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CARDOSO, Lourenço. O Branco Invisível PDF
CARDOSO, Lourenço. O Branco Invisível PDF
CARDOSO, Lourenço. O Branco Invisível PDF
Faculdade de Economia
Centro de Estudos Sociais
Programa de Mestrado e Doutoramento “Pós-Colonialismos
e Cidadania Global”
Lourenço Cardoso
O branco “invisível”:
um estudo sobre a emergência da branquitude nas
pesquisas sobre as relações raciais no Brasil
(Período: 1957 - 2007)
Coimbra
2008
Universidade de Coimbra
Faculdade de Economia
Centro de Estudos Sociais
Programa de Mestrado e Doutoramento “Pós-Colonialismos
e Cidadania Global”
Lourenço Cardoso
O branco “invisível”:
um estudo sobre a emergência da branquitude nas
pesquisas sobre as relações raciais no Brasil
(Período: 1957 - 2007)
Coimbra
Maio/2008
Universidade de Coimbra
Faculdade de Economia
Centro de Estudos Sociais
Programa de Mestrado e Doutoramento “Pós-Colonialismos
e Cidadania Global”
Lourenço Cardoso
O branco “invisível”:
um estudo sobre a emergência da branquitude nas pesquisas sobre
as relações raciais no Brasil
(Período: 1957 - 2007)
Banca Examinadora
________________________________________
Professor Doutor Boaventura de Sousa Santos
Orientador
________________________________________________
Membro
________________________________________________
Membro
Coimbra
2008
Dedico esta dissertação à Maria Aparecida da Silva Bento
com todo o meu carinho e admiração
Agradecimentos
Se por caso não tivesse concorrido no processo que me levou a conquistar a Bolsa do
Programa Internacional de Bolsas de Pós-Graduação da Fundação Ford (International
Fellowships Program - IFP), não seria possível defender esta dissertação na Universidade de
Coimbra. Expresso a minha singela gratidão para essa instituição. Sou grato a toda equipe da
Fundação Carlos Chagas que é responsável pela coordenação desse programa no Brasil, cito
particularmente: Fúlvia Rosemberg, Ida Lewkowicz, Maria Luisa Santos Ribeiro, Leandro
Feitosa Andrade, Márcia Aparecida Caxeta Pereira, Raquel Ribeiro, Meire Blanche
Lungaretti.
No curso de pós-graduação Pós-colonialismos e Cidadania Global, agradeço a todos
os responsáveis e aos professores doutores: Maria Paula Meneses, Margarida Calafate
Ribeiro, José Manuel Mendes e Elísio Estanque. Com maior ênfase, agradeço e reconheço a
dedicação do professor doutor Boaventura de Sousa Santos, por me acolher como aluno e
orientar esta dissertação.
O querido foi um orientador terno e rigoroso. Santos é uma pessoa extraordinária, um
intelectual que é uma voz dissonante contra dogmas que brutalizam as relações humanas,
mesmo quando se faz necessário se opor contra as doutrinas da própria esquerda. Ele é uma
pessoa de rara sensibilidade, cabe-lhe, portanto, a palavra afeto, a mesma ternura que lhe
dedico de forma singela e irrestrita. Ao mencionar o professor Boaventura de Sousa Santos,
não poderia deixar de citar a Lassalete Paiva, sua secretária, que é uma pessoa gentil,
generosa e profissional exemplar, e também a Alexandra Pereira e a Margarida Gomes que
resolveram pendências burocráticas relacionadas a minha bolsa IFP.
Não conseguirei citar todas as pessoas a quem sou grato, mencionaria a Rosemeire
Barbosa da Silva como a mais importante. Ela foi a primeira pessoa que me incentivou a
estudar no Centro de Estudos Sociais, além das críticas pontuais no decorrer do processo. A
Rose foi quem me recebeu em Coimbra fazendo-me sentir em casa. Ela é a grande amiga; que
me apoiou nos bons e maus momentos, será sempre impossível corresponder. Guardo um
carinho mais que especial para Nilzélia de Oliveira nosso convívio e a alegria do dia-a-dia
ficarão guardado na lembrança. A Élida Lauris foi a pessoa mais presente no decorrer desse
trabalho – além de intelectual brilhante –, é extremamente generosa e foi com quem discuti
esse texto em vários momentos. Ela é a amiga que gosto sempre de encontrar; estivemos na
direção da Associação Brasileira de Estudantes e Investigadores Brasileiros (AEI - APEB) e
no Fórum da Associação dos Estudantes e Investigadores dos Países de Língua Oficial
Portuguesa (AEI - CPLP) que foi uma experiência enriquecedora que levarei para o Brasil.
Nesse sentido, deixo uma particular menção para todos os participantes das organizações
estudantis.
No curso Pós-colonialismos e Cidadania Global tive a sorte de encontrar a Nilma
Lino Gomes que é uma intelectual do movimento negro de prestígio no Brasil, ela colaborou
em muitas das minhas tarefas do primeiro ano letivo. A minha trajetória enquanto ativista
negro foi influenciada pelos militantes negros Edmar Silva, Helio Santos e Maria Aparecida
da Silva Bento. O meu encontro com a Nilma em Coimbra simboliza o brindar desta minha
formação enquanto ativista.
Não posso deixar de mencionar a Sônia Araújo e o Elísio Macamo que ofereceram
excelentes comentários e dicas. As queridas Ana B e a Alice Cruz por causa delas será sempre
prazeroso voltar para Coimbra. Nesse momento não posso deixar de mencionar uma grande
amiga recente a Cristiana Gaspar, pessoa que tive a sorte de conhecer, trata-se de uma pessoa
bela e rara, uma pessoa com talentos múltiplos, entretanto, simples. Trata-se de uma pessoa
que muitas outras pessoas gostariam de parecer. Meu muito obrigado para Rose, Élida e Cris
sempre serão insuficientes, porque as palavras não dão conta de todo o afeto que gostaríamos
de expressar. No meu convívio com a Élida e a Cris também há um cão e um gato.
Hoje tenho um afilhado cão o “Guiço”, sempre animado, sempre persistente e com
saudade – não importa se o tempo transcorrido seriam minutos ou dias, temos muito a
aprender com esse cão. Também tenho um amigo gato, o “Guiço 1”, ele é muito diferente do
cão; desdenha das pessoas, decide o momento que oferecerá e receberá atenção. Temos
também muito que aprender com esse gato.
Há muitas pessoas maravilhosas que encontrei em Portugal: Lennita Ruggi, Marcos
Lúcio, Felipe Moraes, Eleonora Schettini M. Cunha e o Toni Praxedes – espero sempre revê-
los. Um abraço especial ao grande amigo Praxedes, pelas nossas conversas e boemia. Nesse
momento, não posso esquecer dos meus momentos no “Casarão”, quando o Felipe;
Boaventura e eu recitávamos poesias em noites agradabilíssimas, muito obrigado seu Carlos e
Elisete por sempre nos receber com alegria no seu espaço.
No Brasil, faço uma menção mais que especial para Roberto Carlos Camargo sua
colaboração com a minha pesquisa foi fundamental, novamente, agradeço ao Edmar Silva,
que sempre me incentiva e ao Lindomar Oliveira que resolveu algumas de minhas pendências
burocráticas. Nunca será demais agradecer ao Hélio Santos e a Maria Aparecida da Silva
Bento, sem me esquecer do Cuti, Márcio Barbosa, Esmeralda Ribeiro, Deise Benedito,
Antônio Rago Filho, Vera Lúcia Vieira, Dyi, Márcia Lopes, Acácio de Almeida, Teresinha
Bernardo e tantos outros.
Quanto a minha família – meu pilar fundamental –, muito obrigado pai, muito
obrigado mãe, irmãos, sobrinha e afilhado: Margarida da Conceição Cardoso, Lourenço Bispo
Cardoso, Luzinete da Conceição Cardoso, Leonardo da Conceição Cardoso, Eliete da
Conceição Cardoso, Leandro da Conceição Cardoso, José Nilson Cardoso, João da Cruz
Cardoso, Ademir Xavier, Cristina Xavier e Fernanda da Conceição Cardoso; Clayton Xavier.
Um agradecimento mais que especial para minha irmã Eliete, por ter enviado os livros
que precisei, além de resolver tantas outras questões – sem essa minha irmã estaria realmente
“perdido”. Com o mesmo carinho agradeço ao Leonardo, Leandro e a Luzinete por serem
sempre prestativos e generosos. Não posso esquecer minha irmã caçula Cristina e a minha
queridíssima sobrinha Fernanda. Com o mesmo apreço, não me esqueço do meu primo José
Nilson que é o novo irmão que veio se juntar a casa dos meus pais. Para mamãe e para papai
não existem palavras para agradecer; relembro neste momento o meu irmão Lindelso que
morreu cedo demais, guardo-o sempre na lembrança. Deixo o agradecimento mais importante
e a menção amorosa mais especial para Rita de Cássia Camargo, que é a pessoa que amo mais
que tudo.
Lista das principais siglas e abreviações
Abstract
This thesis supports the argument that the whiteness as an issue in researches on race relations
in Brazil is an emergence. The emergence of this theme relates to the influence and power of
mobilization of the black movement. To investigate the use of the theme whiteness in the
academic production in Brazil, I tried to undertake what Boaventura de Sousa Santos called
sociology of absences and emergencies.
The first part of the dissertation is the theoretical discussion of key issues related to the study
of race relations in theoretical frameworks. There was an interface between the theoretical
reflection to the Brazilian reality and the main authors in the field of cultural studies and
theories that became known as post-colonial.
In the second part, are discussed the results and conclusions that emerged from the survey
data and the implications of what is called the emergence of whiteness. The work consisted of
an empirical survey of abstracts of thesis and dissertations devoted to the study of race
relations in thirty Brazilian public universities. After examination of the abstract of thesis and
dissertations, noted that the whiteness, as a matter of research, was absent during the period
from 1960 to 2000, and emerged in the beginning of this century (2000-2007). It was
concluded that, in Brazil, the area of race relations is marked by a profound intertwining
between the actions of government, academic and theoretical reflection and mobilization of
social movements.
Prefácio............................................................................................................................... 21
PARTE I - PESQUISADOR BRANCO: “OBJETO” NEGRO REBELADO
Capítulo 1: As relações raciais no Brasil
1. Prólogo ............................................................................................................................. 29
2. Raça, negro e branco sem aspas ....................................................................................... 31
2. 1 Os termos raça, negro, racismo e étnico/racial na produção acadêmica brasileira ...32
3. A idéia de raça na sociedade brasileira............................................................................. 38
3.1 A ideologia do branqueamento...................................................................................40
3. 1. 2 Embranquecer é enegrecer.................................................................................41
3. 1. 3 A raça é inferior, portanto embranquece ...........................................................42
4. O mito da democracia racial............................................................................................. 44
4.1 O preconceito de raça existe.......................................................................................47
4. 1. 1 Preconceito, discriminação e desigualdade racial no Brasil..............................49
4. 1. 2 O persistente racismo no Brasil .........................................................................52
5. Epílogo ............................................................................................................................. 56
Capítulo 2: O negro rebelado e o movimento negro
1. Prólogo: o negro rebelado ................................................................................................ 61
2. Frente Negra Brasileira..................................................................................................... 65
3. O Teatro Experimental do Negro ..................................................................................... 68
4. Movimento Negro Unificado ........................................................................................... 71
5. Zumbi 300 anos e a elaboração de políticas anti-racistas................................................. 74
6. O movimento negro na produção acadêmica brasileira ................................................... 76
6.1 Gênero e raça ..............................................................................................................79
6.2 Movimento negro: força versus fragilidade................................................................82
7. Epílogo ............................................................................................................................. 84
Capítulo 3: O Estado brasileiro e o combate ao racismo
1. Prólogo ............................................................................................................................. 89
2. O Estado brasileiro alterna períodos de democracia com períodos de ditadura............... 91
3. Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra ............................ 95
4. Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial ................................. 97
5. Políticas de ação afirmativa.............................................................................................. 99
6. As ações afirmativas na produção acadêmica brasileira ................................................ 102
7. Debate nacional sobre as políticas de ação afirmativa ................................................... 104
8. A discriminação “justa” é uma forma emancipatória de utilizar a raça ......................... 107
PARTE II - “PROVINCIALIZAR” O BRANCO
Capítulo 4: Os principais temas sobre as relações raciais
1. Procedimentos metodológicos........................................................................................ 115
2. Hipóteses de trabalho ..................................................................................................... 118
3. Auto-reflexão.................................................................................................................. 118
3.1 Negro: usos & sentidos.............................................................................................123
4. Quadro geral da produção acadêmica brasileira sobre relações raciais ......................... 127
5. Os temas apontados pela pesquisa dos resumos de teses e dissertações (Universidade de
São Paulo: 1957-2006) ....................................................................................................... 136
6. Breves considerações finais............................................................................................ 143
Capítulo 5: A produção acadêmica nas cinco regiões
1. A pesquisa no Brasil....................................................................................................... 147
2. Resultados e discussão ................................................................................................... 155
3. Apontamentos da pesquisa ............................................................................................. 160
4. Epílogo ........................................................................................................................... 169
Capítulo 6: A branquitude no Brasil
1. Prólogo ........................................................................................................................... 173
2. A branquitude nos Estados Unidos................................................................................. 174
3. O conflito do branco anti-racista .................................................................................... 175
4. A branquitude acrítica: a superioridade racial e a pureza nacional ................................ 178
5. Branquitude: privilégio & diferenças ............................................................................. 180
6. A branquitude como “propriedade” e outros “ganhos materiais” .................................. 183
7. O branco como grupo minoritário: a branquitude na África do Sul............................... 184
8. A branquitude no Brasil.................................................................................................. 188
8.1 O branco “invisível”? ...............................................................................................190
8.2 A “patologia social do ‘branco’ brasileiro”: um artigo pioneiro ..............................191
9. A branquitude implícita e intelectuais “brancos” ou não negros ................................... 194
10. Epílogo: a emergência da branquitude ......................................................................... 198
Conclusão
O pesquisador sob suspeita: auto-reflexões finais............................................................. 204
Provincializar o branco...................................................................................................... 207
O branco “invisível” por interesse e ignorância ............................................................... 210
Bibliografia geral .................................................................................................211
Apêndice ................................................................................................................229
Prefácio
Nesta dissertação, parti da seguinte hipótese: o branco enquanto tema, nos estudos
sobre as relações raciais no Brasil, é praticamente uma ausência. Após a pesquisa que realizei
nos resumos de teses e dissertações das universidades brasileiras, principalmente da
Universidade de São Paulo, pude perceber que o branco enquanto tema não se encontrava
completamente ausente. Na realidade, depois de um período de ausência – de 1957 à 2002 –, a
branquitude tornou-se um tema emergente.
O termos “ausente” e “emergente” serão empregados no decorrer desta dissertação
com o sentido que lhes dá Boaventura de Sousa Santos quando propugna uma sociologia das
ausências e das emergências (Santos, 2006c: 86-125). Foi com base nesse referencial teórico
que desenvolvi a minha hipótese central de trabalho. Esta dissertação está dividida em duas
partes. Na primeira parte, com base em fontes secundárias, apresento os principais temas em
discussão no âmbito das relações raciais: raça, movimento negro, racismo, políticas de ação
afirmativa, entre outros. Na segunda parte, concentrar-me-ei em apresentar os detalhes da
pesquisa realizada. Farei a exposição dos dados levantados junto à Universidade de São Paulo
e junto a outras vinte e nove universidades nas cincos regiões brasileiras: Sudeste, Sul,
Centro-Oeste, Norte e Nordeste.
No levantamento bibliográfico encontrei apenas dois trabalhos semelhantes à pesquisa
que realizei. Os livros Cem anos e mais de bibliografia sobre o negro no Brasil organizado
por Kabengele Munanga (org., 2002), e Teses e dissertações sobre desigualdades
educacionais e ação afirmativa (2006) de autoria de André Brandão. A publicação de
Munanga consistiu em uma exposição extensa da bibliografia sobre o negro na sociedade
brasileira, porém, sem aspiração de analisá-la (Munanga [org.], 2002: 1-3). No que diz
respeito ao trabalho de Brandão, resume-se a uma exposição de quarenta e nove resumos, de
cinquenta e uma teses e dissertações de dezoito universidades de quatro regiões brasileiras
que são: Nordeste, Centro-Oeste, Sul e Sudeste ficando de fora a região norte do Brasil
(Brandão, 2006: 5-40). O trabalho que apresento aqui se distingue por duas razões principais:
(1) procura ser mais completo estendendo a análise para alcançar as cinco regiões brasileiras;
e (2) é um trabalho analítico que relaciona os dados levantados sobre as teses e dissertações
com os temas em debate sobre as relações raciais nomeadamente o tema da branquitude.
Na trajetória da minha dissertação, pude primeiramente perceber que os textos
acadêmicos publicados e consolidados sobre as relações raciais levam a supor que a
21
O branco “invisível”
branquitude seria uma ausência no estudo sobre a temática racial na sociedade brasileira,
sobretudo se a análise se restringir à quantidade de textos publicados com este tema. Com a
intenção de testar melhor a hipótese dessa suposta ausência, direcionei a pesquisa para as
teses e dissertações. A análise desta produção acadêmica pode trazer mais elementos que o
levantamento da literatura consolidada uma vez que, em sua maioria, estes textos ainda não
foram publicados. Apesar da minha intenção, ao realizar essa pesquisa, ter sido refletir sobre o
alcance da preocupação acerca do tema branquitude na produção acadêmica brasileira em
todas as áreas, somente encontrei produções nos seguintes campos: Ciências Humanas,
Ciências Sociais Aplicadas, Saúde e Linguística, Letras e Artes.
A branquitude refere-se à identidade racial do branco. Ruth Frankenberg, umas das
principais estudiosas desse tema, define-a “como um lugar estrutural de onde o sujeito branco
vê os outros, e a si mesmo, em uma posição de poder, em uma geografia social de raça, e
como lugar confortável e do qual se pode atribuir ao outro aquilo que não se atribui a si
mesmo” (Frankenberg apud Piza, 2002: 71; Frankenberg, 1999b: 43-51; 2004: 307-338).
Os estudos sobre a branquitude problematizam o branco enquanto tema. Esse fato é
relevante porque, ao contribuir para que se problematize tanto o branco quanto o negro, pode
repercutir no maior aprofundamento dos estudos sobre as relações raciais no Brasil (Ramos,
1995[1957]c: 163-211). A branquitude enquanto tema será detalhada no Capítulo 6 [A
branquitude no Brasil]. Esta dissertação está estruturada em seis capítulos, mais introdução e
conclusão, em que desenvolverei a hipótese central que sustenta que a branquitude seria uma
emergência nas pesquisas sobre as relações raciais e outras cinco hipóteses que serão
apresentadas no Capítulo 4.
No Capítulo 1, com base na literatura sobre as relações raciais tratarei detalhadamente
do conceito de raça, considerada como categoria analítica e de luta. Será apontado quando a
idéia de raça surge no contexto brasilero, serão detalhadas as ideologias do branqueamento e o
mito da democracia racial finalizando com uma discussão detalhada sobre o racismo no Brasil
ao mencionar as distinções entre os conceitos preconceito, preconceito de raça, discriminação
racial e desigualdades raciais.
No Capítulo 2, o principal tema abordado será o movimento negro começando pelo
resgate da rebeldia escravizada no período colonial e a sua conflituosa inserção no mundo do
mercado de trabalho. Serão também apresentadas três importantes organizações negras que
são a Frente Negra Brasileira; o Teatro Experimental do Negro e o Movimento Negro
Unificado. Também será abordado o papel da mulher negra na produção das pesquisas e, por
fim, será realizada uma reflexão apontando as forcas e as fragilidades do movimento.
22
Prefácio
23
O branco “invisível”
24
PARTE I
1. Prólogo
1
Diga-se de passagem que a população de origem ameríndia (indígena da américa), também seria considerada
degenerada porque, na hierarquia social, estaria em posição inferior ao branco eurocêntrico.
29
Pesquisador branco: “objeto” negro rebelado
2
Voltarei a esse assunto no Capítulo 3.
30
As relações raciais no Brasil
autores (Silvério, 2003: 57-87) preferem empregar o termo entre aspas para acentuar que o
estão utilizando com o significado de construto social, opto por, na maioria dos casos, não
utilizar os conceitos raça, branco ou negro com aspas.
31
Pesquisador branco: “objeto” negro rebelado
essencialista. Além disso, mesmo que a raça seja uma idéia que o opressor criou a meu
respeito, ainda estou convencido de que, no Brasil, a raça é uma idéia importante na luta
contra o racismo. Lutar pela abolição do racismo é uma maneira emancipatória da utilização
do conceito raça (Santos, 2002b: 112-116; Gomes, 2006a: 1-79).
Muitos movimentos sociais, em sua luta, utilizam a identidade coletiva de maneira
emancipatória. No caso particular do movimento negro brasileiro, no debate acerca das
políticas de ação afirmativa – tema que será abordado no Capítulo 3 –, a utilização do
conceito raça como construto social é um exemplo do uso de determinados conceitos em uma
perspectiva emancipatória. Refiro-me à emancipação com o mesmo sentido que propugna
Gomes:
32
As relações raciais no Brasil
33
Pesquisador branco: “objeto” negro rebelado
34
As relações raciais no Brasil
Gráfico 1
7%
7% 7%
7%
21%
Gráfico 2
5%
21%
11%
27%
Gráfico 3
15%
23%
8%
8%
15%
8%
23%
35
Pesquisador branco: “objeto” negro rebelado
Gráfico 4
8% 8%
51%
25%
8%
3
As universidades pesquisadas empregavam distintamente os termos sociologia e ciências sociais, tal
classificação se deve à forma como o curso de ciências sociais está organizado nas universidades brasileiras. Em
muitas universidades, as ciências sociais referem-se a uma formação geral que depois é seguida de
especialização em sociologia, ciência política ou antropologia.
36
As relações raciais no Brasil
A etnia é o termo que utilizamos para nos referirmos às características culturais – língua,
religião, costume, tradições, sentimento de lugar – que são partilhadas por um povo (…)
No que diz respeito a esses dois conceitos, esse mesmo autor chama a atenção que
etnia e raça são identidades culturais que não são fixas, portanto, não são categorias de
essência (Hall, 2005: 12-13). Concluindo, em virtude de um conceito não substituir o outro,
passou-se a utilizar comumente na literatura sobre relações raciais o conceito etnia4 junto do
conceito raça, resultando na categoria étnico/racial. Essa utilização conjunta representa, em si,
um indicativo de que esses conceitos são imprecisos para dar conta de todas as matizes de um
grupo e estarão sempre sujeitos a discussão.
O termo raça aparece pela primeira vez no século XVI será utilizado como base de
doutrina científica, em uma interpretação da história como luta natural das raças no século
XIX (Arendt, 2006: 208-216; Wieviorka, 2002: 460-461). A etnia aparece pela primeira vez
no século XVIII (Sollors, 2002: 97-104), contudo, embora normalmente ela seja empregada
separada do termo raça, ambas começarão a ser empregadas como nome composto no século
XX por causa das especificidades inerentes a cada um desses conceitos.
O processo de globalização tem proporcionado o retorno da etnia, ou melhor, tem
criado novas “identidades culturais”. Uma das razões desse fenômeno é o fluxo internacional
de pessoas da periferia para o centro do sistema mundo, como ocorre com os Estados Unidos.
Isso tem realizado uma mudança étnica (Back, 2002: 446); como consequência, os brancos,
nessa nação, agora são considerados minoria, por conseguinte, os não-brancos oriundos de
4
Além da bibliografia consultada, cf. também Poutignat e Fenart-Streiff (1998), para o conceito de etnia,
Guimarães (2002b), para o conceito de raça.
37
Pesquisador branco: “objeto” negro rebelado
uma nova fase de migração se tornaram maioria; são os grupos formados por hispanos,
asiáticos, afro-americanos (Hall, 2005: 82-84). Convém salientar que na sociedade norte-
americana, bem como nas sociedades brasileira e centro-européia o grupo branco possui mais
facilidade de rejeitar a sua pertença étnico/racial do que os não-brancos (Poutignat e Fenart-
Streiff, 1998: 74).
38
As relações raciais no Brasil
[…] Somos tentados a atribuir uma duração total de 12000 a 14000 anos ao domínio do
Homem na Terra, sendo esse tempo dividido em dois períodos: o primeiro já passou, e
pertenceu à juventude […] o segundo já começou, para testemunhar o declínio em direção à
decrepitude” (Arthur Gobineau apud Arendt, 2006: 224),
5
Os grupos neo-nazistas podem ser citados como exemplo.
39
Pesquisador branco: “objeto” negro rebelado
6
Em 1848 Auguste Comte criou uma “Sociedade Positivista”, que angariou grande número de seguidores. Entre
1851 e 1854, publicou os volumes do “Sistema de política positivista”, cujas idéias viriam fundamentar várias
correntes de pensamento político, em vários países. No Brasil a influência do positivismo de Comte traduziu-se
não só no ideário dos republicanos, mas nas ações políticas que acompanharam a proclamação da República.
Entre elas, a separação entre igreja e Estado, o estabelecimento do casamento civil, o fim do anonimato na
imprensa e a reforma educacional proposta por Benjamin Constant. Auguste Comte fundou “o positivismo”
tendo por método dois critérios: o histórico e o sistemático; outras ciências abstratas antes da Sociologia haviam
atingido a positividade: a Matemática, Astronomia, a Física, a Química e a Biologia. Assim como nestas
ciências, em sua nova ciência chamada de física social e posteriormente Sociologia, Comte usaria da observação,
da experimentação, da comparação, da classificação e da filiação histórica como método para a obtenção dos
dados reais. Cf.. Dicionário de Sociologia, 2002.
7
O darwinismo é o termo usado para designar vários processos relacionados com as ideias de Charles Darwin,
isto é, as ideias relacionadas com a seleção natural das espécies. Em 1859, quando foi publicada “A Origem das
Espécies”, de Charles Darwin, esta obra continha o princípio da seleção natural, que determina quais membros
da espécie têm mais chance de sobrevivência. As crias não são reproduções idênticas de seus pais. A cada
geração, a característica favorável torna-se mais pronunciada e mais difundida nas espécies. Com o passar dos
40
As relações raciais no Brasil
3. 1. 2 Embranquecer é enegrecer
Como já se viu, na sociedade brasileira do século XIX, o pensamento consensual da
elite estava de acordo com os pressupostos básicos da teoria de Gobineau: a idéia de uma
humanidade dividida em uma hierarquia biológica de raças, sendo a raça branca o ideal de
superioridade. Algumas idéias defendidas no período se opunham à miscigenação que era
associada à degeneração, e o mestiço a um ser degenerado. Não havia consenso, contudo,
quanto à idéia – defendida por Arthur Gobineau – de que a sociedade humana se extinguiria
naturalmente devido à mistura de raças. Nesta linha de pensamento, o médico Nina Rodrigues
teve maior expressão (Costa, 2006: 167):
séculos, a seleção natural elimina as espécies antigas e produz novas. O evolucionismo social era a teoria
associada a acadêmicos como Tylor, Lewis Henry Morgan e Herbert Spencer. Essa teoria representou uma
tentativa de formalizar o pensamento social com linhas científicas modeladas conforme a teoria biológica da
evolução. Se organismos podem se desenvolver com o passar do tempo de acordo com leis compreensíveis e
deterministas, parece então razoável que isso também seja possível para as sociedades. Cf.. Dicionário de
Sociologia, 2002.
