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Helena Quiterio - Tese
Helena Quiterio - Tese
Helena Quiterio - Tese
2009/2011
1
Aos meus dois filhos, Guilherme e Simão, que me
reintroduziram na malha do conto.
2
Agradeço
Agradeço também a
Sem todos eles jamais reuniria as condições para aceder a novos e tão
variados conhecimentos.
Estou ainda grata a outros mestres e suas ideias, que me foram ajudando na
descoberta/exploração do universo do conto popular.
3
Resumo
4
Abstract
5
Palavras-chave: Literatura Tradicional, Contos Populares, Presença Materna,
Mulheres na Literatura Tradicional Oral (figura da mãe, figura da madrasta,
figura da madrinha, figura da heroína), papel das personagens femininas, papel
da mãe na evolução dos heróis, memória cultural, valores, normas de conduta
…
6
Índice
Introdução ..................................................................................................................................... 8
Parte 1 – Literatura Popular Tradicional ..................................................................................... 11
1.1. Valor Literário.............................................................................................................. 11
1.2. Valor Axiológico........................................................................................................... 16
Parte 2 – O Maravilhoso.............................................................................................................. 21
2.1 – Metamorfose .................................................................................................................. 29
2.2 – Fadas e Bruxas ................................................................................................................ 34
2.2.1. Fadas ......................................................................................................................... 34
2.2.2. Bruxas ........................................................................................................................ 41
Parte 3 – Os contos Populares .................................................................................................... 43
3.1. - Paradigmática Estrutural dos Contos ............................................................................. 44
3.2. – Fundo Mítico e Simbólico .............................................................................................. 56
3.3. – Arquétipos e Testemunhos ........................................................................................... 64
3.4. – Agentes ao serviço do Conto Popular ........................................................................... 70
Parte 4 - Os contos do VIII Ciclo - A Gata Borralheira ................................................................. 76
4.1. - Estrutura......................................................................................................................... 77
4.2. - Espaço e Tempo ............................................................................................................. 82
4.3. – Personagens e suas Funções ......................................................................................... 90
4.4. – Elementos simbólicos .................................................................................................. 100
4.5. – Sentimentos dominantes ............................................................................................ 119
4.5.1.- Rivalidade Fraternal ............................................................................................... 119
4.5.2.- O Amor ................................................................................................................... 121
Parte 5 - Presença Materna no ciclo de “A Gata Borralheira” .................................................. 122
5.1. Presença Materna na figura da Mãe ......................................................................... 125
5.2. Presença Materna na figura da Madrasta................................................................. 126
5.3. Presença Materna na Figura da Fada Madrinha ....................................................... 136
5.4. Presença Materna na Figura Animal ......................................................................... 141
Reflexões Finais ......................................................................................................................... 149
Bibliografia ................................................................................................................................ 160
7
Introdução
O texto literário, apesar de nunca ser uma cópia da realidade, muitas vezes
pretende aludir à vida em sociedade e aos valores da mesma. Assumindo
assim um papel ativo na formação da personalidade dos seus leitores.
8
presentes nos contos de carácter oral e tradicional. Especificamente
procuraremos determinar de que forma o arquétipo da imagem materna se
pode concretizar nas figuras de mãe, madrasta, fada-madrinha ou ainda na
figura animal e analisar a sua intervenção no processo de
crescimento/autonomização da criança de acordo com as diferentes facetas
que esta pode assumir.
Os contos que servirão de base ao trabalho de análise foram coligidos por José
Leite de Vasconcelos e editados apenas em 1966, na obra Contos Populares e
Lendas, graças ao trabalho de coordenação dos seus discípulos Alda da Silva
Soromenho e Paulo Caratão Soromenho e de outros colaboradores como Ana
de Castro Osório, que generosamente coligiu uma quantidade considerável de
contos e os oferecera a José de Leite Vasconcelos. Esta referira
especificamente a ideia da utilidade dos contos como elemento educativo:
A ideia de aproveitar com intuito não etnográfico, por exemplo, com intuito moral,
contos tradicionais ou em que há vestígios da tradição […] Convencida do valor dos
2
contos populares ou de aspecto popular, como instrumentos de educação infantil…
Aos contos […] em princípio não têm local nem data; não se enquadram em qualquer
período da História; podem não ter maravilhoso; e, quando verosímeis, não se lhes
reconhece autenticidade […]. Mas o que fundamentalmente distingue o conto é a
4
existência dum objectivo: moralizador, social, político, satírico, etiológico ou distractivo.
2
VASCONCELOS, José Leite. 1966. Contos Populares e Lendas. Coimbra: Actas Universitatis
Conimbrigensis. Coordenação de Alda da Silva Soromenho e Paulo Caratão Soromenho. Volume II. P.
XV.
3
Ibidem. P. VIII.
4
Ibidem. P. XI.
9
Relativamente à sua classificação, os coordenadores deste projeto mencionam
o facto de alguns dos contos poderem pertencer a mais de um ciclo. Porém,
neste trabalho, aceitamos a divisão que foi estabelecida na obra e vamos
concentrar-nos apenas no VIII Ciclo: “A Gata Borralheira”.
10
Parte 1 – Literatura Popular Tradicional
1.1. Valor Literário
significa aquela literatura que exprime, de modo espontâneo e natural, na sua profunda
genuidade, o espírito nacional de um povo, tal como aparece modelado na peculiaridade
das suas crenças, dos seus valores tradicionais e do seu viver histórico. “Literatura
6
Popular” contrapõe-se assim a “Literatura de arte” ou “Literatura artística” […].
5
REIS, Carlos & LOPES, Ana Cristina Macário. 1987. Dicionário de Narratologia. Coimbra. 3ª Edição.
Livraria Almedina. P. 79.
6
SILVA, Vítor Manuel Aguiar. 1994. Teoria da Literatura. Coimbra. 8ª Edição. Livraria Almedina. P. 116.
7
CORREIA, João David Pinto. 1992. “Para Uma Teoria do Texto da Literatura Popular Tradicional”.
Literatura Popular Portuguesa. Teoria da Literatura Oral/ Tradicional/Popular. Lisboa. Edições Acarte.
Fundação Calouste Gulbenkian. P. 101-127.
11
2) os textos populares tradicionalistas, que correspondem à produção
moderna dos “poetas populares”;
3) os textos populares tradicionais, que se caracterizam pela sua
tradicionalidade devido à sua produtransmissão;
4) os textos popularizantes, constituídos por composições que se adequam
ao gosto popular.
Para o especialista, a expressão “Literatura Popular Tradicional” encerra os
textos da Literatura Tradicional Oral e os textos da Literatura Tradicional
Escrita. Relativamente aos textos de património oral, para além das adivinhas,
fórmulas encantatórias, lendas, lengalengas, orações, romances, provérbios e
pregões surgem também os contos. As advinhas, os provérbios, os pregões, as
lengalengas, as orações e os romances apresentam uma constante extensão e
expressão, nomeadamente, pelo facto de se apresentarem em verso. No
entanto, há formas, como o conto, que podem apresentar diferente extensão e
uma grande variação, pois estão mais dependentes do seu transmissor (o
contador/ o informante) e do seu contexto. De forma a preservá-los houve
quem se preocupasse em fazer um registo escrito dos mesmos, não podendo
nunca confundir-se estes com “textos” escritos da Literatura Popular
Tradicional. O seu registo tem como finalidade permitir que estes possam vir a
ser individualmente lidos ou coletivamente escutados. Estes registos escritos
podem apresentar diferentes versões, no entanto, todas elas obedecem às
regras estabelecidas pela tradição, podendo sofrer algumas transformações de
pormenor, que em nada vão alterar o sentido a ser transmitido. Ainda segundo
J. David Pinto Correia, devem apenas ser considerados “tradicionais” os contos
que são publicados sem indicação de autor, uma vez que estes são património
comum que se vai transmitindo ao longo das gerações, com uma parte
fundamental invariante e com pormenores variados. Atualmente temos
assistido a inúmeras publicações de contos adaptados em livros para os mais
novos, denotando-se nos autores uma preocupação em manter a sua
globalidade sintático-narrativa e as coerências temático-figurativas e isotópicas
legadas pela Tradição.
12
Jean-Claude Bouvier8 apresenta os textos tradicionais populares, como textos
literários, quando afirma que o conto escrito e o conto oral são duas categorias
literárias, apesar de não terem, à primeira vista, as mesmas características
estruturais, nem as mesmas condições de produção ou de circulação. Segundo
o teórico, estes dois modos de produção são alvo de um fenómeno de
convergência, ou seja, sofrem influências mútuas, que em muito os
enriquecem.
9
PARAFITA, Alexandre. 1999. A Comunicação e a Literatura Popular. Lisboa. Lisboa. Plátano Edições
Técnicas. Colecção Plátano Universitária.
13
carácter popular em função da sua aceitação social. Ou seja, sempre que
possa servir para divertir, ensinar, estabelecer laços de união entre os
membros do grupo, ridicularizar defeitos, suportar o trabalho, galantear,
agredir, pedir dons, etc.
De acordo com este autor, para se poder qualificar um texto como “Literatura
Popular” há que ter em atenção três fatores, nomeadamente o modo de
transmissão, a forma de expressão e o uso feito pela comunidade.
14
Por último temos ainda o uso que a comunidade dá aos textos, ou seja, estes
estão dependentes do contexto, mas também do momento em que ocorrem.
Como tal, cada ouvinte fará a sua leitura pessoal do conto.
10
apud. GALHOZ, Mª Aliete. 1991. “A Literatura Tradicional de Expressão Oral e o seu Valor Literário e
Axiológico”. In Ler Educação. Escola Superior de Educação de Beja. Nº 5. Maio/Agosto. P. 31-33.
15
mesma que a cultura é feita de culturas que se difundem, que se interpenetram,
que se infundem de umas às outras.” 11
Desde muito cedo que a criança vai tomando contacto com a Literatura
Tradicional Popular, seja através das canções, lengalengas, adivinhas,
provérbios, fábulas, lendas ou contos que os pais ou educadores lhe vão dando
a conhecer. Esse primeiro contacto ocorre através da oralidade, promovendo
na criança uma série de competências na modalidade do oral, quer na sua
vertente de perceção, o ouvir, quer na sua vertente de produção, o falar. Este
contacto irá ajudar a criança a ser capaz de se exprimir “de forma
desbloqueada e autónoma, tendo em conta o tempo disponível e a situação”13,
bem como passa a compreender enunciados orais nas suas implicações
linguísticas e paralinguísticas, capturando o significado, a intencionalidade e as
condições sociolinguísticas dos diferentes textos. Podemos concluir que a
11
GALHOZ, Maria Aliete. 1991. “A Literatura Tradicional de Expressão Oral e o seu Valor Literário e
Axiológico”. Ler Educação. Escola Superior de Educação de Beja. Nº 5. Maio/Agosto. P. 32.
12
ALCOFORADO, Doralice. 1987. “L´Erudit et le Populaire : Le Jeu Intertextuel.” Littérature Orale
Traditionnelle Populaire. Actes du Colloque. Paris. 20-22 Novembre. 1986. Fondation Calouste
Gulbenkian. Centre Culturel Portugais. Paris. P. 335.
13
GUERRA, Joaquim. 1999. “O Património Tradicional e Oral no Contexto Escolar: Contributos para o
Desenvolvimento da Competência de Falante/Ouvinte”. In Inovação. Nº 12. P.76.
16
Literatura Tradicional Popular exerce uma enorme influência quer no processo
de perceção, quer no processo de produção da criança, uma vez que os seus
textos acompanham o processo de aquisição da língua em toda a sua
extensão. Primeiro a criança limita-se a ouvi-los, de seguida começa a brincar
com a linguagem, quer através das cantilenas ou lengalengas. Mais tarde, a
criança inicia a escolarização e passa para além de os ouvir, também a lê-los,
tornando-se finalmente um contador.
14
apud. GALHOZ, Maria Aliete. 1991. “A Literatura Tradicional de Expressão Oral e o seu Valor Literário e
Axiológico.” In Ler Educação. Escola Superior de Educação de Beja. Nº 5. Maio/Agosto. P. 32.
15
Ibidem. “Esperta-se a atenção e o acume intelectual com a proposta de adivinhas, promove-se o gosto
literário com a recitação de cantigas, que às vezes são admiráveis de beleza; abre-se a memória e activa-
se a imaginação com a aprendizagem de romances e contos; acalenta-se o senso moral com o enunciado
de provérbios que constituem, como se diz vulgarmente, a “sabedoria das nações.”
17
estes percursos de aprendizagem irão reflectir-se numa correcta leitura e
escrita e, mais tarde, no gosto pelo conteúdo dos livros e o fascínio pelas
palavras.
19
acordo com B. Bettelheim16, devem ser mostradas às crianças todas as
consequências das suas más ações.
16
BETTELHEIM, Bruno. 1995. A Psicanálise dos Contos de Fadas. Lisboa. Bertrand Editora. 4ª Edição.
Tradução de Carlos Humberto da Silva. P. 9-29.
17
ALCOFORADO, Doralice. 1987. “L´Erudit et le Populaire : Le Jeu Intertextuel.” Litterature Orale
Traditionnelle Populaire. Actes du Colloque. Paris. 20-22 Novembre 1986. Fondation Calouste
Gulbenkian. Centre Culturel Portugais. Paris. P. 335.
20
Parte 2 – O Maravilhoso
18
Todorov, Tzvetan. 1970. Introduction à la Littérature Fantastique. Paris. Éditions du Seuil.
21
Ocidente Medieval, apresenta-se como um excelente guia nessa viagem no
tempo. Ele começa por nos dar a conhecer dois termos valiosos: mirabilis
(usado em ambiente culto) e mirabilia (usado em ambiente menos instruído).
Este último descendente de “miror” ou “mirari” alude a algo de visível. No
entanto, com a evolução dos tempos e consequente evolução vocabular das
línguas, constatou-se que não se pode encarar o vocábulo “maravilhoso”
apenas como algo que o homem pode vir a admirar com os olhos, a um
imaginário em torno de imagens e metáforas que são visíveis.
22
série de maravilhas – maravilhas que ajudam (como certos objectos mágicos) ou
19
maravilhas que é preciso combater (como os monstros).
Nos séculos XIV e XV, e com a tomada de consciência, por parte da igreja, de
que o maravilhoso poderia ser domesticado ou recuperado, este sofre uma
certa valorização, apenas literária ou intelectual.
Ainda nos séculos XII e XIII o maravilhoso é encarado como algo sobrenatural,
que nunca conseguirá explicar-se senão recorrendo ao miraculoso. Nesta
época, o sobrenatural podia ser interpretado de acordo com três campos de
ação, nomeadamente o mirabilis, o magicus e o miraculosus.
19
LE GOFF, Jacques. 1983. O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval. Lisboa. Edições 70. P.
23.
23
Independentemente de lhe ser dado pouco relevo na tradição bíblica, o
maravilhoso foi “produzido” e “consumido”, revelando-se como “um contrapeso
à banalidade e à regularidade do quotidiano.”20
Outra das funções que desempenhou foi surgir como uma forma de resistência
à ideologia oficial do cristianismo.
20
Ibidem. P.26.
21
Conto “A Vaquinha”. VASCONCELOS, José Leite. 1966. Coimbra. Contos Populares e Lendas.
Coordenação de Alda da Silva Soromenho e Paulo Caratão Soromenho. Universidade de Coimbra. P.
218-220. (Daqui em diante CPL)
24
ainda o “penedo de Alcântara”22, onde as fadas aconselharam uma jovem a
subir sempre que quisesse fazer o seu pedido à varinha mágica. Os contos em
questão reportam-nos também a terras e lugares concebidos pela ação
humana, como castelos ou palácios, também referidos como a “corte”23.
22
Conto “A Vaquinha”. CPL. P. 218.
23
Conto “A Enteada”. CPL P. 209-215.
24
Conto “Pele de Burro”. CPL. P. 203-205.
25
Conto “A Vaquinha”. CPL. P. 218-221.
26
Contos “As Fadas”, “As Treze Fadas”, “A Estrela de Ouro”, “A Enjeitada”, “A Maçã de Ouro”, “A
Vaquinha” e “A Enteada”. CPL. P. 203-252.
25
particularidades físicas, designadamente de grande beleza: “ia-se fazendo mais
linda […] não deixava de l`àmentar mais a beleza27; nunca se vira uma beleza
como aquela28; linda como os amores”29; ou fealdade extrema: “a cara mais
horrenda”30; ou com membros que se destacam pelo seu tamanho excessivo,
como os pés: “Correu todo o reino para ver a quem servia o sapato. A ninguém
servia.”31; ou, pelo contrário, de tamanho delicado: “mostrar esse delicado
pé”32.
Le fantastique […] ne dure que le temps d´une hésitation; hésitation commune au lecteur
et au personnage, qui doivent décider si ce qu´ils perçoivent relève ou non de la
«réalité», telle q´elle existe pour l´opinion commune. A la fin de l´histoire, le lecteur, sinon
le personnage, prend toutefois une décision, il opte pour l´une ou l´autre solution, et par
là même sort du fantastique. S´il décide que les lois de la réalité demeurent intactes et
permettent d´expliquer les phénomènes décrits, nous disons que l´œuvre relève d´une
autre genre : l´étrange. Si, au contraire, il décide qu´on doit admettre de nouvelles lois de
la nature, par lesquelles le phénomène peut être expliqué, nous entrons dans le genre du
34
merveilleux.
27
Conto “A Enteada”. CPL. P. 209-215.
28
Conto “A Estrela de Ouro”. CPL. P. 223-228.
29
Conto “As Treze Fadas”. CPL. P. 250-252.
30
Conto “A Estrela de Ouro”. CPL. P. 223-228.
31
Conto “A Gata Borralheira”. PEDROSO, Consiglieri. 2007. Contos Populares Portugueses. Lisboa.
Nova Vega. 8ª Edição Revista e Aumentada. P. 14
32
Conto “A Gata Borralheira”. CPL. P. 221-222.
33
Todorov, Tzvetan. 1970. Introduction à la Littérature Fantastique. Paris. Éditions du Seuil.
34
Ibidem. P. 46.
26
O fantástico, para Todorov, é a dúvida do leitor em relação a um acontecimento
estranho, sem admitir que aquilo é sobrenatural ou possui uma explicação
racional. Se há um desfecho sobrenatural há o maravilhoso, se a explicação é
racional há o estranho. Quando a história encerra com a ambiguidade, estar-
se-á diante do fantástico. São ainda apresentadas as seguintes subdivisões
entre esses três géneros: estranho puro, fantástico estranho, fantástico
maravilhoso e maravilhoso puro. O primeiro refere-se a acontecimentos
insólitos que podem ser explicados racionalmente, o segundo trata de feitos
sobrenaturais que no fim recebem uma explicação racional. O terceiro
caracteriza a aceitação do sobrenatural ao término da história, pois há
diferentes tipos de narrativas onde este recebe uma certa justificação, como o
maravilhoso hiperbólico, no qual os fenómenos não são sobrenaturais a não
ser pelas suas dimensões superiores às que nos são familiares; o maravilhoso
exótico narra acontecimentos sobrenaturais sem os apresentar como tais; o
maravilhoso instrumental surge com os aperfeiçoamentos técnicos da narrativa
e no maravilhoso científico o sobrenatural é explicado de uma maneira racional,
mas a partir de leis que a ciência contemporânea não reconhece. Estas
categorias diferem do maravilhoso puro, pois neste estamos perante a
naturalização do insólito, ou seja, não se explica de nenhuma maneira, uma
vez que a ocorrência de situações ou a presença de seres sobrenaturais não
provoca qualquer reação nas personagens ou no narrador (que não deve ser
necessariamente auto ou homodiegético) e, consequentemente, nem no leitor,
pois os elementos insólitos estariam inseridos num universo em que “tudo” é
possível. Existe assim um maravilhoso puro, bem como um estranho, embora
ambos não tenham limites claros. No primeiro não é a atitude para com os
acontecimentos narrados que o caracteriza, mas a própria natureza desses
acontecimentos. Poderemos concluir que o efeito fantástico se situa assim
entre os limites do Maravilhoso e do Estranho e classifica-se de acordo com
subgéneros transitórios entre eles.
27
personificação dos animais, o sono de cem anos ou os dons mágicos das fadas
não provocam nenhuma surpresa, quer às personagens, ao narrador ou
mesmo ao leitor/ouvinte. Estes são transportados para fora do espaço e do
tempo reais e essa indeterminação espácio-temporal situa a narrativa em
dimensões diferentes do mundo real, o que vai favorecer a introdução de
elementos sobrenaturais que nada nos surpreendem. Isso está bem patente
logo nas fórmulas iniciais dos contos como “Era uma vez…”, “Há muitos,
muitos anos…”, “No tempo em que animais falavam…”. Estas expressões têm
como finalidade provocar um distanciamento da realidade. O que distingue o
conto de outro tipo de texto é o tipo de escrita e não o estatuto do sobrenatural.
2.1 – Metamorfose
A noção de Metamorfose não pode ser vista como uma simples dissolução da
identidade segura, ela remete-nos para o desejo da construção de um corpo
transcendente que é simultaneamente instrumento de transformação da
identidade. Estamos perante uma relação direta entre representação do corpo
e a formação da identidade, testada por meio da metamorfose corporal.
