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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS - UNISINOS

UNIDADE ACADÊMICA DE GRADUAÇÃO


CURSO DE LETRAS

JADE GARCIA ROCHA

QUANDO A GENTE LÊ COM O CORAÇÃO ABERTO, A MAGIA ACONTECE:


a leitura do mito indígena “WUHU SIRUBU, PENEIRA DE ARUMÔ como
experiência humana

São Leopoldo
2021
JADE GARCIA ROCHA

QUANDO A GENTE LÊ COM O CORAÇÃO ABERTO, A MAGIA ACONTECE:


a leitura do mito indígena “WUHU SIRUBU, PENEIRA DE ARUMÔ como
experiência humana.

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado como requisito parcial para
obtenção do título de Licenciada em
Letras, pelo Curso de Letras
Português/Espanhol da Universidade do
Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS

Orientadora: Profa. Dra. Sabrina Vier

São Leopoldo
2021
À Tina Hatem (in memoriam), por dar cores à minha
vida!
3

AGRADECIMENTOS

Agradeço a Tupã, a Yamandú, à Yeba Borô, a Oxalá, à Oxum e a qualquer


força divina que contribui para que a vida seja criada, transformada e prosperada.
Agradeço ao povo Desana e ao Jaime Diakara por terem registrado e me
presenteado com essa obra incrível que me (trans)formou.
Agradeço à Josi e aos Guaraní da Tekoa Kuaray Rexe por terem me recebido
e acolhido em sua existência tão linda, fazendo com que eu os leve comigo aonde
quer que eu vá.
Agradeço à minha mãe, Violeta, e ao meu Pai, Diogo, por terem me
concedido o acontecimento da vida e por me guiarem com tanto amor na caminhada
do viver.
Agradeço à minha família, principalmente, à Iara, à Gessi, à Gabriela, à
Camile, ao Ricardo, ao Leandro e ao Pablo por desde sempre terem me dado muito
amor e terem me incentivado e me ajudado a estudar. Serei a primeira da família
que se graduará sem precisar parar de estudar por causas maiores.
Agradeço ao meu avô Catulo e ao meu tio avô Luís por terem me contado
tantas histórias cheios de brilhos nos olhos, me incentivando a ir ao caminho das
Letras e das Artes.
Agradeço a todos os professores e professoras da Educação Básica, em
especial à Patrícia, à Luciane, à Dalbiane, à Andréia Meinerz, à Daniela Sanfelice,
ao Marcos Aguiar, ao Luis Felipe, à Agnes, à Aline Bona, à Luciana Delgado, ao
Humberto e à Elisa, que despertaram em mim a faísca para a docência.
Agradeço a todos os professores e professoras da Unisinos, em especial à
Silvia Matturro, à Martha Andrade, à Vera Mello, à Marly Mallman, à Carolina Knack
e à Marcia Duarte, por, além de ensinarem com afeto, ensinarem com ações.
Agradeço ao Movimento Estudantil, à luta dos estudantes, que me
proporcionou direitos e experiências únicas.
Agradeço às minhas amizades que tenho desde antes da passagem pela
universidade e, também, que acabei construindo durante esse período. Sou grata
por todo o acolhimento e afeto nos momentos difíceis.
4

Agradeço ao meu eterno companheiro de vida, Raphael, por ter paciência e


amor com cada momento que compartilhamos juntos e, também, pelas conversas e
trocas que ajudaram a compor este estudo.
Agradeço à Camomila, minha gata, por me acompanhar, cheia de afeto e
ronrono na escrita deste trabalho, deixando tudo mais leve e fofo.
Agradeço às professoras Marlene Teixeira e Tina Hatem por tornarem a
existência deste trabalho possível, por me presentearem com conhecimentos e
experiências tão especiais que me (trans)formaram.
Por fim, mas o mais importante, agradeço à minha orientadora, Sabrina Vier,
pelo acolhimento, pela paciência, pela escuta, pelo afeto, pelos ensinamentos, por
acreditar em mim e me incentivar a escrever o que aqui lerão.
[Iansã,] Eu sou um céu para as tuas tempestades

Gilberto Gil
6

RESUMO

Insertado no contexto de uma busca pelo bem-viver em tempos de pandemia


da Covid-19, o presente estudo visa investigar o que as relações de interpretância e
experiência da leitura do mito indígena “WUHU SIRUBU, PENEIRA DE ARUMÔ, de
Jaime Diakara, podem evocar. Para tanto, como método uso a proposta em que a
análise da escrita do mito é feita a partir de uma relação de interpretância. Em
primeiro momento, busco observar como os termos tornam e retornam. Após, derivo
dessa observação uma reflexão para poder evidenciar de que forma essa reflexão
se coloca como um encontro com a experiência. Como resultado, encontrei os fatos
enunciativos “cuia de ipadu”, "lago de nuvens em forma de caverna", "colunas",
"bastões" e "peneira de arumã". A partir da reflexão sobre como esses termos
tornam e retornam, percebi que, quando se realiza a leitura sob o viés da
experiência humana, é necessário desapegar da escrita. Cada fato enunciativo
estudado demonstrou que uma palavra que carrega traços multissemióticos implica,
diretamente, uma leitura multissemiótica.

Palavras-chave: Experiência. Literatura indígena. Linguagem. Semiologia.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Velho indígena narrando o mito “Wʉhʉ Siburu: Peneira de Arumã” .......... 37
Figura 2: Ʉmʉkorĩ gaapida (Gaapi do dia), que representa Abe (sol) ....................... 39
Figura 3: Dinâmica do ʉmũsĩ Pahtoro de Abe e Bʉhpo - antes da origem do mundo
.................................................................................................................................. 42
Figura 4: Peneiras de arumã desana ........................................................................ 49
Figura 5: desenho que demonstra minha depreensão da estrutura da Terra ........... 51
Figura 6: Representação do DNA. ............................................................................ 52
LISTA DE SIGLAS

IFRS Instituto Federal de Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul


NEABI Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas

.
SUMÁRIO

1 NASCEMOS DE HISTÓRIAS ................................................................................ 10


2 PILARES DA EXPERIÊNCIA ................................................................................ 14
2.1 LINGUAGEM COMO EXPERIÊNCIA HUMANA ................................................. 14
2.1.1 Transmutação da experiência em signos .................................................... 15
2.1.2 Homem, locutor e sujeito............................................................................... 16
2.1.3 Comunicação e significação da experiência: (inter)subjetividade ............ 17
2.2 NARRATIVA COMO EXPERIÊNCIA ................................................................... 19
2.2.1 Atemporalidade do saber .............................................................................. 19
2.2.2 O sujeito que trabalha com a experiência .................................................... 20
2.2.3 Processo artesanal e coletivo ....................................................................... 21
2.2.4 Declínio do ofício artesanal ........................................................................... 22
2.3 LEITURA COMO EXPERIÊNCIA ........................................................................ 23
2.3.1 Isso que me passa ......................................................................................... 23
2.3.2 A experiência é a voz da verdade ................................................................. 24
2.3.3 Experiência por meio da leitura .................................................................... 26
2.4 É PRECISO LER E RELER................................................................................. 28
2.4.1 O ilegível para nós: ruminação como relação da leitura ............................ 30
3 CAMINHO METODOLÓGICO ............................................................................... 32
3.1 O QUE NOS ATINGE: “NÓS” EM NÓS............................................................... 32
3.2 ENCONTRO COM AQUILO QUE TORNA E RETORNA .................................... 33
3.3 TRAJETO PARA A CONSTITUIÇÃO DO CORPUS DE ANÁLISE ..................... 34
4 ANÁLISE DOS FATOS ENUNCIATIVOS .............................................................. 36
4.1 CAMINHOS, PORTAS E CHAVES ..................................................................... 36
4.2 GÊNESIS ............................................................................................................ 42
4.2.1 Base da formação Terra................................................................................. 46
4.2.2 Peneira de arumã ........................................................................................... 47
4.3 PENEIRANDO NÓS ............................................................................................ 52
4.3.1 Palavra (des)emaranhada .............................................................................. 53
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 57
REFERÊNCIAS......................................................................................................... 60
ANEXO A – O MITO “PENEIRA DE ARUMÔ (DIAKARA, 2019, P. 81-89) ........... 65
10

1 NASCEMOS DE HISTÓRIAS

Atrevo-me a começar afirmando que todos nós nascemos de histórias! E


justifico: alguma narrativa, querendo ou não, constitui o começo e o fim de todos
nós. Minha existência veio de um amor efêmero e eterno; meu nome veio de uma
música; e minha formação vem de histórias contadas pelo meu avô, pelo meu tio
avô, pelas pessoas que conheci/conheço pelo mundo afora e pelos meus
professores.
Em algum momento dessa narrativa, mais precisamente no Ensino Médio,
tive a oportunidade de compartilhar a vida com os Mbyá Guaraní da Tekoa Kuaray
Rexé1. A partir daí, comecei a traçar caminhos que sempre me levam a outras
formas de pensar e ser, fazendo com que, mesmo depois de sair da escola e dessa
vida em conjunto, eu leve nossas narrativas aonde quer que vá.
Entretanto, mesmo com grandes afinidades pelo narrar, a palavra literatura
me causava um certo desconforto devido ao fato de que não tive uma boa formação
literária na escola. Com esse pensamento, entrei no curso de Letras almejando ser
professora de Espanhol e linguista. No meu primeiro semestre, tive a oportunidade
de conhecer e me apaixonar pela Linguística da Enunciação de Benveniste e quis
direcionar minha monografia de uma forma que envolvesse a Enunciação e a
cultura/língua indígena. Pensava em abordar isso separando a Linguística da
Literatura, já que, na minha mente, elas assim eram. O texto que eu até então havia
planificado reduzia a língua indígena em análises racionais e simplórias e se
(pre)ocupava em criticar a academia por não ter uma produção e uma visão
decolonial. No entanto, com o decorrer do curso, mais uma vez na minha narrativa
de vida, algo me fez querer traçar novos caminhos: a professora Sabrina, que nesta
monografia me orienta, me fez experienciar a Literatura. Isso me deu outros
sentidos2: redirecionando meu olhar e meu coração, entendi, então, que a
Linguística está para a Literatura da mesma forma que a língua lestá para a cultura
(ou vice-versa). Experienciar a Literatura me fez olhar para esse passado não tão

1 Estudei no IFRS – Câmpus Osório e atuei como bolsista de iniciação científica no projeto “Resgate
histórico e cultural da comunidade indígena Sol Nascente (Kuaray Rexé)” do NEABI.
2 Sentido aqui entendido como sentimento, direção e significado ao mesmo tempo.
11

distante com os Guaraní e perceber o “estado de poesia”3 que constui a narrativa


deles, a minha e a nossa.
É por isso, e por muito do que ainda vou narrar aqui, que esta monografia
comunica um estudo que, de certa forma, relata o meu processo de (trans)formação
docente e, por conseguinte, pessoal. É um texto que diz como eu saí da fala “não
gosto de literatura” para a fala “sou professora de literatura”. Nele, tento elucidar o
conceito de experiência e relacioná-lo com a literatura indígena para demonstrar o
quanto isso é necessário e constitutivo de nós mesmos.
Diante disso, neste trabalho, falo sobre Literatura Indígena e Experiência.
Questiono-me sobre o que as relações de interpretância e de experiência da leitura
do mito podem evocar. Assim, traço o principal escopo de investigar o que as
relações de interpretância e experiência da leitura do mito indígena “WUHU
SIRUBU, PENEIRA DE ARUMÔ, de Jaime Diakara, podem evocar. Já, como
objetivos específicos, estabeleço: a) definir o conceito de experiência, bem como
suas qualidades; b) relacionar os conceitos de linguagem, narrativa e leitura como
experiência; c) interpretar o mito indígena “WUHU SIRUBU, PENEIRA DE ARUMÔ,
de Jaime Diakara, para poder estabelecer relações de interpretância.
Assim sendo, inspirada nas seguintes palavras do escritor indígena Ailton
Krenak, nos motivo a pensar sobre caminhos para que, cada vez mais, nos
aproximemos do olhar para a leitura literária como experiência (trans)formativa:

“Se as pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral,
com as referências que dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas
neste mundo maluco que compartilhamos” (KRENAK, 2019, p. 9).

Ao encontro do pensamento da citação acima, Walter Benjamin, ao perceber


o retorno dos veteranos do pós-guerra mundial, se deparou com a formação de uma
sociedade moderna que “se caracteriza[va] pelo declínio de um passado comum a
ser transmitido” (LIMA; BAPTISTA, 2013, p. 462), já que, na época, de tudo se fez
para apagar a violência do passado nas memórias. Por esse motivo, o homem
moderno “não podia mais comunicá-la [a experiência] ou tampouco invocar o peso
contido no saber da tradição” (LIMA; BAPTISTA, 2013, p. 462).