41
Pesquisador branco: “objeto” negro rebelado
(Costa, 2006: 161). Contudo, chama atenção o fato de que ainda hoje vigore na academia
brasileira o predomínio do determinismo do pesquisador branco – objeto negro.
Nina Rodrigues produziu obras fundadoras da Antropologia brasileira e realizou
estudos pioneiros sobre cultura africana e religiosidade afro-brasileira. Em uma de suas
conclusões, sustentou que os negros se encontravam na infância da escala evolutiva, enquanto
os brancos já se encontravam na fase adulta; era um equívoco, portanto, o tratamento
igualitário entre negros e brancos. Os negros enquanto crianças deveriam ser tutelados pelos
brancos e viver sob outras leis, mesmo porque eles estavam determinados biologicamente à
criminalidade.
A miscigenação no Brasil era problemática, porque além de os negros serem
considerados inferiores, os portugueses eram tidos como brancos da “pior espécie”, um povo
atrasado e europeus de segunda categoria (Munanga, 2004: 59; Santos, 2006e: 234). Enfim,
Nina Rodrigues opõe-se, então, à mistura de raças, não só porque levava à degeneração da
raça superior como também porque o branco português não se tratava de um “branco tão
superior assim”. Esse autor ainda afirmava que a miscigenação poderia levar ao
enegrecimento (Costa, 2006: 174), ou seja, o branco enegreceria, e isso seria um retrocesso ao
desejo de embranquecimento da sociedade brasileira.
42
As relações raciais no Brasil
Dos três povos que constituíram a atual população brasileira, o que um rastro mais
profundo deixou foi por certo o português; segue-se-lhe o negro e depois o indígena. À
medida, porém, que a ação direta das últimas tende a diminuir, com a internação8 do
selvagem e a extinção do tráfico dos pretos, a influência européia tende a crescer com a
imigração e pela natural propensão para prevalecer o mais forte e o mais hábil. O mestiço é
a condição para vitória do branco, fortificando-lhe o sangue para habilitá-lo aos rigores do
clima. É em sua forma ainda grosseira uma transição necessária e útil, que caminha para
aproximar-se do tipo superior (Silvio Romero, 1953 apud Costa, 2006: 179).
Nessas palavras, Silvio Romero chamava atenção ao fato de que o clima tropical é
uma condicionante à formação populacional; encontra-se implícito nesse discurso o
determinismo geográfico; isto significa que os ameríndios e os africanos seriam povos menos
inteligentes do que os europeus, porque eram originários de regiões de climas quentes, além
de pertencerem a uma raça inferior biologicamente. Porém, devido ao seu otimismo, a mistura
de raças faria com que o brasileiro do futuro, leia-se branco, não fosse afligido por essa
degeneração climática, ao mesmo tempo que eliminaria suas características biológicas
inferiores, ou seja, sua parte negra e “ameríndia”.
Dito isso, a idéia central contida nas palavras de Silvio Romero dizem respeito ao
incentivo da imigração de brancos, principalmente italianos, alemães e austríacos. Por
resultado dessa política de incentivo à imigração, chegaram ao Brasil, naquele período:
portugueses, italianos, espanhóis, alemães e austríacos e também japoneses. No primeiro
momento, os principais grupos que chegaram foram os de italianos, portugueses e espanhóis
(Santos, 2001: 44-45). Apesar da chegada de japoneses, eles – como todos os outros grupos
não-brancos –, não eram desejados para a formação do povo brasileiro. Vale ressaltar que,
nessa nova onda migratória à formação populacional brasileira, o grupo mais indesejado de
todos eram os africanos – grupo que, no passado, era cobiçadíssimo por causa da
escravização.
Na defesa dessa idéia de que o mestiço era o caminho para o embranquecimento da
população brasileira, destaca-se igualmente o médico João Batista Lacerda. Esse autor não
comungará com a idéia de determinismo biológico e, da mesma forma que Nina Rodrigues,
procurará sustentar a inferioridade e superioridade em um foco moral e cultural. Os
argumentos propostos por Lacerda sustentam-se na idéia de raças atrasadas – negras – e raça
adiantadas – brancas – e que o convívio do branco com o negro prejudicou os dotes morais do
branco (Hofbauer, 1999: 172-173).
No que se refere ao mestiço, Nina Rodrigures sustentava que não se trata de um ser
degenerado e, sim, de um ser intermediário com tendência a se tornar branco. A sua previsão,
8
Sérgio Costa diz que Silvio Romero faz alusão ao extermínio indígena.
43
Pesquisador branco: “objeto” negro rebelado
apoiada em um diagrama elaborado pelo seu colega Roquete Pinto, antevia que o negro
desapareceria em 2012 (Schwarcz, 2007: 94-98).
Hoje, em 2008, parece improvável que o negro desapareça da sociedade brasileira
daqui a quatro anos. Porém ao assistir à televisão, no Brasil, parece que o negro realmente
desapareceu desde 1950, quando foi inaugurada a TV Tupi, primeira emissora de televisão
brasileira9(Guimarães 2004b: 80-81).
O mito da democracia racial, baseado na dupla mestiçagem biológica e cultural entre as três
raças originárias, tem uma penetração muito profunda na sociedade brasileira: exalta a idéia
de convivência harmoniosa entre os indivíduos de todas as camadas sociais e grupos
étnicos, permitindo às elites dominantes dissimular as desigualdades e impedindo os
membros das comunidades não-brancas de terem consciência dos sutis mecanismos de
exclusão da qual são vítimas na sociedade. Ou seja, encobre os conflitos raciais,
possibilitando a todos se reconhecerem como brasileiros e afastando das comunidades
9
A desigualdade racial entre negros e brancos que aparecem na televisão é muito grande, além de o negro ser
incluído de forma excludente e, em geral, no exercício de papéis subalternos.
44
As relações raciais no Brasil
De acordo com Guimarães, Freyre não inventou a expressão “democracia racial”. Ele
havia utilizado a expressão “democracia social” em uma conferência proferida em Lisboa, em
1937, intitulada Aspectos da influência da mestiçagem sobre relações sociais e de cultura
entre portugueses luso-descendentes.
De certo modo, Gilberto Freyre permaneceu em silêncio em torno dessa idéia, que era
relativamente consensual e apresentada como ideal de relação inter-racial. Durante um certo
período, a defesa desse ideal interessava a todos, inclusive a certas tendências do movimento
negro (Guimarães, 2005b: 124) que, na década de quarenta do século anterior, objetivavam
ser integrados no Brasil enquanto brasileiros, e não necessariamente enquanto negros, isto é, a
identidade negra se integraria à identidade nacional (Munanga, 2004: 127-129). Somente em
1962 Freyre tomará para si a expressão democracia racial. Esse autor apropria-se
explicitamente desta expressão em defesa da identidade mestiça, uma identidade que seria
mais do que luso-brasileira, seria luso-tropical:
O trecho acima chama atenção ao fato de que a idéia de identidade negra ou identidade
branca seria uma idéia mítica. Para Gilberto Freyre – diferentemente do que pensava Nina
Rodrigues – o ser intermediário, o mestiço, não seria um ser degenerado e, sim representaria,
a síntese do povo brasileiro, fruto das três raças matrizes: branco, negro e ameríndio.
Freyre irá contestar e desautorizar o determinismo biológico e climático, idéia
preponderante da geração anterior e, do mesmo modo, o sentimento de inferioridade, que
10
“Meus agradecimentos a quantos, pela sua presença, participam este ano, no Rio de Janeiro, da comemoração
do Dia de Camões, vindo ouvir a palavra de quem, adepto da “vária cor”, camoneana, tanto se opõe à mística da
“negritude” como ao mito da “branquitude”: dois extremos sectários que contrariam a já brasileiríssima prática
da democracia racial através da mestiçagem: uma prática que nos impõe deveres de particular solidariedade com
outros povos mestiços. Sobretudo com os do Oriente e os da África Portuguesas. Principalmente com os das
Africas negras e mestiças marcadas pela presença lusitana (Gilberto Freyre, 1962)”, Tradução de Antonio Sérgio
Alfredo Guimarães.
45
Pesquisador branco: “objeto” negro rebelado
segmentos da elite sentiam por terem sidos colonizados pelos portugueses. Argumentará
sempre em favor da colonização ibérica. Tal colonização, de certa maneira, foi superior a
todas as outras, por causa da propensão especial dos portugueses que, diferentemente de
outros povos, sabiam conviver com povos de culturas diferentes11.
As idéias de Gilberto Freyre ganharam repercussão mundial e, ainda hoje, influenciam
a ótica do estrangeiro a respeito do povo brasileiro. A idéia de um povo mestiço, no qual o
homem é malandro e a mulher mulata, constitui um estereótipo de brasileiro, que fortalece o
imaginário de que, caso não se liberte desses estereótipos, “não se trata de um país para ser
levado a sério” (Damatta, 1984: 51-75).
Antes da publicação de Casa-Grande & Senzala, diante da idéia de que não existia
preconceito racial na sociedade brasileira, um grupo de negros estadunidenses quiseram
migrar para o Brasil, ou seja, abandonar um país racista para serem acolhidos no paraíso da
democracia racial; porém não foram aceitos, pois já bastavam para elite brasileira os negros
brasileiros e, além disso, eles poderiam corromper a harmonia racial brasileira, como mostra o
trecho do documento daquela época, transcrito abaixo:
[…] entre nós, não existe propriamente preconceito de raça. Ora, a vinda de indivíduos da
raça negra, de procedência norte-americana virá criar tal preconceito no país. Poderá
despertar tal sentimentos que nós não temos (“Imigração negra” Correio da Manhã 2.8.21)
(Gomes, 2003: 307-331).
11
Nem todos os colonialismos são iguais, no que diz respeito a colonização portuguesa, cf. Santos (2006e): 211 -
255.
12
Em Gomes (1995): 99-104, vê-se uma crítica competente sobre o lugar da mulher no livro Casa-Grande &
Senzala.
46
As relações raciais no Brasil
especialmente dos países africanos de língua oficial portuguesa – nas guerras de libertação
colonial.
A partir da década de cinquenta, como se verá no Capítulo 2, o movimento negro
redireciona o discurso sobre a ideologia da democracia racial. Esse movimento social passou
a criticar aquela ideologia com severidade, pois chegou à conclusão de que o desejo, nutrido
por todos, de uma sociedade brasileira harmoniosa racialmente, colaborava para o
mascaramento do racismo no Brasil e, com a sustentação do racismo, os negros jamais seriam
integrados na identidade nacional de forma equitativa.
Se a premissa é verdadeira, ou seja, se todos somos mestiços, inclusive os brancos e os
negros, os mestiços ainda assim seriam classificados e hierarquizados socialmente,
distinguindo-se os negros dos brancos. Em contraposição à ideia de identidade mestiça
propugnada por Freyre, o movimento negro propõe a identidade negra, ou seja, a livre
autodefinição de pessoas pretas e pardas como negras. Isso seria feito em uma estratégia de
luta anti-racista, inspirada na experiência dos negros norte-americanos.
A importância dessa estratégia para a luta no movimento justifica-se pela tendência de
branqueamento da população que emerge dos censos do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE). A categoria pardo é tendencialmente assumida por brancos e pretos, o que
implica a diminuição do número de pretos nas estatísticas no intervalo de um censo a outro
(Santos, 2000: 51-59; Ramos, 1995[1957]b: 222-224).
´
13
Esse livro tornou-se uma referência fundamental nos estudos sobre relações raciais no Brasil.
47
Pesquisador branco: “objeto” negro rebelado
Fernandes e Roger Bastide14. Refiro-me ao projeto das Organizações das Nações Unidas para
Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), conhecido como Projeto UNESCO. O objetivo
desse projeto era analisar as razões que faziam com que as relações raciais fossem harmônicas
na sociedade brasileira (Maio, 1999: 141-158).
A UNESCO passou interessar-se pela experiência racial “bem sucedida” da realidade
brasileira, principalmente depois do genocídio sofrido pelo povo judeu na segunda Guerra
Mundial (Arendt, 2006: 207-211). Esse projeto ocorreu nos anos de 1951 e 1952; foi
coordenado por Roger Bastide e Florestan Fernandes na cidade São Paulo, por Thales de
Azevedo na cidade Salvador e L. A. Costa Pinto15 na cidade do Rio de Janeiro. As conclusões
de L. A. Costa Pinto, em síntese, sustentam que o preconceito de raça seria expressão dos
conflitos que ocorrem em uma sociedade de classes e seria uma reminiscência da sociedade
escravista. Esse discurso será adotado pelos sindicatos e partidos políticos de esquerda
(Bobbio, 2001: 79-87; Guimarães, 2005c: 84-85) e, ainda persiste na mentalidade
contemporânea dos segmentos de esquerda.
Além da pesquisa realizada no Rio de Janeiro, no Projeto UNESCO destacaram-se as
pesquisas realizadas em São Paulo e Salvador por apresentarem conclusões divergentes sobre
a existência do preconceito de raça. Donald Pierson chegará à conclusão de que, praticamente,
não existe preconceito de raça no Brasil; os casos ocorridos seriam irrelevantes. Isto significa
que seria verdadeira a tese freyreana de harmonia racial (Guimarães, 2005c: 77), pelo menos
no que diz respeito à capital baiana. Contudo a posição de São Paulo será aquela que vigorará
e pautará as academias brasileiras, assim como demonstra o trecho do livro Integração do
negro de Florestan Fernandes, citado abaixo:
(…) Em nome de uma igualdade perfeita no futuro, acorrentava-se “o homem de cor” aos
grilhões invisíveis do seu passado, a uma condição sub-humana de existência e a uma
disfarçada servidão eterna.
Como não podia deixar de suceder, essa orientação gerou um fruto espúrio. A idéia de que
o padrão brasileiro de relações entre “brancos” e “negros” se conformava aos fundamentos
ético-jurídicos do regime republicano vigente. Engendrou-se, assim, um dos grandes mitos
de nossos tempos: o mito da “democracia racial brasileira”. Admita-se, de passagem, que
esse mito não nasceu de um momento para outro. Ele germinou longamente, aparecendo em
todas as avaliações que pintavam o jugo escravo como contendo “muito pouco fel” e sendo
suave, doce e cristãmente humano (Fernandes, 1978, vol. I: 253-254).
14
Roger Bastide sociólogo francês que deu aulas de sociologia na Universidade de São Paulo, na década de
trinta do século passado. Na obra desse autor, destacam-se as pesquisas sobre o Candomblé – religião afro-
brasileira de matriz africana.
15
Thales de Azevedo e L. A. Costa Pinto são pesquisadores de prestígio sobre relações raciais no Brasil. No
entanto, Florestan Fernandes foi o pesquisador de maior destaque da sua geração sobre essa temática, além de ter
sido tutor intelectual, de dois outros dois grandes pesquisadores desse campo da geração seguinte, os sociólogos
Octávio Ianni e Fernando Henrique Cardoso.
48
As relações raciais no Brasil
Na história das relações raciais no Brasil, os estudiosos nem sempre utilizaram o termo
racismo, apesar de a população negra ter sido permanentemente classificada como inferior
desde a época da escravidão. Além disso, ainda persiste a controvérsia sobre a existência do
racismo na sociedade brasileira, mesmo sendo este um discurso difícil de sustentar sobretudo
depois de o trabalho de Florestan Fernandes ter constatado a existência de preconceito de raça
no Brasil e as desvantagens vividas pelos negros na sociedade de classes devido à sua
pertença étnica e racial.
49
Pesquisador branco: “objeto” negro rebelado
O efeito da raça sobre estrutura de classe e a evolução das desigualdades raciais dependerá
da emergência de movimentos raciais e das formas assumidas por estes, bem como da
forma como os movimentos raciais se ligam a outras lutas e movimentos sociais (…)
(Hasenbalg, 2005: 231).
literatura brasileira evitou utilizar a palavra pessoa negra preferindo o eufemismo pessoa de
cor (Pinto, 1998: 170-210). Essa opção terminológica está presente nas primeiras produções
acadêmicas sobre relações raciais. Em uma modesta hipótese, a mudança nos termos
adotados, bem como a posição política de resignificação da palavra negro, passou a ocorrer
nos textos acadêmicos devido à influência dos movimentos sociais identitários e, igualmente,
quando o negro torna-se pesquisador. Nesse contexto, o negro se autodefine de maneira
positiva (Munanga, 1988: 36) e, ao fazê-lo, recusa eufemismos como a denominação pessoa
de cor.
Para Thales de Azevedo, o conceito preconceito de cor não é utilizado como
eufemismo para a palavra negro, que contém implícito o conceito raça. Esse autor utilizava
esse termo para destacar que o preconceito na sociedade brasileira era realmente de cor, e não
de raça. Em outras palavras, quando a pessoa ascendia socialmente, deixava de enfrentar
preconceito, ou seja, era o dinheiro e o status que faziam com que a pessoa se tornasse branca
ou “de cor”. O sociólogo Antonio Sérgio Guimarães colaborará com essa discussão, ao realçar
que no conceito preconceito de cor encontra-se implícito o preconceito de raça, ou seja, o
preconceito de cor não deixa de ser um preconceito de raça (Guimarães, 2002b: 54), mesmo
quando expressada pela cor.
No caso de Fernando Henrique Cardoso, quando este utiliza o conceito preconceito de
cor aplica-o o mesmo significado de preconceito racial (Guimarães, 2005c: 83). Além disso,
esse autor sustentará que preconceito racial ocorria desde à época da escravidão negra no
Brasil (Guimarães, 2004a: 22).
De maneira semelhante pensava, o sociólogo Oracy Nogueira16 que sustentará a
existência, na sociedade brasileira, de preconceito de raça, ao qual atribuiu a denominação
preconceito de marca para distingui-lo do preconceito de origem, vivido pelos negros
estadunidenses. O preconceito de marca seria baseado na corporeidade, na cor da pele,
cabelos, lábios e etc., e o preconceito de origem seria baseado na hipótese de descendência
negra, mesmo que seus traços físicos sejam mais próximos dos traços do branco (Nogueira,
1998: 243). Nogueira argumenta que o preconceito de marca na sociedade brasileira não era
tão prejudicial, quanto o preconceito de origem da sociedade estadunidense. No mesmo
sentido, Marvin Harris17 vai argumentar que o preconceito de cor não vinha acompanhado de
discriminação ou segregação racial (Guimarães, 2005c: 82-83).
16
Sociólogo de prestígio no Brasil que realizou pesquisa pelo Projeto UNESCO em Itapetininga, cidade do
interior de São Paulo.
17
Antropólogo norte-americano que realizou estudos sobre relações raciais no Brasil.
51
Pesquisador branco: “objeto” negro rebelado
Até o final dos anos 1960, a maioria dos dicionários e livros escolares definiam [o racismo]
como uma doutrina, dogma, ideologia, ou conjunto de crenças. O núcleo dessa doutrina era
de que a raça determinava a cultura, e daí derivam as crenças na superioridade racial. Nos
anos 1970, a palavra foi usada em sentido ampliado para incorporar práticas e atitudes,
assim como crenças; nesse sentido, racismo [passa a] denota[r] todo o complexo de fatores
que produzem discriminação racial e, algumas vezes, frouxamente, designa também aqueles
[fatores] que produzem desvantagens raciais (Banton & Miles, 1994, p. 276 apud
Guimarães, 2004a: 25)
No que se diz respeito à relação entre racismo e colonialismo, vale a pena trazer à luz
a colaboração dos pensadores Frantz Fanon e Albert Memmi. O primeiro vai sustentar que
18
Falarei mais sobre esse assunto no Capítulo 3.
52
As relações raciais no Brasil
Aqui [Brasil], nem mesmo na era escravocrata a discriminação vinha em segundo plano. O
preconceito sempre forneceu a justificação emocional, moral e racional da discriminação.
Ele apenas servia para legitimar a apropriação da pessoa do escravo ou a exclusão do
“liberto” e do “homem livre” de certas regalias e direitos sociais. (Fernandes, 1978, vol. II:
37-38)
53
Pesquisador branco: “objeto” negro rebelado
19
O sociólgo Antonio Sérgio Alfredo Guimarães diz que “Fernandes não responsabiliza o passado pela
persistência do preconceito, mas vai buscar suas causas em fatores do presente, como a competição entre brancos
e negros no mercado de trabalho e a defesa dos privilégios estamentais” (Guimarães, 2005: 84). Nesse assunto,
no que se refere ao livro Integração do Negro da Sociedade de Classes, discordo de Guimarães e estou de
acordo com a análise de Carlos Hasenbalg.
20
Reelaboração do verso “o enganado no passado preterido no presente” do poeta Carlos de Assumpção, incluso
no poema “Protesto”, confira o site http://br.geocities.com/tamboresfalantes/doispoetas.htm, consultado em 29
de março de 2008.
54
As relações raciais no Brasil
contexto europeu; a título ilustrativo, cito a discriminação que enfrentam os imigrantes nos
países europeus e nos Estados Unidos da América (Santos, 2002a: 128).
(…) Balibar criou o conceito de “racismo sem raças”, e usa também o termo “neo-racismo”
(este último tem sido utilizado por Castles); Fanon e recentemente também Hall, fala em
“racismo cultural”; Essed cunhou o termo “etnicismo racial” (Hofbauer, 2006: 44).
Racismo é referido, em primeiro lugar, como sendo uma doutrina, quer se queira científica,
quer não, que prega a existência de raças humanas, com diferentes qualidades e habilidades,
ordenadas de tal modo que as raças formem um gradiente hierárquico de qualidades morais,
psicológicas, físicas e intelectuais (Guimarães, 2004b: 17).
55
Pesquisador branco: “objeto” negro rebelado
5. Epílogo
Este capítulo objetivou refletir sobre alguns conceitos que estarão presentes ao longo
desta dissertação, nomeadamente: raça, racismo, étnico-racial, preconceito de cor, preconceito
racial, desigualdade racial. Para a discussão desses conceitos, refleti igualmente sobre as
ideologias do branqueamento e sobre o mito da democracia racial. Além disso, justifiquei a
razão de minha escolha em não utilizar raça, branco, negro e outros termos com aspas
(Guimarães, 2005c: 194), sem deixar de mencionar que utilizo esses conceitos com a
significação de construto social.
Um dos termos principais deste trabalho, o conceito de racismo, passará a ser
empregado com maior constância somente a partir dos anos 1970, ou seja, a partir do marco
literário sobre as relações raciais Discriminação e desigualdades raciais no Brasil de Carlos
Hasenbalg. Na pesquisa realizada, o termo racismo aparece pela primeira vez em 1990 na
Universidade de Brasília, em uma dissertação de mestrado na subárea de Antropologia.
Relembro que Carlos Hasenbalg, em Discriminaçao e Desigualdades, já teorizava,
acertadamente, sobre o papel do movimento negro para promoção da igualdade racial. O
decorrer do tempo comprovou esse argumento. No ano de 1995, o Estado brasileiro
reconheceu oficialmente o racismo (Hasenbalg, 2006: 30). Nos anos 2000 tem início a política
de ação afirmativa com a reserva de cotas para negros e indígenas em algumas universidades
públicas. Nesses dois marcos da história brasileira, o movimento negro esteve em cena como
um dos protagonistas destacado.
No histórico apresentado neste capítulo sobre as relações raciais no Brasil,
identificam-se três autores “brancos” ou não-negros, como mais influentes: Gilberto Freyre,
Florestan Fernandes e Carlos Hasenbalg (Motta, 2000: 113-133). Neste capítulo, na medida
em que aponto esses autores “brancos”, isto é, autores que não se autodefinem como negros,
21
Esses autores geralmente não se autodefinem como brancos, portanto definem “os outros” que são seus objetos
de estudos preferenciais como negros. Assim como não tive, e nunca terei com alguns, já mortos, a oportunidade
de perguntá-los sobre como se definem no quesito da pertença étnica e racial, opto por denominá-los de não-
negros, porque essa classificação se encontra implícita nas produções desses autores.
56
As relações raciais no Brasil
torna-se evidente a ausência de autores que se autodefinem como negros. O negro como
protagonista e, principalmente, o papel do movimento negro serão abordados no capítulo
seguinte.
Adianto somente que, nos anos 1950, 1960 e 1970 se destacam autores negros como
Abdias do Nascimento e Alberto Guerreiro Ramos. Além disso, destacam-se o Teatro
Experimental do Negro nos anos 1950 e o Movimento Negro Unificado nos anos 1978. Nos
anos 1957, Alberto Guerreiro Ramos defenderá que a literatura sobre as relações raciais
resume-se à sociologia do negro brasileiro (Ramos, 1995[1957]c: 163-211), e
aproximadamente quarenta e cinco anos depois Maria Aparecida da Silva Bento – teórica das
questões sobre o racismo e ativista negra – recoloca essa questão nos mesmos parâmetros ao
sustentar que as relações raciais no Brasil se reduzem ao “problema do negro” (Sovik, 2004a:
365).
Maria Aparecida da Silva Bento, também, irá propor que se analisem as relações
raciais no Brasil, refletindo sobre o privilégio que o branco obtém com o racismo e
questionando a sua identidade racial branca, leia-se branquitude (Bento, 2002b: 28-32).
Regressarei a esse assunto no Capítulo 6.
Em resumo, este primeiro capítulo mostra a escassez do branco enquanto tema e,
concomitantemente, a sua preponderância no papel de pesquisador na literatura consolidada
sobre relações raciais. Com base em uma “sociologia das ausências e das emergências”
(Santos, 2006c: 86-125), caracterizei essa escassez da temática branquitude como uma
ausência. Para verificar essa hipótese e testar a extensão de tal escassez, realizei uma pesquisa
em 606 teses e dissertações em trinta universidades em todo o território nacional. Resulta dos
dados levantados junto às teses e dissertações que esta suposta ausência é na verdade uma
emergência recente.
Este primeiro capítulo sugere o branco enquanto uma ausência. A pesquisa, a ser
apresentada na segunda parte desta dissertação, irá demonstrar que os estudos da branquitude
no Brasil, de fato, depois de ausentes durante um longo período, têm emergido. As
potencialidades dessa emergência para o atual panorama da discussão sobre relações raciais
serão abordadas na Conclusão. Neste instante, somente adianto que, no final desta dissertação,
sustentarei que a emergência do tema da branquitude torna mais complexa, profunda e ampla
a análise sobre o racismo no Brasil.
57
Capítulo 2: O negro rebelado e o movimento negro
O negro rebelado e o movimento negro
1
Nesta dissertação restringirei-me à escravização negra africana e brasileira. Em relação à escravização indígena
no Brasil, cf. Monteiro (1994).