29
manhã na sua cama de sonhos inquietos, viu-se metamorfoseado num
monstruoso inseto.”36 Para Vladimir Nabokov, este inseto não seria um inseto
do ponto de vista zoológico, uma vez que seria “um escaravelho castanho,
convexo, do tamanho de um cão.”37 Tal como Gregor Samba, também o amor
e carinho da sua família se metamorfoseou. Este passou a ser encarado como
um fardo que eles carregavam e a quem desejavam a morte.38
Com esta obra, o seu autor, e poeta, propõe-se cantar “formas mudadas”, ou
seja, o equivalente ao termo metamorfoses. Estruturalmente, a obra surge
36
KAFKA, Franz. 2005. A Metamorfose. Lisboa. Clássicos. Relógio D`Água. P. 69. Tradução de Isabel
Castro Silva.
37
Ibidem. P. 24.
38
Segundo uma análise freudiana, a obra ilustra a complexa relação do escritor com o pai e o seu
sentimento de culpa. De acordo com o simbolismo mítico, o inseto caracteriza o seu sentimento de
inutilidade perante o pai.
30
composta por uma sucessão de histórias mitológicas, tendo estas como tema
unificador a “transfiguração”. Essas transformações podem ser encontradas
nos mitos, onde com grande frequência pessoas ou seres míticos (deuses
menores) são transmutados em animais ou plantas. O poeta pretendia
apresentar uma narrativa contínua desde os primórdios do mundo até aos seus
dias, tal como aparece explícito no próprio poema “Ó deuses, inspirai a minha
empresa (pois vós a mudaste também), e conduzi ininterrupto o meu canto
desde a origem primordial do mundo até aos nossos dias.”39 A obra transporta-
nos para um universo nitidamente ficcional, em que os corpos mudam de
natureza e de forma, e se transformam em pedras, fontes, rios, animais e
muitas outras coisas. No entanto, o poeta consegue levar o leitor a situar-se
num patamar de verosimilhança. Constatamos que:
39
Ovídio. 2007. Metamorfoses. Livros Cotovia. Lisboa. P. 35. Tradução de Paulo Farmhouse Alberto.
40
Ibidem. P. 16.
31
cultura geral, sendo possível encontrar vários pontos de contacto com os
contos populares.
41
Ibidem. P. 24.
32
a jovem até junto da frescura das águas do rio ou ribeiro, para assim esta
poder lavar as tripas do animal em questão. A água do rio, proveniente de uma
fonte originária, ao contrário das águas do oceano, remete-nos para uma
origem mítica.
33
2.2 – Fadas e Bruxas
2.2.1. Fadas
“As fadas, mulheres que habitavam a Insula Pomorum e que competiam no plano
simbólico com a Igreja com relação ao domínio do sagrado, pois, segundo as narrativas,
42
possuíam a sabedoria, o dom da cura e da imortalidade” surgem como “seres
imaginários representados na forma de mulheres notáveis pela graça, espírito, bondade,
43
beleza e dotadas de poder sobrenatural. São pois seres mitológicos, característicos
dos mitos célticos, anglo-saxões, germânicos e nórdicos. As fadas também são
conhecidas como sendo as fêmeas dos elfos. O termo incorporou-se na cultura ocidental
a partir dos assim chamados "contos de fadas". Nesse tipo de história, a fada é
42
ZIERER, Adriana. 1999. “Significados medievais da maçã: fruto proibido, fonte do conhecimento, ilha
Paradisíaca Medieval.” in Revista Mirabilia 1. Disponível em:
http://www.revistamirabilia.com/Numeros/Num1/maca.htm. [Consultado em 05.12.09]
43
Dicionário On-line de Português. Disponível em http://www.dicio.com.br/fada/. [Consultado em
04.06.10.]
34
representada de forma semelhante à versão clássica dos elfos de J.R.R. Tolkien, porém
apresentando "asas de libélula" nas costas e utilizando-se de uma "varinha de condão"
para realizar encantamentos. Dependendo da obra em que aparece, a fada pode ser
44
retratada em estatura de uma mulher normal ou diminuta.
44
Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Fadas. [Consultado em 04.06.10.]
45
Conto “As Treze Fadas”. CPL. P. 250.
35
lugar da décima terceira Fada na mesa, que a princesa foi sujeita a um fado
funesto e obrigada a dormir durante cem anos.
Estes seres são dotados de grandes poderes, que surgem sob a forma de dons
que estas podem conceder. No caso das meninas injustiçadas estas são alvo
de dons de vertente positiva, ou seja, são fadadas para passarem a ser a cara
mais linda, a ter os cabelos com fios de oiro fino, da sua boca jorrarem pérolas
ou flores sempre que falarem, dos seus cabelos deitarem pedras preciosas, ou
dos olhos deitarem diamantes, como por exemplo no conto “A Enjeitada”. Em
ambas as situações, os “dons concedidos afetam geralmente a boca, os olhos,
a cara, os cabelos e as mãos e relacionam-se com a fortuna, a beleza e o dom
da palavra.”46
A verbalização é uma das constantes deste universo, uma vez que alguns
seres, como as fadas, possuem a capacidade de fazer da palavra uma bênção,
enquanto outros a usam como uma maldição (neste caso reportamo-nos às
bruxas).
Nos contos, a própria palavra age sobre a matéria e torna-se um poder em si ecoando,
deste modo, o imaginário verbal da magia. […] O conto ensina-nos que é através da
palavra que se sai e, simultaneamente, se entra no labirinto – o fio é o da palavra e as
asas ganham-se com as palavras que permitem o voo e a evasão […] todo ele, uma
vitória da memória sobre os esquecimentos; da palavra sobre o silêncio e, nos próprios
46
MEIRELLES, Mª Teresa. 2006. Fadas, Mouras, Bruxas e Feiticeiras: Contos & Lendas. Lisboa. Apenas
Livros. P. 10.
36
contos, a palavra é entendida como um bem precioso que deve ser tratado com
47
precisão. A repetição da palavra deve ser feita, por isso, com preceito e esmero.
-Pois eu sou uma fada e sei desse encanto. Toma lá este espelho; quando entrares na
pedreira, tira-o do bolso, que hás-de ver o palácio iluminado como se fosse de dia (…)
Aqui tens também este frasco com um líquido, que chegando ao pé dele há-de morrer
47
MEIRELES, Maria Teresa. 2006. A Palavra e os seus ecos. Contos e Lendas. Lisboa. Editora Apenas
Livros. P. 17-23.
48
“Vá ao penedo de Alcântara e diga: “ Varinha de condão, dai-me tudo o que eu precisar”; logo o penedo
se abrirá e aparecerá tudo; e ao spois, para o tornar a fichar, diga: “ Varinha de condão, fichai-me este
penedo”. Conto “A Vaquinha”. CPL. P. 220.
49
MEIRELES, Maria Teresa. 2006. Fadas, Mouras, Bruxas e Feiticeiras. Contos e Lendas. Lisboa. Editora
Apenas Livros. P. 4.
50
Ibidem.
51
Conto “A Enjeitada”. P. 216; Conto “A Estrela de Ouro”. P. 223; Conto “Linda – A - Linda”. P. 228. Conto
“A Maçã de Ouro”. P. 243. Conto “O Sapateiro Viúvo”. P.245. Conto “Os Órfãos”. P. 272. CPL.
52
“[…] passados tempos apareceu, e um deles pôde entender-se com uma fada, a qual lhe deu um
espelho que falava.” Conto “Linda-A-Linda”. CPL. P. 228.
37
instantaneamente. Todas estas cousas te dou, porque és digno disso, e só com elas é
53
que te poderás salvar.
53
Conto “O Jardineiro e os seus Três Filhos”. CLP. P. 182.
54
Disponível em: http://blogs.opovo.com.br/astrologia/as-fadas/ . [Consultado em 12.02.2010.]
38
bosques e nos prados, apenas visíveis, talvez, ao pôr do sol, quando os últimos
raios do astro rei brilham por entre os céus.
Tal como já foi acima referido, por vezes é atribuída às fadas a função de
videntes, nomeadamente nos contos em que são convidadas, logo após o
nascimento de alguma figura da realeza, a irem ao seu palácio proferir o seu
oráculo56, bem como traçar o seu destino57.
55
“A enteada quando chegou lá […] achou a casa muito mal arranjada. Ela então arranjou a casa muito
bem […] Já que tu és tão bonita e tão asseada, vamos-te dar um dote [dom]. […] Quem foi a porca que
aqui entrou e que sujou tudo e fez mal ao nosso cãozinho? […] Eu te fado para que sejas a cara mais
horrenda, que não haja nada igual!”. Conto “A Estrela de Ouro”. CPL. P. 223-224.
56
“Era costume no país, onde residiam, logo que nascessem pessoas de tão alta hierarquia, virem ao
palácio doze fadas para cada uma proferir o seu oráculo, e escusado será dizer que eram ouvidas
religiosamente, principalmente pelos pais.” Conto “As Treze Fadas”. CLP. P. 250.
57
“No dia do baptizo da prencesa convendou as fadas todas para darem um dom à menina […]”. Conto
“As Fadas”. P. 207. – “Alta noite, passam três fadas. […] Eu te fado que sejas a cara mais linda e que os
teus cabelos deitem pedras preciosas. […]” Conto “A Menina Que Deita Pedras Preciosas dos Cabelos”.
CPL. P. 279.
58
“Depois foram dar com ela atrás da porta, e em paga deram-lhe uma varinha de condão e dixeram-lhe:
-Vá ao penedo de Alcântara e diga: “Varinha de condão, dai-me tudo o que eu precisar […].” Conto “ A
Vaquinha”. CLP. P. 220.
39
As fadas ou mulheres com dons sobrenaturais povoam as narrativas no
transcorrer dos séculos, pois são inúmeras as obras ou textos que acolheram o
maravilhoso feérico nas suas variadas formas de representação. Ao nível
nacional não poderíamos deixar de relembrar Luís de Camões, que lhes fez
menção no episódio da Ilha dos Amores, quando os navegadores foram
acolhidos pelas ninfas; Gil Vicente que as transportou para o texto dramático
ao escrever o “Auto das Fadas”; Almeida Garrett, Antero de Quental ou mesmo
Fernando Pessoa que se inspiraram nestas figuras e deram largas à sua
versificação, tal como a seguir se ilustra:
59
A criança que pensa em fadas e acredita nas fadas
Alberto Caeiro
[Fernando Pessoa]
59
PESSOA, Fernando. 1994. “Poemas Inconjuntos”. Poemas Completos de Alberto Caeiro. Lisboa.
Editora Presença. Recolha, transcrição e notas de Teresa Sobral Cunha. P. 137.
40
2.2.2. Bruxas
O facto de, nos contos de fadas, ninguém mais ter nome torna tudo ainda mais evidente:
as principais personagens não têm nomes. São referidas por «pai», «mãe», «madrasta»,
41
se bem que possam ser descritos como «um pobre pescador» ou «um pobre lenhador».
Se forem «um rei» ou uma «rainha», são apenas disfarces para pai ou mãe, assim como
«príncipe» ou «princesa» significam filho e filha. As fadas e as bruxas, os gigantes e as
60
madrinhas também não têm nomes, o que facilita as projecções e as identificações.
Esta sua afirmação vai ao encontro da nossa perspetiva de que, nos contos
tradicionais em estudo, esta figura aparece camuflada na personagem da
madrasta. De uma forma direta, ela vai estar presente na imaginação da
criança sempre que esta estabelecer contacto com a personagem da madrasta.
Para a criança só alguém como a bruxa seria capaz de exigir tarefas
impossíveis de concretizar, tal como a madrasta faz à sua enteada. É-lhe
inaceitável que este tipo de exigência parta da figura da mãe. Para além de
cuidadora e de servir de suporte afetivo, ela terá também de ser a cuidadora e,
como tal, terá de permitir que a criança enfrente inúmeras dificuldades, para
assim atingir o seu desenvolvimento físico e emocional.
Devemos ainda salientar que elementos, como a figura das bruxas e os seus
atos maléficos se destinam à catarsis e não só ligam os contos aos mitos
originários, como apresentam simbolicamente uma iniciação ao mal ou à
resistência da matéria, do mundo e dos homens, que a criança irá defrontar na
idade adulta. Ainda que suavizadas, ou vencidos depois de trabalhos, provas e
proezas, as personificações malignas, regra geral, estão presentes em todos
os contos.
Podemos assim concluir que estas duas figuras das fadas e das bruxas são
descritas ou conhecidas como seres fantásticos ou imaginários, que se
apresentam sob a forma de mulher. Podem ser angelicais, difundido o bem, na
figura das fadas, ou encarnando o mal, representadas pela figura das
madrastas, as bruxas. Estas possuem o poder de interferir no destino do
Homem e foram uma das formas encontradas para encarnar a presença
maternal constante ao longo do percurso de vida de qualquer jovem. É comum
referir-se que a fada e a bruxa são formas simbólicas da eterna dualidade da
60
BETTELHEIM, Bruno. 1995. A Psicanálise dos Contos de Fadas. Lisboa. Bertrand Editora. 4ª Edição.
Tradução de Carlos Humberto da Silva. P.55.
42
mulher ou da condição feminina. No caso dos contos do ciclo da Gata
Borralheira estamos perante a dupla faceta da mãe. Esta figura pode surgir à
criança através da imagem da madrasta, a “bruxa”, quando sente que a mãe
lhe está a exigir algo que, aparentemente, lhe parece impossível e inacessível
de alcançar mas, na realidade, a mãe apenas pretende preparar a criança para
que esta esteja munida de todas as competências necessárias para enfrentar
as adversidades da vida. A cristalização na imagem da “fada”, por seu lado,
mostra a figura materna como alguém que está presente ao longo de todo o
desenvolvimento físico e emocional de forma a apoiar a jovem em todas as
dificuldades que se lhe vão deparando.
O universo dos contos rege-se por mandamentos próprios, leis implícitas que
condicionam a forma como os enredos se desenvolvem, os motivos se conjugam e as
personagens se caracterizam. Produto imaginário do colectivo, caldeado através de
séculos de transmissão oral, fruto de miscigenação com textos eruditos, histórias de
santos e tradições várias, este género literário transmite mensagens sublimares acerca
62
de verdades profundas.
61
MEIRELLES, Mª Teresa. 2006. Fadas, Mouras, Bruxas e Feiticeiras: Contos & Lendas. Lisboa. Apenas
Livros. P. 53.
62
Idem. Más Mulheres, Boas Meninas. Personagens femininas dos contos tradicionais portugueses.
Lisboa. Apenas Livros. P. 3.
43
3.1. - Paradigmática Estrutural dos Contos
63
PROPP, Vladimir. 1983. Morfologia do Conto. Lisboa: colecção. Vega Universidade: Edições Vega.
P.17.
44
exercer diversas funções, que uma mesma função pode ser exercida por
diferentes personagens e que ainda pode ocorrer uma duplicação ou triplicação
de algumas das funções. Essa duplicação ou triplicação permitirá o
encadeamento das sequências narrativas e salientará o aspeto retórico de
determinada função. Essas funções são precedidas de uma parte introdutória,
que contextualiza o enredo (enumeram-se os membros da família, os seus
nomes, situação…). De forma a sistematizar o estudo dos contos maravilhosos,
Propp propôs-se delimitar cada uma das funções e denominá-las (salientando
a importância de ser feita uma distinção entre a função invariante e as suas
variantes facultativas). A codificação das funções consistiu em atribuir uma
letra à função invariante seguida de um índice numérico para cada uma das
variantes64.
H J
ABC DEFG I K Pr-Rs O L Q Ex T U W⁰
M N
64
Ibidem. P. 65-110.
65
Ibidem. P. 162.
45
este recusou algumas das suas funções, incluindo a função linear do texto, ou
seja, a hipótese de que todo o conto é idêntico. Com o objetivo de limitar as
sequências, Bremond esboça um esquema tríade que permite organizar todas
as possibilidades da intriga:
Sucesso do ato
Situação abrindo Atualização da Possibilidade Fracasso do ato
uma possibilidade
Possibilidade não atualizada
Um aspeto proeminente é que para Bremond uma narrativa não pode ser
definida apenas pela sua lógica causal e sucessão cronológica dos factos, mas
também pelos seus traços culturais e ideológicos, como também pela evolução
psicológica das personagens. Para ele,
66
BREMOND, Claude, MORIN, Violette e METZ, Christian. 1973. Cinema, Estudos de Semiótica.
Selecção de Ensaios da revista “Comunications”. Petrólis. Editora Vozes, Lda. P. 48-93.Tradução de Luiz
Felipe Baêta Neves.
46
A ética da narração está dominada por um esquema retributivo: é considerada
como positiva a evolução que consagra a vitória do Bem e/ou a derrota do Mal;
negativa, a evolução que leva à derrota do Bem e/ou à vitória do Mal. A
evolução positiva caracteriza-se pelo conflito de dois grupos de personagens,
os Bons e os Maus, e a vitória dos primeiros sobre os segundos. Mas a
positividade do fim não garante a dos meios, que são às vezes, injustos e
quase sempre violentos. No contexto da religião católica denota-se uma certa
preferência por formas não agressivas na luta contra o mal, como a vitória do
homem sobre o mal que está nele próprio, o progresso espiritual, a conversão
ou a redenção. O tema é mais edificante ainda quando se junta à mediação do
sofrimento e do remorso (a intervenção visível da graça), sobre os traços de
um ser frágil e puro. Um herói já positivo atravessa uma crise durante a qual é
tentado a trair o seu ideal. Ele trava um conflito entre o amor e o dever, saindo
vitorioso e fortificado desta prova. A vitória do bem e a derrota do mal
aparecem mais frequentemente como as duas faces solidárias da mesma
história, em que a vitória dos bons sobre os maus é duplamente edificante,
uma vez que contém ao mesmo tempo um encorajamento e uma precaução. A
evolução positiva de um tema negativo realiza um reequilíbrio perfeito, uma vez
que o desenvolvimento da história apaga tanto no espírito do ouvinte, como
nos factos apresentados, a impressão desagradável criada pela apresentação
do mal.
Outro aspeto também negligenciado por Propp e apontado por Bremond foram
as triplicações de certas funções narrativas. Estas remetem para funções
diretamente relacionadas com as tarefas difíceis a que o herói/heroína terá de
se submeter de forma a conseguir atingir o seu objetivo (a que no nosso corpus
de trabalho geralmente correspondem algumas cenas que antecedem o
reencontro com o príncipe). Essas tarefas difíceis podem passar pelo
interrogatório a que a heroína pode ser sujeita por parte da vilã, o cumprimento
da tarefa difícil e a malfeitoria de que é alvo. As referidas tarefas apresentam-
se com grau de dificuldade crescente, sendo a terceira a decisiva e a que
poderá levar o herói à vitória.
67
Bremond, Claude. 1973. Logique du Récit. Paris. Editions du Seuil. P. 29.
48
também encontrar relações sintagmáticas que promovem a organização das
estruturas narrativas:
definir um género apenas pelo número de actuantes ou dramatis personae, como ele os
chama, fazendo abstracção de todo o conteúdo, é situar a definição num nível formal
excessivamente elevado; apresentar os actuantes sob a forma de um simples inventário,
sem se interrogar sobre as relações possíveis entre eles, é renunciar muito cedo à
análise, deixando a segunda parte da definição, seus traços específicos, num nível de
68
formalização insuficiente .
(desejo)
Este modelo apresenta-nos o sujeito como alguém que faz a ação; o objeto
como alguém que sofre a ação; o destinador como alguém que empurra o herói
na sua busca; o destinatário como aquilo que se pretende alcançar; o
adjuvante como alguém que traz auxílio, que age no sentido do desejo ou
facilitando a sua comunicação (segundo Greimas “Forças benfazedas do
68
GREIMAS, A. J. 1966. Semântica Estrutural. Pesquisa de Método. S. Paulo. Editora Cultrix. Editora da
Universidade de S. Paulo. 2ª Edição. P. 228. Tradução de Haquira Osakabe e Izidoro Blikstein.
69
PROPP, Vladimir. 1983. Morfologia do Conto. Lisboa: colecção Vega Universidade: Edições Vega. P.
28.
49
mundo, encarnações do anjo da guarda”); o oponente como alguém que cria
obstáculos, opondo-se quer à realização do desejo, quer à comunicação do
objeto (segundo o mesmo “Forças malfazedas do mundo, encarnações do
diabo do drama da Idade Média”). Mostra-nos ainda que “um mesmo actante
pode pois ser manifestado ao nível da expressão, por várias personagens
assim como a mesma personagem pode desempenhar funções distintas e
personificar actantes diferentes (ex: sujeito que é ao mesmo tempo
destinatário; destinador que é ao mesmo tempo opositor ou adjuvante do
sujeito, etc.).”70
70
Ibidem. P. 29.
71
O casamento surge assim como “um contrato firmado entre o destinador, que oferece o objeto da busca
ao destinatário, e o destinatário-sujeito, que o aceita.” Esta função pode surgir assim “acasalada” como
contrato vs consolidação.
50
simplificar o modelo interpretativo de Propp, Greimas propõe também uma
tipologia de provas, que podem ser consideradas, conforme a função que
assumem na economia geral da narrativa, como:
Greimas acredita ainda que o conto é uma narrativa complexa ou dupla, uma
vez que apresenta a relação das provas realizadas pelo sujeito (o herói) em
oposição à história do anti-sujeito (traidor). Constata-se assim que o esquema
narrativo é sempre constituído por dois percursos narrativos, que se
desenvolvem em direções opostas e reduzem-se
72
De acordo com a sua perspetiva, seria mais assertivo que a interpretação das três provas não
respeitasse uma linha temporal ou gráfica, mas sim uma ordem lógica de pressuposição, nomeadamente
o reconhecimento do herói previa uma ação heróica da sua parte e esta subentendia uma qualificação do
herói.
73
COURTÉS, Joseph. 1979. Introdução à Semiótica Narrativa e Discursiva. Coimbra. Livraria Almedina.