3 Uso o termo cunhado pelo cantor e compositor Chico César que define “estado de poesia” como
“um estado alterado de dentro para fora, é como vi meu estado de origem e como me vi”. Disponível
em <https://www.chicocesar.com.br/index.php/release/estado-de-poesia/>. Acesso em 20 mar 2021.
12

No tempo que agora passa, não vivemos em período de Guerra Mundial, mas
há outro mal que assombra a sociedade moderna: escrevo estas linhas no contexto
brasileiro de pandemia da COVID-19. Neste exato momento, há milhares de
pessoas no mundo à beira da morte; há governantes e civis que pouco se importam
com isso; e há milhares de pessoas em quarentena há mais de um ano
(sobre)vivendo dentro de quatro paredes em diversas condições socioeconômicas.
Depois de haver escrito a primeira parte do texto que havia planificado no início do
curso, pensava sobre o real sentido dele dentro dessa realidade incomum e inédita.
De fato, não o encontrei. Até que, no meio dessas indagações, li o livro “Ideias para
adiar o fim do mundo”, do antropólogo indígena Ailton Krenak, e comecei a entender
os reais sentidos de para onde eu precisava me aventurar.
Viver uma pandemia e ter tantas outras frustrações na vida faz com que a
nossa saúde mental fique fragilizada e, no meio de uma busca de sentidos, nos
encontramos com a necessidade da experiência, com a necessidade de que algo
nos aconteça. Entretanto, essa experiência é cada vez mais rara (LARROSA, 2011).
E a nós (sociedade moderna) carece, cada vez mais, confessar essa pobreza de
experiência para que possamos lidar com ela (LIMA; BAPTISTA, 2013).
Krenak, em seu livro, nos convida a realizar exatamente essa confissão e
fazer algo com ela para que possamos seguir experienciando:

O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não


tolera tanto prazer, tanta fruição de vida. [...] a minha provocação sobre
adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história
[...]. É importante viver a experiência da nossa própria circulação pelo
mundo, não como uma metáfora, mas como fricção, poder contar uns com
os outros. (KRENAK, 2019, p.13)

Assim, cabe a nós realizar o resgate de nós mesmos, de nossas narrativas


ancestrais já que, como muito bem aponta Benjamin (1994, p. 197): “arte de narrar
está em vias de extinção”. E (re)contar e (re)lembrar histórias, ainda mais no atual e
delicado momento, se torna extremamente necessário ou, como bem aponta Krenak
(2019, p. 9), “vamos ficar loucas neste mundo maluco que compartilhamos”.
Ora, se Benveniste afirma que “bem antes de comunicar, a linguagem serve
para viver” [grifo do autor] (1974/1989, p. 222) e se a tradição oral está cada vez
mais sendo deixada para trás, cabe a nós, em diálogo com o título do livro de
Krenak, “adiar o fim do mundo” e propor novas formas de/do narrar e de se
relacionar com ele. À vista disso, Larrosa (2011, p. 10) traz a leitura como
13

experiência, sendo uma relação com o texto, com isso que me passa, com algo que
tem lugar em mim e me (trans)forma. Relacionando a Benveniste (1974/1989), faz
eu dizer de mim para ti (eu-tu) em um espaço único e irrepetível (aqui-agora). O
texto da leitura funciona como uma relação entre experiência e subjetividade, logo é
necessário “pensar a experiência desde um ponto de vista da formação e da
transformação da subjetividade” (LARROSA, 2011, p.15), já que “pensar a leitura
como formação supõe cancelar essa fronteira entre o que sabemos e o que somos”
(LARROSA, 2007, p. 133).
É aí que entra a Literatura indígena. Os povos originários do nosso território
nos ensinam com as suas narrativas como podemos saber das nossas: “Vi as
diferentes manobras que os nossos antepassados fizeram e me alimentei delas, da
criatividade e da poesia que inspirou a resistência desses povos” (KRENAK, 2019,
p.14). Nos últimos tempos, eles se preocuparam não só em registrar suas narrativas,
mas também compartilhar conosco esse saber ancestral para que o “fim do mundo”
seja adiado e para que todos possamos andar juntos. O escritor indígena Daniel
Munduruku, na contracapa do livro “NÓS” (que posteriormente iremos comentar),
escreve que ouvir, sentir e ler Literatura indígena “é mergulhar em um infinito que
nos une com o desconhecido. É, sobretudo, alimentar nosso espírito com o mistério
presente em todas as coisas, independente de quem somos, de como vivemos e do
que temos”. Assim, não padecemos de repetir a história.
Por fim, cabe aqui comentar que a estrutura deste trabalho de conclusão de
curso se dá com a construção de, em um primeiro momento, uma introdução, que
traz a justificativa, os escopos e a delimitação da temática do estudo. Em um
segundo momento, um capítulo aborda bibliograficamente os pilares da experiência
a partir das teorias desenvolvidas por Émile Benveniste, Walter Benjamin e Jorge
Larrosa. Em um terceiro momento, abordo a metodologia, a partir da perspectiva de
Benveniste de análise da escrita a partir da interpretância e dos termos e
procedimentos que tornam e retornam. Por fim, apresento os resultados obtidos, a
discussão feita relacionando a bibliografia e o que encontrei no conto, a conclusão,
as referências e o anexo do mito.
14

2 PILARES DA EXPERIÊNCIA

Para dissertar sobre a experiência no mito, nos ancoramos nas leituras


teóricas de Émile Benveniste, Walter Benjamin e Jorge Larrosa. Em primeiro
momento, a partir da Linguística da Enunciação, refletimos sobre a linguagem como
experiência. Em segundo momento, sob o ponto de vista da crítica literária,
pensamos a narrativa como experiência. Em terceiro momento, reflexionamos sobre
a leitura como experiência, tentando evidenciar como os dois a experiência da
linguagem e a narrativa se dão na prática. E, por fim, relacionamos os tópicos
anteriores, aplicando-os à literatura e à cosmovisão indígena.

2.1 LINGUAGEM COMO EXPERIÊNCIA HUMANA

Benveniste, em 19521, quando compara a comunicação animal e a linguagem


humana, apresenta uma semelhança entre a comunicação das abelhas e a nossa:
as abelhas conseguem simbolizar, possuem a capacidade de criar e interpretar
“signos” com significados. Entretanto, o que elas fazem com o comunicado é o fator
em que se estabelece essa discrepância: o processo de comunicação desses
insetos tem como resultado uma conduta e não uma resposta, não possibilitando um
diálogo e sim uma decifração de códigos. A partir de uma dança, as abelhas
informam onde está o local em que as companheiras podem buscar mais pólen. As
companheiras, a partir do comunicado, vão até o local, buscam o pólen e voltam
para a colmeia. Nenhuma refuta, concorda, pergunta ou constrói uma mensagem
sobre a mensagem (BENVENISTE, 1996/1995 apud VIER, 2008, p. 21). É por essa
razão que “há algo incontornável no movimento dos humanos em direção ao
significado” (VIER, 2008, p. 20). É na linguagem e pela língua que o homem
fundamenta na sua realidade o conceito de “eu”, de locutor, de quem diz de si
mesmo, do seu mundo e, logo, existe nele (BENVENISTE 1996/1995 apud
FLORES, 2013, p. 98).
É impossível desassociar o ser humano da linguagem. Ao mesmo tempo que
é inaceitável pensar que a linguagem é apenas um instrumento da comunicação
porque “falar de instrumento é pôr o homem em oposição à natureza. A picareta, a

1Comunicação animal e linguagem humana. In Benveniste (1996). Problemas de linguística geral I.


Campinas: Pontes, 1995. p. 60-67
15

flecha, a roda, não estão na natureza. São fabricações. A linguagem está na


natureza do homem, que não a fabricou” (BENVENISTE, 1995, p. 285). Isso se dá
por consequência da reflexividade da linguagem, uma vez que, ao contrário das
abelhas, os seres humanos não a limitam à uma representação do mundo e são
capazes de produzir metassignificâncias (significância sobre significância), fazendo
com que a linguagem se prolifere por si só.
Por servir para viver (BENVENISTE, 1974/1989, p. 222), podemos criar
sentido na nossa experiência (na experiência humana) por meio da linguagem.
Como veremos em breve, é ela que possibilita a transmutação da experiência em
signos. Ou seja, é por meio dela e pela língua que traçamos uma ponte que conecta
o que vivemos com o que somos.

2.1.1 Transmutação da experiência em signos

[...] isto, o sentido ou o sem-sentido, é algo que tem a ver com as palavras.
E, portanto, também tem a ver com as palavras o modo como nos
colocamos diante de nós mesmos, diante dos outros e diante do mundo em
que vivemos. E o modo como agimos em relação a tudo isso. (LARROSA,
2002, p. 21)

A língua, segundo Benveniste, é "o sistema ao qual os falantes de uma


comunidade estão expostos desde sempre” (FLORES; TEIXEIRA 2005, p. 34). Ela é
"concebida como sistema interpretante do sistema de valores culturais" (SILVA;
KNACK; JUCHEM, 2013, p. 4), dizendo do indivíduo e da sociedade. Para o autor,
"nada pode ser compreendido que não tenha sido reduzido à língua [...]. É graças a
este poder de transmutação da experiência em signos e de redução categorial que a
língua pode tomar por objeto qualquer ordem de dados e até a sua própria natureza"
(BENVENISTE,1974/1989, p. 99).
Partindo dessa perspectiva, Silva, Knack e Juchem (2013, p. 4) ressaltam que
língua e cultura também se apresentam como indissociáveis: a primeira se manifesta
quando convertida em discurso e se exibe como interpretante da sociedade; e a
segunda se manifesta no domínio semântico, porém carrega valores do domínio
semiótico por distinguir o que tem ou não tem sentido. Como é sempre colocando a
língua em ação que se produz o discurso e é pelo discurso que o homem comunica,
"não há relação direta entre homem e mundo nem entre homem e homem” (SILVA;
KNACK; JUCHEM, 2013, p. 11).
16

Assim, é por meio da linguagem que o homem consegue representar sua


relação com o mundo e, por conseguinte, dessa interação (seja dele com o mundo
ou com outro homem) é que a experiência que ele vive (o que cria sentido) “se
reatualiza pela articulação semiótico-semântica" (SILVA; KNACK; JUCHEM, 2013, p.
11).
Neste sentido, transmutar experiência em signos é nada menos do que viver
e, por meio da língua, armazenar e comunicar o que se vive. Isso faz com que se
siga vivendo e, por consequência, faz com que se siga encontrando novos sentidos
para que, constantemente, o homem atualize a língua em palavra, se instaure como
sujeito dela e signifique a experiência.

2.1.2 Homem, locutor e sujeito

Por mais que tenham uma distinção conceitual tênue, é fundamental


diferenciar homem, locutor e sujeito para entender o processo enunciativo e como se
dá a experiência pela linguagem.
Segundo Flores (2008), “homem” para Benveniste é o ser que está no mundo
pela linguagem na repetibilidade da língua. Em contribuição, a leitura de Ono (2007)
nos aclara que, ao se singularizar na repetibilidade da língua, o homem funda um
locutor. Esse locutor é quem atualiza a língua em palavra (BENVENISTE,
1966/1995); é quem une o semiótico e o semântico. O "[...] locutor é convidado a
falar e, consequentemente, se apropria da língua" (Benveniste, 1966/1995, p. 165).
No que concerne ao sujeito, Vier (2008) demonstra que, na Linguística de
Enunciação de Benveniste, não há "um estudo do sujeito tomado como entidade"
(VIER, 2008, p. 27), há um estudo das marcas do sujeito no enunciado. O principal
foco do teórico é a significação, pois ele "teoriza sobre a representação do sujeito na
língua e não sobre o sujeito em si” [grifo da autora] (VIER, 2008, p. 27) é "na
instância de discurso na qual eu designa o locutor e que este se enuncia como
'sujeito'" [grifo do autor] (Benveniste, 1966/1995, p. 288).
É a partir da representação do sujeito na língua é que podemos encontrar a
subjetividade e a intersubjetividade. Tendo a necessidade de significar a
experiência, o homem funda um locutor que se instaura como sujeito; este enuncia
de si de uma forma única e irrepetível e precisa de um outro para poder comunicar
17

esse sentido. Por essa razão, para significar, é preciso comunicar, pois assim eu
marco minha existência no mundo.

2.1.3 Comunicação e significação da experiência: (inter)subjetividade

Pensamento
Mesmo o fundamento singular do ser humano
De um momento
Para o outro
Poderá não mais fundar nem gregos nem baianos
Gilberto Gil

Tendo do pressuposto de que a linguagem não é um mero instrumento da


comunicação e de que o homem está para a linguagem assim como ela está para
ele, Benveniste, no artigo intitulado Da subjetividade na linguagem, afirma que

Não atingimos nunca o homem separado da linguagem então vemos nunca


inventando-a. Não atingimos jamais o homem reduzido a si mesmo e
procurando saber a existência do outro. É um homem falando que
encontramos no mundo, um homem falando com outro homem e a
linguagem ensina a própria definição de homem (BENVENISTE, 1995,
p. 285-286 [grifos meus])

Dessa forma, podemos afirmar que é na linguagem e pela língua que o


homem se instaura como “sujeito”, e a “subjetividade”, em resumo, nada mais é do
que a capacidade do locutor de propor-se como tal. Assim,

[A subjetividade] Define-se não pelo sentimento que cada um experimenta


de ser ele mesmo (esse sentimento, na medida em que podemos
considerá-lo, não é mais que um reflexo) mas como a unidade psíquica que
transcende a totalidade das experiências vividas que reúne, e que assegura
a permanência da consciência. Ora, essa "subjetividade" [...] não é mais que
a emergência no ser de uma propriedade fundamental da linguagem. É
"ego" que diz ego. Encontramos aí o fundamento da "subjetividade" que se
determina pelo status linguístico de "pessoa". (BENVENISTE, 1995, p. 286)

Dessa forma, a subjetividade abarca no discurso tudo o que o sujeito vive(u)


e, também, como ele se coloca no mundo pelo status linguístico de pessoa, já que
uma “língua sem expressão da pessoa é inconcebível” (BENVENISTE, 1995, p.
278). Essa “pessoa” não se refere a dos pronomes pessoais, mas sim a da “a
pessoa que enuncia a presente instância de discurso que contém eu. Instância única
por definição, e válida somente na sua unicidade” na condição de diálogo [grifo do
autor] (BENVENISTE, 1995, p. 278). Em outras palavras, a subjetividade seriam as
18

marcas do sujeito no discurso, pois tratar da linguagem sob o viés da linguística da


enunciação é também tratar da subjetividade.
A realidade desse eu que enuncia é da ordem do discurso. “É, portanto,
verdade ao pé da letra que o fundamento da subjetividade está no exercício da
língua” (BENVENISTE, 1995, p. 288). Ademais, para se instaurar como sujeito é
imprescindível a presença de um outro. A subjetividade desdobra-se da
intersubjetividade que nada mais é do que a “condição da presença humana na
linguagem na qual eu e outro se pressupõem mutuamente” [grifos do autor]
(FLORES, 2013, p. 124). Nesse sentido.

A referência do eu só vale por um tempo de discurso dado. Passado esse


limite, minha voz não é mais garantida. Quando o outro diz eu, não se trata
mais de mim. Ao contrário do que se possa pensar, não são meramente
informações que trocamos nesse vai-e-vem entre eu e tu. O que está em
jogo na comunicação intersubjetiva é uma troca de posição entre dois
protagonistas. Ocupar a posição eu no discurso é reconhecer-se um direito
no espaço simbólico, é assegurar-se da própria existência [grifos da autora]
(TEIXEIRA, 2006, p. 240).

Isso acontece pois o homem tem a necessidade de referir a experiência para


possibilitar ao outro conferi-la: "aquele que fala faz renascer pelo seu discurso o
acontecimento e a sua experiência do acontecimento. Aquele que ouve apreende
primeiro o discurso e, através desse discurso, o acontecimento reproduzido"
(BENVENISTE, 1995, p. 26). Assim, se dá o processo de co-referência, em que o
exercício da linguagem apresenta dupla função: o locutor representa a realidade e o
outro recria ela (SILVA; KNACK; JUCHEM, 2013, p. 3).
O locutor e o alocutário usam da língua para realizar essa troca, entretanto,
eles precisam estar inseridos na mesma cultura (ou um entender da do outro) para
que se entendam. Isso é justificado pelo fato de que “o signo não tem relação natural
com o que simboliza, é preciso que, para que um locutor tenha acesso à experiência
do outro, tenha se instaurado nos símbolos particulares à sociedade em que vive"
(SILVA; KNACK; JUCHEM, 2013, p. 3). Desse modo, funda-se uma dupla
experiência humana inscrita na relação intersubjetiva inerente à linguagem.

