ilegível. De todo modo, o decisivo, [...]
não é qual livro, mas o que nos passa com a sua leitura” (LARROSA, 2011, p. 9).
Tendo em vista isso, podemos considerar as palavras abaixo de Daniel Munduruku,
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escritas no prefácio do livro “As serpentes que roubaram a noite e outras histórias”,
como um exemplo da forma que temos que relacionar com essas narrativas:
Não são histórias muito fáceis de compreender, não. E não são fáceis
porque elas ocorreram em um tempo em que o tempo ainda não existia. [...]
Mas existe uma maneira de compreender os mitos [...]: é preciso ler e ouvir
os mitos não com os ouvidos que ficam na cabeça, pois eles costumam nos
enganar, mas com os ouvidos que existem lá no fundo do coração – o
ouvido da Memória. O conhecimento que cai nesse ouvido adormece, fica lá
escondidinho, e, depois, quando a gente menos espera, ele surge de novo
(MUNDURUKU, 2001, p. 7-8).
viver" (p. 81). À vista disso, inspirada em Vier (2016, p. 80), também proponho, a
partir da leitura da escrita de autoria indígena, “re-dirigir nosso olhar para a
linguagem poética via linguística".
Isso posto, trago a escrita do filósofo Nietzsche que, em suas obras (2004,
2009), nos apresenta a premissa de leitura como arte, corroborando com as ideias
de Jorge Larrosa de que a leitura deve ser lenta, contra o movimento imediatista do
deglutir que a sociedade moderna promove. Por essa razão, “é imprescindível ser
quase como uma vaca e não um "homem moderno" [grifo do autor] (NIETZSCHE,
2009, p.14).
Usar a metáfora sobre a digestão do animal muito nos cabe nesta monografia
para poder reflexionar sobre a experiência, visto que, para o autor, o leitor do seu
texto precisa compreender o segredo de ler entrelinhas. E essa ideia vai de encontro
ao que Walter Benjamin (2000) promove de que a narrativa não deve ser lógica nem
explicativa. E, também, de que ela é passada de geração em geração o que, por sua
vez, faz com que ela carregue a sabedoria da vida e um conhecimento complexo.
Afinal, como aponta Nietzsche (2004, p. 46-47), se o leitor de seu texto "[...]quer
colher no chão os frutos que gerações inteiras podiam somente obter, é preciso
então temer que ele não tenha compreendido o autor".
Por conseguinte, a premissa de ruminação aqui colocada supõe que o
3 CAMINHO METODOLÓGICO
Vier (2016, p. 87), em sua tese, nos demonstra que "cada objeto de estudo
estabelece problemas específicos”. Isso acontece, pois, não só a escrita se
singulariza a cada leitura, mas, também, o pesquisador também o faz ao realizar a
análise. Por conseguinte, a autora, em referência a Flores (2001), afirma que não
encontramos dados no objeto de estudo e, sim, fatos. "[...] [P]orque realmente não
se trata de algo 'dado' enquanto evidência, mas do produto de um construto teórico"
(FLORES, 2001, p. 59).
Assim sendo, a partir dos termos e procedimentos que tornam e retornam no
mito, os fatos enunciativos que encontrarei funcionarão como corpus de análise
deste estudo. Nesse sentido, esse tornar e retornar “funciona como categoria de
35
Trecho 1 (T1) Trecho 2 (T2) Trecho 3 (T3) Trecho 4 (T4) Trecho 5 (T5)
“Primeiro ele se “Com uma cuia, “Ao redor, “- Umuri Ñeku “Como já falei,
sentou no banco, BAFOROU AS flutuavam sete tinha cansado da no princípio eram
com um bastão BOCHECHAS cuias de vida, solidão. Logo só nuvens,
cerimonial na mão conforme o que piscavam na teve a ideia de colunas, cuias de
direita, uma forquilha cerimonial de escuridão” transformar as vida e escuridão”
de cigarro ritual e um mastigar ipadu” (DIAKARA, vidas que (DIAKARA,
suporte de cuia de [grifo do autor] 2019, p. 82) flutuavam nas 2019, p. 82).
