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ESCRAVIDÃO E DEPENDÊNCIA: Opressões e Superexploração Da Força de Trabalho Brasileira
ESCRAVIDÃO E DEPENDÊNCIA: Opressões e Superexploração Da Força de Trabalho Brasileira
ESCRAVIDÃO E DEPENDÊNCIA: Opressões e Superexploração Da Força de Trabalho Brasileira
Analisar a escravização contemporânea no Brasil é o objetivo do livro de Marcela O que pode explicar, em pleno
Marcela Soares
os rincões do país, dos mais urbanizados e
industrializados àqueles acentuadamente
Soares. Seu texto evidencia a urgência de resgatarmos o passado colonial escravo- Marcela Soares século XXI, a permanência da escravidão
moderna que se tonou parte constituti-
rurais, não para de se expandir a escravi- crata e apreendermos como a inserção capitalista dependente do Brasil na econo-
va da tragédia brasileira? Como é possível
ESCRAVIDÃO E DEPENDÊNCIA
dão contemporânea. O único contraponto é mia mundial recicla cotidianamente este passado alicerçado na superexploração e que, em plena era do trabalho digital e in-
dado pelas lutas da classe trabalhadora, por no racismo estrutural como bases contemporâneas do trabalho escravizado. Suas formacional, dos algoritmos, inteligência
suas resistências e combates, desde os qui- reflexões explicitam como se manifestam as expropriações permanentes, perversas artificial, big data, internet das coisas, 5G
lombos, passando pelas lutas indígenas até e estruturantes do capitalismo dependente, ainda que encobertas sob o mito da etc, a aberração da escravidão do trabalho
as greves do presente. democracia racial e da condição laboral do “empreendedorismo”. Com uma escrita opressões e superexploração da força de trabalho brasileira persista?
Ao transitar da exploração escravista pulsante e radicalidade crítica, o livro é leitura obrigatória para quem pesquisa e luta É exatamente para ajudar a desven-
colonial (traço central da acumulação primi- pela erradicação do trabalho escravizado no Brasil e no mundo. dar essa realidade que Marcela Soares ofe-
tiva) até a generalização da superexploração rece seu estudo. Sua explicação orienta-se
do trabalho como modus operandi de nosso KÁTIA LIMA pela análise histórica que estruturou a mi-
capitalismo (conceitualização seminal que Professora da Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense séria brasileira. País que se gestou a partir do
devemos a Ruy Mauro Marini), a realidade dito “Descobrimento” (quando o correto
brasileira enfeixou sua forma trágica ao pre- O livro de Marcela Soares busca compreender os impactos do capitalismo depen- seria falar em invasão, massacre e devasta-
servar e ampliar sua dependência e subordi- dente brasileiro, marcado por “pactos pelo alto”, nas diversas conjunturas, espe- ção).
nação ao capitalismo nessa era de mundiali- Foi durante o processo de colo-
cialmente suas consequências sobre os mais vulneráveis e os migrantes nacionais e
zação e destruição ilimitada do trabalho, da nização que se gestou uma sociedade se-
internacionais. Soares trata das características da escravidão contemporânea e ilegal,
natureza e da humanidade. nhorial, escravista, patriarcal e subordina-
O que poderia, então, resultar des- das tentativas de enfrentamento do problema e do crescimento da precarização do
da que se constituiu destruindo o trabalho
te cenário? trabalho, via terceirização, da mistificação do “empreendedorismo”, das plataformas autônomo e comunal presente nas atividades
ESCRAVIDÃO E DEPENDÊNCIA
Marcela Soares é clara e direta: a digitais e dos aplicativos. Temos aqui um diálogo atualizado em uma bibliografia indígenas. E o substituiu pela escravização
fase atual do capitalismo, com sua crise es- diversificada nas áreas do conhecimento e aponta o momento dramático vivido pe- dos povos africanos que foram brutalmente
trutural, “abrange todas as esferas da vida los trabalhadores quando o executivo está sob um governante que a autora aponta transferidos de seu mundo para a nascente
humana e natural”, apresentando “condi- como fascista. colônia.
ções propícias para a expansão da escravi- Uma boa leitura. Aproveitem. Abdicando-se da vida autossusten-
dão contemporânea”. As “‘novas’ e ‘velhas’ tada das comunidades originárias, intro-
formas de inserção laboral, a exemplo das RICARDO REZENDE FIGUEIRA duziu-se na colônia um sistema de explo-
alternativas atuais ao desemprego como o Professor da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro ração para o enriquecimento das metrópoles,
trabalho nas plataformas digitais e aplicati- não sem garantir um bom ganha-pão para a
vos” são exemplos evidentes. Quem se interessa por entender as dimensões e as formas assumidas pela escravi- classe senhorial que se beneficiava e se en-
E uma das formas de combater esse zação contemporânea no Brasil encontrará neste livro uma fonte inestimável de riquecia combinando produção com escravi-
flagelo é exercer a crítica radical, como se informações. Porém, se a intenção é buscar explicações sobre porque “ainda” existe zação.
pode constatar neste livro. escravização no século XXI, esta obra é até mais importante. Marcela Soares rejeita Se essa foi a gênese de nossa histó-
o senso comum sobre a “sobrevivência” da escravidão colonial, ou o “arcaísmo” que ria do trabalho e da sujeição, o que explica
sua manutenção, até os dias atuais?