Isso faz da linguagem o princípio da comunicação intersubjetiva pela qual o


locutor expressa sua experiência com a "realidade", a sua realidade, uma
vez que é sempre dentro da língua e pela língua que homem e sociedade
se determinam mutuamente, e, assim, à medida que o homem fala/escreve,
aprende com a língua o mundo e a cultura (SILVA; KNACK; JUCHEM,
2013, p. 10.
19

Por conseguinte, a partir da intersubjetividade e da subjetividade, podemos


observar que o movimento de ocupar um espaço que tenha sentido no mundo e de
comunicar o que se vive nele é como se fosse uma egrégora discursiva que dá
sentido para o que somos, o que sabemos e o que vivemos. Como é pela língua que
comunicamos, acabamos organizando diversas formas desse comunicar. Nesse
sentido, sob o ponto de vista da experiência, a narrativa é o que mais se aproxima
do que se apresenta como uma possibilidade de compartilhamento de experiência
em discurso.

2.2 NARRATIVA COMO EXPERIÊNCIA

2.2.1 Atemporalidade do saber

Enquanto tivermos coragem de reviver todas as histórias pelas quais


passamos e pelas quais passaram nossos antepassados, estaremos dando
sentido ao nosso existir e reconheceremos que viver vale a pena.
Daniel Munduruku – As serpentes que roubaram a noite e outras histórias

Lima e Baptista (2013, p. 462), ao discorrerem de uma forma geral sobre a


obra do filósofo Walter Benjamin, apresentam o conceito de saber da experiência
como um conhecimento acumulado e transmitido entre gerações por meio de
histórias, parábolas ou provérbios. A tradição oral torna-o múltiplo, inexato,
irredutível e inédito. Esse saber constituía e fazia parte plenamente da história do
homem do passado (precedente ao homem moderno).
Segundo os autores, Benjamin defendia a ideia da permanência da juventude
como uma atitude espiritual em que um sujeito está sempre aberto para o novo, sem
estar fundado por autoridades de saberes que buscam sempre uma verdade exata e
racional. Dito de outro modo, para o filósofo, sempre precisamos olhar para cada
acontecimento que nos chega como algo que não conhecíamos para que isso passe
a nos habitar e a nos reinventar.
A forma de comunicação desses conteúdos espirituais é por meio da
linguagem, sendo esta a condição para a experiência (LIMA; BAPTISTA, 2013, p.
461). A “linguagem aparece como elemento estruturante tanto do conhecimento
quanto da experiência” (LIMA; BAPTISTA, 2013, p. 460). Assim sendo, a experiência
apresenta-se como “a uniforme e contínua multiplicidade do conhecimento”
20

(BENJAMIN, 2000, p. 108) cuja estruturação é linguística, sendo enraizada na


cultura popular.
Insertado no contexto das grandes Guerras e da industrialização da
sociedade, Benjamin se preocupou em anunciar que os acontecimentos históricos
da época geraram uma impossibilidade da capacidade de comunicar esses
conteúdos, tornando a experiência rara de acontecimento para os sujeitos modernos
e ocasionando o padecimento da sua identidade. Por haver um passado constituído
de vivências dolorosas, a sociedade moderna evita olhar para atrás e procura
conectar-se com pouco e com a ideia de seguir sempre em frente. A partir disso, há
um declínio da experiência e carece a essa sociedade confessá-lo para que assim
possa “se concentrar nas demandas de sua pobre experiência a fim de ter clareza
quanto aos limites e possibilidades” (LIMA; BAPTISTA, 2013, p. 461 apud
BENJAMIN, 1987, p. 119), possibilitando o decaimento dessa pobreza.
O saber da experiência faz-se necessário na constituição dos sujeitos, pois
diz do passado e do presente, projetando possibilidades para um futuro. Por essa
razão, ele é atemporal. Outrossim, sua atemporalidade também é constituída pelo
fato de ser um saber difundido oralmente. Esse conhecimento popular, do boca a
boca, exige a presença de um sujeito que o transmita: o narrador.

2.2.2 O sujeito que trabalha com a experiência

Eu creio no poder das palavras, na força das palavras, creio que fazemos
coisas com as palavras e, também, que as palavras fazem coisas conosco.
Jorge Larrosa

No texto “O narrador”, Benjamin (1994) estabelece uma associação entre


experiência e narração2. Nesse contexto, há a presença desse sujeito que trabalha
com a experiência e a transmite através do que narra. A sua história comunica
conhecimento útil para a vida (trans)formando o sujeito ouvinte. A narrativa tem essa
intenção de educar e apresentar solução de problemas pragmáticos, constituindo e
organizando a sabedoria popular. Ela proporciona esse encontro com a experiência
pois

O que se conta tem um caráter fácil, [...] fascinado pela simplicidade. A


narrativa congrega algo de pragmático, pois sua verdadeira essência

2 Série de experiências são transmitidas através da cultura oral


21

contém em si, oculta ou abertamente, um senso prático, uma dimensão


utilitária, um propósito definido (MEINERZ, 2008, p. 39).

Outra associação presente no texto é a relação entre experiência e viagem. O


narrador (síntese de mestre e sábio) é apresentado por meio de dois arquétipos
pilares com capacidade de trocar experiências:
a) Narrador sedentário: o agricultor, aquele que permanece em seu território e
dele se alimenta para narrar;
b) Narrador viajante: marinheiro, aquele que viaja se enriquece de histórias e de
experiências.
Ambos se constituem com histórias de outros fundidas com as suas, pois as
conhecem integralmente pôr as vivenciarem ou pôr as ouvirem de outros narradores.
Eles têm o dom do conselho, porque podem recorrer à própria vida relacionando a
sua experiência mais íntima com aquilo que aprendeu na tradição, tendo em vista
que “‘dar conselho’ significa muito menos responder a uma pergunta do que fazer
uma proposta sobre a continuidade de uma estória que neste instante está a se
desenrolar” (BENJAMIN, 1994, p. 200).
Dessa forma, o narrador trabalha com a experiência a partir de um processo
artesanal. Seja pela voz, pelo olhar, pelo movimento das mãos, pela forma de
contar, o narrador grava suas marcas na narrativa. Os próximos narradores também
o farão assim. E, por essa razão, é que a narrativa é um processo artesanal e
coletivo.

2.2.3 Processo artesanal e coletivo

Eu não tenho velhos livros como eles [os brancos], nos quais estão
desenhadas as histórias dos meus antepassados. As palavras dos xapiri
são gravadas no meu pensamento, no mais fundo de mim.
Davi Kopenawa – A queda do véu

A narração é um processo coletivo, é uma troca entre sujeitos. Um deles se


abre para compartilhar um saber e o outro se abre para recebê-lo. Essa abertura
paciente faz com que esse saber seja armazenado na memória, tenha espaço
dentro de cada sujeito. Isso acaba constituindo uma cultura, um modo de ser e de
existir. E, também, constitui o narrador, que sempre terá suas raízes nessa
coletividade, no seu povo (BENJAMIN, 1994, p. 241). Pois
22

Contar e ouvir histórias pressupõe a condição de entregar-se ao tédio do


ritmo com que a história é narrada, ao ritmo de um trabalho artesanal em
que, pacientemente, se esquece de si mesmo e se entrega ao processo de
fiar, tecer ou confeccionar objetos (MEINERZ, 2008, p. 41).

A narrativa é algo que exige tempo e paciência, “é a forma artesanal de


comunicação” (BENJAMIN, 1994, p. 205). Ela imerge “essa substância na vida do
narrador para, em seguida, retirá-la dele próprio”. Dessa forma, ela sempre terá as
marcas de quem a narra, da mesma forma que a mão do artista molda sua
escultura.
Nesse contexto, se instaura a associação entre memória e reprodução da
narrativa, sendo a primeira transmitida e preservada pelo exercício da segunda: o
“ouvinte desapaixonado interessa-se, antes de tudo, pela possibilidade de assegurar
para si a retransmissão daquilo que lhe contém. Sendo assim, a memória é, em
primeiro lugar, a capacidade épica” (BENJAMIN, 1994, p. 210). O que mantém
vinculado ouvinte e narrador nesse ofício é o interesse em conservar o que foi
narrado e, logo, o interesse de conservar a si mesmo e ao outro.
Apesar desse ofício possuir a qualidade de ser lento e coletivo, a
modernidade foi diluindo-o em premissas imediatistas e racionalistas

2.2.4 Declínio do ofício artesanal

Walter Benjamin estabelece ao romance e à informação a responsabilidade


do declínio da narrativa. “Escrever um romance significa chegar ao ponto máximo do
incomensurável na representação da vida humana” (BENJAMIN, 1994, p. 201). Por
ser longo, ele transforma a narrativa em um texto complexo e difícil de ser
reproduzido no boca a boca. O narrador do romance é um indivíduo solitário, com
um leitor solitário que, em sua ilha psíquica tem seu foco central no sentido da vida
que sempre acaba com sua morte, seja ela de um personagem, de um narrador ou
do próprio romance. Esse narrador fundado no ideal burguês introspectivo se
distancia das culturas populares e não procura transformar/educar o leitor.
Outrossim, Benjamin traz a figura do historiador e do jornalista como aqueles
que se preocupam em explicar a realidade com a racionalidade, sem as nuances
insinuosas da narrativa. Seu leitor é um ser em que a informação não se transforma
em conhecimento útil (não lhe transmite uma moral ou ensinamento) e tampouco se
armazena na memória, já que “quase nada mais do que acontece é abrangido pela
23

narrativa, e quase tudo pela informação. Pois a metade da habilidade de narrar


reside na capacidade de relatar a estória sem ilustrá-la com explicações”.
(BENJAMIN, 1994, p). E é aí que mora a necessidade da interpretação: a narrativa
envolve também a sua recriação e reprodução artesanal. Como a informação não
implica isso, o declínio desse ofício é cada vez mais intenso.
Visto que a modernidade implica o excesso de informação, de imediatismo e
de falta de experiência, torna-se necessário resgatar, dentro do que vivemos agora,
o que ainda possibilita o acontecimento da experiência. Nesse sentido, a leitura
entra em cena com um papel fundamental para que, neste mundo moderno, nós não
padeçamos pela falta de que algo nos aconteça.

2.3 LEITURA COMO EXPERIÊNCIA

Até o momento, nos preocupamos em entender como se dá a criação de


sentido a partir da experiência. Entretanto, não nos debruçamos tanto sobre o
conceito da própria e como, na atualidade, a partir da linguagem, podemos propiciar
espaços para que ela aconteça.

2.3.1 Isso que me passa

Em suas obras, Jorge Larrosa define a experiência como “isso que me


passa”. Para poder explicar melhor a frase, ele pontua três dimensões que
concebem a experiência: 1) exterioridade, alteridade, alienação; 2) reflexividade,
subjetividade, transformação; e 3) passagem, paixão.
A primeira dimensão trata do isso no “isso que me passa”. Ela “supõe [...] um
acontecimento ou [...] o passar de algo que não sou eu” [grifo do autor] (LARROSA,
2011, p. 5) que não depende de mim, que não é uma projeção de mim mesmo. É
algo exterior a mim, “[...] outra coisa do que aquilo que eu penso, do que eu
antecipo, do que eu posso, do que eu quero” (LARROSA, 2011, p. 5). A essa
dimensão, o autor atribui os conceitos de princípio de alteridade, de princípio de
exterioridade e de princípio de alienação, pela razão de que isso que me passa é
radicalmente exterior e oposto à minha existência.
A segunda dimensão trata do me no “isso que me passa”. Ela supõe que “o
lugar da experiência sou eu. É em mim [...] onde se dá a experiência, onde a
24

experiência tem lugar.” (LARROSA, 2011, p. 6). A ela o autor atribui o conceito do
princípio da reflexividade, pois experiência é um movimento de ida e volta. Um
movimento de

[...] ida porque supõe um movimento de exteriorização, [...] de movimento


que vai ao encontro com isso eu me passa, ao encontro do acontecimento.
E um movimento de volta porque a experiência supõe que o acontecimento
afeta a mim [grifos do autor] (LARROSA, 2011, p. 7).

Nesse sentido, posto em relação ao acontecimento, o sujeito da experiência


se exterioriza, se altera e se aliena (LARROSA, 2011, p. 7). Aí, entra o segundo
princípio dessa dimensão: experiência é sempre subjetiva, pois o lugar da
experiência é o sujeito que deixa que algo lhe passe, que é aberto/exposto e
sensível. Por conseguinte, ela é sempre única para cada um, impossibilitada de
repetir-se independentemente do espaço-tempo. E, por fim, no último princípio
dessa segunda dimensão, o sujeito se abre para a própria transformação, faz a
experiência sua própria transformação, sendo aí o instante em que a ideia de
experiência se relaciona com a ideia formação.
A última dimensão trata do ‘passa’ do “isso que me passa”. Ela entende a
experiência como passagem, percurso, viagem. Supõe “uma saída de si para outra
coisa” (LARROSA, 2011, p. 8). O sujeito da experiência aparece como um território
de passagem: “ao passar por mim deixa um vestígio, uma marca, um rastro, uma
ferida” (LARROSA, 2011, p. 8). Ele é entendido como alguém passional, paciente
desse algo que acontece. Por isso, se desenvolve a ideia de a “experiência não se
faz, mas se padece”.
Dessa forma, entender a experiência como “isso que me passa” não só nos
faz compreender como ela acontece, mas, também, os desdobramentos que ela
evoca. Um desses desdobramentos é o saber da experiência, uma vez que ele é um
modo que o mundo encontrou de nos mostrar a verdade sobre a vida.