61
Pesquisador branco: “objeto” negro rebelado
Tendo ontem chegado à esta cidade vindo da cidade de Santos, aonde fui por vossa
excelência tomar conhecimento do negócio relativo ao Brigue português caçador suspeito
de ter importado africanos no Brazil; e Sumaca Rebeca suspeito de se preparar para o
mesmo tráfico: tenho a participar a Vossa Excelência que formando um processo acerca do
primeiro resultou haverem indícios (...) de ter com efeito importado seiscentos africanos na
praia de pireque e em conseqüência ficou pronunciado à prisão e livramento José Martins
dos Santos, mestre, e que diz ser também proprietário do dito Brigue. Quanto a Sumaca
Rebeca, houve equívoco no aviso da repartição da justiça de 15 do passado, pois a Sumaca
suspeita chama-se Constança; e não, mas sim igualmente o Patacho Nacional,
Empreendedor sobre cujas tripulações recaem as suspeitas de terem sabida os perpetradores
do assassinato dos oficiais ingleses. Ambas estas embarcações embarguei, e breve remeterei
à Vossa Excelência um relatório circunstanciado a este respeito (Ano: 1844, Ordem: 2442,
Remetente: Carlos Antônio de Bulhões Ribeiro – Chefe de Polícia. Destinatário: Manuel
Felizardo de Souza Mello – Presidente da Província).
2
Estes arquivos foram organizados no projeto de pesquisa Arquivos de Polícia Em São Paulo: A Capacitação
profissional na produção de instrumentos de pesquisa Arquivo do Estado de São Paulo coordenado pela
historiadora Heloisa de Faria Cruz. A duração do projeto foi de 1999 à 2001.
62
O negro rebelado e o movimento negro
Nos subúrbios desta vila acham-se trinta e tantos pretos que julgo serem escravos fugitivos
trazido de Santos como colhemos por um Fazendeiro (...) dois indivíduos livres. Afrontação
d’esta Villa acha-se aterrada, com a estada d’estes pretos aqui, pois que, constantemente
veem a povoação embriagar-se e provocão desordens e também, tanto os pretos como os
seus capitães aconselhão os escravos das fazendas dos Municipios a fugirem para Santos ou
S. Paulo e procurarão o Dr. Antônio Bento os defenderá de qualquer perseguição dos
Senhores.
A volta do esposto de V. Exª que as coisas aqui vão mal e que de um momento para outro
pode dar-se graves e invitáveis desastres por falta de força; pelo que vou solicitar de V.
Excª dontada urgência, um reforço de 15 praças pelo menos, para destacarem n’esta Villa
até melhoras este estado de cousas, devendo vir comandadas por um inferior de toda
confiança
Deus Guarde V. Ex.ª (Ano: 1888, Ordem: 2696 17 de janeiro de 1888, Remetente:
Marciliano da Costa Bezerra – delegado em exercício da Villa Santa Rita de Passa Quatro
Destinatário: Salvador Antônio Munis de Barreto de Aragão – Chefe de Polícia da
Província de São Paulo).
63
Pesquisador branco: “objeto” negro rebelado
No dia 11 do corrente um escravo dos Srs. Ferr.ª S. Guedes, deste município, assassinou ao
feitor da respectiva fazenda. O assassino acha-se preso e processado.
A mór parte dos fazendeiros deste termo têem dado liberdade aos seus escravos, rasão
porque nos achamos em condições bem melindrosas. Assim, pois, peço com toda urgência
à V. Exª se digne mandar para esta cidade uma força de 10 praças (pelo menos) e 1
commandante de confiança, para prevenir-se algum desastroso perigo. Pois os ex-escravos
vagam livremente armados de faccas e cacetes, pelo que a população se acha amedrontada.
Espero ser attendido tanto neste como no 1º pedido; ao contrário, peço in continente
exoneração do cargo.
Deus guarde V.Ex.ª (Ano: 1888, Ordem: 2696, 19 de Janeiro de 1888, Remetente: Francisco Antônio Leito –
Delegado de Polícia de Araras. Destinatário: Salvador Antônio Munis de Barreto de Aragão – Chefe de Polícia da
Província de São Paulo).
64
O negro rebelado e o movimento negro
Nesses três documentos policiais (um de 1844), verifica-se que o tráfico de africanos
ainda era largamente praticado, independentemente da proibição legal que havia tornado a
atividade um ilícito passível de punição. Dentre essas fontes, duas delas datam de 1888 – o
ano da abolição da escravatura –, e mostram o escravizado como sujeito histórico, que reage à
opressão. O sociólogo Oracy Nogueira em seu livro clássico, Preconceito de Marca, realizou
uma análise documental com fontes do século XIX, semelhantes a essa, além de jornais
daquela época. Em resumo, Nogueira mostrou que o escravizado também foi um personagem
histórico que se rebelou contra o sistema escravista (Nogueira, 1998: 111-121 e 126-127). É
possível afirmar que concorreram para o movimento de abolição da escravatura no Brasil
tanto uma pressão interna, exercida por negros livres e brancos abolicionistas, quanto uma
pressão externa, exercida no plano internacional pelo Reino Unido. Esta influência dos
britânicos sobre a administração imperial brasileira sustentava-se na ideia de que os negros
livres eram um potencial mercado consumidor para a aquisição dos produtos comercializados
pela Coroa britânica (Moura, 2004: 240-241; Hasenbalg, 2005: 86).
3
De acordo com Boaventura de Sousa Santos, “[o] ‘Sul’ seria uma métafora do sofrimento humano (2006a: 25).
Em um mesmo sentido, Maria Paula de Meneses acrescenta que, “[o] ‘Sul’ exprime todas as formas de
subordinação que o sistema capitalista mundial deu origem: expropriação, supressão, silenciamento,
diferenciação, desigualdade, etc., incluindo, por isso, toda a experiência histórica subalternizada dentro do
próprio mundo Ocidental” (2005b: 61).
65
Pesquisador branco: “objeto” negro rebelado
4
Cadomblé e Umbanda são religiões de matrizes africanas.
5
Ficou conhecido como Revolução Constitucionalista de 1932 o movimento armado ocorrido no Brasil em 1932
com objetivo de derrubar o governo provisório de Getúlio Vargas.
66
O negro rebelado e o movimento negro
6
Petrônio Domingues é historiador brasileiro formado pela USP especilista na Frente Negra Brasileira.
7
Art. 4o. – Como força política organizada, a Frente Negra Brasileira, para mais perfeitamente alcançar os seus
fins sociais, pleitará, dentro da ordem legal instituída no Brasil, os cargos eletivos de representação da Gente
Negra Brasileira, efetivando a sua ação político-social em sentido rigorosamente brasileiro (Domingues, 2005:
87).
67
Pesquisador branco: “objeto” negro rebelado
negro não possuía uma raça biologicamente inferior, contudo, possuía uma raça atrasada
culturalmente, que poderia avançar através da educação (Hofbauer, 1999: 296).
O período em que surgiu a Frente Negra Brasileira era o momento em que o Estado-
nação, na administração Getúlio Vargas, orientava a sociedade no sentido de diluir todas as
diferenças em uma identidade nacional (Hall: 2005: 47-65). Dessa forma, é possível afirmar
que a FNB lutou contra o racismo submetendo-se à lógica da integração ao Estado nacional.
Os frentenegrinos protestavam contra a discriminação racial no contexto nacional sem
associar essa luta à história da diáspora africana (Gilroy, 2001: 78-82; Almeida, 2000: 234-
236). Eles eram negros, que reivindicavam ser respeitados, enquanto cidadãos brasileiros.
Portanto, conforme afirmado anteriormente, a FNB lutou contra uma ideologia racista
universalista, o que equivale a dizer, que essa organização se opôs ao racismo com a intenção
de integrar a sociedade brasileira, sem reivindicar a sua diferença (racial) ou seu espaço
próprio, tentando desligar sua atuação de qualquer estereótipo oriundo da história do tráfico
africano transatlântico (Munanga, 2004: 127-131; Pinto, 1998: 197-198).
68
O negro rebelado e o movimento negro
1950), no qual escreviam intelectuais negros e não-negros. Ainda, realizou eventos como A
Conferência Nacional do Negro em 1949, e o I Congresso do Negro em 1950 (Lopes, 2004:
643; Nascimento, 2004: 209-224). Do mesmo modo, atuou na Constituinte de 19468 ao
promover a Convenção Nacional do Negro Brasileiro – CNNB. Como resultado dessa
convenção, foram elaboradas proposições para serem incorporadas à Constituição. Entretanto,
os parlamentares recusaram a contribuição do TEN, utilizando o argumento de que faltavam
exemplos concretos de preconceitos raciais.
Do ponto de vista programático, o TEN se propunha a resgatar os valores do negro,
trazendo de volta à baila a história da diáspora africana que, até então, continuava
desvalorizada pela sociedade brasileira (Nascimento, 2004: 210). Nesse aspecto, essa
organização se diferenciava da Frente Negra Brasileira à medida que os frentenegrinos
rejeitavam esse resgate da história associado à matriz africana (Hofbauer, 1999: 299). O TEN
foi influenciado pelo contexto global, sobretudo pelo movimento da negritude – que teve suas
idéias veiculadas pela imprensa negra dos anos cinquenta. A população negra lia, através
desses jornais, as idéias de Aimé Ceisaire, Léopold Segnhor, Léon Damas e Langston Hughes
(Leite e Cuti, 1992: 167; Césaire, 1971: 5-79).
No cenário nacional, o TEN atua no momento em que uma parcela da intelectualidade
“branca”9 passou a dialogar com o movimento negro de maneira mais direta. Intelectuais
“brancos” como Oracy Nogueira e Florestan Fernandes se aproximaram de intelectuais e
ativistas negros como Abdias do Nascimento e Guerreiro Ramos (Guimarães, 2005c: 90-91) –
e este diálogo refletirá tanto na academia, quanto na militância. Reflete-se, por exemplo, na
conclusão de Florestan Fernandes de que a democracia racial na sociedade brasileira não
passava de um mito (Fernandes, 1978, vol. I: 253-254; Munanga, 2004: 89).
Em relação ao Teatro Experimental do Negro, muito se pode acrescentar. Porém, nos
restringiremos à polêmica entre o movimento negro e a academia, que se relaciona
diretamente com o objeto desta dissertação. Neste intuito, convém dizer que o movimento
negro se encontra representado pelos intelectuais Abdias do Nascimento e Alberto Guerreiro
Ramos e, na academia, pelos intelectuais Luís Aguiar Costa Pinto e Edison Carneiro. No
decorrer do I Congresso do Negro Brasileiro, organizado pelo TEN, em 1950, ocorreu uma
controvérsia entre esses intelectuais. Costa Pinto e Edison Carneiro eram de tendência
8
Deu origem à constituição promulgada em 18 de setembro de 1946 após a ditadura do presidente Getúlio
Vargas.
9
Esses intelectuais geralmente não se autodefiniam como negros, nem como brancos, havia um silêncio sobre a
autodefinição, no entanto, eram vistos pelos militantes e intelectuais que se definiam como negros como
intelectuais brancos. No Brasil, o pesquisador branco que estuda as relações raciais não se identifica enquanto
branco, apenas identifica o seu objeto enquanto negro (Piza, 2002: 60-61).
69
Pesquisador branco: “objeto” negro rebelado
Não somos nem marxistas, nem anti-marxistas. Somos pós-marxistas, como Marx foi pós-
hegeliano, pós-feuebachiano. Não somos solipsistas. (…) O saber tem história. Como
esforço de atualização do saber, o marxismo transcende Marx, (…) Marx jamais teve o
projeto de elaborar o marxismo (Ramos 1996[1963]: 35).
No trecho acima, Guerreiro Ramos dialoga com o historiador Jacob Gorender, que
também estava ligado ao partido comunista e, como na maioria dos esquerdistas daquele
período, era otimista em relação ao futuro da União Soviética (Bobbio, 2001: 63-66; Ramos,
1996[1963]: 29-37). No que diz respeito à dualidade negro elite e negro massa, conforme
70
O negro rebelado e o movimento negro
apontou Costa Pinto, o TEN era formado tanto por negros acadêmicos (leia-se elite), quanto
por negros não-acadêmicos (leia-se massa). Em Guerreiro Ramos, além de sua participação
no Teatro Experimental do Negro, nota-se a influência do movimento da negritude; isso
influenciou para que, a partir da década de cinquenta, passasse a se autodefinir como negro
(Barbosa, 2006: 217-228) – antes se autodefinia como mulato.
Como resultado das polêmicas do Congresso de 1950, Guerreiro Ramos se empenhou
nos estudos sobre as relações raciais no Brasil. E chegou à conclusão que a sociologia
brasileira, quando se refere às relações raciais, se restringe a uma sociologia do negro. Esse
autor sustentou que “[…] no Brasil, o branco tem desfrutado do privilégio de ver o negro, sem
por este último ser visto. Nossa sociologia do negro até agora tem sido uma ilustração desse
privilégio” (Ramos, 1995[1957]c: 202). As conclusões de Guerreiro Ramos, na década de
cinquenta do século passado, podem ser transpostas para os dias atuais (Sovik, 2004b: 315-
325).
Muito ainda poderia ser acrescentado à atuação do Teatro Experimental do Negro,
contudo, torna-se necessário rumar em direção à história do Movimento Negro Unificado, que
representa outro período significativo da história do movimento negro no Brasil.
71
Pesquisador branco: “objeto” negro rebelado
488). Os efeitos dessa crise ou polarização mundial fizeram-se sentir no Brasil; durante esse
período, pode-se dizer que houve enfraquecimento dos movimentos sociais e, ao mesmo
tempo, uma união de forças na luta pela redemocratização do Brasil.
O Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial (MUCDR), nome que foi
reduzido para Movimento Negro Unificado (MNU), é fruto do período da redemocratização
brasileira e do ressurgimento dos movimentos sociais. Surge em 1978 e simboliza o marco do
movimento negro contemporâneo, caracterizado pela diversidade de ações negras, individuais
e coletivas, e por ter como principal objetivo o de expurgar o racismo da sociedade brasileira
(Santos, 1992: 45-48).
No cenário internacional, o MNU acompanhou as lutas pelos direitos civis dos negros
norte-americanos e os movimentos pela libertação das colônias africanas: em seu discurso,
sustentará a idéia de solidariedade entre todos os povos da diáspora (Hall, 2003: 341-349,
Guimarães, 2002a: 1-60). Esta organização “[…] entenderá a cultura negra como
denominação genérica para todo o tipo de manifestação cultural relacionada com diferentes
formas de resistência da população negra contra o racismo” (Hofbauer, 1999: 316).
O MNU entende a identidade negra como a disposição do negro em se autodefinir
como negro, em uma tomada de consciência que, ao questionar a idéia de que não existe
racismo, confronta o “mito da democracia racial” (Costa, 2006: 145). Esta proposta subdivide
os negros em dois grupos: (1) os “conscientes”, que se autodefinem como negros; e (2) os
“inconscientes”, que não se autodefinem como negros, mas como brancos, mestiços, ou
simplesmente recusam qualquer classificação (Munanga, 2004: 88).
Nessa empreitada, é importante ressaltar que o MNU deseja conscientizar os
mestiços10 sobre a sua situação e desvantagem sociais, com a intenção de que se tornem
sujeitos políticos na luta anti-racista. A insistência nessa estratégia política redunda na
repetição de um discurso que, muitas vezes, acaba por não atingir a maior parte do público-
alvo e, por vezes, por se tornar repetitivo, não tem o alcance que dele se espera.
A persistência da ideologia do branqueamento e do mito da democracia racial na
sociedade brasileira levanta sérios obstáculos ao propósito do MNU de construção de uma
identidade negra (Hofbauer, 1999: 221). Veja-se, por exemplo, a popularização do mito da
democracia racial a partir da década de trinta do século passado, em grande parte devido à
valorização da harmonia racial por parte do Estado – sobretudo após o governo Getúlio
Vargas (Munanga, 2004: 89).
10
O mestiço neste caso seria supostamente o hibrido do negro com o branco, geralmente classificado como
pardo pelo IBGE.
72
O negro rebelado e o movimento negro
Poderia afirmar que, no geral, o Movimento Negro Unificado não conseguiu colocar
em prática o objetivo de uma coordenação unificada das ações do movimento negro, dada sua
diversidade. No entanto, essa entidade é simbólica para o movimento negro brasileiro. Seu
surgimento em um Ato Público, em 1978, representa o momento em que o movimento negro
conseguiu visibilizar a denúncia do racismo existente na sociedade brasileira (Santos, 1992:
48).
Na atualidade, os principais quadros do movimento negro têm se relacionado de
maneira direta ou indireta com o Movimento Negro Unificado (Huntley e Guimarães [org.],
2000: 17-18) e essa construção da identidade negra faz com diferentes entidades, em suas
múltiplas manifestações, se considerem pertencentes a um único movimento negro, mesmo
quando não atuam unificadamente.
Resta dizer que se podem encontrar no Movimento Negro Unificado discursos
essencialistas em torno do argumento de que ser negro em si significa ser especial, diferentes
dos que apontei no Teatro Experimental do Negro (Hall, 2003: 347). Como sugere Guimarães
(2005c: 67), trata-se de um discurso racialista anti-racista.
No caso do MNU, o antropólogo Andreas Hofbauer mostra que essa organização
negra sustentará, em determinados discursos, a idéia que certos valores que a sociedade
branca eurocêntrica almeja já se encontravam presentes na sociedade africana; por exemplo:
liberdade, igualdade e justiça social. O maior exemplo desse legado resultou na organização
social que ficou conhecida como Quilombo dos Palmares (Hofbauer, 1999: 314). Neste tipo
de discurso, o MNU estaria invertendo a idéia racista de superioridade branco-eurocêntrica,
em função de uma superioridade negro-africana. Esse discurso mantém o racismo, invertendo
os papéis dos personagens, porque o seu argumento, por ser mítico e essencialista, não rompe,
pelo contrário, inverte a hierarquia da lógica de classificação social vigente (Santos, 2006c:
86-125; Fanon, s/d[1952]: 263-267).
Assim, diferentemente do que o Antonio Sérgio Alfredo Guimarães denominou ótica
racialista anti-racista, podem ser identificados discursos com abordagem racista anti-racista.
Não se encaixam como exemplos de uma abordagem racialista anti-racista, supostamente
exercida pelos movimentos negros, porque essa seria uma abordagem em que o recorte racial
não é necessariamente racista. Discursos de natureza racista anti-racista invertem os papéis
dos personagens e perpetuam a idéia de superioridade racial e cultural.
73
Pesquisador branco: “objeto” negro rebelado
11
Zumbi do Palmares foi o principal líder do Quilombo de Palmares, um vasto território do nordeste brasileiro
que abrigava escravizados que fugiam do regime da escravidão e outros perseguidos pela monarquia de D. Pedro
II. Foi muito difícil para o Império brasileiro destruir esse quilombo. Quando finalmente conseguiram destruir o
Quilombo de Palmares, Zumbi conseguiu escapar. Ele seria capturado depois, em 20 de Novembro de 1695,
após ser traído. Sua cabeça foi decapitada para comprovar a sua morte. Zumbi foi considerado pelo movimento
negro brasileiro um símbolo da consciência e resistência negra e a data de sua morte é feriado em cidades como
São Paulo, Santo André, Campinas, Rio de Janeiro, entre outras, e fortaleceu a pressão dos movimentos sociais
para que Zumbi viesse a ser considerado herói nacional, comemorada o dia de sua morte como feriado nacional
que seria o Dia Nacional da Consciência Negra (Lopes, 2004: 698).
74
O negro rebelado e o movimento negro
75
Pesquisador branco: “objeto” negro rebelado
O governo brasileiro não queria participar da Conferência de Durban sem que tivesse
ações concretas de combate ao racismo para relatar. Por esta razão, realizou várias reuniões
para saber quais medidas poderiam ser adotadas. Foram convidadas pessoas de diferentes
setores da sociedade, ativistas e intelectuais do movimento negro para esses encontros. O
governo receava que as pessoas ligadas à luta anti-racista sustentassem a inexistência de
atitudes concretas para a promoção da igualdade racial no Brasil e encontrassem na
Conferência de Durban uma plataforma internacional para apresentar as desigualdades raciais
em diferentes campos (educação, saúde, emprego, salário, expectativa de vida, etc.) e
fortalecer o seu discurso (Silva, 2000: 33-51 sob Nelson Valle).
A política de ação afirmativa é uma pauta que o movimento negro lançou para a
sociedade brasileira (Guimarães, 2005a: 1-12). Essa política tem gerado muitas controvérsias
ultimamente – abordarei esse assunto no próximo capítulo. A influência do movimento negro
é o principal argumento deste capítulo; essa influência é perceptível na própria história deste
movimento social identitário.
76
O negro rebelado e o movimento negro
Nessa tabela procurei perceber quando o termo movimento negro aparece nas
produções acadêmicas. O exame desse prospecto mostra que o termo surge primeiramente no
ano de 1988, na Universidade de Minas Gerais – situada na região Sudeste. O fim da década
de oitenta representa o início pragmático do período democrático – que culminou com a
eleição de Fernando Collor de Mello12 à Presidência da República –, e do surgimento e
fortalecimento de diversas organizações negras pós-MNU. A questão racial do negro no
Brasil passa a integrar o quadro de pesquisas acadêmicas a partir de 1988 e estende-se até
2006.
Gráfico 1
A emergência do termo movimento negro na UFMG em 1988
8%
8% Educação
34%
Ciências Sociais
História
34% Sociologia
8%
8%
Ciência Política
Políticas públicas
12
Fernando Collor de Mello foi o primeiro presidente eleito por eleições diretas após vinte e um anos de regime
militar. Para impossibilitar o processo de impeachment por suspeita de estar envolvido em corrupção, renunicou
ao cargo em 1992. O então vice-presidente, Itamar Franco, assumiu o cargo até 1994, quando foi sucedido pelo
presidente Fernando Henrique Cardoso.
13
As universidades pesquisadas empregavam distintamente os termos sociologia e ciências sociais, tal
classificação se deve à forma como o curso de ciências sociais está organizado nas universidades brasileiras. Em
muitas universidades, as ciências sociais referem-se a uma formação geral que depois é seguida de
especialização em sociologia, ciência política ou antropologia.
77
Pesquisador branco: “objeto” negro rebelado
apresentado o Gráfico 2, que quantifica o quadro geral das produções sobre o movimento
negro no Brasil:
Gráfico 2
Quadro geral das produções sobre o movimento negro
Número de produções sobre o movimento negro
Sudeste
50 46
45
40
35
30
Série1
25
Série2
20
Sul Nordeste
Centro-Oeste
1
5 4 4
6
1
0
Norte
5
0
0
Esse gráfico mostra os números das produções que abordaram o movimento negro
enquanto tema. Nesta ilustração, além do movimento negro aparecer enquanto termo, ele, do
mesmo modo, passou a ser tema das produções acadêmicas.
Logo abaixo, na Tabela 2, serão apresentados acadêmicos negros, influentes tanto no
espaço acadêmico, quanto no espaço da militância. Restringi-me à USP, porque, em minha
pesquisa, esta universidade é a mais destacada na produção sobre a temática racial no Brasil.
Digo que esses intelectuais são negros porque os próprios se autodenominam como negros, de
maneira explícita ou implícita (Rocha e Rosemberg, 2007: 759-799). Esta seria a identidade
negra que propõe o movimento negro, para aqueles que seriam classificados como “pardos”
pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE.
Tabela 2 – Intelectuais negros expressivos que passaram pela Universidade de São Paulo
78
O negro rebelado e o movimento negro
79
Pesquisador branco: “objeto” negro rebelado
A seguir, tem-se o Gráfico 3, que quantifica o percentual das produções que tematizam
explicitamente raça e gênero:
Gráfico 3
Percentual das produções que tematizam explicitamente raça e gênero
606
17
3%
80
O negro rebelado e o movimento negro
O Gráfico 3, elaborado com base na Tabela 3, mostra que apenas 3% do total das
produções acadêmicas abordam de maneira explícita o tema raça e gênero, apesar da maioria
das produções acadêmicas brasileiras serem produzidas por mulheres. Elas apresentaram
trabalhos em maior quantidade do que os homens em quatro regiões do País, quais sejam:
Sudeste, Sul, Norte e Nordeste.
As ilustrações expostas alhures (Gráfico 3 e Tabela 3) revelam que ainda é tímida a
articulação entre raça e gênero. Isso significa que os estudos sobre as relações raciais criticam
a universalidade do branco (Jeanson, s/d[1952]: 21, 263; Memmi, 1989: 83), sem criticar, em
geral, a universalidade do homem. Quando essa crítica se coloca, é geralmente feita pela
mulher negra. Ao observar a Tabela 3, nota-se que, dos dezessete trabalhos sobre raça e
gênero, em apenas um o autor é do sexo masculino. Isso sugere que o homem pesquisador,
ainda que atente para as questões referentes à raça, não se preocupa tanto com a relação entre
esta e o gênero, salvo algumas exceções. Essa conclusão aplica-se tanto ao pesquisador negro
quanto ao pesquisador branco, que possua ou não envolvimento com o movimento negro.
A crítica do homem enquanto universal, apesar de ser uma das fragilidades do
movimento negro e da produção acadêmica sobre relações raciais, ao mesmo tempo é um
tema emergente que tende a se fortalecer (Santos, 2006c: 86-125). Nesse âmbito, sustento a
seguinte hipótese: a articulação entre raça e gênero tende a se fortalecer no movimento negro
e na academia em virtude de as mulheres negras, dia-a-dia, fortalecerem a sua liderança
naquele movimento (Guimarães, 2000: 17-18). Na atualidade, elas têm se destacado mais do
que os homens negros e, consequentemente, a perspectiva da mulher tenderá a se refletir na
pesquisa sobre relações raciais. Isso pode ser mais um indicativo de emergência, na medida
em que as pesquisadoras negras que trabalham raça e gênero fortalecem a relevância de se
considerar o gênero nesses estudos e isso influenciar as mulheres e os homens de diferentes
pertenças étnicas e raciais.
Ao dizer isso, não sustento a idéia essencialista de que uma pessoa deve abordar a raça
e o gênero em seus trabalhos, em razão de sua identidade cultural. Apenas, refiro que, resulta
da pesquisa, a tendência de serem as mulheres o grupo que tem levantado a relação entre
género e raça. Portanto, os trabalhos nesse sentido tendem a se fortalecer na medida em que
essas, poucas mulheres, interessadas por essa questão, conseguirem influenciar outras
mulheres e os homens a problematizarem sobre a ótica da masculinidade nos estudos sobre as
relações raciais (Haraway, 1995: 23).
Ainda nesse assunto, a pesquisa sugere, além da crítica e autocrítica à ótica universal
masculina, a ampliação da visão para que o gênero seja considerado com a mesma relevância
81
Pesquisador branco: “objeto” negro rebelado
do que a raça, e isso se estende para outras identidades culturais (Hall, 2005: 44-45); essa é a
emergência que as mulheres negras e o movimento negro têm potencializado na produção
acadêmica em geral e, particularmente, no interior do seu movimento social. Em suma, a ótica
universal masculina é uma fragilidade do movimento negro que, paradoxalmente, tende a se
tornar uma força a partir do protagonismo, sobretudo das mulheres negras pertencentes ao
próprio movimento negro; mulheres negras que sugerem, de imediato, a critica à
denominação “movimento negro”, ao se autodefinirem, muitas vezes, como movimentos de
mulheres negras (Roland, 2000: 237-256). Esse fato sugere que o termo movimento negro não
abarca sua diversidade sem conflitos e contradições. A priori, as ativistas negras sugerem a
denominação movimento “negra”, isto é, a universalidade da linguagem no feminino ou,
talvez, movimento de mulheres negras e homens negros. Apesar disso, os ativistas desse
movimento social se posicionam politicamente como pertencentes ao movimento negro, que
se expressa na linguagem universal masculina, porém, com crescentes questionamentos.
