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De Charadas e Advinhas

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DE CHARADAS E

ADIVINHAS:
O CONTINUUM do
CONTAR EM
ANGELA LAGO
ROSEMARIE GIUDILLI CORDIOLI
DE CHARADAS E ADIVINHAS:
o CONTINUUM DO CONTAR
DE
ANGELA LAGO
Dissertao de Mestrado
apresentada ao Departamento de
Letras Clssicas e Vernculas da
Faculdade de Filosofia, Letras e
Cincias Humanas da Universidade
de So Paulo. rea: Estudos
Comparados de Literaturas de
Lngua Portuguesa. Orientadora:
Prof. Dr. Maria dos Prazeres
Santos Mendes.
JUNHO 2001
SUMRIO
Pg.
INTRODUO 01
CAPTULO 1 - O OLHAR E O CONTAR UM EXERCCIO LDICO
EM CHARADAS MACABRAS
06
1.1. O caminho inverso do atual ao primordial 06
1.2. Tradio oral em presena 16
1.3. A importncia do jogar 20
1.4. Na esfera da ao 22
1.5. O tradicional em fuso com o atual 24
1.6. O embrenhar entre texto verbal e texto visual 28
Relao de Pranchas 47
CAPTULO 2 DA ORALIDADE AO RECONTAR DOS TEMPOS
MODERNOS EM SUA ALTEZA A DIVINHA
48
2.1. Uma aventura no tempo 48
2.2. O ldico no adivinhar 54
2.3. Oralidade como linguagem 58
2.4. Os olhos que vem 70
2.5. Formas manifestas do riso 77
2.6. A improvisao como recurso: de tolo a heri 82
2.7. Pelos veios da cultura medieval 85
Relao de Pranchas 102
CAPTULO 3 A PRAA, O PALCO, A ARTE NO ENREDAR DE 10
ADIVINHAS PICANTES
103
3.1. A expresso em texto verbal 103
3.2. Pegadas do tempo 105
3.3. Praa-palco-livro 106
3.4. O recontar pela ilustrao 109
Relao de Pranchas 118
CAPTULO 4 O ESCAVAR DO IMAGINRIO EM INDO NO SEI
AONDE BUSCAR NO SEI O QU
119
4.1. O continuum do contar 116
4.2. Nas trilhas da cultura medieval 121
4.3. Brincando de imaginar 123
4.4. Dos meandros do conto popular ao sabor da expectativa s avessas 124
4.5. O visual e a estria 129
4.6. Final Feliz ? 135
Relao de Pranchas 138
CONCLUSO 139
BIBLIOGRAFIA 146
AGRADECIMENTOS
Maria dos Prazeres Santos Mendes, pelo olhar sempre
carinhoso e atento, conduzindo-nos a valiosas descobertas
Angela Lago, sensibilidade flor da pele :
compreenso e incentivo, desde os primeiros
passos.
Maria Lcia P. S. Ges pelo nortear de caminhos.
Maria Jos Palo pelas sugestes recebidas no
Exame de Qualificao.
Capes, pela bolsa de estudos que possibilitou o
desenvolvimento dessa pesquisa.
A Pedro e Helena, nossos pais : amor e dedicao
desde sempre.
Margarete, nossa irm, pela colaborao
espontnea.
A Vergilio: companheiro incansvel de muitas
jornadas.
Bruna e Camila: nossa fonte de inocncia e
inspirao.
Rita, amiga-irm de tantos caminhos cruzados.
Vida: por nos presentear com a Histria.
A verdadeira viagem de descoberta
consiste no em procurar novas
paragens, mas em ter novos olhos.
Marcel Proust
Toda obra de arte filha de seu tempo
e, muitas vezes, me de nossos
sentimentos.
Wassily Kandinsky
Para nossas filhas,
Bruna e Camila
De perguntas sem p nem cabea a palavras inventadas a
construo de
um mundo de verdade.
RESUMO
stabelecemos como objetivo de nossa pesquisa: o descortinar do olhar
para obras de Literatura Infanto-J uvenil, viabilizado por meio do entrelaamento de
aspectos referentes ao imaginrio medieval ao fazer literrio de Angela Lago.
Destacamos em Charadas Macabras, a presena do elemento capeta como
veiculador de informao e ou transformao atravs do uso da palavra.
Em Sua Alteza A Divinha, o resgate da oralidade, enfocada sob a luz da
teoria bakhtiniana, concedeu a ampliao de recursos como a comicidade, a ludicidade, a
brincadeira, encapsulada na obra atravs do jogo, do desafio oral englobados na esfera da
anttese social o popular contrapondo-se aristocracia, o forte contra o fraco o elemento
feminino em oposio ao masculino, fatores que concorreram para o dimensionar da
anlise.
Caminhar nas trilhas da cultura oral possibilitou, ainda, a descoberta do riso
espontneo pelos veios da improvisao, pelo evidenciar da praa pblica com suas
prticas, identificadas em 10 Adivinhas Picantes, alm de contribuir para o despertar da
literatura pardica, presente em Indo No Sei Aonde Buscar No Sei O Qu.
A busca de releituras do conto da princesa expert em adivinhaes,
compiladas por pesquisadores como Adolpho Coelho e Cmara Cascudo consolidaram,
sobremaneira, o propsito inicial de pesquisa a comprovao, nos contos de Angela Lago,
da influncia da cultura medieval que chega, atravs de Portugal e Brasil.
Na concluso, retomamos os elementos pertinentes cada obra permeados
ao mbito do leitor, e palmilhados, particularmente, ao universo da criana quintal da
casa do faz-de-conta, lugar onde a magia, a alegria e o sonho, so.
e
ABSTRACT
We have widely discussed, in this written work, about different
understanding points of Literature books for children, pointing out the influence of
medieval imaginary in Angela Lagos masterpiece.
In the book Charadas Macabras, we have elicited the presence of the Devil,
by the transformation of his spoken words.
The oral exercise, in the narrative Sua Alteza A Divinha, was focused under
the lights of Bakhtins concepts. The aspects of theses concepts took into consideration the
amplifying of the comic and the childrens entertainment points, which were encapsulated
in the tale by the game, (the oral contest). All these points should be understood as a social
anthitesis the popular level put in front of the aristocracy, strong people against weak
people the feminine element against masculine element. All these factors contributed
toward the dimensional views of the this book.
In researching, the study of oral culture we discovered it contained
espontaneous humor cause by the improvise performances, present in the public square.
The public square was a popular place for people to hold their artistic performance. These
aspects can be identified in the books Indo No Sei Aonde Buscar No Sei O Qu and 10
Adivinhas Picantes.
Upon examining the tales of a princess we found they contain many
expertly written riddles. This subject was widely studied by researchers like Adolpho
Coelho and Cmara Cascudo, who also empathized the initial purpose of this project the
corroboration of the influence of medieval culture, by Portugal and Brazil, in Angela
Lagos tales.
In conclusion, we have taken the elements that belong to each narrative and
inserted them into the sphere of the reader, and particulary, the child reader. The mind of
child is known to be most criative and imaginative. Its a world where invention, dreams,
magic, hapiness and sadness exists.
1
INTRODUO
Designa-se pela palavra Litteratura, no sentido lato,
todo o complexo de manifestaes do esprito
humano, tendo por orgo a palavra (e especialmente
a palavra fixada pela escripta), cujo fim no
meramente utilitrio e individual.
Adolpho F. Coelho
ostaramos de demonstrar, nessa pesquisa, que literatura se faz,
como argumenta Coelho, com a palavra, com a voz do povo que pode sonhar
atravs do contar, no somente pelo ato da escrita, estando a criao literria
alicerada em outros cdigos de linguagem. Ao lado da computao grfica,
que no ser, nesta oportunidade estudada, do jogo cromtico, do prprio livro
como canal de comunicao, est o recurso visual que pode complementar ou
extrapolar o verbal ou ainda estabelecer uma relao imagem-texto,
instrumento que permite ao leitor e mais especificamente ao leitor infantil,
interagir com a obra ... via criatividade e imaginao ...
1
Palo e Oliveira
apud Mendes salientam que:

1
MENDES, Maria dos Prazeres S. Monteiro Lobato, Clarice Lispector, Lygia Bojunga Nunes: O Esttico em
Dilogo Na Literatura Infanto-Juvenil. Tese apresentada Comisso J ulgadora da Pontifcia Universidade
Catlica de So Paulo. So Paulo, 1994, p.7.
g
2
O pensamento infantil aquele que est sintonizado com
esse pulsar pelas vias do imaginrio. E justamente nisso
que os projetos mais arrojados de literatura infantil
investem, no escamoteando o literrio, nem o
facilitando, mas enfren-tando sua qualidade artstica e
oferecendo os melhores produtos possveis ao repertrio
infantil, que tem a competncia necessria para traduz-lo
pelo desempenho de uma leitura mltipla e diversificada.
Leitura que segue trilhas, lana hipteses, experimenta,
duvida, num exerccio contnuo de experiementao e
descoberta. Como a vida.
2
O aventurar, pelas vias do imaginrio medieval, e o reconhecer,
na fico de Angela Lago, notadamente nas obras Charadas Macabras, Sua
Alteza A Divinha, 10 Adivinhas Picantes e Indo No Sei Aonde Buscar No
Sei O Qu, as influncias que a tradio oral exerce sobre as obras, implica
descoberta prazerosa de razes ampliao de horizontes, identificao e
explorao de elementos relacionados figura simblica do Demnio,
contextualizado em seu grau de interpretabilidade do mbito do medieval
modernidade. Ainda nesse segmento, a explorao, em cotejamento, dos
significados relacionados ao demnio, presentes na narrativa O Gnio e a
Garrafa e a representao do capeta em Charadas Macabras, faz-se
importante como ponto de enriquecimento da anlise.
A analogia entre as enigmticas danas macabras, prtica
medieval realizada em cemitrios, que objetivava o ludibriar da morte, e as
charadas, denominadas macabras, que deslizam pelas pginas de Charadas
Macabras a partir da sala escura do necrotrio... ser igualmente abordada

2
MENDES, Maria dos Prazeres S. O Esttico em Dilogo na Literatura Infanto-Juvenil. Tese apresentada
Comisso J ulgadora da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. So Paulo, 1994, p.8.
3
com o intuito de enfatizar a presena do medievalismo na vida do homem
moderno.
Dentro da cultura cmica popular destacaremos a figura
representativa do homem simplrio, vulgarmente adjetivado de tolo, bobo ou
pcaro (este ltimo em Portugal e Espanha no sculo XV), e seu humorismo
irreverente, elementos que caracterizam Sua Alteza A Divinha, Indo No Sei
Aonde Buscar No Sei O Qu e 10 Adivinhas Picantes e Charadas Macabras
(esta ltima na figura do Capeta), fatores que despertam o interesse do leitor
que, em cumplicidade com as personagens, interconecta-se com este contedo
informativo-ldico. Pelo elo da literatura pardica, o narrador introjeta o tolo
na esfera do leitor e este adentra ao universo do tolo, rindo de suas peripcias,
apoiando a personagem no seu propsito e quando, pela incorporao da
forma do tolo, desperta para a importncia do esprito popular na obra e, aqui
fazemos parnteses a importncia da obra para a Literatura Infanto-J uvenil,
atravs do resgate da linguagem oral, do reavivar das adivinhas que pe em
jogo as foras do conhecimento, a vida do interrogado, dos costumes e
brincadeiras que so facilmente identificadas pelo leitor, que as reconhece
como elementos inseridos dentro de seu tempo.
J olles afirma: No poder resolver uma adivinha morrer;
apresentar uma adivinha que ningum resolve viver.
3
Este ser o fio da
tessitura narrativa em Sua Alteza A Divinha e Charadas Macabras decifrar a
charada significa viver, ou melhor, encontrar a sada do cemitrio e livrar-se
da influncia do capeta. A resoluo das adivinhas representa a ascenso de
tolo a heri e implica iseno da forca.

3
J OLLES, Andr. Formas Simples. Trad. lvaro Cabral. So Paulo, Cultrix, 1976, p.114.
4
A presena do jogo, permeado pelo desafio proposto pelos contos
analisados, convida o leitor a participar ativamente do enredo, ora tomando
parte como decifrador de charadas no cemitrio, ora ovacionando Louva-a-
deus pela inventividade, em Sua Alteza Adivinha, ou ainda apostando no
sucesso de Seino, na sua aventura at o inferno.
Nesse cruzamento, porm, entre o contexto medieval, permeado
pelo riso, e as releituras de Angela Lago utilizaremos, como instrumental
terico, os conceitos de Bergson sobre a classificatria elaborada por Propp
sobre a ao das personagens no conto maravilhoso, mais acentuadamente em
Sua Alteza A Divinha e Indo No Sei Aonde Buscar No Sei O Qu, quando
traaremos o perfil da personagem protagonista e seu trajeto dentro da
narrativa, aspecto que o qualifica como heri.
Apoiados em Todorov, no tocante teoria sobre o gnero
fantstico e o maravilhoso, iremos analisar Charadas Macabras e inseri-la em
um dos gneros apresentados. Para a anlise do texto visual, ainda na mesma
obra, servir-nos-emos dos estudos a respeito de metalinguagem elaborados por
J ackbson.
Elucidaremos, por fim, a presena de um perfil histrico em
nosso projeto, principalmente de elementos relacionados cultura popular na
Idade Mdia, aspecto que propiciar uma maior compreenso das obras a
serem analisadas. Serviro de ferramenta, para esse intento, obras de autores
tais como: Gilson, Eliade, Aris, Delumeau, Franco J nior, Boucier, Goff.
Dos conceitos sobre a cultura cmica popular, referente ao
perodo medieval, esmiuados por Bakhtin, iremos subtrair a importncia da
praa pblica como referencial de interao do povo valorizao do contar,
do improvisar, do parodiar, do riso que,
5
... ocupou significativo espao nos ritos, festividades,
espetculos, formas literrias e expresses provenientes
de esferas no-oficiais, proporcionando viso de mundo,
dos homens e das relaes humanas diferentes daquelas
propostas pela Igreja e pelo Estado (...).
4
,
caractersticas que podem ser constatadas, particularmente em Sua Alteza A
Divinha, 10 Adivinhas Picantes e Indo No Sei Aonde Buscar No Sei O Qu.
Essa pesquisa tambm estar estruturada na proposta de J olles no
que se refere ao conto na sua forma simples, ou seja, produo coletiva,
popular, sem especificao espao-temporal; aquela que pertence ao universo
do contador de estrias que, seguidamente, leva a sua experincia, o seu
conhecimento, a diferentes paragens. Ao inserirmos em nosso trabalho, os
conceitos de J olles visamos comprovao da fuso entre a forma simples,
marcada pela oralidade, e a forma artstica, reelaborada por Angela Lago,
acrescida de inventividade e modernidade.
Os conceitos semiticos peirceanos que apontam caminhos e
dilatam o olhar para tantas descobertas, sero utilizados neste estudo,
especificamente no que se refere ao diagrama e aos interpretantes, quando se
fizer necessrio exemplificar a importncia da tessitura sgnica na obra.
Como procedimento final, iremos examinar como se d a funo
do tolo em algumas variantes do conto da princesa que gostava de fazer
adivinhas, dentre elas, aquelas cujo resgate pertence cultura portuguesa,
compiladas graas extensa pesquisa de folcloristas como Cascudo, Romero,
Coelho e Braga, fonte de onde pudemos subtrair as releituras.

4
MACEDO, J os Rivair. Riso, Cultura e Sociedade na Idade Mdia. So Paulo, Unesp, 2000, p.100.
6
Captulo 1
O OLHAR E O CONTAR UM EXERCCIO
LDICO EM CHARADAS MACABRAS
O homem aprende atravs dos sentidos. A
capacidade de ver, sentir, ouvir, cheirar e
provar proporciona os meios pelos quais se
realiza uma interao do homem com seu
meio.
Lowenfeld e Brittain
1.1. Caminho Inverso: do atual ao primordial
explorao de elementos que justifiquem a presena de uma
perceptvel articulao entre a narrativa, no ato de contar e recontar, buscando,
no escavar dos tempos sombrios da Idade Mdia, rituais e prticas popularmente
denominadas macabras, pode tornar esta anlise fecunda no sentido de enfatizar
a contribuio de Charadas Macabras de Angela Lago para a Literatura
Infanto-juvenil.
O tipo de sociedade predominante na Idade Mdia, sobretudo entre
os sculos XI e XV, era a feudo-clerical. Composta pela aristocracia e
legitimada pela Igreja, responsvel pelo modelo ideolgico do sistema vigente
na poca, liderava uma comunidade socialmente desigual, formada pela
A
7
preponderncia masculina homens guerreiros, de um lado, e mulheres
marginalizadas, de outro, cabendo-lhes a submisso servil. A proposta
ideolgica formulada pelo bispo Adalberon de Laon, aproximadamente entre
1025 e 1027 pregava:
a cidade de Deus, que parece una, tripla. Alguns
rezam, outros combatem e outros trabalham. Os trs
vivem juntos e no se separam: os servios de um
permitem os trabalhos de outras duas e cada qual, por sua
vez, presta apoio s outras.
1
Claramente expressa pelo fragmento acima, a defesa dos interesses
econmicos e sociais, ditada pelo Feudo-Clericalismo, entendida como
prioridade, visava ao equilbrio e prosperidade do Estado. Para tanto,
estabeleciam-se funes,
... uma diviso social do trabalho: os oratores eram os
responsveis pela salvao espiritual de toda a sociedade,
protegendo-a com as armas da f dos poderes malignos
do Alm; os bellatores com armas materiais estavam
encarregados de defender a sociedade de seus inimigos
terrenos; os laboratores, vistos pelos pensadores
eclesisticos naquele mundo essencialmente agrrio como
camponeses, estavam incumbidos da produo e portanto
do sustento das demais camadas sociais, como forma de
resgatar o pecado original.
2

1
ADALBERTO DE LAON apud FRANCO, Hilrio J nior in Peregrinos, Monges e Guerreiros. Feudo
- Clericalismo e Religiosidade em Castela Medieval. So Paulo, Hucitec, 1990, p.28.
2
FRANCO, Hilrio J nior. Peregrinos, Monges e Guerreiros. Feudo-Clericalismo e Religiosidade em
Castela Medieval. So Paulo, Hucitec, 1990, p.29.
8
Existia, portanto, uma articulao entre os trs plos que margeava a
mentalidade medieval.
De um lado, a belicosidade era uma atitude mental
bsica naquela sociedade militar, fosse pela participao
humana (clero) no conflito csmico entre foras do Bem
e do Mal, fosse para enfrentar (guerreiros) as invases
pags e muulmanas, alis expresses daquele mundo
malfico. Esse trao mental estava vinculado a outro, a
contratualidade, que ligava homem-Deus (via clero) e
homem-homem (via relao de doao-proteo).
3
Mas, apesar da relutncia da Igreja, em projetar na sociedade os
dogmas cristos, impondo e reafirmando a existncia de uma religiosidade,
cultivaram-se na sociedade medieval, durante sculos e ainda hoje (sculo XXI),
cultivam-se prticas de rituais sagrados, endereados s bruxas, fadas, gnomos,
etc, comportamento que atesta a presena da cultura milenar enfronhada na alma
humana. , ento, modelar a citao de Gilson,
4
quando se refere posio
psico-intelectiva do indivduo socialmente inserido em dado grupo,
independente da poca em que se situa:
... o universo em que estamos mergulhados desde o
nosso nascimento no apenas o da sensao; tambm
definido pela representao dele que nossa poca e nosso

3
FRANCO, Hilrio J nior. Peregrinos, Monges e Guerreiros. Feudo-clericalismo, Religiosidade em Castela
Medieval. p.31.
4
GILSON, Etienne. A Filosofia na Idade Mdia .Trad. Eduardo Brando. So Paulo, Martins Fontes,1998, p.
942.
9
meio tendem a nos impor. O homem do sculo XX no
nasce no mesmo mundo que o homem do sculo XII, e
nascer no sculo XII cristo ou no sculo XII hindu era
nascer em dois universos diferentes. Por mais livre que
possa ser um pensamento filosfico e por mais profunda
que deva ser a marca por ele deixada na superfcie das
coisas, ele sempre comea, pois, por um ato de
submisso; ele se move livremente, mas dentro de um
mundo dado.
O aspecto hierofnico igualmente traa o perfil da mentalidade
medieval. Os fenmenos naturais de toda ordem cerimnias e festas cujo tema
principal era renovao (ciclo de semeadura, nascimento, vida e morte) eram
entendidos como manifestao do sagrado. O simbolismo era a linguagem
mais adequada ao medievo em funo de suas estruturas mentais e culturais.
5
Aproveitando-se dessa tendncia do homem medieval, ao
maravilhoso, pr disposio inconsciente ao smbolo viagens ao Alm,
sonhos, o Clero propunha o culto Virgem, por exemplo, em substituio
devoo s divindades agrrias. A figura do anjo consistia em outro aliado do
homem na luta contra as foras malficas, assim como o emprego de palavras e
gestos ( sinal-da-cruz e oraes) considerados eficazes na proteo pessoal de
cada um.
Dentro desse contexto, entendido como uma tentativa reiterada de
suplantao das crenas pags pela Igreja, impondo uma forma dogmtica ao
cristianismo, no se obteve o xito esperado, pelos menos no perodo entre o
sculo XI ao XIII, quanto purificao das almas, pois a mentalidade
coletiva, atrelada a costumes de outros tempos, no conseguia se libertar de

5
GILSON, Etienne. A Filosofia na Idade Mdia. p.44.
10
conceitos que norteavam suas mentes, principalmente os relacionados s
questes da vida e da morte. Na mentalidade coletiva, muitas vezes a vida e a
morte no apareciam separadas por um corte ntido.
6
Acreditava-se, por exemplo, que os mortos compareciam, durante
algum tempo, aos lugares de origem, habitavam suas antigas casas e mantinham
a rotina anteriormente rompida. Segundo J ensen, o morto por afogamento,
queda de rvores, atacado por animais selvagens ou vtima do parto mal
sucedido, seria considerado o verdadeiro fantasma ... se trata de un individuo
marcado por el destino, del que la comunidad se aparta con horror y al que le
esta denegado la entrada en el reino de los muertos.
7
Havia, contudo, uma
escala hierrquica que classificava os defuntos segundo suas obras. De acordo
com a herana que o defunto deixava, este tinha direitos e poderes sobre os
vivos. O morto agarra o vivo
8
, dizia o ditado popular.
Mas o morto podia agarrar o vivo de uma outra maneira.
As danas macabras punham em cena o invencvel
esqueleto que arrasta fora para sua ronda fnebre
pessoas de qualquer idade e qualquer condio.
9
A dana, compondo o arsenal de prticas, vinculada religiosidade
popular, transcende ao tempo. Presente nas diferentes comunidades, a dana,
com a devida referncia sua importncia, caracteriza-se como um substrato

6
DELUMEAU, J ean. Histria do Medo no Ocidente. Trad. Maria L. Machado. So Paulo, Companhia das
Letras, 1993, p.84.
7
J ENSEN, Ad. E. Mito y culto entre pueblos primitivos. Trad. Carlos Gerhart. 3.ed. Mxico, Fundo de
Cultura Economica, 1986, p.366.
8
DELUMEAU, J ean, op. cit., p.85.
9
DELUMEAU, J ean, loc. cit.
11
resgatado pela narrativa, entendido como manifestao artstico-religiosa,
pertinente Idade Mdia Central.
Na viso grega, os movimentos corporais ritmados eram de
essncia religiosa e ... um meio excelente de ser agradvel aos deuses e de
honr-los.
10
Em diversos momentos, considerados importantes, a dana
tambm intervinha na sociedade grega: nascimento, ps-parto, npcias,
banquetes e morte.
O hbito da dana, na Idade Mdia, mais notadamente o de cunho
religioso, consiste em herana popular pag que persistiu at o sculo XV,
embora a pouca disposio das autoridades eclesisticas, em tolerar essa prtica,
j que a inteno era trazer os fiis para o seio do Cristianismo puro,
desprezando tudo que fosse contrrio s bases fundamentais da Igreja. Danava-
se a chorea ou a carola, durante as missas uma dana de roda em que os
participantes davam-se as mos e, juntos, faziam passos ligeiros e saltitantes,
sem contudo desmanchar a roda. Este tipo de dana circular, praticado
inicialmente pela classe minoritria, foi posteriormente adotado pela nobreza,
como fonte de espetculo, por feiticeiras, em rituais iniciticos, por tribos
indgenas, em ocasies solenes, etc.
Em Charadas Macabras, no ocorre propriamente uma dana de
roda, mas uma interligao entre leitor, narrador e personagens. A proposio e
tentativa de decifrao das charadas pode ser classificada como circular, do
ponto de vista do fluxo narrativo, mas tambm prope a dana de roda.
Constata-se, atravs de fragmentos do texto: Tome flego. Pense mais um
pouco (...) voc sabe que tem algo a ser decifrado nesta porta?
11
, o apelo
contnuo do narrador, aulando o leitor a decifrar as charadas.