2.3.2 A experiência é a voz da verdade

A experiência não é aquilo que nos passa e o modo como atribuímos


sentido a ele, senão como o modo pelo qual o mundo nos mostra sua face
inteligível, a série de regularidades a partir das quais podemos conhecer a
verdade das coisas e dominá-las (LARROSA, 2007, p. 138)
25

Afirmar que a experiência é a voz da verdade não diz respeito a existência de


uma verdade absoluta e imutável. Na realidade, diz respeito a forma que
compreendemos as coisas, a forma que se instauram sentidos em nós. A
experiência não é só “isso que me passa”, isso que é exterior a mim, que acontece
em mim por eu ser exposta ou que me (trans)forma; mas também é algo que gera
um saber que vai fazer com que eu seja quem sou. A resposta àquilo que me passa
é a relação que eu tenho com isso. E é essa relação que gera o saber da
experiência. Lendo Larrosa, podemos entende-lo da seguinte forma:

Durante séculos, o saber humano foi entendido como pathen máthos, como
uma aprendizagem seja pelo sofrimento, seja por aquilo pelo qual alguém
passa. Esse é o saber da experiência: o que se adquire pelo modo como se
vai respondendo àquilo que se passa ao longo da vida e o que vai
conformando o que alguém é (LARROSA, 2011, p. 137)

Para o autor, o saber da experiência é caracterizado pelo:


a) Saber finito “que revela ao homem singular sua própria finitude” (LARROSA,
2007, p. 137). Ele lembra do caminho a se seguir para chegar ao limite da
experiência ou, melhor dito, limite da vida, em que o homem alcança sua
plenitude total (a morte) e, logo, o sentido de tudo;
b) Saber particular, subjetivo e pessoal, em que ninguém possa viver a
experiência do outro sem revivê-la, reconstruí-la, ressignificá-la;
c) Saber “que não pode se separar do indivíduo concreto no qual se encarna”
(LARROSA, 2007, p. 138). Ao oposto do saber científico que está externo ao
indivíduo e não o transforma, o saber da experiência configura no indivíduo
um modo de se conduzir e um estilo de ser e existir;
d) Saber tem a ver com a vida boa que “ensina a viver humanamente e a
conseguir a excelência em todos os âmbitos da vida humana: no intelectual,
no moral, no político, no estético etc.” [grifos do autor] (LARROSA, 2007, p.
138).
Como descrito, esse saber está intrinsicamente relacionado com a (re)criação
de um conhecimento que tenha sentido para o sujeito. Ele consegue aplicá-lo em
sua vida e pode desenvolve-lo. O afastamento desse saber que a sociedade
moderna vem realizando só faz com que ele se torne cada vez mais raro, não
desenvolvendo um saber ativo com o poder de encarnar no sujeito e guiá-lo para
uma plenitude.
26

Em suma, o saber da experiência torna o mundo palatável, contribuindo para


a compreensão do que nos acontece e do que somos. Projetando esse saber para
algo pragmático, em suas obras, Larrosa nos apresenta a leitura em alusão a algo
que permite captar qual é a dimensão experiencial dessa prática.

2.3.3 Experiência por meio da leitura

Um livro deve ser um pico de gelo que rompa o mar congelado que temos
dentro.
Franz Kafka

Larrosa (2011), do ponto de vista da educação, abraça a concepção de que a


experiência da leitura é um ótimo exemplo que torna possível a visualização das
dimensões e do saber da experiência. Ele corrobora com a ideia de que é inevitável
ler um livro sem que a relação com essa leitura nos (trans)forme e nos ponha em
questão naquilo que somos. Para que o texto seja “isso” que nos aconteça, não
basta apenas saber decifrar códigos para compreender o que está sendo dito: é
necessário que, na minha relação com o texto, permeiem as dimensões da
experiência (exterioridade, alteridade e alienação; reflexividade, subjetividade e
transformação; passagem e paixão). Ou seja, é necessário que o texto seja algo que
eu não conheça, totalmente exterior a mim; é necessário que eu me abra e me
aventure para que esse texto totalmente desconhecido, perigoso, imprevisível e
inexato me atravesse e me transforme; e é necessário que, inevitavelmente, eu
padeça desse acontecimento, que dessa relação eu seja afetada, pois pensar “a
leitura como formação implica pensa-la como uma atividade que tem a ver com a
subjetividade do leitor; não só com o que o leitor sabe, mas também com aquilo que
ele é.” (LARROSA, 2007, p. 129).
Segundo o autor, o conhecimento moderno (ciência e tecnologia) vai em um
caminho antagônico ao seu precedente. Além de priorizar a racionalização e o
objetivismo, ele produz algo que não é imediatamente acessível. Há um grande
excesso de informação, mas elas apenas passam e não nos passam. “Vemos o
mundo diante dos nossos olhos e permanecemos exteriores, alheios, impassíveis”
(LARROSA, 2007, p. 132). Consumimos qualquer informação (seja arte ou não)
tratando de conseguir uma satisfação instantânea, um prazer imediato.
27

Consequentemente, esse tipo de conhecimento se separa da formação do sujeito


cognoscente.
Por ter a prerrogativa da ignorância, a leitura do conhecimento moderno “não
nos afeta, dado que transcorre num espaço-tempo separado: no ócio ou no instante
que precede o sono, nem o imaginário se misturam com a subjetividade que
comanda a realidade” (LARROSA, 2007, p. 130). Em função disso, a experiência da
leitura tem um papel formativo: ela consegue suprimir as fronteiras entre o
imaginário e o real, entre o conhecimento e o sujeito cognoscente. Ela torna essas
linhas imaginárias menos nítidas e conecta aquilo que somos com aquilo que nos
encontramos.
O ato de imaginar que a leitura convoca, reproduz e cocria conhecimentos se
dá, justamente, pela capacidade produtiva da linguagem (ver item 2.1). Já que

A imaginação entendida linguisticamente, não só tem uma relação


reprodutiva com a realidade dada [...], senão também, e sobretudo, uma
relação produtiva da linguagem [...]. A imaginação, assim como a
linguagem, produz realidade, a incrementa e a transforma (LARROSA,
2007, p. 131)

É por isso que pensar formação como leitura implica uma relação de
produção de sentido. E cada sentido que se produz é exclusivamente novo e
irrepetível: essa construção não pode ser planejada de modo técnico, não se pode
reduzir e tampouco se pode antecipar o seu resultado. Como já dissemos, a leitura
não se resume a compreender e decifrar e, se formos entender que tudo o que nos
passa pode ser considerado um texto, imprescindivelmente, temos que ter
capacidade de escuta e de prestar atenção, pois cada texto (situação na nossa
vida), tem muito a nos dizer.
Podemos também “imaginar”, dentro desse contexto, uma forma da vida
humana e se “a vida humana tem uma forma, ainda que seja fragmentária, ainda
que seja misteriosa, essa forma é a de uma narrativa: a vida humana se parece a
uma novela.” (LARROSA, 2007, p. 141). Mais atrevidamente, poderíamos “imaginar”
que há uma magia dentro dessa forma. E essa “magia” podemos chamar de
literatura. Daí, elevamos a leitura a outra instância: diferente dos textos jornalísticos,
a escrita/leitura literária envolve “suspender a segurança de todo código [linguístico],
levá-lo ao limite de si mesmo, e permitir a sua transgressão” (LARROSA, 2007, p.
145). Dessa forma,
28

A autocompreensão narrativa não se produz em uma relação não mediada


sobre si mesma, se não nessa gigantesca fonte borbulhante de histórias
que é a cultura e em relação à qual organizamos a nossa própria
experiência (o sentido daquilo que nos passa) e a nossa própria identidade
(o sentido de quem somos) (LARROSA, 2007, p. 145).

O código da palavra literária transcende a palavra em experiência. Ele

[...] está nessa palavra mesma e não fora dela, em uma espécie de
enroscamento da linguagem. E esse jogo, aberto e não finalizado,
indefinido, é o que faz com que a experiência da leitura possa ir mais
adiante da ‘leitura’ de um texto a partir do sistema formal em que está
construído.” (LARROSA, 2007, p. 145)

Por fim, experiência da leitura seria um movimento imaterial orgânico que


acontece dentro de nós e traz esse poder de (re/co)criar sentidos. Ela jamais
“[...]seria fazer com que o texto assegurasse seu sentido no mundo (nesse mundo
feito de coisas, ideias etc.), mas sim fazer com que o mundo suspenda por um
instante seu sentido e se abra a uma possibilidade de re-significação” (LARROSA,
2007, p. 145).

À vista disso, tanto na educação formal como na educação “da vida”, torna-se
cada vez mais pensar e abordar a leitura literária como (trans)formação e (re)criação
de sentido. Nesse seguimento, a literatura indígena, carregada de oralidade e de
saber ancestral, aparece como uma possibilidade de encontro isso que nos põe em
questão com aquilo que somos.

2.4 É PRECISO LER E RELER

É por causa da repetição constante dessas histórias que esse povo


[Munduruku] relembra seu sentido de existir e permanece atuante e lutando
pelo direito de viver. É assim que damos sentido e valor à nossa existência
(MUNDURUKU, 2001, p. 8).

Após entender que homem, língua e cultura estão inatamente relacionados;


que a linguagem e a língua possibilitam que exista uma ponte entre o mundo e o que
tem sentido; após entender que o que vivemos precisa ser comunicado a outro; que
comunicamos por meio de uma narrativa que nos (trans)forma; e que a leitura
aparece como uma forma moderna de ter acesso a narrativas e, logo, a
experiências, podemos afirmar que a literatura permite que o homem tenha acesso a
experiência do outro de uma forma única e subjetiva.
29

Em encontro a isso, Benjamin (1994, p.) muito bem nos explica que a
“experiência propicia ao narrador a matéria narrada. E, por sua vez, transforma-se
na experiência daqueles que ouvem a estória”. Dessa forma, quando um narrador
(locutor) ocupa a posição de “eu” no discurso (ou seja, quando narra), ele reconhece
a si mesmo um direito no espaço simbólico e se assegura da própria existência
(TEIXEIRA, 2006, p. 240).
Relacionar esse entendimento com a literatura indígena nos possibilita
indagar sobre uma experiência por meio da leitura dessas produções. Como os
povos originários possuem uma tradição oral coletiva, a “cada ato de contar, não é
apenas a narrativa em si que é repetida, mas também toda a tradição oral da [de
uma] comunidade é revivida” (SOUZA, 2006). Muito disso pode ser observado no
conteúdo dessa própria literatura como abaixo é demonstrado nas palavras do
yanomami Davi Kopenawa:

Eu não tenho velhos livros como eles [os brancos], nos quais estão
desenhadas as histórias dos meus antepassados. As palavras dos xapiri
são gravadas no meu pensamento, no mais fundo de mim. São palavras de
Omama. São muito antigas, mas os xamãs as renovam o tempo todo.
Desde sempre, elas vêm protegendo a floresta e seus habitantes. Agora é
minha vez de possuí-las. Mais tarde, elas entrarão na mente de meus filhos
e genros, e depois, na dos filhos e genros deles. Então será a vez deles de
fazê-las novas. Isso vai continuar pelos tempos afora, para sempre. Dessa
forma, elas jamais desaparecerão. Ficarão sempre no nosso pensamento,
mesmo que os brancos joguem fora as peles de papel deste livro em que
elas estão agora desenhadas. [...] Não poderão ser destruídas pela água ou
pelo fogo. [...] Muito tempo depois de eu já ter deixado de existir, elas
continuarão tão novas e fortes como agora [...]. Eu, um Yanomami, dou a
vocês, os brancos, esta pele de imagem que é minha. (KOPENAWA;
ALBERT, 2015, p. 65-66)

Como podemos ler, é da cultura dos Yanomami que a forma com que eles se
relacionam com o mundo seja literária, seja narrativa e esteja atemporalmente
presente aqui-agora, sempre sendo recriada e continuando, em alusão às palavras
de Kopenawa, “tão novas e fortes como agora”.
Outrossim, Larrosa (2011, p. 9), ao comentar sobre a leitura como
experiência, ressalta a importância da presença da relação que temos com o texto
lido. Texto este que funciona como algo que nos acontece. Nesse sentido, levando
em consideração as dimensões da experiência (ver item 2.3.1), o “texto tem que ter
algo de incompreensível para mim, algo de ilegível. De todo modo, o decisivo, [...]
não é qual livro, mas o que nos passa com a sua leitura” (LARROSA, 2011, p. 9).
Tendo em vista isso, podemos considerar as palavras abaixo de Daniel Munduruku,
30

escritas no prefácio do livro “As serpentes que roubaram a noite e outras histórias”,
como um exemplo da forma que temos que relacionar com essas narrativas:

Não são histórias muito fáceis de compreender, não. E não são fáceis
porque elas ocorreram em um tempo em que o tempo ainda não existia. [...]
Mas existe uma maneira de compreender os mitos [...]: é preciso ler e ouvir
os mitos não com os ouvidos que ficam na cabeça, pois eles costumam nos
enganar, mas com os ouvidos que existem lá no fundo do coração – o
ouvido da Memória. O conhecimento que cai nesse ouvido adormece, fica lá
escondidinho, e, depois, quando a gente menos espera, ele surge de novo
(MUNDURUKU, 2001, p. 7-8).

Assim como Larrosa (2011, p. 9) defende que o leitor que lê “A Metamorfose”,


de Kafka, e não fica impávido quando se olha no espelho é um leitor que não fez
nenhuma experiência; aqui defendo que o leitor que lê literatura de autoria indígena
e não se questiona sobre si mesmo é um leitor, em alusão às palavras do autor,
analfabeto. O texto de autoria indígena, por estar carregado de cultura, nos exige
tempo e atenção de leitura, nos exige sair de nós mesmos e questionar o que tem
ou não sentido. Apenas assim, poderemos entende-lo. Por isso, Daniel Mundukuru
diz que “não são histórias muito fáceis” e que temos que ouvi-las “com os ouvidos
que existem lá no fundo do coração”. Em suma, por ser necessário ler e reler esses
textos, cabe aqui abordar o conceito de ruminação proposto pelo filósofo alemão
Friedrich Nietzsche.