RICARDO ANTUNES | UNICAMP seria superado pela “modernização” da economia e/ou da legislação, para explicar
A autora demonstra que sua vigên-
como a escravização é a “expressão mais evidente” da superexploração da força de
cia foi resultado de uma articulação férrea e
trabalho no capitalismo dependente atual. Por isso mesmo, nos ensina a autora, a complexa, iniciada pelos senhores de enge-
ideia de “trabalho decente” no mundo do capital é uma ilusão. nho e seguida pela burguesia da predação,
soldando os laços entre escravização, assala-
MARCELO BADARÓ MATTOS
riamento e degradação do trabalho, traços que
Professor do Instituto de História da Universidade Federal Fluminense particularizam o nosso capitalismo.
LUTAS ANTICAPITAL
ESCRAVIDÃO E DEPENDÊNCIA
opressões e superexploração da força de
trabalho brasileira
Marcela Soares
Marcela Soares
ESCRAVIDÃO E DEPENDÊNCIA:
opressões e superexploração da força de
trabalho brasileira
1ª edição
LUTAS ANTICAPITAL
Marília/SP – 2022
Editora LUTAS ANTICAPITAL
_____________________________________________________________________________
Soares, Marcela.
S676e Escravidão e dependência / Marcela Soares. – Marília : Lutas
Anticapital, 2022.
353 p.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-53104-52-9
CDD 306.36
_____________________________________________________________________________
Ficha elaborada por André Sávio Craveiro Bueno
CBR 8/8211 FFC – UNESP – Marília
***
Prefácio...........................................................................11
Apresentação...................................................................17
Referências....................................................................315
Sobre a autora................................................................353
PREFÁCIO 1
Adrián Sotelo Valencia 2
11
ilegais, clandestinas e inumanas. Assinala ainda que, no Brasil,
dos resgatados de condições de escravidão 94,7% são homens,
enquanto as mulheres correspondem apenas a 5,2%, e que o
maior número de resgates de trabalhadores e trabalhadoras
escravizadas corresponde ao setor rural e ao estado do Pará. A
exceção é São Paulo, onde a proporção de homens e mulheres
resgatados é de 81,6% e 18,3%, respectivamente.
No capítulo II, “Da escravidão à superexploração,
componentes histórico-estruturais da força de trabalho”,
resulta de enorme importância o estreito vínculo que a autora
realiza entre escravidão, capitalismo e dependência, superando
os enfoques dualistas e “feudalizantes” próprios da sociologia
funcionalista norte-eurocentrista, que “atribuem” a escravidão
contemporânea – assim como o subdesenvolvimento e o atraso
estrutural – a um “resquício do passado” que pode ser
“superado” conforme se desenvolve o capitalismo, na melhor
tradição das teorias burguesas do desenvolvimento que
emergiram depois da mal chamada Segunda Guerra Mundial e
que, na América Latina, foi recuperada pela Comissão
Econômica para a América Latina (CEPAL) nas figuras de
Prebisch, Furtado ou Pinto, por exemplo. Recuperando as
sentenças da “modernização do arcaico” e da “arcaização do
moderno” de Florestan Fernandes, a autora situa corretamente
a escravidão no Brasil contemporâneo como uma categoria
complementar da superexploração da força de trabalho que é o
eixo do ciclo do capital na economia dependente e que, longe de
serem superados conforme se desenvolve o capitalismo – em
função da industrialização e do desenvolvimento do mais-valor
relativo – a autora enfatiza que, pelo contrário, permanecem
como os “determinantes particulares do capitalismo
dependente” (p. 80).
A conclusão do capítulo é eloquente: da mesma forma
que a dependência, o atraso e o subdesenvolvimento históricos
não podem ser superados dentro dos limites do capitalismo.
Para a escravidão contemporânea – que é histórico-estrutural e
que afeta a milhões de seres humanos – ser erradicada
definitivamente da formação capitalista social brasileira, é
condição sine qua non superar o próprio capitalismo.
12
O capítulo III, “A persistência de formas contem-
porâneas de escravização no Brasil”, resulta altamente
sugestivo, ao demonstrar como a flexibilização da legislação
trabalhista e a legalização da subcontratação ou terceirização,
concomitantes à precarização monumental do mundo de
trabalho brasileiro, não fez outra coisa senão ampliar e
intensificar a escravidão contemporânea, “fruto de um processo
histórico de permanência de formas transitórias ou híbridas de
exploração da força de trabalho, como também acentuada pelos
elementos dinâmico-conjunturais que marcam a fase
contemporânea do capitalismo” (p. 110). Contrariando as
versões oficiais e patronais que pontificam que apenas com
reformas trabalhistas estruturais de signo neoliberal é possível
“melhorar” as condições de vida e trabalho da maioria dos
setores populares do Brasil.