10
PLATO apud BOUCIER, Paul. A Histria da Dana no Ocidente. So Paulo, Martins Fontes, 1987, p.22.
11
LAGO, Angela. Charadas Macabras. Belo Horizonte, Formato, 1994, p.5.
12
A partir do sculo XIV, desencadeia-se, na sociedade feudal, uma
srie de crises: econmica, militar e a perda de domnio da Igreja sobre o
Estado. A Guerra dos Cem Anos tem incio em 1337 e representa um perodo de
flagelo para a povo, de maioria camponesa. Associada guerra e fome j
existentes, a peste, identificada segundo a crena popular, ... como uma nuvem
devoradora vinda do estrangeiro ...
12
chega a dizimar um tero da populao. A
morte, ento, passa a figurar em rostos marcados pela dor. Neste cenrio, as
transformaes so igualmente de ordem intelectual e artstica. A dana segue
suas tendncias: do refinamento das formas, para consumo da nobreza, ao
sentido do realismo insistente do povo. A prtica da carola, nessa poca, reflete
o sofrimento da classe minoritria, pois j no retrata uma manifestao de
alegria mas expressa ... o sentido da morte em sua realidade mais brutal.
13
,
tornando-se uma dana macabra.
Pesquisadores do assunto acreditam que essa denominao
macabra, seja proveniente do vocbulo rabe makhbar que significa
cemitrio, local onde eram realizadas as danas de roda.
O hbito de se danar em cemitrio difundiu-se para demonstrar
que a vida uma roda, ou uma carola gerenciada pela morte. Danava-se a
chorea para reverenciar a morte, como fim primeiro de todo ser. Danando-se
morte, preservar-se-ia a vida. Acrescenta-se, neste particular, o temor da
populao em percorrer necrotrios e principalmente cemitrios durante a noite.
A noite representava, para as sociedades antigas, o perigo, a suspeita, o
desconhecido. Acreditava-se que a noite pactuava com os assassinos, ladres,
fantasmas e demnios. Mais propriamente durante os perodos epidmicos de
peste, quando os cemitrios recebiam um nmero considervel de

12
DELUMEAU, J ean. Histria do Medo no Ocidente. p.112.
13
BOURCIER, Paul. A Histria da Dana no Ocidente. So Paulo, Martins Fontes,1987, p.56.
13
sepultamentos, ouviam-se, com freqncia, rudos partindo de dentro dos
tmulos, devido aos gases provenientes da decomposio dos corpos. Para os
supersticiosos da poca, tais rudos eram interpretados como avisos
sobrenaturais de mais sofrimento e morte ou na evidncia da fora do demnio
como causador dos rudos.
... na verdade, entre o cemitrio e a epidemia (...)
existem (...) o demnio e suas feiticeiras. Estas tiram dos
mortos os elementos de que precisam para suas misturas e
poes (...). Em tempo de peste, de fato, o demnio
amplia o seu poder (...). De modo geral, tem delegao de
poderes sobre os mortos: uma espcie de parentesco
estabelece-se entre o demnio e os mortos. O cemitrio
faz parte do domnio dele, um vestbulo do Inferno.
14
O cenrio da ao o necrotrio e mais acentuadamente o
cemitrio. Como na carola, quando os habitantes firmavam uma espcie de
pacto com a morte, o leitor tambm faz o mesmo com o capeta, neste ambiente
considerado mstico, uma relao amistosa, que no atinge a reverncia, mas
insinua uma permuta. A prtica da carola ludibriava a morte, a decifrao da
charada preserva a vida. Nota-se que o conceito de capeta transmitido,
especificamente, pela obra, refere-se quela figura popular humanizada,
suscetvel de adulao, menos temvel do que supunha a Igreja e passvel de
engano.
O desaparecimento sbito e o aparecimento inesperado das
personagens, em cena, rememora as noites ofuscadas pela nvoa, quando

14
ARIS, Philippe. O homem diante da morte. Trad. Luiza Ribeiro. 2.ed. vol.II, Rio de J aneiro, Francisco
Alves Editora, 1977, p.520-21.
14
sombras humanas caricaturais, imensas e deformadas, volitavam pelo ar ou
eram projetadas sobre um fundo incandescente de um recinto, aterrorizando os
presentes.
Este bailado da personagem, nos cortes sucessivos das cenas, leva a
outro pensamento. Apresentando caractersticas idnticas s sombras
atemorizantes, a personagem pode, igualmente, ser adjetivada de macabra, uma
vez que tenciona assustar o leitor. E macabra so as suas mltiplas
representaes o vigia, o narrador e o leitor . Inseridas dentro da mesma
classificao, esto as intenes do leitor quando, pelo ato de declinar as
charadas para um receptor, este se reveste de sarcasmo e deboche.
A luminosidade, em contraste com a opacidade, favorece a criao
de um ambiente, no qual a reproduo de sombras supe o estranhamento, dada
a pouca definio de formas.
A imagem desfocada das sombras, tal qual, evoca o jogo de
espelhos, to apreciado pela criana pequena, e traz, nas entrelinhas da
memria, a brincadeira realizada num recinto escuro, cujo foco de luz
centraliza-se numa vela. A penumbra possibilita a deformao da imagem dos
participantes que, atravs da gesticulao e o movimento dos cabelos, insinua
figuras de aspecto diablico. Anloga a esse exerccio ldico, a manipulao
dos dedos das mos, na mesma proporo, favorece a criao de outras formas,
como meio de recreao.
A composio ilustra, na penltima pgina, o possvel vigia-
narrador-leitor tentando descobrir algo atravs do orifcio da fechadura, aspecto
que o desqualifica como tolo, pois ele sabe que existe algo do outro lado da
porta que pode lhe interessar. Trata-se de um jogo de seduo entre o leitor e as
personagens, particularmente o capeta, que exerce fascnio porque conduz ao
15
prazer que o desconhecido proporciona. O leitor, por sua vez, igualmente possui
atributos que seduzem o capeta.
Eliade, sobre a questo da transposio de portas, passagens
secretas, pontes perigosas recorrentes nos contos, argumenta que:
Convm precisar que todos estes rituais e simbolismos
da passagem exprimem uma concepo especfica da
existncia humana: uma vez nascido, o homem ainda no
est acabado; deve nascer uma segunda vez,
espiritualmente; torna-se homem completo passando de
um estado imperfeito, embrionrio, a um estado perfeito,
de adulto. Numa palavra, pode dizer-se que a existncia
humana chega plenitude por uma srie de ritos de
passagem, em suma, por iniciaes sucessivas.
15
A pauta sobre a vida e a morte, a definio entre o bem e o mal,
elementos imbricados na sua concepo, mas ainda pouco clarificados devido
imaturidade da mente humana, podem estar representados na narrativa, pelo
homem e pelo demnio. O caminho amplo da vida, margeado pelo limiar
estreito da morte, uma questo que pode ser equiparada a uma charada, cuja
decifrao pertence a cada um.
Na seqncia final, o verbal assegura: Quer saber de uma coisa?
Estou de verdade no seu sof ... no seu colo ... na sua mo ... Virgem! Que
horror!! Estou nas suas mos !!!! mesmo o fim.
16
O depoimento frgil e despojado do narrador concede autonomia ao
leitor. O estar no sof, ou no colo do leitor no retrata a posio real daquele que

15
ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. Trad. Rogrio Fernandes. Lisboa, Livros do Brasil, 1956, p.188.
16
LAGO, Angela. Charadas Macabras. p.31.
16
tem nas mos o livro. Trata-se do leitor ficcional, aquele introjetado dentro da
estria, to ficcional quanto o prprio narrador. A bipolaridade existente entre a
fragilidade e a autonomia, observada no fragmento anteriormente referido,
consolida algo que excede ao poder do texto verbal-visual a proximidade entre
o artista e o espectador, a intimidade entre a Arte e aquele que no pode
alcan-la em sua completude.
1.2. Tradio oral em presena
ara o artista, que procura novas formas de expresso, as
apropriaes de elementos estruturais de cunho cientfico-tecnolgico
representam oportunidades amplas de experincia e um meio eficaz na
elaborao de idias e futuras criaes. Para Plaza
17
a dimenso esttica da
cincia reside no modo como representado o objeto e no no que
representa.
Enquanto a cincia cria mtodos e altera padres atravs de
estruturas, a sensibilidade artstica intertextualiza-se com outros cdigos de
carter tecnolgico gerando interpretantes. No entanto:
...as criaes com as tecnologias devem estabelecer um
compromisso harmonioso entre a determinao do
altamente codificado e a fragilidade da informao
esttica ...
18
,

17
PLAZA, J lio; TAVARES, Mnica. Processos Criativos Com os Meios Eletrnicos: Poticas Digitais. So Paulo,
Hucitec,1998, p.8.
18
Idem, ibidem, p.11
P
17
e nesse sentido, Charadas Macabras assegura o compromisso de deixar
transparecer a interao existente nos meandros da arte, atravs da esttica e o
suporte tecnolgico que vai corporificar a obra.
Arquitetada pelas malhas da produo infogrfica (p.xiii)
19
, cujas
particularidades no sero nesse segmento exploradas , a obra fundamenta-se
em aspectos da cultura popular, primeiramente apoiando-se nas charadas
denominadas tiburcianas
20
. A narrativa igualmente espelha-se em recolhas feitas
por Angela Lago, acrescidas de sua criatividade, no que se refere formulao
de novas charadas.
Margeando este arsenal histrico, est a decifrao de enigmas e
charadas, no texto de Angela Lago, ora tomando parte em espetculos visando
ao entretenimento, ora ditando regras em rituais sinistros, como forma de
salvao e preservao da vida. A postura sedutora do narrador convida, ou
melhor, arrasta o leitor pelo caminho do desconhecido.
Este percurso proposto pelo narrador pode ser caracterizado como
um desafio, um mergulho em guas profundas, como trilhas que vo
desembocar nas narrativas do imaginrio medieval.
Este imaginrio configura-se, de acordo com a proposta de estudo
de Todorov na obra Introduo Literatura Fantstica, como gnero
maravilhoso, por tratar-se de uma narrativa que aponta a existncia de
fenmenos sobrenaturais incontestveis e que no podem ser explicados pelas
leis naturais tais quais so conhecidas. No se constata, por parte das
personagens, hesitao perante a figura do diabo, aspecto que transportaria a

19
Produo Infogrfica refere-se a trabalhos artsticos, cujos resultados so obtidos pela interveno do
computador, conforme PLAZA, J lio; TAVARES, Mnica em Processos Criativos com os Meios
Eletrnicos: Poticas Digitais.
20
As charadas denominadas tiburcianas, cujo mrito pela inveno, caberia ao oficial brasileiro Antnio
Tibrcio de Souza, teriam sido declinadas por ocasio da Guerra do Paraguai, como forma de comunicao
entre os oficiais, conforme LAGO, Angela. Charadas Macabras. p.3.
18
obra para o universo do fantstico. Segundo Todorov, a noo de capeta faz-se a
partir,
...de uma iluso dos sentidos, de um produto da
imaginao e nesse caso as leis do mundo continuam a
ser o que so; ou ento o acontecimento realmente
ocorreu, parte integrante da realidade, mas nesse
caso esta realidade regida por leis desconhecidas para
ns. Ou o diabo uma iluso, um ser imaginrio; ou
ento existe realmente, exatamente como os outros seres
vivos: com a ressalva de que raramente o encontramos.
21
Verifica-se que, com a apario do capeta, aps a resoluo da
primeira charada, cria-se uma atmosfera de medo, envolvendo o vigia e o leitor,
que dura um lapso de tempo. O texto verbal registra: - isso geme o vigia
(...) ele grita e corre apavorado pelo corredor afora; (...) Agora voc est
sozinho, carssimo leitor, (...) Sozinho? (...) Sei no. S sei que voc sua frio.
22
Mas o vigia sai de cena e o leitor predispe-se s orientaes do capeta.
Voc est tonto e no consegue ouvir direito o que o
demnio lhe fala. Ele aponta para esta porta, ou melhor,
pgina, e voc sabe que tem que entrar por ela. Na
verdade, voc pode ficar no corredor, ou ento voltar pela
porta anterior.
23
A citao elucida a postura do leitor perante o diabo. O impacto

21
TODOROV, Tzvetan. Introduo Literatura Fantstica. Trad. Maria Clara C. Castello. So Paulo,
Perspectiva, 1975, p.30-31.
22
LAGO, Angela. Charadas Macabras. p.5.
23
Idem, ibidem, p.9.
19
inicial causado por sua presena cede lugar ao comportamento lgico e
ponderado de quem precisa optar entre o incerto e o desconhecido dentro de
uma situao limite.
No ocorre, portanto, hesitao quando da corporificao do
demnio, mas uma reao de surpresa das personagens, mesclada ao medo, at
certo ponto natural, levando-se em conta o local da transformao: o necrotrio,
um ambiente naturalmente sinistro e por vezes assustador, local onde, servindo-
nos de um adgio da cultura popular, os mortos fariam um breve descanso antes
de prosseguirem rumo sua ltima morada.
O resgate de elementos relacionados ao imaginrio medieval
corporifica-se na obra. A introduo paulatina no enredo, de assombraes,
esqueletos e fantasmas, feita pelo narrador, d-se atravs de um clima de
descontrao e riso, descontrao esta ligada s expresses da oralidade, no
mais de forma impactante, considerando as vias de introduo de tais
personagens: Minha admiradora est gaga de tanta bronquite, alma penada!
Uma, uma e duas uma voz no menos horrvel comenta. Admiradora com uma
slaba, f. F, t, asma. Sacou?
24
Quando o discurso assinala: Mas voc um leitor desnorteado (...)
V em frente (...) No?! (...) Est com raiva de mim?
25
ou mesmo Eu, o pica-
pau, um passarinho! At voc est rindo, meu amigo leitor. que ainda no
sabe o que o espera.
26
, evidencia-se o elo de ligao entre a narrativa e o
misticismo supostamente incrustado no leitor. No texto essa tendncia ao
comportamento mstico pode ser interpretado como o rememorar da prtica das
danas macabras, realizadas nas noites escuras da Idade Mdia, em que sombras

24
LAGO, Angela. Charadas Macabras. p. 15.
25
Idem, ibidem, p.13.
26
LAGO, ngela, op. cit., p.12.
20
representando formas humanas, vindas do alm, atraiam pessoas de todas as
idades para o bailado da morte. Por meio das charadas o narrador igualmente vai
aguar, atrair o leitor a tomar parte no seu jogo, como elucidaremos a seguir.
Esse elemento mstico pode ser compreendido como a disposio natural de se
crer naquilo que pertence ao domnio do desconhecido, do sobrenatural, herana
trazida da Idade Mdia; um tempo, de onde subtramos ... as nossas razes, o
nosso nascimento, a nossa infncia mas que tambm um sonho de vida
primitiva e feliz de que ainda mal samos.
27
Um mundo considerado perdido,
... mas do qual temos ainda uma memria nostlgica: o tempo dos nossos avs.
Uma idade Mdia qual ainda estamos ligados pelo fio, no cortado, da
oralidade.
28
1.3. A importncia do jogar
erifica-se, desde a sociedade primitiva, a questo da ludicidade
expressando-se na forma de jogo. De modo geral o jogo vai em busca de, luta
pela posse de alguma coisa ou apenas representa algo, visando realizao do
competidor. O ato de jogar gera tenso e incerteza quanto ao resultado, por isso
agua, desperta no participante o sentimento de competitividade que lhe nato,
porque carrega consigo, no seu campo de ao, o conceito de perigo, temor,
risco, sorte-azar, tornando-se atraente e fascinante.
Em Charadas Macabras o jogo fomentado pela palavra, atravs
da linguagem potica. As charadas, que so lanadas juntamente com as regras
do jogo, pretensamente apontam para o leitor um caminho pr-estabelecido. O

27
GOFF, J acques Le. O Imaginrio Medieval. Trad. Manuel Ruas. 3.ed. Portugal, Estampa, 1994, p.41.
28
GOFF, J acques Le, loc. cit.
V
21
observador-jogador aceita o desafio, no o da finalizao da leitura, mas o de
ser conduzido porque sabe que possui um adversrio o narrador. A idia de
ganho ou perda est expressa no final da narrativa quando cumpre ao
observador impor um destino competio.
O efeito claro e escuro marca o cenrio reservado prtica da
atividade ldica proposta. dentro deste crculo que o leitor, pseudo-norteado
pelo narrador, tem encontros inesperados com fantasmas, assombraes e
esqueletos, personagens que, paulatinamente, vo sendo introduzidos na
narrativa. Pois , dignssimo leitor, voc est no corao do cemitrio. Agora,
sim, voc vai ver quem so meus personagens.
29
A opacidade dos desenhos, notadamente demarca o trajeto
insinuado pelas sombras na nvoa da noite. A imbricao entre sombra e nvoa
resulta numa mescla composta pelo estranhamento das formas e por
mecanismos geradores de anseios, tendncias e conflitos, embrenhados na
mente humana, num jogo entremeado pelo real e imaginrio.

29
LAGO,Angela. Charadas Macabras. p.17.
PRANCHA 1
22
A ilustrao, paralela ao verbal, no cumpre somente com a funo
do contar da estria, no que diz respeito ao campo de ao das personagens, mas
entra no jogo ao desmembrar-se, perdendo contornos, tangenciando outras
formas , abrindo espao s infindveis possibilidades de leitura.
1.4. Na esfera da ao
ao desenrola-se a partir da sala do necrotrio. O vigia, que a
princpio encontra-se junto ao leitor, segundo o texto verbal, subitamente foge,
pois ele conhece a resposta da primeira charada o Capeta, ento, entra em
cena. Ainda que a decifrao das charadas no conte com a participao do
espectador, o narrador o instiga a tomar parte neste lance que reclama pacincia.
Pensamos neste segmento promover uma abordagem, ainda que
desprovida de profundidade, embasada no estudo sobre os contos de magia,
desenvolvido por Propp
30
, quando elenca as funes ou elementos invariantes
que focalizam a ao das personagens no enredo.
Assim, teramos enquanto situao inicial a meia e o p do vigia
que respondem pela metamorfose. Aps esse momento, delineiam-se no enredo,
as funes das personagens, com o afastamento do vigia: o capeta, no seu papel
soberano de antagonista, no dialoga com o leitor, solicitando-lhe informaes
que possam ajud-lo no seu intento, mas antes tenta ludibri-lo atravs do ardil.
O capeta utiliza-se da persuaso para induzir o leitor a fazer o seu jogo.
Decifrar as charadas implica transformao a insegurana sentida
inicialmente pelo vigia, causada pelo impacto, devido apario do capeta

30
Vladmir Propp terico russo (1895 1970), clebre pelo estudo pormenorizado, dentre outros, sobre os
contos de magia procedentes do folclore russo.
A
23
(comportamento sinalizado pela representao pictrica da personagem vigia) e
o conseqente enfrentamento do adversrio, eleva-o categoria de heri. Se o
leitor no houvesse reagido, teria certamente morte sbita e o capeta passaria a
triunfar diante do vencido. O leitor, agora heri, defronta-se com o antagonista,
o inimigo. Dentro da proposta proppiana, este momento da ao narrativa
definido como o combate. A disputa opera-se em nvel verbal. Ocorre o
deslocamento espao-temporal. Do necrotrio as personagens atingem o
cemitrio, em constante competio. O capeta lana as charadas, introduzindo,
na intriga, novas personagens, e o heri, pela esperteza, consegue chegar at
derradeira porta e reverter a situao. De vtima, aparentemente, dominada, o
heri aceita o desafio e passa posio de controlador da situao, pois o capeta
que pode estar representado na figura do vigia ou do narrador, tem cincia do
poder de discernimento do leitor. O leitor que no tolo, exerce, desta vez, o
poder e sabe que tudo no passa de uma brincadeira.
Uma vez mais, notifica-se o carter dual da narrativa. O capeta,
antagonista, transforma-se em doador e fornece as diretrizes adequadas ao
sucesso do heri. O inimigo que, inicialmente, exercia o domnio absoluto sobre
o leitor, termina em suas mos. Consolida-se, assim, o confronto entre o heri e
o falso heri, entre as foras do bem e do mal.
O meio ou o objeto mgico, aquele de que precisa o heri para
vencer a prova, na narrativa, pode ser entendido como o uso correto da palavra
que vai trazer o conhecimento e reverter uma situao.
Com a realizao da tarefa, o heri no retorna de um reino distante
depois de enfrentar o drago, mas chega porta do cemitrio, aspecto que pode
ser interpretado como o retorno ao real. A marca final da heroicidade tambm
no recai sobre o casamento com a princesa ou na aclamao popular, mas no
24
uso correto do poder mgico da palavra, responsvel pelo ludbrio do gnio do
mal, aspecto que diverge em pormenores da classificatria elaborada por Propp.
1.5. O tradicional em fuso com o atual
relao intertextual com elementos das narrativas subtradas da
literatura clssica O Pescador e o Gnio, ou O Gnio da Garrafa, conto
compilado por Grimm
31
convida o leitor a estabelecer uma analogia entre
elementos dessas narrativas e aspectos presentes na obra em apreciao.
No conto popular, recolhido por Grimm, o pescador lana sua rede
trs vezes ao mar, sem sucesso. Na quarta investida a rede traz um jarro de
cobre. De seu interior emerge uma figura gigantesca que ameaa de morte o
pescador. Este porm, vence, pela astcia, a fria do gigante, mais
freqentemente denominado gnio.
Subestimando a capacidade do gnio em retornar ao interior do
jarro ou garrafa, dadas as suas dimenses desproporcionais, em relao ao
tamanho da vasilha, o hbil pescador induz o gnio a iniciar sua aventura de
volta ao recipiente:
Primeiro preciso saber se eras tu o prisioneiro da
garrafa e se s mesmo o gnio que dizes. A garrafa bem
pequena, no sei se cabes de fato, dentro dela (...). O
gnio, ofendido pela incredulidade (...), encolheu-se todo
e foi minguando (...), at conseguir esgueirar pelo
gargalho da garrafa.
32
,

31
J akob Grimm e Wilhelm Grimm fillogos e colecionadores de histrias populares (1785-1863)
32
Contos de Grimm. Trad. Maria J os U.A. Lima. So Paulo, Melhoramentos, 1968, p.235.
A
25
fecha-o rapidamente e joga-o ao mar, ou, de acordo com outras verses,
devolve-o ... novamente, entre as razes do carvalho.
33
O elemento comum entre as duas narrativas incide no meio de
salvao encontrado pelas personagens. Engenhosamente o pescador aprisiona o
gnio pelo poder de persuaso, atravs da habilidade discursiva. Em outra
vertente, o que se verifica a fora da palavra, na soluo das proposies,
como veculo libertador do poder do capeta. A descoberta das respostas certas
norteia o leitor e o certifica sobre sua condio onde e com quem est vivendo
uma situao inusitada.
Em Charadas Macabras, no se constata, porm, o empreender de
tentativas reiteradas do lanar da rede. O que realmente se busca, na primeira
investida, a resposta certa para a charada. A narrativa no cede lugar a
tentames, no se arrisca uma opinio. Enquanto o mar concede ao pescador
quatro alternativas at que capture a garrafa, a narrativa oferece somente uma
chance de decifrao ao leitor, pois o narrador, em seguida proposio,
fornece a resposta a apario do capeta revela-se aps a soluo da primeira
charada, sem direito a segunda chance. Na obra de Angela Lago, o leitor conta
com um lance de acerto. Com o desenrolar do enredo, ser disponibilizado a
este leitor, inmeras oportunidades de decifrao de outras charadas, se
realmente desejar livrar-se do capeta e sair do cemitrio. Em O Pescador e o
Gnio, a personagem seguidamente aventura-se ao mar atravs da rede, porm
conta somente com uma chance de salvao ou aprisiona o inimigo na
primeira tentativa ou devorado por ele.
O aprisionamento do gnio, segundo o conto, durante quatro
sculos: - Sabes, gritou com voz tonitruante, qual ser a tua recompensa por

33
Contos de Grimm. p.236.
26
me teres libertado? (...) vou quebrar-te o pescoo!
34
, figura como a fora
malfica reprimida; oculta, engarrafada
35
, no representa perigo, porm
liberta, destri, mata, no atravs da fora fsica, como desejava o gnio, mas
pela habilidade de convico, trazida por meio da palavra, e pela manipulao
dos desejos que seduzem. A palavra que escraviza o homem, tambm o liberta,
porque aponta solues e revela caminhos.
A figura malvada que se materializa diante do pescador ou do
vigia, a princpio, representa uma ameaa. Institudo de conhecimento, o
homem, na figura da personagem, no teme o mal porque conhece a verdade.
Desembaraando-se dos fios que o atam ao elemento prfido, o homem torna-se
livre. Assim, o assdio exercido pelo gnio-capeta, no se justifica, no h,
portanto, razo para andar lado a lado com o homem, que, uma vez livre, segue
o seu destino.
A transformao operada e o surgimento do capeta podem
significar para o leitor (vigia) uma ocasio de ascenso. O aparecimento do
demnio vai proporcionar oportunidade de reflexo quanto presena do
transcendental dentro do cotidiano, dentro do mundo dos possveis, onde tudo
passvel de transformao a vida, em suas diferentes manifestaes e at
mesmo o desconhecido.
Particularmente, o conceito atribudo figura do demnio tem
sofrido severas transformaes ao longo dos sculos. Para a Antiguidade, o
demnio, amplamente denominado como Satans, Sat, Lcifer, Senhor das
Trevas, significava o anjo perdido, desgarrado do seio de Deus. Na sociedade
medieval, principalmente entre os sculos XI e XV, difunde-se a crena em um

34
Contos de Grimm, p.236.
35
BETTELHEIN, Bruno. A Psicanlise dos Contos de Fadas. Trad. Arlene Caetano. 7.ed. So Paulo, Paz e
Terra, 1988, p.39.
27
ser mal e enganador, composto ... de uma substncia sem corpo, que se
apresenta sensivelmente aos homens contra a ordem da natureza e causa-lhes
pavor.
36
Caracterizado como uma figura de chifres, olhos e cabelos vermelhos,
um enorme rabo e um sorriso sedutor, o diabo faz sua entrada triunfal no mundo
ocidental. Temido pela sua autonomia exercida nos infernos, a figura do diabo
esteve, durante um longo perodo, associada chegada do Apocalipse e s
conseqncias que o fim do mundo traria. A Idade Moderna, entretanto, nos
seus primrdios, incumbiu-se da desmistificao do capeta. O conceito de
demnio, no sculo XX, tornou-se to descaracterizada dos atributos de outrora
que as denominaes capeta, demnio, diabo, chifrudo, rabudo,
demo chegaram a um nvel de vulgaridade tal que o seu uso tornou-se comum
em praticamente todos as camadas sociais. So freqentes expresses tais como:
coisa do demo. Ele um capeta em forma de gente. Que diabos ele tem
hoje? no para exprimir a fora que a figura do capeta representa dentro do
pensamento social, mas como forma de exteriorizao espontnea de idias. O
se percebe, ento, uma atualizao, ao longo da Histria, das variadas
interpretaes atribudas ao signo diabo.

36
DELUMEAU, J ean. Histria do medo no Ocidente. p.87.
28
1.6. O embrenhar entre texto verbal e texto visual
ilustrao, de tonalidades variadas de azul, branco e cinza,
principia a narrativa. Desprovida de moldura, a composio amplia-se em
dimenso, a comear pela capa e contra capa, como mostra a prancha nmero 2.
O traado insinua uma sala contendo vrias janelas, parcialmente veladas por
cortinas. Em uma das janelas, tipos serifados sustentam, na diagonal, o ttulo da
obra Charadas Macabras. No se trata apenas de simples charadas, mas de
charadas ttricas, macabras que lembram o sombrio e a morte.
O desalinho, tanto de vocbulos quanto de linhas, igualmente
observado na pgina de rosto, , segundo a ilustradora, um recurso proposital
que visa salientar a tenso, a curiosidade, e conduzir o leitor a entrar no clima
da narrativa.
37

37
Informao obtida em entrevista a esta pesquisadora em 05 de J unho de 2000 em So Paulo.
PRANCHA 2
A
29
O primeiro quadro, de acordo com a prancha nmero 3, cientifica o
leitor quanto ao grau de suspense da obra. Metonimicamente, a cena constri-se
a partir da caracterizao de uma cortina, do tipo persiana. Uma de suas lminas
sustenta o traado de uma mo que levemente a pressiona para baixo, deixando
transparecer um par de olhos assustados que, misteriosamente observa o
comportamento do espectador.
O leitor o observador que capta os detalhes da cena, mais
particularmente a expresso dos olhos da personagem. Porm, no se trata de
uma observao distncia, alheia aos fatos em derredor. Registra-se uma
simultaneidade comunicativa atravs do olhar, pois o olho que flagra , ao
mesmo tempo observado, de um outro ngulo. o entrelaamento entre o
desenhar e o comunicar-identificar, que nasce nas entranhas da narrativa e
frutifica, sincronicamente, na forma de decodificao da mensagem proposta.
Embora a ilustrao, inicialmente, estabelea comunicao com o
leitor, no registra a sua incluso no enredo, processo que se verifica atravs do
PRANCHA 3
30
texto verbal: No momento em que o vigia apaga a luz da sala principal do
necrotrio, ele e voc, caro leitor, escutam um sussurro...
38
Uma observao criteriosa, porm, revela que os desenhos,
digitalmente processados, comeam a se organizar como formas apresentando-
se. O traado, embora esmaecido, representa a relao de similaridade com as
formas humanas. Os demais elementos que constituem a composio (estrutura
cromtica, textura, etc.), deixam de ter apenas similaridade na aparncia quando
atuam como coadjuvantes na gerao de imagens que aliceram a narrativa.
Dentro da construo temtica, linhas e cores, associadas a
elementos organizacionais, intercambiam-se para buscar outros signos,
especificamente nesta oportunidade, atravs do delinear da aparncia de uma
tesoura aberta que, na seqncia ilustrativa, sugere o bico de um pica-pau,
transformando-se na colher de sopa oferecida ao leitor, para em seguida insinuar
as articulaes de uma mo.
39
o processo contnuo de auto gerao sgnica
sendo, a todo instante, flagrado pelo olhar do observador que reconhece a
mixagem, a sobreposio de formas que justificam no somente a presena da
ilustrao, mas possibilitam a ampliao do exerccio perceptivo que capta,
desde uma simples abstrao mental, pura qualidade de sentimento, a um
processo enredado de significados.
Ainda que os recursos enderecem obra acentuado estranhamento,
quanto imagem, eles apresentam o real, mas um real visto pelo artista, aquele
que possui a sua marca, o seu fazer potico. Quando o signo visual utilizado
pelo artista, ele, freqentemente, supe que haja um leitor capaz de imaginar,

38
LAGO, Angela. Charadas Macabras. p.3.
39
As pranchas referentes a esse segmento no puderam ser aqui reproduzidas devido ao nvel de opacidade
das mesmas.
31
ainda que hipoteticamente, a sua idia ou a sua inteno e interpret-la de
maneira coesa.
Nas formas ilustrativas, que se assemelham s personagens,
predomina o aspecto caricatural. O esboo do vigia, esquematicamente
posicionado no meio do livro rosto afilado com nariz pontiagudo e orelhas de
abano, culos arredondados, superclio em evidncia, desencadeia no leitor, o
riso, porque tornam perceptveis, em tom exagerado, certas caractersticas
negativas da personagem, que no se restringem ao desenho, mas referem-se
cena propriamente dita, entendidas como a falta de habilidade e conhecimento
da personagem no trato com o capeta. O vigia, ento, apresentado como o tolo
da estria, aquele que no entende nada, portanto, motivo de zombaria.
A cena aponta para o carter referencial da personagem, quanto
forma, em semelhana com o objeto que se quer representar um vigia
apreensivo e contrariado com a presena do capeta no necrotrio.
Demais aspectos, pertinentes ao processo de criao, so tambm
veiculados atravs da linguagem verbal, quando, pela intercesso do narrador,
uma nova personagem introduzida no enredo. A singularidade na forma de
abordagem, entretanto, denuncia a intimidade estabelecida entre narrador e
leitor.
Mas o que aquele cachorro est cavucando ecomendo?
Sei no. At ovo podre, pra cachorro que no ladra,
doce (...). Por falar nisso, tem alma que acha co febril
uma delcia (...). Um rosto lambrecado com mel, um
quitute (...). Voc est com nusea? No me diga que est
imaginando coisas horrveis. Que cabea a sua, leitor (...).
Olha. Rebola a milionria comendo uma fruta (...). Mas
32
c pra ns, o que essa mulher est aprontando,
comendo daquele jeito uma mexe-rica num cemitrio?
Virgem! Levantou a saia! Voc viu? Eu enxerguei at a
fruta da mulher de preto!
40
O recurso metalingstico, igualmente, faz-se presente na narrativa.
O narrador, na tentativa de enfatizar o canal de comunicao utilizado, emprega
sentenas exclamativas, servindo-se da ironia, no para destratar o leitor, mas
como forma de desmistificao do tema tratado. ... comportamento com duas,
ao. Assombrao. As dicas so perfeitas. canja! No tenho culpa se voc
um tanto lerdo...
41
O emprego deste recurso visa no somente atribuir
narrativa um carter descontrado, mas afrontar o limite de raciocnio daquele
que aceita o desafio.
Paralela citao, a ilustrao, de acordo com a prancha nmero 4,
assinala a forma de uma mo sustentando uma colher, enfatizando assim, o meio
utilizado na transmisso da mensagem.