Os estudos sobre as relações raciais refletem a ótica universal masculina na produção
de mulheres e homens de diferentes pertenças étnicas e raciais – mesmo que sejam
pertencentes ou não ao movimento negro. Essa é uma hipótese secundária que minha pesquisa
sugeriu; embora não a aborde exaustivamente nesta dissertação, deixo-a como apreciação
crítica ao movimento negro e à produção acadêmica sobre relações raciais.
82
O negro rebelado e o movimento negro
83
Pesquisador branco: “objeto” negro rebelado
7. Epílogo
a) A hipótese central desta dissertação objetiva sustentar que a branquitude seria um tema
emergente nos estudos sobre as relações raciais.
b) A hipótese secundária, que perpassa o desenrolar deste capítulo, visa sustentar que o
tema da branquitude foi uma pauta que o movimento negro influenciou para que fosse
incorporada pela academia.
84
O negro rebelado e o movimento negro
85
Pesquisador branco: “objeto” negro rebelado
enquanto tema, por outro lado, Maria Aparecida da Silva Bento foi pioneira ao defender a
primeira tese de doutorado acerca desse assunto e, ao organizar o livro Psicologia do
Racismo, ela – enquanto participante do movimento negro – teve o vigor para fazer com que a
branquitude se tornasse uma emergência nos estudos sobre as relações raciais. Isso não foi
possível a Guerreiro Ramos, que vivia em outro contexto histórico e, além disso, a sociedade
brasileira vivia vinte e um anos de ditadura; e Ramos não estava ligado a uma organização
negra, com a mesma intensidade que seu colega Abdias do Nascimento, fundador do TEN, ou
como Maria Aparecida da Silva, fundadora do CEERT.
O que equivale a dizer que os movimentos sociais fortaleceram-se no Brasil pós-
ditadura militar e tenderam a conquistar maiores espaços em governos mais sensíveis às suas
reivindicações. Esse é o caso da administração de Fernando Henrique Cardoso e do atual
governo de Luís Inácio Lula da Silva. O movimento negro ainda possui inúmeras
reivindicações, porém, alcançou conquistas nesses governos, nomeadamente a partir do
reconhecimento oficial do racismo na sociedade brasileira.
Este capítulo destina-se a demonstrar, principalmente, a importância do movimento
negro. Contudo, esse movimento possui suas contradições, força e fragilidades. Penso que,
entre erros e acertos, esse movimento social possui um histórico inequívoco de colaboração
para a sociedade brasileira. Entretanto, são necessárias outras ações que levem à
sensibilização da sociedade como um todo, para que o racismo deixe de ser considerado um
“problema do negro” – sobretudo do movimento negro – e se torne um problema do branco,
um problema de todos, e que seja confrontado, inclusive, por pessoas não adeptas dos
movimentos sociais.
86
Capítulo 3: O Estado brasileiro e o combate ao racismo
O Estado brasileiro e o combate ao racismo
1. Prólogo
A história brasileira foi muito influenciada pela idéia de harmonia racial, em grande
parte resultante do esforço de construção da identidade nacional por parte do Estado. Durante
o regime presidencial de Getúlio Vargas – de 1930 a 1945 e, em um segundo mandato, de
1951 a 1954 – havia a declarada orientação para que as diferenças se integrassem em uma
única identidade mestra (Munanga, 2004: 137; Hall, 2005: 20-21). No caso da pertença étnica
e racial, o próprio Estado brasileiro tornava público e notório a idéia de que o Brasil era um
“paraíso racial”, um modelo a ser seguido pelo mundo, principalmente após as atrocidades
racistas praticadas pelos nazistas durante a segunda Guerra Mundial (Wallerstein, 2000: 15).
Somente após os vinte e um anos de ditadura militar no Brasil (1964-1985) é que o
Estado brasileiro tem caminhado no sentido de reconhecer as clivagens existentes no conceito
de identidade nacional. Nos anos 1990, sobretudo na presidência de Fernando Henrique
Cardoso, o governo absorveu algumas pautas dos movimentos sociais, dentre elas, a do
movimento negro. Isso resultou, primeiramente, no reconhecimento oficial do racismo na
sociedade brasileira e, depois, na implementação de políticas de ação afirmativa
nomeadamente nas regras de acesso às universidades públicas.
As políticas de ação afirmativa representaram uma maneira de a administração
Fernando Henrique Cardoso expressar à comunidade internacional que o Estado brasileiro –
além de reconhecer o racismo – também executa ações concretas de combate às desigualdades
provocadas pela prática de racismo e preconceito racial. Além disso, fortaleceram a posição
do Estado enquanto Estado intercultural, isto é, uma entidade que, em vez de impingir um
conceito agregador e universalista de identidade, permite que a sociedade, no geral, e as
organizações da sociedade civil, em particular, gerenciem suas identidades culturais
(Guimarães, 2006: 278; Santos, 2005: 8-10; Beissinger e Young, 2002: 19-49).
Na atualidade, pode-se afirmar que as políticas de ação afirmativa compõem a
principal pauta do movimento negro. A disputa política em torno da promoção da igualdade
racial, inclusive pelo interesse despertado pela mídia, tem repercutido em todo o território
brasileiro.
Com a redemocratização política, a relação entre o Estado brasileiro, a luta anti-racista
e a pressão política exercida pelo movimento negro reflete-se na atual constituição, que
criminalizou a prática de racismo; na criação e nos trabalhos da Fundação Cultural Palmares
− fundada em 1988; e na institucionalização de Zumbi dos Palmares como herói nacional, em
1995.
89
Pesquisador branco: “objeto” negro rebelado
90
O Estado brasileiro e o combate ao racismo
91
Pesquisador branco: “objeto” negro rebelado
chamado de Colégio Eleitoral. O primeiro presidente militar nesse sistema foi general Castelo
Branco, que prometeu levar o Brasil de volta às eleições democráticas – contudo o país
continuaria a viver um longo período governado pela ditatura militar. O presidente Castelo
Branco sofreu pressões da “linha dura” – vertente arbitrária das Forças Armadas – e
inaugurou os Atos Institucionais (Santos, 1992: 66-67).
Esse foi um período de pressão pela redemocratização através dos movimentos
estudantis, segmentos industriais e políticos de oposição. Neste burbúrio, assumiu a
presidência o general Emílio Garrastazu Médici que, em um primeiro ato de governo,
decretou o Ato Institucional Nº 5 (AI- 5) que suspendeu os direitos civis e políticos de todos
os cidadãos brasileiros. Esse Ato, diferente dos outros, não tinha data de vencimento e
sobrepôs-se à Constituição. O Governo Médici foi o período mais autoritário do regime
militar – o funcionamento do Congresso era limitado.
A partir de 1974, os militares assumiram um discurso que propunha uma lenta e
gradual redemocratização; esse processo seria coordenado pela junta militar que ainda se
encontrava no poder, e todos os direitos civis e políticos ainda estariam suspensos, em uma
espécie de “moratória democrática”. Ou seja, ainda haveria a arbitrariedade do governo
militar, ainda censura e opressão aos movimentos sociais. O presidente responsável pelo
início desse novo discurso político foi o general Ernesto Geisel. Portanto, esse presidente
iniciou o processo de “liberalização” que levaria o Brasil de forma gradual ao Estado
democrático.
Uns dos pilares de sustentação do regime militar foi o controle da economia. Durante
os anos 1970, o governo Geisel enfrentou a crise do Petróleo e, como uma resposta à crise
petrolífera de 1973, iniciou um projeto de expansão industrial e colonização tardia da
Amazônia, que resultaria em gastos públicos que fizeram crescer a economia brasileira – o
que ficou conhecido em todo o mundo como “o milagre econômico brasileiro”. Todavia, essa
política de gastos públicos e interferência direta na economia duplicou a divida externa
brasileira. O aumento da dívida associado à falta de direitos políticos e civis deu lugar à
insatisfação generalizada em relação ao regime militar. Nesse momento de tensão social, a
Igreja Católica assumiu um papel importante como catalizadora das críticas ao regime,
juntando-se aos reclames populares pelo fim da tortura no Brasil. Na presidência de Geisel
esperava-se que realmente o Brasil caminhasse para redemocratização e, imediatamente,
eliminasse as torturas (Coimbra, 2001: 11-19).
O presidente Geisel expressou seu desejo de uma redemocratização gradual, isso
dependeria de sua habilidade de lidar com as corporações militares, em especial, os “linha
92
O Estado brasileiro e o combate ao racismo
dura” da ala dos militares. Esse governo já sentia mais a pressão da sociedade civil. Foi
pressionado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) especialmente quanto ao
desaparecimento de pessoas. Além dos movimentos em favor da redemocratização, outro
fator importante que concorreu para o enfraquecimento do regime militar foi o crescimento da
representação política do partido de oposição ao regime.
O regime ditatorial militar possuía um sistema bipartidário: de um lado, a ARENA,
partido da situação; de outro lado, o MDB, partido da oposição. Os governadores eram eleitos
de forma indireta, enquanto os deputados eram escolhidos de forma direta. O presidente
Geisel permitiu a participação da oposição no programa eleitoral difundido na televisão e, em
consequência disso, o número de candidatos eleitos surpreendeu o próprio MDB.
Na eleição posterior, o governo Geisel tratou de mudar as regras do jogo, criando os
“senadores biônicos” – leia-se, não eleitos diretamente – para manter o controle político do
país nas mãos da junta militar. A sua política de liberalização estava fugindo de seu controle;
o resultado das eleições de 1974 indicou que o regime militar não conseguia mais dissimular
que não tinha apoio popular. A crítica da oposição na campanha eleitoral atacou,
principalmente, três temas: justiça social, liberdades civis, e desnacionalização.
A pressão para redemocratização aumentava; a morte do jornalista Vladimir Herzog,
possivelmente assassinato, depois de ter sido torturado, desencadeou intensas manifestações
da igreja e da sociedade civil. A morte de Herzog levou o presidente Geisel a demitir um
general, sem consulta da junta militar. Em 1978, a junta militar, que ainda controlava o
executivo, elege o general João Baptista Figueiredo, o último presidente do regime ditatorial
militar.
O presidente Figueiredo assumiu o governo no momento em que toda sociedade civil e
o partido de oposição MDB reivindicavam a redemocratização; surgiram novas lideranças
sem nenhuma ligação aos movimentos existentes antes de 1964, como os sindicalistas do
ABC1. Além dessas novas lideranças, a Lei de Anistia propiciou o retorno de políticos de
esquerda que foram exilados durante as tensões pré-1964, dentre eles, Leonel Brizola –
destacado político de oposição ao regime.
Na transição do governo ditatorial para o democrático foi pensado em difundir a idéia
de um sistema multipartidário, que enfraqueceria e dividiria a oposição, e nisso o governo
manter-se-ia no poder, mesmo com eleições diretas (Codato, 2005: 83-106).
1 O chamado ABC paulista era formado pelas cidades de Santo André, São Bernardo e São Caetano – berço
industrial que projetou nacionalmente o atual presidente da República Luís Inácio Lula da Silva. Em 1978,
ocorreu uma greve histórica sob a liderança do sindicalista Lula.
93
Pesquisador branco: “objeto” negro rebelado
No fim de 1979, a ARENA virou PDS, o MDB virou PMDB, ressurgiram o PTB, foi
criado o PDT e o PT2. Nas eleições de 1982, elegeram-se pelo voto direito do povo todos os
ocupantes de cargos legislativos, isto é, estava excluída a possibilidade de escolha do
candidato ao cargo de presidente da República. A oposição conseguiu a maior porcentagem
das cadeiras no Congresso, entretanto, não eram maioria porque estavam divididos e, além
disso, a oposição igualmente ganhou o governo dos principais Estados da Federação.
Nas eleições presidenciais de 1985, nem os militares da linha de Figueiredo, nem os
opositores tinham um consenso quanto ao nome de um candidato para presidência da
República que representasse a “situação”, o nome sugerido fora o do político Paulo Maluf, ex-
governador de São Paulo, nomeado pelo regime militar; pela “oposição”, o nome indicado
fora o do político Tancredo Neves que, através de eleições indiretas do Colégio Eleitoral, se
sagrou presidente do Brasil.
Finalmente, depois de vinte e um anos, um civil ocuparia o cargo de presidente do
Brasil. Tancredo Neves morreu antes de tomar posse e seu vice, José Sarney, assumiu o cargo
Brasil. Em 1989, Fernando Collor de Mello conseguiu a maioria de votos necessários para ser
eleito presidente. Ele foi o primeiro presidente eleito diretamente desde o governo de Jânio
Quadros. Fernando Collor de Mello enfrentou um processo de impeachment dois anos depois
de eleito, por denúncias de corrupção. Neste ínterim, assumiu seu vice-presidente, Itamar
Franco. No governo Itamar, popularizou-se o Ministro da Fazenda, Fernando Henrique
Cardoso sobretudo devido às medidas adotadas bem-sucedidas de combate à inflação
incorporadas em um plano econômico denominado Plano Real (Guimarães, 2006: 269-287).
Em 1994, Fernando Henrique Cardoso assumia a Presidência da República amparado
pela popularidade do Plano Real do governo Itamar Franco. O combate à inflação trouxe um
novo significado à redemocratização, uma vez que os altos índices de inflação eram tidos
como uma herança do regime militar. Esse presidente conseguiu governar até ao fim do seu
mandato, e em 1998 foi reeleito, ainda devido à estabilidade econômica do Plano Real.
Em janeiro de 2002, Luis Inácio Lula da Silva, o líder sindical que surgiu no cenário
nacional durante ditatura militar, em 1978, assume a presidência, sendo o primeiro presidente
do Brasil de origem operária. Em função da reeleição de 2006, a sua presidência continuará
em curso até 2010. Tanto a eleição, quanto a reeleição de Lula simbolizam a consolidação e o
2
Aliança Nacional Renovadora (ARENA), Partido Democrático Social (PDS), Movimento Democrático
Brasileiro (MDB), Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), Partido Democrático Trabalhista (PDT) e Partido dos
Trabalhadores (PT).
94
O Estado brasileiro e o combate ao racismo
95
Pesquisador branco: “objeto” negro rebelado
3
PSDB: Partido da Social Democracia Brasileira.
96
O Estado brasileiro e o combate ao racismo
97
Pesquisador branco: “objeto” negro rebelado
ministério, a mesma saída foi utilizada na criação da Secretaria Especial de Políticas para as
Mulheres. Essa “singela” atitude indica que as políticas de reconhecimento da diferença
apesar de institucionalizadas, não são tratadas com a mesma estrutura e orçamento com que
são tratados os temas das pastas chefiadas pelos ministros de fato.
O que se pode intuir é que o presidente Lula absorve uma reivindicação dos
movimentos sociais ao criar a Seppir, porém, ao mesmo tempo, indica que o conflito racial
não é uma questão no topo da agenda política. Essa é uma tarefa que fica a cargo dos
movimentos sociais e organizações da sociedade civil: visibilizar aos governos a relevância da
promoção de políticas públicas do Estado nação que desestimulem a discriminação e sigam a
trilha da supressão das desigualdades, no caso em questão, do racismo e da desigualdade
racial um problema latente que grande parcela da população brasileira enfrenta no cotidiano.
A trajetória para uma democracia de alta intensidade fará com que o capitalismo entre
em choque com a democracia (Santos, 2006h: 345). No caso da administração Lula, ainda que
se verifique uma maior proximidade do governo com as questões levantadas pelos
movimentos sociais, observa-se que não é forte a tendência crítica contra a atual política
econômica, por muitos considerada uma continuidade da política econômica neoliberal do
governo antecedente (Guimarães, 2006: 277-280).
No que se refere à Seppir, a crítica mais freqüente refere-se à sua atuação de fato, no
sentido que não seja apenas simbólica. Em oposição a essa crítica, a Secretaria presta contas
publicamente de suas tarefas: o acompanhamento dos diferentes ministérios e outros órgãos
do governo objetivando a sensibilização para que coloquem em suas pautas a promoção da
igualdade racial, promoção de seminários nacionais, participação em seminários
internacionais, atenção aos acordos internacionais que visam a eliminação de todas as formas
de discriminação “injusta”, auxílio ao Ministério das Relações Exteriores no sentido de
estreitar a relação entre o Brasil e os países africanos, principalmente, os de língua oficial
portuguesa (PALOP). Da mesma forma, acompanhou e colaborou com a legalização das
terras dos remanescentes de quilombos, além de incentivar as políticas públicas para esse
grupo e, finalmente, participou, promoveu e estimulou as discussões sobre as políticas de ação
afirmativa, principalmente, as destinadas a negros e indígenas e que estão sendo aplicadas no
Brasil (Seppir, 2006: 6-155).
Ao que parece, a Seppir encontra-se longe de conseguir alcançar um maior espaço
dentro do governo Lula e também tem sido criticada pelo movimento negro. No entanto, até o
presente momento, a Seppir não tem conseguido se fortalecer a ponto de suas sugestões serem
consideradas significativas por outros ministérios e pelo próprio Presidente da República.
98
O Estado brasileiro e o combate ao racismo
Como mencionado, esse órgão governamental foi uma resposta da administração Lula ao
movimento negro, porém é necessário ir além, levando-se em conta que esse governo se
mostra mais sensível às reivindicações dos movimentos sociais.
Dito isso, convém admitir que, tanto o governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva
quanto a Seppir têm suas realizações em curso; somente em um futuro próximo será possível
avaliar melhor os impactos de suas ações na sociedade, ainda não é possível avaliar
completamente esse ciclo. Nessa mesma linha de raciocínio, é possível dizer que somente
daqui a alguns anos a sociedade brasileira absorverá e compreenderá melhor o impacto das
políticas de ação afirmativa.
A criação da Seppir é inequivocamente importante, por ser um produto de uma relação
entre movimento negro e o Estado que se inicia com o Conselho do Negro em 1984. Porém,
esta Secretaria ainda não pode ser considerado um exemplo bem-sucedido de uma prática
democrática de “alta intensidade” do governo. Deve-se considerar que, apesar de, neste
momento, ser possível identificar um certo direcionamento do governo federal no que respeita
às políticas de consagração do princípio da igualdade e do reconhecimento da diferença, todas
as ações, principalmente as que ameaçam as regras de distribuição de recursos vigentes,
sempre encontram limites difíceis de transpor (Santos, 2006h: 343). Mesmo porque, o
governo Lula também não pretende entrar em conflito com os interesses do mercado nacional
e internacional (Santos, 2006g: 299).
Isso significa que o papel destinado à Seppir, dado seus limites estruturais e as
limitações do próprio governo, restringe-se à minimização dos conflitos raciais. Esse é um dos
motivos que faz com que os espaços institucionais não possam substituir o papel dos
movimentos sociais. Contudo, as organizações da sociedade civil e os movimentos sociais
podem fortalecer os órgãos governamentais para que sejam aprofundadas políticas oficiais
pautadas no promoção da igualdade e no reconhecimento da diferença, de forma que o Estado
brasileiro seja pressionado permanentemente a não se esquivar da tarefa de promover uma
justiça distributiva.
99
Pesquisador branco: “objeto” negro rebelado
4
Foi presidente dos Estados Unidos da América de 1961 até 1963.
100
O Estado brasileiro e o combate ao racismo
a expressão com uma designação “negativa” (Chomsky, 2002: 16-72), e, assim, desestimular
a adoção de políticas compensatórias.
Da mesma forma como a expressão cotas para negros foi cunhada de forma pejorativa
na sociedade brasileira, semelhante episódio foi testemunhado, em 2004, em Portugal, com as
inúmeras reportagens difundidas na mídia portuguesa sobre o barco Borndiep que pertencia a
uma ONG holandesa – Women on Waves – que ficou conhecido como Barco do aborto. O
Borndiep foi impedido de entrar nas águas territoriais portuguesas, não podendo participar de
um evento de sensibilização a favor da interrupção voluntária da gravidez. A designação
Barco do aborto criada pela mídia portuguesa tinha intenção de expressar uma idéia pejorativa
que seria naturalmente associada à reivindicação política de descriminalização da interrupção
voluntária da gravidez, como apontou o sociólogo José Manuel Mendes (Mendes, 2004: 147-
158).
As políticas de ação afirmativa referem-se a um conjunto de estratégias e iniciativas
que visam favorecer grupos sociais que se encontram em desvantagem social, em virtude de
discriminações “injustas”. O sistema de cotas seria uma dessas modalidades, todavia, existem
outras estratégias como:
Vale sublinhar que, as políticas de ação afirmativa são estratégias que ainda possuem
pouco tempo de existência na história da luta anti-racista. Todavia, elas já foram aplicadas na
Inglaterra, Canadá, Índia, Alemanha, Austrália, Nova Zelândia, Malásia e outros territórios
(Munanga, 2003: 117). No Brasil, um marco importante na história da ação afirmativa
101
Pesquisador branco: “objeto” negro rebelado
ocorreu em 1991: o Partido dos Trabalhadores (PT) reservou uma cota de 30% para as
mulheres concorrerem a cargos eletivos (Soares, 2000: 33-50). Em 1997, foi aprovada a lei
que instituiu a adoção de cotas por parte dos partidos políticos de forma a garantir a
participação das mulheres nos processos eleitorais5. Ainda nesse âmbito, a Constituição da
República Brasileira de 1988 também inclui dispositivos de discriminação positiva como, por
exemplo, a reserva de vagas para pessoas portadoras de necessidades especiais nos concursos
públicos. Contudo, apesar desse histórico, a controvérsia nacional somente ocorreu,
estimulada pela mídia hegemônica, quando a Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ) resolveu adotar cotas destinadas a estudantes que se autodefiniam como negros
(Costa, 2006: 148).
As tabelas e os gráficos que serão apresentados refletem, na pesquisa realizada nas 606
teses e dissertações, a produção de teses dedicadas ao tema das ações afirmativas.
5
Lei nº 9.504/97. No ano de 1995, a Lei nº 9.100 já tinha instituído cotas para a candidatura de mulheres nas
eleições mas apenas para as câmaras municipais.
102
O Estado brasileiro e o combate ao racismo
Gráfico 1
A emergência do termo ações afirmativas na UNB em 1999
25%
24%
13%
25%
13%
103
Pesquisador branco: “objeto” negro rebelado
12 Sudeste
11 Centro-Oeste
9
10
Série1
6 Nordeste
3 Série2
Sul
4
1
Norte
2 1
6
Cf. http://www.foro-latino.org/info_flape/info_pdf/info-flape_52.pdf
104
O Estado brasileiro e o combate ao racismo
Contra A favor
Dificuldade de definir quem é negro. Recomenda-se o princípio da autodefinição.
A implantação dessa política nos EUA combateu a
Abandono dessa política nos EUA, porque não
discriminação racial “injusta” e colaborou para a
colaborou contra discriminação racial “injusta”.
mobilidade social de pessoas negras.
Não há divergências sobre a destinação de políticas
voltadas às pessoas discriminadas “injustamente” em
Por que a medida não é destinada aos povos indígenas?
virtude de serem indígenas, mulheres, homossexuais,
portadores de necessidades especiais, etc.
Sendo a raça enquanto construto social um critério
O reconhecimento do conceito raça vai contra a idéia inequívoco que leva às desigualdades entre negros e
de integração do povo brasileiro. brancos não se pode invisibilizá-la quando se pretende
suprimir essa injustiça social.
Trata-se de um risco provável, no entanto, devido ao
estereótipo pejorativo atribuído aos negros, os
oportunistas não seriam em excesso. Além disso, trata-
As políticas de ação afirmativa levariam oportunistas
se de novo momento de reflexão sobre o racismo no
aproveitarem da situação.
Brasil, porque as políticas compensatórias acontecem
em um dos raros momentos em que não se perde, pelo
contrário, se ganha com a identidade negra.
A história mostra que as medidas universalistas não
são suficientes, porque elas estão fundamentadas no
Medidas universalistas teriam o mesmo efeito. princípio da igualdade, e para o combate à exclusão
faz-se necessário também o princípio do
reconhecimento da diferença.
As políticas de ação afirmativa colaboram para o
debate sobre o racismo no Brasil; mais importante do
Não existe na sociedade brasileira um consenso sobre
que a busca de um único consenso, é trilhar no
a desigualdade causada pela raça.
caminho da abolição do racismo, que afeta muitas
pessoas no mundo.
Ataca a classificação social hierárquica através da
Reforçariam a classificação social hierárquica.
garantia de igualdade de oportunidades.
Os princípios da constituição são amplos e abarcam
uma multiplicidade de interpretações. Uma
Ferem os princípios constitucionais brasileiros.
interpretação sistemática da constituição brasileira
oferece elementos de defesa da discriminação positiva.
No que tange a esse debate sobre políticas de ação afirmativa, estou de acordo com
aqueles que argumentam a respeito da sua importância. Para citar apenas quatro autores de
destaque na academia, cujos argumentos se confrontam nesse debate, situaria Kabengele
Munanga e Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, na posição a favor das políticas de ação
afirmativa; e Ivone Maggie e Peter Fry, na posição contrária.
105
Pesquisador branco: “objeto” negro rebelado
No que se refere à posição do movimento negro, não se faz necessário referi-la, porque
já foi mencionado que esse movimento social foi o principal responsável para que a academia
e o próprio Estado brasileiro absorvessem as políticas de ação afirmativa (Hofbauer, 2006: 9-
56).
Dito isso, um dos grandes debates em torno das políticas de ação afirmativa leva a
academia a se deparar novamente com a idéia de democracia racial – que abordamos no
Capítulo 1. Ou seja, um dos argumentos contrários às políticas de ação afirmativa refere-se ao
fato de que ele vai contra a idéia de democracia racial brasileira, que mesmo que seja mítica,
faz parte da tradição cultural brasileira (DaMatta, 1984: 47). Isto é, somos “mestiços”,
portanto, não faria parte de nossa tradição cultural a idéia bipolar negro e branco, que se trata
de influência “abusiva” da experiência dos negros estadunidenses, proposta pelo movimento
negro (Guimarães, 2002b: 55; Maggie e Fry, 2004: 67-80).
À primeira vista, poucos se opõem que uma nação objetive uma relação inter-racial
harmoniosa. Porém, outras questões foram colocadas, primeiramente, pelo movimento negro,
liderado pelo sociólogo Guerreiro Ramos e Abdias do Nascimento e, em segundo, pela Escola
Paulista de Sociologia, liderada pelo sociólogo Florestan Fernandes; elas são as seguintes:
1) Como foi argumentado, a democracia racial nunca existiu; trata-se de um mito, portanto,
seria falso se referir ao passado e também ao presente do Brasil, como exemplo de
sociedade de relacionamento inter-racial harmonioso.
2) O mito da democracia racial tem colaborado para a reprodução das desigualdades raciais,
além de servir de base teórica para omissão, no que diz respeito ao preconceito racial,
racismo e discriminação “injusta”.
Para completar, a idéia do mestiço como autêntico brasileiro leva ao ocultamento de
outras identidades culturais (gênero, pertença étnica e racial, classe e outras) na defesa de uma
identidade nacional supostamente homogênea (Hall, 2005: 21).