P. 30.
51
S1 U O ∩ S2
Relativamente ao esquema narrativo, ele reconhece duas espécies de sujeitos:
os sujeitos de estado e os sujeitos de fazer. Os primeiros serão os depositários
dos valores, que só podem ser reconhecidos como sujeitos na medida em que
estão em relação com objetos de valor e participam em diferentes universos
axiológicos. Os segundos, os sujeitos agentes são os que, operando junções,
transformam os primeiros. Assim a representação canónica do sujeito só pode
tomar a forma de um enunciado de estado, cuja função é constituída pela
relação entre o sujeito e o objeto:
S ∩ O ou S U O
No que diz respeito aos enunciados de fazer, o sujeito de fazer opera
transformações que se situam entre estados. A fórmula
S U O → S∩O
corresponde à representação de dois estados sucessivos de um sujeito que
inicialmente se encontra disjunto do objeto, passando mais tarde a estar
conjunto com ele, após a intervenção de um fazer transformador.
…o sujeito de fazer e o sujeito de estado não são actuantes semióticos que participam
directamente no esquema narrativo que organiza o discurso, mas actuantes sintácticos,
espécies de indicadores sintácticos dos modi operandi e significandi, que permitem
calcular operações efectuadas por diferentes actantes e medir o seu “ser” em progressão
74
e/ou em diminuição constante, no momento do desenvolvimento da narrativa.
74
Ibidem. P. 19-21.
52
definição do programa narrativo como ato performador. No entanto qualquer
programa narrativo deverá ligar o sujeito de fazer e o sujeito de estado num só
atuante, este sujeito deve visar o objeto investido de um valor descritivo e deve
ser realizado de acordo com a existência semiótica (conjunção ou disjunção). O
sujeito só pode realizar uma performance se possuir a competência necessária.
Sendo a competência “o que faz ser” e pertencendo à ordem do “ser” e não do
“fazer” só poderemos testar a competência do sujeito quando este se
apresentar como um sujeito de estado. Para desempenhar a sua performance
de forma competente, o sujeito deve estar na posse de um programa narrativo
que deverá realizar, estar dotado de marcas da realização deste programa
narrativo e estar em conjunção com um objeto investido de valores modais.
Para além dos sujeitos de fazer e de estado surge a figura do sujeito operador,
esta posição pode ser desempenhada por diferentes atores com a função de
destinador. Compete ao destinador incitar o herói a adquirir a sua competência
e a aplicá-la de forma bem sucedida, designadamente a prova qualificadora é
um bom exemplo. Quando a prova referida compreende o combate simulado
faz-nos crer que o sujeito se torna competente pelos seus próprios meios,
deixando transparecer, sob a máscara do adversário, a figura do destinador,
que é o efetivo doador da competência. O sujeito semiótico é apresentado
como competente ou performante, no entanto ele só será competente quando é
sucessivamente sujeito segundo o querer, poder e saber - fazer. O sujeito é o
conjunto organizado dos papéis actanciais adquiridos ao longo do percurso
precedente. O sujeito semiótico, enquanto sujeito de fazer, passa
sucessivamente por três modos de existência semiótica:
Sujeito virtual → sujeito atualizado → sujeito realizado
O sujeito só realiza o seu projeto após ter produzido o ato que o fez entrar em
conjunção com o objeto de valor. Este, enquanto sujeito de estado define-se
pela sua relação com o objeto de valor, relação essa que está submetida a
variações ao longo do percurso narrativo.
No que diz respeito aos objectos de valor, estes só se tornam de valor como
projeção do “querer - ser” do sujeito, ou seja, dotado do estatuto modal de “ser
- querido”. À semelhança do sujeito, também este evolui de objeto virtual, que
53
entendemos como o objecto desejado, para objeto atualizado pelo sujeito e
posteriormente surge como o objeto realizado.
Relativamente à ação, esta surge por detrás do contrato entre o destinador e o
destinatário-sujeito. A restante narrativa corresponderá à execução do mesmo
pelas partes contratantes. No que ao sujeito diz respeito, este está dependente
da contribuição do destinatário, seguido da pena ou do reconhecimento do
destinador. Quanto a este último, ele pode surgir sob a figura do depositário
dos valores que procura inscrever nos programas de ação, enquanto o
segundo assume a figura do juiz da conformidade das ações em relação à
axiologia de referência.
Segundo Propp, a relação entre o destinador e o sujeito apresenta-se sob a
forma de uma hierarquia, cujos elementos estabelecem uma relação de
dominação do primeiro elemento sobre o segundo. Greimas optou por
considerar separadamente o segmento inicial do segmento final, sendo que na
Situação Inicial “o sujeito semiótico é definido como um sujeito de fazer, pela
sua capacidade de agir, de “fazer - ser” as coisas, enquanto o destinador é o
“faz – fazer”75, isto é, provoca o fazer do sujeito. Constata-se assim que o
percurso narrativo é indiferente à posição económico-social dos atuantes,
sejam eles destinadores ou sujeitos. Na situação final, o destinador deixa a sua
posição de manipulador, para assumir a função de “guardião” dos contratos e
das relações humanas. Cabe-lhe a tarefa de julgar a conformidade do fazer e
do ser, acabando por estar dotado da capacidade para conseguir reconhecer
os atos do sujeito como merecedores de sanção ou de reconhecimento público.
Estamos perante um destinador que se encontra em busca de um saber
verdadeiro.
75
Ibidem. P. 31-34.
54
correlação de duas categorias semânticas: cultura vs natureza e indivíduo vs
sociedade.
76
LOPES, Ana Cristina Macário. 1987. Analyse Sémiotique de Contes Traditionnels Portugais. Coimbra:
Instituto de Investigação Científica. Centro de Literatura da Universidade de Coimbra. P. 40-43.
55
3.2. – Fundo Mítico e Simbólico
De que forma os sonhos se ligam aos mitos? Cada sonho é constituído por
dois níveis: o conteúdo aparente e o latente. O conteúdo aparente é aquele de
que nos lembramos, uma breve história que pode ser absurda. O latente é o
conjunto das ideias que se associam entre si e se metamorfoseiam no
77
Apud. BETTELHEIM, Bruno. 1995. A Psicanálise dos Contos de Fadas. Lisboa. Bertrand Editora. 4ª
Edição. Tradução de Carlos Humberto da Silva. P. 48
56
conteúdo aparente. Tal como referimos relativamente ao mito, também o
material a partir do qual os sonhos são criados provém de pensamentos
perigosos e de sentimentos incómodos que foram reprimidos no inconsciente
por meio do processo de censura. Essa censura é atenuada
momentaneamente durante o sono, mas apenas algumas vezes, já que a
expressão plena destas ideias inconscientes provocaria sentimentos de agonia
e de culpabilidade no sonhador. Deste modo, uma censura parcial continua a
dissimular as ideias reprimidas, as quais, durante o sono, são reevocadas e
introduzem-se novamente na parte consciente da mente. E assim, como nos
sonhos, a censura jamais é suprimida completamente, também nos mitos as
ideias inconscientes aparecem dissimuladas para escapar ao seu
reconhecimento pela parte consciente da mente. As ideias que predominam
nos mitos e nos sonhos são tipicamente as ideias da fase infantil e
principalmente as ideias que se vinculam aos pensamentos e comportamentos
proibidos e perigosos, capazes de provocar angústia e culpa, provenientes,
sobretudo da esfera da vida sexual dos pais. Isso não significa que o problema
mais importante das crianças é de natureza erótica, mas que esse tem maior
probabilidade de estar sujeito ao processo de repressão. A diferença entre os
sexos adquire uma importância cada vez maior na vida das crianças, bem
como o comportamento sexual dos pais, especialmente essa atividade secreta
que gera descendentes e satisfação e da qual elas próprias estão excluídas.
57
Para os estruturalistas ou formalistas, estamos perante “mitemas”, ou seja, o
resultado de um conjunto de versões diferentes de um mito inicial, com uma
estrutura rigorosa. Para Claude Lévi-Strauss78 estes possuem “estruturas
míticas” e revelam “unidades ou combinações permanentes” que transcendem
“as diversas versões particulares”. Alguns autores como Propp ou Otto Huth
veem nelas os traços de ritos de iniciação totémicos ou de religiões
megalíticas. Para Mircea Eliade seriam camuflagens de antigas iniciações
religiosas, fundamentais nos ritos de passagem da infância à maturidade. Essa
função iniciática corresponde a um conjunto de provas que o protagonista deve
vencer e que o leitor/ouvinte acompanha simbolicamente interiorizando-as. A
escola de Zurich, orientada por C. G. Jung, o fundador da psicologia analítica,
defende a análise do conto segundo três planos: o profano, o sagrado e o
iniciático. A sua função seria harmonizar os três estratos psicológicos
fundamentais do homem: o inconsciente coletivo ou arcaico, o inconsciente
individual e o consciente racional e ativo. Realça ainda que as figuras e as
ocorrências dos contos evocam a necessidade humana de progredir para um
estado superior de integração da personalidade – uma renovação interior que é
conseguida quando as forças pessoais inconscientes se tornam acessíveis
para a pessoa. Surgem ainda situações ou personagens arquetípicas como as
fadas, as palavras mágicas ou os animais personificados que exprimem as
relações imanente-transcendente, despertando a imaginação para o mistério
de ser, de viver, de amar e de morrer. Outros investigadores se lhes seguiram,
como Bruno Bettelheim, que percebeu que um dos atrativos deste tipo de texto
é “a sua expressão daquilo que normalmente é impedido de ser
consciencializado.”79 Detetou ainda as dissemelhanças entre os contos e os
sonhos, tais como o facto de nos sonhos a realização de um desejo ser
disfarçada, enquanto nos contos é exposta abertamente; os sonhos resultam
78
Para falar sobre estes autores que se seguem baseamo-nos no livro QUADROS, António. 1972. O
Sentido Educativo do Maravilhoso. Lisboa. Exposição de Livros Infantis. Ciclo de Conferências sobre
Literatura Infantil. Lisboa. Ministério da Educação Nacional. Direcção-Geral da Educação Permanente. P.
19-25.
79
BETTELHEIM, Bruno. 1995. A Psicanálise dos Contos de Fadas. Lisboa. Bertrand Editora. 4ª Edição.
Tradução de Carlos Humberto da Silva. P. 49
58
de tensões interiores para as quais parece não haver solução, já nos contos
surgem formas de resolver todas essas tenções de forma bastante satisfatória;
o tema dos sonhos parece ser incontrolável, por outro lado no conto abordam-
se problemas humanos universais, fruto do consenso do povo, para os quais se
apresentam as soluções desejáveis. O autor acima referido menciona na sua
obra Psicanálise dos Contos de Fadas que quer os mitos, quer os contos
80
Ibidem. P. 50
59
os mitos são úteis não para a formação da personalidade total, mas somente do super-
ego. A criança sabe que não pode, de modo algum, atingir as virtudes do herói ou igualar
os seus feitos; tudo o que se espera dela é que imite um bocadinho o herói, para que a
81
criança não seja vencida pela discrepância entre este ideal e a sua própria pequenez.
81
Ibidem. P. 55
82
Apud. Ibidem. P.98.
83
Apud DURAND, Gilbert. 1964. A Imaginação Simbólica. Lisboa. Perspectivas do Homem. Edições 70.
60
contacto com os símbolos aceites pela sociedade e constitui assim uma
pseudo-sociedade. Esta fase inicial da criança, também denominada de fase
lúdica, está em estreita ligação com a pedagogia da fase parental, ou seja é
neste nível que se formam as categorias adjetivas do “materno”, do “paterno” e
do “fraterno”. Estas categorias estão diretamente relacionadas com a
experiência de vida de cada criança. De acordo com esta pedagogia, todos os
matizes pedagógicos são possíveis, desde a estrita proibição e a segregação
sexual até ao pré-exercício sexual. Também Piaget defendia que este pré-
exercício sexual ou a sua proibição liga o universo dos contos à fase parental
ou ao nível dos “esquemas afetivos”.
84
SANTOS, Maria João. 2006. O sentir e o significar. Para uma leitura do papel das narrativas no
Desenvolvimento emocional da criança. Dissertação de Doutoramento em estudos da Criança Trabalho
da Universidade do Minho. Disponível em: http://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/7632.
[Consultado a 07-02-2009].
85
FAGULHA. 1997. Apud. SANTOS, Maria João. 2006. O sentir e o significar. Para uma leitura do papel
das narrativas no Desenvolvimento emocional da criança. Dissertação de Doutoramento em estudos da
Criança Trabalho da Universidade do Minho. Disponível em:
http://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/7632. [Consultado a 07-02-2009].
61
resolução somente pragmática e factual, optando, também, pelo fantástico e
pelo uso de símbolos. De acordo ainda com este estudo, constatamos que as
crianças que estão habituadas a “manusear intelectualmente” os contos irão
apresentar maior confiança nos seus recursos para responder a situações
problemáticas, dado que não optam pela fuga, tal como acontece com as
crianças não sujeitas a este tipo de atividade. Apresentam, ainda, uma maior
capacidade de sequenciação da ação, pelo encadeamento de imagens mentais
significadas, indicador de uma melhor organização dos acontecimentos e
logicamente, de uma melhor compreensão, que conduz à elaboração do
pensamento e ao desenvolvimento psicológico. Tal como a heroína deste ciclo
de contos enfrenta as provas com o objetivo de atingir a felicidade, também as
crianças ouvintes dos mesmos perante afetos dolorosos, no caso concreto da
relação entre madrasta e enteado(a), procuram através da criatividade, uma
solução para os problemas e não a fuga aos mesmos. Podemos assim afirmar
que os contos populares podem educar as crianças a interpretar e a lidar com
as emoções.
As fontes orais desses textos eram na sua maioria mulheres, daí os nossos
contos darem especial atenção a figuras femininas como donzelas, de humilde
condição, cujas virtudes e cujas desventuras encontram finalmente uma
recompensa. Recompensa essa que pode passar por uma certa valorização do
seu valor por aqueles que a rodeiam, ou por “merecer honras e núpcias
62
principescas”86. Leite Vasconcelos sublinha também a origem essencialmente
feminina dos contos por si coligidos, ao destacar duas figuras, já anteriormente
referidas, que mudaram a sua maneira de encarar a tradição do conto popular:
a sua antiga criada e a Tia Miquelina, parteira e contadora de histórias de
vocação.
86
CALVINO, Italo. 2002. Sobre o Conto de Fadas. Lisboa. Edições Teorema. Tradução de José Colaço
Barreiro. P. 82-83.
63
3.3. – Arquétipos e Testemunhos
87
CORREIA, J. David Pinto. 1992. “Para uma Teoria do texto da Literatura Popular Tradicional”. Literatura
Popular Portuguesa – Teoria da Literatura Oral / Tradicional / Popular. Edições Acarte. Fundação
Calouste Gulbenkian. P. 101-128.
64
6) as VDR, ou versões derivadas reinterpretadas, com uma mudança de
isotopia dominante em simultâneo com uma contaminação da sintaxe
narrativa por outro texto.
Segundo João David Pinto Correia, há que ter em conta que um texto de
manifestação linguística extensa (e em prosa) como é o caso do conto popular,
é passível de maior transformação nas suas componentes discursivas, de
adaptações, atualizações, contaminações em relação ao “apotexto”, pois este,
apesar de poder ou não garantir o seu esquema narrativo, receberá muito mais
88
“Havia um lavrador muito rico, que vivia numa quinta e enviuvou, ficando com uma filha. Pensou que
havia de casar e casou.” In conto “A Enteada”. CPL. P. 209.
89
“(…) tida e havida como a menina mais formosa daquele reino e de fora dele. (…) um espelho que
falava.” In conto “Linda-A-Linda”. CPL. P. 228.
90
“Tio Novelo, para que tem as pernas tão grandes? (…) Tio Novelo, para que tem os braços tão
grandes? (…) Tio Novelo, para que tem os olhos tão grandes? (…) Tio Novelo, para que tem os dentes
tão grandes?” In Conto “Tio Novelo”. CPL. P. 249.
65
facilmente os registos de iniciativa pessoal do contador do que manifestações
textuais mais reduzidas.
66
vai determinar a relação das constantes com as variáveis, sendo que as
funções das personagens representam constantes e tudo o resto pode variar.
Nos contos que analisaremos em seguida constatamos que quer o envio, quer
a partida ligados às buscas são ações constantes. Outro aspeto a salientar é
que as etapas de busca ou mesmo os obstáculos apesar de coincidirem na sua
essência surgem revestidos de uma aparência diferente.
João David Pinto Correia defende ainda que as formas fundamentais estão
ligadas às antigas representações religiosas, sendo que se encontrarmos a
mesma forma num documento religioso e num conto, a forma religiosa é
91
“Para compreender a verdadeira origem do conto, devemos servir-nos, nas nossas comparações, de
informações pormenorizadas sobre a cultura desta época.” in TODOROV, Tzvetan. 1965. Teoria da
Literatura – II. Textos dos Formalistas Russos apresentados por Tzvetan Todorov. As Transformações
dos Contos Fantásticos de Vladimir Propp. Edições 70. Colecção Signos. P. 115. Tradução de Isabel
Pascoal.
67
primária, enquanto a forma do conto é secundária ou derivada.92 Podemos
estabelecer várias relações entre o conto e a religião, nomeadamente pode
haver uma dependência genética direta. De uma maneira geral, é da religião
para o conto que evolui o texto e não o contrário, isto aplica-se essencialmente
quando há uma grande distância de tempo entre o aparecimento da religião e
do conto e quando a própria religião já está morta. Quando comparamos uma
religião viva e um conto vivo do mesmo povo já acontece precisamente o
contrário. O conto vem das antigas religiões, mas a religião contemporânea
apesar de não criar os contos, tem o poder de lhes modificar os seus
elementos.
Não podemos, a partir dos contos, tirar conclusões imediatas sobre a vida. No
entanto, a vida real, apesar de não poder destruir a estrutura geral do conto,
desempenha um papel muito importante nas suas transformações.
92
“Todo o elemento das religiões desaparecidas hoje é sempre preexistente à sua utilização num conto.”
Ibidem.
68
Van Franz, no seu livro La Femme dans les Contes de Fées introduz ainda
outra variante, o sexo do informador e/ou contador. Ou seja, segundo esta
teórica
le récit aura une tonalité un peu différent suivant qu´il aura été rapporté par un conteur ou
par une conteuse. […] On peut donc supposer que les versions des contes, telles
qu´elles nous sont parvenues, ont subi tantôt une influence féminine dominante, tantôt
une empreinte masculine, et que certains traits en ont été soulignés et d´autres
estompés, selon qu´elles ont été rapportées, en dernier lieu, par un homme ou par une
93
femme.
Esta afirmação poderá justificar o facto de, por uma questão de rigor científico,
a maioria da edições dos contos terem a preocupação de indicar o/a informador
dos seus contos.
93
VON FRANZ, Marie Louise. 1993. La Femme dans les Contes de Fées. Paris. Colllection «Espaces
Libres». Traduit par de Francine Saint René Taillandier. Éditions Albin Michel. P.8.
69
3.4. – Agentes ao serviço do Conto Popular
O conto tradicional necessita de ser recontado, para que a sua sobrevivência esteja
assegurada: só quando o conto encontra eco no seu ouvinte, e este se torna um
94
potencial contador, ele pode sobreviver.
Sendo os contos um texto colectivo, o autor individual dilui-se no grupo daqueles que
criam e recriam, no momento da narração através da interacção entre contador e
95
ouvintes.
Os contos, produto de uma oralidade (quase perdida), vão chegando até nós
graças a grandes recolhas narrativas. O elo de ligação da cadeia de
transmissão dos contos ao longo de gerações longínquas foi a figura feminina,
uma vez que coube sobretudo às mulheres (avós, mães, amas, tias, criadas) o
papel de transmissoras. Desde sempre que estas juntaram às tarefas
domésticas, ao fiar e ao tecer o fio das palavras96 e foram construindo um
universo imaginário, onde as maiores crueldades são possíveis, mas também
as estratégias levam a uma reparação das injustiças.
94
CALVINO, Italo. 2002. Sobre o Conto de Fadas. Tradução de José Colaço Barreiro. Edições Teorema.
P. 7.
95
MEIRELLES, Mª Teresa. 2006. Más Mulheres, Boas Meninas. Personagens femininas dos contos
tradicionais portugueses. Apenas Livros. Lisboa. P. 3
96
A este respeito veja-se a interessante reflexão de Eça de Queirós “Positivamente, contar histórias é
uma das mais belas ocupações humanas: e a Grécia assim o compreendeu, divinizando Homero, que
não era mais que um sublime contador de contos da carochinha. Todas as outras ocupações humanas
tendem mais ou menos a explorar o homem: só essa de contar histórias se dedica amoravelmente a
entretê-lo, o que tantas vezes equivale a consolá-lo.” QUEIRÓS, Eça de. 1895. “Carta aos Condes de
Arnoso e de Sabugosa”. Correspondência. Volume 1. Planeta DeAgostini. Lisboa. P. 184.
70
louvável destas contadoras, bem como ao papel de relevo desempenhado por
todas as informantes de que estes teóricos se socorreram.
Cada conto é uma recriação, cada contador um novo molde para o conto; cada conto
97
recontado, um eco de outros ecos e de outras palavras.
No conto, não são apenas as personagens que agem, mas também o contador que
assim transforma o seu contar simultaneamente em voz e em eco. […] Alfonso Reys e
Leite de Vasconcelos afirmaram: “ os contos são “calhaus rolados” – seres que muitas
das vezes nos chegam em bruto e que é preciso limar, analisar e desbastar à nossa
98
medida.