40
LAGO, Angela. Charadas Macabras. p.27.
41
Idem, ibidem, p.14.
33
Segundo J akobson: Sempre que o remetente e/ou o destinatrio tm
necessidade de verificar se esto usando o mesmo cdigo, o discurso focaliza o
cdigo...
42
O fragmento que sintetiza o assassinato da cantora Vilma
exemplar no tocante ao intercmbio entre linguagens. O texto assegura:
A Vil-m costuma ser fatal. Temperamental mais.
Cantora. Foi morta pelo marido, um espanhol que toca
violo. E foi por causa de uma nota que o cachorro lhe
enfiou na goela a enorme faca.
43
Correlativo imagtico, pleno na transmisso da mensagem, e que
antecede a decifrao da charada, faz-se pela simulao de uma fenda, composta

42
J AKOBSON, Roman. Lingstica e Comunicao. Trad. Izidoro Blikstein; J os P. Paes. 8.ed. So Paulo, Cultrix,
1999, p.127.
43
LAGO, Angela. Charadas Macabras. p.23.
PRANCHA 4
34
por linhas curvas paralelas, que se distanciam em certo segmento, as quais
convergem para um nico ponto de fuga, tornando-se referenciais, somente
quando tomam a forma de punhal, assemelhando-se assim, ao objeto
representado.
Presente na mesma composio, conforme prancha 5A, uma mo
esqueltica penetra o punhal na garganta da cantora, insinuando um ferimento
profundo que transpassa o outro lado do pescoo da personagem. A seqncia
ilustrativa captada atravs do recurso da transparncia de elementos, de um
quadro a outro, como bem exemplifica a prancha nmero 5B, que indicia a
ruptura da pgina. O esboo que sugere a inciso no pescoo da personagem,
parte a figura esquemtica representacional, ajuda a decifrar a charada contida
no texto verbal.
35
De acordo com a prancha nmero 6, os traos que marcam a
gestualidade da personagem capeta, atravs da curvatura pronunciada do
superclio e a lngua descomunal para fora da boca, expressam sarcasmo e
deboche.
De acordo com Macedo:
... entre os moralistas cristos era comum a idia de que
os gestos desvelam os segredos da alma, revelando os
impulsos ntimos e as intenes profundas (...). Todos os
traos demonacos eram exagerados intencionalmente. A
arte clerical valorizava as propores e a uniformidade.
Tudo o que rompesse com a fixidez formal e majesttica
do sublime indicava o desregramento e a imperfeio (...).
A fisionomia dos demnios, pelo riso excessivo, apontava
o carter devorador associado s foras satnicas.
44

44
MACEDO, J os Rivair. Riso, Cultura e Sociedade na Idade Mdia. So Paulo, Unesp, 2000, p.83-4.
PRANCHA 6
36
O riso de zombaria,
45
que o traado insinua, refere-se ao aparente
domnio exercido pelo capeta. Reconhece-se, no riso da personagem, a
indiferena pela falta de habilidade do leitor ficcional no trato do sobrenatural,
daquilo que para ele ainda permanece velado.
Paralelamente, o leitor tambm vai identificar, atravs do recurso
da caricatura, um detalhe que desencadeia o riso maldoso. O tamanho
desproporcional da lngua do capeta, insere-se como elemento pertencente ao
domnio do cmico porque indicial de uma deformidade tornada perceptvel.
De modo geral, os demnios possuem uma forma fsica grotesca. Citando mais
uma vez Macedo, o autor caracteriza os corpos demonacos de
desproporcionais, ... aparentando formas hbridas em que se mesclam traos de
anfbios, rpteis, smios e drages.
46
Considerado como ... o ser mascarado
por excelncia (...).
47
, o demnio possui a capacidade de mudar a sua aparncia
e assumir formas diversas, de acordo com a sua convenincia. Assim, o capeta
implacvel tem conhecimento sobre a insegurana do leitor, por isso faz caretas
e mostra a lngua. Mas o leitor sabe que por trs da mscara o capeta pode ser
desnudado e tornar-se ... vtima de seu prprio ardil (...).
48
ento, pela via do
riso que o homem (o leitor) vence o medo. De acordo com o pensamento
medieval:
Ao representar o horror com traos banais, a prpria
banalizao era capaz de tornar o mal tolervel. Talvez
encontremos nesse argumento a chave para compreender
o porqu da figurao do diabo ter provocado duas

45
De acordo com PROPP, Vladmir. Comicidade e Riso. Trad. Aurora F.Bernardini ; Homero F. Andrade.
So Paulo, tica, 1976, p.28.
46
MACEDO, J os Rivair. Riso, Cultura e Sociedade na Idade Mdia. p.84.
47
Idem, ibidem, p.86.
48
MACEDO, J os Rivair, op. cit., p.87.
37
sensaes aparentemente contraditrias, mas
perfeitamente conexas: o terror e o cmico.
49
Verifica-se ento, uma simultaneidade, no tocante ironia. A
postura de zombaria, ora estabelecida, ofusca-se perante a perda de poder do
capeta sobre o leitor e a um ato maquinal que ganha espao e passa a designar
um motivo de sarcasmo. Mostrar a lngua uma prtica popular que expressa
deboche. Na obra, entendida como um ato mecnico e repetitivo que denota
rigidez, por isso, provoca o riso. Assim, as atitudes, gestos e movimentos do
corpo humano so risveis na medida exacta em que esse corpo nos faz pensar
numa simples mecnica.
50
Atentando-se para a semelhana de traos entre a
personagem capeta e o homem, este se insere no mesmo pensamento sobre
aquilo que pode ser considerado risvel.
Outro recorte que sintetiza a diversificao das imagens, como
processo de criao, refere-se representao figurativa do garfo de trs pontas,
instrumento perfurador de uso comum dos demnios, a cujo detalhe o texto
verbal no faz meno. O desenho, de contornos irregulares, conduz o leitor a
formar uma idia generalizada da representao daquele objeto. No nvel
referencial, o observador ser capaz de identificar os aspectos da composio
como caractersticas pertinentes ao objeto que se quer representar. O conceito
que se tem sobre o garfo pontiagudo deve-se ao carter de significao
convencional. Constitui-se regra geral, atribuir ao garfo de trs pontas uma
conotao negativa. Desde a mais remota representao pictrica do demnio, o
instrumento perfurador figura como elemento de tortura, amplamente utilizado,

49
MACEDO, J os Rivair. O Riso, Cultura e Sociedade na Idade Mdia. p. 87.
50
BERGSON, Henri. O Riso. Ensaio sobre a Significao do Cmico. Trad. Miguel S. Pereira. Lisboa,
Relgio Dgua, 1991, p.29.
38
segundo a tradio, para empurrar os condenados para dentro dos domnios de
um suposto inferno.
Os graus de interpretabilidade, em nvel verbal, tomam lugar na
obra com a exposio das charadas que cumprem, no somente com a funo
ftica do texto, mas permitem o desvelar dos significados mais amplos da
narrativa. A estrutura morfolgica, inserida na lngua como sistema de lei,
compe os enigmas e vitaliza as personagens, viabilizando sua atuao na
narrativa. ... Aqui, C. Dentro do sapato, p ... est, t voc falando. C
p t!
51
Quando o observador, pela repetio sucessiva dos sons abstrai,
desse processo, o vocbulo capeta e o conceitua, tem conhecimento da sua
influncia e atuao no enredo. A linguagem articulada, em dilogo com o
leitor, assegura, enfaticamente, a presena da personagem. C p t! voc
est gritando!!! Acaba de ver um vulto chifrudo e lingudo tomar forma e, (...)
escapulir do sapato do vigia.
O confluir, ento, do texto e da ilustrao vai facultar a gerao de
interpretantes. Segundo Santaella, um interpretante :
... uma propriedade objetiva que o signo possui em si
mesmo, haja um ato interpretativo particular que a
atualize ou no. O interpretante uma criatura do signo
que no depende estritamente do modo como uma mente
subjetiva, singular possa vir a compreend-lo. O
interpretante no ainda o produto de uma pluralidade de
atos interpretativos, ou melhor, no uma generalizao
de ocorrncias empricas de interpretao, mas um

51
LAGO, Angela. Charadas Macabras. p.7.
39
contedo objetivo do prprio signo.
52
A obra in totum desvela nveis diversos de interpretantes que no
sero, nesse segmento abordados. Atravs do vocbulo Capeta, que funciona
como um canal de informao, o intrprete, neste particular, o leitor, sofre o
efeito produzido pelo signo, ou seja, apreende o seu contedo significativo.
comum se relacionar, figura do capeta, a fora maligna, o poder, as penas
eternas, etc., porque tais atributos j se tornaram um hbito, fazem parte do
inconsciente coletivo. A presena da palavra capeta potencializa uma
interminvel cadeia de significaes. No tocante ilustrao, o que se verifica,
no somente um dilogo profcuo com o verbal, por meio do recurso
metalingstico, mas um rompimento dos padres diagramticos convencionais.
No alto da pgina, observa-se o garfo de trs pontas abrindo uma lacuna na
pgina. Versatilidade da artista em comunicao direta com o espectador ou o
instinto impulsivo, a auto-afirmao do representante do mal revelando-se e
instigando o poder de interpretao do leitor.
O jogo de semelhanas, ratificado no texto, no se opera no mbito
da qualidade, mas da representao, da sustentao de idias. No domnio da
terceiridade, vocbulos de significados diversos, fisicamente unidos, adquirem
outra conotao e geram outros signos. Ainda que as charadas representem o
meio pelo qual o referente vai estar em relao com o objeto, o enfoque incide
no no modo como ser dito ou demonstrado essa relao. O que est em
evidncia no so os vises das charadas, como so declinadas ou
demonstradas, mas o resultado dessa imbricao sgnica, entendida na obra,
como as respostas, obtidas na forma de outro vocbulo, de carter relevante.

52
SANTAELLA, Lucia. Teoria Geral dos Signos. Semiose e Autogerao. So Paulo, tica, 1995, p.85.
40
O carter polissmico das palavras edifica a matria plstica.
Sentenas aparentemente desconexas ... esse deputado cozinha no forno
aquele outro que badalava na igrejinha ...,
53
geram, por meio do processo
sinonmico e dedutivo, outros signos. Os vocbulos cozinhar e badalar
possuem, pela fora significativa das palavras, o seu correlativo; desse modo,
cozinhar assar e badalava sino. Assim, unidos pela justaposio, os
vocbulos, produzem um outro signo de significado similar: assassino.
O cdigo visual, contudo, no se subordina estrutura verbal; o que
existe uma interligao entre as duas formas de linguagem possibilitando a
auto-referencializao.
Com sutileza o narrador instiga a curiosidade do observador,
induzindo-o a resolver as sucessivas proposies.
Ai! Que calafrio! Leitor, voc devia parar e tomar um
caf ou um refrigerante, muita tenso. Agora voc quer
matar a pau. Ento como que ?
54
O contedo diagramtico, nesse segmento, faz eclodir mente a
idia de uma mo segurando uma colher, para referenciar o contedo verbal.
Dentro desse processo verbal e visual a narrativa vai-se construindo e deixando
marcas, aspecto de cunho interpretativo, que o leitor, paulatinamente, descortina
e justifica.
A falta de horizontalidade do signo verbal, atravs do esboo de um
dedo de unha pontiaguda, desalinhando o vocbulo empurra, enderea
movimentao composio, estabelece semelhana na qualidade da aparncia
do objeto representado; mas, sobretudo, insinua, prxima ao desenho, a sada do

53
LAGO, Angela. Charadas Macabras. p.25.
54
Idem, ibidem, p.15.
41
leitor pela porta, discretamente delineada ao fundo da pgina. O signo visual
transcede funo de suporte de enquadramento do texto; porta e pgina
fundem-se, ento, numa relao diagramtica. Agora voc hesita. Tenta
compreender. Mas est com medo. Sim, medo! Muito medo! O capeta te
empurra ...
55
Texto verbal e texto visual revelam, revelando-se. A representao
de Caio, a personagem esqueleto, personificado, interage com a estrutura
verbal. Pela gerao dos signos o verbo perde a referencialidade com o ato de
cair. Utilizando-se do recurso do trocadilho, o narrador transforma os nomes
prprios Caio e Rui, nos verbos cair e ruir. Este se apresentando, o
Caio. Est caindo aos pedaos.
56
Empurrado por Caio, Rui, que ... j estava
mesmo para ruir
57
, tambm desmorona. Na seqncia, a obra configura uma
mo, indiciando imagem em raio X, que transcede, da imagem (figura)
palavra. A composio por si se auto-sustenta. No seu interior j est introjetada
a idia proposta pela ilustradora a interconexo entre a ilustrao e o texto.
A figura da mo esqulida pode alcanar patamares de
representao tais como a morte, em primeira instncia, como reao que
... pode corresponder manipulao e explorao das imagens do nosso mundo
interior.
58
; desejo de se fazer uma releitura da anatonia do corpo humano,
captar as entranhas, olhar o ser em profundidade ou a possvel relao do
significado da palavra Caio com a disposio do desenho na pgina uma
mo cada, inanimada, em pedaos e, assim, infinitamente. Faz-se oportuna,

55
LAGO, Angela. Charadas Macabras. p.9.
56
Idem, ibidem, p.19.
57
LAGO, Angela, op. cit., p.20.
58
SANTAELLA, Lcia. Teoria Geral dos Signos. Semiose e Autogerao. p.105.
42
ento, nesse momento, a citao de Oliveira: A imagem uma palavra
articulada.
59
O texto, narrado em primeira pessoa, evidencia os traos
autogrficos do locutor atravs do uso da linguagem figurada. Por que estou
lhe contando isso tudo? Ora, ora. isso que um escritor faz. Com um pano
cheio de buracos, sozinho, costura o mundo das idias.
60
Contida no fragmento acima, a metfora refere-se criao
literria. Dentro desse processo de criao, o narrador situa os dois universos
paralelos: o abstrato (idias) e o concreto (palavra escrita). A metfora visual,
que acompanha o texto, pode ser representada como instrumental da tessitura
narrativa. As formas agulha e linha, dispostas na pgina, podem sugerir a
caneta, o pincel ou mesmo o lpis eletrnico
61
que costuram o pano, o prprio
ato da escrita, como pode ser observada na prancha a seguir.
A lacuna, livre, sem costura, entendida como recurso utilizado pelo
narrador, permite ao espectador o seu preenchimento, a sua participao como
co-autor do alicerce narrativo. Naturalmente, por mais que o artista procure

59
OLIVEIRA, Valdevino Soares. Poesia e Pintura. Um Dilogo em Trs Dimenses. So Paulo, UNESP,
1998, p. 45.
60
LAGO, Angela. Charadas Macabras. p.25.
61
A expresso Lpis Eletrnico foi utilizada por Angela Lago no Seminrio Literatura Arte Educao.
Intencionalidades da Ilustrao (1990), realizado na cidade de So Paulo.
PRANCHA 7
43
entrelaar as idias, visando coerncia textual, ele deixa fendas, difceis de ser
preenchidas, porque so inerentes Arte. So espaos abertos onde se lem as
entretinhas, os caminhos, atravs dos quais discute-se, o carter da obra, se
potico-pictrica, somente pintura ou somente poesia, etc, dada sua
complexidade.
A autonomia dada ao leitor, durante o segmento narrativo,
transpe-se, no final, e este passa a figurar como aquele que deve concluir a
estria, atravs da ltima proposio, dar-lhe continuidade, pelo uso reiterado da
palavra ou atribuir-lhe plasticidade, por meio da modalidade pictrica. A
autogerao sgnica, pertinente s configuraes agulha e linha, consiste na
deformao, aqui especificamente, de uma imagem visual em prol de outra,
objetivando-se o seqenciar de uma idia. O verbal assegura: A tumba est
embaixo de um jaz mineiro, um jasmineiro!
62
O texto visual reflete-se, de uma
pgina a outra. Assemelhando-se a portas, as pginas abrem-se, exibindo cenas
que, gradativamente, transformam-se, como se estivessem submetidas ao
efeito cinematogrfico. Na sucesso contnua dos quadros, os galhos de
jasmineiro sugerem a forma de raios, prenunciando tempestade. Parece que
vem tempestade. Vamos embora, que estou ficando nervosa.
63
Enquanto o
traado da agulha e linha e a configurao dos raios assemelham-se ao objeto
representado, os galhos de jasmineiro divergem no grau de representao. A
imagem que a artista disponibiliza na cena em que figura o jasmineiro no
atende ao padro de expectativas do observador. A imagem no transita no
mesmo patamar que o texto verbal, de outro modo, a ilustrao poderia at
mostrar uma rvore, a flor jasmim ou at mesmo um tmulo.

62
LAGO, Angela. Charadas Macabras. p.27.
63
Idem, ibidem, p.29.
44
De sentido denotativo os vocbulos jaz-mineiro, pela
justaposio, no ponto de vista da criao das palavras, transformam-se em
jasmineiro. O jogo de palavras enderea narrativa um tom de descontrao
que chega a provocar o riso. O narrador admite o exerccio da funo potica,
lanando os seus recursos, quando classifica de pura poesia
64
a brincadeira
que faz com os morfemas. Texto e ilustrao entrelaam-se na revelao
esttica.
Perseguindo as pegadas do texto, observa-se que as citaes: O
chato esse capeta atrs de voc, te arrastando linha em frente (...). Cus! E
agora? Onde que viemos parar? Nas ltimas pginas? Na derradeira porta?,
65
compem-se de metforas que evocam, na mente do leitor, no imagens que
correspondem extenso do conceito das palavras empregadas, mas um
significado diverso. Por linha, pode-se entender o percurso que o narrador
instiga o leitor a fazer do necrotrio ao cemitrio, ou, at a prpria seqncia
narrativa na sua completude estrutural. Pginas e porta podem figurar como
sada, abandono, fim, etc. A multiplicidade interpretativa da obra relaciona-se
com o poder de criao e imaginao da artista, sua desenvoltura no trato com a
linguagem verbal e visual.
Vale ressaltar, ainda com relao fora geradora das palavras, o
percurso traado pelo narrador, em parceria com o leitor. A narrativa gravita em
torno do sinistro e do cmico. Como precisar o grau de intencionalidade do
narrador, ou seja, onde estabelecer, se possvel, o limite entre a brincadeira e a
seriedade, o real e o imaginrio?
A ausncia de detalhes na imagem, responde pelo quadro final e
conclusivo da narrativa. Localizado acima, no canto esquerdo de uma das

64
LAGO, Angela. Charadas Macabras. p.27.
65
Idem, ibidem, p.30.
45
pginas est, diagramaticamente referida, a forma de um orifcio de fechadura,
esboada na cor branca.
Na pgina subseqente o jogo de luz e sombra, na gradao cinza-
branco, pode insinuar o traado de uma porta semi-aberta. No mesmo recorte, a
representao de algum que pode ser o vigia, o leitor ou outra personagem
(capeta, fantasma, assombrao, etc) posiciona-se como espio, conforme
podemos observar na prancha seguinte.
O sorriso sagaz, no canto dos lbios da personagem, indica
curiosidade. A figura de traos humanos espia pelo buraco da fechadura, na
tentativa de desvendar o lado oculto da estria.
A representao do ato de olhar s escondidas pode oscilar entre o
comportamento infantil, referenciando criana traquina, encapetada, que a
tudo procura alcanar, ainda que seja atravs da observao indiscreta, ou a um
PRANCHA 8
46
remate do prprio jogo proposto pela narrativa. A personagem que pode ser o
vigia, age como o capeta, que a qualquer preo, mesmo servindo-se da invaso
da privacidade alheia, busca satisfazer um capricho. A atitude no
questionvel, pois faz parte do jogo.
Retrocedendo ao incio da obra, mais especificamente, ao primeiro
quadro, quando o delinear de uma forma humana observa distncia, atravs da
janela, e, estabelecendo um trao de semelhana com a cena final da narrativa,
deduz-se tratar-se da mesma personagem, em atitude similar, ou de uma
possvel transformao.
Aps a apario do capeta, o vigia sai de cena. Ao retornar,
apresenta uma expresso facial tensa. Pelo contedo textual, poderia estar
representando o leitor desorientado, perante o inusitado. Mais uma vez,
apressadssimo leitor, voc virou a pgina..
66
Mas, quando na pgina seguinte,
o verbal informa: As dicas so perfeitas. canja!
67
, a voz do narrador que
comparece. Assim, a figura representacional, de posse de uma colher, no se
reporta mais ao vigia, nem to pouco ao leitor, mas alude ao narrador que
fornece pistas em prol da decodificao da mensagem.
A personagem, plasticamente falando, ausenta-se novamente. No
entanto, o dilogo com o leitor, registrado pelo verbal, prossegue at a
concluso da narrativa.

66
LAGO, Angela. Charadas Macabras. p.14.
67
Idem, ibidem, p.15.
47
Relao de Pranchas referentes ao captulo 1.
Prancha 1 p.21
Prancha 2 p.28
Prancha 3 p.29
Prancha 4 p.33
Prancha 5A p.34
Prancha 5B p.34
Prancha 6 p.35
Prancha 7 p.42
Prancha 8 p.45
48
Captulo 2
DA ORALIDADE AO RECONTAR DOS TEMPOS
MODERNOS EM SUA ALTEZA A DIVINHA
Aquele que sabe contar belas histrias no deve guard-
las para si quando encontra boas pessoas; ao contrrio,
deve transmiti-las, as melhores e as mais picantes, sobretu-
do se os ouvintes estiverem bem sentados e prestando
ateno porque, no fim, todos ficaro contentes.
Annimo Sc. XIII
2.1. Uma aventura no tempo
procedncia de Sua Alteza A Divinha resulta de uma experincia
vivenciada por Angela Lago, como contadora de estrias. De acordo com a auto-
ra, o conto, sobre uma princesa que propunha adivinhas, despertava interesse e
curiosidade nas crianas. Elas o achavam engraado e interagiam comigo,
acrescentando detalhes, contando suas adivinhas prediletas, macaqueando os
personagens.
1
Sendo assim, era uma vez uma princesa que, de adivinhaes em
adivinhaes... Adivinhe! Virou A Divinha. Este o ponto de partida da obra.
Atravs do intercmbio entre texto e ilustrao, a narrativa, apoiada na cultura
oral, trabalha pelas vias do elemento ldico, a criatividade das personagens e do

1
Informao obtida no Seminrio Literatura Arte Educao. Intencionalidades da Ilustrao, proferido por
Angela Lago (1990), realizado na cidade de So Paulo.
A
49
prprio leitor. Perspiccia e imaginao, neste jogo, so pr-requisitos exigidos,
instrumentos que podem ou no assegurar o sucesso ou a derrota do competidor.
O conto narra que uma princesa de nome A Divinha, em tempo de se
casar, impe aos candidatos, como forma de seleo, trs adivinhaes. Ao ven-
cedor a recompensa a sua mo, ao perdedor cabe a forca como punio. Obser-
ve-se que a busca feminina marcada no pelas vias do encantamento, mas pelas
adivinhas que so lanadas. de direito dos pretendentes tambm declinar suas
proposies. Como detentora do poder, a no decifrao das adivinhaes no
implica punio para a princesa. Conclui-se a narrativa com a unio equilibrada
dos princpios masculino e feminino. A Divinha casa-se com Louva-a-deus e so
eternamente felizes.
O perodo de aventuras vivenciado por Louva-a-deus, tem incio
com a partida do aldeo de seu lugar de origem, at a chegada ao castelo. A ao
desenvolve-se ... num fundo geogrfico amplo e variado (...)
2
, muitas vezes,
num pas estrangeiro ou num reino distante, fora do crculo social da persona-
gem. Trata-se do ... tempo mtico, ou melhor, o tempo imutvel, eterno, que se
repete sempre igual, sem evoluo nem desgaste (...).
3
No texto tal referncia
temporal resume-se a: Era uma vez uma (...).
4
,conforme prancha nmero 1.