Como demonstrei no capítulo anterior, o próprio movimento negro, durante a atuação
da Frente Negra Brasileira, estava de acordo com esse princípio, no entanto, a experiência
histórica mostrou, e os movimentos sociais e setores da academia perceberam, que enquanto
houver racismo, o negro se integra na sociedade brasileira de forma excludente, isto é, sempre
em posição hierárquica inferior àqueles classificados socialmente enquanto brancos.
Diante disso, o movimento negro passou a propor se integrar à nação com o princípio
de reconhecimento de sua igualdade enquanto brasileiro e sua distinção enquanto negro.
Resumiria essa nova postura da militância negra a partir da premissa intercultural proposta
pelo sociólogo Boaventura de Sousa Santos: “temos o direito de ser iguais sempre que a
106
O Estado brasileiro e o combate ao racismo
diferença nos inferioriza; temos o direito de ser diferentes sempre que a igualdade nos
descaracteriza” (Santos, 2006d: 290).
Na idéia de mestiço como autêntico povo brasileiro subjaz a ideologia da democracia
racial. O Estado brasileiro não reconheceria o negro na sua distinção, apenas o reconheceria
como igual, ou seja, brasileiro; porém em virtude do racismo da sociedade brasileira, essa
diferença invisibilizada é vivida no cotidiano, levando a inferiorização daquele classificado
como negro, ao mesmo tempo, em que mantém os privilégios daquele classificado como
branco. Propugnar a democracia racial, mesmo como um futuro desejado, faz com que se
fechem os olhos para opressão do presente, evitando que haja concretamente contra a
discriminação “injusta”.
No que refere à crítica dirigida, sobretudo ao movimento negro, no sentido de que se
está propondo uma sociedade brasileira bipolar dividida entre negros e brancos (Maggie e
Fry, 2004: 67-80). Eis os argumentos de Kabengele Munanga:
(…) Essa integração das diversidades ou pluralidades culturais é o que caracterizaria, a meu
ver, o assimilacionismo brasileiro e faz com que a chamada cultura nacional, feita de colcha
de retalhos e não de síntese, não impeça a produção cultural das minorias étnicas, apesar da
repressão que existiu no passado, mas apenas consiga inibir a expressão política dessas
enquanto oposição dentro do contexto nacional
(…)
A luta dos movimentos negros brasileiros contemporâneos, que enfatiza muito o resgate de
sua identidade étnica e a construção de uma sociedade pluriracial e pluricultural na qual o
mulato possa solidarizar-se com o negro, em vez de ver suas conquistas drenadas no grupo
branco, desmente a idéia de uma identidade mestiça conscientemente consolidada
(Munanga, 2004: 118).
Como havia dito no primeiro capítulo, ainda que a raça seja uma idéia que o opressor
criou a respeito do outro, no Brasil, a raça enquanto construto social é uma idéia
7
Em sua obra “O povo brasileiro”, Darcy Ribeiro sustentava a idéia de identidade mestiça brasileira, uma idéia,
portanto, de unidade cultural.
107
Pesquisador branco: “objeto” negro rebelado
Por seu lado, os caminhos emancipatórios, de que fala Boaventura de Sousa Santos,
também eles funcionam segundo modelos ambivalentes, sob constelações, na base das
quais os grupos e as pessoas promovem hierarquias discrepantes, por vezes antagónicas,
onde as igualdades e as diferenças capacitantes se inscrevem. Para evitar o risco de
trivializar o conceito de emancipação – porque, se ela está em todo lado, não está em lado
nenhum – há que situar as propostas emancipatórias em proporções adequadas. É esse o
objetivo de uma teoria crítica pós-moderna, que passa, desde logo, pela identificação dos
múltiplos lugares de opressão e suas possíveis interligações. Dir-se-á que a própria
identificação de tais situações constitui em si mesma um primeiro passo para orientação
emancipatória da acção, já que a nomeação pressupõe a existência de actores com
capacidade de categorizar relações enquanto opressivas (Estanque, 2004: 300).
108
O Estado brasileiro e o combate ao racismo
as políticas de discriminações “justas” não sejam uma resposta de “baixo para cima” e contra
a manutenção do status quo.
Não convém esquecer das críticas à utilização do conceito de raça na luta anti-racista
(Gilroy, 1998: 838-847); refiro-me nomeadamente ao teórico das questões sobre o racismo
Paul Gilroy. Esse assunto já foi abordado no primeiro capítulo; agora, somente gostaria de
acrescentar que os argumentos de Gilroy me levam a uma auto-crítica e necessidade de
reavaliação da utilização do conceito raça no cenário brasileiro. Ainda que a raça seja
empregada de forma emancipatória, como no exemplo das políticas de ação afirmativa – que
também se referem a uma prática de “essencialismo estratégico” apontado por Avtar Brah
(2006: 375) –, não é prudente a abstenção da crítica à idéia de essencialismo colocadas
sobretudo pelos estudos culturais e pós-coloniais (Costa, 2006: 83).
A raça tanto pode ser encarada de maneira emancipatória bem como forma de
restrição. Assume uma forma emancipatória quando empregada contra a opressão. Contudo a
raça não deixa de ser também uma prisão, uma camisa de força, uma restrição (Fanon,
s/d[1952]: 37-39) que se impõe desde sempre àquelas pessoas classificadas socialmente como
negras e leva o ativista a lutar em um conflito existente antes mesmo da sua própria existência
(Santos, 2006c: 95).
No Brasil, a raça, apesar de ser resiginificada positivamente pelo movimento negro,
não deixa de ser uma idéia que o opressor inventou para classificar o outro em uma posição
hierárquica inferior. Recentemente, os movimentos sociais têm apontado também para o
poder e privilégios inerentes à identidade racial branca – branquitude. Ao fazerem isso,
opõem-se à idéia normativa que naturaliza o branco como universal8 e, nesse sentido,
“provincializam” o branco.
Ressalto que esta é uma das lições que os anti-racistas a atuarem no cenário brasileiro
podem aprender com autores como Paul Gilroy (Gilroy, 2001: 24): mesmo quando utilizamos
estrategicamente conceitos essencialitas, o caráter emancipatório dessa utilização, não pode
nos manter aprisionados àquelas categorias e nos obriga sempre à busca de outras
emancipações possíveis.
Este capítulo completa o anterior, reforça o argumento que sustenta que as políticas de
ação afirmativa são uma pauta cuja influência e pressão do movimento negro contribuiu para
que fosse absorvida institucionalmente pelo Estado e como objeto de estudo pelas instituições
8
Assim como será mostrado na Conclusão.
109
Pesquisador branco: “objeto” negro rebelado
acadêmicas. As ações afirmativas são, hoje em dia, um tema de pesquisa presente em todo o
território brasileiro.
Sublinha-se, assim, a influência do movimento negro que, entre erros e acertos, tem
colaborado para que o Estado caminhe em direção à construção de uma sociedade mais justa e
igualitária e, quiçá, não se abstenha do conflito com os interesses de mercado em favor
daqueles que são mais explorados e oprimidos pelo inescrúpulo de poucos que detém o poder
econômico, político, midíatico e, na maioria do casos, são brancos, apesar de muitas vezes,
argumentarem que são mestiços, ou simplesmente não pensam sobre isso – afinal, “ser branco
é não pensar a respeito”. Será?
110
PARTE II
“PROVINCIALIZAR” O BRANCO
Capítulo 4: Os principais temas sobre as relações raciais
Os principais temas sobre as relações raciais
1. Procedimentos metodológicos
1
Cf. site da Capes: http://servicos.capes.gov.br/projetorelacaocursos/jsp/grandeAreaDet.jsp
2
Eu realizei uma pesquisa-teste na Universidade de São Paulo, nos títulos das teses e dissertações, antes de
realizar essa pesquisa nos resumos das produções acadêmicas nas demais universidades.
115
“Provincializar” o branco
palavras, a produção acadêmica nacional acrescentou apenas dois temas aos que foram
produzidos na Universidade de São Paulo – regressarei a esse item adiante.
No estado de São Paulo, além da USP, pesquisei a Universidade Federal de São Carlos
(UFSCAR) e a Universidade de Campinas (Unicamp). Foram levantados dados junto a essas
duas universidades de forma a comprovar comparativamente a hipótese do protagonismo da
produção acadêmica da Universidade de São Paulo. No estado do Rio de Janeiro, como já foi
dito, optei em ampliar a pesquisa por outro motivo. Para além dos dados da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), estendi a pesquisa à Universidade Estadual do Rio de
Janeiro (UERJ), neste último caso, para analisar os reflexos da temática racial na UERJ, por
ter sido esta, a primeira instituição a adotar políticas de ação afirmativa, o que gerou uma
discussão nacional de grande repercussão midiática (Costa, 2006: 148) – esse assunto foi
abordado com detalhes no Capítulo 3.
A maneira que tive acesso aos resumos foi, na maioria dos casos, pelos sites das
universidades. Tendo em vista um levantamento mais detalhado foi feita uma pesquisa
presencial na USP para obter fotocópias dos resumos que não estavam disponíveis na
Internet3. De maneira geral, procurei teses e dissertações que abordavam a temática racial, por
meio da utilização de palavras-chave e consultando uma por uma das produções disponíveis.
As expressões de busca que utilizei foram: branco, branquitude, negro, negra, negritude, raça,
relações raciais, racismo, preconceito racial, discriminação racial, etnia, étnico/racial. Ao
utilizar essas palavras, às vezes, somente encontrava uma produção com o emprego do último
termo. Apesar disso, essa foi a melhor maneira que descobri para obter o maior número
possível de dissertações e teses disponíveis. Do total das produções consultadas, consegui
levantar os resumos de 75% das produções, 1/3, uma quantidade representativa, conforme
demonstrado no gráfico a seguir.
Gráfico 1
Porcentagem dos resumos disponíveis Brasil: 1957-2007
606
455
75%
3
Agradeço ao educador Roberto Carlos Camargo pela colaboração fundamental na pesquisa feita na
Universidade de São Paulo.
116
Os principais temas sobre as relações raciais
Gráfico 2
Áreas de concentração Brasil: 1957-2007
11% 0%
1%
19%
69%
4
Essas classificações sobre as áreas do conhecimento seguiram o padrão proposto pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) do Brasil.
117
“Provincializar” o branco
2. Hipóteses de trabalho
3. Auto-reflexão
118
Os principais temas sobre as relações raciais
119
“Provincializar” o branco
entrou na academia (Teixeira, 2003: 14; Pinto, 1998: 168-210); ótica que coincide com a
maneira como sou classificado quando frequento espaços culturais em localidades
consideradas de elite, onde geralmente não se encontram os negros; refiro-me neste caso à
realidade brasileira (Santos: 2006c: 96).
A minha maneira de ler o mundo perpassa por toda essa dissertação. Logo, não fui
neutro; realizei a pesquisa em uma perspectiva parcial; esta foi a minha objetividade. Estou de
acordo com Donna Haraway quando sustenta “que a objetividade […] trata da localização
limitada e do conhecimento localizado, não da transcendência entre sujeito e objeto desse
modo podemos nos tornar responsáveis pelo o que aprendemos a ver” (Haraway, 1995: 21).
Portanto, O branco “invisível” foi escrito pelo ponto de vista do negro (Santos, 2006f:
26; Hall, 2003: 101-128; Bhabha, 2005: 239-245; Costa, 2006: 85). A minha opção, enquanto
subalternizado, foi falar a respeito da subalternidade ao inverter a lógica, por outras palavras,
o oprimido falar do opressor, o Oriente falar do Ocidente, o objeto falar do pesquisador, o
negro falar do branco. Optei enquanto aquele que afronta a opressão, não apenas falar sobre a
opressão ao enfocar o subalternizado, e sim, iniciar uma pesquisa que seguirá no doutorado,
que procura falar também sobre o opressor (Spivak, 2007: 28-37; Memmi, 1989: 47).
Nesta minha intenção de inverter a lógica, encontrei estranheza por parte da maioria
das pessoas com quem dialoguei, à exceção dos diálogos com Boaventura de Sousa Santos e
José Manuel Mendes de Almeida5. Isso significa que, no consenso geral, as pessoas
sustentavam que o foco da análise sobre o racismo fosse restringido ao negro enquanto objeto
(Piza, 2002: 60; Sovik, 2004b: 315-325).
Pensar o branco enquanto objeto parecia incômodo para muitos brancos pesquisadores
com quem conversava informalmente. Esses acadêmicos, apesar de sua experiência na análise
de subalternizados, não refletiam sobre os privilégios do grupo ao qual pertencem, que
provavelmente se entrelaça com algumas formas de subalternidade que investigam. Considero
que essas impressões foram um dos aspectos que mais me chamaram atenção no período que
vivi em Coimbra e de modo especial do meu convívio no Centro de Estudos Sociais.
Em uma modesta suposição, diria que a estranheza do branco de se pensar enquanto
objeto se torna maior se, porventura, pensar-se enquanto objeto de um pesquisador negro e
militante (Santos et al., 2005: 33-34). Fui classificado e apresentei-me muitas vezes enquanto
5
Professor de sociologia da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e investigador do Centro de
Estudos Sociais.
120
Os principais temas sobre as relações raciais
negro pertencente ao movimento negro6, posso deduzir que, esta história pessoal reflete-se
nesta dissertação como “em um jogo de espelho” (Santos, 1995b: 124-249). Este trabalho
traz-me a responsabilidade da auto-vigilância epistemológica em minha tarefa de realizar uma
análise que não é neutra e, entretanto, parcial. Por esta razão concordo com Haraway quando
sustenta que as perspectivas dos subalternizados não são inocentes e isentas de uma
reavaliação crítica, todavia “são preferidas porque parecem prometer explicações mais
adequadas, firmes, objetivas e transformadoras do mundo” (Haraway, 1995: 23; Santos,
2002b: 31).
Apesar de minha atuação em movimentos sociais, somente no curso Pós-
colonialismos e Cidadania Global pude perceber a dimensão do papel dos movimentos
sociais na sociedade local e global contemporânea (Meneses, 2005b: 425-467; Santos, 2003b:
11-23; Santos et al., 2005: 21-101; Santos e Avritzer, 2003: 53-54; Santos e Rodriguez, 2003:
23-32; Santos e Nunes, 2004: 34-44; Mendes, 2004: 147-158; Estanque, 2004: 297-334).
Quanto à dimensão do papel dos movimentos sociais identitários e a sua relação com o tema
branquitude na sociedade brasileira, reconheço que passei a perceber nos diálogos com
Boaventura de Sousa Santos nas reuniões de orientação.
Os encontros com o orientador foram fundamentais, principalmente, para poder
formular as hipóteses do trabalho depois do primeiro contato com as fontes de informação que
foram as teses e dissertações. A minha estadia no Centro de Estudos Sociais possibilitou-me
as condições para que realizasse a dissertação com base em fontes documentais e
proporcionou-me impressões que contribuirão com o trabalho que será desenvolvido no
doutorado. Refiro-me particularmente à experiência que foi observar e ser observado pelos
pesquisadores portugueses, durante o meu convívio no CES.
Nesta auto-reflexão, a minha pertença étnico/racial não deixou de ser uma
apresentação pública de umas das minhas identidades culturais (Hall, 2007: 199-201). Agi
6
Lourenço Cardoso participa do movimento negro em atividades políticas e culturais frequentemente, desde
1998. Foi estudante e professor da Educafro, curso pré-vestibular para negros e “carentes” (ou seja não-negros
pobres) de 1998 até 2005. Ministrou o curso História negra no Brasil no Centro Cultural Solano Trindade em
2002. Participou do início de uma discussão sobre a branquitude no Centro de Estudos das Relações de Trabalho
e Desigualdades (CEERT) em 2005. Palestrou em escolas públicas e entidades do movimento negro; participou
de outras atividades organizada pelos movimentos sociais. Entre as suas atividades artísticas, encontram-se a
publicação do livro de poesia O peso do mundo, São Paulo, edição de autor, 2002, a participação da antologia
poética Cadernos Negros, vol., 21 & 29; 1998 & 2006 e as peças de teatro intituladas, Preto; Se deus mesmo deu
autoridade ao homem e Hitler vai a Hitler o inferno que é Hitler, além do roteiro do curta-metragem chamado:
Cabelo ruim é que cai que participou do Festival do Minuto na Pontífica Universidade Católica de São Paulo
(Brasil) em 2002. Em Coimbra, participou da diretoria da Associação dos Pesquisadores e Investigadores
Brasileiros em Coimbra (APEB) em 2006 – 2007; foi presidente do Fórum dos Estudantes e Investigadores da
Comunidade dos Países de Língua Oficial Portuguesa em Coimbra (AEI - CPLP) em 2006 – 2007; participou
das seguintes antologias poéticas: VÁRIOS AUTORES. Revista Oficina de Poesia. Viseu: Palimage Editora,
2006 e VÁRIOS AUTORES. Revista Oficina de Poesia: 10 Anos. Viseu: Palimage Editora, 2006.
121
“Provincializar” o branco
dessa forma para fazer frente ao racismo, ao ter como primeira intenção viver de forma sadia.
Identificar-me enquanto negro e resignificar o sentido pejorativo dessa classificação foi
necessário, porque ao nascer fui classificado negro, com todos os significados que se referem
aos estereótipos depreciativos semelhantes aqueles do período colonial (Memmi, 1989: 21;
Bhabha, 2005: 105-128; Pinto, 1998: 168-210).
Procurei insurgir-me ao sustentar o argumento de que o negro não é um ser inferior,
assim como não é especial, pois estou plenamente de acordo com Stuart Hall, quando
assevera que não se pode sustentar a idéia de sujeito negro essencial (Hall, 2003: 247). Apesar
do negro não ser uma categoria de essência, a luta anti-racismo continua a ser necessária,
porque a raça é uma construção social no Brasil (Guimarães, 2002b: 48-61; Roediger, 2000:
1-17). O racismo afeta todos aqueles que são classificados como negros, quando o conflito
racial se manifesta em seu grau máximo, pode provocar o extermínio do grupo inferiorizado
(Santos, 2006d: 261).
Na pesquisa realizada, algumas produções apontam essa relação entre mortalidade
negra e o racismo. A título de ilustração, citarei três produções em diferentes regiões
brasileiras: Universidade Federal da Bahia (UFBA), na região Nordeste; Universidade de
Brasília (UNB), na região Centro-Oeste e Universidade de São Paulo (USP), na região
Sudeste.
Essas três produções mostram como a pertença/étnica racial pode ser umas das razões
que levam a morte, este é um problema de saúde pública na sociedade brasileira, assim como
7
A respeito dessa tese, um jornal brasileiro publicou a reportagem com o seguinte título: Negro morre a bala e
branco do coração in “Folha de São Paulo ‘São Paulo’ ” domingo, 17 de Maio de 1998.
122
Os principais temas sobre as relações raciais
mostra, O Atlas racial brasileiro8. Este Atlas mostra que “uma pessoa negra nascida em 2000
viverá, em média, 5,3 anos menos do que uma pessoa branca” (PNUD/CEDEPLAR, 2004).
Daqui que se extrai a idéia que ser negro no Brasil faz com que a pessoa esteja em
desvantagem social e esta pode ser a razão de sua morte. Por isso não se trata de uma
identidade cultural irrelevante (Silva, 2000: 33-49 sob Nelson Valle; Hasenbalg, 2005: 225-
231).
8
O Atlas racial brasileiro é um banco de dados eletrônico que reúne uma série de indicadores sociais reunidos
por raça e cor.
9
O negro quilombola era o negro que vivia nos quilombos que eram habitações onde viviam negros escravizados
fugidos, e outras pessoas marginalizadas pelo o governo da época, cf. cap. II.
10
O negro forro é aquele que conseguia a alforria, isso significa a liberdade do regime escravocrata.
123
“Provincializar” o branco
Schwarcz, 1994: 137-152)11. Na década de trinta do século XX, os negros passaram a falar
por si, com o aparecimento da entidade Frente Negra Brasileira – abordada no Capítulo 2
(Costa, 2006: 218). Para os frentenegrinos, ser negro era ser de uma cultura inferior – situação
que poderia ser corrigida com a educação (Hofbauer, 1999: 296). Ser negro já não era ser
inferior biologicamente; significava ser inculto e a única cultura a ser valorizada seria a
cultura ocidental (Said, 2004: 86).
O sociólogo Gilberto Freyre foi uns dos intelectuais, que ao criticar o racismo
biológico, optou pelo enfoque de cultura e civilização, isto é, estará implícito no seu
argumento a idéia de cultura civilizada e cultura incivilizada que pode ser corrigida pela
educação oferecida pela cultura superior (Guimarães, 2005c: 55). Os negros frentenegrinos
coincidiam com Gilberto Freyre nessa idéia que associa o negro à raça atrasada. Essa foi uma
influência da antropologia norte-americana, especialmente, do antropólogo teuto-americano
Franz Boas, que foi professor de Gilberto Freyre (Hofbauer, 1999: 196; Greenfield, 2001: 35-
52; Guimarães e Macedo, 2007: 1-17).
Na década de cinquenta do século passado, Alberto Guerreiro Ramos propôs uma
outra dimensão para o significado de ser negro. Para Guerreiro Ramos ser negro significava
ser povo brasileiro, em oposição ao branco, que significava ser elite. Por consequência desse
pensamento, esse sociólogo vai sugerir que se juntem negros e pardos na classificação de
negros em 1957, porque essas duas categorias, que indicam a pertença étnica e racial,
possuiriam os mesmos indicadores sociais, também, representariam o povo brasileiro
(Guimarães, 2005c: 89)12.
Ser negro passou a ter uma outra dimensão, que não significava ser inferior
biologicamente, nem culturalmente. Esse argumento foi sustentado por sociólogos de
prestígio na academia brasileira como, Carlos Hasenbalg que, no seu livro clássico
Discriminação e desigualdades raciais no Brasil, agregou os termos negro e pardo para
identificar os não-brancos, como havia proposto Guerreiro Ramos, chegando à conclusão de
que existiriam desigualdades raciais em consequência do racismo no Brasil (Hasenbalg, 2005:
17-25).
Esta metodologia foi criticada, ao dizerem que seria uma importação acrítica do
binarismo branco e negro norte-americano. Apesar das críticas, essa obra de Hasenbalg
tornou-se um marco nos estudos sobre as relações raciais no Brasil, instrumentalizando o
11
Esse tema foi abordado com mais detalhes no primeiro capítulo.
12
O sociólogo Antonio Sérgio Alfredo Guimarães vai dizer que Guerreiro foi o pioneiro nessa proposta, porém a
antropóloga Moema de Poli Teixeira diz que a agregação negro e pardo é sugerida desde Costa Pinto em 1952
(Teixeira, 2003: 52).
124
Os principais temas sobre as relações raciais
movimento negro, que já utilizava o procedimento de agregar negros e pardos por influência
de Guerreiro Ramos e dos negros norte-americanos (Munanga, 2004: 138)13.
Nos anos 1970, o Brasil vivia um período ditatorial que durou vinte e um anos14, os
movimentos sociais somente recuperaram o seu vigor com o enfraquecimento da ditadura15.
Nesse contexto surge o Movimento Negro Unificado (MNU), em 1978. O MNU recebeu
muitas influências do cenário mundial, como o movimento da negritude francês, dos 1930,
que já haviam influenciado lideranças negras como Abdias do Nascimento nos anos 1950
(Guimarães, 2002b: 99-104; Césaire, 1971: 5-79). O movimento negro no Brasil também
recebeu influências do movimento pan-africanista, que sustentava a idéia de valorização da
história e cultura africana e o desejo de solidariedade de todos os africanos e negros da
diáspora (Munanga, 1988: 34-48).
Nesse contexto a negritude brasileira, expressa especialmente através do movimento
negro, passou a reagir de forma incisiva contra o estereótipo pejorativo atribuído à sua
pertença étnica e racial, procurando a libertação do complexo de inferioridade que era
atribuído à negritude (Fanon, s/d[1952]: 37-39). A partir de então, ser negro foi resignificado
com atributos positivos. Um dos autores mais influentes dessa resignificação foi o intelectual
norte-americano W. E. Du Bois, portanto, especialmente nesse momento ser negro deixou de
ser motivo de vergonha passando a ser motivo de orgulho.
Ainda, no cenário norte-americano – nos anos 1960 e 1970 –, o mundo acompanhou o
movimento pelos Direitos Civis e as atuações de lideranças de influência internacional como:
Martin Luther King e Malcolm X que, apesar de serem pessoas diferentes, muitas vezes,
divergentes, mostraram aos negros brasileiros que a negritude deveria ser altiva (Piza, 2002:
68; Cleaver, 1971: 63-79; Guimarães, 2002b: 9-16).
Além do cenário norte-americano, a luta pela libertação das colônias africanas,
nomeadamente, as lusófonas envolvidas na guerra ultramar, levava ao movimento social
negro, principalmente o MNU posicionar-se em uma atitude de solidariedade aos negros
africanos. Os discursos proferidos iam em direção a estimular o sentimento de solidariedade
entre os negros da diáspora, espalhados pelo mundo e também com os negros africanos
(Costa, 2006: 112-121; Hall, 2007: 199-202; Cabral, 1976: 32-37).
Diante desse contexto, ser negro no Brasil passa a ser motivo de orgulho e transforma-
se em um dos argumentos do movimento negro. Trata-se de uma atitude marcada pela reação
13
Este assunto é melhor detalhado no Capítulo 1.
14
A ditadura do Regime Militar foi instaurada pelo Golpe de Estado que tirou do poder o presidente João
Goulart em 1964 e estendeu-se até 1985.
15
Mais detalhes sobre esse assunto no Capítulo 3.
125
“Provincializar” o branco
ao racismo, levando os ativistas negros a sentirem-se especiais. Esse significado especial seria
um atributo de essencialidade inerente à negritude (Hall, 2007: 347; Fanon, s/d[1952]: 37).
Essa condição de ser “especial”, ou de possuir qualquer atributo que distingue a negritude
denominada de ótica racista-anti-racista, em virtude, de se encontrar implícito o conceito de
raça (Appiah, 1997: 75-76).
Nesse assunto, partilho com Guimarães a idéia da necessidade da raça e que a ótica
praticada nas ações do movimento negro não seria racista-anti-racista, e sim racialista16 anti-
racista. A raça enquanto conceito analítico e de luta seria um instrumento à disposição dos
movimentos sociais e da ciência para lidar com a realidade empírica, quando apresenta o
componente racial inequívoco (Guimarães, 2005c: 67-68).
Ser negro, afinal, significa múltiplas negritudes na realidade brasileira nos dias de
hoje. Essas negritudes coincidem e contrastam com as definições de negritudes teorizadas
(Hall: 2007: 199-202). Tanto coexistem as idéias de negro identificado pelos próprios negros
como complexado, ou inferior culturalmente, quanto com atributo “essencial especial”
(Fanon, s/d[1952]: 38-39).