2.4.1 O ilegível para nós: ruminação como relação da leitura

Vier (2016), ao realizar um estudo semiológico da escrita de Benveniste no


Dossiê Baudelaire, traz em cena o texto ilegível. Por Benveniste não ser uma leitura
linear e fácil, a autora evoca o conceito de ruminação, cunhado por Nietzsche, para
poder argumentar que os manuscritos podem, sim, ser um objeto de estudo.
Afirmação esta podemos observar no seguinte excerto: "não é porque não há um
texto legível que o DB deixe de trazer precioso material sobre a teoria enunciativa de
Benveniste" (VIER, 2016, p. 79).
Nesse sentido, o que é importante, nessa tese, é a “ideia de que a escrita ali
presente coloca-se como um espaço para a inscrição do pensamento, que, no
momento em que é colocado no papel, tem lugar" (p. 77). Lugar este como um
território para que a escrita seja ressignificada por meio da leitura, já que "[...]toda
escrita comporta algo do inacabado e por isso de uma linguagem que serve para
31

viver" (p. 81). À vista disso, inspirada em Vier (2016, p. 80), também proponho, a
partir da leitura da escrita de autoria indígena, “re-dirigir nosso olhar para a
linguagem poética via linguística".
Isso posto, trago a escrita do filósofo Nietzsche que, em suas obras (2004,
2009), nos apresenta a premissa de leitura como arte, corroborando com as ideias
de Jorge Larrosa de que a leitura deve ser lenta, contra o movimento imediatista do
deglutir que a sociedade moderna promove. Por essa razão, “é imprescindível ser
quase como uma vaca e não um "homem moderno" [grifo do autor] (NIETZSCHE,
2009, p.14).
Usar a metáfora sobre a digestão do animal muito nos cabe nesta monografia
para poder reflexionar sobre a experiência, visto que, para o autor, o leitor do seu
texto precisa compreender o segredo de ler entrelinhas. E essa ideia vai de encontro
ao que Walter Benjamin (2000) promove de que a narrativa não deve ser lógica nem
explicativa. E, também, de que ela é passada de geração em geração o que, por sua
vez, faz com que ela carregue a sabedoria da vida e um conhecimento complexo.
Afinal, como aponta Nietzsche (2004, p. 46-47), se o leitor de seu texto "[...]quer
colher no chão os frutos que gerações inteiras podiam somente obter, é preciso
então temer que ele não tenha compreendido o autor".
Por conseguinte, a premissa de ruminação aqui colocada supõe que o

O imediatismo não produz sentido em ciência: pesquisar não é colher


informações no texto. Um texto [...] não serve para dar respostas: é preciso,
pois, aprender a pensar enquanto se lê, ou seja, não vir com pressupostos
para a pesquisa, mas deixar o texto significar (VIER, 2016, p. 81)

A partir do exercício dessa propriedade bovina, nosso olhar investigativo não


se direciona para buscar respostas, mas percursos/caminhos para essa viagem de
encontro com a experiência. Assim, "é preciso deixar a escrita do texto ocupar seu
lugar e (re)significar seu dizer a partir do outro. A ruminação, então, é possibilidade
de leitura de uma pesquisa em enunciação" (VIER, 2016, p. 81). Dito de outro modo,
a ruminação também se apresenta como uma relação necessária com o texto para
que ele seja isso que nos acontece (ver item 2.3.3).
32

3 CAMINHO METODOLÓGICO

A metodologia do estudo que aqui disserto é entendida como uma preparação


para a viagem ao desconhecido: a leitura do mito. Em primeiro momento, trato de
contextualizar o objeto de viagem (análise). Em seguida, a partir da leitura de
Benveniste (1969/1989), abordo o que o autor estabelece como relação de
interpretância. Por fim, trago a ruminação como inspiração para encontrar os fatos
enunciativos do estudo.

3.1 O QUE NOS ATINGE: “NÓS” EM NÓS

O objeto de análise deste trabalho de conclusão é a escrita do mito “WUHU


SIRUBU, PENEIRA DE ARUMÔ, de Jaime Diakara. Em outros termos, em alusão
ao que Vier (2016, p. 83) propôs, não é o mito em si alfabeticamente registrado, mas
sim a enunciação dele, o fato de um indígena haver escrito uma narrativa da sua
cultura para não indígenas, visando a valorização e ressignificação do entendimento
que o seu leitor tem sobre essa narrativa e sobre a população originária do nosso
país (SOUZA, 2006).
O mito compõe o livro intitulado “Nós: uma antologia de literatura indígena”.
Direcionado ao público infanto-juvenil, a obra que reúne dez histórias escritas por
doze autores indígenas foi publicada no ano de 2019 e é organizada e ilustrada por
Mauricio Negro. As narrativas que o compõem são: “Amor Originário”, de Aline
Ngrentabare L. Kayapó e Edson Kayapó (Povo Mebengôkré kayapó); “Hariporia, a
origem do açaí” de Thiago Hakiy (Povo Saterê-mawé); “Guarũguá, o peixe-boi dos
maraguá”, de Yaguarê Yamã e Lia Minápoty (Povo Maraguá); “Yawareté Açu, o
jabuti e a onça pintada”, de Rosi Waikhon (Povo Pirá-tapuya waíkhana); “Jibikí
Porikopô, o furto da panela de barro”, de Ariabo Kezo (Povo Balatiponé Umutina);
“Wató, a pedra do fogo”, de Cristino Wapichana (Povo Taurepang); “Wʉhʉ Siburu,
peneira de arumã”, de Jaime Diakara (Povo Timuko Masá Desana); “Os raios
luminosos”, de Jera Poty Mirim (Povo Guarani Mbyá); “Pokrane e Kren, por que não
havia gêmeos entre os Krenak”, de Ailton Krenak (Povo Krenak); “Kaudyly
Umenobyry, nos primórdios dos tempos”, de Estevão Carlos Taukane (Povo Kurâ-
bakairi).
33

Cada história conta um pouco sobre a cosmovisão e a cultura de cada um dos


povos. Em alusão ao nome do livro, Negro (2019, p. 9) comenta que esses autores
são “legítimos herdeiros de diferentes etnias, [...] [que] oferecem uma oportunidade
de desatar alguns desses ‘nós’” construídos no passar dos séculos pelo discurso
eurocêntrico que invisibilizou as narrativas dos povos nativos.
Nesse rumo, a obra desperta na pessoa que a lê a necessidade de renunciar
o que se conhece e o que se é para negar o eurocentrismo e, a partir dessa
negação, procurar identificar o que tem sentido para ela, o que permite mergulhar na
sua própria cultura que foi abdicada por causa dos “nós” eurocêntricos. Assim, ela
vai de encontro ao que não entende para que a leitura lhe aconteça.

3.2 ENCONTRO COM AQUILO QUE TORNA E RETORNA

A escrita do mito “WUHU SIRUBU, PENEIRA DE ARUMÔ foi escolhida como


objeto de análise deste estudo pelo fato de que, entre todas as narrativas do livro,
essa se apresenta com mais características ruminantes. Dito isso, me inspiro em
Vier (2016) para poder estruturar o percurso metodológico deste trabalho.
A autora (2016, p. 83-84) entende por escrita ruminante "uma escrita que
torna e retorna com certa insistência a alguns termos e procedimentos e que aponta
para a nota como lugar para a formação do pensamento teórico". Nessa perspectiva,
reconhecemos a escrita como um sistema semiológico diferente da língua, pois o
que lemos na escrita é sempre discurso: “escrita é a representação da língua e não
a própria língua” (VIER, 2016, p. 84). Sobre isso, Benveniste (2014, p. 149) explica
que "[a] grafia não permite o acesso direto à língua", pois ela é um sistema não
linguístico. Dessa forma, para pesquisar a escrita, é mandatório acessar a língua.
Por conseguinte, a análise é estruturada na relação entre dois sistemas (um
linguístico e um não linguístico) e, para isso, é necessário pensar os dois princípios
que Benveniste (1969/1989) determina para essas relações:
a) O primeiro é de que "[n]ão há 'sinonímia' entre sistemas semióticos; [ou seja]
não se pode 'dizer a mesma coisa' pela fala e pela música [, por exemplo]"
(BENVENISTE 1969/1989, p. 53). Tendo em vista uma relação semiótica, não
se pode converter fala em música, já que suas unidades e funcionamentos
são discrepantes (VIER, 2016, p. 85);
34

b) O segundo é de que "[o] valor de um signo se define somente no sistema que


o integra" (BENVENISTE, 1969/1989, p. 54). Tomando o exemplo da palavra
“sol”, no sistema semiológico da música é uma nota e no da língua é o astro
rei/estrela. E um não tem relação com o outro.
Diante desses dois princípios,

decorrem duas exigências metodológicas para relacionar sistemas distintos:


a relação entre sistemas semióticos precisa ela mesma ser de natureza
semiótica e a relação entre sistemas semióticos será colocada a partir de
um sistema interpretante e outro interpretado. (FLORES, 2013 apud VIER,
2016, p. 85)

A partir disso, cabe, nesta investigação, usar a relação entre sistemas de


natureza de interpretância que, segundo Benveniste (1969/1989, 2014), é uma
relação que se estabelece entre um sistema interpretante e um sistema interpretado.
De todo modo, vale ressaltar que, dentro dessa relação, "a língua é o interpretante
de todos os sistemas semiológicos. [Pois] A língua comporta ao mesmo tempo a
significância dos signos e a significância da enunciação" (BENVENISTE, 1969/1989
apud Vier, 2016, p. 86). Assim, aqui, nos interessa as relações de interpretância que
se tem ao ler o que está escrito.
Estabelecida a categoria usada para a determinação do corpus de análise (o
que não entendemos), resta agora falar sobre como será feita a escolha e a análise
dele.

3.3 TRAJETO PARA A CONSTITUIÇÃO DO CORPUS DE ANÁLISE

Vier (2016, p. 87), em sua tese, nos demonstra que "cada objeto de estudo
estabelece problemas específicos”. Isso acontece, pois, não só a escrita se
singulariza a cada leitura, mas, também, o pesquisador também o faz ao realizar a
análise. Por conseguinte, a autora, em referência a Flores (2001), afirma que não
encontramos dados no objeto de estudo e, sim, fatos. "[...] [P]orque realmente não
se trata de algo 'dado' enquanto evidência, mas do produto de um construto teórico"
(FLORES, 2001, p. 59).
Assim sendo, a partir dos termos e procedimentos que tornam e retornam no
mito, os fatos enunciativos que encontrarei funcionarão como corpus de análise
deste estudo. Nesse sentido, esse tornar e retornar “funciona como categoria de
35

análise na medida em que é pela insistência enunciativa [...] que serão


estabelecidos os fatos para análise" (VIER, 2016, p. 87).
Em concernenimento à determinação das etapas de análise, buscarei, na
escrita do mito, os termos e procedimentos ruminantes para realizar, inspirada em
Vier (2016, p. 88), o seguinte trajeto:
a) Observar, a partir dos traços da escrita, como os termos e os
procedimentos tornam e retornam;
b) Derivar dessa observação uma reflexão;
c) Evidenciar de que forma essa reflexão se coloca como um encontro
com a experiência.

Em seguida, trato de narrar o a experiência de análise da leitura do mito.


36

4 ANÁLISE DOS FATOS ENUNCIATIVOS

Este capítulo apresenta a interpretância dos fatos enunciativos encontrados a


partir da leitura da escrita do mito, levando em consideração os passos
apresentados no capítulo 3. No princípio, trato dos termos “cuia de ipadu”, "lago de
nuvens em forma de caverna", "colunas", "bastões" e "peneira de arumã". Depois,
faço uma reflexão sobre a relação deles com os pilares referenciais expostos.
Por fim, vale ressaltar que o que busco aqui fazer não é uma explicação do
mito. No texto, reside uma narrativa e, logo, reside algo inexato, imprevisível, alheio
a mim que passará a me habitar e me transformar. Dessa forma, não posso prever
nenhum resultado, pois explicar o mito é praticamente impossível. O que, sim, busco
fazer é estabelecer uma relação de interpretância entre o enunciado e a minha
leitura, verificando como o enunciado me habita e é ressignificado por mim.

4.1 CAMINHOS, PORTAS E CHAVES

O mito “Wʉhʉ Siburu: Peneira de Arumã” começa com a descrição de um


momento em que um velho indígena se junta com crianças em frente à uma maloca
para contar uma história sagrada. Na primeira página, há uma ilustração (Figura 1)
de como o velho se prepara para poder narrar a história. Ele está sentado com um
bastão e uma cuia na mão. A partir do desenho, pude interpretar como acontece a
preparação do narrador para a narração.
37

Figura 1: Velho indígena narrando o mito “Wʉhʉ Siburu: Peneira de Arumã”

Fonte: NEGRO, 2019, p. 80.


Seguindo a leitura (tanto da escrita quanto da imagem), os primeiros termos
que me chamaram a atenção, ou seja, que tornam e retornam foram a “cuia de
ipadu” e a “cuia”. Abaixo, segue quadro que organiza e nomeia cada trecho em que
o termo torna e retorna:

Quadro 1: Trechos em que os termos “cuia de ipadu” e “cuia” aparecem

Trecho 1 (T1) Trecho 2 (T2) Trecho 3 (T3) Trecho 4 (T4) Trecho 5 (T5)
“Primeiro ele se “Com uma cuia, “Ao redor, “- Umuri Ñeku “Como já falei,
sentou no banco, BAFOROU AS flutuavam sete tinha cansado da no princípio eram
com um bastão BOCHECHAS cuias de vida, solidão. Logo só nuvens,
cerimonial na mão conforme o que piscavam na teve a ideia de colunas, cuias de
direita, uma forquilha cerimonial de escuridão” transformar as vida e escuridão”
de cigarro ritual e um mastigar ipadu” (DIAKARA, vidas que (DIAKARA,
suporte de cuia de [grifo do autor] 2019, p. 82) flutuavam nas 2019, p. 82).
IPADU. [...] (DIAKARA, 2019, sete cuias do
Concentradíssimo no p. 81) Umusi Dihtaru, o
corpo e na alma, lago das nuvens,
respirou fundo antes em seres iguais
de beber da cuia a ele, e os
ancestral e começar chamaria de
a narrativa” [grifo do Umuri Mahsa:
autor] (DIAKARA, Gente do
2019, p. 81). Universo.”
(DIAKARA,
2019, p. 82).

Fonte: Elaborado pela autora


38

Quando penso no significado da palavra “cuia” na minha cultura, a entendo


como um objeto que é o fruto da cuieira. Desse fruto é removida a polpa e é feita a
secagem para que possa ser usado para tomar chimarrão. Entretanto, olhando para
a imagem e lendo os trechos acima citados, percebi que o uso dessa cuia não era
esse. Isso vai em encontro ao que Larrosa (2007, p. 145) disserta sobre a
linguagem literária possibilitar que o sentido de uma palavra seja ressignificado.
Nesse sentido, a partir da leitura do estudo etnográfico de Lolli (2014, p. 283), pude
ressignificar esse termo lendo o seguinte trecho:

Nas narrativas míticas, a gênese dos benzimentos se confunde com a


gênese do universo, na medida em que são processos intricados. Nas
histórias sobre as gêneses primordiais, os benzimentos aparecem
associados ao ipadu, à cuia de ipadu, ao tabaco, à forquilha do tabaco, ao
banco, ao bastão etc. - conhecidos em seu conjunto como instrumentos de
vida e transformação. A gênese do universo acontece através da mistura
destes instrumentos. Tudo que é engendrado nesta fase aparece sob a
condição de pessoa.

Ou seja, para os Desana, a “cuia” é um instrumento sagrado que os conecta


com o divino, que compõe os seus rituais e a sua tradição. Fato esse, também, pode
ser evidenciado a partir da leitura de Azevedo (2019):

Quando se reúne em certa ocasião, seja em grande poose (dabucuri) ou no


tardar do dia, o especialista se senta no kumuro (banco) e passa o paâtu
waharo (cuia de ipadu) aos seus cunhados, genros e outros que se
encontram naquela ocasião do ritual ou do tardar do dia. Nesse instante, se
conecta com o Umukohoñeku (Avô do Universo) para ele se sentir perto e
aberto, pronto para interação dos conhecimentos no paâtu baânaĩse (círculo
noturno de coca).