[…] o conto popular tem de ser recriado todas as vezes, de modo que no centro do
costume de contar histórias está a pessoa – excepcional em cada aldeia ou burgo – da
99
narradora ou do narrador, com um estilo e um fascínio muito seus.
97
MEIRELES, Maria Teresa. 2006. A Palavra e os seus ecos. Contos e Lendas. Lisboa. Editora Apenas
Livros. P.12.
98
Ibidem. P. 11.
99
CALVINO, Italo. 2002. Sobre o Conto de Fadas. Tradução de José Colaço Barreiro. Edições Teorema.
P. 31.
71
O contador torna-se a voz e o corpo, em simultâneo, do conto “Le conteur, de
même que les personnages des contes de fées, se métamorphose.”100
Inevitavelmente,
100
ALCOFORADO, Doralice. 1987. “L´Erudit et le Populaire : Le Jeu Intertextuel.” Litterature Orale
Traditionnelle Populaire. Actes du Colloque. Paris. 20-22 Novembre. 1986. Fondation Calouste
Gulbenkian. Centre Culturel Portugais. Paris. P. 335.
101
MEIRELES, Maria Teresa. 2006. A Palavra e os seus ecos. Contos e Lendas. Lisboa. Editora Apenas
Livros. P.7.
102
Ibidem. P.12.
72
objetivos era identificar se o conto tinha sido alvo de acrescento natural
tradicional ou um acrescento de autor, que poderia dar origem a uma certa
reelaboração do conto. Tal facto é sublinhado por Consigliere Pedroso:
As narradoras dos contos, pois eram na maior parte mulheres que “conservam
e transmitem mais pura e mais intacta a tradição, como pode ver-se
confrontando os processos de Inquisição que se referem aos feiticeiros com os
que dizem respeito às feiticeiras […].”104 Estas, não obstante a sua origem,
eram de uma adorável ingenuidade e não suspeitavam que eram detentoras de
um tesouro de incalculável valor para estes investigadores, pois apenas lhe
encontravam como utilidade satisfazer a curiosidade infantil de qualquer
criança. Podemos concluir que os contos foram colhidos, tal como o próprio
Consiglieri Pedroso afirmou “da boca virgem do povo, e vem ainda impregnada
do suave perfume da alma popular, não tendo tido tempo de perder por
alterações ou adulterações eruditas a sua fragrância original”105. O carácter e a
educação da pessoa que conta influem muito na fisionomia geral da narração.
Os contadores de profissão introduzem uma feição mais banal e dão relevo
mais plástico e por vezes quase literário.
Pelo contrário, a história, coligida aqui e acolá da boca do povo directamente, é mais
severa na sua contextura, embora não menos poética pela singeleza e por vezes mais
incongruente no suceder dos episódios, esquecendo não raro mencionar algum no lugar
competente, como acontece a quem não está acostumado a contar ou antes a ditar para
103
PEDROSO, Consiglieri. 2007. Contos Populares Portugueses. Lisboa. Nova Vega. 8ª Edição Revista e
Aumentada. P. 35.
104
Ibidem.
105
Ibidem. P. 47.
73
se escrever, voltando atrás a todo o momento para relembrar algum pormenor
106
olvidado.
106
Ibidem.
107
BREMOND, Claude, MORIN, Violette e METZ, Christian. 1973. Cinema, Estudos de Semiótica.
Selecção de Ensaios da revista “Comunications”. Petrólis. Editora Vozes, Lda. P. 69-70. Tradução de Luiz
Felipe Baêta Neves.
108
“A pobre menina, mal se viu só naquela solidão, começou a chorar muito de rijo, e foi Deus servido
que por ali passasse um bom rei que andava à caça e viu tão galante menina.” In Conto “A Princesa
Mimada”. CLP. P. 267
74
olhos” ou com uma certa ironia “e eu fui lá naquele dia: deram-me um prato de
ervilhas e vim pelas escadas abaixo e tudo se tornou em mentiras!”, como que
esse testemunho da personagem ou do narrador conseguisse tranquilizar o
leitor. Muitos dos contos terminam com um “ainda hoje lá está…”.
75
Parte 4 - Os contos do VIII Ciclo - A Gata Borralheira
Bruno Bettelheim reforçou o facto de este ser o conto que mais tem
despertado a atenção e o agrado das crianças através dos séculos, pois ajuda-
a a acreditar que, à semelhança da heroína, irá ultrapassar todas as suas
angústias de rivalidade fraternal e realizar os seus desejos.
[…] uma história acerca das angústias e esperanças que formam o conteúdo essencial da
109
rivalidade e acerca do triunfo da heroína amesquinhada sobre as irmãs que a maltratavam.
Após a análise dos contos do ciclo acima referido constatámos que estes
partilham vários aspetos e seguem um esquema comum, que podem
apresentar algumas variantes. Nesta primeira fase iremos proceder ao
109
BETTELHEIM, Bruno. 1995. A Psicanálise dos Contos de Fadas. Lisboa. Bertrand Editora. 4ª Edição.
Tradução de Carlos Humberto da Silva. P. 299.
76
levantamento de algumas constantes e particularidades que consideramos de
pertinência para o estudo deste conto.
4.1. - Estrutura
O Conto popular, fruto da oralidade, tem quase sempre uma estrutura muito
simples e fixa. A própria fórmula inicial mais comum “Era uma vez...” e a final
“...e foram felizes para sempre” revelam isso mesmo. Segundo o modelo do
teórico Greimas, anteriormente referido, essa estrutura pode ser traduzida da
seguinte forma:
110
Como exemplos temos: “Uma mulher tinha uma filha, a quem queria muito, e uma enjeitada, a quem
lhe "atirava muito trabalho" Conto “A Enjeitada”. CLP. P. 216; “Havia um lavrador muito rico, que vivia
numa quinta e enviuvou, ficando com uma filha. Pensou que havia de casar e casou. A filha, que era
muito linda, à medida que ia crescendo, ia-se fazendo mais linda, e a madrasta tornou-se muito ruim para
ela, por causa do ciúme, da enteada ser mais linda que ela.” Conto “A Enteada”. CLP. P. 209; “um pai que
tinha uma filha, e essa filha andava na mestra e a mestra dizia à filha (futura enteada) que dissesse ao pai
que casasse com ela que lhe havia de dar uma bolinha de oiro…” Conto “A Vaquinha”. CLP. P. 218; “Era
uma vez um homem que […] tinha uma filha muito linda do primeiro casamento e outra filha muito feia do
segundo casamento. A madrasta maltratava a enteada, obrigando-a a ir dormir a um moinho, que
pertencia aos ladrões, que eram diabos ” Conto “Filha e Enteada”. CPL. P. 239.
77
função de "Sujeito”111. Esta personagem, de origens humildes, cujos valores
são a amizade, a felicidade e o amor, é alvo de malfeitorias por parte da
madrasta. Apresenta-se como uma personagem plana, denotando-se uma
ausência de densidade psicológica e é ilustrativa de uma cultura marcada por
“brandos costumes”, reflete pois um traço idiossincrático presente na nossa
literatura oral tradicional. A heroína, após ser sujeita a muitos maus tratos, é
enviada para um local afastado do lar e do carinho do pai. Só nesta fase inicial
do conto já encontrámos a presença materna em duas personagens de sinal
oposto, são elas a mãe e a madrasta. A primeira, apenas como personagem
referida, pois apenas é feita uma alusão ao estado pleno de felicidade da
donzela, enquanto ainda se encontrava na companhia da mãe. Relativamente
à segunda, esta surge com o segundo casamento do pai. A personagem, que
aparentemente pratica a malfeitoria para proveito próprio, assume-se como a
vilã e pode acumular diferentes funções actanciais (nomeadamente surge
como destinador112 e oponente113).
111
“[…] o sujeito é aquele que quer, que pretende o objecto.” REIS, Carlos & LOPES, Ana Cristina
Macário. 1987. Dicionário de Narratologia. Coimbra: Almedina. P. 396.
112
“O destinador é também a instância que sanciona a sua actuação (do sujeito).” Ibidem. P. 100.
113
“Oponente, papel actancial ocupado pelos actores que de algum modo entravam a realização do
programa narrativo do sujeito.” Ibidem. P. 23.
114
“A troca corresponde a uma inversão na acção, a uma mudança na direcção que o conto parecia
seguir. Mais do que um sistema que visa lucros imediatos, a troca, deverá ser entendida como algo que
só surtirá efeito num prazo mais alargado e que levará sempre a uma qualquer alteração nas vidas das
78
No que diz respeito às personagens secundárias que ajudam a heroína, como
personagens adjuvantes, há que assinalar a presença materna
metamorfoseada na:
- voz que se faz ouvir em alguns dos contos, apesar de não surgir referência
alguma ao seu possuidor, encaramo-la como sendo uma figura materna na
personagem da mãe ou da fada madrinha, que, de uma forma invisível,
comprova a sua presença constante no que diz respeito ao apoio a dar à
heroína;
Quanto aos objetos mágicos, estes podem ser a bola de ouro, ou mesmo a
tripa do animal-guia, que encaminha a jovem até junto da casa das fadas ou os
objetos que permitem identificar a heroína, como o sapato ou o anel e
finalmente a varinha de condão.
diferentes personagens e na acção que o conto nos propõe.” MEIRELES, Maria Teresa. 2005. A Troca –
Perdas e Permutas nos Contos Tradicionais. Contos e Lendas. Lisboa. Apenas Livros. P. 40.
115
“As fadas e as bruxas […] também não têm nomes, o que facilita as projecções e as identificações.”
BETTELHEIM, Bruno. 1995. A Psicanálise dos Contos de Fadas. Lisboa. Bertrand Editora. 4ª Edição. P.
55. Tradução de Carlos Humberto da Silva.
79
Estas atitudes levam-na a obter o respeito por parte da madrasta, da sua filha,
do príncipe e da própria corte, que a passam a tratar muito bem. A presença
materna, ao longo dos contos, tem como principal objetivo promover o
desenvolvimento pessoal da heroína e fazer dela uma jovem capaz de lutar por
aquilo em que acredita, o verdadeiro amor.
A expressão “A enteada casou muito rica e viveu sempre muito feliz […] ainda
hoje lá estão.” Leva-nos até um conto de narrativa fechada, uma vez que nos
dá a conhecer o desenlace de toda a intriga, o casamento rico e feliz, bem
como faz uma referência espacial ao local onde se encontra ainda hoje a
heroína e o seu “príncipe”, num rico e luxuoso palácio, digno de receber
qualquer heroína que dê provas do seu correto e honesto carácter.
Verificámos também que alguns dos contos deste ciclo analisado apresentam-
se como uma narrativa aberta, como no conto “A Maçã”. Este termina sem que
a madrasta receba a devida punição. Parece-nos que esse facto prova, uma
vez mais, que os contos maravilhosos se centram, segundo Bruno Bettelheim,
no ensino da criança a superar problemas de crescimento e a ultrapassar
dependências, adquirindo um sentido de auto-aceitação e de autoestima. A
Situação Final “Assim ficou a enteada muito rica, e a outra pobre.”117
116
Conto “A Enteada” e “A Estrela de Ouro”. CPL. P. 215 e 228.
117
Conto “A Maçã de Ouro”. CLP. P. 243.
81
Apresenta-nos um conto de narrativa aberta, pois compete a cada leitor/ouvinte
imaginar um possível desfecho, que se adeqúe à sua experiência de vida.
“Há muito, muito tempo…”, “Há muitos anos atrás…”, “Em tempos que já não
voltam…”, ou ainda “Lá muito, muito longe, num país muito bonito…”, “Havia
numa terra…”, “Nuns estados longínquos” remetendo para uma cronologia
mítica, ou mesmo lendária, ou para mundos paralelos, cujos contornos se
perdem nos confins do Universo. Estas fórmulas reforçam a indefinição e
preparam a criança para uma viagem até um mundo imaginário e para a
aceitação de conhecimentos que não são localizáveis em épocas ou espaços
específicos, de forma a difundir a esperança e não a relatar o mundo atual.
Estas ideias estão patentes na seguinte citação:
O tempo e o espaço dos contos estão fora do espaço e do tempo reais, já que o seu
ritmo, por ser vivido no próprio momento, nada tem a ver com a temporalidade objectiva.
Trata-se de um tempo indeterminado, isto é, o autor serve-se, desta «indeterminación
espacio-temporal para situar al narratario ante dimensiones diferentes del mundo real.
Así, la utopía y la ucronía favorecen la introducción de elementos inverosímiles que no
sorprenden a nadie» (Cervera 1997:206). Aliás, a expressão «Era uma vez...», que
frequentemente inicia um conto, ao provocar um distanciamento temporal, é o anúncio
118
MEIRELES, Maria Teresa. 2006. A Palavra e os seus ecos. Contos e Lendas. Lisboa. Editora Apenas
Livros. P. 5.
82
gozoso de um acontecimento feliz, abrindo todas as possibilidades ao conto, mas sem
119
expectativas concretas.
119
MESQUITA, Armindo Teixeira. O conto de fadas folclórico sabe falar à criança. Universidade de Trás-
os-Montes e Alto Douro-Portugal. Disponível em
http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/12147295507835940654091/p0000001.htm.
[Consultado em 24.06.10]
83
em que tudo falava e em que as fadas até aos objetos inanimados permitiam
que falassem (bons tempos eram esses!) …”
[…] a ordem temporal é ainda mais sui generis na narração, uma vez que o tempo
narrativo e tempo vivido pela personagem se misturam indelevelmente e a selecção de
acontecimentos segue a ordem da intensidade dos momentos de crise vivida pelo
protagonista em cena; este tempo dos contos de fadas […] documenta uma duração
cronológica moldada em momentos que se alongam na tristeza e se apressam na
120
alegria.
o fuso, como tinha sido vaticinado, enterrou-se-lhe na mão, e tudo ficou, pois, na posição
em que estava […] formando-se em volta do palácio um bosque muito denso que
121
ninguém lá podia penetrar.
120
ALBUQUERQUE, Fátima. 2000. A Hora do Conto: Reflexões sobre a Arte de Contar Histórias na
Escola. Lisboa. Edições Teorema.
121
Conto “As Treze Fadas”. CPL. P. 250.
84
Noutras situações, o fuso pode também transmite uma noção de
prolongamento, apagando as noções convencionais de temporalidade
“espetará um fuso na mão direita, que a fará adormecer pelo espaço de cem
anos”122.
123
Conto “A Maçã de Ouro.” CPL. P. 243.
124
Conto “Filha e Madrasta”. CPL. P. 242.
125
Conto ”Filha e Enteada”. CPL. P. 239.
126
Conto “Gata Borralheira”. CPL. P. 222.
127
Conto “A Estrela de Ouro”. CPL. P. 223.
85
imaginação, podendo chegar a associar estes espaços às suas próprias
vivências.
86
perante o ouvinte. Outro espaço muito relevante é o rio, pois este surge como
um lugar de purificação da heroína.
Para além dos espaços físicos naturais, temos também os espaços físicos
artificiais, nomeadamente a casa, já acima mencionada como espaço de
proteção maternal. Inicialmente surge a casa da heroína como o espaço da
situação inicial, onde esta encontra um certo conforto. Quando a jovem inicia a
sua viagem de desenvolvimento pessoal vai passar por diferentes espaços com
a mesma função, podem ser eles a casa ou cabanas das fadas, ou benfeitoras,
um símbolo do feminino. São atribuídas características do proprietário à sua
casa, como a casa das fadas, que se apresenta hospitaleira, tal como as suas
proprietárias. Mais tarde a heroína chega a uma nova casa, o palácio ou a
128
Disponível em: http://padreemilsonbento.blogspot.com/2009/09/na-sua-linguagem-simbolica-o-
pode.html. [Consultado em 29.10.2010.]
129
Conto “O Príncipe Encantado do Palácio de Ferro do Reino da Escuridão”. CLP. P. 265.
130
Ibidem.
131
Disponível em: http://www.infopedia.pt/$caverna-(simbologia). [Consultado em 29-10-2010]
87
corte do rei. Nos contos é dado um certo destaque à casa das Fadas, pois é
para lá que a heroína é encaminhada pela figura materna, na forma animal,
para se poder refugiar das maldades da madrasta e ser munida dos meios
necessários para poder continuar o seu percurso e, assim, conseguir superar
as diferentes provas. Parece-nos que houve um sentimento imediato de
pertença, da sua parte, em relação àquele espaço, tendo esta reconhecido
naquele lugar o refúgio ansiado, transmitindo-lhe um sentimento de proteção à
semelhança do já anteriormente sentido quando esta se encontrava ainda no
útero ou no colo de sua mãe. E é dentro da casa, supervisionada por uma
personagem adjuvante, a cadelinha, que a heroína atinge a sua maturidade
espiritual.
89
nascida na cidade de Lisboa e filha de um negociante “muito rico, riquíssimo,
tendo grandes transações com o Rio de Janeiro, onde ele ia muitas vezes”132.
Além dos espaços físicos, há também o espaço social ao qual não poderemos
deixar de fazer referência, uma vez que nos é refletido nas diferentes
personagens.
90
de um nome comum à heroína, como Gata Borralheira, Borralhenta, Enteada
ou Enjeitada na maioria dos contos. Estas denominações ligam as ações
necessárias ao desenvolvimento do conto.
Na maioria dos contos em estudo, apenas são dados a conhecer, logo na parte
introdutória escassos traços do carácter da heroína, como a humildade135, a
ingenuidade136, a generosidade ou a beleza137. De acordo ainda com este
teórico e a sua obra já referida, por vezes recorre-se ao “processo da
máscara”, que neste caso concreto consiste em dissimular o verdadeiro
carácter da heroína através da sua suja aparência, do seu vestuário velho e
gasto, da sua habitação degradada, ou mesmo, do nome porque é conhecida.
Ela chega mesmo a recorrer à troca de identidades, nomeadamente no conto
“Pele de Burro”, em que esta se coloca numa situação com perigos vários que
ela terá de ser capaz de enfrentar, de modo a conseguir reconquistar a sua
verdadeira identidade. Essa troca corresponde a um engano, a um esconder do
corpo e da sua beleza sob outro aspeto, outro parecer. A menina consegue
diferenciar-se das outras personagens pelo facto de conseguir fixar a atenção
do leitor/ouvinte e, consequentemente, estabelecer uma relação emocional de
compaixão, simpatia, alegria ou mesmo mágoa.
A heroína deste corpus de contos é quase sempre retratada como uma pessoa
oriunda de uma classe social desfavorecida, o povo. Ela é filha de camponeses
e lenhadores que vivem em choupanas miseráveis e passam fome, encarando
a miséria sem revolta, considerando-a como o atributo natural de uma classe
social específica. Por oposição, a madrasta e a sua filha, na maioria dos
contos, ilustram uma classe social que vive de forma remediada, a classe
média. Esta origem distinta vai interferir no carácter e na postura das
personagens, na medida em que, como elemento do povo, a heroína, assimilou
135
“Maria, que nunca mentia, ainda mesmo contra ela era uma menina muito verdadeira (…).” Conto “O
Príncipe Encantado no Palácio de Ferro no Reino da Escuridão”. CLP. P. 259
136
“A pequena cresceu e fez-se mulher, sempre muito meiga e muito ingénua (…)”. Conto “O Príncipe
Encantado no Palácio de Ferro no Reino da Escuridão”. CLP. P. 253.
137
“[…] a princesinha aproveitou tanto que aos quinze anos estava portento de saber, de bondade e de
beleza.” Conto “A Princesa Mimada”. CLP. P. 268.
91
de forma humilde as suas origens, não se atrevendo a ter ambições demasiado
elevadas. Este aspeto mostra-nos que ela irá merecer ascender à classe social
mais elevada, a classe alta, constituída por reis, príncipes ou nobres, que
vivem em palácios encantados e se alimentam de deliciosos e
superabundantes manjares. Ao contrário da sua madrasta ou meia(s)-irmã(s)
que, por conhecerem e terem acesso a certos privilégios, ambicionam, a
qualquer preço, aumentá-los.
Tal como nos contos de Perrault, alguns dos contos deste ciclo apresentam,
aparentemente, a heroína enjoativamente doce e insipidamente bondosa,
faltando-lhe totalmente iniciativa, uma vez que a jovem se apresenta submissa
quer para com o seu pai, não lhe apresentando qualquer queixa, aceitando
sem queixumes as imposições da madrasta, quer ainda para com as suas
meias - irmãs. Esta imagem apresenta-nos assim uma criança pré-púbere que
ainda não recalcou o seu desejo de sujidade. A jovem não dá indícios
aparentes da sua demanda na procura do príncipe, encontra-o como por acaso
no campo, na missa ou no baile e leva-o a apaixonar-se por ela. A sua
aparência irá estar bem demarcada, pois pretende mostrar que por detrás de
uma aparência suja e rota, nomeadamente no conto “Pele de Burro”, se
esconde uma jovem que irá desabrochar quando adornada de ricos adereços.
138
Conto “A Enteada”. CPL. P. 210.
92
quando se operar o encontro. Apesar de todas as tentativas contrárias da
madrasta, acabam por ser as suas malfeitorias que possibilitam que a heroína
recorra a ambas as conjunções para fomentar no príncipe o querer contrair
matrimónio.
À semelhança de Grimm, também nos contos deste ciclo nos deparamos com
uma heroína maltratada, mas com alguma maturidade, visto que aceita a
autoridade dos mais velhos. Ela realiza inúmeras tarefas, impostas pela
madrasta, ligadas à produção agrícola e à criação de gado, aparentemente
impossíveis, que vão aumentando o grau de exigência à medida que esta as
vai concretizando, mas para as quais obtém o auxílio de animais ou de fadas.
Nestes contos deparamo-nos com uma jovem mais preparada para enfrentar
os obstáculos da vida.