A expressão da negritude expressa no movimento negro desde os anos 1990 seria a
negritude como “essencialismo estratégico”. Portanto, o negro não ignora que, ao se
identificar politicamente enquanto negro esteja a reivindicar uma identidade com caráter
essencialista, realiza essa opção por necessidade estratégica, assim como sustenta Avtar Brah:
Embora eu tenha argumentado contra o essencialismo, é claro que não é fácil tratar desse
problema. Em sua necessidade de criar novas identidades políticas, grupos dominados
muitas vezes apelarão para laços da experiência cultural comum a fim de mobilizar o seu
público. Ao fazê-lo, podem afirmar uma diferença aparentemente essencial. Spivak e Fuss
argumentaram a favor do tal essencialismo estratégico (Brah, 2006: 375).
Ser negro na sociedade brasileira não significa uma única negritude, identificar-se
enquanto negro não significa necessariamente ignorar o caráter essencialista dessa identidade
cultural. Estou plenamente de acordo com Paul Gilroy, quando sustenta que “a representação
do corpo humano não pode ser o repositório fundamental da ordem racial” (Gilroy, 2001: 24).
Porém, no contexto brasileiro identificar-se enquanto negro, em um essencialismo estratégico,
tem alcançado algumas conquistas no objetivo da supressão do racismo.
Apesar dos riscos que todos os essencialismos podem proporcionar, trata-se de uma
estratégia, que está sempre sujeita à crítica e reavaliações. Um exemplo das conquistas do
16
Racialismo seria uma ótica racial que não necessariamente é racista (Guimarães, 2005c: 211-212).
126
Os principais temas sobre as relações raciais
Em seguida, apresentarei uma tabela que procura traçar o quadro geral de teses e
dissertações sobre relações raciais nas cinco regiões do Brasil: Sudeste, Sul, Centro-Oeste,
Norte e Nordeste. Essa tabela foi elaborada para juntar as informações gerais recolhidas em
cada quadro individual que elaborei para cada universidade (cf. Apêndice 2). Essa tabela geral
tornou possível elaborar os gráficos que serão utilizados em diferentes momentos desta
dissertação. Contém as seguintes informações:
1) A universidade pesquisada.
2) O período que foi produzido as teses e as dissertações.
3) O total dos trabalhos levantados.
4) A área de concentração onde foram defendidas: Ciências Humanas, Linguística, Letras e
Artes, Saúde, Ciências Sociais Aplicadas e Ciências Agrárias.
5) A natureza dos trabalhos: mestrado ou doutorado.
6) Total dos resumos disponíveis.
127
“Provincializar” o branco
Regiões do Brasil:
Sudeste
Sul
Centro-Oeste
Norte
Nordeste
128
Os principais temas sobre as relações raciais
Região: Sudeste
NATUREZA TOTAL
ÁREAS DE CONCENTRAÇAO
DOS TRABALHOS DOS
REGIÃO TOTAL DOS
RESU-
UNIVERSIDADE PERÍODO DO TRABALHOS Linguística Ciências
Ciências Ciências Doutora MOS
BRASIL LEVANTADOS , Letras e Saúde Sociais Mestrado
Humanas Agrárias do DISPO-
Artes aplicadas
NÍVEIS
1) Universidade
Estadual do Rio de 1993 – 2007 Sudeste 35 30 5 --------- ----------- ----------- 32 3 4
Janeiro
2) Universidade
Federal do Espírito 1999 – 2005 Sudeste 6 ----------- 6 --------- ----------- ----------- 6 0 ---------
Santo
3) Universidade
Federal de Minas 1984 – 2006 Sudeste 35 12 17 --------- 6 ----------- 9 26 18
Gerais
4) Universidade
Federal do Rio de 1976 – 2007 Sudeste 64 38 11 --------- 15 ----------- 46 18 58
Janeiro
5) Universidade
Federal de São 2003 – 2006 Sudeste 16 16 ----------- --------- ----------- ----------- 12 4 16
Carlos
6) Universidade de
2000 – 2007 Sudeste 77 65 11 --------- 1 ----------- 47 30 76
Campinas
7) Universidade de
1957 – 2006 Sudeste 146 103 26 3 13 1 78 63 145
São Paulo
SOMA DAS
PARTES
7 1957 – 2007 Sudeste 379 264 76 3 35 1 230 144 317
129
“Provincializar” o branco
Região: Sul
NATUREZA TOTA
ÁREAS DE CONCENTRAÇAO
DOS TRABALHOS L DOS
REGIÃO TOTAL DOS RESU-
UNIVERSIDADE PERÍODO DO TRABALHOS Linguística Ciências MOS
LEVANTADOS Ciências Ciências
BRASIL , Letras e Saúde Sociais Mestrado Doutorado DISPO-
Humanas Agrárias
Artes aplicadas NÍVEI
S
1) Universidade
Federal do ------------ Sul -------------- ----------- ----------- --------- ----------- ----------- ----------- ----------- ---------
Paraná
2) Universidade
1983 – 2006
Federal do Rio Sul 40 29 6 1 4 ----------- 9 31 15
Grande do Sul
3) Universidade 1991 – 2006
25
Federal de Santa Sul 29 17 9 1 2 ----------- 4 28
Catarina
SOMA DAS
PARTES
3 1983 – 2006 Sul 69 46 15 2 6 ----------- 34 35 43
130
Os principais temas sobre as relações raciais
Região: Centro-Oeste
NATUREZA TOTA
ÁREAS DE CONCENTRAÇAO
DOS TRABALHOS L DOS
REGIÃO TOTAL DE RESU-
UNIVERSIDADE PERÍODO DO TRABALHOS Linguística Ciências MOS
Ciências Ciências
BRASIL LEVANTADOS , Letras e Saúde Sociais Mestrado Doutorado DISPO-
Humanas Agrárias
Artes aplicadas NÍVEI
S
1) Universidade Centro- -----------
----------- -------------- ----------- ----------- --------- ----------- ----------- ----------- ---------
Federal de Goiás Oeste
2) Universidade
Centro
Federal do Mato 2001 – 2006 3 2 1 --------- ----------- ----------- 3 0 0
Oeste
Grosso
3) Universidade
Centro 3
Federal do Mato 2003 – 2005 3 3 ----------- --------- ----------- ----------- 0 0
Oeste
Grosso do Sul
4) Universidade Centro
1974 – 2006 75 47 12 --------- 16 ----------- 62 13 37
de Brasília Oeste
SOMA DAS
PARTES
Centro
4 1974 – 2006 81 52 13 --------- 16 ----------- 68 13 37
Oeste
131
“Provincializar” o branco
Região: Norte
NATUREZA TOTAL
ÁREAS DE CONCENTRAÇAO DOS
DOS TRABALHOS
REGIÃO TOTAL DOS RESU-
UNIVERSIDADE PERÍODO DO TRABALHOS Linguística Ciências MOS
LEVANTADOS Ciências Ciências DISPON
BRASIL , Letras e Saúde Sociais Mestrado Doutorado
Humanas Agrárias ÍVEIS
Artes aplicadas
1) Universidade
----------- Norte -------------- --------- ----------- ------ ----------- ----------- ---------- ----------- ---------
Federal do Acre
2) Universidade
Federal do ----------- Norte -------------- --------- ----------- ------ ----------- ----------- ---------- ----------- ---------
Amazonas
3) Universidade 4
1999-2006 Norte 5 4 ----------- ------ 1 ----------- 5 0
Federal do Pará
4) Universidade ----------------- Norte -------------- ----------- ----------- ------ ----------- ----------- ---------- ----------- ---------
Federal de Roraima
5) Universidade
2000 Norte 1 ----------- 1 ------ ----------- ----------- 1 0 1
Federal do Amapá
6) Universidade
Federal da ----------------- Norte -------------- ----------- ----------- ------ --------- ----------- --------- ----------- ---------
Rondônia
7) Universidade de ----------------- Norte -------------- ----------- ----------- ------ --------- ----------- ---------- ----------- ---------
Tocantins
SOMA DAS PARTES
7 1999 – 2006 Norte 6 4 1 ----- 1 ----------- 6 ----------- 5
132
Os principais temas sobre as relações raciais
Região: Nordeste
NATUREZA TOTAL
ÁREAS DE CONCENTRAÇAO DOS
REGIÃO TOTAL DOS DOS TRABALHOS
RESU-
UNIVERSIDADE PERÍODO DO TRABALHOS Linguística Ciências
Ciências Ciências MOS
BRASIL LEVANTADOS , Letras e Saúde Sociais Mestrado Doutorado
Humanas Agrárias DISPO-
Artes aplicadas NÍVEIS
1) Universidade
2006 Nordeste 1 ----------- 1 ------ ----------- ----------- 1 ---------- 1
Federal de Alagoas
2) Universidade
1989-2005 Nordeste 41 32 7 ------ 2 ----------- 33 8 36
Federal da Bahia
3) Universidade
1995-2005 Nordeste 7 4 2 1 ----------- ----------- 6 1 0
Federal do Ceará
4) Universidade
1985-2006 Nordeste 9 8 ----------- ------ 1 ----------- 9 0 9
Federal da Paraíba
5) Universidade
Federal do 1983-2006 Nordeste 5 5 ----------- ------ ----------- ----------- 5 0 4
Pernambuco
6) Universidade
-------------- Nordeste -------------- ----------- ----------- ------ ----------- ----------- ----------- ----------- ---------
Federal do Piauí
7) Universidade
2005 Nordeste 2 1 ----------- 1 ----------- ----------- 2 ----------- 2
Federal do Sergipe
8) Universidade
1999-2004 Nordeste 5 ----------- ----------- ------ 5 ----------- 4 1 1
Federal do Maranhão
9) Universidade
Federal do Rio Grande 2004 Nordeste 1 1 ----------- ------ ----------- --------- 1 ----------- ---------
do Norte
SOMA DAS PARTES
9 1983-2006 Nordeste 71 51 10 2 8 ----------- 61 10 53
133
Os principais temas sobre as relações raciais
Gráfico 3
Os pesquisadores quanto ao sexo
41%
Feminino
Masculino
1 2
1
Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz.
2
As diferenças regionais serão abordadas no próximo capítulo.
134
Os principais temas sobre as relações raciais
Gráfico 4
Natureza dos trabalhos – Brasil: 1957-2007
66% 33% 1%
135
“Provincializar” o branco
Tendo em conta que o meu pressuposto inicial era a ausência do branco enquanto tema
de pesquisa, uma pergunta natural daí decorrente é: Se o branco não aparece, quais seriam os
temas dos estudos sobre as relações raciais? O resultado da pesquisa apontou 34 temas no
Brasil, dentro os quais 32 se encontram na Universidade de São Paulo.
Antes de analisar os temas apontados pelas 30 universidades nas 5 regiões do Brasil,
restringir-me-ei a apresentar os temas encontrados na USP, já que esta instituição fornece
mais elementos para que se possa compreender os diferentes períodos da produção acadêmica
brasileira (Santos, 2006e: 217-226; Fanon s/d[1952], 45; Memmi, 1989, 126-127).
136
Os principais temas sobre as relações raciais
Gráfico 5
O Brasil do período pós-Getúlio e do Teatro Experimental do Negro
Período: 1957-1970, total: 5 produções
O Gráfico 5 representa o período histórico de 1957 até 1970, esse período histórico foi
analisado nos capítulos 2 e 3. Os temas que aparecem são o negro na sociedade de classes, a
escravidão negra, e o negro no mercado de trabalho. O tema o negro na sociedade de classes é
um assunto que se relaciona com os outros dois temas. Uma das razões seria a proeminência
da orientação de Florestan Fernandes ao sustentar que para analisar o negro na sociedade de
classes também é necessário analisar o período da escravidão negra no Brasil (Guimarães,
2005c: 93). A escravidão negra no Brasil é um tema que sempre volta à discussão das teorias
137
“Provincializar” o branco
138
Os principais temas sobre as relações raciais
Gráfico 6
Ditadura, redemocratização e surgimento do Movimento Negro Unificado
Período: 1971-1989, total: 15 produções
14,3%
Identidade negra 2
1 7,1%
O negro na política
2 14,3%
O negro estrangeiro
2 14,3%
O negro e a religião
1 7,1%
O negro na sociedade de classes
2 14,3%
O negro e a justiça
3 21,4%
O negro nas letras e nas artes
1 7,1%
O negro na mídia
O período histórico desse Gráfico foi descrito nos capítulos 2 e 3. O Gráfico 6 mostra
que os temas abordados se tornaram mais numerosos. Nessa diversidade surgiu o tema o
negro e a religião, que não voltou a aparecer nos gráficos seguintes. Os temas que surgiram e
retornarão nos períodos posteriores são o negro nas letras e nas artes, identidade negra e o
negro na mídia.
Esse gráfico mostra que o negro na sociedade de classes, que havia surgido no gráfico
anterior (5), permanece. O tema negro nas letras e nas artes refere-se aos textos onde o negro
aparece tematizado na literatura, artes plásticas, teatro, etc. O tema o negro na política não
voltará aparecer nos gráficos seguintes.
Dentre os assuntos que aparecem, destaco o tema identidade negra. Nesse âmbito,
sustenta-se o argumento de que pretos e pardos se identifiquem enquanto negros, para agirem
de maneira mais eficaz contra as práticas de racismo (Heringer, 2002: 57-65).
O tema identidade negra coloca-se em uma postura de crítica à idéia de reinvenção do
mito da democracia racial (Fernandes, 1978, vol. I: 253). A pesquisa realizada indica que o
tema democracia racial aparece de forma autônoma e também derivando-se em duas formas
139
“Provincializar” o branco
distintas: identidade negra e identidade brasileira. A identidade negra aparece como crítica à
idéia da democracia racial. A identidade brasileira aparece como atualização da idéia de
democracia racial. O tema o negro e a justiça surge também será abordado como políticas de
ação afirmativa, falarei mais desse assunto no próximo capítulo (Hasenbalg, 2005: 231; Silva,
2000: 48-49 sob Nelson Valle).
Gráfico 7
Governo Fernando Henrique e a Marcha de Zumbi dos Palmares
Período: 1990-1999, total: 56 produções
O Gráfico 7 aborda o período de 1990 até 1999, tratados nos capítulos 2 e 3. Neste
gráfico, os temas que mais aparecem são o negro na mídia e a África. O tema escravidão
negra, que surgiu no primeiro período, (Gráfico 5) volta a aparecer. O tema o negro na mídia
aparece em porcentagem expressiva. A África é o tema – surgido nesse Gráfico 7 – com
140
Os principais temas sobre as relações raciais
tendência de crescimento3 esse tema sugere que o continente africano passe a ser abordado na
história brasileira com referências positivas, procurando se livrar dos estereótipos pejorativos
associados a esse continente (Gilroy, 2001: 18).
O tema branqueamento4 diz respeito a uma ideologia, comumente interpretada como o
desejo do negro tornar-se branco, como foi abordado no Capítulo 1 (Hofbauer, 1999: 243-
245; Munanga: 2004: 56).
O aparecimento do tema anti-racismo é interessante porque durante um longo período
negou-se a existência do racismo, o que se tornou muito difícil de sustentar com a atuação
política do movimento negro e de intelectuais como Florestan Fernandes e Carlos Hasenbalg,
como foi mostrado no Capítulo 1 (Guimarães 2005c: 100; Guimarães e Hasenbalg 2006: 259-
268).
O tema o negro na mídia possui uma tendência de crescimento nos estudos sobre as
relações raciais. Ele nos propõe a seguinte questão: como os estereótipos racistas são
reinventados e/ou construídos em nossa sociedade em pleno século XXI? As produções sobre
relações raciais nesse quesito têm indicado que o negro é simbolizado pejorativamente e o
branco simbolizado elogiosamente nos meios de comunicação social. Esta seria uma maneira
de reinventar e/ou construir estereótipos, como, por exemplo, negro símbolo do mal, feio,
inculto e “não-inteligente”, enquanto o branco simboliza o bem, bonito, culto e inteligente
(Memmi, 1989: 21; Bhabha, 2005: 105-128; Pinto, 1998: 168-210).
O dado mais interessante apontado neste gráfico, seria a emergência do tema
movimento negro, porque esse indício vai ao encontro de uma das hipóteses secundárias que
sustenta a influência do movimento negro.
3
O presidente brasileiro Luís Inácio Lula da Silva sancionou a lei 10.639 em 2003, que obriga que as instituições
de ensino no Brasil incluir em seu conteúdo programático o estudo da História da África e dos Africanos, a luta
dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a
contribuição do povo negro nas áreas, social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.
4
É importante não confundir branqueamento com branquitude. Branqueamento seria uma ideologia onde se
propõe o desejo de ser branco. Branquitude seria a identidade racial do branco, que muitas vezes não é
problematizada.
141
“Provincializar” o branco
Gráfico 8
Fortalecimento da democracia e Conferência de Durban
Período: 2000 até 2006, total: 72 textos
Remanescentes de quilombos 2
2,8%
Branquitude 1
1,4%
Anti-racismo 1 1,4%
Mulher negra 2
2,8%
Onegro estrangeiro 5
6,9%
142
Os principais temas sobre as relações raciais
negra. Neste Gráfico, o tema negro na educação será aquele que aparecerá em maior
quantidade. A discussão resume-se à idéia de a educação ser um espaço importante tanto para
o incentivo ao respeito da igualdade e reconhecimento da diferença, quanto para a reprodução
das desigualdades raciais (Santos, 2006d: 290; Rosemberg et al., 2003: 125-146).
As políticas de ação afirmativa é o tema importante mostrado nesse gráfico. O gráfico
retoma dois temas originários do primeiro período – gráficos 5 e 6 – que são: o negro na
sociedade de classes e escravidão negra. O tema negro na sociedade de classes somente não
apareceu no terceiro período, mostrado no Gráfico 7. Ele se sustenta como um dos dois
grandes temas a respeito das relações raciais no Brasil em todos os tempos. A escravidão
negra seria outro grande que vem sendo discutido ao longo dos anos. O próprio tema políticas
de ação afirmativa recoloca em pauta a discussão sobre a herança da escravidão negra
(Santos, 2006c: 86-125; Fernandes, 1978, vol. II: 346).
Os temas identidade negra, o negro estrangeiro, o negro nas letras e nas artes surgiram
no período apontado pelo Gráfico 6. Ao passo que, o negro na educação, cultura negra,
religiosidade afro-brasileira, juventude negra, movimento negro, identidade brasileira, anti-
racismo, África, o negro na Saúde, Psicologia do racismo, movimento hip-hop e
personalidade negra surgiram no período, apontado no período anterior.
Os temas que surgiram no período apontado neste gráfico são democracia racial,
desigualdade racial, mulher negra, branquitude e remanescentes de quilombos. O tema
democracia racial coloca-se como uma tradição cultural brasileira, em uma releitura da obra
de Gilberto Freyre, enquanto o tema desigualdade racial vai demonstrar que o racismo produz
desigualdade, em um contraste com o tema democracia racial (Fernandes, 1978, vol. II: 253-
254 e 346; Maggie e Fry, 2004: 67-80).
A mulher negra é um tema que pouco aparece, apesar da maioria das teses e
dissertações, serem produzidas por mulheres – no Capítulo 3 abordei esse assunto, também
regressarei nele no capítulo seguinte. Quanto ao tema remanescentes de quilombos faz a
interface entre a reivindicação por direito à terra, à pertença étnica e racial e o legado do
passado colonial e escravocrata, o que implica em um dilema de reconhecimento de
identidades e distribuição de bens materiais e simbólicos (Gomes, 2007: 1-32).
No intervalo de tempo entre 2000 e 2006 (Gráfico 8), aparecem teses e dissertações
que seguem uma tendência de temas diversificados. Esse período é o mais significativo para
143
“Provincializar” o branco
esta dissertação, pois nesse contexto emergirá o tema branquitude. Esta emergência é
relevante porque se relaciona com a hipótese central do trabalho: a emergência da branquitude
nos estudos sobre as relações raciais (Santos, 2006c: 86-125).
Merecem destaque igualmente os resultados que se relacionam com as hipóteses
secundárias. Refiro-me à afirmação de que o movimento negro influencia o Estado e a
academia. Assim, como mostraram os Gráficos 7 e 8, o tema movimento negro, que surgiu no
Gráfico 7, persiste no Gráfico 8. Este último seria um indício que o movimento negro
enquanto tema passou a ser preocupação das universidades, isto também pode indicar sua
influência, por outras palavras, o movimento negro tornou-se tão expressivo a ponto de se
tornar uma preocupação acadêmica que leva pesquisadores a procurarem compreender as
especificidades desse movimento social (Silvério, 2003: 57; Hall, 2005: 21).
A visibilidade do movimento negro, por um lado, converte-o em objeto de interesse e
tema de estudo, por outro lado, sua influência e poder de mobilização também chama a
atenção da reflexão acadêmica para algumas de suas pautas políticas, como é caso das
políticas de ação afirmativa (Munanga, 2003: 117-28; Gomes, 2003b: 219-243). Nesta mesma
linha de raciocínio, situa-se o tema política de ação afirmativa que emerge no período
apontado no Gráfico 8. Esse aparecimento corrobora o indício de que as políticas de ação
afirmativa seriam uma pauta que o movimento negro influenciou para que fosse incorporada
pela academia, ao mesmo tempo, trata-se da principal pauta do movimento negro dos dias de
hoje, como tem apontado a teoria sobre relações raciais no Brasil e esta pesquisa (Carvalho,
2003: 163-90; Silva, 2003: 45-54).
144
Capítulo 5: A produção acadêmica nas cinco regiões
A produção acadêmica nas cinco regiões
1. A pesquisa no Brasil
Neste capítulo, pretendo aprofundar o quadro geral das teses e dissertações sobre as
relações raciais no Brasil. Os gráficos que serão apresentados foram criados tendo por base as
Tabelas 1, 2, 3, 4 e 5 do capítulo anterior. De um total de 606 produções pesquisadas, foram
analisados 455 resumos, isto é, 75% do total. Nos gráficos, procurarei analisar as nuances
regionais por área de concentração, natureza dos trabalhos e sexo dos pesquisadores.
Área de Concentração
Gráfico 1
Áreas de concentração por região
Região Sudeste
9% 0%
1%
20%
70%
Gráfico 2
Áreas de concentração por região
Região Sul
9% 0%
3%
22%
66%
De acordo com o Gráfico 2, na região Sul do Brasil, a área de concentração com maior
número de trabalhos é novamente as Ciências Humanas (66%), seguido de: Linguística,
Letras e Artes, 22%; Ciências Sociais Aplicadas, 9%; Saúde, 3%; e Ciências Agrárias 0%.
147
“Provincializar” o branco
Como foi mencionado, a produção acadêmica na área da Saúde é nula, porque a única
produção encontrada foi na Universidade de São Paulo.
Gráfico 3
Áreas de concentração por região
Região Centro-Oeste
0%
20%
0%
16%
64%
Na região Centro-Oeste por sua vez, a produção acadêmica sobre relações raciais
destaca-se nas Ciências Humanas, 64%; Ciências Sociais Aplicadas, 20%; e Linguística,
Letras e Artes, 16%. O Gráfico 3 – diferente dos outros dois anteriores –, apresenta uma
maior porcentagem de produções na área de Ciências Sociais Aplicadas. Não apareceram
produções na área da Saúde e Ciências Agrárias.
Gráfico 4
Áreas de concentração por região
Região Norte
17% 0%
0%
17%
66%
148
A produção acadêmica nas cinco regiões
Gráfico 5
Áreas de concentração por região
Região Nordeste
11% 0%
3%
14%
72%
Como se vê, as produções nas áreas da Saúde aparecem escassamente nas regiões
Sudeste, Sul e Nordeste. Essa é uma área que não possui histórico de produção acadêmica
sobre a temática racial.
A Tabela 1, abaixo, mostra as produções na área da Saúde encontradas nesta pesquisa.
149
“Provincializar” o branco
Se, por um lado, a pesquisa demonstrou uma escassez de produção do tema na área da
saúde, por outro lado, revelou que a maior área de reflexão acadêmica sobre as relações
raciais no Brasil são as ciências humanas.
61% 38% 1%
49% 51%
Mestrado Doutorado
O Gráfico 7, ao abordar a região Sul, mostra que a maioria dos trabalhos estão
concentrados no nível de doutorado (51%), seguido por mestrado (49%). Neste gráfico o
150
A produção acadêmica nas cinco regiões
84% 16%
Mestrado Doutorado
100% 0%
Mestrado Doutorado
151
“Provincializar” o branco
Amazonas, (3) Universidade Federal de Roraima, (4) Universidade Federal de Rondônia e (5)
Universidade Federal de Tocantins.
86% 14%
Mestrado Doutorado
61%
39 %
Feminino
Masculino
1 2
152
A produção acadêmica nas cinco regiões
O Gráfico 11 mostra que a maioria dos trabalhos foi produzida por mulheres na região
Sudeste. As mulheres produziram 61% das teses e dissertações levantadas, enquanto os
homens produziram 39%.
Gráfico 12
Região Sul
Pesquisadores sobre relações raciais no que se refere ao sexo
Brasil: Região Sul
58%
42%
Feminino
Masculino
1 2
O Gráfico 12 mostra que também na região Sul a maioria dos trabalhos foi produzida
por mulheres. As mulheres apresentam 58% do total dos textos acadêmicos analisados e os
homens 42%.
Gráfico 13
Região Centro-Oeste
Pesquisadores sobre relações raciais no que se refere ao sexo
Brasil: Região Centro-Oeste
58 %
42%
Feminino
Masculino
1 2
Diferente dos outros, o Gráfico 13 demonstra que a produção de trabalhos por homens
se destaca na região Centro-Oeste. As mulheres apresentam 42% das produções analisadas e
os homens 58%.
153
“Provincializar” o branco
Gráfico 14
Região Norte
Pesquisadores sobre relações raciais no que se refere ao sexo
Brasil: Região Norte
67%
33 %
Feminino
Masculino
1 2
O Gráfico 14 mostra que a maioria das teses e dissertações foram produzidas por
mulheres na região Norte. As mulheres apresentam 67% das teses e dissertações e os homens
33%. Esse gráfico seguirá a tendência de maior produção acadêmica por parte das mulheres
no tema das relações raciais.
Gráfico 15
Região Nordeste
Pesquisadores sobre relações raciais no que se refere ao sexo
Brasil: Região Nordeste
67%
33 %
Feminino
Masculino
1 2
154
A produção acadêmica nas cinco regiões
2. Resultados e discussão
1
As produções acadêmicas de outro nível que não se referiam a mestrado ou doutorado foram encontradas na
Universidade de São Paulo e apresentadas no capítulo anterior.
155
“Provincializar” o branco
Nas tabelas que seguem, serão abordados os temas sobre as relações raciais que
surgiram na pesquisa. Primeiramente apresentarei uma tabela geral dos temas abordados em
todo o território brasileiro, depois apresentarei os temas que aparecem em cada região. O
objetivo principal será perceber os matizes regionais que apresentam esses temas e relacioná-
los com a hipótese central desta dissertação.
156
A produção acadêmica nas cinco regiões
24 Movimento hip-hop
25 Personalidade negra
26 O negro e a justiça
27 O negro e a religião
28 O negro na política
29 O negro rural
30 O negro no mercado de trabalho
31 Quilombos
32 Branqueamento
33 O negro e a homossexualidade
34 O branco estrangeiro
A Tabela 2 mostra que em todo território brasileiro foram acrescentados apenas dois
temas além dos que já haviam sido encontrados na Universidade de São Paulo. Estes temas
são o negro e a homossexualidade e o branco estrangeiro. Em seguida, apresento, esses temas
distribuídos nas cinco regiões do Brasil.