Sobre o fundo da crise capitalista e do acirramento do
neoliberalismo ao longo da década de 1990, as políticas
patronais e estatais contra as classes trabalhadoras e o
proletariado se impuseram através da reestruturação macroeco-
nômica e as políticas antissociais de flexibilização, precarização,
desregulação e superexploração do trabalho para neutralizar a
crise e a queda da taxa de lucro do grande capital nacional e
internacional no Brasil. A isso ajudou o aumento do
desemprego, os arrochos salariais e a expansão da pobreza.
Essas políticas antioperárias, pró-patronais e fascistas, nos diz
a autora, incidiram, além do autoemprego, da informalidade e
da subcontratação, no “aumento dos casos de trabalho
escravizado contemporâneo” (p. 109), conceito adotado pela
Organização Internacional do Trabalho (OIT) no ano de 2013 (p.
186), entendido como “tráfico de pessoas”, sendo que antes só
se falava em “trabalho forçado”, que, efetivamente, não é o
mesmo.
Se com os governos do Partido dos Trabalhadores (2003-
2016) persistiram as condições estruturais do trabalho
escravizado e da continuidade das políticas neoliberais de
“conciliação de classes” do PSDB (p. 184), nos sucessivos
regimes de ultradireita, de Michel Temer e Jair Bolsonaro, estas
condições não fizeram mais que se expandir e agudizar na lógica
da acumulação e valorização do capital; da precarização do
13
trabalho, da subcontratação e superexploração da força de
trabalho que, simultaneamente, serviram como plataformas
para estender a escravidão capitalista. Esta é concebida pela
autora (p. 145) como uma forma estrutural da superexploração,
rompendo, assim, com as visões que a consideram como um
remanescente do passado, e identificando-a corretamente como
um mecanismo que opera dentro do ciclo do capital na economia
dependente do Brasil contemporâneo.
Lucidamente, a autora distingue a situação da
escravidão colonial (escravismo pleno) daquela que opera no
capitalismo dependente caracterizado pela venda de força de
trabalho como mercadoria (p. 151), que não implica na venda da
pessoa em si como ocorria no passado e que “não significa, dessa
forma, uma linha de continuidade da escravidão colonial ao
capitalismo dependente” (p. 151). Pelo que a escravidão atual –
igualmente à categoria de dependência – deve ser situada nas
condições históricas onde se constitui, se desdobra e se
desenvolve. Deste modo, nos diz Soares: “…em nossa análise,
apreende-se a escravidão contemporânea como uma variação da
utilização do trabalho assalariado, derivada tanto de como se
constituiu a força de trabalho no Brasil e como consequência
dos [seus] elementos dinâmico-conjunturais…” (p. 186).
Esta distinção dentre escravidão colonial e “escravidão
dependente capitalista” resulta de enorme importância para
romper e superar, tanto na ideologia como nas ciências sociais,
as visões unidimensionais do dualismo estrutural que divide as
sociedades latino-americanas e, em geral, subdesenvolvidas, em
compartimentos estanques que só se “conectam” através das
metrópoles imperialistas.
Tendo como cenário de fundo o processo histórico das
grandes revoluções burguesas, como a norte-americana e as
ocorridas na Europa Ocidental nos séculos XVIII e XIX, no
capítulo IV, “Uma antítese à escravidão contemporânea”, a
autora analisa os direitos humanos e o conceito de “trabalho
decente” cunhado pela OIT em 1999 – dentro dos limites
impostos a essa “instituição tripartite” pelo “capitalismo
humano e sustentável” e o pretendido “neoliberalismo
progressista” (p. 218) pregado por ela – para articulá-los com a
14
problemática da escravidão contemporânea, em particular, a
brasileira.
Dentro dos limites do capitalismo, e sem excedê-los, esse
organismo internacional se apoia nesse conceito para,
supostamente, “superar” a precariedade do trabalho – que é
congênita a este sistema na medida em que rouba do
trabalhador parte da riqueza produzida por ele baixo a forma de
mais-valor, apropriada gratuitamente pelo capital – e a
superexploração do trabalho, que é constitutiva das formações
capitalistas dependentes e operativa no âmbito dos países
capitalistas industrializados.
Deste modo, afirma a autora:
15
Como conclusão deste interessante livro, brota
naturalmente a imperativa necessidade de superar e erradicar
da face da terra o capitalismo como modo irracional de vida, de
trabalho, de destruição da natureza e de degradação humana,
social e espiritual, e instaurar um novo modo de produção e de
formação social de acordo com os interesses majoritários da
vida, do trabalho e da sobrevivência da grande maioria dos
trabalhadores e da humanidade.
A este respeito, sentencia a autora que:
16
APRESENTAÇÃO
17
resultado de como a questão étnico-racial estabeleceu-se no
mundo moderno para legitimar a escravidão colonial, o
neocolonialismo, e estruturou o racismo 7 como produtor e
produto da sociabilidade capitalista.