IPADU. [...] (DIAKARA, 2019, sete cuias do
Concentradíssimo no p. 81) Umusi Dihtaru, o
corpo e na alma, lago das nuvens,
respirou fundo antes em seres iguais
de beber da cuia a ele, e os
ancestral e começar chamaria de
a narrativa” [grifo do Umuri Mahsa:
autor] (DIAKARA, Gente do
2019, p. 81). Universo.”
(DIAKARA,
2019, p. 82).
1Que segundo ele é um elemento fundamental para acesso aos conhecimentos sobre o nosso
mundo e outros mundos.
40
de haver uma pequena relação da cuia que conheço com a cuia dos Desana, não
posso pensar a cuia como a do chimarrão, ela não abarca o significado da cuia no
sistema semiótico dos Desana. Logo, pude perceber que a cuia é a chave para a
conexão, criação e transformação da vida.
Em seguida do termo “cuia”, vem o termo “ipadu”. Essa palavra, em primeiro
momento, aparece destacada, pois é usada na cultura dos indígenas do alto
Amazonas. O destaque dela me direcionou a uma consulta para que entendesse
sua definição. De acordo com o glossário do livro, ipadu é um “arbusto da família
das eritroxiláceas, muito semelhante à coca, com propriedades anestésicas,
cultivado pelos caboclos e indígenas do alto Amazonas” (NEGRO, 2019, p. 87). Eis
aí o próximo movimento: o termo “ipadu” torna e direciona para a definição do
glossário e, depois, retorno para o texto. Após, surge o segundo movimento:
relaciono o ipadu com a cuia.
Dessa forma, entendo que o ipadu é uma erva sagrada usada para gerar vida
e transformação. Ao encontro disso, uma cuia de ipadu benze tanto o narrador
quanto os ouvintes para o encontro com algo maior. Afirmo isso, pois o estudo de
Lolli (2014, p. 283) citado anteriormente descreve esse acontecimento como
benzimento. E, segundo o dicionário Caldas Aulete, benzer é o ato de “1. Dar a
bênção a, invocar graça divina para (algo ou alguém), inclusive si mesmo”2.
Assim, ao tornar e retornar, o termo “cuia de ipadu” parece evocar o sentido
de uma chave que leva ao caminho de encontro com o sagrado, com o ancestral e,
logo, com os próprios desana. Para existir uma chave, é necessário existir uma
porta. A porta separa os dois mundos (Terra e sagrado/espiritual), mas não os
desconecta. Entretanto, não é ela quem faz a conexão entre eles. Quem a faz é a
chave e quem a usa, pois, para usá-la, é necessária uma ação. E essa ação é abrir-
se. E é abrir a porta que está dentro da própria pessoa. O movimento é para dentro,
por isso, a ação é “abrir-se a porta”. Esse movimento se relaciona muito com o “isso
que me acontece” de Larrosa (2011). Por isso que, ao interpretar esse termo,
entendo que a “cuia de ipadu” leva ao caminho da experiência.
A seguir, trago não só um termo, mas estruturas frasais que tornam e
retornam para poder falar sobre a criação da Terra que sustenta a vida, que sustenta
a Gente do Universo.
4.2 GÊNESIS
essa alimentação voltava dos seres para ele, gerando uma egrégora da
transformação e da (re)criação5.
Dentro desse mesmo contexto, aparece o termo “coluna” que, segundo o site
Infopédia6, possui a seguinte simbologia:
5 Isso é uma informação necessária para poder ter mais dimensões de sentido na leitura do último
parágrafo do mito que depois tratarei.
6COLUNA. In: Infopédia. Disponível em https://www.infopedia.pt/$coluna-(simbologia). Acesso em: 7
jun 2021.