2
BAKHTIN, Mikhail. Questes de Literatura e de Esttica. Trad. Aurora F. Bernadini. 4.ed. Unesp, 1998, p.
214.
3
COELHO, Nelly Navaes. A Literatura Infantil. 4.ed. rev. So Paulo, Quron, 1987, p.55.
4
LAGO, Angela. Sua Alteza A Divinha. Belo Horizonte, RHJ , 1989, p.1.
50
O perodo em que transcorre a ao isenta-se do aspecto cclico. Desconhece-se
o fator biolgico; as mudanas ambientais e fsicas no so assinaladas, no h o
envelhecimento das personagens; um tempo que ... no altera a vida dos heris,
no acrescenta nada a suas vidas.
5
Um dia (...) logo que o sol raiasse (...).
6
so
referenciais que situam a ao, mas no informam, com preciso, a poca em que
se deram os fatos. Sabe-se que a personagem vai em busca do seu destino num
dia ensolarado, de vero. L pela terceira montanha, sentiu sede (...). Viu um
coqueiro, (...) apanhou um coco e tomou gua de coco.
7
Denominado por Bakhtin de tempo de aventuras
8
, o perodo de vi-
agem da personagem marcado por breves momentos casuais.
Quando deixa sua aldeia que poderia ser ... um stio retirado, com
uma casinha modesta, telha v, rio de um lado, e de outro lado a floresta.
9
,em

5
BAKHTIN, Mikhail. Questes de Literatura e de Esttica. p.216.
6
LAGO, Angela, Sua Alteza A Divinha. p.4.
7
Idem, ibidem, p.12.
8
BAKHTIN, Mikhail, op. cit., p.219-20.
9
PIRES, Cornlio. Selecta Caipira. So Paulo, Livraria Liberdade, 1929, p. 115.
PRANCHA 1
51
direo ao palcio, Louva-a-deus, segundo informa o narrador, leva consigo uma
rosca envenenada, presente de sua antagonista, a vizinha. Percebendo as inten-
es da audaciosa velhinha, a personagem atira a rosca para um cachorro. A par-
tir dessa concomitncia fortuita
10
, instalam-se, na narrativa, novas seqncias
temporais, em cadeia, que vo governar a vida da personagem, favorecendo a sua
performance. Assim, o cachorro envenenado devorado pelos urubus que tam-
bm sucumbem, salvando, indiretamente, a vida do heri. A casualidade, ...
pela intruso das foras irracionais (...).
11
tambm responde pelo suprimento das
necessidades bsicas de alimentao de Louva-a-deus. Bateu um vento e caiu,
em cima da manta, um ninho com sete ooooooovos de passarinho.
12
A utiliza-
o do livro de oraes, como meio de propagao e sustentao do fogo, na
preparao dos ovos , igualmente providencial, como tambm o coqueiro en-
contrado ...l pela terceira montanha (...).
13
O acaso, ento, representa, neste
tempo de aventuras, o meio de ruptura no curso normal dos fatos. De acordo com
o conceito proppiano, mais propriamente, na esfera da ao, a providncia, sim-
bolizada pelo caminho ou, especificamente no conto, pela floresta, ser o doa-
dor(a), aquele(a) que ir beneficiar o heri que parte, em percurso solitrio, vi-
sando o cumprimento de uma tarefa.
Vinculada ao aspecto mgico, a floresta caracteriza-se na obra,
como um espao de colheita, de proviso. Este caminho-floresta o lugar ideal
intruso do acaso que responder pelo curso dos acontecimentos.
O elemento rvore que se dimensiona, medida que a personagem
aproxima-se do castelo, torna-se referencial porque define, com exatido, o local
da competio e auxilia na organizao temporal-seqencial da ao.
Esta presena personificada, cuja inclinao dos galhos sugere mo-
vimento e, o vento, anunciando a chegada da chuva ... depois da segunda mon-

10
BAKHTIN, Mikhail. Questes de Literatura e de Esttica. p.218.
11
BAKHTIN, Mikhail, loc. cit.
12
LAGO, Angela. Sua Alteza A Divinha. p.10.
52
tanha comeou a chover.
14
, indicam que houve uma seqncia temporal (sol,
vento, chuva) e espacial, marcada pelo caminho, atravs da paisagem e seus ele-
mentos (pssaros, coqueiros, cachorro, rvore, etc) dentro do tempo de aventu-
ras.
Entretanto, a pgina que mostra a floresta, entrecortada pelas mon-
tanhas, no o palco de disputa entre a princesa e o plebeu, mas a via, a estrada
que levar ao encontro das personagens.
15
O motivo que conduz Louva-a-deus ao palcio o encontro com a
princesa pela declinao das adivinhas , est estritamente relacionado ao cro-
notopo da estrada.
16
, que deve ser entendido como um meio facilitador do en-
contro. de fundamental importncia o contato entre as personagens, porque
atravs dessa cronotipicidade que o destino do aldeo ser traado.
O castelo, especificamente a sala principal, o lugar destinado
ao. Por ser considerado um ambiente naturalmente reservado s solenidades,
exibies de danas, apresentaes teatrais, etc., ser o local onde ocorrer o
desfecho e a concluso da narrativa.
De modo geral, todo castelo, aos olhos de um leitor de hoje, impres-
siona pelo grau de historicidade que possui. Entendido como um registro vivo do
tempo passado, ele conserva marcas das geraes que por ali viveram. Os caste-
los tinham suas portas abertas para os artistas, particularmente os envolvidos
com a msica e a palavra. A tradio histrica tem mostrado, por outro lado, que
a despeito da solidez de sua construo e conseqente sugesto de poder e impe-
netrabilidade, os castelos foram invadidos e tornaram-se palco de confrontos en-
tre a nobreza e o povo. A presena do castelo, na obra, pode ser interpretada

13
Idem, ibidem, p.12.
14
LAGO, Angela. Sua Alteza A Divinha. p.9.
15
De acordo com a mentalidade medieval o deserto, assim como a floresta, simbolizavam o lugar de encontro
com os demnios, com o terror, com as aparies. No somente refgio para bandidos, assassinos e aventurei
ros, a floresta, igualmente, representava a morada dos eremitas ocultos que fugiam civilizao. Mais detalhes
sobre este assunto, consultar J acques Le Gof em Imaginrio Medieval. Trad. Manuel Ruas. 3.ed. Portugal, Es
tampa, 1994.
16
BAKHTIN, Questes de Literatura e de Esttica. p.223.
53
como uma fuso entre o tempo e o espao; naquele hiato espao-temporal ocor-
reu um evento significativo o confronto entre um membro da nobreza e um re-
presentante do povo. interessante notar que em situaes histricas notveis,
sempre o povo, na figura do fraco, do marginalizado socialmente que vai, em si-
tuaes-limites ao castelo enfrentar e vencer o nobre, o forte, o poderoso.
O entremear do elemento histrico com o elemento social, entendido
no conto, como a competio de vida ou morte, que visa escolha, balizada nos
protocolos polticos e estatais, de um noivo para a princesa faz eclodir na mente
do leitor significados como a importncia do lder para a comunidade, a estabili-
dade conjugal, a renovao, a distino entre classes sociais, mas, principalmen-
te, o tempo folclrico, integrado no seu curso de vida, que carrega no seu bojo as
tradies mitos, ritos, costumes, de fcil reconhecimento porque esto embre-
nhados nas fissuras da existncia humana.
A percepo do tempo folclrico, por parte do leitor, no se d de
forma abstrata, e sim pela prpria contigidade dos fenmenos peculiares do
imaginrio medieval, representados pelas festas rituais, proposies de enigmas,
adivinhas aspectos resgatados na obra.
Particularmente, o hbito de adivinhaes esteve sempre presente na
vida do homem, expressando-se nas mais variadas tcnicas. Mandalas, orculos,
crculos ou esferas contendo desenhos simblicos, nmeros matemticos, datas,
eram amplamente usados para ditar a sorte do interrrogado. Na frica, por
exemplo, quando algum queria saber se uma viagem seria bem sucedida ou no,
bastava consultar um feiticeiro que este jogava, em um crculo traado no cho,
ossos de galinha. Segundo a disposio dos ossos, o indivduo saberia se deveria
ou no empreender a viagem. Na China, at 1960 era comum a prtica do I
Ching, muito apreciado pela populao, que consistia numa espcie de orcu-
lo
17
, onde sacerdotes lanavam moedas como meio de obteno de respostas s

17
Sobre I Ching consultar FRANZ, Marie- Louise Von. Adivinhao e Sincronicidade. Trad. lvaro Cabral,
54
perguntas formuladas pelos interessados.
Cascudo argumenta que: No se encontrou negro, amarelo, verme-
lho, branco, furta-cor sem o conhecimento pelas adivinhas e o encanto em prop-
las e resolv-las.
18
Esses motivos, que aliceraram a sociedade primitiva, entre-
cruzam-se s peculiaridades da sociedade moderna para referenciarem aconteci-
mentos da vida humana, e traarem linhas de comportamento.
2.2. O ldico no adivinhar
jogo, como j foi mencionado anteriormente, como funo cultu-
ral e social, expressa traos da vida do homem comum, habituado aos rituais, s
competies, s atividades ligadas ao relaxamento, descontrao e ao riso es-
pontneo.
Para o homem medievo, acostumado s narrativas orais, a preserva-
o da boa memria significava sabedoria e poder. Nos rituais de proposio de
enigmas, quando o conhecimento do indivduo era colocado em prova, a partici-
pao da comunidade era efetiva, pela oportunidade de entreter-se e tomar parte
como testemunha ocular, no espetculo que avaliaria a capacidade do candidato.
O enigma ou, em termos menos especficos, a adivinhao, , considerando
parte seus efeitos mgicos, um elemento importante das relaes sociais.
19
, sali-
enta Huizinga:
O enigma uma coisa sagrada cheia de um poder secreto
e, portanto, uma coisa perigosa. Em seu contexto mitolgico
ou ritualstico, ele quase sempre aquilo que os fillogos
alemes chamam de Halsrtel ou enigma capital, em que
se arrisca a cabea caso no se consiga decifr-lo. A vida do

So Paulo, Cultrix, 1980, p.7-10 passim.
18
CASCUDO, Luis da Camara. Literatura Oral no Brasil. 3.ed. Belo Horizonte, Itatiaia, 1984, p.65.
19
HUIZINGA, J ohan. Homo Ludens. Trad. J oo P. Monteiron 4.ed. So Paulo, Perspectiva, p.125.
O
55
jogador est em jogo.
20
O autor tambm elucida que ... medida que a civilizao vai evo-
luindo, o enigma bifurca-se em dois sentidos diferentes: de um lado a filosofia
mstica e de outro o simples divertimento.
21
.
Se para Huizinga o enigma, de modo geral, consiste em uma espcie
de adivinha, elemento que penetra o universo do sagrado, do simblico, J olles a
considera uma forma de expresso oral que tem por base a formulao de uma
questo de difcil soluo. Ambos os tericos, entretanto, concordam com os
objetivos e as implicaes da prtica de adivinhaes.
Na Adivinha, (...) h um homem que interroga outro homem
e de modo tal que a pergunta obriga o outro a um saber. Um
dos dois possui o saber, a pessoa que sabe, o sbio; um inter
locutor o enfrenta e levado, pela pergunta, a pr em jogo
suas foras, seus recursos e sua vida, para chegar a possuir
tambm o saber e apresentar-se ao outro como sbio. Tal sa-
ber est presente desde o momento em que a pergunta foi
formulada e no existe, (...) meio de arrancar, a uma pergunta,
sua resposta.
22
Na adivinha, esclarece J olles, sem nos adentrarmos aqui na questo
Forma Simples, aspecto que o autor persegue no seu estudo sobre oralidade, o
indagado sofre opresso, sente-se constrangimento pelo inquiridor que, antecipa-
damente, conhece a resposta e por isso desnuda o candidato deixando-o vulner-
vel, muitas vezes, ao pblico. J olles descreve o interrogador como aquele ... que
possui o saber e a que chamamos sbio, (...) como um ser demonaco; ele , ao
mesmo tempo, um monstro que nos apavora, que nos oprime e nos sufoca.
23

20
HUIZINGA, J ohan. Homo Ludens. p.123.
21
Idem, ibidem, p.125.
22
J OLLES, Andr. Formas Simples. Trad. lvaro Cabral. So Paulo, Cultrix, 1976, p.111-12.
23
J OLLES, Andr. Formas Simples. p.113.
56
Na narrativa, o conceito atribudo ao jogo acentua-se atravs da per-
sonagem Louva-a-deus, que, embora vivencie momentos de tenso agora o
quadro est preto ...
24
, sente prazer e tira proveito da situao, independente do
resultado da empreitada, perante o espectador que valoriza a sua disposio e co-
ragem, declinando-lhe aplausos esfuziantes. Ainda nas palavras de Huizinga:
Um dos mais fortes incentivos para atingira perfeio,
tanto individual quanto social, e desde a vida infantil at aos
aspectos mais elevados da civilizao, o desejo que cada um
sente de ser elogiado e homenageado por suas qualidades.
Elogiando o outro, cada um elogia a si prprio. Queremos ser
honrados por nossas virtudes, queremos a satisfao de ter
realizado corretamente alguma coisa. Realizar corretamente
uma coisa equivale a realiz-la melhor que os outros. Atingir
a perfeio implica que esta seja mostrada aos outros; para
merecer reconhecimento, o mrito tem que ser manifesto. A
competio serve para cada um dar provas de sua superiori-
dade. E isto se verifica principalmente na sociedade primiti-
va.
25
O aplauso consiste num ritual que faz parte de qualquer jogo, alm
do que, uma forma de gratido, pois o jogador, no somente proporciona diver-
so, e neste particular, o riso, mas representa o desejo incrustado de vitria ali-
mentado pela platia.
Ainda que todo combate situe-se fora do real, que signifique uma
evaso da vida cotidiana, o elemento em pauta no jogo, inserido na narrativa,
ainda a vida de Louva-a-deus, o bem real de maior valor da personagem.
Em toda competio, subentende-se ou fora fsica, qualidades do

24
LAGO, Angela. Sua Alteza A Divinha. p.19.
25
HUIZINGA, J ohan. Homo Ludens. p.71-2.
57
corpo ou inteligncia e astcia, como valores do esprito.
Louva-a-deus aspira ao xito, mas o seu esquema ttico de ataque,
contudo, no est traado. O percurso at o castelo, marcado pelas surpresas, im-
pedem-no de formular ou relembrar as adivinhas que proporia ao adversrio. O
aldeo no possui o conhecimento das formalidades necessrias para enfrentar
um desafio previamente ensaiado, mas possui outros atributos conquistados pela
vivncia no seu meio social, alm da experincia adquirida durante seu trajeto
at o castelo, em que vrios imprevistos o favoreceram, como forma de defesa
contra as armas de A Divinha. A soluo para as adivinhas, citando J olles, ser
... a frmula, a palavra de passe, que d acesso a um domnio fechado.
26
, ao do
conhecimento. O sucesso conquistado, quando Louva-a-deus faz uso desses
atributos: criatividade e improvisao no instante do desafio. Desse modo se tor-
na apto a penetrar o mundo de A Divinha, conquistar o corao da princesa.
Atravs do comportamento, aparentemente despojado, Louva-a-deus, como de-
tentor do conhecimento, provou, ao entrar no castelo, que dominava, justamente,
a fora da oralidade, no que diz respeito a sua graa, leveza, versatilidade, possi-
bilidades de se amoldar a situaes diversas. Enfim, Louva-a-deus formulou suas
adivinhas baseado na experincia do caminho; verstil, trouxe seu prprio cen-
rio: a praa, o pblico, o povo, quem de fato possui o poder de improvisar, de
surpreender, de inovar, provocando mudanas at mesmo, - ou principalmente
nos rgidos cdigos lingsticos.
A vitria tambm vai significar a renovao scio-cultural, a salva-
o da personagem que passa a estreitar, desde o momento da ovao, durante a
competio, relaes de amizade, respeito e liderana com o grupo social a que
pertence. Neste aspecto so apropriadas as consideraes de Huizinga
27
quando
define o jogo como sendo ... mais do que um fenmeno fisiolgico ou um refle-
xo psicolgico., mas uma funo significante, aquela que determina a ...

26
J OLLES, Andr. Forma Simples. p.116.
58
presena de um elemento no material em sua prpria essncia.
2.3. Oralidade como linguagem
oncernente linguagem, trata-se de uma narrativa de estrutura sim-
plificada. O uso reiterado de vocbulos e frases, subtrados da oralidade, facili-
tam a assimilao do texto. Eta vizinha! Disse o Louva-a-deus e continuou o
caminho(...) Mas, l pelas tantas, a vizinha comeou a cismar que o Louva-a-
deus poderia desistir no meio do caminho ...
28
.
O desalinho das sentenas indicia a ao das personagens. A se-
qncia ilustrativa que se refere ao contedo textual, conforme mostra a prancha
nmero 2
e que exibe o esboo de Louva-a-deus, subindo a primeira montanha, mostra o
texto disposto de modo inclinado, insinuando a curvatura de uma elevao e con-
ferindo movimento ao livro. A cena que se refere s personagens enforcadas,

27
HUIZINGA, J ohan. Homo Ludens.p.3.
28
LAGO, Angela. Sua Alterza A Divinha. p.9.
C
PRANCHA 1
PRANCHA 2
59
exemplificada atravs da prancha nmero 3, igualmente, encontra ressonncia no
cdigo verbal. No era fcil. E quem no conseguisse, forca!
29
Amparados pelo carter organizacional, esto quatro personagens
suspensos pela forca, centralizados na pgina. A extenso da corda sustenta-se
nos vocbulos: rei, soldado, capito e ladro, desordenando-os. O recurso ope-
rante visa transformao textual da letra, desarticulada do vocbulo, em ilustra-
o, insinuando o suporte, a escora da forca que sofre ligeira inclinao, dada a
fora do elemento suspenso.
A ludicidade presente no quadro alicera-se no resgate de funda-
mentos do acervo popular que tratam de aspectos culturais, trazidos ao longo dos
anos, atravs do ato de contar e recontar. So costumes, crenas, brincadeiras e
cantorias, componentes que alinhavam perodos da Histria, conservados pela
tradio oral, pela memria dos mais experientes, que orgulhosamente comuni-
cam, atravs do tempo, um manancial significativo de informao e conheci-

29
LAGO, Angela. Sua Alteza A Divinha. p.15.
PRANCHA 3
60
mento.
A composio remete-nos, ainda, a uma parlenda passatempo in-
fantil muito divulgado entre as meninas que geralmente praticada antes de se
iniciar um jogo qualquer, para se escolher, por exemplo, com quem estar o
jogo, ou seja, quem ficar por ltimo, quem ser o pegador, quem ficar no pa-
pel difcil da brincadeira. Geralmente, as candidatas a participar do jogo ficam
alinhadas em frente a uma criana que ir apontando o dedo indicador para cada
uma delas e repetindo a fala rei, capito, soldado, ladro, moo bonito do meu
corao. Cada criana recebe, ento, uma palavra, que lhe designa um destino
na brincadeira. A criana que se v apontada, quando a parlenda chega palavra
corao, sente-se aliviada, pois ela foi a escolhida para sair da fila, no sofrer,
no caso, a punio de ser a ltima e cumprir uma tarefa indesejada. A parlenda se
repete at que a seleo da candidata quem sobrar se concretize. Pode ocor-
rer, tambm, o inverso, dependendo do grupo que utiliza a parlenda. A criana
apontada com o dedo no momento em que se ouve o final da parlenda, pode ser a
que ficar com a parte indesejada no contexto do jogo. De qualquer modo, a pr-
tica dessa parlenda se destina eliminao de candidatas num jogo e escolha
conseqente da que ser premiado.
30
Observa-se que a ilustrao, objeto de nossas consideraes, mostra
na corda somente quatro elementos da parlenda a que vimos nos referindo: rei,
capito, soldado e ladro. A ilustrao deixa evidente que esses candidatos j fo-
ram eliminados do jogo disputado com A Divinha, assim como abre um espao
amplo para a indagao: Onde est o quinto elemento: o moo bonito do meu
corao? No contexto em que a narrativa se desenvolve pode-se dizer que ele
est a salvo e que se trata de Louva-a-deus. Todos j esto na forca, porque fo-
ram perdedores; o que escapar da morte ser o vitorioso, o escolhido pelo jogo,
o moo bonito, com quem a princesa se casar.

30
Em outra verso tradicional essa parlenda consiste na criana ir apontando para os botes de sua blusa cada
61
O jogo sonoro, produzido pela repetio dos vocbulos da parlenda
e, principalmente, seu uso nas brincadeiras infantis, na seleo dos envolvidos na
brincadeira o que no deixa de ser uma disputa consagram o alcance da ora-
lidade na composio do texto de Angela Lago.
A representao dos ooooooovos, cados sobre a manta de Louva-
a-deus, indica a versatilidade de Angela Lago quanto a detalhes da ilustrao.
Apropriando-se do vocbulo ovo, atravs da reiterao da letra o, a artista
indica o nmero exato de ovos cados do ninho, sem precisar recorrer, naquele
momento, ao elemento pictrico; razo que no a isenta de usar, em outras se-
qncias, o signo visual, em substituio palavra, para elucidar uma idia e
potencializar a leitura do leitor iniciante. S caso com quem fizer (...) adivinha-
es que eu no adivinhe e que adivinhe trs que eu fizer.
31
O trao virando pa-
lavra e o texto transformando-se em imagem, como o rio e seus afluentes que
permitem o paralelismo, mas jamais a separao (vide prancha nmero 4).

um um pretendente eliminando-os, para conhecer sua sorte no casamento.
31
LAGO, Angela. Sua Alteza A Divinha. p.2.
62
a ilustrao dimensionando-se, reproduzindo o contar, corporificando, descre-
vendo a palavra, informando, atravs da funo pedaggica, que Ges
32
denomi-
na de proposta Informativo-Ldica (...) o livro tem como proposta passar uma
informao, dar uma lio, sim, mas o faz de forma artstica, ldica, tima.
33
aproximando, dessa forma, o leitor que percebe e capta traos e cores.
Referente ao grau de percepo do leitor criana perante o livro
ilustrado, ensina-nos Benjamim que:
No so as coisas que saltam das pginas em direo cri-
ana que as contempla a prpria criana penetra-as no mo-
mento da contemplao, como nuvem que se sacia com o
esplendor colorido desse mundo pictrico. Frente ao seu livro
ilustrado a criana coloca em prtica a arte dos taostas con-
sumados: vence a parede ilusria da superfcie e, esgueiran-
do-se entre tapetes e bastidores coloridos, penetra em um pal-

32
GES, Lcia Pimentel. Olhar de Descoberta. Ilustrao Eva Furnari. So Paulo, Mercuryo, 1996, p.69.
33
Idem, ibidem, p.70.
PRANCHA 4
63
co onde o conto de fadas vive. (...) Nesse mundo permevel,
adornado de cores, onde a cada passo as coisas mudam de
lugar a criana recebida como companheira.
34
A literalidade das respostas atribudas s adivinhaes, em sentenas
como, Louva-a-deus est apertado
35
, o quadro est preto
36
, possui conotao
diversa. Como cdigos de sinalizao, as palavras, que tambm fazem parte do
jogo, dentro do universo do potico, expresso pela obra, geram outros significa-
dos, pois a linguagem potica joga com as palavras, modifica-as, ordena-as,
sempre com a interveno do elemento ldico. Atribuir palavra a fora revela-
dora, implica transformao. O uso reiterado da palavra conduz soluo das
adivinhas que, entrelaadas ao enredo, respondem pela preservao da vida de
Louva-a-deus.
Pensando-se ento, a respeito da produo interativa do signo, pala-
vra e imagem intercambiam-se na teia narrativa, para gerar significados que o
leitor, paulatinamente, desbrava atravs do olhar que se demora atento e crtico
sobre a obra.
Quanto ao texto visual, este desvela uma personagem de aspecto
tenso, dada a sua postura. A personagem, com uma das mos levantadas, referen-
cial que poderia sugerir um momento de espera, a outra mo ocultando os olhos
indcios de concentrao e reflexo e as pernas, entreabertas com os ps volta-
dos para dentro dos joelhos, expressa a no preocupao com a aparncia. A falta
de apuro na gesticulao refere-se ao nervosismo gerado pelo momento derradei-
ro pelo qual vive Louva-a-deus; razo que o levaria a asseverar: - Ningum sabe
que eu sou um adivinhador de (...).
37
(vide prancha nmero 5).

34
BENJ AMIN, Walter. Reflexes: A Criana O Brinquedo A Educao. Trad. Marcus V. Mazzari. So Paulo,
Summus, 1984, p.55.
35
LAGO, Angela. Sua Alteza A Divinha, p.17.
36
Idem, ibidem, p.19.
37
LAGO, Angela, op. cit., p. 21.
64
O carter extra oficial, a descontrao e a liberdade da praa pblica,
dentro do perodo medieval, como bem assinala Bakhtin
38
, so elementos dos
quais pode-se subtrair esse comportamento privado de rigores, que traam o per-
fil de Louva-a-deus, fator que justificaria a adoo da gestualidade e da lingua-
gem rude, avessas aos padres convencionais, pregados pela Igreja e pelo Estado
vigentes da poca. Esclarece Bakhtin que:
... a cultura popular no oficial dispunha na Idade Mdia e
ainda durante o Renascimento de um territrio prprio: a pra-
a pblica, e de uma data prpria: os dias de festa e de feira.
Essa praa entregue festa, (...) constitua um segundo mun-
do especial no interior do mundo oficial da Idade Mdia. Um
tipo especial de comunicao humana dominava ento: o co-
mrcio livre e familiar. Nos palcios, nos templos, nas insti-
tuies, nas casas particulares reinava um princpio de comu-
nicao hierrquica, uma etiqueta, regras de polidez. Discur-

38
BAKHTIN, Mikhail. Cultura Popular na Idade Mdia e no Renascimento. 4.ed. Trad. Yara Frateschi, So
Paulo-Braslia, Edunb, 1999, p.132.
PRANCHA 5
65
sos especiais ressoavam na praa pblica: a linguagem fami-
liar, que formava quase uma lngua especial, inutilizvel em
outro lugar, nitidamente diferenciada da usada pela Igreja,
pela corte, tribunais, instituies .pblicas, pela literatura ofi-
cial, da lngua falada das classes dominantes (aristocracia,
nobreza, alto e mdio clero, aristocracia burguesa), embora o
vocabulrio da praa pblica a irrompesse de vez em quando,
sob certas condies.
39
Na condio de plebeu, Louva-a-deus possui familiaridade com a
linguagem prpria das feiras, com o ambiente das apostas, das encenaes fre-
qentes nos tablados,
40
com os jogos de palavra, dentre eles, a prtica de adivi-
nhaes. Dentro deste contexto est inserido o carnaval, manifestao popular
que:
... representava muito mais, naquela poca, do que a mera
cessao do trabalho produtivo; representava uma cosmovi-
so alternativa caracterizada pelo questionamento ldico de
todas as normas. O princpio carnavalesco abole regras e res-
tries convencionais. Durante o carnaval, tudo o que mar-
ginalizado e excludo, o insano, o escandaloso, o aleatrio se
apropria do centro, numa exploso libertadora. O princpio
corpreo material fome, sede, defecao, copulao torna-
se uma fora positivamente corrosiva, e o riso festivo celebra
uma vitria simblica sobre a morte, sobre tudo o que con-
siderado sagrado, sobre tudo aquilo que oprime e restringe.
41
A festa do carnaval, realizada na praa pblica, significava deixar o

39
BAKHTIN, Mikhail. A cultura Popular na Idade Mdia e no Renascimento. p.133.
40
importante ressaltar que toda essa produo cultural, realizada nas praas pblicas, contava, igualmente,
com a presena e participao ativa do elemento feminino, como informa ZUMTHOR em A Voz e a Le-
tras. Trad. Amlio Pinheiro; J erusa P. Ferreira. So Paulo, Companhia das Letras, 1993, p.63.
41
STAM, Robert. Bakthin. Da Teoria Literria Cultura de Massa. Trad. Helosa J ahn. So Paulo, tica, 1992,
p.43.
66
mundo de pernas para o ar concordar, discordar, ironizar, protestar, infringir.
A praa era considerada o local da extra-oficialidade, da liberdade, da alegria e
do prazer.
Portanto, a postura de Louva-a-deus o descuido na gesticulao e
linguagem, verificado quando do questionamento da princesa, poderiam exprimir
excitao da personagem diante do embarao, mas tambm poderia ser entendi-
do, como mais um ato de improvisao, de brincadeira, de ruptura de padres,
dado o carter descompromissado da personagem, com regras e formalidades.
A simplicidade da personagem, entretanto, no momento do desafio,
vai coadunar com a ansiedade da princesa em obter solues para as adivinha-
es. Velado por um falso propsito, o carter da princesa reveste-se de determi-
nismo e moderado sadismo perante a sorte dos pretendentes. A espera pela res-
posta, principalmente da terceira adivinha, traduz-se na expectativa pelo futuro
noivo e ento, pela realizao de seus sonhos de moa, aspecto muito bem sinali-
zado pela ilustrao.
Disposta do lado direito e inferior da pgina 20, como mostra a
prancha nmero 6,
A Divinha sustenta, com a mo esquerda, a bandeja de prata com estrume de boi.
PRANCHA 6
67
O olhar esttico e o sorriso brejeiro no canto dos lbios no escondem o seu m-
peto de vibrar positivamente em favor de Louva-a-deus, enfaticamente demons-
trado pelos dedos cruzados da outra mo, ligeiramente ocultos, em sinal de sorte
para o competidor. As respostas equivalem a diretrizes que firmam o destino de
ambas as personagens.
As conotaes atribudas s expresses Louva-a-deus est aperta-
do, agora o quadro est preto e ningum sabe que eu sou um adivinhador
de ...,
42
esto em conformidade com o estado de esprito da personagem que,
temendo a represlia, pois as proposies possuem inmeras possibilidades de
erro, joga com toda a sua espontaneidade e obtm sucesso.
Ressaltamos, contudo, que nomear uma bandeja, contendo estrume
de boi, como instrumento de adivinhao, causa estranheza, por tratar-se de um
membro da nobreza, cujos hbitos e costumes figurariam como uma anttese do
realismo grotesco, caracterstico da praa popular.
Diante da primeira adivinha, Louva-a-deus suspira admitindo estar
angustiado, pois naturalmente no possui a resposta. Na apresentao da segunda
proposio, ele se d conta de que a situao -lhe um tanto desfavorvel e deixa
escapulir a expresso o quadro est preto numa tentativa de retratar o
instante de tenso e embarao em que se encontra. Perante a caixa de estrume,
que compe a terceira adivinha, Louva-a-deus ento exprime toda a sua aflio e
desespero. Ao adotar uma conduta de total subestima, a personagem, por sua vez,
serve-se da linguagem informal no com a inteno de acertar a resposta, mas
para desabafar, aspecto que denota uma expectativa diversa daquela prevista pela
Corte e pelo leitor. A utilizao da linguagem grotesca faz parte do mundo da
personagem. De acordo com Bakhtin:
Pode-se dizer que toda a linguagem familiar dos clrigos (e

42
LAGO, Angela. Sua Alteza A Divinha. p.21.
68
de todos os intelectuais da Idade Mdia) e do povo estava
profundamente impregnada pelos elementos do baixo mate-
rial e corporal: obscenidades e grosserias, juramentos, textos
e sentenas sagradas correntes travestidas e viradas do avesso;
tudo que entrasse nessa linguagem, devia obrigatoriamente
submeter-se fora degradante e renovadora do poderoso
baixo ambivalente.
43
A princesa, participante dessa cultura cmica popular, no se sur-
preende com a resposta de Louva-a-deus. A utilizao do estrume, como opo
da adivinha assegura a sua perfeita identificao e interao com o realismo do
baixo material e corporal.
O emprego de uma linguagem considerada rude na resposta ltima
adivinha assegura a vida de Louva-a-deus, no propriamente pela utilizao da
expresso deselegante em si, mas porque ele pde externar, num momento de
conflito, suas caractersticas mais arraigadas que o definem e o posicionam como
indivduo que carrega a tradio, a sabedoria popular. Ainda quanto imagem
dual dos excrementos, na Idade Mdia, bastante elucidativa a citao de
Bakhtin:
As imagens dos excrementos e da urina so ambivalentes
como todas as imagens do baixo material e corporal: elas
simultaneamente rebaixam e do a morte por um lado, e por
outro do luz e renovam; so ao mesmo tempo bentas e hu-
milhantes, a morte e o nascimento, o parto e a agonia esto
indissoluvelmente entrelaados.
44
As adivinhaes, enquanto elemento propulsor da narrativa, podem
ser entendidas como canais de comunicao entre o narrador, o espectador e ou

43
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Mdia e no Renascimento. p.75.
44
Idem, ibidem, p.130.
69
leitor, proximidade que lhes garante cumplicidade.
Toda adivinha possui uma cifra, um segredo que pertence ao inter-
rogador ou a uma sociedade fechada e que, necessariamente, conta com certo
tipo de linguagem, denominada segundo J olles, de especial. Toda a lngua cujo
conhecimento indica filiao num crculo fechado e significa, na clandestinidade
desse crculo, o sentido do universo, por ns denominada lngua especial.
45
Acessar essa linguagem significa estar de posse de um elemento exclusivo do
grupo. No caso de Louva-a-deus trata-se novamente do elemento acaso promo-
vendo o xito do heri. Adentrar a um crculo desconhecido e tentar desvendar a
proposio agua, na narrativa, o interesse do leitor que, vido de curiosidade,
passa a investigar as possveis respostas e as probabilidades de acerto, traando,
dessa forma, o destino de Louva-a-deus.
A resoluo, que pode ser ou no verdadeira, conseguida por as-
sociao de idias. As palavras empregadas na elaborao da cifra, via de regra,
possuem significado diverso daquele usado na linguagem comum.
Em relao disposio natural da platia, assim como tambm do
leitor participativo, em apoiar Louva-a-deus, o que se percebe uma clara ten-
dncia ao justo, ao desejo de restabelecimento do equilbrio, postura que J olles
denomina de moral ingnua. No conto em questo, perante o obstculo imposto
personagem ... o nosso sentimento de justia [do leitor e da platia] foi pertur-
bado por um estado de coisas (...) e que uma outra srie de incidentes e um
acontecimento de natureza peculiar satisfizeram em seguida esse sentimento,
voltando tudo ao equilbrio.
46
Para J olles, o conto escolhe, de preferncia, os estados e os inci-
dentes que contrariem o nosso sentimento de acontecimento justo.
47
- Em Sua
Alteza A Divinha o que se v a perturbao de Louva-a-deus perante o questio-

45
J OLLES, Andr. Formas Simples. p.121.
46
Idem, ibidem, p.199.
47
J OLLES, Andr, op. cit., p.201.
70
namento.
2.4. Os olhos que vem
texto visual, em Sua Alteza A Divinha, constri-se a partir da re-
cuperao de aspectos que remetem a usos e costumes do perodo medieval. O
objetivo da autora dotar a ilustrao de caractersticas tais como estilo de rou-
pas, sapatos e revelar, atravs do vesturio, ... um cdigo de estatuto social ...
48
mantendo, porm, a atualidade do trabalho desenho-digitalizado, ponto a
ponto, at a obteno da imagem; processo compreendido ... entre a mo e a
mquina, o artesanal e o tcnico-industrial, do produto nico multiplicidade da
reproduo tcnica., ensina-nos Oliveira e Palo
49
O alinhamento e a proximidade dos componentes pictricos so pa-
rmetros organizacionais que auxiliam na sustentao da composio. Demons-
trada na prancha nmero 7 est a princesa,
posicionada na parte inferior da pgina, segurando, em atitude sole-
ne, o quadro pintado de preto. A reta que demarca a moldura, sugere o traado de
uma corda que sustenta figuras moas posicionadas vertical e horizontalmente
ovacionando a princesa.