A recessão acelerada pela pandemia do novo coronavírus
carrega marcas de crises pretéritas. 8 Com a perda de milhares
de empregos e a impossibilidade de trabalho de amplos setores
informais, a maioria dos países com economias hegemônicas
implementaram medidas relevantes para preencher quedas
temporárias de renda como também garantir níveis “adequados”
de proteção social e estabilizar crédito e recursos financeiros. 9
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) afirma
que, assim como na Epidemia do Ebola, o fechamento de
escolas, de empresas, o desemprego, a perda de meios de
subsistência e a falta de sistemas de proteção social são fatores
que têm um papel particularmente forte na exacerbação do
trabalho infantil e do trabalho forçado. 10 De acordo com a
organização, a “escravidão moderna” atinge mais de 40 milhões
de pessoas em todos os países do mundo, das quais 25% são
crianças, em numerosas e distintas cadeias produtivas de
valor. 11
No Brasil, temos um sistema de proteção social que não
abrange todas as camadas das classes trabalhadoras e que tem
sido prejudicado pelas políticas de “ajuste fiscal”, além do atual
fascista chefe do executivo, que dificultou a transferência de
renda com burocracia e má vontade. E expôs, ao vírus, milhares
de pessoas aglomeradas em longas filas para tentar o acesso ao
auxílio emergencial. Aqui, vivenciamos um período catastrófico
com aumento progressivo do número de mortos pela COVID-
7 Sobre a teoria das raças, ver Lukács, 2020; sobre racismo como ideologia
de dominação, ver Clóvis Moura,1994; 2020a; 2020b; e racismo estrutural,
ver Silvio Almeida, 2019.
8Ver Chesnais, 2020.
18
19, 12 amortecido pelo início da campanha de vacinação, 13 além
do cenário propício ao aumento da escravidão contemporânea.
Porque como demonstram os dados da Rede Brasileira de
Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional
(2021), auferidos no segundo ano da pandemia, mais da metade
dos lares brasileiros (55,2%) estavam em insegurança alimentar;
9% estavam em situação de insegurança alimentar grave, que
significa a fome, e essa condição ainda é mais grave nos
domicílios de área rural (12%). Traduzindo em números da
população brasileira, do total de 211,7 milhões de pessoas,
116,8 milhões conviviam com algum grau de insegurança
alimentar e, destas, 43,4 milhões não tinham alimentos
suficientes e 19 milhões enfrentavam a fome. Esses dados
revelam, que essa situação pode agravar, ainda mais, as
condições de trabalho em todo o Brasil, uma vez que a
necessidade de sobrevivência faz com que as pessoas se
submetam a qualquer oportunidade laboral para ter algo para
comer. No contexto atual pós contrarreforma trabalhista e com
retrocessos contínuos legitimados pelo atual governo, 14 a
situação de desproteção e desregulamentação dos contratos de
trabalho facilitam a submissão de pessoas a formas
contemporâneas de escravização. E relacionando com os dados
de insegurança alimentar acima, foi, justamente, no segundo
ano de pandemia que tivemos um número significativo de 1937
pessoas resgatadas, foi o maior desde 2013.
O atual contexto de pandemia e pós-pandemia são
alarmantes, tendo em vista a recessão acelerada pela crise
humanitária e as medidas sanitárias e político-econômicas,
implementadas pelo governo de Jair Bolsonaro, que eviden-
12 Até 17 de abril de 2022, foram mais de 662 mil mortes em nosso país.
13 No Brasil, a campanha de vacinação contra COVID-19 iniciou,
tardiamente, em 17 de janeiro de 2021. Porque o presidente Jair Bolsonaro,
com seu negacionismo, além de minimizar os efeitos da doença, demorou
para comprar vacinas ou fomentar a produção nacional. O chefe do
executivo recusou onze vezes a oferta para a compra de vacinas contra a
COVID-19 (Guedes, 2021).
14 Ver a reportagem “Programa do governo Bolsonaro vai eliminar 432 mil
19
ciaram a necropolítica 15 e aspectos do “social-darwinismo” 16,
explícitos na indiferença aos milhares de mortos pela COVID-19.
Como também, nas Medidas Provisórias nº 927 e 936, editadas
no primeiro ano da pandemia (2020) devido ao estado de
calamidade pública. Estas Medidas Provisórias (MPs) contri-
buíram para o adoecimento dos/as trabalhadores/as e para a
perda de mais direitos, porque permitiram: o prolongamento
abusivo da jornada de trabalho de profissionais de setores
essenciais, a exemplo das equipes multiprofissionais da saúde;
a antecipação indefinida de períodos futuros de férias, em
período de isolamento social; e a exclusão do contágio da COVID-
19 como doença ocupacional.