7 Referência ao título “Antes o mundo não existia” do livro de mitologia dos antigos Desana narrado
14 “Gravem na memória esta história sagrada. Porque um dia serão vocês a contar para os seus
filhos. E depois, seus filhos contarão para os seus netos. E a história vai vingar de geração em
geração, porque é parte do nosso corpo material e espiritual [...]” (DIAKARA, 2019, p. 81-82)
55
realidade de acordo com o sentido que damos para ela. Fato que vai de encontro ao
que Benveniste promove sobre (inter)subjetividade: a linguagem é dupla uma
experiência humana em que locutor e alocutário co-re-criam o sentido da vida
singularmente a todo momento. Dessa forma, a leitura como experiência desse
conto implica transcender a palavra, suspender o significado dela e atualizá-lo a
partir do que vivemos (da nossa experiência). Por isso que, por exemplo, quando
interpretei o termo cuia, disse que nunca mais verei a roda de chimarrão da mesma
forma.
Outrossim, por conter a palavra emaranhada, a literatura e a arte (aplicando
esse conceito aos grafismos que os indígenas fazem) nos possibilitam contatos com
os símbolos podem nos guiar de modo direto ao saber da experiência.
Benjamin (1994) já dizia que o saber da narrativa está nas entrelinhas, nada é
explicado, calculado ou previsto. Larrosa (2002), ao encontro disso, ainda ressalta
que a leitura não é uma decifração de códigos. Ela é o que consegue suprimir as
fronteiras entre o conhecimento e o sujeito cognoscente, conectando aquilo que
somos com aquilo que encontramos: a experiência. Sendo assim, retorno as
palavras de Vier (2016, p. 81) que dizem que um texto não serve para dar respostas,
mas, sim, caminhos de encontro ao sentido.
Por fim, voltando ao livro de Dahlke sobre mandalas e símbolos,
compreendemos que
Dessa forma, ler o mito com os olhos voltados para a racionalidade não trará
nenhum sentido.
No próximo item, apresento as considerações finais sobre o que essa
interpretância me evocou.
57
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Começo o último capítulo desde estudo com essa canção de Gilberto Gil e
proponho a relação dela com o título desta monografia: “Quando a gente lê de
coração aberto a magia acontece”.
Quando me matriculei na cadeira de TCC I, tinha uma ideia totalmente
diferente do que aqui pude desenvolver. Eu queria, de certa forma, buscar nas
palavras o sentido do que os indígenas dizem. Sempre as vi com grande
profundidade, entretanto, sentia que faltava algo.
Por forças maiores, decidi dar um hiato de 1 ano entre o TCC I e o TCC II.
Nesta pausa, muito aconteceu e voltei ao texto com outros olhos. Uma das coisas
que aconteceu foi o meu desejo de voltar a ser professora (houve um momento do
58
curso que eu havia desistido disso) outra coisa que aconteceu foi que eu, finalmente,
me abri para a literatura.
Durante o curso todo, sempre tive dificuldade com as cadeiras que diziam
respeito a ela, chegando até a dizer que eu a odiava. Depois de respirar fundo, fazer
terapia e perder um pouco da minha rigidez, fui para a cadeira de TCC II com outra
proposta. A profª Drª Sabrina, minha orientadora, me direcionou para as leituras que
aqui abordei e elas acabaram me levando ao encontro do mito que aqui interpretei.
Trago isso para poder afirmar que desde o primeiro momento, essa escrita se
demonstrou para mim como uma experiência, eu só não sabia aonde iria chegar.
Por essa razão, que trago Gilberto Gil para falar, com essa forma tão mágica, o que
fui capaz de sentir e viver desenvolvendo este estudo. Abrir-me para o que aqui
estava prestes a acontecer exigiu que eu estivesse, em alusão às palavras do
artista, decidida “pela estrada que ao findar, vai dar em nada do que eu pensava
encontrar”. E, realmente, quem começou querendo olhar para palavra e, agora,
escreve que sobre o não olhar apenas para ela chegou em um lugar que JAMAIS
pensou que iria encontrar.
Quando questionei “o que as relações de interpretância e experiência que a
leitura do mito indígena podem evocar?”, logo, imaginei a transformação. Entretanto,
fui muito além disso.