Madrasta/Enteadas
139
“Uma tarde vinham os meninos do colégio (…).” Conto “A Menina que Deita Pedras Preciosas dos
Cabelos”. CPL. P. 279.
93
Apesar da figura da madrasta ser tratada em maior detalhe adiante, aqui
registamos algumas palavras sobre esta figura. A vilã, personagem que pratica
a malfeitoria para proveito próprio, surge representada na figura da madrasta e
na figura desta em conjunto com as meias-irmãs. A primeira acumula diferentes
funções actanciais, nomeadamente surge como aparente destinador140 e
oponente, para mais tarde se depreender que afinal ela funciona como a
adjuvante141 da jovem heroína. Parece um pouco contraditório o facto de ser
uma personagem que se opõe à felicidade do sujeito, mas por outro lado é a
sua malfeitoria que desencadeia todo o processo de amadurecimento da jovem
donzela e a prepara para alcançar o seu objetivo de vida, encontrar a felicidade
junto do seu príncipe.
140
“O destinador é também a instância que sanciona a sua actuação (do sujeito).” REIS, Carlos &
LOPES, Ana Cristina Macário. 1987. Dicionário de narratologia. Coimbra: Almedina. P. 100.
141
“[…] adjuvante é o papel actancial ocupado por todos os actores (v. actor) que ajudam o sujeito (v.) a
realizar o seu programa narrativo.” Ibidem. P. 19.
94
incertezas e transmite uma imagem de madrasta malvada, bastante presente
nestes textos de Literatura Tradicional Oral.
Madrasta,
O nome lhe basta.
- será que a madrasta é mesmo uma “megera”, uma “bruxa”, uma “bêbada”144
cujas ações pretendem promover unicamente o sofrimento da enteada?
142
Conto “A Vaquinha”. CPL. P. 218.
143
Conto "A Estrela de Ouro”. CPL. P. 225.
144
“[…] com medo das três megeras, que eram uma fúria contra ele […] A bêbada, logo que lhe pegou, e
depois de admirar, com toda a fúria de que dispunha…”. Conto “ O Príncipe Encantado no Palácio de
Ferro, no Reino da Escuridão” CPL. P. 259-260.
95
- ou será que, tal como diz o adágio, a madrasta tem sempre uma conotação
negativa que ofusca os seus propósitos?
Pai
Havia um lavrador muito rico, que vivia numa quinta e enviuvou, ficando com uma filha.
Pensou que havia de casar e casou. A filha, que era muito linda, à medida que ia
crescendo, ia-se fazendo mais linda, e a madrasta tornou-se muito ruim para ela, por
146
causa do ciúme, da enteada ser mais linda que ela.
146
Conto “A Enteada”. CPL. P. 209.
147
Ibidem.
96
amadurecimento, poderemos subentender uma mensagem de aviso à criança,
relativamente à questão monetária. Assim a criança poderá interpretar que, por
vezes, o dinheiro não será um bom conselheiro do homem e que, o ser-se um
bom pai (entenda-se educador), não está diretamente relacionado com o seu
poder económico. Acresce ainda a ideia de que muitas pessoas se deixam
impressionar pela riqueza, deixando de lado os valores mais importantes como
o amor ou a amizade. Se nos fixarmos na ideia de Bruno Bettelheim de que “o
herói é recompensado e o mau recebe o merecido castigo, satisfazendo assim
a profunda necessidade que a criança tem de justiça”148, constatamos que o
castigo deste pai foi o alheamento da filha no momento da separação, pois
quando os dois “Chegaram à corte, ela despediu-se do pai, o príncipe deu-lhe o
braço e levou-a para o palaiço, e o pai voltou para casa.”149 Ela não dá indícios
de sofrimento perante esta separação, possivelmente porque encontrou, na
figura do príncipe, o amor e proteção que o pai não lhe soube dar.
- Olha, dize à tua mestra que eu caso com ela em rompendo aquelas botas que ali estão
151
penduradas. […]
148
BETTELHEIM, Bruno. 1995. A Psicanálise dos Contos de Fadas. Lisboa. Bertrand Editora. 4ª Edição.
Tradução de Carlos Humberto da Silva. P. 184.
149
Conto “A Enteada”. CPL. P. 212.
150
“A promessa, pacto estabelecido entre duas ou mais partes, obriga as partes implicadas a agir: a
primeira geralmente no momento da promessa aceite e a segunda num espaço de tempo mais alargado.”
In MEIRELES, Maria Teresa. 2006. A Palavra e os seus ecos. Contos e Lendas. Lisboa. Editora Apenas
Livros. P. 20
151
Conto “A vaquinha”. CPL. P. 218.
97
as danificar tivesse de trabalhar sem elas. Recordando uma das epopeias
homéricas, a Odisseia, constatamos que o método a que o pai recorreu, para
tentar evitar o casamento, foi um pouco semelhante ao de Penélope.152 Devido
ao seu carácter, este assume-se como um homem de palavra que cumpre o
que prometera, nomeadamente casar com a mestra quando a filha lhe
apresenta as botas todas furadas. Nestes contos é notório, quer a inocência da
jovem que se deixa corromper e engana o próprio pai, quer a inocência do pai
que assume o seu compromisso e não questiona como tal facto terá decorrido:
153
-Agora num tenho remédio senão casar com a tua mestra.
Príncipe
Apesar do seu estrato social e consequente poder, o príncipe acaba por ser
manipulado pela jovem donzela, pois esta consegue, através dos seus dotes,
levá-lo a enamorar-se e a lutar por ela.154 O encantamento de que é alvo
revela-se de tal maneira forte, que o príncipe sente que deve envolver-se nesta
conquista, nem que para isso tenha de ser ele próprio a atribuir o devido
castigo àqueles que de forma direta, como a madrasta e as meias-irmãs, ou de
152
HOMERO. Odisseia. Tradução de Frederico Lourenço. Lisboa. Livros Cotovia. 2003. Nesta obra, a
personagem de Penélope, não querendo contrair novo matrimónio, uma vez que o seu coração pertencia
ainda a Ulisses, usou como estratégia dizer aos seus pretendentes que casaria com um deles no dia que
terminasse de fiar um manto. No entanto, consciente de que carecia de mais tempo do que o que
precisaria para terminar a peça, ia fiando de dia para todos serem testemunhas do seu trabalho, mas de
noite desfazia parte do mesmo, de forma a não chegar ao seu término.
153
Conto “A Vaquinha”. CLP. P. 218.
154
“-Farei rainha esta menina […].” Conto “A Estrela de Ouro”. CPL. P. 235.
98
forma indireta, como o próprio pai, menosprezaram o valor e a beleza da jovem
donzela.155
155
“E ela abriu a boca para dizer que foi a mãe; lançou logo uns bonicos que foram bater no peito do
príncipe. E todos fugiram para trás.
E o príncipe disse:
- Quem me engana uma vez já não me engana outra. Para casa já não volta! […]
-Deixem estar, que eu vou mostrar quem sou! Veremos quem vence!” Conto “A Estrela de Ouro”. CPL. P.
226.
156
“Em seguida mandou-a prender e às três aias intrigantes, e mandou-as queimar vivas, em paga dos
seus serviços.” Conto “O Príncipe Encantado do Palácio de Ferro do Reino da Escuridão”. CPL. P. 266.
157
“ -Isso não; porque, se o pai nã quesesse que ela saísse de casa, tinha de obedecer e não saía, porque
é pena uma menina destas andar na vida em que anda, não ter outra educação.” Conto “A Enteada”.
CPL. P. 211.
158
“eu vou-me esta noite ficar a casa de seu pai, e verá como amanhã a esta hora há-de estar em
palaiço.” Ibidem.
159
Conto “Gata Borralheira”. CPL. P. 203 e 221.
160
MEIRELES, Maria Teresa. 2006. A Palavra e os seus ecos. Contos e Lendas. Lisboa. Editora Apenas
Livros. P. 18.
99
Gostaríamos ainda de chamar a atenção dos leitores/ouvintes para a
importância destes fazerem uma correta interpretação das personagens. Mais
do que tentar interpretar o sujeito, dever-se-á interpretá-lo tendo em atenção a
situação psicológica que o fez agir. No caso deste conto em questão, o
leitor/ouvinte não deve identificar-se de imediato com a heroína, pois corre o
risco de perder uma certa objetividade científica. Pode reconhecer-se nela,
viver as suas aventuras imaginárias, mas não deverá deixar de questionar-se
se sobre quem é verdadeiramente esta personagem e o que ela representa.
Deverá ainda estar consciente de que nem a heroína, nem a vilã são
verdadeiros seres humanos, pois a vida interior e subjetiva quer da jovem, quer
da sua mãe/madrasta não são mencionadas. Não conhecemos os sentimentos
e as angústias da figura materna perante a difícil tarefa de educar uma jovem,
preparando-a para as adversidades a vida. Von Franz afirma que estas são
imagens de processos arquétipos aos quais falta o contexto humano, a vida
real, individual e concreta.161
No interior das frases, ali mesmo onde a significação parece ter um apoio mudo em
sílabas insignificantes, há sempre uma nomeação adormecida, uma forma que guarda
fechado entre suas paredes sonoras o reflexo de uma representação invisível e todavia
inapagável.
161
VON FRANZ, Marie Louise. 1993. La Femme dans les Contes de Fées. Paris. Colllection «Espaces
Libres».. Éditions Albin Michel. P. 36. Traduit par de Francine Saint René Taillandier
100
Michel Foucault
é concebida como uma síntese equilibrante através da qual a alma individual se une à
psique da espécie e apresenta soluções tranquilizadoras para os problemas que a
162
inteligência da espécie coloca.
Transpondo esta ideia para a temática do nosso trabalho, podemos dizer que
cada leitor/ouvinte do conto popular poderá utilizar e interpretar o enunciado de
maneira diferente. A sua interpretação depende de vários fatores, entre eles do
momento de enunciação, do seu contexto ou da sua experiência de vida. A
essa interpretação dada podemos associar o termo “simbolismo”.
162
DURAND, Gilbert. 1964. A Imaginação Simbólica. Lisboa. Perspectivas do Homem. Edições 70. P.100.
163
“Um texto torna-se simbólico a partir do momento em que, por um trabalho de interpretação, nele
descobrimos um sentido indirecto.” TODOROV, Tzvetan. 1978. Simbolismo e Interpretação. Edições 70.
Colecção Signos. P.19. Tradução de Maria de Santa Cruz.
101
Levi-Strauss164 acrescenta ainda que podemos encontrar duas formas de
sentido indireto: aquele que o autor pretende obter e aquele que obtém
inconscientemente.
164
Apud. Ibidem.
165
Ibidem. P. 98.
166
Apud. Ibidem.
167
Ibidem.
168
Ibidem.
169
Ibidem.
102
segundo este teórico um único sentido está na base de qualquer forma
linguística e é dele que se devem deduzir todas as suas diferentes
significações. Este sentido único e cientificamente garantido coincide com a
intenção do autor e será um sentido privilegiado, uma vez que merece especial
atenção da parte do recetor. O sentido que chega até este está directamente
dependente de pontos, sejam eles o conhecimento que o recetor detém sobre
o assunto, o contexto em que se encontra inserido, a forma como o significante
chega até ele, entre muitos outros. Ao longo dos tempos as formas de pesquisa
filológica foram evoluindo e passando por teóricos como Wolf, Ast, Boeckh ou
Lanson170. Consideramos que o conto popular pode ser compreendido a partir
de condições objetivas ou subjetivas daquilo que é comunicado. No primeiro
caso poderemos fazer uma interpretação gramatical de cada conto, quando
atendemos ao sentido das próprias palavras, ou ainda uma interpretação
histórica, ao relacionarmos o sentido das palavras com as circunstâncias reais.
Quanto à interpretação gramatical, passa pelo ouvinte ou leitor se limitar a
retirar do conto a sua vertente lúdica, ou seja, diverte-se com as ações das
personagens. Quando se preocupa em contextualizar a história, não só a nível
de época, mas também das condições de vida das personagens já estamos
perante a interpretação histórica.
No segundo caso pode ser feita uma interpretação individual pelo próprio
sujeito ou ainda uma interpretação genérica quando o sujeito se relaciona com
as circunstâncias subjetivas que residem na finalidade e na direcção. Tal como
já atrás foi mencionado, se a experiência de vida do ouvinte ou leitor o associar
a um dos papéis desempenhados no conto, vai levá-lo a procurar a sua
interpretação pessoal apenas desse papel. Por oposição, quando o sujeito se
relaciona com as circunstâncias que envolvem o conto, a interpretação feita
compreende os diferentes papéis no conto e as possíveis mensagens
veiculadas. A seguinte citação do teórico Boeckh, acima referido, apresenta a
sua opinião sobre este assunto:
170
Ibidem.
103
A significação daquilo que é comunicado será, primeiramente, determinada pelo sentido
das palavras em si mesmas, e portanto não pode ser compreendida senão quando se
compreende a totalidade das expressões comuns. Mas quem quer que fale ou escreva
emprega a língua de maneira particular e especial, modifica-a segundo a sua
individualidade. Por isso para compreendermos alguém devemos ter em conta a sua
subjectividade. Chamamos à explicação linguística do ponto de vista objectivo e geral,
gramatical, e à do ponto de vista da subjectividade, individual. Entretanto, o sentido da
comunicação ainda é condicionado pelas circunstâncias reais, ao longo das quais ela se
reproduziu e que se supõe serem conhecidas por aquele a quem ela se destina. […]
Chamamos a essa explicação pelo envolvimento real, interpretação histórica. Mas o
aspecto individual da comunicação também é modificado pelas circunstâncias
subjectivas, sob a influência das quais ela se produz. […] como uma interpretação
171
genérica; […].
Nos contos tradicionais, toda a palavra ecoa outras palavras, outros imaginários e outras
formas de pensar e de viver os contos. Para nós, que ouvimos esses ecos e os
repetimos também, é necessário buscar a palavra oculta, aquela que se esconde por
173
detrás de um eco aparentemente inofensivo ou de uma enigmática mudez […]
171
Apud. Ibidem. P.139.
172
Como no léxico existem palavras com sentido particularmente limitado, serão elas as escolhidas, de
preferência a outras, como matéria a interpretar. Ibidem. P.93.
173
MEIRELES, Maria Teresa. 2006. A Palavra e os seus ecos. Contos e Lendas. Lisboa. Editora Apenas
Livros. P. 33.
174
DURAND, Gilbert. 1964. A Imaginação Simbólica. Lisboa. Perspectivas do Homem. Edições 70.
104
signo concreto que evoca, através de uma elação natural, algo de ausente ou
impossível de perceber”175, ou seja, uma representação que faz aparecer um
sentido secreto. Relativamente ao termo significado, este estende-se por todo o
universo concreto: mineral, vegetal, animal… é por isso que o “sagrado”, ou a
“divindade”, pode ser significado por não importa o quê: uma pedra erguida,
uma árvore gigante, uma águia, uma serpente, um planeta ou pelo apelo à
infância que permanece em nós. No universo da imaginação simbólica,
entendemos o símbolo como um portador de numerosos sentidos. Sendo que o
conjunto de todos os símbolos sobre um tema ajuda a esclarecer o sentido de
cada um deles, acrescentando-lhes um “poder” simbólico suplementar. Isto
vem esclarecer o porquê de podermos estudar vários elementos simbólicos
dentro do mesmo conto. O sentido próprio (que conduz ao conceito e ao signo
adequado) é apenas um caso particular do sentido figurado, isto é, é apenas
um símbolo restrito. Por outras palavras, podemos dizer que, no universo do
conto, nunca nos poderemos cingir apenas ao significado imediato do termo,
devendo deslindar todos os possíveis sentidos ocultos. Só assim
conseguiremos fazer a correta interpretação do conto.
105
como nomes próprios certos nomes comuns, tais como “Enteada”, “Enjeitada”,
“Borralheira” ou mesmo “Borralhenta”.
No que aos números diz respeito, uma das características mais frequentes nos
contos é a repetição de alguns números, sobretudo, e essencialmente, o
número três e a repetição tríade das ações (temos como exemplos: a ida da
donzela para o monte, a ida à missa, ao baile, o pedido de socorro da jovem, a
descoberta da responsável pela arrumação da casa, os dias de duração do
enterro, o número de ramos de rosas pedido pela jovem a seu pai e talvez o
mais importante a destacar seja o facto de quer a Enteada, quer a Filha da
madrasta serem fadadas por três vezes). À imagem das Moiras, Parcas ou
Normes, as fadas aparecem em conjuntos de três, sete ou treze elementos e
associadas ao fio e à arte de tecer e fiar. Pertencem à longa linhagem das
Senhoras dos Fios, entidades sobrenaturais que utilizam o fio como arma de
transformação do mundo. Esta característica pretenderá reforçar, amplificar ou
especificar um dos elementos do conto.
Uma vez que a jovem deste conto pediu ao pai um ramo de três cores
deduzimos que o ramo de rosas brancas ilustra a sua inocência, reverência,
humildade, silêncio e virgindade. Caso o seu pai correspondesse ao seu pedido
estaria a dizer-lhe que a consideraria digna do seu amor. Por seu lado as rosas
encarnadas glorificavam a coragem, o amor, o respeito e a adoração existente
entre ambos. Quanto às rosas azuis, estas aludem ao verdadeiro amor eterno,
raro e forte, que nada enfraquece nem descolora, pois apesar da sua mãe de
leite fazer comentários depreciativos quanto ao comportamento do seu pai ela
não acredita, nem aceita esse tipo de observação, relativamente ao amor que
os une.
Quanto aos objetos, temos como exemplo o caso da roca e do fuso. Na maioria
dos contos deste ciclo, a madrasta exige à enteada que fie, uma vez que
tradicionalmente a castidade feminina era representada pela imagem de uma
jovem sentada a fiar com a roca e o fuso. Depreende-se que esta queria
preservar à Enteada a imagem de uma jovem donzela pura e imaculada, tal
como seria desejável para qualquer donzela que pretendesse arranjar um bom
casamento. Por outro lado, como que a madrasta prepara todas as condições
para que a enteada consiga obter o seu próprio sustento, sem necessitar
aparentemente de estar dependente de alguém, nomeadamente de um marido.
107
Vaquinha”, este objeto é utilizado pela vilã como forma de suborno da
aprendiza, a heroína. A mestra ao perceber que não se apresenta como sendo
facilmente atingível o casamento com o pai da menina oferece-lhe uma bolinha
de ouro, caso esta a ajude a concretizar o casamento. Depreendemos já o
carácter calculista da mestra, a vilã do conto, que suborna a aprendiza. Por
outro lado, a bola de oiro pode ainda apresentar-se como o objeto mágico que
é posto à disposição da heroína, por parte da presença materna na figura
animal, em prol da sua procura de felicidade. A bolinha cai à água e assume a
função de guia da jovem donzela, pois é ela que vai deslocando a heroína até
ao local onde se encontra o objetivo da sua demanda, a casa das fadas,
nomeadamente nos contos “A Enjeitada”, “A Vaquinha” ou “O sapateiro Viúvo”.
Este objeto faz alusão à forma geométrica do círculo e ao ponto. Ambos podem
ser considerados como sinais supremos de perfeição, união e plenitude.
Enquanto o ponto simboliza o centro e a divindade, o círculo remete-nos para
uma ideia de movimento, expansão e avanço no tempo. Todos estes
elementos estão presentes no percurso de vida da heroína. O ponto e o círculo
simbolizam o início do Universo, a perfeição espiritual, a união dos elementos,
a energia e a plenitude do ser completo. O ponto corresponderá à felicidade
inicial suprema atingida por esta, ainda no útero ou no colo de sua mãe. A
necessidade da criança evoluir psicologicamente leva-a a defrontar-se com
problemas e obstáculos, enveredando por uma viagem circum-adjacente. Essa
viagem pelo mundo tem como objetivo alcançar a felicidade plena, só
terminando quando a heroína estiver preparada para a reencontrar, ou seja,
quando ela conseguir transferir o seu amor edipiano para a figura do jovem
príncipe.
108
Se procurarmos uma cor para a
associarmos a este sentimento de
felicidade plena, sem dúvida que a
nossa mente visualizará de imediato a
cor e o brilho do ouro, ou seja, a cor
amarela. Esta cor é a mais clara e a
que mais se assemelha ao Sol.
Ela traz consigo a esperança e o sentimento de que tudo correrá bem e de que
se pode alcançar a felicidade. Ela cria uma atmosfera de resplendor, brilho,
jovialidade e alegria. É uma cor brilhante, alegre, que simboliza o ouro e luxo.
No que diz respeito ao luxo, a menina só o atinge depois de ultrapassar as
inúmeras peripécias e de chegar ao palácio do seu príncipe.
-Béu, béu! Atrás da porta está quem tão bem nos fazeu.
Depois foram dar com ela atrás da porta, e em paga deram-le uma varinha de condão e
dixeram-le:
176
“A vara é simplesmente outra versão do cajado mágico do poder. […] é um arquétipo, datando
provavelmente da primeira vez que os povos pré-históricos usaram ferramentas. […] A vara é a
ferramenta da transformação. Assim, a vara invoca o poder atribuído primeiramente ao espírito-Mãe, a
Deusa que constantemente transformou tudo no Universo em qualquer outra coisa: foi ela que foi
chamada Coração das Transformações, “de onde tudo surgiu”. WALKER, Barbara. 1998. Dicionário dos
Símbolos e Objectos Sagrados da Mulher. Lisboa. Planeta Editora. P.42-43.