A omissão do atual governo em relação à edição de
normas de meio ambiente do trabalho preventivas à pandemia e
às MPs citadas repercutiu na possibilidade do aumento das
condições degradantes de trabalho e das jornadas exaustivas,
principalmente daqueles/as profissionais que estão nos serviços
essenciais de saúde, dos profissionais do cuidado na reprodução
social das famílias e daqueles/as nas plataformas digitais e
aplicativos. 17 Promovendo um desgaste físico-psíquico que pode
ser irrecuperável, além dos casos de acidentes de trabalho. 18
Esses dados expressam que o retrocesso da legislação de
proteção ao trabalho e a fragilidade da organização sindical
repercutem em graus diferenciados de precarização das
condições de exploração da força de trabalho e em distintas
doenças e acidentes laborais em qualquer ambiente de trabalho.
15 Mbembe, 2017.
16 Löwy, 2020.
17 “As plataformas digitais [...] atualmente se firmam como um dos
20
Cabe destacar que, antes desta crise sanitária, houve acelerado
processo de revisão de várias Normas Regulamentadoras (NRs)
imposto pelo Poder Executivo, que podem aumentar o número
de mortes, acidentes de trabalho e doenças ocupacionais.
Muitos dos direitos fundamentais do trabalho estão sendo
violados e, consequentemente, viola-se a “dignidade” das classes
trabalhadoras.
Com o intuito de contribuir para a análise do mundo do
trabalho e encontrar saídas, apresentamos este livro com o
objetivo de discutir as formas contemporâneas de escravização
de seres humanos no Brasil, que não são necessariamente
racializados, apesar da maioria resgatada ser negra, devido ao
processo histórico-estruturante da nossa formação econômico-
social.
Pensar na escravidão contemporânea no Brasil requer
necessariamente resgatarmos o nosso passado colonial
escravocrata. Exige lembrarmos a grande diáspora do comércio
de seres humanos expropriados de sua localidade, da sua
cultura e das suas vidas no processo de escravização.
Além de pensarmos nas negras e negros expropriados,
mercantilizados e escravizados, pensar na realidade brasileira é
entender que é uma nação construída mediante o massacre dos
povos indígenas e subjugados. A trajetória do Brasil colônia ao
Brasil moderno, 19 sob o capitalismo dependente, é a da
pilhagem, da exploração e da espoliação que subsidiou a
formação da sociedade moderna e corrobora com a dinâmica do
mercado mundial em seu desenvolvimento desigual.
Uma Colônia tornada Império, depois formalmente
independente, “acaba” com a escravidão e torna-se República
21
pelas elites das “classes dominantes-dominadas”, 20 por meio de
“pactos pelo alto”, com a violência senhorial, que impediu que as
rebeliões se transformassem em revoluções. As metamorfoses
foram graduais e com segurança para que nada saísse do
controle e garantissem apenas uma modernização que
preservasse a expropriação total com a subalternidade
escravocrata.
Qualquer movimento que questionasse a ordem foi
duramente massacrado e apagado ou “disciplinado” para as
memórias da educação formal deste país. As legislações sociais,
que aparecem como benevolência das burguesias, têm como
fundamento as lutas (desde as fugas dos escravizados/as à
formação da resistência dos Quilombos) ou interesses da
modernização exigida pela dinâmica mundial que se impunha.
Aqui temos a intenção de trazer componentes histórico-
estruturais que compõem especificidades na realidade brasileira
em seu “mercado de trabalho” racializado e, por sua vez, sob um
diversificado e restrito acesso a direitos do trabalho. Demons-
tramos, portanto, como o trabalho escravizado contemporâneo
acompanhará essa diversidade engendrada no processo de
permanência e reinvenção de formas transitórias ou híbridas de
exploração da força de trabalho pós-abolição. Assumindo
distintas especificidades em cada setor, área, região e período
histórico.
Como veremos, diferenças no ramo têxtil, 21 na
construção civil, 22 no marítimo, 23 nas plantações do agrone-
gócio, 24 nos serviços, no trabalho doméstico, dentre outros
setores econômicos, de onde foram resgatadas pessoas em
condição de escravidão contemporânea.
Realizamos um resgate histórico e analítico da frente
pioneira na região Amazônica brasileira para abordar a servidão
Cassiano, 2021.
22
por dívida e o trabalho forçado, nos anos 1970, para adentrar-
mos na realidade atual. Dos trabalhadores e trabalhadoras com
jornadas exaustivas e em condições degradantes, resgatados/as
pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM), nas
carvoarias, na colheita do café e no trabalho doméstico.
A naturalização, a necessidade das classes trabalhadoras
e subalternizadas e a expansão das violações à humanidade
dessas pessoas requisitam o exame não apenas dos elementos
dinâmico-conjunturais do capitalismo, mas também dos
componentes histórico-estruturantes da formação econômico-
social brasileira − para a discussão sobre a superexploração da
força de trabalho como característica particular, estrutural e
sistemática das economias dependentes.
A apreensão da forma particular de como as leis
econômico-sociais do capitalismo se realizam na economia
dependente brasileira permite que sejam aclarados os aspectos
principais da escravidão contemporânea, tipificados pelo artigo
149 do Código Penal Brasileiro, como as expressões mais
evidentes da superexploração. Inteligível também, é que o
trabalho escravizado contemporâneo é resultante da continui-
dade e reciclagem de formas transitórias ou híbridas de
exploração da força de trabalho no processo histórico de
mercantilização do trabalho, na passagem do Brasil colonial ao
capitalismo dependente.