48
GOFF, J acques Le. O Imaginrio Medieval. Trad. Manuel Ruas. 3.ed. Portugal, Estampa, 1994, p.208.
49
PALO, Maria J os; OLIVEIRA, Maria Rosa D. Literatura Infantil. Voz de criana. Srie Princpios. So
O
PRANCHA 7
71
Essa ilustrao, em sentido horizontal, d idia da seqncia da
cena, quando, o traado do cabelo de uma delas alonga-se para formar o bico do
sapato da princesa, formalizada na representao do trao da ilustradora.
Detalhes tais como o traado do sol; em um canto da pgina; a lua
no outro extremo; pssaros e personagens espectadores, so elementos que figu-
ram no programa narrativo.
O texto verbal, ocupando a parte superior da pgina, devidamente
nivelado, permite que o esboo que insinua a princesa adquira movimento, dada
a posio dos ps.
Os espaos em branco, deixados no final das pginas, objetivam
acomodar o olhar do leitor no foco de maior ateno e suavizar-lhe o desconforto
trazido pela estrutura cromtica gradaes da tonalidade azul, delimitando o
jogo de luz e sombra.
No quadro inicial da ilustrao, exemplificado atravs da prancha
nmero 8, percebe-se, esquerda, a introduo dos plebeus, verticalmente posi-
cionados, uns sobre os outros, como se estivessem atuando no meio de um pica-
deiro. No topo, portando uma pequena rede de caar insetos, est um represen-
tante do povo. Note-se que o traado das personagens excede s fronteiras do
real quando se apia na configurao de uma nuvem, sob a presena do sol. Do
lado oposto, e entre as estrelas, apresenta-se a realeza, que conta com a proteo
da lua. Um soldado do Reino, servindo-se tambm da mesma rede de caa, sus-
tenta-se no pice da seqncia de personagens.

Paulo, tica, 1986, p.41.
72
A folha de papel de seda, utilizada no incio e final do livro respon-
de pelo efeito de movimentao das personagens em cena. A interao de movi-
mentos entre as pginas e a folha de seda, no abrir e fechar do livro, dota as per-
sonagens, segundo o olhar do leitor, de dinamicidade, aspecto que poderia insi-
nuar a produo de imagem animada em filme de 8 mm, de velocidade reduzida,
tal qual o impulso de movimento do leitor, no manuseio do livro.
Em outra interpretao, a folha de seda poderia, ainda, atuar como
um demarcador social, uma linha divisria entre a Corte e o Povo, entre a riqueza
PRANCHA 8
73
e a pobreza, o simples e o altamente sofisticado.
Em tonalidade azul acinzentada, configura-se o pequeno inseto po-
pularmente denominado Louva-a-deus
50
que ganha espao na folha de seda, e
passa a mover-se, recepcionando o leitor, logo no incio da obra. A relao esta-
belecida entre Louva-a-deus e as duas classes sociais, estender-se- a Louva-a-
deus homem, aquele ... que andava sempre com um livro de oraes ...
51
A co-
notao referente ao inseto, completa-se em outro referencial homem bom,
despretencioso, dado ao hbito da orao. Em destaque, na folha de seda, Louva-
a-deus homem ganha vida, apoiado em um balano, que se desloca de um lado a
outro da pgina.
As rupturas de linha igualmente invocam a presena do teatro. Ain-
da no quadro acima citado, prestigia-se todos os elementos da composio. O
foco no se restringe somente s tomadas de cena, mas permite uma visualizao
simultnea e ampliada das aes paralelas. Os expectadores, posicionados sobre
a moldura observam, no canto inferior direito da pgina, o delinear de uma mo
que traz, sorrateiramente, dos bastidores, uma corda em forma de forca e a depo-
sita sobre o vocbulo forca, deixando transparecer o cuidado com os detalhes
finais de produo durante o espetculo, conforme se verifica na prancha nmero
9.

50
interessante a alcunha ter sido gerada pelo hbito de andar com um livro de oraes. Na obra, fato bastante
significativo para sugerir religiosidade, ou ainda, indiretamente, que a sorte de Louva-a-deus, poderia ser
antes Graa alcanada pelas freqentes oraes.
51
LAGO, Angela. Sua Alteza A Divinha. p.4.
PRANCHA 9
74
Tudo nos faz crer que a princesa a contra-regra que prepara antecipadamente o
palco para a ao. Salienta-se aqui o confronto sugerido entre a atuao que a
princesa e Louva-a-deus tero no palco logo mais, na seqncia narrativa. Ela
detm o controle interno da situao, j providenciou os materiais e instrumentos
que usar no desafio. No palco, pode-se dizer, que ela atua seguindo as falas do
script, j tendo ensaiado. Louva-a-deus contar com sua capacidade de impro-
visar e de adaptar-se a situaes inusitadas.
Os cortes freqentes das cenas, na virada da pgina, provocam ten-
so. O ato de virar a pgina corresponde, segundo Angela Lago, aos momentos
de suspense, s pausas utilizadas no contar de uma estria. O leitor, ento, sente-
se seduzido a continuar a leitura. Angela Lago
52
justifica o emprego da quebra de
pgina, comparando a construo de um livro a de uma cidade: ... arquitetar um
livro arquitetar uma cidade e virar a pgina como dobrar uma esquina, na ex-
pectativa de uma nova descoberta. Os cortes ainda respondem pelo andamento
da ao, visam agilizar o final da narrativa e com ela efetivar o riso que o desfe-
cho proporciona.
A prancha nmero 10 evidencia que a moldura, de contornos irre-

52
LAGO,Angela. Seminrio: Literatura Arte Educao. Intencionalidades da Ilustrao. So Paulo, 1990.
PRANCHA 10
75
gulares, sofre freqentes rupturas de linha e cede lugar a esboos de pssaros, in-
setos e pequenos arbustos que margeiam a narrativa. A cena que ilustra a entrada
de Louva-a-deus no palcio consolida a afirmao. As retas que compem a
moldura alargam-se, na diagonal, para constituir parte da sala de entrada e trans-
form-la em palco. As curvas delineiam o traado da porta. A extenso da sala do
palcio, sugerida pelo desenho, torna a configurao de Louva-a-deus muito pe-
quena perante a suntuosidade do castelo. A personagem, posicionada no lado in-
ferior esquerdo da pgina, como se v nas pranchas nmeros 11 e 12, contrape-
se princesa disposta na parte superior da pgina seguinte. A cena evidencia
uma anttese social que, atravs da performance de Louva-a-deus, vai sendo, aos
poucos, minimizada.
Em outro quadro, nas margens que delimitam a narrativa, conforme
demonstra a prancha nmero 13, presenciamos a participao do pblico, ansio-
so, assim como tambm o leitor, pelo incio do confronto entre A Divinha e Lou-
va-a-deus. Atenta ao resultado, a platia, por meio de habilidades malabarsticas,
revela feies expressivas, em termos de aprovao, em favor de Louva-a-deus,
sem contudo, tomar lugar efetivo na trama. O cdigo verbal elucida: A esta altu-
ra, a corte estava torcendo para o Louva-a-deus adivinhar. Ele nervoso, bateu a
PRANCHA 11
PRANCHA 12
76
mo na testa e desabafou...
53
A elaborao dos desenhos no persegue um nico plano. As cenas
que demonstram a trajetria de Louva-a-deus at o seu destino, apresentam-se
em ngulos diferentes e assemelham-se s tomadas cinematogrficas, ora filma-
das no plano geral, ora no plano mdio, quando se deseja focar os momentos de
maior importncia da cena, dentro do tempo narrativo. Note-se que o percurso
traado pela personagem paralelamente acentuado pela presena do vento que
inclina a linha do texto, que assume as dimenses de uma montanha, ou acentua
graficamente a entrada do castelo. Louva-a-deus, ao trazer consigo o cenrio
natural mesclado ao cenrio da praa, vamos assim nomear, estar mesclando es-
ses elementos ao cenrio do castelo. Nessa seqncia, pode-se visualizar a trans-
formao ocorrida. O cenrio tradicional e rgido do castelo transforma-se em
palco, capaz de exibir um espetculo para quem j est e ou faz parte do castelo,
pelas mos da princesa, enquanto esta se prepara para receber o desafiante. J se
observa uma abertura nesse movimento de sala para palco, que atinge propores
maiores, com a chegada de Louva-a-deus. O palco transforma-se numa praa, o

53
LAGO, Angela. Sua Alteza A Divinha. p.21.
PRANCHA 13
77
povo, agora, participar do espetculo. Apresentados os atores, o cenrio, as adi-
vinhas podero ser declinadas.
2.5. Formas manifestas do riso
oncluindo, a obra possui um certo nvel de comicidade que no se
restringe ao desfecho, mas abrange outros segmentos da narrativa.
Capa e contra capa demonstradas atravs das pranchas nmeros 14 e
15, asseguram uma imagem de aparncia circular, composta tambm de persona-
gens sobrepostas. Os dois coqueiros paralelos, que servem de base ao suposto
crculo, permite-lhe pequena abertura. O efeito criado pela perspectiva flagra o
esboo da princesa, que sustenta o corpo nos cotovelos, os quais, por sua vez,
mantm-se sobre a letra u do vocbulo sua e apia os dois ps sobre a cabea
de dois representantes um da Corte e outro da Plebe, um cavalheiro nobre e
Louva-a-deus, respectivamente, representando o eixo de uma construo cir-
cunscrita. Esta disposio circular do desenho demonstrando uma prtica, apa-
rentemente inusitada, comprova a expresso marota da princesa.
O efeito do riso provocado por este segmento ilustrativo deve-se, no somente ao
C
PRANCHA 14
PRANCHA 15
78
fato dos desenhos assemelharem-se, segundo Bergson, imagem do homem,
no h cmico fora daquilo que propriamente humano.
54
, mas por tornar
evidente a supremacia que o trono oferece.
A cena presente na capa aparece espelhada na contra capa. Observe-
se, que atravs desse recurso e da circularidade em que as personagens esto dis-
postas, confirma-se a inverso de valores, ocorrida no desfecho narrativo. pre-
ciso que se verifiquem as diferenas entre a posio inicial e final das persona-
gens, examinando-se a capa e a contra capa separadamente, e depois espelhar
uma outra. Na contra capa se percebe que as personagens mudaram de lugar. O
contedo diagramtico mostra a princesa sobre o nobre, comprimindo-a com os
ps; evidencia a mo de A Divinha segurando um dos ps de Louva-a-deus, que
figura no topo do que se sugere uma escala humana. A mudana de lugar nessa
escala pode ser vista como o reconhecimento que Louva-a-deus recebeu aps a
vitria e o casamento.
A posio dominadora da princesa que sustenta o p de Louva-a-
deus pode ser assim interpretada: ao casar-se com Louva-a-deus, a princesa re-
conhece o poder de quem a venceu, do marido, que est no crculo das persona-
gens, acima dela. No entanto, o p do marido sustenta-se em sua mo, ou seja,
ela foi vencida no desafio, casou-se com o vencedor, mas no abdicou do poder
que tinha anteriormente. Louva-a-deus tornou-se seu marido, aparece no topo da
escala, mas no h razo para se supor que ele tenha sido premiado com o reino.
Sob outra perspectiva, a princesa bastante inteligente como so-
berana, conhece a importncia da participao, do apoio, da aliana com o
povo para a manuteno do poder. Nesse caso, Louva-a-deus aparece em desta-
que, mas ainda est com o p na mo da princesa.
Outros quadros ilustrativos, revelam a postura da princesa, ora sen-
tando-se, ora deitando-se sobre as palavras. A ttulo de exemplificao, citamos

54
BERGSON, Henri. O Riso Ensaio sobre a Significao do Cmico. Trad. Miguel S. Pereira. Lisboa, Relgio
79
na prancha nmero 16, a descrio dos passos acelerados da princesa em direo
a Louva-a-deus, no momento da declinao das adivinhas mos artisticamente
posicionadas, o salto do sapato em evidncia (quase pisando o vocbulo moo
desejo disfarado de espezinhar o adversrio) e os dedos cruzados, ocultos pe-
las costas gestos sugeridos pelo automatismo que levam comicidade.
No texto verbal, o cmico, neste mesmo quadro, nasce quando o
narrador, ironicamente introduz, pela linguagem informal, uma expresso que
retrata a contrariedade de A Divinha num momento de desvantagem perante
Louva-a-deus. A princesa levou um susto danado e perguntou como que ele
tinha conseguido acertar. O Louva, sendo sincero, respondeu que no tinha sido
difcil. Ainda por cima quer me fazer de besta! disse a Divinha.
55
A representao pictrica de Louva-a-deus, de modo geral, conduz
ao riso atravs da vestimenta, um tanto desproporcional ao manequim, aos sapa-
tos de bico fino e ao uso do chapu de abas disformes.
O efeito cmico incide igualmente na exteriorizao dos movimen-

Dgua, 1991, p. 14.
55
LAGO, Angela. Sua Alteza A Divinha. p.17.
PRANCHA 16
80
tos da personagem. Costas inclinadas para frente, braos cados, passadas largas
e o livro de oraes em uma das mos lembram uma certa rigidez de mecanismo
onde seriam de se esperar a agilidade atenta e a flexibilidade ...
56
As circunstn-
cias da narrativa levam comicidade porque a personagem, que age de modo
natural, no tem conscincia da falta de elasticidade e sociabilidade, manifesta-
das em seu comportamento, mas a Corte, que representa a sociedade apercebe-se
dessa deficincia. A represso pela falta ser o riso, pois a personagem foge aos
padres estabelecidos pela comunidade, ela ... tende a afastar-se do centro co-
mum em torno do qual a sociedade gravita ...
57
. Porm o pblico, de acordo com
a obra, que pune com o riso insensvel, o mesmo que apia a personagem a su-
perar o medo e a enfrentar a princesa.
No pice do espetculo, quando exigida de Louva-a-deus a habili-
dade de contador de estrias, os seus gestos so maquinais: mos sobre os olhos
evitando a platia, ora os ps voltados para dentro dos joelhos, ora as pernas en-
trelaadas, mo no peito expressando angstia, movimentos que por si ss levam
ao riso.
Contudo, os movimentos maquinais da personagem, desde o incio
da viagem at a chegada ao castelo, ganham dimenso quando, segundo Ber-
gson
58
, ... podemos ligar os seus caracteres a uma causa profunda, a de uma
certa distraco fundamental da pessoa, como se a alma se tivesse deixado de
fascinar, hipnotizar, pela materialidade de uma ao simples.
O fator distrao ser, de acordo com a seqncia de fatos, uma
das caractersticas da personagem, entendido como um defeito de personalidade.
Envolvido com a viagem, Louva-a-deus no se preocupou com a seleo das trs
adivinhas que deveria propor princesa. Ele adentrava ao castelo ...quando re-
solveu fazer trs o que , o que a respeito do que havia acontecido na

56
LAGO, Angela. Sua Alteza A Divinha. p. 18
57
BERGSON, Henri. O Riso. Ensaio sobre a Significao do Cmico. p.23.
58
Idem, ibidem, p.26.
81
viagem ...
59
A distrao, vista na obra como o momento de deslocamento, de
evaso da personagem do mundo real, assinalada por suas atitudes no ato do
questionamento. De acordo com a prancha nmero 17, o corpo contorcido da
personagem expressa seu estado de impacincia, aspecto que o aproxima do
povo que o reconhece como o heri, que tambm humano e vacila num mo-
mento de deciso.
Mas o desespero, que demonstrado atravs do texto em sentenas como: Lou-
va-a-deus est apertado
60
, o quadro est preto
61
, pronunciadas distraidamente,
como forma de exteriorizao de sentimentos, parece ser o componente negativo
de maior realce na personalidade de Louva-a-deus. Instaura-se ento, uma ocor-
rncia singular: a desateno da personagem, que poderia ser classificada de an-
tagnica, e que desencadeia o riso na platia, vai isent-la, em outra vertente, de
uma situao limite, uma vez que o seu desabafo vai coincidir com as respostas

59
LAGO, Angela. Sua Alteza A Divinha. p.14.
60
Idem, ibidem, p.17.
61
LAGO, Angela, op. cit., p.19.
PRANCHA 17
82
esperadas pela princesa. A platia, entusiasmada pela espontaneidade nas atitu-
des de Louva-a-deus, passa, ento, do riso ovao. Assim, o heri livra-se da
condio de embarao e naturalmente aceita a aclamao popular, sem mgoas,
nem ironia.
2.6. A improvisao como recurso: de tolo a heri
onfirmamos, tambm que, sob um outro ngulo de viso, a atitude
de Louva-a-deus, perante o impasse, poderia revelar versatilidade da personagem
quanto prtica da improvisao, considerando ser essa uma caracterstica co-
mum do indivduo medievo, aspecto resgatado pela obra. Devido s experincias
vividas na floresta e ou mesmo sua irreverncia, a personagem no d a devida
ateno elaborao das adivinhas, as quais poderiam t-lo conduzido a recorrer,
no momento adequado, a uma encenao e, assim, ter conquistado a vitria.
No perfil da personagem so ntidos os traos de menino imaturo,
alegre, adaptado ao ambiente descontrado das ruas. Ele simboliza o indivduo
familiarizado com a camada da populao com quem convive na praa pblica,
que interage com as feiras e festas populares, que partilha da intimidade do povo,
quando ... o seu corpo est em contato com os das pessoas de todas as
idades e condies; ele se sente membro de um povo em estado
perptuo de crescimento e renovao.
62
Segundo Bakhtin, na Idade Mdia,
a praa pblica era o ponto de convergncia de tudo que no era oficial, de
certa forma gozava de um direito de exterritorialidade no mundo da ordem e da
ideologia oficiais, e o povo a tinha sempre a ltima palavra.
63
A estria est centralizada, como vimos na personagem-heri Lou-
va-a-deus, personagem aparentemente tola. Seu bom desempenho acidental, as

62
BAKHTIN, Mikhail. Cultura Popular na Idade Mdia e no Renascimento. p.79.
C
83
respostas s adivinhaes coincidem com o estado de esprito da personagem no
momento do desafio e representam traos da linguagem oral.
A figura do bobo, do pcaro significa o ser totalmente idiota,
tolo, a representao da inocncia. O seu comportamento o faz ser visto como
um luntico (do latim lunaticu)
64
, aquele que est sob a influncia da lua, un-
gido pela lua, portanto protegido.
O tolo, por ser considerado puro, eleito pela sociedade como o elo
existente entre o humano e o divino. Adjetivado seguidamente de louco, o bobo
tudo percebe, mas o homem no lhe d ouvidos, pois embora ele tenha a percep-
o para detectar o erro, ele no possui o poder de verbalizar, sem poder, por-
tanto, para reverter uma situao, em princpio. Louva-a-deus pode ser caracteri-
zado, de acordo com a obra, como o bobo que se aventura e arrisca a prpria
vida. Assumindo traos comportamentais do tolo, ele age livremente e revela, na
performance realizada no palcio, traos de seu comportamento irreverente,
rompendo com os padres de ordem social, embora conhecendo os riscos de pu-
nio.
Podemos, ainda, associar a sua figura, aos elementos do povo que se
dispunham em praa pblica, nas denominadas festas dos loucos
65
, realizadas
durante o perodo medieval. No sentido figurado, celebravam e contestavam, os
dogmas da Igreja, servindo-se, para isso, de um repertrio chulo. Argumenta
Bakhtin que as figuras representativas do bobo, do trapaceiro e do bufo possu-
em
... uma ligao muito importante com os palcos teatrais e com os espetculos de
mscaras ao ar livre, elas se relacionam com um certo setor particular, mas muito

63
Idem, ibidem. p.132.
64
FERREIRA, Aurlio B. Holanda. Novo Dicionrio Aurlio da Lngua Portuguesa. 2.ed. rev. Rio de J aneiro,
Nova Fronteira, 1986, p.1053.
65
Sobre manifestaes pblicas na Idade Mdia, consultar BAKHTIN, Mikhail em Cultura Popular na Idade
Mdia e no Renascimento.
84
importante para a vida na praa pblica.
66
A narrativa, perseguindo as trilhas do imaginrio medieval, insinua
a crena insistente na maldade natural mulher e sua predileo feitiaria, te-
mida como agente de Satans, quando aponta em sua personagem feminina uma
oscilao comportamental capaz de promover, no entanto, mais de uma interpre-
tao.
A princesa defende uma postura rgida. Adjetiv-la de m, porque
impe a morte como castigo, seria precipitao. O jogo proposto, os partici-
pantes tm conhecimento das regras e aceitam o desafio. O comportamento des-
corts de A Divinha, durante o combate, acentua-se no momento em que ela se
sente derrotada, mas isso tambm faz parte do plano. Louva-a-deus flexvel no
tocante aceitao natural das coisas, ... por ser simples e sem sofisticao, tem
uma atitude simples e sem pretenses diante da vida.
67
Ainda que a personagem
expresse medo de uma possvel punio, seu carter descontrado consegue ope-
rar mudanas na conduta da princesa que, como o leitor, vai acompanhando o
modo como Louva-a-deus conquista o apoio dos que assistem ao desafio e pas-
sam a torcer por ele. A princesa bastante sagaz como se apresenta durante todo o
tempo deve reconhecer o carter paradoxal que est vivendo. Como futura noiva
demonstra entusiasmo, chega a torcer em determinado momento pela vitria de
Louva, aparenta estar satisfeita por ter encontrado um noivo altura de suas adi-
vinhas, de decifrar o proposto, ou seja, altura dela. Aceitar Louva-a-deus, que
representa o povo, significa reconhecer elementos oriundos de diferentes cama-
das culturais, cujo entrelaamento, a princesa supe ser um elemento importante
para a conservao do poder. Por outro lado, como princesa, poderia sentir-se
ameaada e infeliz, percebendo sua iminente derrota por um plebeu. No entanto,
no o que se verifica. A princesa parece reconhecer e apreciar o poder popular.