Então, para esse povo, a narrativa não só e composta por elementos da


oralidade da língua, mas, também, por instrumentos simbólicos. A partir da citação
acima, podemos imaginar o mesmo evento que Walter Benjamin (1994, p. 241)
descreve sobre a narrativa ser um processo artesanal, coletivo e lento; sobre, nela,
haver dois parceiros no seu acontecimento (narrador e ouvinte); e sobre a
constituição da memória e identidade.
Compreendido isso, retomo ao termo “cuia” dentro da concepção na minha
cultura e o relaciono com a roda de chimarrão, com o que acontece quando
tomamos chimarrão em grupo: contamos histórias, conversamos, damos conselhos
e fortalecemos vínculos. Com isso, passei a olhar esse ritual cultural de outra forma.
39

Regressando ao T1 e indo para o T2, vejo a cuia como um instrumento que


conecta não só o velho e as crianças com o Avô do Universo, mas, também, com a
criação da vida e de sua transformação. Vida essa não só como o nascimento de
alguém, mas como qualquer acontecimento.
No T3, saio desse contexto da cuia material, que, inclusive, seguramos em
nossas mãos, e vou para o contexto imaterial. Ao descrever o mundo antes da
criação da Terra, a cuia entra para um coletivo que cuias que são “da vida” e, com o
advindo do T4, o Avô do Universo as transforma em sereis iguais a ele, a Gente do
Universo.
Mais uma vez, mesmo que de forma imaterial, as cuias são relacionadas ao
emprego de gerar vida e transformação. Tanto que, antes de falar da mudança das
cuias em Gente, o autor escreve “Assim era o mundo antes da formação da Terra e
da transformação da humanidade” (DIAKARA, 2019, p. 82). Ou seja, a “essência” da
humanidade já existia antes dela existir com essa forma de “Gente”: ela era cuia e
passou a ser Gente. Por conseguinte, no T5, o autor retoma a importância desse
entendimento com o termo “Como já falei”, o que me leva a ressignificar, novamente,
o termo cuia: ela não só conecta com o plano sagrado, mas também possibilita a
existência do povo.
No texto “Gaapi, a bebida cósmica dos Desana (Um ensaio desenhístico)”,
Diakara (2018), ao fazer um ensaio sobre sua dissertação que abordou o Gaapi1,
descreve um pouco mais do significado da cuia para o seu povo, falando sobre um
ritual de passagem que tem o intuito de proteger o corpo:

Os Ʉmʉkori Mahsu Gaahpidari [gaapi utilizados em rituais de passagem da


adolescência] estão sempre associados a duas cuias, a de cima representa
Abe [o Sol] e todo o processo de sabedoria, acessado pelos kumuã
[conhecedores]. No seu rosto estão os grafismos que representam a luz e a
força: as linhas gráficas com cores diferentes que saem dessa cuia em
direção a cuia de baixo são a energia de gaapi mahsu [gente do gaapi],
dando força para os três povos indígenas, representados na cuia de baixo,
onde estão os elementos representativos de cada um deles: o banco dos
Pamʉrĩ Mahsa (Tukano) , a forquilha com o cigarro dos Ʉmʉrĩ Mahsa
(Desana), e o suporte dos Yukʉdʉka Mahsa (Tuiuka). (DIAKARA, 2018)

Jaime Diakara representa a descrição da citação acima a partir da ilustração


da Figura 2, que compõe a sua dissertação de mestrado.
Figura 2: Ʉmʉkorĩ gaapida (Gaapi do dia), que representa Abe (sol)

1Que segundo ele é um elemento fundamental para acesso aos conhecimentos sobre o nosso
mundo e outros mundos.
40

Fonte: DIAKARA, 2008, p. 40


As cuias, nesse sentido, conectam os povos da família linguística Tukano com
Abe (o sol, a força divina da criação). Na cuia superior, habita a própria força, e, na
inferior, a “Gente”. Pelos grafismos, a “gente do gaapi” envia a força vital para os
povos.
Dessa forma, depois ler esse ensaio e essa imagem, retorno ao mito, mais
precisamente no T4, e consigo reestabelecer a relação de interpretância do termo
“cuia”: foi graças a essa imagem que o significado que vem em seguida na frase “E
terão a mesma capacidade de criar e multiplicar” (DIAKARA, 2019, p. 82) me habitou
com uma profundidade maior.
O termo “cuia” tem um sentido que não cabe dentro da palavra e transcende
qualquer interpretação rasa e simples que possamos vir a ter. Para que eu criasse
significado, foi necessário usar de outro sistema semiótico. Benveniste (1969/1989,
p. 53) justifica isso no primeiro princípio da relação de interpretância, dizendo que
não há sinonímia entre dois sistemas semióticos. Como consequência disso, apesar
41

de haver uma pequena relação da cuia que conheço com a cuia dos Desana, não
posso pensar a cuia como a do chimarrão, ela não abarca o significado da cuia no
sistema semiótico dos Desana. Logo, pude perceber que a cuia é a chave para a
conexão, criação e transformação da vida.
Em seguida do termo “cuia”, vem o termo “ipadu”. Essa palavra, em primeiro
momento, aparece destacada, pois é usada na cultura dos indígenas do alto
Amazonas. O destaque dela me direcionou a uma consulta para que entendesse
sua definição. De acordo com o glossário do livro, ipadu é um “arbusto da família
das eritroxiláceas, muito semelhante à coca, com propriedades anestésicas,
cultivado pelos caboclos e indígenas do alto Amazonas” (NEGRO, 2019, p. 87). Eis
aí o próximo movimento: o termo “ipadu” torna e direciona para a definição do
glossário e, depois, retorno para o texto. Após, surge o segundo movimento:
relaciono o ipadu com a cuia.
Dessa forma, entendo que o ipadu é uma erva sagrada usada para gerar vida
e transformação. Ao encontro disso, uma cuia de ipadu benze tanto o narrador
quanto os ouvintes para o encontro com algo maior. Afirmo isso, pois o estudo de
Lolli (2014, p. 283) citado anteriormente descreve esse acontecimento como
benzimento. E, segundo o dicionário Caldas Aulete, benzer é o ato de “1. Dar a
bênção a, invocar graça divina para (algo ou alguém), inclusive si mesmo”2.
Assim, ao tornar e retornar, o termo “cuia de ipadu” parece evocar o sentido
de uma chave que leva ao caminho de encontro com o sagrado, com o ancestral e,
logo, com os próprios desana. Para existir uma chave, é necessário existir uma
porta. A porta separa os dois mundos (Terra e sagrado/espiritual), mas não os
desconecta. Entretanto, não é ela quem faz a conexão entre eles. Quem a faz é a
chave e quem a usa, pois, para usá-la, é necessária uma ação. E essa ação é abrir-
se. E é abrir a porta que está dentro da própria pessoa. O movimento é para dentro,
por isso, a ação é “abrir-se a porta”. Esse movimento se relaciona muito com o “isso
que me acontece” de Larrosa (2011). Por isso que, ao interpretar esse termo,
entendo que a “cuia de ipadu” leva ao caminho da experiência.
A seguir, trago não só um termo, mas estruturas frasais que tornam e
retornam para poder falar sobre a criação da Terra que sustenta a vida, que sustenta
a Gente do Universo.

2 BENZER. In: Dicionário Caudas Aulete. [Lexikon Editora Digital]. Disponível em


https://aulete.com.br/benzer. Acesso em: 3 jun 2021.
42

4.2 GÊNESIS

Depois da preparação para o ritual, o velho desana começa a narrar a criação


da Terra. Em primeiro instante, ele fala como era o mundo antes dessa criação.
No Quadro 2 abaixo, pude observar, mais precisamente, o momento em que
esses trechos aparecem:

Quadro 2: trechos sobre a criação da Terra


Trecho 6 (T6) Trecho 7 (T7)
“Antigamente existia somente esse ser iluminado “Como já falei, no princípio
[Umuri Ñeku, o Avô do Universo] na escuridão. eram só nuvens, colunas, cuias
Umuri Ñeku apareceu por si próprio. Naquela de vida e escuridão. Faltavam
época havia um lago de nuvens em forma de a terra, as águas, as matas, os
caverna e as faces de quatro colunas de cores rios, os animais, os peixes. Por
diferentes: vermelho amarelo, azul e verde. Nesse isso, antes de criar outros
lago havia uma coluna central brilhante, com as seres, a primeira coisa a fazer
quatro cores misturadas. Nela não se podia era a terra onde se pudesse
encostar. Ao redor flutuavam sete cuias de vida, morar. A Terra que antes não
que piscavam na escuridão. Assim era o mundo havia [...]” (DIAKARA, 2019, p.
antes da formação da Terra [...]” (DIAKARA, 2019, 82).
p. 82)

Fonte: Elaborado pela autora


Em primeiro momento, quando li o T6, percebi que é complexo abstrair para
imaginar o que é descrito. Tentei desenhar, ler, reler e ler mais uma vez. Foi apenas
após ler o ensaio e a dissertação de Diakara (2008) que consegui visualizar o que
aparece no T6. Isso aconteceu, pois pude ter contato com a Figura 3: a partir dela,
consegui estabelecer relações com o que estava sendo lido na escrita e no desenho
abaixo:
Figura 3: Dinâmica do ʉmũsĩ Pahtoro de Abe e Bʉhpo - antes da origem do
mundo
43

FONTE: DIAKARA, 2008, p. 26


Pude ver perfeitamente as cuias, as colunas, as cores, o lago, as nuvens e
pude interpretar como se dá a conexão do enunciado escrito com o ilustrado. Dessa
forma, mais uma vez, foi necessário acessar outro sistema semiótico para
estabelecer relações de interpretância. Após isso, percebi que, no T6 e no T7, os
termos “nuvens”, “colunas” e “cuias” tornavam e retornavam.
Como demonstrei no item 4.1, as cuias são as chaves de conexão,
transformação e criação de vida e que o Avô do Universo as transformou em Gente
do Universo. Inspirada nisso, passei a olhar para “nuvens”, “colunas” e “Terra” da
mesma forma que olhei para “cuias”. Pelo fato de mitos terem como característica a
presença de um simbolismo, tive que recorrer a um Dicionário de Símbolos para
poder seguir o caminho de interpretância.
44

Ao buscar sobre a simbologia da palavra “nuvem”3, encontrei que esse termo


“[...] simboliza uma divisão que separa dois mundos cósmicos. Como produtora da
chuva, a nuvem tem uma relação com a manifestação celeste, simbolizando o devir
de metamorfoses”.
Fiz o mesmo com o termo “lago” e o Dicionário de Símbolos4 indica que ele:

[...] é um símbolo feminino, muitas vezes o lar de monstros e magia,


poderes místicos, especialmente em tempos egípcios. Lago, como a água,
pode ser o doador da fertilidade. Além disso, ele pode representar a
transição da vida, morte e ressurreição.

Outra vez, retorno ao mito e volto a pensar o “lago de nuvens em forma de


caverna” (DIAKARA, 2019, p. 82). Adentrando a esse simbolismo e a relação dele
com a Figura 3, pude ressignificar o “lago de nuvens”.
A partir do que traz o dicionário, pude entender esse lago como um espaço
místico e sagrado, que abriga fertilidade e poder de criação. Por ser de nuvens, ele
separa os mundos cósmicos e simboliza o devir da transformação. Dessa forma,
esse espaço é o que possibilita o Avô do Universo criar a terra e transformar as
cuias em Gente do Universo (T4).
Olhando para a Figura 3 e lendo o T6, é possível perceber que as colunas
coloridas que alimentam cada cuia estão conectadas a coluna central que é descrita
como a que ninguém pode tocar. De acordo com o ensaio de Diakara (2018), esse
pilar representa o Abe (Sol), por isso era o mais brilhante e ninguém chegava perto.
Além disso, o indígena ainda pontua:

[...] Essas cuias representavam a fonte de vida e a força dos seres


humanos. O líquido derretido do breu caia na forma de linhas e se juntavam
dentro das cuias. Esse evento significava a reconstrução da vida de Abe, e
o breu derretido simbolizava a sua força essencial. (DIAKARA, 2018).

Retornando ao mito, interpretei que antes de se transformar em Gente, os


seres de vida, nessa outra forma, já eram alimentados vitalmente por Abe e que

3 NUVEM. In: Dicionário de Símbolos. Disponível em


https://www.dicionariodesimbolos.com.br/nuvem/. Acesso em 8 jun 2021.
4 LAGO. In: Dicionário de Símbolos. Disponível em https://www.dicionariodesimbolos.com.br/lago/.

Acesso em 8 jun 2021.


45

essa alimentação voltava dos seres para ele, gerando uma egrégora da
transformação e da (re)criação5.
Dentro desse mesmo contexto, aparece o termo “coluna” que, segundo o site
Infopédia6, possui a seguinte simbologia:

A coluna, como um elemento da arquitetura e da construção, é um símbolo


de suporte e de força, mas também de eixo ou centro do mundo. A coluna
imita e simboliza ainda a Árvore da Vida e, por arrastamento, é também
uma representação da fecundidade, da ligação da Terra com o Céu e da
harmonia do mundo. [...]
Nas culturas antigas da Península Ibérica, as colunas eram uma espécie
de linguagem abstrata e mágica. Esta noção leva-nos à trilogia de coluna-
árvore-linguagem secreta de Baudelaire: ‘A natureza é um templo onde
pilares vivos libertam por vezes palavras confusas por onde o homem
passa, entre as florestas de símbolos.’ [grifo do autor].

Ela é, então, mais um elemento que conecta os mundos e conecta as


energias. Em alusão às palavras de Baudelaire na citação acima, os “pilares vivos
libertam por vezes palavras confusas”, ou seja, no caso do mito, as colunas
conectam a energia de Abe às cuias. Essas palavras confusas se instauram nos
serves de vida, sendo (re)significadas, por isso, também alimentam o Abe. Em
contribuição a essa ideia, por remeter, também, a fecundidade, elas evocam um
sentido de como se elas fossem um cordão umbilical do devir da grande criação do
Avô do Universo, a Terra.
Assim, ao tornar e retornar, esse trecho suscita o sentido de que, antes do
mundo existir7, ele já existia, mas de outra forma. A transformação dele acontece a
partir de um parto cósmico. Por conter simbolismo de transformação, divisão entre
mundos e fecundidade, o lago de nuvens é como se fosse o útero da Terra; e as
colunas os cordões umbilicais que carregam a energia vital para os seres de vida
(compreensão que ainda desenvolveremos com mais detalhes).
Em seguida, iremos para a parte em que o velho conta sobre a próxima ação
do Umuri Ñeku.

5 Isso é uma informação necessária para poder ter mais dimensões de sentido na leitura do último
parágrafo do mito que depois tratarei.
6COLUNA. In: Infopédia. Disponível em https://www.infopedia.pt/$coluna-(simbologia). Acesso em: 7

jun 2021.
7 Referência ao título “Antes o mundo não existia” do livro de mitologia dos antigos Desana narrado

pelos indígenas Umusi Pãrõkimu e Tõrãmu Kehíri.