A escravidão contemporânea revela, em seus dados, os
movimentos permanentes de expropriações do capital,
inteligíveis na opressão-exploração de uma força de trabalho
racializada e marcada pelo patriarcado, que migra para
sobreviver.
Nosso livro demonstra − por meio de clássicos e não
clássicos do pensamento social brasileiro marxista como Vânia
Bambirra, Ruy Mauro Marini, Clóvis Moura, Lélia Gonzalez e
Florestan Fernandes −, que o aparente “arcaico”, na verdade,
estrutura a moderna sociedade burguesa, nítido na precarie-
dade do mercado de trabalho brasileiro, e se acentua ao se
espraiar por todo o globo na fase atual do capitalismo.
Analisamos dados do Ministério Público do Trabalho
(MPT), do Ministério do Trabalho e Previdência (MTP), da
Comissão Pastoral da Terra (CPT), relatórios de inspeção e
23
fiscalização do Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM), a
base de dados “Legislação: Trabalhadores e Trabalho em
Portugal, Brasil e África Colonial Portuguesa”, 25 reportagens e
dados secundários de outras pesquisas. Além de entrevistas 26
realizadas na “X Reunião Científica Trabalho Escravo e Questões
Correlatas”, com dez agentes públicos, sendo sete homens e três
mulheres. Um universo pequeno frente ao enorme contingente
de sujeitos sociais que estão envolvidos na luta contra o trabalho
escravizado, mas que representa pessoas extremamente
importantes e emblemáticas, e que abarcam boa parte do
território nacional, sendo um da região Norte, quatro do
Nordeste, dois do Centro-oeste, um do Sudeste e dois da região
Sul.
O livro está dividido em quatro capítulos, que versam
sobre a escravidão contemporânea e a superexploração da força
de trabalho brasileira, amparados pelo fio condutor das
expropriações permanentes e estruturantes do capitalismo e sua
forma de manter-se por meio da opressão-exploração das classes
trabalhadoras e de mistificações da violação de direitos.
No primeiro capítulo, realizamos um rápido histórico do
combate ao trabalho escravizado contemporâneo no Brasil para
discutir a naturalização do extremo vilipêndio, da desigualdade
regional e das aparentes contradições do avanço da legislação
na defesa dos direitos humanos e retrocessos das legislações do
trabalho. Assim como apresentamos as características da
escravidão contemporânea e suas tipificações, sob a Lei 10.803
24
de 2003, que qualifica a escravidão contemporânea e visa acabar
com a falsa ideia de que a escravidão só ocorre se houver
cerceamento da liberdade.
Para esse debate se fez necessário, posto no capítulo II, o
resgate da particularidade brasileira na dinâmica da divisão
internacional do trabalho para entendermos a violência nítida
e/ou velada sobre as classes trabalhadoras, principalmente as
racializadas, e sua condição de exploração redobrada que as
burguesias brasileiras, com evidente perfil antissocial, antina-
cional, 27 racista, patriarcal e fascistizante, exigem do labor
dessas pessoas para manter seus superprivilégios de classe e
atender às exigências das economias hegemônicas imperialistas,
postas no mercado mundial capitalista.
No terceiro capítulo, discutimos como a escravidão
contemporânea parece se ampliar na realidade brasileira, no
cenário posterior aos retrocessos ocasionados pelas mudanças
na legislação trabalhista. Ademais, a legalização da
terceirização, reconhecida como sinônimo de precarização, tem
demonstrado que incide no aumento dos casos do trabalho
escravizado contemporâneo, de acordo com os relatórios de
fiscalização da SIT/MTP/MPT (Brasil), CPT e outras pesquisas. 28
Neste capítulo, apresentamos um ensaio sobre as linhas de
continuidade e ruptura com o avanço da precarização do
trabalho via a utilização de novas tecnologias de informação e
comunicação para o controle e gestão da força de trabalho e
mistificação da precarização.
25
Finalizamos com o capítulo IV para recuperarmos alguns
determinantes ontológicos da sociabilidade burguesa, para
discutirmos as contradições intrínsecas que perpassam a defesa
dos direitos humanos e, por sua vez, do “trabalho decente” como
antítese do trabalho escravizado contemporâneo. A análise
busca apresentar os limites do próprio capitalismo, como
também a exacerbação das barreiras para a garantia dos direitos
fundamentais na periferia do mundo, como na realidade
brasileira. As alternativas que se apresentam à escravidão
contemporânea são de precarização da condição laboral
mistificadas no “empreendedorismo”, na verdade, não somente
aos/às trabalhadores/as resgatados/as, mas também
àqueles/as que, sem conseguirem uma inserção laboral
apostam ou em tradicionais “bicos” ou nas plataformas digitais
e aplicativos para tentar sobreviver.