157
“Provincializar” o branco
2
Como foi mostrado na Tabela Geral ao acrescentar a USP, o número de temas da região Sudeste serão 34. A
USP foi analisada no capítulo anterior.
158
A produção acadêmica nas cinco regiões
A Tabela 4 aborda a produção académica da região Sul. Os temas que surgem são vinte
e já foram abordados na apreciação feita sobre a Universidade de São Paulo. Chamo atenção
para o fato de que tanto nesta região como na região Sudeste emergiram os temas movimento
negro e política de ação afirmativa, ambos de particular interesse para as hipóteses levantadas
nesta dissertação, conforme abordarei adiante.
159
“Provincializar” o branco
3. Apontamentos da pesquisa
sexual, sem muitas vezes refletir que, nesse suposto “elogio”, encontra-se implícita a
associação da sexualidade negra à animalidade.
4) Em sua diversidade, o movimento negro brasileiro expressa múltiplas negritudes
que podem ser igualmente contraditórias.
5) As produções sobre o movimento negro tendem a caminhar para além do binarismo
negro e branco.
6) É possível pensar em movimento hip-hop e movimento negro, não somente
movimento hip-hop ou movimento negro.
7) Personalidades negras brasileiras, como Lima Barreto, poderiam ter-se destacado
mais se não houvesse o racismo.
3
No direito penal brasileiro, a contravenção penal diferencia-se do crime sobretudo na gravidade das penas que
lhe é aplicada. Enquanto o crime é punido com pena de detenção e reclusão, a contravenção é punida com multa
e pena de detenção.
161
“Provincializar” o branco
Gênero e raça
A ótica patriarcalista que emergiu das teses de dissertações levantadas foi discutida no
Capítulo 1, subcapítulo “gênero e raça”, onde se sugere que o pesquisador, homem ou mulher
independente da pertença étnica e racial e da instituição académica a que está vinculada, de
modo geral, expressa nas suas produções a idéia do homem enquanto universal. Do mesmo
modo, foi desenvolvida a hipótese de uma possível emergência na problematização da relação
entre mulher e raça na reflexão académica futura, sobretudo devido à proatividade de
mulheres pesquisadoras com interesse pelo tema e que se fortalecem como lideranças do
movimento negro.
Negro e homossexualidade
Este tópico está relacionado com o anterior no que respeita à universalidade da idéia
de masculinidade. Concentrar-me-ei na idéia de negro “super masculino” que emerge em
algumas das dissertações pesquisadas4
Particularmente, os pesquisadores, inclusive aqueles do movimento negro, teriam
supostamente absorvido a concepção racista de que em sua performance sexual o negro seria
superior ao branco. Frantz Fanon aborda essa idéia:
(…) Quando se trata do Judeu, o problema é claro: desconfia-se dele, porque quer possuir
as riquezas ou instalar-se nos postos de comando. O preto, esse, está fixado ao genital; ou
pelo menos aí o fixaram. Dois domínios: o intelecto e o sexual. O pensador de Rodin em
ereção, eis uma imagem que choca. Não é possível decentemente estar-se excitado em todo
o lado. O preto representa o perigo biológico. O Judeu, o perigo intelectual. Ter fobia do
preto, é ter medo do biológico. Porque o preto não é senão biológico. São animais. Vivem
nus. E só Deus sabe… (…) (Fanon, s/d[1952]: 196).
Esse mito de “super virilidade negra” leva a uma barreira na associação entre o negro
e a homossexualidade. Essa associação contrariaria o único quesito em que o negro
“supostamente” seria superior ao branco. O caráter de “tabu” desse tema possivelmente
reflete-se nas poucas produções com essa abordagem por parte do próprio movimento negro.
4
São elas: (1) María Elvira Diaz Benitez (2005), Negros homossexuais: raça e hierarquia no Brasil e na
Colômbia, Universidade do Rio de Janeiro; (2) Antônio Carlos da Hora (2000), Cor-de-rosa e Carvão: “o
discurso afirmativo da diferença”, Universidade Federal do Rio de Janeiro; e (3) Suely Aldir Messeder (1999),
É só um jeito de corpo: um estudo sobre masculinidade a partir das representações e do uso do corpo por
jovens, negros, de setores populares na cidade do Salvador, Universidade Federal da Bahia.
162
A produção acadêmica nas cinco regiões
Frantz Fanon durante três e quatro anos nos 1950 entrevistou cerca de 500 homens brancos:
franceses, alemães, ingleses e italianos.
A análise dessas entrevistas mostram que os brancos de diferentes nacionalidades
mitificavam a sexualidade negra. Se o anti-semitismo se expressa pelo suposto “perigo” que o
judeu representa ao grupo branco por causa de uma ameaça intelectual, o negro seria uma
ameaça física, um verdadeiro perigo para as mulheres brancas. Para o branco, o negro seria
um animal; senão é o tamanho do pênis, é a potência sexual que o impressiona (Fanon, s/d
[1952]: 200). Essas idéias míticas sobre a sexualidade negra choca-se com a idéia de negro
homossexual, particularmente incomoda a idéia que os negros homossexuais recusem o único
quesito em que eles são considerados superiores aos brancos.
Eldridge Cleaver interpreta o “pretenso” elogio da “suposta” superioridade física do
homem negro da seguinte forma: O homem branco pode até aceitar um homem negro que se
destaca no plano físico, mas antipatiza com aquele que se destaca no terreno intelectual.
Simbolicamente o negro seria o corpo e o branco, o cérebro. Os dois estão em níveis
hierárquicos diferentes, cabe ao cérebro comandar o corpo; não há disputa entre um e outro. O
branco se incomoda quando encontra um negro que considere com capacidade intelectual
igual a sua, pois estaria competindo com ele no mesmo plano (Cleaver, 1971: 152).
Nesse sentido, os homens pesquisadores negros seriam simbolicamente “cérebros”,
que geralmente não questionam o mito atribuído à sua sexualidade, isto é, a idéia deles
próprios como “corpo” porque, ao absorveram a ideologia machista e não questionarem a
sexualidade heteronormativa, acabam por se silenciarem sobre a expressão racista branca que
classifica o negro como “super-masculino”. Este silêncio produz praticamente a ausência de
uma produção crítica sobre a sexualidade negra (Santos, 2006c: 86-125) e o negro
homossexual torna-se um problema não só para uma concepção machista mas também para as
conseqüências do racismo expressas no próprio homem negro.
163
“Provincializar” o branco
racialistas que utilizam a raça como “essencialismo estratégico”. Esta última seria a tendência
mais acentuada no movimento negro, sobretudo depois dos anos 1990 (Brah, 2006: 329-376).
O trabalho de tradução visa esclarecer o que une e o que separa os diferentes movimentos e
as diferentes práticas, de modo a determinar as possibilidades e os limites da articulação ou
agregação entre eles. Dado que não há uma prática social ou um sujeito colectivo
privilegiado em abstrato para conferir sentido e direção à história, o trabalho de tradução é
decisivo para definir, em concreto, em cada contexto histórico, quais as constelações de
práticas com maior potencial contra-hegemônico (Santos, 2006c: 118).
164
A produção acadêmica nas cinco regiões
5
http://vagalume.uol.com.br/racionais-mcs/
165
“Provincializar” o branco
(…)
166
A produção acadêmica nas cinco regiões
(…)
empapuçado ele sai,vai dar um rolê, não acredita no que vê, não daquela maneira
(…)
Essas músicas, por vezes, se tornam “clipes” musicais que provocam indignação
naqueles que assistem; um sentimento de revolta que torna difícil ignorar os horrores
existentes do outro “lado da linha abissal”. Paradoxalmente a propagação da arte via música
ou filme faz com que as pessoas acabem por naturalizar o horror devido à própria repetição
exaustiva das letras e dos filmes e aos programas televisivos que exibem diariamente os
conflitos que ocorrem nos bairros pobres, editando a idéia de ladrão, pobre, negro, “bandido”
versus policial, pobre, branco “mocinho” (Sovik, 2004a: 377-384), recorrendo, assim, à
imagem dos antigos filmes de faroeste norte-americanos.
Não poderia deixar de mencionar que o rap em particular e o movimento hip-hop
como um todo expressam em suas músicas uma ótica machista que beira a misoginia, também
os rappers acabam por reivindicarem para si a idéia de super virilidade como mostra o estrofe
seguinte:
(…)
167
“Provincializar” o branco
(…)
168
A produção acadêmica nas cinco regiões
A intenção não seria de fugir da realidade, e sim, buscar não restringi-la somente à
“realidade existente” (Santos, 2002b: 23-36). Como foi mostrado no Capítulo 2, o racismo
que persiste e se modifica desde a rebelião das senzalas faz com que negros desperdicem suas
potencialidades desde os tempos imemoriais. A história do Brasil, portanto, também é a
história do desperdício do talento negro desde sempre. Por exemplo, Luísa Mahin, Luís
Gama, Benedita da Silva, Abdias do Nascimento, Lélia Gonçales, Esmeralda Ribeiro, Rita de
Cássia Camargo, Cuti, Geni Guimarães; Nilma Gomes6 (Oliveira [org.], 1998: 12-13), pode-
se dizer que essas pessoas possuem em comum muito do talento desperdiçado por causa da
luta contra a escravidão e o racismo – mesmo que o racismo potencialize outros saberes.
4. Epílogo
De acordo com as hipóteses apresentadas, (a) a branquitude seria uma emergência nos
estudos sobre as relações raciais no Brasil; (b) a branquitude foi uma pauta que o movimento
negro influenciou para que fosse incorporado pela academia; (c) o movimento negro
influencia a academia e (d) as políticas de ação afirmativa predominam na pauta do
movimento negro na atualidade. Os resultados da pesquisa, até o presente momento, apontam
a branquitude como um tema emergente no período de 2000 a 2006.
De acordo com os dados levantados, o movimento negro é tema na produção
acadêmica de quatro das cinco regiões do país. Do mesmo modo, as políticas de ação
afirmativa, como principal pauta do movimento negro (Silvério, 2003: 57-77), são objeto de
estudos em universidades de todas as cinco regiões do Brasil.
Os resultados da pesquisa confirmam a expressividade do movimento negro e sua
influência nacional. A investigação também mostrou que, como resultado da influência e
mobilização do movimento negro, uma de suas pautas principais na medida em que se
converteu em tema de debate nacional também repercutiu nacionalmente como tema de
reflexão académica – refiro-me particularmente à política de ação afirmativa.
Quanto à hipótese central, o tema branquitude emerge na região Sudeste sob influência
das pesquisas sociais realizadas na Universidade de São Paulo, conforme salientado no
capítulo anterior. Os dados recolhidos demonstram que a Universidade de São Paulo é o
principal centro de produção acadêmica sobre relações raciais no Brasil. No tema da
6
Todas essas pessoas são personalidades conhecidas especilamente pelas pessoas do movimento negro.
169
“Provincializar” o branco
170
Capítulo 6: A branquitude no Brasil
A branquitude no Brasil
1. Prólogo
1
Estou utilizando o termo branquitude, alguns autores utilizam o termo branquidade, de acordo com a revisão da
literatura que fiz, no Brasil, ambos possuem o mesmo significado. Esta diferença seria uma questão da tradução
do conceito em inglês. Eu optei por utilizar o termo branquitude, para seguir a linha dos trabalhos acadêmicos
brasileiros que optam pelo termo branquitude.
173
”Provincializar” o branco
2
As controvérsias políticas e analíticas em torno do conceito de raça foram abordadas no primeiro capítulo.
174
A branquitude no Brasil
identidade cultural resolve-se com sua supressão. Esta linha de teóricos críticos não está
convencida da possibilidade de expurgar o traço racista da identidade racial branca, portanto,
propõe a abolição da branquitude e, por via de consequência, a abolição da negritude.
Para esses teóricos – cuja maior expressão é o historiador David R. Roediger –, a
branquitude somente faria sentido quando relacionada com a negritude. No fundo esses
autores, propõem um caminho para a supressão de todas as opressões (de gênero, opção
sexual, classe, etc.). Remete-se à idéia da libertação da negritude e da branquitude de Frantz
Fanon (Fanon, s/d[1952]: 37-39; Rachleff, 2004: 109). Por outro lado, ao proporem a extinção
da raça, recorrem a uma tradição marxista que prevê a necessidade de se abolir todos os
grilhões que prendem homens e mulheres a uma situação de subjugação, ainda que, para isso,
seja necessário um processo revolucionário (McLaren; 2000: 263; Ware, 2004a: 10; Santos,
2002a: 42). Enquanto a primeira linha de estudos críticos da branquitude propõe a
reconstrução da raça branca, mantendo-se uma sociedade racializada com a supressão das
hierarquias sociais; a essa segunda linha de pensamento subjaz o projeto de uma sociedade
não racializada.
Apesar de considerar convincente a idéia de Frantz Fanon de a “humanidade libertar-
se da negritude e da branquitude”, minha opção caminha em direção à linha de estudos que
propõe a resignificação da branquitude. Essa opção é feita tendo em conta a realidade
brasileira e a necessidade de a raça ser utilizada de maneira emancipatória3. Conforme
sustenta Stuart Hall (2003: 347), o conceito raça não seria uma categoria de essência, trata-se
de um conceito histórico e social que, portanto, se modifica no decorrer do tempo. Isto
significa que existe a possibilidade de reconstruir o conceito eliminando a classificação social
superior e inferior que lhe é atribuída.
O negro, ao reconstruir sua identidade racial, geralmente, elimina o traço de
inferioridade que é atribuído à negritude4 (Munanga, 1988: 57-79). O branco poderia agir de
forma semelhante, ao reconstruir sua branquitude, expurgar o traço de superioridade.
Considero que mais importante do que a abolição da raça é a supressão do racismo.
175
”Provincializar” o branco
5
Este assunto foi tratado no Capítulo 1, relembro que para o sociólogo brasileiro Antonio Sérgio Alfredo
Guimarães nem toda idéia de raça é necessariamente racista. No mesmo sentido, tanto pode existir a prática
racista anti-racista – que propõe o filósofo Paul Satre – quanto pode existir a prática racialista anti-racista
(Guimarães, 2005c: 67). Cabe ressaltar que venho denominando as ações do movimento negro contemporâneo
no Brasil como exemplo de prática racialista anti-racista, ou seja, esse movimento social utiliza o conceito raça
de maneira não racista.
176
A branquitude no Brasil
6
Como foi abordado no Capítulo 1, esses intelectuais são reconhecidos pelos seus estudos sobre a temática
racial. No que diz respeito à pertença étnica e racial seria aconselhável perguntá-los, todavia, não será possível
porque eles não se encontram mais entre nós. Contudo, nas suas publicaçãoes científicas, eles não se identificam
como brancos, porém sempre identificaram o negro como o outro, colocando-se, portanto, como não-negros ou
como brancos de maneira implícita. Na verdade, esses autores seguem a tendência hegemônica de investigação
sobre relações raciais no Brasil, não pesquisam o tema branquitude e restringem-se à negritude. Segundo a
pesquisadora Edith Piza – uma das poucas estudiosas brancas que assume o branco como objeto de estudo –,
esses autores seriam brancos que utizam o eu-narrador numa posição de neutralidade racial (Piza, 2002: 60-61).
7
Essa nomeação conflito de zona fronteiriça é inspirada no conceito cultura de fronteira de Boaventura de Sousa
Santos (2002a: 132-137). Arriscaria dizer que, o “conflito de zona fronteiriça” pode ser a todos os intelectuais e
ativistas “progressistas” que, privilegiados enquanto grupo por um determinado tipo de exploração ou opressão,
se colocam contra todas as explorações e opressões existentes.
177
”Provincializar” o branco
8
A autora Dieuwertje Dyi Huijg na sua dissertação de mestrado também utiliza a designação branquitude crítica
com outro significado, mas na perspectiva de criticar a noção de invisibilidade da branquitude que abordarei
adiante Cf. (Huijg, 2007: 38-39)
9
Depois dessa paródia, resta-me pedir desculpas ao ilustre autor revolucionário. Se, por um lado, o pensamento
de Karl Marx inspira as idéias de brancos anti-racistas revolucionários que propõem a abolição da identidade
racial branca (Roediger, 2000: 1-71), por outro, a branquitude acrítica expressa o mais acentuado pensamento
racista da ultradireita.
178
A branquitude no Brasil
Enfrentamos, de forma crescente, um racismo que evita ser reconhecido como tal, porque é
capaz de alinhar “raça” com nacionalidade, patriotismo e nacionalismo. Um racismo que
tomou uma distância necessária das grosseiras idéias de inferioridade e superioridade
biológica busca, agora, apresentar uma definição imaginária da nação como uma
comunidade cultural unificada. Ele constrói e defende uma imagem de cultura nacional –
homogênea na sua branquidade, embora precária e eternamente vulnerável ao ataque dos
inimigos internos e externos… Este é um racismo que responde à turbulência social e
política da crise e à administração da crise através da restauração da grandeza nacional na
imaginação. Sua construção onírica de nossa ilha coroada como etnicamente purificada
propicia um especial conforto contra as devastações do declínio (nacional) (…) (Paul
Gilroy apud Hall, 2005: 64).
Deve-se lembrar que Frantz Fanon, antes de Paul Gilroy, utilizou o conceito racismo
cultural, porém o significado desse conceito para Fanon – pensado no contexto colonial
africano – seria o que hoje se denomina de racismo estrutural, isto é, a prática racista que se
encontra inscrita na estrutura social, histórica e cultural (Fanon, 1980: 36). Enquanto que para
Gilroy – pensado no contexto europeu pós-moderno – seria a prática racista contra a
10
A ideías do Conde Arthur de Gonbineau foram abordadas no Capítulo 1.
179
”Provincializar” o branco
11
Nesta dissertação com exceção do tópico A branquitude acrítica: a superioridade racial e a pureza nacional a
minha análise se dirige, sobretudo à branquitude crítica, ou seja, à branquitude que desprova publicamente o
racismo. Nesse aspecto, o meu trabalho segue a tendência da maioria da literatura, que tenho pesquisado, sobre
as relações raciais, todavia considero de suma importância a emergência de estudos sobre a branquitude acrítica,
que propagam a idéia de superioridade racial e pureza nacional, por vezes, ao praticar extermínios. Acerca desse
assunto, o teórico da comunicação social aponta que existem poucas pesquisas a respeito dos indivíduos e grupos
que expressam essa identidade branca acrítica (Downing, 2002: 136-144).
180
A branquitude no Brasil
181
”Provincializar” o branco
8. Eu posso estar segura de que meus filhos vão receber materias curriculares que
testemunhem a existência da sua raça.
13. Se eu usar cheques, credit cards ou dinheiro, eu posso contar com a cor da minha pele
para não operar contra a aparência e confiança financeira.
15. Eu não preciso educar os meus filhos para estarem cientes do racismo sistêmico para a
sua própria proteção física diária.
21. Eu nunca sou pedida para falar por todas as pessoas do meu grupo racial.
24. Eu tenho bastante certeza de que se eu peço para falar com a ‘pessoa responsável’, eu
vou encontrar uma pessoa da minha raça.
27. Eu posso voltar para casa da maioria das reuniões das organizações as quais pertenço,
sentir-me mais ou menos conectada, em vez de isolada, fora de lugar, ser demais, não-
ouvida, mantido à distância, ou ser temida,
34. Eu posso me preocupar com racismo sem ser vista como auto-interessada ou
interesseira.
40. Eu posso escolher lugares públicos sem ter medo de que pessoas de minha raça não
possam entrar ou vão ser mal-tratadas nos lugares que escolhi.
41. Eu posso ter certeza de que se precisar de assistência jurídica ou médica, minha raça
não irá agrir contra mim
182
A branquitude no Brasil
Definir a raça como sendo simplesmente cor e, portanto insignificante, é tão subordinador
como definir a raça como cientificamente determinante de deficiência inerente. A velha
definição cria a falsa ligação entre raça e inferioridade, a nova definição nega a verdadeira
ligação entre a raça e a opressão, sob uma supremacia branca sistemática. Distorcendo e
negando a realidade, as duas definições sustentam a subordinação de raças. Como
argumentou Neil Gotarnda, “não ver cor” é uma forma de subordinação de raça no sentido
de que nega o contexto histórico da dominação branca e subordinação negra [1993: 1768]
(apud McLaren, 2000: 262).
183
”Provincializar” o branco
Devido à importância das pesquisas correntes sobre o branco nos Estados Unidos,
pode se chegar à equivocada suposição de que os estudos críticos sobre branquitude
restringem-se à realidade norte-americana e são daí transportados irrefletidamente para o
estudo de outros contextos. A pesquisa sobre a branquitude norte-americana como toda forma
de conhecimento é um conhecimento situado (Brah, 2006: 329-376). No entanto, a literatura
anglosaxônica pode contribuir para a análise de outras realidades locais pois todo
conhecimento local é também global. Além disso, há de se considerar a necessidade de
dialogar com a produção norte-americana uma vez que, em outras regiões, a reflexão teórica
sobre o branco é escassa. Em uma perspectiva a partir de diferentes escalas de análise, a
emergência dos estudos críticos sobre a branquitude nas nações periféricas e semi-periféricas
pode trazer novas idéias para o debate e contribuir para o aprofundamento acerca da
homogeneidade e heterogeneidade existentes na configuração da identidade racial branca em
escala nacional e internacional.
Há que se assinalar que a reflexão sobre branquitude nos países centrais naturalmente
influencia a discussão sobre branquitude nos países periféricos e semi-periféricos, dada a
hierarquia estabelecida entre essas nações. Os brancos dos países pobres seriam considerados
184
A branquitude no Brasil
“menos brancos” do que aqueles dos países ricos, aliás, no mesmo sentido, os brancos dos
países pobres podem ser considerados não brancos nos países ricos (Santos, 2006d: 276-277;
Ware, 2004a: 23-24).
Os Estados Unidos, ao fabricar e importar uma cultura de entretenimento de larga
escala (Black: 2004: 219-282), acaba por se tornar um elemento de influência sobre a noção
de branquitude nos contextos locais. Para ilustrar essa idéia, diria que os EUA, através da
indústria cinematográfica, associa ao grupo branco um certo ideal de beleza e a reprodução
internacional desses filmes acabam por colaborar com o fortalecimento da idéia de
superioridade do grupo branco em escala transnacional (Santos, 2002a: 127).
O “poder”12 atribuído à nação norte-americana fortalece no ideário da identidade racial
branca naquele país a idéia de virtude como característica intrínseca da branquitude. Desde os
primórdios da construção desta nação, esse “valor” atribuído ao branco teria sido sempre
colocado à prova “no seu fardo do homem branco” na luta, por exemplo, contra os nativos –
que resultou no extermínio do “outro”, não branco. Para os grupos brancos e não brancos dos
países periféricos e semi-periféricos, a difusão de um ideal do cidadão norte-americano
“poderoso” é transmitida sob a ideologia de uma branquitude “gloriosa”.
Neste contexto de êxitos e virtudes, o branco pobre seria um incompetente ou
degenerado, mas nunca negro. Em uma sociedade racista marcada por desigualdades
econômicas e sociais, por mais que a situação do branco seja de miserabilidade, ele sabe que
não é um negro e, portanto, encontra-se em um nível hierárquico superior ao do negro, ainda
quando inferior ao branco rico, ou, como branco dos países centrais, superior ao branco dos
países periféricos e semi-periféricos (Wray, 2004: 339-361). A África do Sul e o Brasil
representam duas realidades, fora do eixo dos países centrais, onde o investimento em
pesquisas sobre o tema da branquitude pode ser especialmente revelador. Neste instante,
abordarei primeiro o contexto sul-africano, e logo em seguida o contexto brasileiro, que trata
de meu tema central neste capítulo.
Ao escrever sobre o branco na África do Sul, Melissa Steyn argumenta que o contexto
africano pode exercer uma influência nos estudos críticos da branquitude. Em princípio
porque na África do Sul os brancos são minorias. Além disso, neste país, a dualidade branco e
negro está marcada pela dicotomia entre dois tipos ideais de estereótipos racistas: branco
europeu versus negro africano.
12
Militar, econômico, político, cultural, etc.
185
”Provincializar” o branco
13
Durante o seu mandato o presidente Nelson Mandela constituiu a Comissão para Verdade e Reconciliação
com o objetivo de cuidar das feridas causadas no período do apartheid.
186
A branquitude no Brasil
brancos com a própria África com uma ótica positiva, antes relegada somente à Europa, por
consequência, aumenta a identificação enquanto africano branco, diferente de branco vivendo
em um país do continente africano. Melissa Steyn dirá que isto pode sugerir dois significados:
primeiro, trata-se de uma reciclagem do velho discurso africânder, que reivindica o direito de
existir e possuir terras; segundo, aponta para uma nova relação do branco com o continente
africano e com os negros africanos. Semelhante à realidade brasileira, a reflexão acadêmica
acerca do branco ainda se encontra em fase embrionária na África do Sul.
Diante de tudo que foi mencionado, também, como ressalva, não é prudente fechar os
olhos para a atuação do chefe de Estado negro em um país de maioria negra, supostamente,
por causa de sua pertença étnica e racial. A persistência das desigualdades raciais na África do
Sul devem-se também ao fato de os governos negros não terem rompido com as diretrizes
políticas sugeridas pelas potências centrais aos países periféricos e semi-periféricos, como
aponta Shamim Meer.
Portanto, a condição de pobreza que vivem os negros sul-africanos e brancos sul-
africanos, não se restringem apenas ao colonialismo, apartheid, racismo estrutural e privilégio
branco (Meer, 2004: 225-257; Beissinger e Young, 2002: 19-50). Não se trata apenas de um
problema racial e étnico ou uma consequência da herança colonial. Igualmente não se trata
totalmente de uma questão de classe que seria resolvida com a revolução socialista ou
comunista (McLaren, 2000: 263). A questão é mais complexa, interrelacionada e profunda.
Neste momento, o país sul-africano serviu-me como exemplo de que governantes
negros ou brancos ao seguirem as orientações econômicas fixadas pelas nações centrais e seus
organismos internacionais (Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional e Organização
Mundial do Comércio) provavelmente colaborarão para o agravamento de suas desigualdades
sociais (Santos, 2007: 3-46). O governo protagonizado por negros sul-africanos ilustra bem a
idéia de que, se caso não houver predisposição política para contrariar os interesses
particularmente dos mercados internacionais14, os políticos independentes de sua pertença
étnica e racial encontrarão enormes dificuldades para que seus discursos de campanha em
favor da maioria sejam concretizados. Ao fazer essa ressalva, não significa que torna inválido
o argumento da Melissa Steyn, quando sustenta que a branquitude é um construto ideológico
do projeto modernista de colonização de êxito e, portanto, seria por definição um construto de
poder (Steyn, 2004: 113). Isto é, ser branco não significa apenas se encontrar no poder de
modo geral; ser branco é também ser poder.
14
Esse assunto também foi abordado no Capítulo 3.
187
”Provincializar” o branco
8. A branquitude no Brasil
15
Como foi mostrado nos capítulos 4 e 5, a pesquisa que realizei apontou a emergência do tema da branquitude
na produção académica brasileira.