Estabelecer relações de interprêtancia e realizar a leitura do mito sob o viés
da experiência me mostrou que é necessário, no momento da leitura, desapegar da
escrita. E esse desapegar não é simplesmente jogar as palavras do texto fora, como
se não tivessem valor. Mas, sim, permitir que a escrita torne e retorne em diferentes
sistemas semióticos. Cada termo aqui abordado serviu para mostrar que uma
palavra que carrega traços multissemióticos (em função de que na sua cultura ela foi
instaurada dessa forma e de que ela foi, também, posta de forma literária) implica,
diretamente, uma leitura multissemiótica. Em função da linguagem ser paradoxal, e
da língua ser interpretante de todos os sistemas, a palavra carrega essa
característica de sempre ser atualizada a cada momento que é referida.
Dessa forma, posso, categoricamente, afirmar que linguagem é experiência
humana pois não há nada mais humano do que ser e não ser ao mesmo tempo, do
que singularizar-se em cada momento da existência. Assim, ler sob o viés da
experiência faz com que, depois da leitura, nunca mais consigamos ser os mesmos.
59
Nós damos adeus ao que éramos e damos espaço para o que somos. E isso é o
devir constante de nós mesmos.
Esse é um porto forte deste estudo, mas, também um ponto fraco. Por
trabalhar com relações de interpretância e de experiência e por entender que a
linguagem é paradoxal, a singularização desta pesquisa faz com que ela seja
humana e, logo, indeterminada. O que aqui se lê é uma possibilidade de tantas
outras que o mito poderia evocar de sentido. Durante a leitura, encontrei alguns
outros termos que tornavam e retornavam, mas decidi não abordá-los. Há, também,
outros elementos sobre a mitologia dos Desana que acabei não citando. Isso pode
gerar algumas interrogações ou algumas interpretações não tão completas como a
que tive e, talvez, não tenham cabido nas palavras que aqui escrevo.
Por essa razão, em estudos futuros, seria necessário dar conta desses outros
termos e conhecimentos culturais que vão poder reatualizar a interpretação aqui
narrada. Outra possibilidade seria pensar como levar o que aqui reflexiono para a
sala de aula de uma forma didática. Pois, cada vez mais que mergulho na literatura,
penso que minha prática docente deve se direcionar para esse caminho: o da leitura
como experiência.
Por fim, a partir da afirmação anterior, questiono quem me lê a pensar sobre a
transformação que passei depois de realizar o estudo e a graduação: para quem
antes dizia que não seria professora e que não gostava de literatura passar a dizer
que é professora de literatura, muita experiência aconteceu, não? Assim, desejo que
cada vez mais nós possamos nos flexibilizar para que a magia vida nos aconteça,
tanto nos desenvolvimentos pessoais, quanto na prática docente.
60
REFERÊNCIAS
DIAKARA, Jaime. Gaapi, a bebida cósmica dos Desana (Um ensaio desenhístico).
In: Cadernos do NEAI: Escritos dos alunos e pesquisadores do Núcleo de Estudos
da Amazônia Indígena. Manaus, 27 ago. 2018. Disponível em:
https://cadernosdoneai.wordpress.com/2018/08/27/gaapi-a-bebida-cosmica-dos-
desana-um-ensaio-desenhistico-por-jaime-diakara/. Acesso em: 25 mai 2021.
DIAKARA, Jaime. Wʉhʉ Siburu, peneira de Arumã. In: NEGRO, Maurício (Org.).
Nós: uma antologia de literatura indígena. São Paulo: Companhia das Letrinhas,
2019. p. 80-89.
NEGRO, Maurício (org.). Nós: uma antologia de literatura indígena. São Paulo:
Companhia das Letras, 2019. 127 p.
SOUZA, Lynn Mario T. Menezes de. Uma outra história, a escrita indígena no
Brasil. 2006. Publicado no site Povos indígenas no Brasil. Disponível em:
https://pib.socioambiental.org/pt/Uma_outra_hist%C3%B3ria,_a_escrita_ind%C3%A
Dgena_no_Brasil. Acesso em: 25 maio 2021.