66
BAKHTIN, Mikhail. Questes de Literatura e de Esttica. p.275.
67
FRANZ, Marie Louise Von. A Interpretao dos Contos de Fada. Trad. Maria Elci S. Barbosa. So Paulo,
Paulinas, 1990, p.81.
85
Consolidamos essa afirmativa atravs da prancha nmero 18.
O sucesso de Louva-a-deus, representa para ambos, a renovao, o
fim de um ciclo e o incio de uma nova era. A efabulao expressa a inteno do
plebeu em vencer os obstculos e equiparar-se ao nvel social da princesa; mas a
luta bipolar, pois tambm exalta os direitos e sentimentos do elemento femini-
no. O desejo de realizao de A Divinha, visando perpetuao do trono, sobre-
pe-se passividade daquela que aguarda confortavelmente ser resgatada pelo
seu prncipe. A fuso entre o imaginrio o sonho de ter o prncipe e, o mundo
real, expresso pelas lutas e paixes que o homem precisa enfrentar, que lhe vo
conferir a vitria plena, a sua auto realizao como mulher. De outro modo, o
conflito de natureza existencial abordado no texto, vai oscilar entre o amor e a
sabedoria trazida pela palavra, fator que , de acordo com o conto, traz a preser-
vao ou a destruio da vida.
2.7. Pelos veios da cultura medieval
O
PRANCHA 18
86
s estudos sobre a tradio oral tm demonstrado como as variadas
ramificaes de certas narrativas, oriundas, segundo alguns pesquisadores, de um
mesmo centro comum, tm sobrevivido graas expresso popular e literatura,
que, desde h muito, tem resgatado as razes culturais, os mitos, ritos, o sabor do
conto popular e disponibilizado em forma de recriao ao leitor dos tempos mo-
dernos.
Muitas so as recriaes de narrativas construdas base de per-
gunta e resposta, quando o inquiridor ... um ser mais ou menos cruel, ou uma
princesa ou um rei, enfeitiados e ligados a poderes malficos.
68
Para J olles, ...
a frmula sempre a mesma: Adivinha ou morre! Em todos os casos, trata-se
de uma prova capital, na acepo profunda do termo.
69
A ttulo de exemplifica-
o, transcrevemos abaixo variantes da estria da princesa que propunha adivi-
nhas aos seus pretendentes, recolhidas por L. C. Cascudo, Tefilo Braga, Adolfo
Coelho e Slvio Romero, (fontes portuguesas e brasileiras) oportunidade em que
destacaremos os elementos relevantes entre estas variantes e Sua Alteza A Divi-
nha.
A Adivinha do Amarelo
70
Um rei tinha um filha to inteligente que decifrava imedia-
tamente todos os problemas que lhe davam. Ficou, com essa
habilidade, muito orgulhosa e disse que casaria com o homem
que lhe desse uma adivinhao que ela no descobrisse a ex-
plicao dentro de trs dias. Vieram rapazes de toda parte e
nenhum conseguiu vencer a princesa que mandou matar os
candidatos vencidos. Bem longe da cidade morava uma vi-
va com um filho amarelo e doente, parecendo mesmo amalu-

68
J OLLES, Andr. Formas Simples. p.113.
69
J OLLES, Andr. loc. cit.
70
CASCUDO, Luis da Camara. Literatura Oral no Brasil. 3.ed. Belo Horizonte. Itatiaia, 1984, p.321-23 passim.
87
cado. O Amarelo teimou em vir ao palcio do rei apresentar
uma adivinha princesa, apesar de rogos de sua me que o
via degolado como sucedera a tantos outros. Saiu ele de casa
trazendo em sua companhia uma cachorrinha chamada Pita e
um bolo de carne, envenenado, que lhe dera sua prpria me.
Andou, andou, andou, at que desconfiando do bolo o deu
Pita. Esta morreu logo. O Amarelo, muito triste, jogou a ca-
chorrinha no meio do campo e os urubus desceram para co-
m-la. Sete urubus morreram tambm. O Amarelo, com fome,
atirou com uma pedra a uma rolinha mas errou e matou uma
asa branca. Apanhou-a e sem deixar de andar ia pensando
como podia comer sua caa quando avistou uma casinha. Era
uma capela abandonada h muitos anos e caindo de velha. O
Amarelo entrou e aproveitando a madeira do altar fez uma
fogueira e assou o pssaro, almoando muito bem. Ao sair,
viu que descia na gua do rio um burro morto, coberto de
urubus. Estando com sede, encontrou um p de gravat, com
gua nas folhas e bebeu a fartar. Quase ao chegar cidade
reparou em um jumento que escavava o cho com insistncia.
O Amarelo foi cavar tambm e descobriu uma panela cheia de
moedas de ouro. Chegando cidade, procurou o palcio do
rei e disse que tinha uma adivinhao para a princesa. Marca-
ram o dia e o Amarelo, diante de todos, disse:
Sa de casa com massa e Pita.
A Pita matou a massa e a massa matou a Pita
Que tambm a sete matou.
Atirei no que vi.
Fui matar o que no vi.
Foi com madeira santa
Que cozinhei e comi.
Um morto vivos levava.
Bebi gua, no do cu.
88
O que no sabia a gente
Sabia um simples jumento.
Decifre para seu tormento.
A princesa pediu os trs dias para decifrar e o Amarelo ficou
residindo no palcio, muito bem tratado. Pela noite, a prince-
sa mandou uma sua criada, bem bonita, tentar o Amarelo
para que lhe dissesse como era a adivinhao. O Amarelo
compreendeu tudo e foi dizendo: - S direi se voc me der a
sua camisa. Vai a moa e deu a camisa ao Amarelo que con-
tou muita historia mas no explicou a adivinhao. A prince-
sa, vendo que a criada nada conseguira, mandou a segunda e
houve a mesma cousa, ficando o Amarelo com outra camisa.
Na ltima noite a princesa procurou o Amarelo para saber o
segredo. O rapaz pediu a camisa e a princesa no teve outro
remdio seno a entregar. No outro dia, diante da Corte, a
princesa explicou a adivinhao: - Massa era o bolo que a
cachorra Pita matou porque comeu e foi morta pelo bolo,
matando envenenados os sete urubus. A rolinha escapara da
pedrada mas a asa-branca morrera sem que o caador a tives-
se visto. Assou-a com madeira que guardara a Hstia Santa.
Um cadver de burro levava, rio abaixo, uma nuvem de
urubus vivos. A gua que se conserva entre as folhas do gra-
vat, matara a sede do Amarelo. O que no sabia o povo in-
teligente, sabia um jumento que cavava ouro enterrado ao p
de uma rvore.
Era tudo. Bateram muita palma mas o Amarelo disse logo: -
O fim dessa adivinha fcil e eu vou dizer logo antes que
morra degolado!
Quando neste palcio entrei
Trs rolinhas encontrei;
Trs peninhas lhes tirei
89
E agora mostrarei !..
E foi puxando a camisa da primeira criada e mostrando. Fez
o mesmo com a da segunda. Quando tirou a camisa da prin-
cesa, esta correu para ele, dizendo: - No precisa mostrar a
terceira pena! Eu disse a adivinhao porque voc me ensi-
nou, e me ensinou porque meu noivo...
Casaram e foram muito felizes.
71
A Princesa Adivinhona
72
Era uma vez um rei que tinha uma filha muito inteligente e
perspicaz. Quando se ps moa no havia problema que ela
no decifrasse nem pergunta que ficasse sem resposta. O rei
ficou muito orgulhoso da prenda da princesa que disse dar a
mo em casamento a quem desse uma adivinhao e ela no
destrinchasse em trs dias. Muita gente correu para ganhar a
mo da princesa mas ela explicou todas as charadas e os can-
didatos apanhavam uma surra, voltando envergonhados. Os
tempos foram se passando e ningum aparecia para vencer a
princesa.
Muito longe da cidade vivia uma velha com um filho muito
amarelo mas sabido como ele s. O rapaz entendeu de tentar
a sorte e no houve conselho que o arredasse desse desejo.
Agarrou uma espingarda e tocou-se para a cidade.
Depois de muito caminhar, sentindo fome, procurou caar e
avistou um veado comendo. Foi devagar e largou-lhe um tiro
que o matou. Indo esfolar verificou que era uma veada, com
uma veadinha no ventre. Tirou o couro e seguiu viagem.
Adiante encontrou os carpinteiros tralhando numa Igreja e
colocaram um altar muito velho do lado de fora. O rapaz car-
regou umas tbuas desse altar. Adiante parou, fez uma fo-

71
O autor no especifica o local da recolha deste conto.
72
CASCUDO, L. Camara. Contos Tradicionais do Brasil. Belo Horizonte, Itatiaia, 1986, p.290-91.
90
gueira com os paus do altar, assou a veadinha e comeu. Esta-
va comendo quando viu que um jumento morto ia descendo
pelas guas do rio, com muitos urubus trepados em cima.
Bebeu gua que estava entre as folhas das macambiras.
Logo que chegou cidade procurou o palcio do rei e disse
que queria apresentar um problema. No dia marcado a prince-
sa veio para o salo, com muito povo, e o rapaz amarelo sen-
tou-se em cima do couro da veada e disse:
Atirei no que vi
Fui matar o que no vi.
Foi com madeira santa
Que cozinhei e comi.
Bebi gua no do cu...
Um morto vivos levava.
O que me serve de assento,
Acerte, para seu tormento.
A princesa pensou, pensou, matutou, matutou e pediu trs
dias para estudar. Vendo que no arranjava nada mandou
uma criada fazer-se de namorada do Amarelo e saber o se-
gredo. O Amarelo conversou e pediu que a moa lhe desse a
camisa que ele dizia o segredo. A moa cedeu e ele deu umas
explicaes sem p e sem cabea. A princesa mandou outra
criada e saiu a mesma coisa. Foi ela mesma na terceira noite,
e o rapaz pediu a camisa, recebeu-a e deu a explicao direi-
ta.
Quando foram todos no salo a princesa contou tudo direiti-
nho. Atirei num veado, matei uma veada com uma veadinha.
Assei a comida com lenha que fora do altar. Bebi gua da
macambira. Um jumento morto ia levando uma poro de
urubus. Ficou sentado em cima do couro da veadinha.
Fizeram muita festa princesa e o rei ia mandar dar uma surra
91
no Amarelo quando este pediu que o deixassem falar. O rei
deixou. O Amarelo disse:
Quando no Pao cheguei
Trs pombinhas encontrei,
Trs penas j lhe tirei
E agora mostrarei!
E foi mostrando as camisas das criadas. Quando ia puxando a
camisa da princesa, esta correu para ele e disse que queria
casar, que gostava muito do rapaz e s adivinhara porque ele
mesmo dissera. O rei fez o casamento e foram todos muito
felizes.(Natal Rio Grande do Norte)
Uma outra verso compilada por Tefilo Braga narra:
A Princesa que Adivinha
73
Havia uma princesa que adivinhava tudo, e o rei tinha pro-
metido que se houvesse algum capaz de lhe apresentar um
caso que ela no explicasse, se fosse mulher dava-lhe uma
grande tena, e se fosse homem casaria com ela; mas tambm
quando a princesa adivinhava, mandava matar as pessoas que
tinham vindo corte apresentar-lhe o caso. J no havia
quem quisesse ir corte apresentar adivinhas princesa; vai
seno quando uma mulher tinha um filho que passava por
tolo, e diz-lhe o filho:
- Minha me, eu quero ir corte dizer uma adivinha
princesa.
- No sejas tolo, filho; o que que tu lhe vais dizer
que ela no adivinhe?

73
BRAGA, Tefilo. Contos Tradicionais do Povo Portugus. Vol. I. Lisboa, Dom Quixote, 1994, p. 184-86 pas
sim.
92
O tolo tanto teimou, que se meteu a caminho, e como era lon-
ge agarrou de uma espingarda velha, e ei-lo se vai por a fora.
Andou, andou, e l no meio do caminho viu estar um coelho
num fraguedo e zs, ferra-lhe um tiro. Com tanta felicidade
que matou caa; pegou nela, e com uma navalhinha esfolou-o,
e nisto conheceu que era uma coelha, que trazia uma barriga-
da de coelhinhos. No se importou com isso, e foi mais para
diante e viu beira da capelinha de um ermito um brevirio
esquecido, e pegou nele, petiscou fogo e assou com as folhas
do livro a coelha, comeu e foi andando sempre. At que che-
gou corte; no o queriam deixar entrar, porque parecia todo,
porm ele tanto teimou dizendo que queria apresentar uma
adivinha princesa, que o deixaram entrar, na certeza de que
ele ira a morrer como os outros que tinham vindo campar por
espertos. Chegou a hora da audincia, e veio a princesa; o
toleiro disse-lhe esta adivinha:
Atirei ao que vi,
Matei o que no vi,
Entre palavras de Deus
Assei e tudo comi.
A princesa ouviu, tornou a ouvir, e pediu trs dias para dar a
explicao. O tolo ficou no palcio espera da resposta, co-
mendo e bebendo, de perna estendida, sem se lembrar que o
podiam mandar matar. A princesa por mais voltas que deu ao
miolo no atinava com a adivinha, e temendo de ter de casar
com o tolo, mandou uma sua aia, muito em segredo, que lhe
fosse pedir que dissesse como coisa particular o sentido da
adivinhao. Foi a aia, mas o tolo disse que s se ela dormis-
se aquela noite no quarto com ele; a aia no queria, mas
como a princesa lhe prometeu muitas riquezas, sempre se
sujeitou e foi. O tolo teimava em no dizer, enquanto ela no
93
tirasse a camisa, porque a queria em leito; depois disse
umas coisas que no eram a verdadeira explicao, e quando
a aia adormeceu, escondeu-lhe a camisa, de modo que de
madrugada, quando ela se foi, no teve tempo de a procurar.
A princesa no se contentou com a explicao e mandou ou-
tra dama; aconteceu tambm o mesmo. Por fim foi a prpria
princesa, fiada em que a no conhecia; mas ele logo viu pela
marca da camisa quem era, e escondeu-lha tambm, mas
desta vez disse a verdadeira explicao da adivinha. Acaba-
dos os trs dias ajuntou-se a corte, e a princesa veio e disse: -
A explicao da adivinha do aldeo : Atirei ao que vi e ma-
tei o que no vi, porque atirou a uma coelha que achou no
caminho, a qual estava prenhe, morrendo por isso os coelhi-
nhos. Entre palavras de Deus assei e comi, porque assou
tudo nas folhas de um Brevirio com que fez uma fogueira.
O rei ficou muito admirado do talento da sua filha, e disse
que como ele aldeo tinha perdido, j no podia pretender a
mo da princesa, e que se preparasse que ia a morrer. Vai ele,
que se fazia mais tolo do que era, diz:
A princesa ainda no adivinhou tudo, porque ainda tenho a
dizer outra adivinhao que juro que ela no capaz de dar
com o sentido.
A princesa mandou que ele falasse; e ento disse:
Quando no pao fiquei,
Trs pombinhas apanhei,
E trs penas lhe tirei;
Se for preciso as mostrarei.
A princesa ainda se ps a considerar, mas ele tirou do seio a
primeira camisa, e todos viram de que dama era; tirou a se-
gunda, e ia para tirar a ltima quando a princesa, temendo a
vergonha de se ver delatada diante da corte toda, virou-se
94
para ele:
No mostres, no mostres, porque j vejo que s o homem
mais ladino que tem vindo a esta corte, e caso contigo.
(S. J oo de Airo Minho)
Na verso de Adolfo Coelho o conto denominado:
As Trs Lebres
74
Havia noutros tempos um rei que tinha uma filha, que dizia
que s se casaria com o homem que fosse capaz de inventar
uma adivinhao que ela no adivinhasse. Correram ao pal-
cio muitos prncipes e fidalgos, mas todos se foram sem que
as suas adivinhaes ficassem por adivinhar. Foi-se passando
muito tempo e estas notcias corriam por muitas partes, at
que chegaram aos ouvidos de certo aldeo muito esperto e
ele, ao saber disso, disps-se logo a partir para o palcio, sem
saber ainda o que havia de perguntar princesa. Montou a
cavalo, sem mais bagagem do que o seu livro de oraes, e
sem farnel de qualidade alguma. Durante o caminho teve
fome e sede, mas no havia ali em tal descampado nem co-
mer nem gua; ento o aldeo, olhando, viu morto no cho
um coelho, tomou-o, e depois de o esfolar, fez uma fogueira
do seu livro de oraes, assou o coelho e comeu-o. A sede
era, porm, cada vez maior; ele ento fez correr muito o ca-
valo at que o suor lhe caa em bica; apanhou-o no seu cha-
pu e bebeu-o, e depois continuou a sua viagem. Chegado ao
palcio, viu muitos fidalgos que perguntavam adivinhaes
princesa e ela tudo adivinhava. Ento ele, depois de todos
terem falado, levantou-se e disse:

74
COELHO, Adolfo. Contos Populares Portugueses. 5.ed. Lisboa, Dom Quixote, 1999, p.193-95 passim.
95
Comi carne sem ser caada
Em palavras de Deus assada;
Bebi gua que no foi do cu cada,
Nem tambm na terra nascida.
Adivinhai agora, princesa, se de tanto sois
capaz.
Ento a princesa disse que pedia trs dias para adivinhar,
pois era esta a que maiores voltas lhe havia de fazer dar ca-
bea. Ficou o aldeo no palcio espera que a princesa adi-
vinhasse; mas logo no primeiro dia foi ter com ele uma aia da
princesa que lhe disse: Explicai-me o que hoje perguntastes
princesa e far-vos-ei tudo o que me pedirdes. Respondeu o
aldeo: Explicar-vos-ei tudo daqui a trs dias, se me deixar-
des ficar esta noite no vosso quarto. Disse logo a aia que
sim, e fez uma cama no cho para o aldeo dormir nela.
Deitou-se o aldeo e a aia, julgando que ele j dormia, dei-
tou-se tambm; mas logo que viu que ela estava deitada, ti-
rou-lhe uma saia que ela tinha despida e saiu do quarto. No
dia seguinte foi ter com ele outra aia da princesa, a quem su-
cedeu o mesmo que primeira. Finalmente, sem saber o que
tinha sucedido s aias, foi a princesa ao terceiro dia ter com o
aldeo, e ele disse-lhe tambm o mesmo que tinha dito s
aias; mas em vez de tirar uma saia princesa tirou-lhe o seu
chambre de dormir, que era de finas rendas. No quarto dia,
logo de manh, foi o aldeo explicar a adivinhao s aias e
princesa; e hora em que a corte estava toda reunida para
ouvirem, a princesa respondeu logo: A carne sem ser caa-
da, em palavras de Deus assada, era um coelho que encon-
traste morto no caminho e que assaste no teu livro de ora-
es. A gua sem ser da terra nascida, nem do cu cada, era
o suor do teu cavalo. verdade, disse o aldeo. Ento o rei,
levantando-se, ordenou ao aldeo que se fosse para a sua ter-
96
ra pois nada tinha a esperar. Mas ele disse logo: J que a
princesa to inteligente, peo-lhe que adivinhe agora esta:
Quando neste palcio entrei
Trs lebres encontrei,
Todas trs esfolei;
E as peles delas mostrarei.
Ia para mostrar as saias das aias e o chambre da princesa,
mas esta levantou-se logo e disse: Basta, basta, sers meu
esposo, pois s o homem mais esperto que aqui tem vindo.
(Coimbra)
Na verso por Slvio Romero, o conto chama-se:
O Matuto Joo
75
Havia um homem de nome Manuel, casou-se com uma
mulher chamada Maria e tiveram um filho que se chamou
J oo. Os pais, por serem muito pobres, no lhe ensinaram a
ler; porm J oo era muito ativo. Um dia saiu de casa com
uma cachorrinha que sua av lhe tinha dado e foi passear. No
caminho soube que no Reino das trs princesas havia uma
grande festa e um casamento, dentro de quinze dias, com
uma das filhas do rei, se algum decifrasse uma adivinhao.
J muitos homens tinham morrido na forca por no poderem
decifrar a adivinhao.
J oo, chamado o amarelo, voltou para casa e disse ao pai
que ia pelo mundo afora ganhar a sua vida. O pai consentiu e
a me lhe preparou um po muito grande envenenado e ar-
rumou-o na trouxa. J oo partiu com a sua cachorrinha. No
sabendo bem os caminhos, perdeu-se nas montanhas, e, de-

75
ROMERO, Slvio. Contos Populares do Brasil. Belo Horizonte, Itatiaia, 1985, p.109-10.
97
pois de andar muito errado, deu numa campina j de noite.
A dormiu. No dia seguinte passou ele um rio, que tinha tido
uma grande enchente e onde viu um cavalo morto, e os
urubus j lhe estavam dando cabo. Como havia correnteza, as
guas puxavam o cavalo pelo rio abaixo. J oo fez reparo na-
quilo e seguiu o seu caminho.
O sol j pendia quando ele sentou-se debaixo de um p de
rvore para comer o seu po, e nisto deu-lhe o corao aviso
que no comesse sem experimentar em sua cachorrinha.
Logo que ele deu do po cachorrinha, ela expirou. Muito
sentido com isto, ele pegou-a nos ombros, e os urubus come-
aram a atrapalh-lo. Para ver-se livre, ele enterrou a cachor-
ra, mas os urubus a desenterraram, a comeram e morreram.
J oo pegou nos urubus e ps nas costas e seguiu. Chegou a
uma estalagem, e, no vendo ningum, entrou pela porta
adentro. L no fundo avistou sete homens todos armados de
espingardas. Estavam sem comer h trs dias e logo que vi-
ram o J oo avanaram para ele e lhe tomaram os urubus.
J oo largou-se a toda pressa e deixou-os atrs; mas vendo
que o no seguiam voltou e achou-os todos mortos. Escolheu
das sete espingardas a melhor e largou-se. Chegando adiante,
encontrou uma grande campina; j morto de fome e sede,
sentou-se debaixo de um arvoredo. Nisto voa do capim gros-
so uma iampup. O tiro errou e foi dar numa rolinha que
estava entre as folhas. J oo apanhou a rola e a depenou; mas
no achou com que fizesse fogo .para ass-la. Tinha ali uma
santa-cruz e tirou dela uma lasca e fez fogo, assou a rola e
comeu; mas tinha muita sede e, no achando gua, pegou um
cavalo, que andava ali pastando, montou nele e ps-se a cor-
rer at o cavalo ficar bem suado a ponto de correr suor e ele
aparar e beber. Seguiu sua viagem e passou num campo e viu
uma cova onde havia uma caveira; falou-lhe e notou que a
98
caveira tambm lhe falava. Mais adiante encontrou um burro
amarrado debaixo duma rvore a cavar com os ps e conhe-
ceu que o burro cavava uma botija de dinheiro. Seguiu e foi
ter ao palcio do rei e levar a sua adivinhao princesa,
certo de que ela no acertaria. Apresentou-se o J oo e disse
que era pretendente mo da princesa; pois ela era incapaz
de decifrar a sua adivinhao. Riram-se muito dele. Ora!
disseram, quando outros homens sbios no saram-se bem,
tu que um pobre matuto e amarelo que hs de casar
com a filha do rei! o matuto insistiu e foi falar ao rei. O rei
lhe disse: Sabes tu a quanto te arriscas? J oo respondeu que
a tudo estava disposto. Chamada a princesa e muito confiada
em si e debicando o rapaz manda-lhe que proponha a sua
adivinhao. O matuto assim falou:
Sa de casa com massa e pita;
A massa matou a Pita,
A pita matou trs,
Os trs mataram sete,
Das sete escolhi a melhor:
Atirei no que vi
E matei o que no vi,
Com madeira santa
Assei e comi;
Bebi gua sem ser dos cus,
Vi o morto carregando os vivos,
O que o homem no sabe,
Sabia o jumento:
Oua tudo isto para seu tormento.
A princesa mandou repetir, e no foi capaz de decifrar. E ca-
sou com o J oo.
(Pernambuco)
99
As cinco recriaes apresentadas renem em sua estrutura narrativa
elementos similares aos encontrados em Sua Alteza A Divinha. Uma vez mais, a
perspiccia, concretizada atravs do uso correto da palavra, ser o dispositivo de
acesso personagem masculina que tenta a sorte perante a Corte.
Amarelo, ou o aldeo esperto ou J oo (em O Matuto Joo) o tolo
que ressurge, ao longo da narrativa, mostrando sua habilidade discursiva. Bem
longe da cidade morava uma viva com um filho amarelo e doente, parecendo
mesmo amalucado.
76
, afirma o narrador em A Adivinha do Amarelo. Mas, em A
Princesa Adivinhona, ainda que o rapaz seja adjetivado de amarelo, ... sabido
como ele s.
77
Independente da denominao atribuda ao aventureiro, ele re-
presenta a personificao do homem simples do povo, freqentemente iletrado,
acostumado ao ambiente dos lugarejos e aldeias, contudo, detentor da sabedoria
advinda da experincia com os jogos, orculos, com as apostas na praa pblica.
Dos contos selecionados, somente os recolhidos por Cascudo e Ro-
mero apresentam o bolo de carne como elemento antagnico realizao da
aventura empreendida pela personagem.
Neste aspecto, o que diverge, na recriao de Angela Lago, a razo
do envenenamento do po. A antagonista que o prepara tenciona, ilicitamente,
apoderar-se de um bem material de Louva-a-deus. Em Cascudo e Romero obser-
va-se que a me quem tenta decidir a sorte do filho, impondo-lhe at mesmo a
morte como castigo por infringir uma ordem sua.
Podemos observar que os motivos que levam formulao das adi-
vinhas, no trajeto da personagem at o palcio, pouco diferem nas verses apre-
sentadas. (O co, de modo geral, come o alimento envenenado. Os urubus, em
nmero de sete, devoram o co morto e tambm sucumbem. H a insero do
burro que cava um tesouro, a escolha da melhor espingarda e a personagem

76
CASCUDO, Luis da Camara. Literatura Oral no Brasil. p.321.
77
Idem, Contos Tradicionais do Brasil. p.290.
100
sempre favorecida no momento da caa). O acaso, ento, figura como elemento
de destaque no conto e estar, constantemente, favorecendo o protagonista.
Outro ponto divergente entre os contos compilados por Cascudo,
Braga, Coelho e Romero e a recriao apresentada por Angela Lago, o meio de
punio imposta aos candidatos perdedores. Em A Princesa Adivinhona, o narra-
dor no menciona sobre a pena capital, ... os candidatos apanhavam uma surra,
voltando envergonhados.
78
, aspecto assinalado em Adivinha do Amarelo, A
Princesa que Adivinha e O Matuto Joo. No texto de As Trs Lebres no h pu-
nio, o perdedor volta para sua terra sem nada levar.
Verifica-se, entretanto, que o risco de morte no abala os candida-
tos, a no ser em Sua Alteza A Divinha, quando personagem Louva-a-deus
atribudo um grau maior de ingenuidade. Amarelo, por sua vez, caracteriza a fi-
gura do caboclo experiente, malicioso, que, apesar do risco a que se submete ao
entrar no jogo, conhece seu poder de seduo sobre as mulheres e sabe que pode
ganhar. A personagem, ento, ciente da tentativa de manipulao da princesa,
para a obteno das respostas, aceita o jogo por ela estipulado: deixar-se seduzir
pelas criadas. Amarelo, contudo, inverte o jogo e fixa como regra: a resposta pela
camisa de cada uma. Alm de omitir a resposta correta ... Amarelo contou muita
histria mas no explicou a resposta.
79
, toma-lhes uma pea de roupa como
trunfo. Perante o fracasso das empregadas, a princesa, pessoalmente, faz a sua
investida. Ela perde a camisa, mas obtm a resposta.
A personagem, pressupondo a represlia, uma vez que a princesa
conhecia a resposta e a declinaria perante a Corte, elabora, baseado no seu en-
volvimento com as trs mulheres, uma nova adivinha. Com receio de expor a sua
intimidade Corte, j que Amarelo estava de posse de uma roupa sua, a princesa
revela ter obtido as respostas atravs do prprio aventureiro: - No mostres,
no mostres, porque j vejo que s o homem mais ladino que tem vindo a esta

78
CASCUDO, Luis da Camara. Contos Tradicionais do Brasil. p.290.
101
corte, e caso contigo.
80
Em Sua Alteza A Divinha, por no estar registrado no texto o seg-
mento que relata o envolvimento do aldeo com as aias do palcio, o desfecho
d-se com as respostas acidentais de Louva-a-deus s perguntas. Nas recolhas
apresentadas, com exceo de O Matuto Joo, quando a princesa d-se por ven-
cida por ocasio do questionamento elaborado por J oo, baseado em sua viagem,
as demais recriaes so, em nosso parecer, de cunho malicioso. Teixeira, tecen-
do consideraes sobre as adivinhas dentro da cultura portuguesa,
salienta: As adivinhas populares so divertimentos muito a gsto de nosso
povo.
H as mais simples e as mais complicadas; as que se revestem de carter essenci-
almente humorstico e as que tm por finalidade encabular.
81
Acreditamos que a omisso do envolvimento do protagonista com as
moas, em Angela Lago, insere a narrativa dentro do universo infantil e acentua
o lado da competio, da torcida pela adivinhao, na qual esto participando a
princesa, o leitor, o narrador. Do mesmo modo, o narrador convida o pequeno
leitor ao exerccio das adivinhas, no ato de memorizar e posteriormente recriar.
Podemos afirmar que, diferentemente dos demais aventureiros, Lou-
va-a-deus pode ser classificado como o verdadeiro bobo da corte que, inocente-
mente vai ao palcio tentar a sorte, pensando que ser fcil; igualmente, a postu-
ra da princesa revela o desejo de vitria de Louva-a-deus, pois ela cruza os dedos
em sinal de sorte para o pretendente.