188
A branquitude no Brasil
A Tabela 1 mostra que foram encontradas nove publicações: sete artigos publicados
em livros, um artigo publicado em um periódico científico e uma tese de doutorado defendida
na Universidade de São Paulo. Essa tabela revela que a primeira publicação que abordou o
branco enquanto tema foi do sociólogo Alberto Guerreiro Ramos em 1957, esse mesmo texto
foi republicado em 1995. Os artigos de Edith Piza serão tratados logo adiante. O artigo de
César Rossatto e Verônica Gesser aborda o tema branquitude no Brasil e nos Estados Unidos,
o eixo de argumentação desses autores é a importância do conceito branquitude na luta anti-
racista e, nesse âmbito, destacam o papel da educação e a aplicação de uma pedagogia que
colabore com a supressão das hierarquias raciais (Rossatto e Gesser: 2001: 11-37).
Os artigos de Liv Sovik são os textos mais recentes sobre a branquitude no Brasil.
Enquanto pesquisadora da área da comunicação social, Sovik refletirá sobre o papel da mídia
para o estímulo dos estereótipos favoráveis ao branco e depreciativos ao negro. Demonstra
que a comunicação social é uma área imprescindível para a pesquisa científica brasileira sobre
a branquitude. Essa autora também vai criticar o argumento de que debater a branquitude no
189
”Provincializar” o branco
Brasil seria importar uma idéia estrangeira. A reflexão sobre a branquitude é necessária para a
sociedade brasileira e, consideradas suas particularidades, pode contribuir para melhor se
compreender as formas sutis do racismo no Brasil (Sovik, 2004a: 384).
Talvez uma metáfora possa resumir o que comecei a perceber: bater contra uma porta de
vidro aparentemente inexistente é um impacto fortíssimo e, depois do susto e da dor, a
surpresa de não ter percebido o contorno do vidro, a fechadura, os gonzos de metal que
mantinham a porta de vidro. Isto resume, em parte, o descobrir-se racializado
(...)
Porém, à medida que vai se buscando os sinais dessa suposta “invisiblidade”, vai-se
também descobrindo os vãos da porta. Toda porta de vidro tem vãos. Nunca estão
totalmente encaixadas na moldura (Piza, 2002: 61-62).
190
A branquitude no Brasil
nessa direção (Ware, 2004a: 34; Frankenberg, 1999b: 70-101; Rachleff, 2004: 108), enquanto
outros, com os quais partilho a idéia, criticam o argumento de que o branco não se enxerga
como grupo racial (Frankenberg, 2004: 307-338; Wray: 2004: 353). Como foi mostrado em
outra parte, o branco sul-africano não considera sua identidade racial branca invisível.
A própria autora Ruth Frankenberg, que sustentava que a invisibilidade era um dos
traços significativos da identidade racial branca, acabou por rever sua posição. Agora,
sustenta que a invisibilidade como uma característica da branquitude é uma idéia fantasiosa, a
concepção de que a identidade racial branca seria uma categoria não marcada não se sustenta.
Desde o primeiro encontro dos europeus com os africanos e ameríndios, houve uma
delimitação em que portugueses, espanhóis, ingleses, holandeses e alemães foram marcados
ou se automarcaram como brancos. Portanto, mais importante do que pensar sobre a suposta
invisibilidade racial do grupo branco, seria analisar as formas como essa identidade cultural é
marcada (Frankenberg, 2004: 307-338). Vale sublinhar que, a idéia de invisibilidade acaba
por ser outra marcação para branquitude, uma significação que acaba por ser praticada pelos
próprios teóricos, sobretudo norte-americanos, pelo que não seria prudente aos pesquisadores
brasileiros seguirem nessa perspectiva sem maiores questionamentos.
Matt Wray vai dizer que a definição da branquitude como norma, geralmente seguida
pela idéia de que ela é “invisível”, acaba por privilegiar o ponto de vista dos brancos, que sem
auto-consciência, não têm como questionar suas vantagens raciais. Esse autor sustentará que a
branquitude não é invisível para muitos brancos e serve igualmente para distinguir os brancos
entre si, como é caso do branco pobre e do rico. Por fim, “a branquitude tem sido
historicamente visível tanto para aqueles que são excluídos de integrá-la, quanto para aqueles
que exercem essa exclusão”(Wray, 2004: 354).
191
”Provincializar” o branco
estética do negro. Isso acabou por se tornar patológico, na medida que o processo de
miscigenação fez com que, naquela época, pessoas antes consideradas brancas, fossem
estereotipadas como negras, por deterem ancestralidade negra, todavia elas rejeitam
totalmente sua parte negra biológica e cultural em favor de uma identidade branca
eurocêntrica ou norte-americana. Esse é o período em que as teses científicas de superioridade
racial, especialmente nos quesistos inteligência e beleza, ainda vigoravam na academia
brasileira e no imaginário popular, refiro-me à ideologia do branqueamento que foi abordada
no primeiro capítulo.
Em resumo, a tese central de Guerreiro Ramos é a seguinte: existe na sociedade
brasileira uma patologia social do ‘branco’ que consiste na negação de pessoas com qualquer
descendência biológica ou cultural negra.
Por outras palavras, o brasileiro no geral considerava vergonhosa qualquer associação
à sua descendência negra, seja no âmbito cultural ou biológico. Esse autor, irá sustentar que
devido ao passado considerado “positivo” da história da identidade racial branca – a história
de uma aristocracia econômica e intelectual – faz com que ocorra a tendência que o pardo
fosse classificado como branco, e os pretos como pardos, resultando em um branqueamento e
empardecimento da sociedade brasileira e, por consequência, no desaparecimento da
classificação preto.
A classificação preto, pardo e branco é feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) e os resultados do censos populacionais de 1940 apontaram tendências, por
vezes paradoxais: a pesquisa revelou maior concentração de pessoas classificadas como pretos
na região Sul, que possui a menor concentração da população não-branca; e a menor
quantidade na região Norte e Nordeste, que possui a maior parcela da população não-branca.
Para este sociólogo, esse recenseamento de 1940 indicava a tendência de desaparecimento do
negro da região Norte e Nordeste, enquanto que a população da região Sul enegrecia.
Ramos, ao mesmo tempo em que considerava esses dados inverosímeis, interpretava-
os como indício do quadro patológico das relações raciais no Brasil. Em síntese, o negro tende
a identificar-se como pardo; o pardo como branco, e o branco recusa qualquer mistura
biológica ou cultural com o negro, e argumentava a favor de sua ancestralidade européia.
Enfim, desejava ser branco centro-europeu ou branco norte-americano, influenciado pela
hierarquia racial entre os países (Ware, 2004a: 24).
Porém, Guerreiros Ramos era otimista quanto ao futuro, sustentou que no Brasil
daquela época (anos 1950), ao passo do seu desenvolvimento econômico-social, não
192
A branquitude no Brasil
16
Guerreiro Ramos sempre coloca “branco” brasileiro entre aspas, para sustentar à idéia que dificilmente existe
branco puro, que seria aquele que não possui nenhuma mistura cultural e/ou biológica com o negro e a cultura
afro-brasileira (Hall, 2003: 335-349).
17
Conforme foi mostrado no Capítulo 2.
193
”Provincializar” o branco
Para concluir diria que, Guerreiro Ramos neste artigo pioneiro acaba por analisar o
impacto da ideologia do branqueamento no grupo branco. Os pesquisadores do seu tempo
tendiam a pensar o impacto dessa ideologia apenas para o grupo negro; discorriam
longamente a respeito do desejo do negro com “complexo de inferioridade” de ser branco. Na
Patologia do branco pode-se tentar de forma semelhante compreender “o complexo de
inferioridade” do branco do país periférico. Se o negro brasileiro desejava ser branco
brasileiro, da mesma maneira, muitos brancos brasileiros desejavam ser branco norte-
americanos, ou brancos ingleses, brancos alemães. Talvez muitos ainda desejem (Ware,
2004a: 24-26; Santos, 2006i: 179-209)
As tabelas que serão apresentadas abaixo foram elaboradas com base nas teses e
dissertações pesquisadas junto às universidades brasileiras e apontam para um quadro geral da
emergência do termo branquitude no Brasil. Também indicam em qual universidade e subárea
aparece esse termo. O termo branquitude não foi encontrado nas regiões Sul, Centro-Oeste,
Norte e Nordeste.
194
A branquitude no Brasil
Haike
4) UFRGS A trajetória de uma liderança étnica: J. Roselane
2005 D História
(Sul) Aloys Friedrichs (1869-1950). Kleber da
Silva
A cultura popular e as atividades rítmicas: Célia
5) UFSC Educação
2002 M um estudo de caso em uma comunidade de Guimarã
(Sul) física
raiz étnica germânica. es Perini
Márcia
6) UFSC Ciências Representações sociais e etnia: um retrato
2004 M Santos de
(Sul) Humanas interdisciplinar de Escola Agrícola.
Souza
Branco,
Alemães em Lages: uma trajetória de
7) UFSC Juçara de
2001 M História conflitos e alianças guardadas pela
(Sul) Souza
memória.
Castello
O aspecto mais relevante que pretendo demonstrar com a Tabela 3 é que a branquitude
vem sendo estudada de maneira implícita na academia brasileira desde 2001, esse é um dado
novo que a pesquisa apontou. Considero que o estudo sobre a branquitude nestes casos é
implícito porque problematiza certos grupos brancos sem localizá-los no quadro geral das
relações raciais e, portanto, sem problematizar sua pertença étnica e racial.
195
”Provincializar” o branco
lhes sobre a sua pertença étnica e racial18. Edith Piza, que se autodefine como branca, define
esses autores como brancos (Piza, 2002: 59-90).
Escolhi a Universidade de São Paulo porque esta se confirmou na pesquisa que
realizei como a principal universidade na produção acadêmica sobre relações raciais. As
tabelas ainda mostram a quantidade de produções, o ano da defesa, o grau acadêmico, o título,
a autoria e a subárea do curso.
A Tabela 4 aponta seis autores, todos eles têm pautado a discussão sobre o preconceito
racial, racismo e discriminação “injusta” no Brasil. O sociólogo Fernando Henrique Cardoso
seguiu a trajetória política e não tem, particularmente, produzido mais artigos sobre a temática
racial, todavia prefaciou recentemente a segunda edição do livro “clássico” de Carlos
Hasenbalg chamado Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. Lila Mortiz Schwarcz
e Antonio Sérgio Alfredo Guimarães têm contribuído para o tema com suas produções e,
atualmente têm atuado no debate sobre as políticas de ação afirmativa. Octávio Ianni e
Florestan Fernandes – que foram mencionados no primeiro capítulo – já são autores falecidos,
porém deixaram importantes publicações sobre muitos assuntos, inclusive essas obras
fundacionais nos estudos sobre as relações raciais, mostradas na Tabela 4.
18
Penso que no doutorado será possível entrevistar alguns desses autores durante a pesquisa de campo, poderei,
então, perguntar-lhes sobre como se de definem do ponto de vista étnico e racial. As respostas poderão me levar
a rever minha opção de denominá-los como não negros ou branco entre aspas. O dado direto na fonte somente
será possível de colher com: Fernando Henrique Cardoso, Lilan Mortiz Schwarcz e Antonio Sérgio Alfredo
Guimarães.
196
A branquitude no Brasil
197
”Provincializar” o branco
machista e racista. Com exceção de Maria Aparecida da Silva Bento, todos os autores tratarão
do negro como tema, assim como os autores não negros ou “brancos”.
Como foi mencionado, Maria Aparecida da Silva Bento é a autora da única tese de
doutorado acerca do tema branquitude no Brasil. A idéia principal a ser desenvolvida pela
autora, seria o conceito “pacto narcísico”, isto é, os brancos procuram unir-se para defender
seus privilégios raciais. Desde 1992, essa autora preocupa-se com as práticas racistas
motivada pela defesa dos privilégios praticada pelo grupo opressor. Esse será o ponto central
de Bento, ao fugir da idéia corrente de que a desigualdade racial seria fruto somente do
preconceito racial, ou racismo estrutural – mesmo quando não intencional.
A tese de doutorado dessa autora analisará como as expressões da branquitude podem
colaborar para manter as hierarquias raciais, ou mais concretamente, o lugar do branco de
privilégio racial. Maria Aparecida Bento analisa os discursos dos gestores de pessoal: chefe e
profissionais de Recursos Humanos no serviço público de duas prefeituras. Ela chegará à
conclusão de que o profissional de RH branco tende a contratar pessoas do mesmo grupo de
pertença, entre outras razões, porque o semelhante lhe inspira confiança.
Na concepção de branquitude de Bento encontra-se a idéia de invisibilidade racial,
semelhante ao significado empregado por Piza, contudo, essa autora, mesmo considerando as
dimensões subjetivas da identidade racial branca e sua suposta invisibilidade, ao desenvolver
a idéia de “pacto narcísico”, acaba por seguir mais em direção a apontar que a branquitude
significa privilégios simbólicos e materiais palpáveis, não se alongando na idéia de identidade
racial não marcada. O argumento central defende que o pacto narcísico traz vantagens que se
acumulam e reproduzem as desigualdades. Enfim, para compreender melhor as desigualdades
raciais no Brasil, é importante entender a pacto entre brancos e os preconceitos e práticas de
racismo “por interesse” que resultam na manutenção da branquitude enquanto ser poder e
estar no poder, além do prestígio.
Maria Aparecida da Silva Bento com base em sua tese de doutorado publicou dois
artigos: “Branqueamento e branquitude no Brasil” e “Branquitude: o lado oculto do discurso
sobre o negro”, ambos publicados no livro Psicologia social do racismo, organizado por ela e
Iray Carone. No primeiro artigo, criticará a idéia dos intelectuais brancos que sustentavam que
198
A branquitude no Brasil
o negro que ascendia socialmente embranquecia, portanto o lugar do negro seria o lugar de
precariedade social.
No segundo texto, mostrará como a experiência da organização que coordena, o
Centro de Estudos da Relação de Trabalho e Desigualdades – CEERT – pode colaborar para a
discussão do tema racismo e branquitude, em uma discussão voltada para pessoas ligadas ao
feminismo e sindicalismo que procuram restringir a interpretação ao gênero e classe e não se
questionam como “mulher branca” ou “sindicalista branco” (Bento, 2002c: 147-162).
Se, por um lado, A patologia social do “branco” brasileiro de Alberto Guerreiro
Ramos representa o projeto de se problematizar o branco nas pesquisas sobre relações raciais,
por outro lado, Psicologia social do racismo representa a colocação em prática desse projeto,
que não foi possível diante do contexto histórico no qual viveu Guerreiro Ramos e também
porque o movimento negro não possuía a mesma força. Ainda era muito forte a ideologia de
democracia racial, partilhada pelo próprio movimento em certa altura.
O protagonismo intelectual e acadêmico de Maria Aparecida da Silva Bento coloca-a
como a pesquisadora mais importante sobre a branquitude no Brasil, sem deixar de mencionar
a importância da contribuição de Edith Piza (Bento, 2002b: 25-57). Além disso, a
pesquisadora Liv Sovik tem abordado esse tema na área da Comunicação Social na
Universidade Federal do Rio de Janeiro, o que pode resultar em novas publicações bem
vindas e necessárias. É justo que Maria Aparecida Bento seja reconhecida pela produção
científica e pela elaboração de eventos que promovem a discussão sobre a branquitude através
da entidade que coordena o CEERT.
O livro Psicologia social do racismo tornou-se uma referência significativa para
discutir a relação racial no Brasil, inclusive para os estudantes interessados em focalizar o
branco em suas áreas de estudo, como muitos que, hoje em dia, estão realizando estudos de
pós-graduação fora do Brasil em países como: Holanda, Estados Unidos e Portugal – no meu
caso particular.
Refiro-me nomeadamente a dissertações de mestrado que ainda se encontram em
curso como, por exemplo, a de Jaime Amparo (2008) The Death Of Evils: Penal Sate, Black
Youth, And Urban Violence In A Brazilian Shantytown; e a de Márcia Lopes (2008) Between
the Modernist Brasilia and the Colonial Planaltina: an ethnographic study of urban space
racialization in Distrito Federal19, ambas as pesquisas estão sendo desenvolvidas nos Estados
19
O título destes trabalhos é provisório. Apesar de não assumirem a branquitude como principal objeto de
estudo, o tema está presente na preocupação e é uma da linhas de análise por qual optam.
199
”Provincializar” o branco
20
No capítulo anterior também mencionei nesse mesmo assunto a dissertação de mestrado de Dieuwertje Dyi
Huijg (2007) intitulada Feministas brancas, tirando às máscaras: a expressão da branquitude feminina nas
relações raciais intra-gênero, defendida na Holanda no ano passado.
200
Conclusão
Nesta dissertação a minha primeira preocupação foi, ao olhar para produção
acadêmica brasileira sobre relações raciais, analisar a escassez do branco enquanto tema de
pesquisa e sua preponderância no papel de pesquisador. Com o propósito de realizar uma
sociologia das ausências e das emergências pesquisei em diferentes universidades brasileiras
teses e dissertações1 na área das relações raciais. Pude, então, perceber a emergência do tema
branquitude e, nesse âmbito, a contribuição trazida pela influência e mobilização do
movimento negro (Santos, 2006c: 86-125).
A importância do ativismo negro foi tratada no Capítulo 2. No Capítulo 3 reforcei esse
argumento e sublinhei a influência do movimento negro em todo território nacional. Meu
principal argumento sustentou as políticas de ação afirmativa como um exemplo de pauta da
comunindade negra absorvida pelo Estado e pelas universidades nas cinco regiões do Brasil.
Com o levantamento de dados, pude rever meu pressuposto inicial de que o número
escasso de publicações sobre a branquitude era um indício da ausência de pesquisa nesse
tempo no campo das relações raciais2. Com a análise do resumo das teses e dissertações e
articulando esses dados com a história e o papel do movimento e de algumas de suas
lideranças fiquei convencido que a branquitude não seria um tema ausente. Muito embora
tenha estado ausente no período de 1960 a 2000. Neste início de século, a branquitude é uma
emergência na produção acadêmica brasileira.
Contextualmente, várias razões contribuíram para esta emergência. Por um lado, o
fortalecimento dos movimentos sociais e de organizações da sociedade civil sobretudo depois
das políticas neoliberais incentivadas pela adoção das decisões do Consenso de Washington
no Brasil. Por outro lado, deve ser apontada igualmente a mudança na postura política do
Estado no tocante ao tema das relações raciais. A partir dos anos 1990, o Estado passou a
aproximar-se da concepção de um Estado intercultural e, nesse sentido, contraria uma postura
historicamente consolidada em que os conflitos entre as identidades culturais tentavam ser
acomodados no conceito de identidade nacional (Munanga, 2004: 118).
1
Cf. capítulos 4 e 5.
2
Cf. Capítulo 1.
203
O branco “invisível”
Ao afirmar que o movimento negro exerce influência em todo território nacional e que
a branquitude foi absorvida pela academia devido à mobilização e expressividade desse
movimento, coloco-me em suspeita. Afinal, seria um negro militante “que fala” que o
movimento social ao qual faz parte é importante.
Levando-se em consideração que esta pesquisa expressa a pessoa que sou, minha
postura foi de “auto-vigilância epistemológica”. Partindo do pressuposto de que a absoluta
neutralidade cientifica seria improvável. Por essa razão, antes de ser neutro procurei ser
objetivo no sentido proposto por Donna Haraway (Haraway, 1995: 21 Santos, 2002b: 31).
Assim, para sustentar a credibilidade das conclusões alcançadas nesta dissertação,
procurei realizar um trabalho rigoroso e minucioso com base nas principais teorias sobre
racismo, sobretudo dos principais intelectuais que abordam o contexto brasileiro. Igualmente,
realizei uma pesquisa ampla cuja metodologia combinou métodos quantitativos e qualitativos.
Foram vários os testes a que submeti meus resultados para validar as conclusões que
deles surgiram. Nesse sentido, por exemplo, não me restringi apenas à Universidade de São
Paulo, à Região Sudeste ou à área das Ciências Humanas para investigar a produção
acadêmica sobre relações raciais – o que seria natural dada a preponderância dos trabalhos
3
Cf. Capítulo 5.
204
Conclusão
naquela universidade, região e área de estudo. Procurei ir além, levantando dados em mais 29
universidades, em todas as regiões do país e em todas as áreas de estudo.
A preponderância da produção da Universidade de São Paulo também não foi
assumida como natural pela pesquisa e, no estado de São Paulo, levantei dados junto a mais
duas outras universidades de forma a comparar a amplitude da produção da USP. A pesquisa
em si foi executada procurando combinar diferentes termos relacionados às relações raciais e
de forma a poder encontrar o maior número de resultados possíveis. De posse dos dados, as
conclusões também contaram com a análise qualitativa dos resumos de teses e dissertações e
seu enquadramento no pano de fundo da reflexão teórica sobre as relações raciais, bem como
do contexto histórico do Estado e do movimento negro.
O objetivo perseguido foi sempre de maior aprofundamento para que pudesse
compreender com amplitude distintos aspectos e testar minhas hipóteses. Estou acordo com
Stuart Hall quando utiliza a expressão conclusões “provisórias” para se referir aos resultados
de um trabalho de pesquisa. No que toca à minha pesquisa, o termo “provisório” não significa
que as conclusões não sejam credíveis mas, como é óbvio, também não implica que os
resultados encontrados não tenham limitações.
Devido às minhas fontes terem sido documentais, não pude testar minhas hipóteses
com entrevistas a militantes do movimento negro para verificar se concordavam, ou
percebiam o indício de que o movimento do qual fazem parte exerce influência com impacto
nacional. Também com relação aos pesquisadores brancos cuja teoria foi discutida no
Capítulo 1, não lhes perguntei como se autodefiniam sobre sua pertença étnica/racial.
Quando tive que me referir a alguns desses pesquisadores, utilizei o denominação
“branco” entre aspas, contrariando a minha postura adotada no início da dissertação de não
utilizar o conceito branco com aspas, mesmo porque já havia revelado que utilizo essa
categoria com o significado de construto social. Apesar de me parecer evidente que não se
definem como negros seria mais aconselhável a autodefinição do que a minha classificação de
não negro ou “branco” entre aspas. Realizei essa classificação a partir da constatação de que
esses autores em suas produções mantêm a dicotomia “eu” e o “outro” e, neste caso, somente
“o outro”, “o negro” é denominado (Said, 2004: 127).
Elísio Estanque dirá que o processo de conhecimento humano contém uma dimensão
autobiográfica (Estanque: 2000: 101-102). Uma das preocupações surgidas no decorrer desta
dissertação seria com o desperdício da experiência negra provocado pelo envolvimento na
205
O branco “invisível”
luta anti-racista4. Esta dissertação não deixa de ser outra atividade em que empenho minha
corporeidade e imaginação abstrata com o objetivo de colaborar na luta para a abolição do
racismo.
Quantas coisas não deixei de fazer por causa do enclausuramento e reflexão no
desenrolar desta dissertação? Faz parte de minha identidade a poesia, sou chamado de poeta –
por algumas pessoas – e, por vezes, apresento-me publicamente como tal. Essa seria outra das
marcas de minha estadia em Coimbra.
A questão que se coloca seria a seguinte, quantos poemas deixei de escrever por causa
deste trabalho? A poesia que escrevi – que se seguirá abaixo – existiria se não tivesse
focalizado no meu tema de trabalho?
Lourenço Cardoso
branco que é
brancu mesmo
é o cúmulo!
o sujeito pesquisar
o próprio objeto
pior cúmulo!
é pensar
mas, sí…
4
Cf. Capítulo 4.
5
Poesia de Lourenço Cardoso não publicada, em 2008, a pesquisadora Maria Ivete da Silva Coelho apresentou o
projeto de mestrado A representação do negro como personagem ficcional, mediante a escrita literária do
escritor afro-brasileiro, Lourenço Cardoso, na Universidade Estadual da Paraíba no Brasil.
206
Conclusão
objeto for
tá proibido!
branco que é…
brancu mesmo
Provincializar o branco
Uma das conclusões “provisórias” para a qual essa dissertação aponta é que, a atuação
do movimento negro, ao visibilizar e questionar o branco, faz com que ele seja particularizado
ou “provincializado”6 (Santos, 2002b: 83).
A “visibilidade” do movimento negro expressa em sua influência nacional leva ao
questionamento do lugar racial do branco. Em outras palavras, a branquitude, que se recusa a
pensar sobre seu privilégio racial, quando se sente discriminada por políticas de
discriminações “justas” – como as ações afirmativas, por exemplo – passa a questionar a idéia
de pertença étnica e racial.
Os discursos que vigoram irão em dois sentidos. Primeiro, na direção de sustentar uma
inconsistência da fundamentação científica da idéia de raça, procurando distanciá-la do seu
significado biológico originário. Segundo, os argumentos vão na direção da inexistência de
negro e branco porque todos os brasileiros seriam híbridos bilogicamente e culturalmente.
A “invisibilidade” do grupo branco ocorre tanto no argumento de “invisibilidade” da
própria idéia de raça, quanto na idéia de que o brasileiro seria a síntese de todas as diferenças
(Munanga, 2004: 110). Isto significa que, no Brasil, não existiriam “nem negros; nem
brancos”. As políticas de ação afirmativa seriam uma prática injusta para aqueles brasileiros
que recusam se identificarem como negros, ou como brancos, em uma lógica de classificação
arbitrária de influência abusiva norte-americana.
Essa construção fictícia da “invisibilidade” branca que se expressa nos dias atuais
origina-se nos anos 1930. Ela é a expressão do mito da democracia racial – abordado no
6
A expressão “provincializar o branco” foi inspirado na publicação de Chakrabarty (2000).
207
O branco “invisível”
7
A ideologia do branqueamento foi tratada em detalhes no Capítulo 1.
8
Quanto à branquitude crítica confira o capítulo anterior.
208
Conclusão
209
O branco “invisível”
9
Os privilégios raciais motivados pelo interesse do grupo são uma preocupação sobre a dimensão do racismo
discutida desde os anos 1990 no Brasil por Maria Aparecida da Silva Bento (2002b: 28-32).
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227
APÊNDICE
O branco “invisível”
Tabela 1 - A tradução entre a raça e outros temas na produção acadêmica brasileira sobre as relações raciais
Autora/
Universidade Ano Nível Sub-área Títulos Temas
Autor
Remanescentes de
Marcos
[1] quilombos &
Políticas Direitos Humanos e Estado Multicultural: políticas e Antonio
UFMA Doutorado Movimento
Públicas direitos étnicos na Constituição Federal de 1988 Barbosa
2004 Indígena
Pacheco
[2] MN
Comunicação Movimentos sociais: cultura, comunicação e Nogueira,
USP Doutorado &
& Arte participação política Silas
2005 MST 1
[3] Giaccherino Igualdade racial &
Economia solidária e igualdade racial: contribuições
UFRJ Mestrado Economia Irene Economia
para a construção de um diálogo
2006 Rossetto. Solidária
[4] É só um jeito de corpo: um estudo sobre masculinidade
Ciências Suely Aldir Negritude &
UFBA Mestrado a partir das representações e do uso do corpo por jovens,
Sociais Messeder Homossexualidade
1999 negros, de setores populares na cidade do Salvador.
1
Movimento Negro & Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
231