46

4.2.1 Base da formação Terra

Em um segundo momento da narração sobre a criação da Terra, o velho


passa a detalhar como o Avô do Universo a fez. Em primeiro lugar, ele se preocupa
com a base. Isso podemos ver nos seguintes trechos:

Quadro 3: trechos sobre a base da Terra


Trecho 8 (T8) Trecho 9 (T9)
“Primeiro, preparou os seus “Umuri Ñeku cruzou os dois bastões lança
instrumentos. Seriam eles as chocalho e os arremessou no espaço. Eles
bases para a criação da Terra. formaram a base da terra. E o Avô do Universo os
Confeccionou então dois abençoou: ‘Esses bastões é que vão sustentar a
bastões, quatro peneiras de terra. Um será osso de mulher. O outro, osso de
ARUMÃ e a esteira de PARIS homem. Dos bastões nascerão os seus filhos, que
de zarabatana” (DIAKARA, crescerão nesta terra que não terá fim” (DIAKARA,
2019, p. 83). 2019, p. 83).

Fonte: Elaborado pela autora


No T8, “as bases para a criação da Terra” são entendias como instrumentos
sagrados, de uma forma mais geral de formação. Entretanto, no T9, o termo “base” é
ressignificado e o termo “bastão” ocupa seu espaço para ter o sentido de base
principal da estrutura da Terra. Eis aí, um novo movimento de tornar e retornar: base
se transforma em bastão e, semanticamente falando, o “bastão” abre uma margem
de conexão com o termo “colunas”.
Nesse sentido, pude conectar a simbologia de coluna com bastão: são o que
dão suporte para a ligação com o espiritual. Em seguida, o velho descreve que o
Avô do Universo arremessou os dois bastões no espaço, dizendo que são eles que
irão sustentar a terra e que um é osso de mulher e o outro osso de homem. Os
bastões, então, são o que sustentam a terra de forma dual.
A ideia do “osso” me remeteu a estrutura corporal, pois os ossos são o que
dão firmeza ao corpo. E, se for pensar qual estrutura óssea é a principal por dar
essa firmeza, penso na coluna vertebral (outra conexão com o termo “coluna”).
47

A coluna vertebral8 é o eixo central do corpo e também constitui um


importante eixo de comunicação entre o sistema nervoso central e o sistema
nervoso periférico. O sistema nervoso central é o centro de processamento de
informações do nosso corpo, ele recebe e interpreta estímulos. O sistema nervoso
periférico é responsável por transmitir as informações dos órgãos sensoriais para o
sistema nervoso central9. Nesse sentido, pensar o bastão como coluna vertebral da
terra, remete, novamente, ao cordão umbilical de transmissão da energia vital de
Abe e também do seu próprio conhecimento, já que a sua energia contém
informação sagrada de criação e transformação.
Além disso, no T9, o velho fala: “Dos bastões nascerão os seus filhos, que
crescerão nesta terra que não terá fim” (DIAKARA, 2019, p. 83). Nesse sentido,
pude interpretar que, da mesma forma que Umuri Ñeku criou a Gente do Universo e
a Terra, elas, por terem as “mesma[s] capacidade[s] de criar e multiplicar”
(DIAKARA, 2019, p.82) que o Avô do Universo têm, a partir dessa base, darão
seguimento ao trabalho de Umuri Ñeku, proporcionando a harmonia do mundo.
Assim, ao tornar e retornar, o termo “bastão” evoca o sentido de ser a base
principal da terra que conecta a Terra com o mundo celestial.
No próximo item, tratarei do termo que dá título ao conto.

4.2.2 Peneira de arumã

Finalmente, chegamos ao termo que dá nome ao mito “peneira de arumã”. A


partir da organização do Quadro 4 abaixo, percebi que ele é o que mais torna e
retorna no texto:

8 COLUNA VERTEBRAL. In: Toda Matéria. Disponível em https://www.todamateria.com.br/coluna-


vertebral/#:~:text=A%20coluna%20vertebral%20ou%20espinha,canal%20medular%20da%20coluna
%20vertebral. Acesso em: 10 jun 2021.
9 SISTEMA NERVOSO. In: Toda Matéria. Disponível em
https://brasilescola.uol.com.br/biologia/sistema-nervoso.htm. Acesso em: 10 jun 2021.
48

Quadro 4: trechos em que o termo “peneira de arumã” aparece.


Trecho 10 Trecho 11 Trecho 12 (T12) Trecho 13 Trecho 14 Trecho 15
(T10) (T11) (T13) (T14) (T15)
“Primeiro, “- Logo depois, “Então, Umuri “Pegou em “- Umuri Ñeku “Finalmente
preparou os Umuri Ñeku Ñeku cobriu a seguida uma pegou uma apanhou
seus jogou uma primeira peneira de peneira de uma peneira
instrumentos. peneira de peneira com a arumã de água arumã de de arumã de
Seriam eles arumã de sapo outra de arumã e a jogou massa de fartura, fez
as bases para em cima dos de cobra. E da sobre as mandioca e a uma nova
a criação da bastões mesma forma a outras duas, lançou sobre bênção e a
Terra. cruzados e benzeu: ‘Esta assim as demais, jogou por
Confeccionou dessa maneira peneira de abençoando: abendiçoando: cima das
então dois a benzeu, arumã de cobra ‘Esta peneira ‘Esta peneira outras: ‘Esta
bastões, enquanto a formará a de arumã de de massa de peneira de
quatro girava: ‘Esta segunda água vai gerar mandioca vai arumã de
peneiras de peneira de camada da os rios e os gerar as frutas fartura será
ARUMÃ [...].” arumã de sapo terra. É ela que lagos para a do mato. É ela também
(DIAKARA, formará a vai gerar a Gente do que vai terra. Porque
2019, p. 83). primeira Umuri Mahsa. É Universo, para garantir ela vai dar
camada da ela que vai que tenham comida e alimento e
terra. É ela que gerar a Gente bebida e saúde saúdes saúde
vai gerar a do Universo. para sempre’.” infinitas para a eternos a
Gente do Esta peneira (DIAKARA, Gente do Umuri
Universo. Essa será o ar puro, 2019, p. 84). Universo’. Mahsa”
peneira será o a carne, o osso, Assim se
ar puro, a o sangue e a formou a
carne, o osso, saúde da Gente quarta
o sangue e a do Universo. O camada da
saúde da leite e o mel, terra”
Gente do que nunca (DIAKARA,
Universo. O terão 2019, p. 84).
leite e o mel, fim’”(DIAKARA,
que nunca 2019, p. 83).
terão fim’”
(DIAKARA,
2019, p. 83).

Fonte: Elaborado pela autora


No T10, a palavra “arumã” aparece destacada para direcionar o leitor ao
glossário que a define como “espécie de cana de colmo liso e reto, da família das
matantáceas, que cresce em regiões semialagadas. Também conhecida pelos
povos indígenas por guarimã, é empregada na cestaria” (NEGRO, 2019, p. 87).
Além disso, na parte do livro em que o povo Desana é descrito, me deparo com a
seguinte informação: “Os Desana são especialistas em certos tipos de cestos
trançados, como os apás, balaios com aros internos de cipó, e os cumatás, usados
para peneirar a mandioca” (NEGRO, 2019, p. 86).
Lido isso e levando em consideração a forma que o povo tem de lidar com
instrumentos (vide item 4.1), logo pensei que a peneira de arumã tem um significado
simbólico para os Desana, já que ela se relaciona com a cestaria que diz da maneira
deles de se relacionar com a natureza.
49

A partir disso, fui, então, buscar o significado da palavra “peneira” no


dicionário. Encontrei que ela é um instrumento que “serve para deixar passar as
substâncias reduzidas a pequenos fragmentos [...]”10. Ou seja, peneirar envolve um
processo de separação de componentes de uma mistura.
Lendo do T11 ao T15, percebi que Umuri Ñeku usa cada uma das peneiras
para formar as camadas de terra da Terra. Nesse sentido, entendendo-as como “um
símbolo de separação, seleção, crítica ou crivo pelo qual se deve passar”11,
remetendo a um movimento de escolha, consegui relacionar a categorização de
cada peneira12 com suas funções para poder interpretar que isso foi resultado da
reflexão que o Avô do Universo teve para poder criar a Terra de acordo com as
necessidades da Gente do Universo13.
Entretanto, era difícil para mim visualizar uma Terra feita de peneiras. Fui,
então, buscar no Google imagens das peneiras de arumã dos desanas para ver se
algo me ocorria e, no final, encontrei a Figura 4:

Figura 4: Peneiras de arumã desana

Fonte: Peneiras de arumã ... (2021)

10 PENEIRA. In: Dicio – Dicionário Online de Português. Disponível em


https://www.dicio.com.br/peneira/. Acess em: 8 jun 2021.
11 PENEIRA. In: Significado dos símbolos. Disponível em
https://www.significadodossimbolos.com.br/busca.do?simbolo=Peneira. Acess em: 9 jun 2021.
12 Peneira de arumã de sapo, de cobra, de água, de mandioca e de fartura.
13 “Umuri Ñeku refletiu bastante sobre como fazer a Terra como ainda não era. E botou o plano em

prática” (DIAKARA, 2019, p. 83).


50

A presença dos grafismos nas peneiras de arumã me chamou a atenção e,


como já havia visto grafismos como símbolo de conexão com o sagrado na Figura 2,
fui buscar a simbologia deles para os povos originários.
Silva (2015, p. 22), indígena Guaraní, ao falar sobre a simbologia dos
grafismos, afirma que:

A importância da forma associada à ergonomia da natureza vem sendo


aperfeiçoada a cada ano após ano. Esses artefatos [grafismos] têm a
função de integrar a beleza ao sagrado. Símbolos, que foram sagrados para
nossos ancestrais, nunca serão modificados, apenas está sendo recriada ou
reproduzida. [...]
A simbologia inserida no grafismo e no artefato, não só transmite a tradição
que vem sendo passado de geração em geração, como também de
comunicar a comunidade envolvente través de uma mensagem simbólica.
[...]
O grafismo não é apenas para representar algo do objeto fisicamente, ou
seja, uma simples decoração vai muito, (sic) além disso. Eles têm a função
de informar às pessoas que não conhecem a sua história cultural, religiosa,
ritos e mitos. Ao trançarem os cestos, os guarani, transformam o elemento
morte em elemento vida. Ao conferirem a esses cestos uma utilização
sagrada, eles estão devolvendo a vida sua pureza original. Eles estão
elevando a morte à dimensão da vida.

Assim, tanto o artesanato indígena, quanto os grafismos que estão nele


representados são uma forma que esses povos encontram para perpetuar
mensagens simbólicas que suas divindades emitem. A palha, que era uma planta
viva e morreu, retorna à vida como uma peneira, um instrumento sagrado, que
carrega a ancestralidade do povo.
Ao ler a Figura 4 e a citação de Silva, lembrei de algo que eu conheço: as
mandalas, que são formas que representam a harmonia do cosmos e a energia
divina. Com base nisso, interpretei as peneiras da Figura 4 são como mandalas para
os Desana. Relacionando isso com o que o dicionário traz sobre peneira, vi que, na
história, a peneira não só separa a Terra em camadas, tendo cada uma sua função,
mas, também, conecta a Terra e os seres de vida à rede cósmica do Universo.
Não obstante, as palavras ainda não me bastaram para conseguir ter maior
dimensão das peneiras e dessa Terra que o Avô do Universo fazia. Por essa razão,
fiz o seguinte desenho, a partir da leitura do T11 ao T15:
51

Figura 5: desenho que demonstra minha depreensão da estrutura da Terra

Fonte: Elaborada pela autora


Depois de desenhar a Figura 5 e olhar para ela, na mesma hora, me lembrei
da imagem do DNA, representado na Figura 6:
52

Figura 6: Representação do DNA.

Fonte: DNA ... (2021)


Com a Figura 5 e a Figura 6, consegui traçar um paralelo entre a molécula de
DNA (elemento que carrega instruções genéticas que coordenam o desenvolvimento
e funcionamento de todos os seres vivos e que transmite as características
hereditárias de cada um deles) e a Terra que estava sendo criada.
À vista disso, por tornar e retornar, pude interpretar que o termo “peneira de
arumã” evoca o sentido de algo que contém o DNA cósmico necessário para a
criação do mundo. Por essa razão, a terra, em alusão às palavras do mito, “não terá
fim”. Por essa razão, a peneira de arumã é um instrumento de transformação e
criação em que passam as substâncias transformadas em pequenos fragmentos que
darão à Gente do Universo tudo o que é necessário para viver.
Em seguida, tratarei de estabelecer conexões entre todos os termos e o
referencial teórico que abordei no item 2, Pilares da experiência.

4.3 PENEIRANDO NÓS

Em último movimento, cabe, neste subcapítulo, olhar para todos os termos


em direção à última parte do mito: depois de empilhar as peneiras em cima dos
bastões, de cobrir essa estrutura com a esteira de paris e de benzê-la como um
todo, surge Yebá Buró, que torna possível o aparecimento das Gentes do Universo
na Terra. Depois disso, aparece o fechamento, com seguinte trecho:
53

Os jovens compreenderam como tudo se formou. E o motivo por que


quando escavamos o solo várias camadas se revelam, que são justamente
as peneiras utilizadas por Umuri Ñeku para formar a terra. O velho desana
arrematou:
- Na natureza tudo é indissociável. Uma árvore é um ser humano. Suas
folhas são cabelos. Os galhos são braços. Raízes, pés. Por sua vez, a terra
é a carne do corpo. É pelos rios irrigada, como as veias que fazem nosso
sangue correr. Quando morremos, nosso corpo é devolvido à Mãe Terra,
retorna às origens. O mito desana é ciência indígena, sabedoria vivenciada.
E a terra, crianças, é o reflexo do céu. (DIAKARA, 2019, p. 85).

Levando em consideração que o acontecimento da criação da Terra e da


Gente do Universo envolveu a cuia de ipadu, o lago de nuvens e colunas, os
bastões e as peneiras, apreendi que a citação acima fecha a escrita do mito com um
ensinamento de grandes dimensões.
A criação do planeta onde habito, na cosmovisão dos Desana, envolveu um
processo simbólico que, até então, eu jamais poderia sentir ou entender. Quando li o
mito pela primeira vez, achei ele algo totalmente diferente de tudo o que eu já havia
lido. Como comentei anteriormente, tive que lê-lo e relê-lo várias vezes. Mas, mesmo
achando-o complexo, esse final me marcou muito. Assim, eu queria encontrar o
sentido do que estava escrito.
A partir do que apreendi dos termos tratados nos itens anteriores, consegui
relacionar as camadas da terra que vejo com as peneiras quando cavo chão e,
também, consegui depreender o que torna a terra um reflexo do céu.
Percebi que, para os Desana, a terra, a natureza e os seres de vida são
compostos por esses simbolismos que têm o saber da vida. E isso é visto dentro ou
fora de cada um de nós; dentro ou fora das coisas da natureza e da própria Terra, já
que todos a compomos. Tudo no Universo, por compartilhar da mesma força vital,
compartilha o mesmo DNA. Assim, “a terra é reflexo do céu”. Assim, interpreto que a
ergonomia cósmica está inscrita em todas as coisas.
Dessa forma, resta aqui voltar para os termos e identificar, teoricamente, os
movimentos que realizei para chegar a essa ideia.