79
Idem, ibidem, p.322.
80
BRAGA, Tefilo. Contos Tradicionais do Povo Portugus. p.186.
81
TEIXEIRA, Fausto. Estudos de Folclore. Belo Horizonte. Editorial Panorama, 1949, p.97.
102
Relao de Pranchas referentes ao captulo 2.
Prancha 1 p.50
Prancha 2 p.58
Prancha 3 p.59
Prancha 4 p.62
Prancha 5 p.64
Prancha 6 p.65
Prancha 7 p.69
Prancha 8 p.71
Prancha 9 p.73
Prancha 10 p.74
Prancha 11 p.75
Prancha 12 p.75
Prancha 13 p.76
Prancha 14 p.77
Prancha 15 p.77
Prancha 16 p.79
Prancha 17 p.81
Prancha 18 p.85
103
Captulo 3
A PRAA, O PALCO, A ARTE NO ENREDAR
DE 10 ADIVINHAS PICANTES
Que significa o riso? Que h no fundo
risvel? Que descobriremos de comum
entre um esgar de palhao, um jogo de
palavras, (...) uma requintada cena de
comdia?
Henri Bergson
3.1. A expresso em texto verbal
obra norteada pela competio desencadeada entre as duas
personagens, feminina e masculina, montada atravs de sucessivas adivinhas
lanadas e, imediatamente decifradas pelo leitor, que as interpreta ou busca
suas respostas, ao abrir as abas das pginas que as escondem.
De estrutura verbal e visual similar obra anterior Sua Alteza A
Divinha, a narrativa ganha movimento devido ao ritmo imposto leitura,
primeiramente, devido sintetizao do pensamento, do seqenciar da estria
atravs de sentenas curtas. Esse texto, ainda que graficamente demonstrado
no papel, possui tal pluralidade discursiva na sua totalidade, dada a sua
A
104
cumplicidade com a linguagem verbal, ao se verificar a fala transformar-se em
escritura e a escritura revestir-se de aspectos da linguagem oral. O leitor
facilmente induzido a tomar parte no jogo de palavras ...o que , o que ? e,
aventurar-se na condio de espectador, fora do palco, junto s personagens, a
solucionar as adivinhas. O recurso da ilustrao extrapola o contedo textual,
atravs do amplo recontar. Detalhes como a viso dos bastidores do palco, a
movimentao das cortinas, representada pelo abrir e pelo fechar da aba da
pgina e a insero de elementos (bilhetes, pssaros, insetos) revestem a
ilustrao de significados que o texto verbal no menciona.
Expresses de uso popular revelam a intencionalidade da artista
em resgatar aspectos da tradio oral. Meu amor, meu vagalume, qual a cor
que tem perfume?
1
e Voc sabe, corao, quando duas meninas dormem no
mesmo quarto, que horas so?
2
A informalidade contida nas sentenas,
inseridas na prpria adivinha, dada a disposio dos vocbulos meu amor,
meu vagalume e corao, demonstra a relao de parceria entre as
personagens num mundo que somente pode ser apreendido atravs da
linguagem, em suas diferentes nuanas. Dessa forma, a interao entre os
signos da fala e da escritura, ou seja, o dilogo alicerado no texto e a
escritura encapsulada na linguagem oral, posiciona o leitor como ouvinte,
aquele que atende aos apelos do narrador-personagem atravs do relato, da
declinao das adivinhas; alm disso, o entrelaamento dialgico
3
entre o
texto e a ilustrao torna a obra fecunda, aspecto que permite o descortinar do
palco, na hora do espetculo. Abrem-se as cortinas dos significados mais
amplos do narrar. O desconhecido, tudo que est oculto, seja pelas palavras ou

1
LAGO, Angela. 10 Adivinhas Picantes. Belo Horizonte, RHJ , 1989, p.2.
2
Idem, ibidem, p.4.
3
Sobre dialogismo consultar BAKHTIN, Mikhail em A Potica de Dostoivski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de
J aneiro, Forense-Universitria, 1981.
105
pela intencionalidade do pincel, produz expectativa no observador.
Velado pelas cortinas, est, no emaranhado do vir a ser, o verbal
transformando-se em visual e este incorporando palavra, o resgate de
aspectos da cultura medieval. Por sua vez, esse resgate acha-se alicerado na
idia explcita de jogo, de competio, como atributo natural do ser, e de
ludicidade, atravs do poder mnemnico das personagens e do leitor.
3.2. Pegadas do tempo
a sociedade medieval, plena na transmisso oral das tradies,
a memria aparece como atributo indispensvel aos contadores de estrias,
queles que narravam feitos, declinavam ditos populares, grias e adivinhas.
Os improvisadores, cancioneiros ou intrpretes, como eram
chamados, organizados ou no em grupos, eram pessoas simples do povo que,
pelo carter nmade, tornaram-se os ... porta-vozes do mundo medieval
4
,
propagadores dos mitos e de todo o arsenal que compunha o imaginrio,
garantindo assim, a sobrevivncia dos laos sociais vigentes na poca. Citando
Pidal, Zumthor salienta que a tradicionalidade (...), assimilao do
mesmo, procede da ao contnua e ininterrupta das variantes
5
No entanto,
essa prtica popular, em algumas cidades burguesas, era vista com certa
reserva. Classificados de ... levianos de ofcio suspeito
6
, os recitadores eram
considerados indivduos de vida fcil, que perambulavam de um lugar para
outro; saltimbancos que se vestiam de maneira extravagante, provocando
alvoroo onde quer que chegassem. Esses juglares, designados, segundo

4
ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz. Trad. Amlio Pinheiro; J erusa P.Ferreira. So Paulo, Companhia das
Letras, 1993, p.65.
5
Idem, ibidem, p.145.
6
ZUMTHOR, Paul, op. cit., p.65.
n
106
Pidal, como ... todos los desheredados de la naturaleza y de la fortuna que
poseam alguna aptitud artstica y que gustaban de la vida al aire libre (...).
7
surgiram em diferentes regies da Europa, ao longo da Idade Mdia.
8
A presena desses menestris, em constante recriao,
representou para a sociedade medieval o extravasamento, a liberao da
alegria (em cerimnias e rituais), alm do encapsulamento dos dogmas
clericais, o medo da punio e da severidade dos castigos infernais articulados
pela Igreja.
Os oradores sempre estiveram ligados s festas pblicas e
particulares como casamentos, jantares e batizados da nobreza, atuando como
intrpretes da poesia oral. Como recompensa, muitos conseguiram dos nobres,
reconhecimento e fortuna, aspecto que os isentaria, segundo Zumthor, da
condio de seres marginalizados, como supunham alguns ncleos sociais.
3.3. Praa-palco-livro
nvel de comunicabilidade entre os trovadores e o seu
pblico, nas ruas e praas, utilizando-se de uma linguagem vulgar, oposta
linguagem clssica utilizada pela classe dominante, configurado na narrativa
em atores, leitor e palco, d-se inicialmente pela credibilidade que este ltimo
enderea ao primeiro, sintetizada na performance das personagens no tablado,
visando aprovao do espectador. Por outra vertente, os gestos, a voz do
intrprete, o dizer potico ecoam e capturam os sentidos dos ouvintes que se
sentem propensos a dar vazo tendncia natural de tentar reter na memria

7
PIDAL, Menndez Ramn. Poesa Juglaresca Y Juglares. Buenos Aires, Espasa - Calpe Argentina, 1942,
p.12.
8
As manifestaes estudantis nas praas pblicas, que parodiavam as farsas e moralidades da sociedade
burguesa no sculo XVI remetem aos recitadores de outrora.
o
107
aquilo que foi narrado, cantado. Elucida Zumthor que:
No caleidoscpio do discurso que faz o intrprete de poesia
na praa do mercado, na corte senhorial, no adro da igreja, o
que se revela queles que o escutam a unidade do mundo.
Os ouvintes precisam de tal percepo para (...) sobreviver.
9
,
Essa tambm uma das razes por que 10 Adivinhas Picantes
seduz: h na fala das personagens uma acentuada conotao irnica. Vejamos
um exemplo: deusa das horas eternas! O que voc tem bem no meio das
pernas?
10
No vocativo deusa das horas eternas percebe-se a zombaria
velada, afinal, depois de uma evocao de tamanha reverncia, no era de se
esperar uma pergunta to marota, geradora de ambigidade. Em seguida temos
a adivinha, proposta pela figura que caracteriza a princesa, que se inicia desse
modo: mais reles dos humanos! O que voc faz em algarismos romanos?
Esse vocativo mais reles dos humanos! revela uma faceta especial desse
duelo de palavras, pois nele est implcita a associao de idia que a princesa
deve ter feito, motivada pela sugesto maliciosa que a adivinha do adversrio
props e a conseqente irritao, que a fez, imediatamente, aps ser
interpelada, retribuir o desafio de adivinhaes, utilizando-se de um vocbulo
rude (reles) para dirigir-se a ele. Esse jogo oral agrada ao pblico (leitor), que
se sente envolvido pelo despojamento da linguagem e irreverncia dos atores
em cena, reconhecendo no espetculo traos do seu tempo. Seja, portanto, na
praa pblica, no palco, ou na pgina do livro, a voz do cantador universaliza-
se, porque ganha sonoridade, expressividade. No conto, a voz dos atores
aproxima a platia, estabelece vnculos, por isso entretm, diverte, traz

9
ZUMTHOR, Paul A Letra e a Voz. p.74.
10
Idem ibidem, p.6.
108
conhecimento, resgata o esprito popular medieval. Benjamin salienta que:
... a relao ingnua entre o ouvinte e o narrador
dominada pelo interesse em conservar o que foi narrado.
Para o ouvinte imparcial o importante assegurar a
possibilidade da reproduo. A memria a mais pica
de todas as faculdades. (...) A reminiscncia funda a
cadeia da tradio, que transmite os acontecimentos de
gerao em gerao. (...) Ela tece a rede que em ltima
instncia todas as histrias constituem entre si.
11
Observe-se que a dobra da pgina que esconde respostas,
paradoxalmente revela uma inteno. A resposta est l, na aba da pgina, ou
seja, quem a formulou j a conhece. Ao buscar a resposta, o leitor que no a
conhece, entra no jogo do narrador o jogo de brincar com a imaginao, o
jogo do contar.
O recurso da metalinguagem, igualmente, auxilia na elucidao
da proposio. O segmento ... a cor que tem perfume (...),
12
da primeira
advinha, possui como representao grfica, um boto de rosa sustentado pela
mo da personagem masculina. Sobre a flor, propriamente dita, uma pequena
formiga estabelece um canal de comunicao com o leitor servindo-se de dois
cdigos: a linguagem escrita, pelo emprego do vocbulo rosa aqui est a
rosa ela a resposta e a linguagem gestual quando, pelo dedo indicador,
sinaliza o objeto mencionado, quebrando, dessa forma, a expectativa do leitor
pela resposta da adivinha.
No mesmo recorte, um outro inseto, que sugere, pelo traado, um

11
BENJ AMIN, Walter. Magia e Tcnica, Arte e Poltica. Trad. Srgio P. Rouanet. 7.ed. So Paulo,
Brasiliense, 1994, p. 210-11.
12
LAGO, Angela. 10 Adivinhas Picantes. p.2.
109
louva-a-deus, toca ligeiramente o espinho da rosa. Ao lado do desenho a
citao: muito picante. Percebemos que a palavra picante, neste aspecto,
desdobra-se em outro contexto: picante passa a ser o espinho da rosa, razo
que provoca o riso. A interao entre texto e ilustrao d-se pela relao
existente entre o desenho (a rosa cujo espinho est em evidncia) e a citao
esta picante, referindo-se adivinha. O verbal, que introduzido, ento,
com o sentido malicioso excitante adjetiva as adivinhas, interagindo com o
visual, que qualifica o espinho de picante. Desse modo a adjetivao dos
elementos remete-nos ao ttulo da obra.
3.4. O recontar pela ilustrao
a ilustrao, a disposio do cenrio, a posio das
personagens em cena esto carregadas de caracteres que revelam traos do
medievalismo
13
, como o recurso, que aponta para autores annimos (como os
medievais), com a utilizao de papel de espessura acentuada que dificulta o
recurso da transparncia da imagem.
As abas que se formam nas laterais das pginas sugerem a
movimentao de cortinas suspensas por argolas, presas em um basto,
representado no desenho por uma reta que se alonga de um extremo a outro da
pgina. Paralela a esta reta, uma outra linha demarca horizontalmente o
espao. Trata-se de uma sala de espetculos, cujas cortinas mantm-se
afastadas em meio a uma apresentao teatral. As cenas assemelham-se a um
quadro cinematogrfico, quando as tomadas so filmadas em travelling
14
.

13
Os desenhos que possuem o mesmo carter estilstico de Sua Alteza A Divinha evocam, segundo
depoimento de Angela Lago, sua prpria infncia, os livros lidos e o desejo de recuperao de memrias.
14
Travelling o movimento da cmera sobre um carrinho ou rodas, num eixo horizontal e paralelo ao
movimento da personagem ou ao assunto que est sendo filmado. LEONE, Eduardo; MOURO, Maria
Dora. Cinema e Montagem. Srie Princpios. So Paulo, tica, 1987, p.81.
n
110
A projeo do cdigo cinematogrfico sobre o literrio-infantil uma forma
de a gestualidade, a fuso e a simultaneidade das formas orais penetrarem no
espao narrativo.
15
argumentam Palo e Oliveira. O abrir e fechar da dobra da
pgina permite ao observador identificar vrios planos, atravs dos quais se
desenrola o enredo.
A estrutura verbal com o emprego de sentenas curtas, associada
ao componente visual, impe ritmo e dinamicidade narrativa, nos momentos
de declinao e tentativa de soluo das adivinhas: Sob este cu de anil! Qual
a figura de mais moral no Brasil?
16
Isso corroborado pela flexibilidade dos
movimentos das personagens e quebras de pgina.
As personagens, em meio a quadros diferentes de um espetculo,
levam idia do cmico pelo tom pardico
17
que expressam no ato da
performance no palco. A personagem masculina
18
, atravs da desproporo do
brao ao tamanho do corpo, alcana, por trs das cortinas, uma rosa,
materializando, assim, a resposta adivinha, conforme se pode observar
atravs das pranchas nmeros 1A e 1B.

15
PALO, Maria J os; OLIVERIA, Maria Rosa D. Literatura Infantil. Voz de Criana. Srie Princpios, So
Paulo, tica, 1986, p.61.
16
LAGO, Angela. 10 Adivinhas Picantes. p.8.
17
Neste seguimento a pardia pode ser entendida segundo BAKHTIN, Mikhail em A Potica de
Dostoievski.p. 147, como o discurso que deve ser sentido como o de um outro. Assim, num nico discurso
podem-se encontrar duas orientaes interpretativas, duas vozes. Assim o discurso parodstico.
18
Observe-se que a personagem masculina de 10 Adivinhas Picantes remete personagem Louva-a-deus de
Sua Alteza A Divinha devido s suas caractersticas fsicas e comportamentais.
111
Na seqncia, a representante feminina, exagerada no prolongamento do brao
esquerdo, apodera-se do espelho que, igualmente, foge aos padres
convencionais de tamanho.(vide prancha nmero 2)
PRANCHA 1A
PRANCHA 2
PRANCHA 1B
112
O cenrio, que oscila entre o azul e o cinza, prev outras
presenas em cena. Pequenos insetos e pssaros atuam como personagens
coadjuvantes, como sinalizadores das respostas. O pice corresponde aos
momentos esfuziantes da narrativa quando expresses tais como: Pelos anjos
que tm asa!
19
e cus! terra! obra!
20
so pronunciadas pelas
personagens masculina e feminina, respectivamente.
A comicidade que margeia o texto atribuda, no somente
idia ligada ao automatismo, por meio da estrutura frsica utilizada
reiteramente; mas promoo do clima de cumplicidade entre leitor e
princesa, estabelecido atravs do emprego que esta faz de vocbulos como
amor, vagalume, benzinho, corao, em sua fala, ao dirigir-se
personagem masculina, que parece no se dar conta da ironia presente na fala
da princesa. Nesse aspecto, o leitor assume o papel de quem, assistindo ao
desafio de adivinhas, ri do bobo, que no entende o sentido das palavras que
lhe so dirigidas.
Em cena, as personagens ocultam um jogo de seduo que, de
acordo com seu direcionamento, envereda para o cmico.

19
LAGO, Angela. 10 Adivinhas Picantes. p.9.
20
Idem, ibidem, p.10.
113
Na prancha nmero 3 o desenho referente a esse segmento enfatiza o contorno
das pernas entrelaadas do jovem, enamorado pela princesa, denunciando uma
falsa timidez, postura que combina com a expectativa do espectador de
entender o vocbulo picante no sentido ertico e da a cena proporcionar o
riso. Os ps delicados da princesa que ligeiramente remetem a passos
imperfeitos de ballet, (prancha nmero 4) revelam uma superficial Imparciali-
PRANCHA 3
PRANCHA 4
114
dade em seu comportamento, alheio realidade, despreocupado com a
presena do pretendente incansvel nos argumentos de conquista.
21
O tempo da narrativa marcado pelo corte de cena, na virada
rpida da pgina. O abrir e fechar da dobra da pgina contribui para enfatizar
os intervalos durante o espetculo. Este recurso provoca expectativa no leitor
que, vido de curiosidade, vai em busca das respostas, sinalizadas pelo
narrador, que podem lhe desencadear o riso.
A estrutura verbal dita as diretrizes, fornece pistas ao leitor de
como proceder nas vrias etapas da narrativa. Procedimentos como S abrir
depois de adivinhar as duas
22
(adivinhas) influencia o comportamento do
observador que pode optar por seguir a sugesto do texto ou infringir a regra,
conhecendo antecipadamente a resposta. O leitor, e muito freqentemente a
criana, rompendo ento, com o momento de expectativa, que antecede a
decifrao da adivinha, cai em tentao e abre a cortina, inteirando-se da
resposta. Essa possibilidade, ou seja, essa ruptura das regras do jogo que o
narrador permite ao leitor, faz parte de uma estratgia maior: a elaborao de
uma brincadeira s avessas fazer tudo ao contrrio. Desse modo, reafirma-se
a ludicidade to apreciada pela criana em especial pelo leitor, aquele que
gosta de desafiar as regras do jogo
23
, criando outras novas e de mesmo modo,
sedutoras.
A ilustrao da contra-capa preserva o carter expressivo das
personagens de mos entrelaadas, uma em frente da outra. Com a perna

21
As cenas evidenciam a comicidade porque se trata de imagens que se assemelham ao real. ARISTTELES,
apud MACHADO, Irene A. em O Romance e a Voz. Rio de J aneiro, Imago, 1995, p.180 considera o homem
o nico ser que provoca o riso, porque, sem dvida, o nico que tambm ri.
22
LAGO, Angela, op. cit. p.5.
23
No contexto de 10 Adivinhas Picantes, parece-nos que a intruso S abrir depois de adivinhar as duas
mais uma brincadeira da autora, reproduzindo uma voz autoritria de quem impe regras rgidas em
situaes em que no se faz necessrio, limitando-se assim a experincia humana de encontrar novas
possibilidades.
115
esquerda, ligeiramente inclinada para trs, a princesa sorri para o parceiro que
mantm os ps voltados para o lado interno dos joelhos. Desatento aos
prprios movimentos, a personagem parece brincar com as mos da princesa,
postura que poderia retratar o incio de um relacionamento afetivo ou remeter
a uma prtica infantil quando da relao de amizade e unio entre as partes,
como demonstra a prancha nmero 5.
Por fim, admitindo-se que 10 Advinhas Picantes e Sua Alteza A
Divinha so obras imbricadas, do ponto de vista estilstico e temtico,
compreensvel se faz o emprego comum dos mesmos recursos. O processo de
insero do desenho na representao da letra, notadamente utilizado em Sua
Alteza A Divinha, concretiza-se na capa de 10 Adivinhas Picantes.
PRANCHA 5
116
Observa-se que as letras s e p, dos vocbulos adivinhas e picantes,
conforme prancha nmero 6, assemelham-se a pequenas cobras com a lngua
em evidncia, cuja presena, no contexto narrativo explorado, merecem
algumas consideraes.
Em primeiro lugar, a lngua da cobra, na palavra picante, acentua seu prprio
significado e; em seguida, a palavra picante que faz referncia lngua da
cobra. Por redundncia se classifica a lngua da cobra de picante, ou seja,
capaz de picar. Mais um estimulante jogo polissmico entre palavra e
ilustrao.
De acordo com o olhar de cada leitor, a cobra pode estar ali
presente, aludindo ao poder de seduo exercido pelas palavras sobre as
pessoas. Associada, tradicionalmente, queda de Ado no J ardim do den,
quando, a cobra, aps seduzir Eva a experimentar um fruto proibido, sugere-
lhe que oferea o mesmo fruto ao homem. De acordo com o mito, ambos so
seduzidos pela lngua enganosa da cobra. J ulgamos coerente interpretar a
PRANCHA 6
117
presena das cobras sobre as palavras adivinhas e picante, como forma de
reforar que, numa prova de adivinhas, ganha quem melhor souber lidar com
as palavras, ou seja, quem souber decodific-las, perceber como se camuflam,
aplicar-lhes significaes novas. Ainda podemos apontar outro significado
para as cobras: as lnguas em evidncia podem anunciar o perigo de queda
para aquele que no souber decifrar a charada proposta pelo outro.
Na contra capa da obra, encontra-se uma observao: Quer
mais? Leia Sua Alteza Advinha., cuja estrutura frasal nos permite reconhecer
a voz de Angela Lago sobreposta voz do narrador, infringindo mais uma vez
as regras tradicionais do contar, rompendo a ordem da brincadeira,
subordinando no contexto da narrativa a nobreza e a linguagem formal ao
popular e oralidade.
118
Relao de Pranchas referentes ao captulo 3.
Prancha 1A p.111
Prancha 1B p.111
Prancha 2 p.111
Prancha 3 p.113
Prancha 4 p.113
Prancha 5 p.115
Prancha 6 p.116
119
Captulo 4
O ESCAVAR DO IMAGINRIO EM INDO NO
SEI AONDE BUSCAR NO SEI O QU
Se a terra redonda, onde fica o fim do mundo?
Camila 08 anos
4.1. O continuum do contar
obra narra a trajetria de ...um menino muito zonzo. Vira e
mexe, ele vinha com a mesma resposta: - Sei no (...) foi se apaixonar por uma
princesa muito sabida, que adorava fazer piada custa dos outros.
1
Pelo
vocbulo zonzo caracteriza-se a ingenuidade do menino que, ligado ao uso
reiterado da expresso sei no, por ele empregada, tornou-se conhecido pela
designao de Seino
2
.
A princesa, aproveitando-se da falta de malcia de Seino,

1
LAGO, Angela. Indo No Sei Aonde Buscar No Sei O Qu. Belo Horizonte, RHJ , 2000, p.1.
2
Em depoimento a esta pesquisadora em fevereiro de 2001, em So Paulo, Angela Lago salienta que a
proposta inicial de se elaborar um trabalho que contivesse aspectos referentes oralidade, associado a
elementos do imaginrio medieval e tangenciado pela ludicidade, surgiu aps um comentrio ouvido por
acaso: to distrado que se mandarem ele ir no sei onde, ele vai.
A
120
prope-lhe, jocosamente, casamento, como forma de recompensa pela tarefa a
ele designada. A personagem ento submetida a uma prova ir no sei onde
e trazer-lhe no sei o qu. Seino, caracterizado como o bobo da corte, que
naturalmente se expe e motivo de zombaria, aceita a incumbncia e sai
disposto a cumpri-la. Dentro do universo da personagem, a crena na
conquista do respeito e do amor da princesa tal que ele parte em busca de
algo inexistente, visando satisfao de um desejo.
Seino , na esfera da ao do heri, segundo os estudos de
Propp, aquele que deixa o lugar de origem, envolvido numa aventura marcada
pelas provas difceis que precisa superar. A tarefa de Seino relaciona-se
conquista do objeto mgico, que no precisa, dentro da narrativa,
especificamente, ser considerado mgico. O objeto deve, no entanto, ser
portador de um carter misterioso. Esse caso, aplica-se a Seino, pois o
contedo do objeto que lhe destinaram conseguir jamais foi revelado
ningum neste mundo sabe o que tem um embrulho do diabo ...
3
, salienta o
narrador. Entre os ditos populares, h um que atribui ao diabo a conotao de
tramia, coisa mal feita. Se inserirmos tal considerao dentro do texto,
ento o embrulho pode conter inmeras surpresas ou revelaes e, na narrativa
tornar-se o responsvel direto pela sorte do heri, que alcana a realizao
plena o amor e o respeito da princesa.
O povo, encarnando um dos antagonistas de Seino, tenta
ludibri-lo quando questionado a respeito da estrada para ir a no sei
onde.(...) Pois se perguntava o caminho a estrada para ir a no sei onde
caam na risada ou mandavam ele ir para o inferno.
4
Disposto em uma das
pginas, est o traado de figuras que se assemelham aos tipos populares

3
LAGO, Angela. Indo No Sei Aonde Buscar No Sei O Qu. p.23.
4
Idem, ibidem, p.6.
121
encontrados nos contos dessa natureza, apontando para Seino. Ocultando
com as mos o riso de zombaria, os representantes do povo divertem-se da
ingenuidade da personagem, conforme podemos observar na prancha
nmero 1.
Mas, a Corte e o povo, inicialmente opositores do protagonista,
tambm atuam como personagens coadjuvantes quando, pela espontaneidade,
auxiliam Seino no seu encontro com o Diabo e no posterior desfecho feliz da
estria.
4.2. Nas trilhas da cultura medieval
riso, mais especificamente, o riso que poderia representar
zombaria, na narrativa, est ligado mentalidade do homem medieval, que
atribua ao riso ... um profundo valor de concepo do mundo (...) uma das
formas capitais pelas quais se exprime a verdade sobre o mundo na sua
O
PRANCHA 1
122
totalidade, sobre a histria, sobre o homem ...
5
Compreende-se, a partir da
citao, que o conceito de riso, na Idade Mdia, est inserido dentro do
universo do extremamente importante, marcado pelo princpio bipolar da
degradao e regenerao, embora a insistente posio do Feudo-Clericalismo,
da poca, em atribuir ao cmico a extra oficialidade, reservando s verdades
consideradas primordiais os tons srios. Ensina-nos Bakhtin que ... o tom
srio afirmou-se como a nica forma que permitia expressar a verdade, o bem,
e de maneira geral tudo que era importante (...). O medo, a venerao, a
docilidade, etc., constituam por sua vez os tons e matizes dessa seriedade.
6
, igualmente, de Bakhtin a afirmativa que esclarece o teor representativo do
riso na Idade Mdia:
A riqussima cultura popular do riso na Idade Mdia viveu e
desenvolveu-se fora da esfera oficial da ideologia e da
literatura elevada. E foi graas a essa existncia extra-oficial
que a cultura do riso se distinguiu por seu radicalismo e sua
liberdade excepcionais, por sua implacvel lucidez. Ao
proibir que o riso tivesse acesso a qualquer domnio oficial da
vida e das idias, a Idade Mdia lhe conferiu em
compensao privilgios excepcionais de licena e
impunidade fora desses limites: na praa pblica, durante as
festas (...). E o riso medieval beneficiou-se com isso ampla e
profundamente.
7
O ato de rir neste conto no assume, portanto, um carter
destrutivo. O povo ri do heri, porque a designao que recebe e sua pronta

5
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Mdia e no Renascimento. Trad. Yara Frateschi. 4.ed. So
Paulo-Braslia, Hucitec, 1999, p.57.
6
Idem, ibidem, p.63.
7
BAKHTIN, Mikhail. op. cit., p.62.
123
aceitao , de fato, naquele momento narrativo, hilria. A postura jocosa das
personagens, diante do comportamento ingnuo de Seino, que no percebe
sequer a zombaria que lhe destinam, obstinado em cumprir a tarefa de receber
o prmio, confirma o clima de liberdade e espontaneidade que caracterizava
eventos populares tpicos da Idade Mdia. Seino o heri; os populares, o
pblico, que ri, emociona-se, chora, dependendo do que assiste. Por outro
lado, o riso, a zombaria popular dispensados a Seino, dentro da construo
narrativa, s vem reforar, no final, o valor da vitria. O heri escarnecido
quando aceita o desafio. A extenso do descrdito que recebe est
proporcionalmente associada extenso da aclamao final. Obstinado, ento,
pela tarefa, Seino no percebe a brincadeira e ignora a postura jocosa das
personagens.
4.3. Brincando de imaginar
e corpo mirrado, a personagem percorre, no seu trajeto
solitrio, caminhos que poderiam expressar, segundo a disposio de linhas, e
o emprego reiterado da tonalidade vermelha, aridez e sinuosidade. Em
momento algum menciona-se a distncia que a personagem tenha percorrido
at chegar aos domnios do demnio, considerando-se o conceito popular
atribudo ao inferno: um fogo eterno localizado nas profundezas da terra. A
narrativa apenas sinaliza que o aventureiro ... de tanto andar e andar.
8
, chega
ao inferno, porque tambm ... a estrada acabava ali ...
9
, aspecto que poderia
levar o leitor a concluir tratar-se de um longo percurso chegando at mesmo
ao fim do mundo, no restando personagem outra opo a no ser aceitar a

8
LAGO, Angela. Indo No Sei A Onde Buscar No Sei O Qu. p.8.
9
Idem, ibidem, p.10.
d
124
hospitalidade do capeta. Note-se que o comportamento do demnio exprime
uma infrao. A aceitao passiva de Seino ao inferno e o tom irnico
empregado ao concordar com a personagem que o inferno era no sei onde,
denota uma reao s avessas. O leitor ento, instigado por essa inverso de
dados conduzido, de maneira ldica, a outros questionamentos
10
, cujas
respostas ele no encontra porque est na intencionalidade do narrador deix-
las em suspense.
4.4. Dos meandros do conto popular ao sabor da expectativa s avessas.
o conto, enquanto gnero, a ao ocorre geralmente ... num
pas distante, longe, muito longe daqui, passa-se h muito, muito tempo, ou
ento o lugar em toda e nenhuma parte, a poca sempre e nunca.
11
A ao se passa, parcialmente dentro de um certo castelo e nas
dependncias do inferno. Nesse tempo de aventuras, assinalam-se momentos,
hiatos extratemporais
12
que correspondem organizao do enredo. Assim o
texto informa, como referencial de tempo que ... durante dias, a diverso do
palcio foi caoar do bobo ...
13
e que o diabo, numa bela tarde ... acordou
com saudades das novidades de sua seo.
14
; enfim, situaes, dados que no
contribuem em nada para a vida do heri. Ainda que o conto no aluda
ciclicidade como fator de retratao do cotidiano, tais fragmentos expressam
linearidade na relao entre a causa, o motivo que anima a efabulao
Seino vai ao palcio e revela sua paixo princesa e a conseqncia trazida