109
- Vá ao penedo de Alcântara e diga: “Varinha de condão, dai-me tudo o que eu precisar”;
logo o penedo se abrirá e aparecerá tudo; e ao spois, para o tornar a fichar, diga:
177
“Varinha de condão, fichai-me este penedo.
Já o conto “A Maçã de Ouro” remete-nos para um fruto com uma grande carga
simbólica, a maçã. Parece-nos interessante debruçar a nossa análise sobre a
escolha deste fruto, até porque ele possui um significado curioso com relação à
figura feminina.
De um lado representa o mal e o pecado, através da ingestão do fruto proibido por Eva,
que fez com que as mulheres fossem usualmente vistas como mentirosas, tentadas ao
adultério e inclinadas à luxúria e ao demónio, levando ao desprezo e desconfiança por
parte do sexo masculino. Por outro lado a religião católica apresenta Maria, a virgem
escolhida pelo Criador para gerar um homem perfeito, Jesus, o filho de Deus, que se
sacrificou para redimir os pecados da humanidade como a salvadora dessas
178
mulheres.
Segundo Paul Diel179 a maçã, pela sua forma esférica, indicaria os desejos
terrestres ou a complacência em relação a esses desejos. Desde a maçã de
Adão e Eva até ao pomo da Discórdia, passando pelo pomo de ouro do jardim
das Hespérides, encontramos, em todas as circunstâncias, a maçã como um
meio de conhecimento. Ela está carregada de duplicidade pois, ora é o fruto da
Árvore da Vida, que está no meio do Paraíso, ora é o fruto da Árvore da
Ciência, do Bem e do Mal que, paradoxalmente, também lá se pode encontrar.
Pode assumir-se como conhecimento unificador que confere a imortalidade ou
177
Conto “A Vaquinha”. CPL. P. 220
178
ZIERER, Adriana. ”Significados medievais da maçã: fruto proibido, fonte do conhecimento, ilha
Paradisíaca.” Revista Mirabilia”. Disponível em:
http://www.revistamirabilia.com/Numeros/Num1/maca.htm. [Consultado em 5.12.09]
179
DIEL, Paul. O Simbolismo na Mitologia Grega. Attar Editorial. São Paulo. 1991. P. 199. Disponível em:
http://portodoceu.terra.com.br/artesimbolismo/simbolismo-bdneve-d.asp. [Consultado em 4.02.10]
110
conhecimento desagregador que induz à prática do Mal. Se examinamos o seu
simbolismo, do ponto de vista da sua estrutura física, podemos constatar
novamente essa duplicidade característica dos meios de conhecimento. Assim,
ela assume-se como símbolo do conhecimento, pois um corte feito
perpendicularmente ao eixo do pedúnculo revela-nos que, no seu íntimo, está
um pentagrama. Por outro lado, o pentagrama é também um símbolo do
homem-espírito e, nesse ponto de vista, ela surge como forma contrária à
evolução do espírito dentro do corpo.
180
Este mito enobrece a força do destino, uma vez que havia sido revelado a Atalanta que o casamento
seria a sua ruína e esta, estrategicamente, afasta-se da companhia dos homens e quando estes se
tornavam demasiados insistentes impunha-lhes uma regra, vencê-la numa corrida. Ela vai assim
conseguindo contornar o seu destino, até que o juiz destas disputas, o jovem Hipomenes, enfeitiçado pela
sua beleza não se conteve e se apresentou como possível candidato. Este dirigiu uma prece à deusa do
amor, que lhe ofereceu do seu jardim três frutos, que o ajudariam a vencer Atalanta e assim conseguir a
sua atenção. Foram estes frutos, três maças de ouro, que foram distraindo a jovem Atalanta e fizeram
com que esta acabasse por deixar que o sentimento vencesse a razão. Como castigo, perderam a sua
forma humana para passarem a forma animal, ficando ela transformada em leoa e ele em leão, ambos
atrelados ao carro da deusa Réia ou Cibelle. Ainda hoje podemos encontrar as suas figuras na escultura
e na pintura.
181
Relativamente aos pomos de ouro das Hespérides. Esta lenda fala-nos de maçãs douradas da
imortalidade que crescem no pomar de Hera. Pelas suas características peculiares são muito cobiçadas
e, como tal, necessitavam de ser guardadas pelas belíssimas Hespérides e um feio dragão de cem
cabeças, ou então uma serpente. Héracles foi incumbido de trazer a Euristeu algumas dessas
maravilhosas maçãs de ouro e o herói precisou, antes de mais nada, descobrir a localização do jardim de
Hera. Essa busca obrigou-o a ir a inúmeros locais e viver diferentes aventuras em cada um desses
lugares. Quanto ao desfecho aparecem-nos duas versões distintas. Uma versão da lenda conta que
Héracles encontrou o Jardim no extremo Ocidente e fez o dragão adormecer (ou matou a serpente) e as
Hespérides deram-lhe as maçãs de ouro. Outra versão, igualmente muito contada, relata que Héracles
conseguiu as maçãs com a ajuda de Atlas, conforme os conselhos que recebera de Prometeu. E
enquanto Atlas estava no Jardim colhendo maçãs, Héracles teria ficado em seu lugar, sustentando o
111
Como muitas lendas gregas, a história da Guerra de Troia apresenta alguns aspetos
comuns com alguns dos contos em estudo, nomeadamente o episódio do banquete de
casamento entre Peleu e Tétis ou o julgamento de Páris. O referido banquete foi
organizado por Zeus, cuja deusa da discórdia Éris ressente-se por estar fora da lista
de convidados. Nesse banquete Éris coloca uma maçã dourada na cerimónia, com
uma inscrição onde se lê "Para a mais justa". Três deusas desejam a famigerada
maçã: Hera, Atena e Afrodite. Zeus lembra-se de Páris, como o mais belo dos homens
mortais, e sabia que ele apreciaria uma competição de touros. Ares é enviado, sob
forma de touro, para participar, sendo este um deus, era perfeito em todos os aspetos
e ganhou a competição. Zeus agora sabia que Páris faria bom julgamento e envia-lhe
a maçã, indicando que as deusas deveriam aceitar a sua decisão sem discussão.
Cada uma delas tenta aliciar Páris para obter a maçã: Hera promete-lhe que este seria
um rei famoso e poderoso; Atena tenta-o com a sabedoria máxima, ou seja, tornar-se
o mais sábio; por seu lado Afrodite oferece-lhe a mulher mais linda para esposa. Esta
última é a escolhida por Páris e a mulher oferecida foi Helena de Troia, o que
eventualmente desencadeou a Guerra de Troia. A maçã de Éris é posteriormente
denominada de “Pomo da Discórdia.
céu... Héracles finalmente regressou a Micenas, mostrou as maçãs de ouro a Euristeu e entregou-as a
Atena, pois eram propriedade de Hera. Atena encarregou-se de recolocá-las no Jardim das Hespérides.
112
De modo semelhante ao que se verifica em alguns dos mitos antigos, as fadas
entregam à Enteada182, como recompensa por todo o seu sofrimento, a riqueza
sob a forma de maçãs de ouro, lágrimas de brilhantes e fios de cabelo de ouro.
182
Conto “A Enteada”. CLP. P. 209.
113
Ao sapato pode ainda associar-se a ideia de viagem, visto que a heroína se
lança numa viagem que vai do mundo rural, camponês, ao mundo palaciano.
Com essa viagem, a donzela exprime um desejo profundo de mudança interior,
uma necessidade de experiências novas. A sua insatisfação leva-a à procura
de novos horizontes onde encontre a verdade, a paz e a calma espiritual.
O mundo rural está associado a muito trabalho, onde até das crianças é
esperado que trabalhem para poderem sobreviver, nomeadamente apanhando
lenha, guardando animais ou indo buscar água. O facto de à jovem ser exigido
que execute tarefas impossíveis da noite para o dia, só passíveis de serem
concretizadas com a ajuda de uma intervenção sobrenatural, exprime de um
modo amplificado a realidade da vida dos camponeses. A viajante chega ao
seu destino quando a heroína alcança a sua felicidade junto do seu príncipe.
114
sua angústia de castração. A Gata Borralheira apresenta-se como a noiva certa
porque o liberta dessa angústia, uma vez que o seu pé entra facilmente, sem
sangrar, e as suas fugas do baile provam ao príncipe que esta não é agressiva
na sua sexualidade, sabendo esperar pacientemente até ser por ele escolhida,
sem relutâncias. Quando ela põe o pé no chinelo, mostra a sua maturidade e a
sua vontade de ter um papel ativo na relação sexual com o príncipe. Ele
escolhe-a porque, em forma simbólica, ela alivia-o da sua angústia de
castração, a qual interferiria com uma relação conjugal feliz. Ela corresponde-
lhe porque ele a aceita tal como ela, apreciando mesmo os aspetos sexuais
“sujos”. Este demonstra-lhe o seu amor e o desejo da sua feminilidade
oferecendo-lhe o chinelo ou o sapato. Este objeto pode representar,
simbolicamente, a vagina dela e, por sua vez, o delicado pé irá corresponder
ao pénis dele, que se ajusta ao chinelo-vagina. A Gata Borralheira dá início à
sua vida sexual, uma vez que
Um receptáculo minúsculo no qual determinada parte do corpo se pode introduzir e que se ajusta
apertadamente pode ser visto como símbolo da vagina. Qualquer coisa de quebradiço e que não
deve ser esticada, porque se partiria, lembra-nos o hímen; e alguma coisa que facilmente se perde
no fim de um baile, quando o nosso herói tenta não deixar fugir a sua amada, parece imagem
183
apropriada da virgindade.
183
Ibidem. P. 334.
115
entanto vem realçar que a Gata Borralheira será uma noiva virginal, uma vez
que é associada mais facilmente a virgindade a uma rapariga que ainda não
menstruara. Isto poderá levar a criança a pensar que ela é virgem, ao contrário
das suas irmãs.
A água185 pode ser encarada como ponto de partida para o emergir da vida, daí
a sua simbologia estar ligada à matrix-mãe, o útero. É um símbolo do Gênese,
do nascimento, e para os vedas é chamada de mâtrimâh, o que quer dizer: "a
mais materna”. Nos mitos dos heróis ela está sempre associada ao seu
nascimento ou renascimento: Mitra nasceu às margens de um rio, enquanto
que Cristo "renasceu" no Rio Jordão. É um dos símbolos do inconsciente,
sendo que o ato de entrar na água e dela sair, possui uma analogia com o acto
de mergulhar no inconsciente. No caso concreto dos contos em análise, a
jovem donzela é enviada pela presença materna na figura animal para o rio ou
ribeiro. É nas águas de um destes que ela consegue libertar-se do domínio da
madrasta, ao lavar as tripas do seu protetor, e parte em busca do seu destino.
184
“[…] a feiticeira […] levando-lhe um par de sapatos de ouro todos lavrados, e de uma beleza tal que
admiraria qualquer rainha […] os sapatos tinham o condão de quem os calçasse ficar com todas as
aparências de morte.” Conto “Linda-A-Linda.” CLP. P. 234.
185
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Verbete extraído do Dicionário de Símbolos, de, Edições
J. Olympio. Disponível em:
http://www.dicionariodesimbolos.com.br/searchController.do?hidArtigo=6261DB66595A8E631B55264BB9
A997E7. [Consultado em 20.11.2010]
116
As significações simbólicas da água podem reduzir-se a três temas
dominantes: fonte de vida, meio de purificação, centro de regeneração.
Outra das significações simbólicas que a água pode assumir prende-se com o
sentimento, pois as emoções também se encontram representadas na água.
Podemos dizer que a figura materna, ao enviar a jovem para junto da água,
pretende transmitir-lhe que esta foi alvo de uma renovação, quer física, quer
emocional e que se encontra pronta e com a sua bênção para seguir o seu
próprio caminho.
117
jovem dos diferentes contos envida inúmeros esforços até ser fadada para
lançar pérolas de cada vez que falar. As pérolas simbolizam a virgindade,
característica de todas as jovens; um objeto afrodisíaco e fecundante oferecido
às jovens; bem como simbolizam o amor e o casamento (que apresenta a
estas personagens como recompensa por todos os seus esforços) aparece
ainda como símbolo da imortalidade. No que diz respeito à imortalidade, de
cada vez que terminamos de ler alguns dos contos essa ideia é-nos transmitida
pela fórmula final utilizada, especificamente «... E viveram felizes para
sempre», estando assim bem patente a ideia de que a sua felicidade não tem
um limite temporal.
Podemos concluir este capítulo dizendo que o conto mostra à criança a sua
própria transformação futura, apresenta-lhe uma realidade que ela ainda
desconhece, procede por transposição. No entanto, a criança não compreende
de imediato todos os sentidos do conto. Só a pouco e pouco é que as figuras
deste vão assumindo novos sentidos e a ajudam a caminhar no desconhecido
com mais segurança. Os factos da vida não são chamados pelos seus nomes,
são designados através de uma história que tem uma significação patente,
além da significação oculta que se decifrará mais tarde.186 O conto protege a
criança contra o interdito social, dando-lhe a conhecer obscuramente, graças à
remissão para objetos e atos simbólicos muito completos, o que se deve evitar,
nomeadamente o tabu da sexualidade.
186
Louis Pauwels, um grande impulsionador do Realismo Fantástico (movimento de grande influência nas
artes e na literatura, em particular, e na cultura, em geral), chegou mesmo a afirmar: “Quando uma
criança escuta, a história que se lhe conta penetra nele simplesmente como história, mas existe uma
orelha por detrás da orelha que conserva a significação do conto e a revela muito mais tarde.”
118
4.5. – Sentimentos dominantes
Esta terá sido a forma simbólica encontrada para retratar, de forma exagerada,
o sentimento de angústia da criança face à rivalidade fraternal. A criança
assume como seus os sentimentos da heroína, vendo nela uma imagem viva
da sua experiência de vida. À semelhança da Gata Borralheira, também a
criança irá conseguir alcançar a sua libertação, superando diferentes provas e
ascendendo a um nível superior ao daqueles que a maltrataram.
A criança receia perder o amor e estima dos pais para com os seus irmãos,
mas acima de tudo receia que um dos progenitores lhe usurpe a atenção e
carinho que a criança tanto preza. É peculiar este sentimento contraditório que
o ser humano vai enfrentando ao longo do seu crescimento: Se por um lado à
medida que cresce reforça os laços com os seus familiares, por outro, ainda
que de forma inconsciente, vai “lutando” com este sentimento de rivalidade
fraternal.
119
oferece ao ouvinte uma compreensão mais profunda daquilo que está por detrás dos seus próprios
sentimentos de rivalidade fraternal. Se o ouvinte permitir ao seu entendimento inconsciente
“caminhar” ao lado do que é dito ao seu espírito consciente, ele obtém um entendimento muito
187
mais profundo daquilo que explica as complexas emoções que os seus irmãos despertam.
Para que a criança consiga alcançar uma identidade pessoal e obter a auto-
realização, esta deve familiarizar-se com a presença materna, que tanto pode
assumir uma face agradável (conforme a personagem da mãe), bem como uma
face mais hostil (conforme a personagem da madrasta). Cabe à mãe assumir
adequadamente este duplo papel, tendo a consciência plena de que os fins
superam todas as exigências ou rejeições que os filhos possam vir a sentir.
Uma vez que ela é a fundadora dos valores e das auto-representações da
criança, compete-lhe a árdua tarefa de cuidar, educar e amar, bem como deixar
errar, repreender e castigar.
187
BETTELHEIM, Bruno. 1995. A Psicanálise dos Contos de Fadas. Lisboa. Bertrand Editora. 4ª Edição.
Tradução de Carlos Humberto da Silva. P. 316.
120
grande felicidade de um amor que compreende as origens deste ciúme, as
aceita e as elimina. O príncipe sabe que a relação edipiana da jovem com o pai
é algo de muito forte e soube esperar pelo momento em que ela se desvinculou
desse amor e pode transferir o seu amor heterossexual de um objeto imaturo, o
pai, para um objeto adulto, o seu futuro marido. Ambos recebem aquilo de que
mais necessitavam e o chinelo serve para apaziguar as angústias
inconscientes do homem e para satisfazer os desejos inconscientes da mulher.
Ambos atingem a completa realização da sua relação sexual no casamento. A
criança decifra que, tal como os heróis, ela será capaz de dominar a sua
angústia e de alcançar a felicidade com um desfecho feliz. Esse desfecho
deve-se não só à figura da mãe, mas sobretudo à da madrasta, pois esta
proporcionou-lhe oportunidade de, através de uma vivência degradante, cheia
de tarefas difíceis que esta teve de desempenhar, descortinar a sua genuína
personalidade. Este desfecho seria incompleto sem o castigo dos antagonistas,
no entanto, regra geral, não é nem a Gata Borralheira, nem o príncipe que
infligem o castigo, mas antes outras personagens, como os auxiliares mágicos.
4.5.2.- O Amor
O elemento dominante dos contos deste ciclo será, sem dúvida, o amor ou a
falta dele. Estamos perante um amor parental capaz de lutar “contra tudo e
todos”. As personagens são vistas com uma grande animosidade quando são
responsáveis por atos de crueldade ou maus tratos físicos (como a
personagem da madrasta, que é apresentada como um ser angustiantemente
monstruoso) ou com uma enorme simpatia se forem as vítimas desses atos,
nomeadamente a jovem donzela, a heroína. Constatamos ainda que nos
contos populares que estamos a abordar, apenas é atribuído um nome à
heroína, sendo este geralmente não um nome próprio comum a outras
personagens, mas sim um que ilustra uma característica peculiar e relevante
para o conto. Esta não denominação das personagens permite que o
leitor/ouvinte estabeleça um jogo de associação pessoal, ou seja, ele irá
procurar no seu universo as pessoas que desempenham na vida real o papel
apresentado pelas diferentes personagens, onde ele próprio também se irá
121
incluir. A personagem da madrasta encarna a falta de amor, pois esta
apresenta-se como uma personagem muito insegura a quem nem o casamento
consegue dar estabilidade. A sua insegurança acentua-se ainda mais, na
medida que sente imensos ciúmes da beleza da filha do seu companheiro. À
medida que os ciúmes aumentam, também aumenta a ruindade para com a
enteada. O aumento de ciúmes está diretamente relacionado com a ampliação
da beleza da enteada (temos como exemplo no conto “A Enteada”: ”que era
muito linda, à medida que ia crescendo, ia-se fazendo mais linda”). No que diz
respeito à beleza da enteada, é evidente que à medida que o corpo da enteada
se ia desenvolvendo, iam-se acentuando os seus dotes femininos, tornando-se
uma mulher muito bonita, que não passaria despercebida a qualquer homem,
inclusive ao próprio pai. Parece-nos que esses ciúmes teriam ainda mais
fundamento pelo facto de que à medida que a madrasta ia convivendo com a
enteada ia conhecendo a boa índole da enteada, em detrimento do seu próprio
carácter, tendo esta a nítida noção de que o marido também disso estava
consciente.
122
vulnerabilidade que torna indispensáveis os cuidados prestados pelos adultos.
Na nossa sociedade, maioritariamente a mãe é quem de imediato assume essa
função, estabelecendo-se assim um vínculo indelével entre mãe e bebé. O
envolvimento físico e emocional que é estabelecido entre ambos permite que a
criança cresça equilibradamente para fazer face às necessidades e
dificuldades do dia a dia. Efetivamente, a mãe, ao interpretar e ao responder
satisfatoriamente às necessidades e aos estados emocionais do seu filho, não
só disponibiliza prazer e satisfação no presente como influencia muitos
aspectos da sua constituição psicológica. Esta relação projeta-se no futuro.
A sexualidade é uma energia que nos motiva a procurar amor, contacto, ternura e intimidade;
que se integra no modo como nos sentimos, movemos, tocamos e somos tocados; é ser-se
sensual e ao mesmo tempo sexual; ela influencia pensamentos, sentimentos, acções e interacções
188
e, por isso, influencia também a nossa saúde física e mental.
188
Langfeldt & Porter. 1986. P. 5. Disponível em: http://translate.google.pt/translate?hl=pt-
PT&langpair=en%7Cpt&u=http://www.calgarysexualhealth.ca/relationships_intro.html. [Consultado em
10.02.2011]
123
No entanto todos nós também sabemos que “Qualquer criança afogada em
amor materno nunca se desenvolve por completo.”189 Pelo contrário, se a mãe
transmitir à criança segurança e conforto, esta tenderá a explorar o meio e a
afastar-se da figura materna para assim conseguir estabelecer outras relações
e ganhar a sua individuação/autonomia.
189
TRAÇA, Mª Emília. 1992. O Fio da Memória - Do Conto Popular ao Conto para Crianças. Porto. Porto
Editora. Colecção Mundo de Saberes 3. 2ª Edição.
190
“Um mesmo actante pode pois ser manifestado ao nível da expressão, por várias personagens […]”.
GREIMAS, A. J. 1966. Semântica Estrutural. Pesquisa de Método. Tradução de Haquira Osakabe e
Izidoro Blikstein. S. Paulo. Editora Cultrix. Editora da Universidade de S. Paulo. 2ª Edição. P. 228.
124
São fantasias ou devaneios em que o jovem parcialmente reconhece como tal, mas em
191
que também parcialmente acredita.
Para que a criança consiga alcançar uma identidade pessoal e obter a auto-
realização, esta deve familiarizar-se com a presença materna na figura da mãe,
bem como com a presença materna na figura da madrasta. Cabe à mãe
191
BETTELHEIM, Bruno. 1995. A Psicanálise dos Contos de Fadas. Lisboa. Bertrand Editora. 4ª Edição.
Tradução de Carlos Humberto da Silva. P. 90.
192
COURTÉS, J. 1979. Introdução à Semiótica Narrativa e Discursiva. Coimbra. Livraria Almedina. P.141.