Não tivemos a finalidade de resgatar e comparar
historicamente a escravidão antiga, a escravidão colonial e a
escravidão contemporânea. Entendemos que é necessário e
imprescindível o reconhecimento que a escravidão não é um
elemento trans-histórico, que atravessa a humanidade sem
mutações. A escravidão antiga possui especificidades de acordo
com as particularidades daquele modo de produção e a
escravidão colonial, - como resultado do estabelecimento e
avanço do capitalismo mercantil -, em seus quase quatro séculos
de existência no Brasil, tem especificidades que se diferenciam,
historicamente, inclusive quando nosso país se insere no
mercado mundial capitalista, demandado pela dinâmica das
economias hegemônicas. Constituindo-se, a partir das décadas
de 1840 e 50, uma “escravidão dependente capitalista” que se
transmutou, organicamente, aos processos de transição com a
modernização burguesa convivendo com o trabalho assalariado.
Sob este ângulo de análise, para não ocorrer confusões,
quando no texto colocamos a passagem da escravidão colonial
ao capitalismo dependente, temos clareza que não há uma
simples continuidade do colonialismo, assim como é
fundamental destacar as transformações do modo como os
escravizados/as desempenharam um papel fundamental na
geração de mais-valor; e as opressões engendradas, nesta longa
trajetória, se estruturaram e se amoldam em uma permanente
26
reciclagem, propagando-se, mediadas pelos determinantes da
dependência, para o conjunto das classes trabalhadoras
brasileiras.
Ao capitalismo não é uma anomalia se apropriar,
combinar e reinventar o “arcaico”, formas “pretéritas”,
transitórias ou híbridas de exploração da força de trabalho. Por
este caminho analítico, caracterizamos a escravidão contempo-
rânea, por meio da historicidade das categorias econômicas
apreendidas ontologicamente, resultando em uma análise
histórico-concreta, dialética, da forma particular que as leis
econômico-sociais capitalistas se estruturaram e se realizam na
formação econômico-social brasileira.
Em nossa perspectiva, não tem sentido apresentarmos
dualidades entre escravidão contemporânea e trabalho digno,
mas explicitar que a lei geral da acumulação capitalista, em suas
distintas formas concretas na divisão internacional do trabalho,
não traz possibilidades de emancipação humana. Ao contrário,
a prática histórico-social tem demonstrado que as respostas
dadas às suas leis tendenciais são ineficazes às crises periódicas
e promovem situações cada vez mais nefastas para as classes
trabalhadoras e subalternizadas.
Apesar de nossa legislação ter avançado nas tipificações
da escravidão contemporânea, é raro o reconhecimento pelo
judiciário brasileiro, 29 para a configuração do crime, a jornada
exaustiva e o trabalho degradante. Além disso, pesquisa
realizada pela Clínica Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas
(CTETP) da Faculdade de Direito da UFMG demonstra que
27
remota diante da morosidade judicial detectada (2020, p.
482).
***
28
Dessa forma, agradeço a supervisão do ilustre professor
Ricardo Antunes, no Programa de Pós-graduação em Sociologia
da Unicamp. Onde tive a oportunidade de debater e acrescentar
às minhas análises contribuições imprescindíveis, tanto do
mestre coordenador como de colegas do Grupo de Pesquisa
Mundo do Trabalho e suas Metamorfoses (GPMT). Como também
fico imensamente grata à recepção amistosa, no intercâmbio na
Universidade Nacional Autônoma do México, do valoroso
professor Adrián Sotelo Valencia, que me brindou com o prefácio
deste livro e com indicações de literatura, locais de pesquisa,
além da leitura cuidadosa de todo o texto deste livro. O diálogo
com a realidade mexicana foi incomensurável para a apreensão
das particularidades das economias dependentes latino-
americanas e para aprofundar os estudos sobre a TMD.
Esta pesquisa de pós-doutoramento só foi possível pelo
aval e apoio dado pelo estimado corpo docente do Departamento
de Serviço Social de Niterói (SSN) da Universidade Federal
Fluminense (UFF). Por isso, ressalto que, ao longo da minha
trajetória na UFF, conquistei espaços de acolhida, diálogo e
amizade dentro e fora do SSN. Dessa forma, agradeço a minha
recepção e integração ao Núcleo Interdisciplinar de Estudos e
Pesquisa sobre Marx e o Marxismo (Niep-Marx), com destaque e
agradecimento ao pesquisador e professor do Niep-Marx,
Marcelo Badaró Mattos, - um renomado intelectual na temática
do trabalho e interlocutor para a apreensão da formação das
classes trabalhadoras brasileiras – que contribuiu com a sua
leitura e escrita da contracapa deste livro. Saliento a minha
inserção no Núcleo Interinstitucional de Estudos e Pesquisa
sobre Trabalho e Teoria Social e Serviço Social (NUTSS), onde
tenho o enorme privilégio de debater, estudar, pesquisar e
escrever com grandes amigas; e no Grupo de Estudos e Pesquisa
em Educação e Serviço Social (GEPESS), grupo sob a
coordenação da professora Kátia Lima, uma importante
referência em minha formação para os estudos de Florestan
Fernandes, que me presenteou com a sua generosa leitura deste
livro e com a contracapa.