10
Em conversa com uma leitora de oito anos de idade, a respeito da obra, esta me indagou sobre uma questo
de ordem espacial: Se a terra redonda, onde fica o fim do mundo? E o inferno?
11
J OLLES, Andr. Formas Simples. Trad. lvaro Cabral. So Paulo, Cultrix, 1976, p. 202.
12
BAKHTIN, Mikhail. Questes de Literatura e de Esttica. Trad. Aurora F. Bernadini. 4.ed. So Paulo,
Unesp, 1998, p. 216.
13
LAGO, Angela. Indo No Sei Aonde Buscar No Sei O Qu. p.5.
14
idem, ibidem, p.16.
n
125
pela causa o desafio, a concluso da tarefa e o final feliz..
Inserida dentro do tempo mtico
15
, a narrativa no assinala
quando a estria tem seu incio, a poca da partida de Seino e nem to pouco
alude ao tempo de durao da viagem. Sabe-se que era uma vez um
menino...
16
Salienta Bakhtin que a ruptura extratemporal, na qual est
construdo o conto, isenta-se tanto do tempo biogrfico que corresponde ao
aspecto cclico quanto da vida biogrfica das personagens o heri continua
alimentando os mesmos objetivos. Como o tempo no cronolgico, as
personagens no sofrem o desgaste do tempo, no perdem a jovialidade.
O deslocamento espacial da personagem O zonzo do Seino
acreditou [nas palavras da princesa] e foi!
17
ocorre a partir do palcio a no
sei onde, onde tudo
... indeterminado, desconhecido, alheio; os heris esto ali
pela primeira vez, eles no tm quaisquer relaes ou
ligaes substanciais com esse mundo, (...) por isso, para eles
existem nesse mundo apenas coincidncias e no
coincidncias fortuitas.
18
O encontro inicial de Seino com a princesa, que sela o pacto
entre ambos, vai estreitar-se com o cronotopo da estrada, o caminho, onde o
heri tem um encontro inesperado com o capeta. O heri, cujos traos de
privatividade e isolacionismo
19
remetem ao homem caracterstico do
romance grego, ser conduzido pela coincidncia casual, como agente passivo

15
O tempo mtico ... o tempo imutvel, eterno, que se repete sempre igual, sem evoluo nem desgaste ...
segundo Nelly Novaes Coelho em A Literatura Infantil. 4.ed. So Paulo, Quron, 1987, p.55.
16
LAGO, Angela. Indo No Sei Aonde Buscar No Sei O Qu. p.1.
17
Idem, ibidem, p.5.
18
BAKHTIN, Mikhail. Questes de Literatura e de Esttica. p.225.
19
Idem, ibidem, p.231.
126
da ao, ... o verdadeiro homem de aventuras o homem do acaso; como
homem com quem aconteceu algo, ele ingressa no tempo de aventuras. Pois a
iniciativa nesse tempo no pertence s pessoas.
20
Guiado pela fora do
destino, a personagem, ento, ingressa na esfera das oportunidades e da
ascenso.
No conto popular, o trajeto, a viagem, de acordo com Chevalier
podem ser interpretadas como:
... um desejo profundo de mudana interior, uma
necessidade de experincias novas, mais do que de um
deslocamento fsico. Segundo J ung, indica uma insatisfao
que leva busca e descoberta de novos horizontes (...). A
viagem ao inferno representa uma descida s origens (...) uma
descida ao inconsciente, de acordo com as interpretaes
modernas (...). A viagem aos infernos parece ser geralmente
sentida mais como uma autodefesa, uma autojustificao, do
que uma autopunio.
21
Pela afirmao do terico, deduz-se que a personagem precisava
chegar s ltimas conseqncias em favor de novas experincias e provar que
era capaz. Neste particular, Huizinga esclarece que:
... tanto o conflito quanto o amor implicam rivalidade ou
competio, e competio implica jogo. Na grande maioria
dos casos, o tema central da poesia e da literatura a luta
isto , a tarefa que o heri precisa cumprir, as provaes por
que ele tem que passar, os obstculos que ele precisa

20
BAKHTIN, Mikhail. Questes de Literatura e de Esttica. p.220.
21
CHEVALIER, J ean; GHEERBRANT, Alain. Dicionrio de Smbolos. Coord. Carlos Sussekind. Rio de
J aneiro, J os Olympio, 1988, p.952.
127
transpor. J suficientemente esclarecedor o uso da palavra
heri para designar o personagem principal. A tarefa ser
extraordinariamente difcil, aparentemente impossvel. Em
geral, ela empreendida em conseqncia de um desafio, de
uma promessa ou de um capricho da pessoa amada.
22
Elucidamos, contudo, a presena, mais uma vez, do fio
parodstico que delineia a performance de Seino. Na condio de tolo, a
personagem no possui habilidade para analisar o pedido da princesa. Na
aventura empreendida, a casualidade o fez chegar ao inferno, denominado,
ironicamente, pelo demnio de no sei onde. A obteno de no sei o qu
tambm acidental, logo, Seino heri s avessas.
A incluso, no texto verbal, de vocbulos tais como pasta,
arquivo, atualizao, termos comuns linguagem da Informtica, est em
desacordo com o contexto espao-temporal medieval em que se passa a
estria. Trata-se ento, de uma articulao da autora que procura,
descontraidamente, entremear elementos pertinentes a dois momentos
histricos distintos: a era tecnolgica, como canal veiculador de informao e,
num recuo no tempo, a incorporao da figura do demnio estrutura
narrativa. Este registro do tempo a atualidade em fuso com o medieval cria,
na mente do leitor, uma possvel associao entre a Informtica e o inferno
gerando um tom de humor, uma vez que o capeta, moldado aos padres da
modernidade, utiliza-se dos meios tecnolgicos para arquivar os males do
mundo.

22
HUIZINGA, J ohan. Homo Ludens. Trad. J oo P. Monteiro. 4.ed. So Paulo, Perspectiva, 1996, p.148.
128
De acordo com a prancha nmero 2, a ilustrao, neste segmento, insinua a
forma do diabo manuseando o computador, entretido que est na sua tarefa.
O motivo principal da efabulao o desafio e a proposta de
casamento ao protagonista, antecipadamente revelado ao leitor, visando
despertar-lhe o interesse pelo desfecho da estria. Coelho define a
antecipao como:
... Recurso pelo qual o narrador antecipa j no incio o
desenlace do drama ou do conflito em questo. O que
aconteceu? logo revelado ao leitor, e este, com a
curiosidade espicaada, se dispe leitura para descobrir
como e porque aquilo aconteceu.
23
O segmento que registra o encontro amistoso entre a personagem
e o diabo apresenta dados de inverso. Texto e ilustrao descaracterizam a
idia de medo e terror que a figura do diabo poderia desencadear, a despeito
de estar caracterizado com cascos, rabo e chifres. O local de sua habitao, por
onde ele transita, durante a narrativa, tambm apresentado sem

23
COELHO, Nelly Novaes. A Literatura Infantil. 4.ed. rev. So Paulo, Quron, 1987, p.56.
PRANCHA 2
129
caracterizao tradicional de provocar medo. Entretanto, a habilidade de
manipular do representante do inferno se manifesta e, afinal, contribui para a
sorte de Seino: ... No sei onde aqui. Pelo menos para voc enrolou um
capeta que estava precisando de ajudante.
24
De acordo com a classificatria das funes de Propp, o diabo
ser, na narrativa, o doador, aquele que vai, sem perceber, auxiliar a
personagem a realizar o seu intento. O diabo pensando estar tirando vantagens
de Seino, que aceita o servio proposto atualizar os arquivos de pecados
passa a ser enganado, embrulhado pela personagem que vai cometer algum
erro nos registros do inferno, em algum momento da digitao, conforme se
constata claramente na seqncia narrativa.
O retorno ao palcio, de posse do embrulho, significa para a
personagem a aceitao pelo grupo social, aprovado pela Corte, no mais
como o ... bobo que tinha ido atrs do impossvel.
25
4.5. O visual e a estria
etonimicamente, a ilustrao assegura a funo narrativa. Em
segmentos como o que ilustra a zombaria dos membros da corte, (vide
prancha nmero 3), observam-se rostos de risos escrachados, apontando com o
dedo indicador em direo ao aldeo.

24
LAGO, Angela. Indo No Sei Aonde Buscar No Sei O Qu. p.10.
25
Idem, ibidem, p.6.
m
130
As composies, trabalhadas na tonalidade vermelha, estariam
relacionadas indumentria do rei, e do prprio capeta se considerarmos a
proposta de Kandisnky
26
sobre a linguagem e a ao das cores sobre o
observador. Poderamos ainda, de acordo com o pensamento medieval,
associar a cor vermelha ao conceito popular de inferno local escuro onde
estariam os pecadores sentenciados respondendo, atravs do fogo eterno, s
suas faltas. O amarelo e o verde corresponderiam movimentao dos
cenrios que retratam aldeias e descampados. As trs tonalidades: vermelha,
amarela e verde, devido sua forte intensidade, aproximariam o olhar do leitor
cena, numa tentativa de resgatar a estria, ocorrida em um tempo distante.
Os desenhos, apresentando cores sobrepostas, no excluem a
particularidade de cada trao. O seu pseudo-despojamento contorno pouco
definido, apresentando-se rasgado, rabiscado, desvela uma proposta da autora
a de estar ... experimentando e brincando com tintas e pincis feito
criana.
27
Angela Lago resgata na obra, em nvel de ilustrao, esta
caracterstica da criana o rompimento de padres pr-estabelecidos, a
flexibilidade e a liberdade no momento de criar.

26
Sobre o conceito das cores e suas influncias no comportamento do homem, consultar KANDINSKY,
Wassaly em O Espiritual na Arte. Trad. lvaro Cabral; Antonio de P. Danesi. So Paulo, Martins Fontes,
1996.
PRANCHA 3
131
A obra que trabalha cores fortes e contrastantes, alude ao
Fauvismo
28
. O papel de superfcie lisa e acetinada comporta certa
luminosidade. A textura conseguida no desenho obtida pelas vrias
intervenes sobre a tinta j trabalhada. A ilustrao , ento, o resultado da
reproduo conjunta de cores, em grandes pranchas, que se dividem em folhas
duplas um procedimento que visa no somente a um melhor aproveitamento
do papel, mas harmonizao dos desenhos, devido sua disposio
ampliada.
A obteno de luminosidade nos quadros se faz por meio da
utilizao de cores claras em contraste com as escuras. O amarelo que se
contrape ao vermelho, no segmento que descreve a chegada de Seino ao
inferno, conforme prancha nmero 4, delineia o espao reservado ao entreabrir
da porta, mostra o interior iluminado de um ambiente e aproxima os olhos do
leitor que tenta captar detalhes ocultos pela porta.

27
Informao obtida em entrevista com Angela Lago, em maro de 2001 em So Paulo.
28
Fauvismo primeiro movimento revolucionrio do sculo XX, em que os pintores fizeram da tela um
plano, empregando tonalidades explosivas e contrastantes. Para isso eles restringiram ao mnimo uso das
cores que do a sensao de profundidade, ou seja, as cores frias, que so o verde, o azul e o violeta. A Arte
de Pintar. Crculo do Livro. So Paulo, Nova Cultural, 1994, p.80.
PRANCHA 4
132
Na representao pictrica da chegada da personagem ao castelo, trazendo o
pacote, o amarelo mais uma vez ser responsvel pelo efeito claro e escuro,
quando demarca os cabelos louros da princesa, que se destacam do fundo
vermelho de uma provvel parede do castelo, conforme prancha nmero 5.
As duas tonalidades, consideradas quentes, estabelecem proximidade entre as
personagens. Dispostas no corte da pgina esto Seino e a princesa. Com o
manuseio do livro, no ato de abrir e fechar da pgina, o movimento insinua o
deslocamento das personagens, aproximando-se.
A reiterao da tonalidade branca, igualmente ressalta a linha que
delimita a boca, de dimenses desproporcionais, das personagens,
consolidando a funo expressiva da ilustrao, aliceradas, como vimos, nas
cores vermelha, amarela e verde.
A conexo dos vrios componentes da composio d-se pelo
recurso da aproximao, fator que possibilita a visualizao de um conjunto
consonante de leituras e cores.
29
William ainda argumenta sobre a

29
WILLIAMS Robin. Design para quem no designer . Trad. Laura K. Gillon. So Paulo, Callis,
1995, p.21 argumenta que o agrupamento de componentes relacionados em proximidade ou dispostos em
PRANCHA 5
133
arbitrariedade dos elementos na pgina disponibilizar os componentes em
uma cena sem atribuir-lhes uma funo especfica. Cada item precisa ser
alinhado de modo a criar uma unidade lgica, facilmente identificada pelo
observador. Entretanto, o que se v em Indo No Sei Aonde Buscar No Sei O
Qu um despojamento do desenho, uma despreocupao intencional com
alinhamentos, molduras, contornos ou disposies planejadas dos
componentes na cena, evidenciando um esmaecimento que poderia remeter o
conto a um lapso espao-temporal indefinido; a preservao seqencial da
ao, fica, ento, a critrio do texto verbal que orienta o leitor para as vrias
etapas da narrativa.
As unidades composicionais, em contigidade, encaminham a
leitura de um lugar para outro, obedecendo a uma seqncia cronolgica. Esse
recurso permite ao leitor, por sua vez, sentir nas personagens a movimentao,
como se houvesse uma simbiose entre o espao, onde se localiza a cena e o
tempo real, aquele destinado leitura.
Quanto disposio das linhas, as agrupadas sugerem tenso
entre si, medida que requerem e oferecem apoio mtuo no quadro que
mostra a descrio da personagem, em meio sua viagem.

afastamento, alm de estruturar as informaes do texto, forma uma unidade visual, ...um conjunto coeso e
no um emaranhado de partes sem ligao.
134
Do lado direito da mesma pgina, a curvatura da linha insinua a estrada
sinuosa que Seino ter que percorrer, como demonstram as pranchas nmeros
6A e 6B.
Em algumas seqncias, a composio possui mais de um elemento em
destaque. A performance da personagem protagonista no subtrai dos quadros
detalhes como a despreocupao da princesa com a sorte do rapaz, a
tranqilidade exagerada do diabo e principalmente a expresso de surpresa da
nobreza quando do retorno de Seino. O texto verbal reafirma este aspecto,
atravs de expresses tais como: - Impossvel... retrucou a princesa sabida e
Seino deu tempo para a princesa e os sbios do palcio pensarem vontade.
No havia dvida: A encomenda estava certa.
30

30
LAGO, Angela. Indo No Sei Aonde Buscar No Sei O Qu. p.21.
PRANCHA 6A PRANCHA 6B
135
4.6. Final feliz?
odemos igualmente observar que, agregado aos caracteres que
remetem cultura oral, esto, no segmento que retrata o retorno do heri ao
castelo, ... cantando de alegria ...
31
, traos de folclore:
- princesa me responde
Quando eu caso com voc.
Eu j fui a no sei onde.
J busquei no sei o qu.
32
A alegria e o riso espontneos, trazidos pela tradio oral, pelo
contar e recontar da estria, interligam-se com o modo simples de ser,
principalmente, da criana que introjeta a proposta como mais uma
brincadeira o de fazer o outro de bobo, semelhante a qualquer outra que faz
parte de seu mundo povoado de sonhos. Na esfera do verbal, a coloquialidade
evidencia, alm do comportamento do homem simples, o comportamento
infantil:
33
E resolveu ... Bem, antes que o diabo descobrisse que ele tambm
tinha aprontado uma embrulhada com os tais arquivos ... pernas para que te
quero!
34
Vale tudo na brincadeira quando o assunto pregar uma pea.
O final feliz, que culmina com o casamento entre Seino e a
princesa, consiste em mais um dos aspectos relativos ao riso. A idia de que

31
LAGO, Angela. Indo No Sei Aonde Buscar No Sei O Qu. p.20.
32
Idem, ibidem, p.19.
33
COELHO, Nelly N. em A Literatura Infantil. 4.ed. rev. So Paulo, Quron, 1987, p.20, salienta que, tanto
no popular quanto no infantil, ... o conhecimento da realidade se d atravs do sensvel, do emotivo, da
intuio... e no, atravs do racional ou da inteligncia intelectiva, como acontece com a mente adulta e
culta. Em ambos predomina o pensamento mgico, com sua lgica prpria.
34
LAGO, Angela, loc. cit.
p
136
tudo est bem, que a ordem e o equilbrio foram novamente resgatados, faz
parte da uma viso cosmognica e mtica do homem medievo-moderno. Para
Seino houve, aps o cumprimento da tarefa, a recompensa, a concretizao
de seu desejo. A personagem deixa transparecer que est feliz por ter
cumprido a tarefa; no demonstra que ter ido ao inferno, conversado com o
diabo, manuseado arquivos de tal porte, como o que alistava os pecados dos
homens, tenha tido importncia maior no seu destino do que se casar com a
princesa. Em outro nvel de leitura, o final feliz pode nos remeter
preservao do imaginrio medieval atravs dos mitos, dos ritos, do contar, do
improvisar. E ainda, na manuteno dos grandes mistrios, que povoam o
esprito popular medieval, aguando a eterna curiosidade do homem, haja
vista continuar velado o segredo contido no embrulho vindo do inferno.
Alm disso, a figura representativa de Seino alimentaria a crena na
renovao permanente e na constante reparao do mal e da injustia, fatores
que levam o homem a acreditar no final feliz, apaziguado e conveniente a
todos.
Dentro deste mesmo contexto, podemos atentar para outro trao
parodstico da obra, quanto ao final feliz. Sobre a intencionalidade da princesa
com relao a Seino, em momento algum fica evidente no texto, a no ser
quando menciona seu desejo de ... fazer piada custa dos outros.
35
Ento,
diante da realizao da tarefa pelo heri, a princesa estaria obrigada a casar-se
com ele, apenas como cumprimento de regras de um jogo, por ela mesma
estabelecidas.

35
LAGO, Angela. Indo No Sei A Onde Buscar No Sei O Qu. p.2.
137
Mas, o aventureiro, a princpio o bobo da Corte, ao demostrar perspiccia e
sabedoria, consegue conquistar o amor da princesa aspecto sinalizado pelos
signos verbal e visual atravs da sentena: Pois : Seino est muito bem
casado e o embrulho segue embrulhado!
36
( vide prancha nmero 7).

36
Idem, ibidem, p.24.
PRANCHA 7
138
Relao de Pranchas referentes ao captulo 4.
Prancha 1 p.121
Prancha 2 p.128
Prancha 3 p.130
Prancha 4 p.131
Prancha 5 p.132
Prancha 6A p.134
Prancha 6B p.134
Prancha 7 p.137
139
CONCLUSO
O riso to universal como a seriedade.
Mikhail Bakhtin
o decorrer deste trabalho evidenciamos a presena de traos
de oralidade e cultura popular resgatados na Idade Mdia nas obras
contemporneas de Angela Lago, tendo como motivos centrais, o estudo da
adivinha, em Sua Alteza A Divinha e em 10 Adivinhas Picantes; o estudo da
charada, em Charadas Macabras, os estudos dos elementos alicerados na
prtica do jogo, do riso, da comicidade em Indo No Sei Aonde Buscar No
Sei O Qu.
Nas obras analisadas, o riso mescla-se seriedade no tratamento
de temas tais como os da vida e da morte e do enfrentamento do desconhecido
inseridas no imaginrio medieval, dentre outros. O que se pretende colocar em
evidncia, o modo despojado com que o narrador constri o recurso
parodstico, fazendo interagir os cdigos verbal e visual.
Em Indo No Sei Aonde Buscar No Sei o Qu a presena da
expectativa s avessas mais acentuada. Um dos aspectos em pauta a
questo da relao amistosa entre o Capeta e Seino, quando se poderia
qualificar de aterrorizante o momento do encontro entre ambos.
n
140
Trazer para o castelo um embrulho contendo no sei o qu outro
disparate principalmente porque ele ... segue bem embrulhado.
1
A Seino
recomendada a no abertura do embrulho ... pois se abrir deixa de ser.
2
Por
outro lado, o diabo, de postura dominadora e riso sarcstico, ludibriado por
Seino que age de m f com os arquivos do capeta. Dentro da tradio oral h
um ditado que bem clarifica este raciocnio: O feitio virou-se contra o
feiticeiro.
Sua Alteza Adivinha sustenta, igualmente, um desfecho contrrio
ao esperado. O narrador, pela conduta da narrativa, cria uma perspectiva de
derrota ao aldeo que sonhava pertencer nobreza. O sucesso, entretanto,
provou originalidade e desenvoltura da personagem.
A ausncia do terror impactante entre o leitor-personagem e o
capeta, e o modo descontrado com que o narrador conduz a estria, so
fatores que provocam o efeito pardico em Charadas Macabras.
Nas duas obras em que figura o demnio, as personagens so
enganadas pelo homem, que se mostra mais verstil no trato com os
problemas de difceis solues. Sobre este aspecto, Cascudo argumenta que
em todos os contos e disputas poticas o Demnio intervindo, perde a aposta
e , infalivelmente, logrado.
3
O folclorista ainda salienta:
... A derrota do Demnio na novelstica quase
universal. Nos contos populares brasileiros, portugueses,
espanhis, africanos, rabes, no conheo uma vitria do
Demnio, em matria de aposta, aceitando desafio ou
firmando contratos.
4

1
LAGO, Angela. Indo No Sei Aonde Buscar No Sei O Qu. Belo Horizonte, RHJ , 2000, p.24.
2
Idem, ibidem, p.17.
3
CASCUDO, Luis da Camara. Literatura Oral no Brasil. 3.ed. Belo Horizonte, Itatiaia, 1984, p. 262.
4
Idem, ibidem, p. 262.
141
De modo geral, o riso que impulsiona a personagem a vencer o
medo do capeta, prosseguir na sua performance, seja no palcio ou no tablado,
o mesmo que convida o leitor a continuar a leitura prazerosa, trazida pelo
conto.
Em nvel de intencionalidade das personagens, observamos que
Louva-a-deus vai ao palcio movido pela idia de competio. O leitor-
personagem e o capeta que chegam juntos ao cemitrio, a princesa que prope
adivinhas e a outra que sugere a Seino ir procura de algo extraordinrio,
possuem inclinao pela arte de jogar. Mas o leitor, em especial, a criana,
sabe que todo jogo implica em riscos, toda competio bipolar. Participar de
uma aposta significa seguir as regras do jogo.
A prtica milenar do jogo o jogo enigmtico das palavras, o
jogo do raciocnio lgico, o desafio, instigam e envolvem o leitor,
principalmente a criana, que interage com texto e ilustrao, memorizando os
segmentos narrativos, repetindo-os aps a concluso da leitura, na forma de
brincadeira ou aventurando-se em possveis recriaes em cima do texto
apreendido, principalmente no que se refere formulao de charadas toma-
se uma palavra (a resposta da charada), atribui-se-lhe a cada slaba um nmero
e desmembra-a de modo que suas slabas lidas separadamente assumam outra
conotao; e de adivinhas o interrogador lana uma pergunta, cuja resposta
consegue-se pela associao de idias, pela subtrao de elementos contidos
na pergunta.
Em Indo No Sei Aonde Buscar No Sei O Qu, a princesa
desafia Seino, que certamente no era o pretendente escolhido, mas a palavra
empenhada no momento da provocao, obriga-a a cumprir a sua parte no
142
acordo porque ela sabe, assim como a criana, que ganhar e perder fazem
parte do jogo.
5
No se percebe na obra uma obrigatoriedade em se trazer o objeto
solicitado como em Sua Alteza A Divinha, quando adivinhar condio sine
qua non para no se morrer. Se existe uma intencionalidade de punio, esta
se refere a no concretizao do casamento e conseqentemente o no
reconhecimento de Seino como heri. Sair procura de no sei o qu faz
parte do seu processo de busca busca pela princesa, pela felicidade, busca de
concretizao de sonhos.
A presena do tolo que se torna heri nas obras analisadas,
aspecto, igualmente, observado nas cinco reeleituras da princesa hbil na
formulao de adivinhaes, elencadas no corpus do trabalho, difere de um
para outro conto, quanto ao grau de ingenuidade das personagens.
Independente do local da recolha e ou recriao, seja no Brasil ou em
Portugal, as personagens popularmente denominadas de Amarelo, J oo,
Louva-a-deus, Seino, todos tm conhecimento sobre as vantagens que esse
empreendimento o de ir ao palcio tentar a sorte pode trazer. Considerados
pela nobreza, como candidatos bobos, intectualmente despreparados, esta no
lhes confere credibilidade. O ato de vencer, entretanto, no implica somente
em astcia e obstinao, mas em conhecimento, em experincia no ato de
jogar, improvisar, no riso espontneo da praa pblica, implica em sabedoria
popular. E ento, a nobreza curva-se para o homem simplrio e o reverencia,
trazendo para o palcio a cultura do povo.

5
A brincadeira do rei, capito, soldado, ladro, inclusa, implicitamente em Sua Alteza A Divinha, adequa-
se, perfeitamente, na elucidao desse pensamento. Se, pelo contar dos dedos, o escolhido rei ou capito, a
menina sente-se feliz, mas se o escolhido o ladro, h o desapontamento pelo resultado mas, em seguida, a
aceitao porque isso faz parte das regras do jogo, alm do que, tudo no passa de uma brincadeira.
143
Resgatando caractersticas do medievalismo, Angela Lago ento,
equipara as personagens a loucos nas festas populares da Idade Mdia, que
celebravam, extravasavam, carnavalizavam, visando o divertimento, a morte
do antigo e a renovao da vida.
O verbal, alicerado na cultura oral, traz, no exerccio de
desvendar charadas e adivinhas, o envolvimento do leitor atravs desse jogo
de palavras que, por ser abrangente, seduz, abre caminhos, reverte situaes,
salva vidas... Inserido no texto esto vocbulos e expresses de uso popular
que h muito tomam parte no imaginrio medieval,( cemitrio, necrotrio,
inferno, castelo, Pernas para que te quero!, Ainda por cima quer me
fazer de besta!, deusa das horas eternas!) e que a obra recupera de forma
ldica. Ensina-nos Goff que na Idade Mdia que esto ... as nossas razes, o
nosso nascimento, a nossa infncia (...). Uma Idade Mdia qual ainda
estamos ligados pelo fio, no cortado, da oralidade.
6
A ilustrao, por sua vez, flagra elementos da cultura medieval e
os insere na vida do homem moderno. Ora apropriando-se de desenhos que
remetem antiguidade, adaptando-os linguagem digital, ora usando o pincel
e a tinta, Angela Lago percorre mais de um caminho visando a manifestao
esttica e informativa do trabalho.
O suporte visual, no possui somente carter complementar,
limitando-se ao recontar da estria. De carter informativo-ldica, a ilustrao
amplia as possibilidades de leitura. Verbal e visual juntos no representam ...
uma mera adio de duas mensagens informativas diferentes. Uma nova
interpretao holstica da mensagem total pode ser derivada dessa
disposio.
7

6
GOFF, J acques Le. O Imaginrio Medieval. Trad. Manuel Ruas. Portugal, Estampa, 1994, p.41.
7
SANTAELLA, Lucia; WINFRIED, Nth. Imagem. Cognio, semitica, mdia. So Paulo, Iluminuras,
1998, p.55.
144
Desse modo podemos afirmar que a obra de Angela Lago
representa para a Literatura, a expresso da arte, o estar, simultaneamente, em
contato com variados atos comunicativos , seja verbal, visual, digital, grfico,
em constante recriao. Para a Literatura Infantil, sua obra tem contribudo
para a divulgao das razes populares, na qual est o homem alicerado,
principalmente ensinando para o leitor infantil como preservar, de maneira
ldica, essas lembranas. Angela Lago adentra ao universo infantil e ressalta a
importncia de ser criana, valorizando a sua expresso seja atravs da
manifestao pictrica traado, movimentos, cores, ou atravs da linguagem
popular articulada, desprovida de rigores gramaticais, seja pela recuperao de
brincadeiras que animaram, repetidas vezes, a infncia de nossos
antepassados, proporcionando, ento, criana a oportunidade de ser criana,
de poder sonhar, fazer de conta, viajar para dentro de si mesma e imaginar-se
num castelo, ser talvez a princesa e contar os ovos cados na manta de Louva-
a-deus e certificar-se de que so realmente sete ou sair procura de no sei o
qu, tentar desvendar o que h no embrulho do diabo, tremer de medo no
necrotrio, ensinar algumas charadas ao capeta e morrer de rir
8
da cara do
vigia. No fazer Arte com seriedade, Angela Lago ensina a arte de viver,
brincando...
Argumentam Lowenfeld e Britain que:
(...) podemos observar que a criana cria
com a ajuda de qualquer grau de conhecimentos
que possua nessa fase. O prprio ato de criar
pode fornecer-lhe novos vislumbres, novas

8
Morrer de rir expresso popular muito usado dentro do vocabulrio infantil.
145
perspectivas e nova compreenso para a ao
futura. Provavelmente, o melhor preparo para
criar seja o prprio ato de criao.
9

9
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