125
assumir adequadamente este duplo papel, tendo a consciência plena de que os
fins superam todas as exigências ou rejeições a que os filhos vão sendo
sujeitos.
193
“Uma rapariga […] fugiu de casa dos pais, pessoas ricas e nobres (assim dizem) […].” Conto “Pele de
Burro”. CPL. P. 205; “Havia numa terra um rei casado com a sua prencesa e deu à luz uma prencesa.
Houve grandes alegrias em palaiço por ter nascido aquela prencesa.” Conto “As Fadas”. CPL. P. 207;
“Era uma vez um homem, que casou, e dessa mulher teve uma filha muito linda. Mais tarde enviuvando,
casou novamente e teve uma filha da segunda mulher, que era muito feia.” Conto “Filha e Enteada”. CPL.
P. 239; “Nuns estados longínquos vivia um rei, casado com uma mulher extremamente formosa e
pertencente à mais alta nobreza também, e por isso intitulada a rainha.” CPL. P. 250; “Houve em tempos
um rei, que só tinha uma filhinha, […] não sabiam onde haviam de inventar mais mimos para a linda
princesinha. Todas as vontades lhe faziam.” Conto “A Princesa Mimada”. CPL. P. 266.
194
MANNING, Sidney A. 1981. “Teoria dos Estágios Psicossociais de Erikson”. O Desenvolvimento da
criança e do Adolescente. Guia Básico para Auto-Instrução. São Paulo. P. 67. Tradução de Heloysa de
Lima Dantas Editora Cultrix.
126
Os contos aqui em estudo enfatizam um conflito que vem sendo tópico na
nossa sociedade desde tempos imemoriais, a relação entre os personagens da
madrasta e da enteada.
Deste modo podemos deduzir até onde alcança a função cultural da chamada
literatura oral. Esta regula o que os membros de uma sociedade aprendem com
os desempenhos válidos ou puníveis: as regras de comportamento e, no nosso
caso concreto, as características de determinadas relações de parentesco.
Estas mensagens não estão expostas de uma forma direta, mas codificadas
nos contos narrativos fictícios, sob formas simbólicas que têm de se
desenterradas. Todos estes contos pretendem transmitir aos seus recetores,
entre outras mensagens, respostas de comportamentos possíveis que
resolvam as tensões entre mãe e filha, uma vez que a chegada de uma mulher
nova altera muitos dos padrões que supostamente existiam no lugar e vai
interferir com o modo de vida deste grupo, nomeadamente com a distribuição
de tarefas domésticas, bem como as ligações afetivas com o homem da casa.
127
É através da relação madrasta/enteada que a narrativa vai enfatizar o estatuto
da heroína. Esse estatuto pode ser decifrado quer através da denominação
dada à jovem donzela, quer pela sua posição na estrutura familiar ou ainda
pelas funções que é obrigada a desempenhar no seio doméstico.
[…] este antropónimo serve para subsumir, ao longo da narrativa, um certo número de
papéis actanciais e temáticos, ao mesmo tempo que ele garante a sua progressão e a
197
sua transformação no seguimento do conto.
195
Conto “A Estrela de Ouro”. CPL. P. 223.
196
Conto “A Enteada”. CPL. P. 209.
197
BETTELHEIM, Bruno. 1995. A Psicanálise dos Contos de Fadas. Lisboa. Bertrand Editora. 4ª Edição.
Tradução de Carlos Humberto da Silva. P.167.
128
Ambos os termos nos remetem para alguém com uma apresentação suja,
coberta pelas cinzas, uma vez que a madrasta lhe impõe as tarefas domésticas
mais árduas e mais sujas, tais como manter os braseiros da casa acesos e
proceder à limpeza dos mesmos. As cinzas estão associadas aos restos
mortais e à consequente dor e estado de espírito de tristeza e melancolia de
quem perdeu alguém que lhe era muito querido. Mas o seu significado pode ser
ainda mais profundo e remeter-nos para a ideia de uma jovem cuja alma está
cinzenta e se sente triste e melancólica, sentindo a falta da mãe. Ainda nesta
linha, é possível interpretar o encontro com o príncipe com um certo nível de
estabilidade, sucesso, fazendo-a “renascer das cinzas”. Estes termos remetem
para um universo que já não pode ser qualificado como tradicional, na aceção
que aqui temos vindo a considerar, pois trata-se de versões manipuladas pelos
autores, que espelham mais uma mentalidade urbana/burguesa. Porém, os
textos portugueses analisados, sendo de matriz tradicional, retratam uma
mentalidade rural e, como tal, criaram madrastas que incumbem as jovens de
realizar tarefas ligadas ao trabalho rural, como a criação de gado “pôs a
enteada a guardar porcos”198 ou a produção de linho “fazia-a estar a fiar até à
meia-noite.”199 Ou ainda as duas tarefas em simultâneo “De uma vez que ela
foi guardar a vaquinha deu-lhe uma grande quantidade de meadas para
ensarilhar, coisa impossível, já pela quantidade já porque não tinha onde
ensarilhar.”200. A madrasta exige à jovem que fie, uma vez que tradicionalmente
a castidade feminina era representada pela imagem de uma jovem sentada a
fiar com a roca e o fuso. Ao contrário do que é esperado da figura da madrasta,
parece-nos que esta, de uma forma dissimulada, prepara todas as condições
para que ela consiga obter o seu próprio sustento, sem necessitar,
aparentemente, de estar dependente de alguém, nomeadamente de um
marido. Há aqui uma alusão à tão conhecida independência, por que
atualmente todas as mulheres lutam, já presente no velho ditado popular: “A fiar
e a tecer ganha a mulher de comer”. Também estas têm uma apresentação
198
Conto “A Enteada”. CPL. P. 209.
199
Conto “A Vaquinha”. CPL. P. 218
200
Conto “A Enjeitada”. CPL. P. 216.
129
“emporcalhada” resultante do contacto com os animais, designadamente na
variante “A Enteada” “o quarto que (a madrasta) le deu para dormir foi mesmo
ao pé donde os porcos dormiam.”201 Resta-nos concluir que a denominação
atribuída à heroína resulta do tipo de relação existente entre esta e a
personagem da madrasta e que, independentemente de qualquer realidade, a
sua condição é idêntica, ou seja, esta sente-se só, indefesa e vítima de maus
tratos da madrasta.
No que à posição na estrutura familiar diz respeito, deparamo-nos com uma
relação dominador vs dominado, pois em todas os contos em questão é a
figura da madrasta que assume o poder de dominadora sobre a jovem, a
dominada. A primeira exerce o seu poder, introduzindo assim a repressão,
quando obriga a heroína a realizar tarefas como fiar, guardar os animais ou
tratar das lides domésticas, a título de exemplo temos o seguinte excerto da
variante “A Enteada” “Sim, tenho [pena de andar a guardar porcos], mas a
minha madrasta assim o quer […] o seu pai não repara por isso? / Ele sim! Ele
não desmancha vontades.”202
201
Conto “A Enteada”. CPL. P. 209.
202
Ibidem. P. 210.
203
Conto “A Estrela de Ouro”. CPL. P. 220.
204
Conto “A Vaquinha”. CPL. P. 218.
130
pão para ela comer e trazer inteiro”205, “comer um queijo e torná-lo a trazer
inteiro”206, “deu-le uma garrafa de binho para a buber e torná-la a trazer
cheia”207. No que se refere ao pão e à broa, estes comprovam a grande
produção de cereais como o trigo, o milho e o centeio nas zonas rurais do país,
de tal forma que para além do excedente de produção, estes serviam de forma
direta à alimentação dos animais e de forma direta e indireta para alimentação
do agricultor/pastor, visto que a alimentação destes era à base de produtos
cerealíferos, tais como o pão e a broa, amassados e cozidos em fornos a lenha
pelas mulheres, que se dedicavam exclusivamente a tarefas relacionadas com
tudo o que envolvia a casa, recorrendo, ainda que escassamente, à carne dos
animais que iam criando. O pão, a broa e o queijo, alimentos produzidos pelo
próprio agricultor, remetem-nos para a forma geométrica do círculo e a procura
da perfeição. Quanto ao vinho, recordamos que em períodos de miséria e de
fome, motivados por catástrofes naturais ou sociais, esta bebida constituiu uma
importantíssima reserva energética para as populações, principalmente as
rurais. O que poderá justificar o facto desta bebida ser colocada ao mesmo
nível dos alimentos, como o pão ou o queijo.208
205
Ibidem. P. 219.
206
Ibidem.
207
Ibidem.
208
O vinho tem desempenhado um papel importante em várias religiões desde tempos antigos e ainda
hoje o vinho tem um papel central em cerimónias religiosas cristãs e judaicas como a Eucaristia e o
Kidush. O povo português, com uma grande herança católica, adotou o vinho como uma bebida sagrada,
a poder ser bebida em cerimónia religiosa apenas pelos que encontram a redenção após a confissão. À
semelhança da heroína, o processo de produção do vinho vai seguindo o ciclo das estações, passando
por vários processos e sofrendo várias transformações até conseguir alcançar o seu estado almejado.
131
heroína. A madrasta é pois a responsável da força e da coragem desta, que
consegue inverter a situação, tornando-se ela a “dominadora” e em algumas
das variantes consegue conquistar o príncipe.
209
Conto “A Enteada”. CPL. P. 209.
210
Conto “A Enjeitada”. CPL. P. 217.
211
Ibidem.
132
que a madrasta a passe a estimar, como na variante “A Vaquinha”: “Despois
então já a madrasta e a filha a tratavam muito bem”212, ou “…e já então
estimava a enjeitada.”213 na variante de “A Enjeitada”.
Depreendemos que a madrasta como que traçou um plano para que a enteada,
sozinha, vá descobrindo a diferença entre o Bem e o Mal, desenvolva a sua
capacidade de iniciativa e a sua auto-determinação. Ela vai assim
desenvolvendo a sua personalidade de uma forma independente. Após a
vivência de todo este processo, a criança irá compreender que
212
Conto “A Vaquinha”. CPL. P. 220.
213
Conto “A Enjeitada”. CPL. P. 217.
214
“A bruxa foi queimada publicamente.” Conto “Linda-A-Linda”. P. 238.
215
"Soube a menina que os ladrões estavam condenados à morte, e pediu ao príncipe o seu perdão, em
atenção aos benefícios que deles tinha recebido, o que o príncipe prometeu. Perdoou também à mãe todo
o mal que lhe quis fazer […].” Ibidem.
133
entrar nas profundezas mais baixas da existência não é senão um passo em direcção à nossa
216
possibilidade de realizarmos as nossas mais altas potencialidades.
Nas variantes em que o príncipe está presente, este manifesta a sua vontade
decisiva de tomar a heroína por esposa. Aparecendo como representante de
toda a família real, sendo as referências aos restantes elementos da família
escassas ou mesmo inexistentes, exceto na variante de “A Enteada”. Isto
talvez aconteça pelo facto de, segundo a tradição, estes se apresentarem
como personagens oponentes aos casamentos entre elementos de diferentes
estratos sociais. No caso da variante exceção, o príncipe sente que a sua
pretendente só será devidamente aceite pela mãe, que representa toda a corte,
no fim de apresentar provas do seu carácter, nomeadamente é-lhe estipulado
que ela mostre as suas habilidades “… mas que habelidade que ela tem! / -
Minha mãe há-de experimentar a primeira […] – Agora a última que fazes é a
coberta, …”217.
Apesar de a rainha (futura sogra da jovem donzela) ser uma força opositora a
este casamento, esta é suplantada pela presença materna na figura da
madrasta que chega mesmo a recusar entregar a enteada ao príncipe. Tendo
ainda como exemplo a variante acima referida vemos que a madrasta tenta
ocultar a existência da enteada “madrasta respondeu: / - Não há mais ninguém.
/ - Sim, há! Vá buscar a sua enteada […].”218
Parece-nos pertinente tentar perceber os possíveis motivos que levariam a
madrasta a querer continuar a dominar a enteada. O motivo imediato, e mais
evidente, após um primeiro contacto com o conto seria esta pretender
conservá-la junto de si, para ter alguém que continuasse a realizar as tarefas
mais árduas; Outro dos motivos seria tentar esconder do príncipe quer as
admiráveis qualidades da enteada, quer os inúmeros defeitos da filha
verdadeira a fim de não correr o risco de este fazer a escolha acertada, ou
seja, escolher a enteada, para esposa real. Outro aspeto importante a salientar
216
BETTELHEIM, Bruno. 1995. A Psicanálise dos Contos de Fadas. Lisboa. Bertrand Editora. 4ª Edição.
P. 315. Tradução de Carlos Humberto da Silva.
217
Conto “A Enteada”. CPL. P. 213.
218
Ibidem. P. 211.
134
neste contexto é o fato de a madrasta sentir ciúmes da enteada, não só pela
sua aparência física, como também pelas características do seu carácter, o que
não acontecia com a filha. A madrasta tem consciência de que o carácter da
enteada é superior ao seu e ao da sua filha. Se procedermos a uma leitura
psicanalítica, verificamos que poderá estar subentendida uma crítica às mães
que não deixam os seus filhos fazerem opções e “crescerem” com os seus
erros, sendo eles os únicos responsáveis pelo seu destino. Este é o grande
dilema da figura materna, pois se por um lado quer que o seu filho/a “cresça”
física e psicologicamente, por outro tenta a todo o custo evitar que sofra. Este
conto pode servir como modelo de orientação para qualquer mãe, uma vez que
apresenta o sofrimento como uma etapa necessária para o desenvolvimento do
filho/a. No entanto alerta a mãe para o facto de que a sua presença, embora
camuflada, seja imprescindível. A figura materna deve entender que a sua
função não é evitar o sofrimento do filho/a, mas sim orientá-lo no sentido de ser
este a encontrar o seu caminho e de que independentemente do percurso que
siga pode sempre contar com o apoio materno.
A madrasta, enquanto responsável pela formação da jovem heroína, dota-a de
todas as competências de sujeito virtual do querer. Ao nível sexual e jurídico,
leva-a a assumir o seu papel de casadoira, apesar de, ao nível social e
económico, ainda apresentar uma condição de pobre e humilhada. É também
graças à sua madrasta que esta consegue ascender a sujeito do querer, que
no plano sexual, assume o seu papel de sedutora ou mesmo de coquete e ao
nível socioeconómico chega a fomentar nas suas irmãs uma certa inveja.
Enquanto sujeito de poder, consegue obter o estatuto de mulher casada
subindo assim para uma posição de mulher rica, de princesa, admirada e
cobiçada por todas as outras mulheres, inclusive pela própria madrasta. Esta
compreende que o casamento da heroína não permitiu apenas o
estabelecimento do duplo laço sexual e jurídico, mas proporcionou-lhe uma
ascensão social. Essa ascensão social é o motivo que leva a que ela e as suas
filhas fiquem suas dependentes nas variantes onde a heroína as traz para
viverem no palácio, ou mesmo para trabalharem para ela como criadas.
135
5.3. Presença Materna na Figura da Fada Madrinha
219
Conto “A Vaquinha”. CPL. P. 220.
220
Conto “Pele de Burro”. CPL. P 204.
221
Conto “A Enjeitada”. CPL. P. 216.
222
Conto “A Enteada”. CPL. P. 209.
136
conforto espiritual. Esta consegue seduzir o príncipe com o apoio da figura
da fada-madrinha, que lhe proporciona o acesso, através da varinha, a
belos vestidos “Varinha do condão, dai-me tudo o que eu precisar […] ia ao
penedo pedir roupa para vestir.”223 As fadas ajudam-na ainda a provar as
suas habilidades “Não chores minha filha, cá estamos nós para te valer
nestas aflições […].”224, bem como lhe proporcionam o acesso à beleza “eu
te fado para que sejas a cara mais linda, Deus te fade para que sejas a
menina mais linda do Mundo.”225 ou “E eu te fado para que tenhas uma
estrela de ouro na testa.”226 São também estas que podem oferecer-lhe
alguma riqueza “Eu te fado para que, quando te penteares, não deites
senão oiro do teu cabelo!” ou “quando falares deites postas de ouro pela
boca fora.”227
Conforme o que foi dito no capítulo sobre Fadas, estas são entidades
fantásticas da tradição espiritual europeia, que se apresentam na forma de
belas mulheres, etéreas, imortais, mágicas e dotadas de poderes
sobrenaturais, capazes de interferir na vida dos mortais. Na tradição
portuguesa, as Fadas aparecem de surpresa aos viajantes, nos caminhos, e
concedem a certos predestinados o conhecimento de segredos que lhes
permitirão encontrar tesouros escondidos, tais como panelas ou púcaras de
moedas de ouro. Em textos eruditos, literários, é frequente apresentar-se a
Fada como uma entidade que gosta de seres humanos generosos e sente
especial simpatia pelos casais apaixonados, apresentando-se muitas das
vezes como casamenteira, juntando pessoas pobres, órfãs, desprotegidas, a
príncipes ou a princesas. Estas características poderão relacionar-se com um
desejo de ascensão social por parte de alguns elementos de classe social um
pouco mais elevada do que o simples povo. Neste ciclo de contos, as fadas
223
Conto “A Vaquinha”. CPL. P. 220.
224
Conto “A Enteada”. CPL. P. 213.
225
Conto “A Enjeitada”. CPL. P. 217.
226
Conto “A Estrela de Ouro”. CPL. P. 223.
227
Conto “A Enjeitada”. CPL. P. 217.
137
ajudam a jovem donzela a superar as diferentes provas do seu percurso de
vida e o tesouro que lhe concedem é o de um casamento real. As fadas,
“mulheres que habitavam a Insula Pomorum e que competiam no plano
simbólico com a Igreja com relação ao domínio do sagrado, pois, segundo as
narrativas, possuíam a sabedoria, o dom da cura e da imortalidade”228 surgem
como personagens adjuvantes, que irão recompensar a heroína pelo
sofrimento causado pela malfeitoria da madrasta. Leite de Vasconcelos, nos
contos que recolheu, encontrou referências às Jãs, as fadas tecedeiras,
referindo o declínio desta crença no Algarve e a existência destas ou de outras
entidades semelhantes em lugares como as Xanas das Astúrias, as Holas
germânicas, e as Sanas romanas, que vivem debaixo das pontes e fiam lã.
Segundo Leite de Vasconcelos
Quando alguém tinha para fiar uma porção de linho, punha-o numa sala à noite, juntamente com
uma vasilha com água; e no lar punha um bolo, metido debaixo do borralho. Altas horas da noite,
quem espreitasse, viam andar pela casa luzinhas pequeninas. De manhã estava o linho todo fiado
229
e o bolo comido.
Nos diferentes contos, o adorno que assume um papel mais relevante são as
“toilettes” que ela vai recebendo. Enquanto se encontra em casa, a heroína
apresenta-se com insignificante vestidos, marca da pobreza e da humilhação,
uma vez que a madrasta acreditava que se lhe dificultasse o acesso a belos
vestidos estaria a proporcionar mais um impedimento para o casamento. De
forma a preparar-se para as suas saídas, surge ou pede ajuda à figura da fada
228
ZIERER, Adriana. “Significados medievais da maçã: fruto proibido, fonte do conhecimento, ilha
Paradisíaca” in Revista Mirabilia 1. Disponível em:
http://www.revistamirabilia.com/Numeros/Num1/maca.htm. [Consultado em 5-12-09]
229
MEIRELES, Maria Teresa. 2006. Más Mulheres, Boas Meninas. Personagens femininas dos contos
tradicionais portugueses. Lisboa. Apenas Editores. Coleção Contos e Lendas. P. 14.
138
madrinha, que estabelece com a heroína uma troca230, para que esta possa
aceder à posição de riqueza e elevação em que se encontra o príncipe. Essa
troca pode ser sob a forma de um favor que a heroína presta à fada ou de uma
recompensa pela sua bondade ou obediência.
Vemos assim como esta figura assume uma função de “mãe” não só positiva,
mas superior, porque domina forças que vão para além do físico e do verosímil.
Tal como a madrasta representa uma figura materna num tom super negativo,
a fada-madrinha é a sua contraparte no tom superior que, pelas suas
230
MEIRELES, Maria Teresa. 2005. A Troca. Perdas e Permutas nos Contos Tradicionais. Lisboa.
Apenas Editores. Colecção Contos e Lendas.
231
COURTÉS, J. 1979. Introdução à Semiótica Narrativa e Discursiva. Coimbra. Livraria Almedina. P.164.
232
Ibidem.
233
Conto “A Vaquinha”. CPL. P. 220.
139
capacidades consegue suplantar as exigências mais bizarras estabelecidas
pela madrasta.
140
5.4. Presença Materna na Figura Animal
uma imagem, uma encarnação, uma representação exterior desta confiança básica. É uma
herança que uma mãe boa confere ao seu filho e que permanecerá com ele, o preservará nos
234
piores transes.
234
BETTELHEIM, Bruno. 1995. A Psicanálise dos Contos de Fadas. Lisboa. Bertrand Editora. 4ª Edição.
Tradução de Carlos Humberto da Silva. P. 326.
141
Nos contos analisados deparamo-nos essencialmente com animais terrestres,
talvez pelo facto de estes mais facilmente podem representar o lado emocional
da vida, refletindo qualidades que devem ser superadas, controladas, ou re-
expressadas.