4.3.1 Palavra (des)emaranhada

Dentro da relação de interpretância entre a escrita e a leitura do conto, pude


olhar para ele de duas formas: a primeira é o evento narrativo que acontece no mito
54

e a segunda é a relação de interpretância estabelecida, ou seja, a leitura dele como


experiência.
Diakara escreve sobre um evento de narração, em que o velho desana é o
narrador e a sua narrativa transmite grandes ensinamentos às crianças da aldeia.
Isso vai de encontro ao que Benjamin (1994) disserta sobre a narrativa pertencer às
camadas populares da sociedade e sobre o narrador usar ter suas raízes nessas
camadas. Nesse sentido, a sabedoria ancestral desana é de onde o velho colhe
conhecimento para compartilhar. E, ao reatualizá-la, ele faz a semeadura para que
outros possam colhe-la no futuro. Por ser passada de geração para geração14, da
mesma forma que Benjamin defende, o velho convida seus ouvintes para “gravar na
memória” o que ouvirão para que a história permaneça viva.
Outro aspecto importante dessa narrativa o de que é por ela que o
conhecimento sagrado encontra o caminho para ganhar espaço na narração, e, por
conseguinte, no discurso. Assim, o enunciado que será emitido pelo velho narrador
(locutor) está carregado com o saber da experiência que, seguindo o que aponta
Larrosa (2007, p. 137-138), possibilita aos ouvintes o conhecimento da verdade das
coisas, a dominação delas, bem como a possibilidade de reconstruir/ressignificar
esse conhecimento e também alcançar uma a plenitude. Nesse sentido, entre o
locutor e o ouvinte, se instaura uma relação de (inter)subjetividade (BENVENISTE,
1995) em que a existência de quem narra e dos ancestrais que já narraram é
assegurada e ganha espaço, ocupa um lugar neste mundo e é ressignificada e
perpetuada por quem ouve.
Ademais, na relação de interpretância, há um aspecto muito presente que nos
leva a significação: o simbolismo, principalmente na peneira. O ato de relacionar a
peneira com as mandalas me vez consultar um livro que já estava empoeirado na
minha prateleira: “MANDALAS”, de Rüdiger Dahlke (2000). Nele, o autor fala que
mandalas são encontradas em todas as culturas e seres humanos. Além disso, ele
fala sobre o caminho que elas nos fazem traçar para o centro de nós mesmos.
Dahlke, da mesma forma que os povos originários, defende que é aí que mora o
conhecimento divino e que esse nos guia na caminhada da vida.

14 “Gravem na memória esta história sagrada. Porque um dia serão vocês a contar para os seus
filhos. E depois, seus filhos contarão para os seus netos. E a história vai vingar de geração em
geração, porque é parte do nosso corpo material e espiritual [...]” (DIAKARA, 2019, p. 81-82)
55

Em determinado momento do livro, Dahlke trata do paradoxo da linguagem.


Esse conceito aponta à necessidade da (re)criação de sentido a partir do símbolo
(semiótica), e não da palavra. Isso me remeteu, imediatamente, ao que Silva (2015)
fala em seu trabalho sobre os grafismos.
Abaixo segue o trecho que trata do paradoxo:

O uno, o centro da mandala, foge a toda representação intelectual, e vive,


contudo, dentro de todos nós. Não poderemos encontra-lo com a ajuda da
nossa vontade e do nosso intelecto, embora os dois participem do processo
e do caminho, nele adquirindo sentido e função [...], só que infelizmente não
são suficientes. Nossa linguagem, que é, sobretudo, quase sempre a
expressão do nosso pensamento, não facilita o caminho para o centro, para
o essencial; ao contrário, parece que ela nos distancia [...]. Desse modo,
contudo, ela ao mesmo tempo nos ajuda, pois quanto mais longe nos leva,
mais ela nos aproxima (DAHLKE, 2000, p. 13).

Esse paradoxo se dá pelo fato de que, com os simbolismos que venho


demonstrando neste estudo, não posso pensar apenas na palavra. Há outros
sentidos semióticos que as imagens evocam para que o significado dela aconteça.
Benveniste explica isso justificando que a “linguagem é o mais econômico dos
simbolismos. Ao contrário de outros sistemas representativos, não exige nenhum
esforço corporal, não impõe manipulação laboriosa” (BENVENISTE, 2005, p. 30). E
ele ainda pontua:

A linguagem, porém, é realmente o que há de mais paradoxal no mundo, e


infelizes daqueles que o não veem. Quanto mais nos adiantarmos, mais
sentiremos esse contraste entre a unicidade como categoria da nossa
percepção dos objetos e dualidade cujo modelo a linguagem impõe à nossa
reflexão. Quanto mais penetrarmos no mecanismo da significação, melhor
veremos que as coisas não significam em razão do seu serem-isso
substancial, mas em virtude de traços formais que as distinguem das outras
coisas da mesma classe que nos cumpre destacar. [grifo do autor]
(BENVENISTE, 2005, p. 45).

Da mesma forma que Dahlke, Benveniste defende que a linguagem nos


aproxima e nos afasta do sentido, “da verdade do mundo”. Assim, é do contraste dos
seus elementos composicionais que a linguagem produz o significado. Lembremos
que não há sinonímia entre dois sistemas semióticos. Nesse sentido, para poder
trabalhar com a leitura como experiência, o acesso a mais de um sistema semiótico
é imprescindível.
À vista disso, como já dizia Larrosa (2007, p. 131), o texto literário permite
que imaginemos e isso está relacionado à nossa capacidade de poder reconstruir a
56

realidade de acordo com o sentido que damos para ela. Fato que vai de encontro ao
que Benveniste promove sobre (inter)subjetividade: a linguagem é dupla uma
experiência humana em que locutor e alocutário co-re-criam o sentido da vida
singularmente a todo momento. Dessa forma, a leitura como experiência desse
conto implica transcender a palavra, suspender o significado dela e atualizá-lo a
partir do que vivemos (da nossa experiência). Por isso que, por exemplo, quando
interpretei o termo cuia, disse que nunca mais verei a roda de chimarrão da mesma
forma.
Outrossim, por conter a palavra emaranhada, a literatura e a arte (aplicando
esse conceito aos grafismos que os indígenas fazem) nos possibilitam contatos com
os símbolos podem nos guiar de modo direto ao saber da experiência.
Benjamin (1994) já dizia que o saber da narrativa está nas entrelinhas, nada é
explicado, calculado ou previsto. Larrosa (2002), ao encontro disso, ainda ressalta
que a leitura não é uma decifração de códigos. Ela é o que consegue suprimir as
fronteiras entre o conhecimento e o sujeito cognoscente, conectando aquilo que
somos com aquilo que encontramos: a experiência. Sendo assim, retorno as
palavras de Vier (2016, p. 81) que dizem que um texto não serve para dar respostas,
mas, sim, caminhos de encontro ao sentido.
Por fim, voltando ao livro de Dahlke sobre mandalas e símbolos,
compreendemos que

o símbolo sempre contém tudo, ou seja, os dois lados da polaridade. [...] Em


outros termos, o símbolo não exclui, mas inclui, e não impõe limites, tal
como as palavras e os números. Desse modo, jamais poderá satisfazer o
intelecto [...]. O símbolo abrange o paradoxo e, por isso, é mais verdadeiro
que qualquer outra coisa no mundo [...] (DAHLKE, 2000, p. 14).

Dessa forma, ler o mito com os olhos voltados para a racionalidade não trará
nenhum sentido.
No próximo item, apresento as considerações finais sobre o que essa
interpretância me evocou.
57

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Se eu quiser falar com Deus


Tenho que ficar a sós
Tenho que apagar a luz
Tenho que calar a voz
Tenho que encontrar a paz
Tenho que folgar os nós
Dos sapatos, da gravata
Dos desejos, dos receios
Tenho que esquecer a data
Tenho que perder a conta
Tenho que ter mãos vazias
Ter a alma e o corpo nus
Se eu quiser falar com Deus
Tenho que aceitar a dor
Tenho que comer o pão
Que o diabo amassou
Tenho que virar um cão
Tenho que lamber o chão
Dos palácios, dos castelos
Suntuosos do meu sonho
Tenho que me ver tristonho
Tenho que me achar medonho
E apesar de um mal tamanho
Alegrar meu coração
Se eu quiser falar com Deus
Tenho que me aventurar
Tenho que subir aos céus
Sem cordas pra segurar
Tenho que dizer adeus
Dar as costas, caminhar
Decidido, pela estrada
Que ao findar, vai dar em nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Do que eu pensava encontrar
Gilberto Gil – Se eu quiser falar com Deus

Começo o último capítulo desde estudo com essa canção de Gilberto Gil e
proponho a relação dela com o título desta monografia: “Quando a gente lê de
coração aberto a magia acontece”.
Quando me matriculei na cadeira de TCC I, tinha uma ideia totalmente
diferente do que aqui pude desenvolver. Eu queria, de certa forma, buscar nas
palavras o sentido do que os indígenas dizem. Sempre as vi com grande
profundidade, entretanto, sentia que faltava algo.
Por forças maiores, decidi dar um hiato de 1 ano entre o TCC I e o TCC II.
Nesta pausa, muito aconteceu e voltei ao texto com outros olhos. Uma das coisas
que aconteceu foi o meu desejo de voltar a ser professora (houve um momento do
58

curso que eu havia desistido disso) outra coisa que aconteceu foi que eu, finalmente,
me abri para a literatura.
Durante o curso todo, sempre tive dificuldade com as cadeiras que diziam
respeito a ela, chegando até a dizer que eu a odiava. Depois de respirar fundo, fazer
terapia e perder um pouco da minha rigidez, fui para a cadeira de TCC II com outra
proposta. A profª Drª Sabrina, minha orientadora, me direcionou para as leituras que
aqui abordei e elas acabaram me levando ao encontro do mito que aqui interpretei.
Trago isso para poder afirmar que desde o primeiro momento, essa escrita se
demonstrou para mim como uma experiência, eu só não sabia aonde iria chegar.
Por essa razão, que trago Gilberto Gil para falar, com essa forma tão mágica, o que
fui capaz de sentir e viver desenvolvendo este estudo. Abrir-me para o que aqui
estava prestes a acontecer exigiu que eu estivesse, em alusão às palavras do
artista, decidida “pela estrada que ao findar, vai dar em nada do que eu pensava
encontrar”. E, realmente, quem começou querendo olhar para palavra e, agora,
escreve que sobre o não olhar apenas para ela chegou em um lugar que JAMAIS
pensou que iria encontrar.
Quando questionei “o que as relações de interpretância e experiência que a
leitura do mito indígena podem evocar?”, logo, imaginei a transformação. Entretanto,
fui muito além disso.
Estabelecer relações de interprêtancia e realizar a leitura do mito sob o viés
da experiência me mostrou que é necessário, no momento da leitura, desapegar da
escrita. E esse desapegar não é simplesmente jogar as palavras do texto fora, como
se não tivessem valor. Mas, sim, permitir que a escrita torne e retorne em diferentes
sistemas semióticos. Cada termo aqui abordado serviu para mostrar que uma
palavra que carrega traços multissemióticos (em função de que na sua cultura ela foi
instaurada dessa forma e de que ela foi, também, posta de forma literária) implica,
diretamente, uma leitura multissemiótica. Em função da linguagem ser paradoxal, e
da língua ser interpretante de todos os sistemas, a palavra carrega essa
característica de sempre ser atualizada a cada momento que é referida.
Dessa forma, posso, categoricamente, afirmar que linguagem é experiência
humana pois não há nada mais humano do que ser e não ser ao mesmo tempo, do
que singularizar-se em cada momento da existência. Assim, ler sob o viés da
experiência faz com que, depois da leitura, nunca mais consigamos ser os mesmos.
59

Nós damos adeus ao que éramos e damos espaço para o que somos. E isso é o
devir constante de nós mesmos.
Esse é um porto forte deste estudo, mas, também um ponto fraco. Por
trabalhar com relações de interpretância e de experiência e por entender que a
linguagem é paradoxal, a singularização desta pesquisa faz com que ela seja
humana e, logo, indeterminada. O que aqui se lê é uma possibilidade de tantas
outras que o mito poderia evocar de sentido. Durante a leitura, encontrei alguns
outros termos que tornavam e retornavam, mas decidi não abordá-los. Há, também,
outros elementos sobre a mitologia dos Desana que acabei não citando. Isso pode
gerar algumas interrogações ou algumas interpretações não tão completas como a
que tive e, talvez, não tenham cabido nas palavras que aqui escrevo.
Por essa razão, em estudos futuros, seria necessário dar conta desses outros
termos e conhecimentos culturais que vão poder reatualizar a interpretação aqui
narrada. Outra possibilidade seria pensar como levar o que aqui reflexiono para a
sala de aula de uma forma didática. Pois, cada vez mais que mergulho na literatura,
penso que minha prática docente deve se direcionar para esse caminho: o da leitura
como experiência.
Por fim, a partir da afirmação anterior, questiono quem me lê a pensar sobre a
transformação que passei depois de realizar o estudo e a graduação: para quem
antes dizia que não seria professora e que não gostava de literatura passar a dizer
que é professora de literatura, muita experiência aconteceu, não? Assim, desejo que
cada vez mais nós possamos nos flexibilizar para que a magia vida nos aconteça,
tanto nos desenvolvimentos pessoais, quanto na prática docente.
60

REFERÊNCIAS

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Cadernos do NEAI: Escritos dos alunos e pesquisadores do Núcleo de Estudos da
Amazônia Indígena. Manaus, 28 out. 2019. Disponível em:
https://cadernosdoneai.wordpress.com/2019/10/28/paatu-po-da-memoria-do-
yepamahsa-por-suegu-dagoberto-lima-azevedo/. Acesso em: 25 mai 2021.

BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov.


Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São
Paulo: Brasiliense, 1994, p. 197-221.

BENVENISTE, É. [1967] A forma e sentido na linguagem. In: _______. [1974]


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ANEXO A – O MITO “PENEIRA DE ARUMÔ (DIAKARA, 2019, P. 81-89)


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