235
Na psicologia, o touro e o boi são animais de personalidade dupla, tanto se podem apresentar
pacificamente relaxados a descansar ou a alimentar-se no pasto, desfrutando do ambiente harmonioso ao
seu redor, como de repente podem despertar e se excitar. Apesar de poderem ser considerados como
sendo animais perseverantes, poderosos e símbolos da bondade e da calma, quando enlouquecem, o
seu poder e a sua força pode ser devastadora e as suas atitudes ameaçadoras e absolutamente
impressionante. No conto “A Gata borralheira” recolhido por Consiglieri Pedroso, o touro apresenta o seu
lado calmo, controlado e ponderado de qualquer mãe que está sempre presente, embora de uma forma
camuflada, na vida do filho, mas cujos sentidos estão despertos para a ameaça de perigo da sua cria e
prontos a atacar, encarnando assim o seu lado animalesco e selvagem. Há como que um desdobramento
da personagem de acordo com o desenrolar do conflito. No conto “O Boi de Ouro”, o animal vai deixando
várias oferendas ao príncipe e a última será uma jovem que surge de dentro do boi de ouro e vai casar
com filho do rei.
142
Quanto à personagem da cadelinha, ou do cão, este é considerado o fiel amigo
e companheiro do homem, o que melhor representa a incontida cólera contra
as injustiças do destino. Acreditava-se que, pelo facto de ser dotado de um
apurado faro, este alcança a pureza das almas, crença que poderá refletir-se
no facto da cadelinha presente nos contos “A Maçã de Ouro” ou “A Estrela de
Ouro” conseguir, apenas através do seu faro, descortinar a coragem, a força e
lealdade da heroína, sendo esta a indicá-la às fadas, como devendo ser
recompensada.
No conto “Filha e Enteada”, a jovem pede amparo aos seus amigos adjuvantes,
o galo e o gato. Estes acedem a ajudá-la perante a sua atitude de
generosidade para com eles. O recurso a figuras animais como caminho para a
comunicação com as dimensões transcendentes da vida (adivinhar o futuro,
solicitar os deuses, interpretar o destino) atravessa o tempo da humanidade, e
desde esses inícios e lugares remotos o galo e o gato sempre estiveram
presentes nas nossas tradições, e não por acaso com sentidos e atribuições
muito semelhantes.
No que ao galo diz respeito, este pode ser considerado um símbolo do tempo,
da coragem, da fertilidade e da benevolência. Ele representa a luz e a
inteligência do guia espiritual na procura de uma “nova” vida. A simbologia do
galo, ao mesmo tempo sentinela, oráculo e bússola, está nas raízes mais
fundas da nossa cultura, vinda das tradições gregas e romanas, como
anunciador de uma nova luz, de um novo dia, da ressurreição para a vida
verdadeira. Vigilante, guerreiro, madrugador e anunciador dos tempos que
estão para vir. O seu canto, relacionado com o simbolismo da cor vermelha,
pode significar a passagem entre as trevas e a luminosidade. No conto “A Filha
e A Enteada” foi o canto do galo que afugentou os ladrões, que julgaram estar
a ser anunciada a chegada do sol, a manhã. Novamente podemos ler este
episódio como uma representação da presença materna que guia a sua cria na
busca da felicidade, afugentando tudo de mal que possa surgir no percurso
percorrido até a jovem alcançar “uma nova e rica vida” junto do seu príncipe.
Depois de passar por todas as malfeitorias (as trevas) a jovem donzela depara-
se com a luminosidade do Sol da manhã.
143
Relativamente ao gato, estamos novamente perante traços reportáveis à
presença materna pelo facto de este ser considerado um animal feminino,
associado à natureza instintiva da mulher, ao prazer e refinamento. A mãe, à
semelhança do gato, pode assumir como que uma dupla personalidade. De
acordo com a simbologia das cores, este tanto pode ser de cores claras, como
branco, cinzento ou castanho, o que representa o espírito da natureza capaz
de criar as mais belas coisas, como canções folclóricas e contos de fadas,
como pode ser de cor negra, cor que nos é bastante familiar na figura das
bruxas, pois é assim que a criança, por vezes, imagina a própria mãe, quando
esta se desvia dos padrões esperados por ela. É um símbolo da clarividência e
dos poderes mediúnicos, pela sua capacidade inata de pressagiar os
sentimentos e estados de alma dos filhos.
144
dela. A Enteada seguiu as indicações do carneiro e iniciou uma viagem que a
levou junto das fadas.
Quanto aos animais terrestres, mas agora que surgem de modo mais
periférico, o cavalo e o leão. Relativamente ao primeiro animal, o cavalo, ele
aparece-nos nos contos “O Príncipe Encantado no Palácio de Ferro, no Reino
da Escuridão”, “ O Boi de Ouro” e “A Princesa Mimada”. Este é
[…] uma das formas simbólicas mais puras da natureza instintiva é a energia que apoia o ego
consciente sem que esse perceba, a energia que gera o fluxo da vida e que dirige a nossa atenção
para as coisas, influenciando as nossas acções através de uma motivação. O cavaleiro é o ego,
enquanto o cavalo é o símbolo da nossa energia instintiva e animal. Quando juntos representam o
movimento harmónico da natureza. […] Na mitologia ele é associado às deusas-mães, sendo que
podemos encontrar associações entre a imagem do cavalo e o simbolismo da mãe que pode ser
vista como sendo o cavalinho de baloiço da criança e isso devido a primitivamente ela costumar
236
carregar o seu filho às costas.
Mais uma vez se constata a associação entre um animal, presente neste ciclo
de contos, e o simbolismo da mãe. Pois no primeiro conto, o cavalo surge
como o guardião de um tesouro, no segundo e terceiro conto, este surge
associado ao cavaleiro e ambos movimentam-se pela natureza ou na procura
ou na proteção da jovem princesa.
simbolizava São Marcos; na mitologia egípcia era um antigo símbolo da ressurreição nos rituais
fúnebres; no simbolismo medieval era considerado um agente da ressurreição; na simbologia
alquímica é a divindade que encerra em si o mistério da morte e renascimento, além de que
representava o rei em sua forma pós-mortal. Ele era o guardião do mundo subterrâneo. Quando
aparece uma imagem do herói lutando com o leão é comum que se encontre desarmado posto que
esse é um símbolo da sua luta consigo mesmo. Em sonhos quando ele aparece, sabe-se que a
personalidade se acha confrontada com fortes e apaixonados desejos, paixões e afectos que se
tornam mais fortes que o próprio ego. O leão é o sol inferior, uma representação teriomórfica do
princípio masculino que representa o aspecto terreno do símbolo do rei. Encontra-se ainda
236
A Simbologia dos Animais. Disponível em http://knol.google.com/k/a-simbologia-dos-animais#.
[Consultado em 06.11.10].
145
associado à concupiscência e ao orgulho além de ser um animal combativo mas que pode sugerir
impulsos agressivos saudáveis. Quando aparece nas imagens das deusas da lua, é uma
237
representação da natureza voraz da deusa.
Outro animal marítimo que nos surge é a baleia. Durante muito tempo, a baleia
foi considerada um peixe, um mamífero que pelo seu tamanho e forma foi
considerado como uma deusa do mar. Enquanto divindade, a baleia é um
símbolo de renascimento associada ao facto de ser também um suporte do
237
Ibidem.
238
“A menina respondeu que não podia casar com um peixe, mas ele tanto pediu que ela disse qume sim.
No mesmo instante o peixe se tornou num homem e lhe disse:
-Sabe que sou um príncipe que estava encantado […]”. Conto “A Gata Borralheira”. CPL. P. 221.
146
mundo. Em muitas tradições, existe um mito iniciático de passagem pelo ventre
da baleia como uma espécie de renovação espiritual ou metafísica. Como
exemplificado na história Bíblica de Jonas, a barriga da baleia é um reino da
morte e renascimento; emergir de uma baleia é uma iniciação de uma nova
vida, ou ressurreição.
A menina sobrevive, porque veio uma baleia e a engoliu. A baleia começa a vir
todos os dias à quinta do príncipe, onde lançava a menina ao pé da praia e ia-
se embora. Esta consegue assim acercar-se da cidade onde se encontra a
farsante e consegue reaver os seus olhos em troca de uns palmitos que esta
fez.239 Maria Teresa Meireles240 dá-nos conta da sua perplexidade face à
239
“E ela fez dois palmitos que aquilo era a coisa mais linda do Mundo todo. E quando os fez chamou-a: /
-Olhe tome lá estes dois palmitos, e veja se tem quem os vá vender a palácio, à princesa casada com o
príncipe. […] – Ai, eu dava-lhos, mas haviam de ser trocados por um olho. / Diz-lhe ela: / - Ai, por um
olho? Olhe, minha mãe, estão ali os da pequena que se deitou ao mar […] Ela pegou no olho, meteu-o na
capela do olho, e já ficou com uma vista […] - Agora tenho as minhas duas vistas!” Conto “Órfãos”. CLP.
P. 276-277.
147
facilidade com que os olhos se tiram e se voltam a pôr. Acrescenta ainda que
recuperada a visão, falta agora recuperar o equilíbrio e fazer justiça – ações
que geralmente se seguem à recuperação dos olhos. Muitas foram as figuras
mitológicas, como Tirésias e Édipo que acabaram por ganhar vidência ao
perderem a visão. No caso desta jovem, apesar de privada da visão, ganhou
em conhecimento e astúcia.
240
MEIRELES, Maria Teresa. 2005. A Troca – Perdas e Permutas nos Contos Tradicionais. Contos e
Lendas. Lisboa. Editora Apenas Livros. P. 28.
148
uma jarra cheia com um pouco da água escura que jorrava de seu cume. O
auxílio materno surge-lhe, desta vez, na figura de uma grande águia que a
ajudou a enfrentar um dragão que guardava a fonte.
Reflexões Finais
241
PARAFITA, Alexandre. 2009. Contos ao Vento com Demónios Dentro. Lisboa. Plátano Editora.
Colecção O Maravilhoso Infantil.
149
Verificamos ainda que, tal como aparece mencionado no inicio deste ciclo, “os
episódios de uns encontram-se por vezes misturados com os de outros.”242,
pois o contador pode ir acasalando elementos de um conto com os de outros.
Temos como exemplo, o conto “Gata Borralheira”243 com significativas
influências de versão “padrão” europeia. Já os contos “Tio Novelo”244, “A
Enteada”245 que fazem uma certa a alusão a um outro conto muito conhecido, o
do Capuchinho Vermelho. Finalmente, enquanto o conto “Linda – A- Linda”246
remete para o espelho do conto “Branca de Neve”.
242
CPL. P. 201.
243
“ […] A madrasta encarrega a enteada dos mais vis serviços: limpar a cozinha, arrumar os pratos, etc.
Na corte houve um baile a que foram as duas filhas da viúva muito asseadas. A gata Borralheira, que
ficou, começou a chorar. Apareceu-lhe a madrinha, que era uma fada, e esta fez que uma abóbora se
transformasse em um coche com cavalos, um rato e lagartos em cocheiro e lacaios, e os vestidos velhos
em ricos vestidos; a Gata Borralheira foi para o baile, e o príncipe ficou encantado.” CPL. P. 203-204.
244
“-Tio Novelo, para que tem as pernas tão grandes? / -É para andar léguas. / -Tio Novelo, para que tem
os braços tão grandes? / -Para abarcar alto. / -Tio Novelo, para que tem os olhos tão grandes? / -Para ver
melhor. / - Tio Novelo, para que tem os dentes tão grandes? / -Para te comer. / E comeu-a.” Conto “Tio
Novelo”. CPL. P. 249.
245
“-O senhor há-de s´admirar destas minhas grandes orelhas. […] – Pois isto é e ouvir quinze léguas
distantes. […] – O Senhor também se há-de admirar destes meus grandes beiços. […] – O senhor
também se há-de admirar de eu ter uns olhos tão saídos.” Conto “A Enteada”. CPL. P. 214-215.
246
“A menina, abrindo a tampa do espelho com uma chave de ouro, fez-lhe a seguinte pergunta: / - Olha
lá, espelho, já viste alguma cara igual à minha ou mais bonita do que eu?” Conto “Linda-A-Linda”. CPL. P.
228.
247
CEBALLOS VIRO, Ignacio. 2010. El romancero tradicional y las relaciones de parentesco: la suegra
malvada. Madrid: Universidad Complutense de Madrid. Servicio de Publicaciones. Disponível em
http://eprints.ucm.es/10606/1/T31862.pdf. [Consultado a 23.09.10]
150
individualidade, o que quer dizer que já não pode compartilhar tudo com os
outros, que, de certo modo, tem de viver por si e caminhar sozinha.”248
Uma criança familiarizada com os contos de fadas compreende que eles lhe falam numa
linguagem de símbolos e não na realidade de todos os dias. O conto de fadas transmite
no seu intróito, através do seu enredo e pelo seu desfecho, que aquilo que nos fala não
249
são factos tangíveis ou pessoas ou lugares reais.
249
Ibidem. P. 82.
250
Ibidem. P. 184.
251
Ibidem. P. 197.
252
Ibidem. P. 61.
151
sempre como suporte o apoio incondicional da mãe no seu aspeto mais
positivo, que se deve manter num plano oculto.
[…] a luta contra graves dificuldades da vida é inevitável, faz parte intrínseca da
existência humana – mas que se o homem se não furtar a ela, e com coragem e
determinação enfrentar dificuldades muitas vezes inesperadas e injustas, acabará por
253
minar todos os obstáculos de sair vitorioso.
[…] mataram a enteada e a puseram a cozer num panelão. […] Quando lá chegou,
cheirava muito bem a carne guisada […] Depois dirigiu-se para o panelão e começou a
comer. Nesse instante ouviu uma voz, que dizia:
Rilha, rilha os ossos da tua filha!
Mas tu comerás! Tu Chorarás!
Isto repetidas vezes.
254
Passado um certo tempo, ela viu que estava a comer a filha e começou a gritar muito.
253
Ibidem. P.15.
254
Conto “Filha e Enteada”. CPL. P. 241.
152
Porém, esta madrasta malvada pode ser vista como uma das facetas da mãe
que a criança refuta em aceitar:
Assim, o conto de fadas sugere a forma da criança lidar com sentimentos contraditórios,
que de outro modo a esmagariam neste estágio onde a habilidade de integrar emoções
contraditórias está apenas começando. A fantasia da madrasta malvada não só
conserva intacta a mãe boa, como também impede a pessoa de se sentir culpada a
respeito dos pensamentos e desejos raivosos quanto a ela – uma culpa que interferiria
255
seriamente na boa relação com a mãe.
Os contos deste ciclo pretendem ridicularizar a ideia de que lutar para garantir
as metas mais altas transcende as circunstâncias porventura humildes da
nossa existência exterior e atenua a obrigação implícita de nós leitores/ouvintes
termos de fazer frente ao problema da rivalidade fraternal, ou à interiorização
dos nossos objetivos e de termos de viver segundo os seus requisitos morais,
daí este conto ter tido uma aceitação tão grande, como podemos comprovar
com a seguinte afirmação:
[…] enganamos se pensamos que nos temos de agarrar a qualquer coisa da vida
exterior para triunfarmos na vida. […] Só sendo verdadeiros para connosco mesmos,
256
como a Gata Borralheira, é que se triunfa no fim.
Como qualquer texto de património oral, também este ciclo de contos permite à
criança retirar algumas lições de moral, tais como: “As aparências não dizerem
255
CPL. P.86
256
Ibidem. P. 327.
153
nada do valor interior de uma pessoa”; “Se formos verdadeiros connosco
mesmos e com os nossos valores, não obstante a adversidade, triunfaremos
sobre aqueles que o não são”; “A virtude será recompensada, enquanto o mal
será castigado”; “Para desenvolvermos completamente a nossa personalidade
temos de ser capazes de trabalhar duramente e de separar o Bem do Mal” e
finalmente que “Mesmo das coisas humildes como as cinzas se podem obter
coisas de grande valor, se soubermos como”.
154
Inicialmente a criança sente-se confusa, desamparada e perdida e não
consegue compreender que a presença materna tenha determinados
comportamentos. Consequentemente passa a associá-la à imagem da
madrasta e à ideia estereotipada da bruxa. A médio/longo prazo, e à medida
que vai ganhando maturidade, vai começando a aceitar e a compreender a
evolução do papel materno. Na maioria dos contos (cerca de dezassete deles)
não encontramos qualquer referência ao castigo da madrasta e das meias-
irmãs, inclusivamente no conto “Linda-A-Linda” é dito que a jovem donzela
perdoa a madrasta/mãe.257 A sublimação da mãe é alcançada nas figuras da
fada-madrinha ou ainda dos diferentes animais. Estas duas figuras vão ao
encontro do mundo onírico da criança, onde a mãe é o seu veículo de
confiança.
257
“Perdoou também à mãe todo o mal que lhe quis fazer, e por isso a convidou para o seu casamento,
sem que ela soubesse que era a filha, que a convidava.” Conto “Linda-a-Linda”. CPL. P. 238.
258
VON FRANZ, Marie-Louise. 1993. La Femme dans les Contes de Fées. Paris. Éditions Albin
Michel.Colllection «Espaces Libres». Traduit par Francine Saint René Taillandier.
259
A expressão “pôle feminin” do homem designava a Anima do homem e seria constituída
principalmente pelas qualidades de sensibilidade, de imaginação, de intuição, entre outras que a imagem
coletiva do macho “viril” obriga o homem a recalcar. Segundo este, Animus será a força masculina na
mulher, enquanto Anima, a força feminina no homem, possuindo todas as qualidades, características de
um ser feminino. Nos sonhos de um homem, por exemplo, a anima surge como uma mulher
155
Houve uma tentativa, da parte desta teórica, em mostrar a influência da mãe na
formação, junto do homem, da sua imagem da mulher e da sua Anima.
desconhecida. A relação do sonhador com essa figura feminina indica como está o relacionamento do
sonhador com o seu oposto complementar. Disponível em: http://dicionario.sensagent.com/Animus/pt-
pt/ALEXDC/ [Consultado em 10-10-2010.]
156
significadas, que podem ser reorganizadas de formas diversas, em cadeias
associativas que pressupõem a existência da capacidade para pensar,
comunicar, conhecer, desejar, querer, relacionar-se, numa espiral aumentativa
de maturidade que conduz ao desenvolvimento emocional do sujeito.
Estamos perante uma teoria dinâmica, que implica a existência de uma relação
interpessoal e intrapessoal. Importa reter que esta relação implica, num
primeiro momento, que alguém oriente a criança, ritme o seu percurso,
enriquecendo o seu mundo de emoção, implicando o amar (-se), o reconhecer
(-se) no afeto e pelo afeto. Este movimento inicial deve ser continuado ao longo
de todo o percurso educativo.
Desta forma a mãe marcará não somente os aspetos “femininos” do seu filho,
mas também a imagem que este terá da mulher, das suas aspirações, das
suas exigências e das suas crenças. Esta imagem, vaga e mítica, que oscila na
sua imaginação e os seus desejos entre a deusa e a prostituta, evoluirá no
contacto com as mulheres reais. Um dos problemas do homem é aprender a
ajustar essa onírica à realidade e a reconhecer na sua companheira outro
indivíduo humano. É essa onírica que nos mostram os mitos e os contos onde
as figuras femininas aparecem como princesas, animais, fadas ou bruxas,
mães ou madrastas. O mesmo acontece com a mulher que desenvolve
qualidades “viris”, ou seja o seu “pôle masculin” ou o “Animus”.
Partilhamos com Von Franz a ideia que a mulher tem, sem dúvida, uma
influência educativa e transformante sobre o homem. Inicialmente, como foi
acima mencionado, logo após o nascimento, a mãe assume inconscientemente
essa função sobre o seu filho, mas também todas as outras mulheres que vão
passando pela sua vida assumem essa função. Se este for encontrando
mulheres submissas, inseguras quanto à sua própria essência, que cedem
completamente aos seus caprichos, estas estarão a fazer com que este
negligencie a sua Anima. Pelo contrário, quando a mulher mostra uma
confiança espontânea na sua natureza feminina vai fortalecendo a Anima.
Podemos assim concluir que as personagens femininas dos contos não
representam nem a Anima, nem a mulher, mas sim as duas. Sendo que certos
157
contos se aproximam mais da representação a mulher concreta, enquanto
outros se desviam mais para uma imagem da Anima, dependendo do sexo de
quem imprime a sua marca no conto. Fazer essa distinção é extremamente
difícil, pois as duas são indissociáveis e o melhor será tentar interpretar cada
conto de acordo com as duas hipóteses.
Para poder ser feita esta interpretação há que ter em atenção que do ponto de
vista psicológico, quer nos mitos, como nos contos, as personagens são figuras
arquétipos que não têm, à primeira vista, nada a ver com seres comuns ou com
os caracteres descritos pela psicologia.
Esta ideia está bem patente nos diferentes contos em estudo, uma vez que a
figura materna materializa o papel do educador parental. Arriscamo-nos a dizer
que, neste ciclo de contos, a personagem feminina da madrasta surge como
um trunfo para mais facilmente chegar junto não só da figura materna, como
também da figura paterna, enaltecendo-lhe o seu lado feminino.
260
CEBALLOS VIRO, Ignacio. 2010. El romancero tradicional y las relaciones de parentesco: la suegra
malvada. Madrid: Universidad Complutense de Madrid. Servicio de Publicaciones. Disponível em
http://eprints.ucm.es/10606/1/T31862.pdf. [Consultado a 23.09.10]
158
velhos. O nosso propósito foi levantar algumas pistas de análise, desvendar
alguns pormenores ocultos, mas, essencialmente, reforçar a mensagem
veiculada pelo mesmo: o Ser Humano apenas conseguirá atingir o seu
desenvolvimento pleno se aprender a enfrentar as adversidades da vida,
cabendo à figura materna, como educadora, orientá-lo e apoiá-lo no seu
percurso de vida.
159
BIBLIOGRAFIA
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BIBLIOGRAFIA PASSIVA
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