Fora da UFF, muito antes de ser professora universitária,
iniciei a vida acadêmica como graduanda de Serviço Social e
bolsista de Iniciação Científica na Universidade Federal do Rio
29
de Janeiro (UFRJ), integrando como pesquisadora, já há quase
20 anos, o Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo
(GPTEC/UFRJ), coordenado pelo professor Ricardo Rezende
Figueira. O professor e padre Ricardo Rezende é um grande
teórico e expoente da luta contra a escravidão contemporânea,
que, para minha honra, ilustrou a capa deste livro com sua
impactante arte e colaborou com a contracapa deste livro.
Agradeço imensamente ao professor Ricardo Rezende e, do
mesmo modo, às professoras Gelba Cavalcante, Adonia Prado, a
colegas, amigos e amigas que fiz, ao longo de todos estes anos,
nos debates anuais organizados pelo GPTEC, realizados nas
“Reuniões Científicas Trabalho Escravo Contemporâneo e
Questões Correlatas”, que me proporcionaram aprofundar as
análises sobre meu objeto de estudo e militância.
A Comissão Estadual de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas e ao Trabalho Escravo do Estado do Rio de Janeiro
(CETP/COETRAE-RJ) foi e é um espaço de grande importância
para adentrar na apreensão da escravidão contemporânea no
estado do Rio de Janeiro, como também de diálogo direto com a
auditoria fiscal do trabalho do MTP, com operadores/as do
direito, como juízas e juízes do Tribunal Regional do Trabalho,
procuradoras e procuradores do MPT e Ministério Público,
defensoras e defensores públicos, assim como outras
instituições fundamentais, como a Cáritas – Arquidiocesana do
Rio de Janeiro.
A síntese de todo este movimento tem se dado no escopo
do Grupo de Estudos e Pesquisa Trabalho e Direitos Humanos
(GPTDH), vinculado ao NUTSS, que coordeno na UFF, com a
participação de discentes da graduação, pós-graduação e
pesquisadores/as externos, que muito contribuíram e ainda
participam e colaboram nos projetos de pesquisa que conduzo e
de extensão que participo no lócus universitário.
Meu agradecimento final vai para o meu amor-camarada,
Paique. Sempre ao meu lado, me presenteando com sua alegria
e suas perspicazes indagações, que corroboram para o
aprofundamento dos meus estudos e argumentos.
30
Capítulo I.
ESCRAVIDÃO CONTEMPORÂNEA
NO BRASIL
31
Nesse debate, apresentamos as análises da dinâmica do
capital e da particularidade brasileira, que aclaram alguns
elementos aparentemente contraditórios, circunscritos na
trajetória das mudanças nas relações de trabalho. 31 Afinal de
contas, em nossa perspectiva, analisar o trabalho escravizado
contemporâneo requer uma apreensão da totalidade, uma busca
das especificidades nos processos históricos-estruturais das
formações econômico-sociais latino-americanas (Bambirra,
2019).
No decorrer do livro, esses elementos são aprofundados,
perpassados pela apreensão de mediações estruturais e
estruturantes, assim como acerca das consequências das
características da fase contemporânea do capitalismo na
realidade dependente brasileira.
Neste capítulo, apresentamos a escravidão contempo-
rânea no Brasil, com dados de 2003 até 2021, e discussões sobre
as expressões do trabalho escravizado contemporâneo em
diversos setores produtivos e aqueles considerados não
produtivos. Expomos desde as situações típicas da servidão por
dívida, que repercutiram nas primeiras denúncias, até os casos
de escravidão contemporânea identificados por auditores/as e
procuradores/as do trabalho em ramos que parecem inusitados.
Nesta parte do livro, também damos destaque à análise de como
a superexploração da força de trabalho, uma das categorias
fundantes do capitalismo dependente, atinge sua expressão
mais evidente na escravidão contemporânea.
32
libertos/as e imigrantes trabalhadores e trabalhadoras no
Brasil. Um longo período histórico de lutas fundamentais das
classes trabalhadoras, em âmbito mundial, que acompanharam
a dinâmica desigual e combinada do desenvolvimento capitalista
concatenada à divisão internacional do trabalho, na composição
e hierarquização entre os países dependentes e os hegemônicos
imperialistas.
Portanto, para a nossa discussão inicial, chamamos
atenção para a Organização Internacional do Trabalho (OIT),
fundada em um período fundamental da integração monopólica
pelos EUA das nações latino-americanas. Uma importantíssima
instituição, que podemos considerar como resultante das
disputas interclassistas e entre nações, porque a OIT é a única
agência da Organização das Nações Unidas (ONU) que possui
uma estrutura tripartite.
A OIT surgiu após o término da Primeira Guerra Mundial
com a missão de garantir a “justiça social”, no âmbito do direito
a condições laborais adequadas, como também evitar uma
“concorrência desleal” 33 entre os países, constituindo, em seu
curso histórico, uma legislação internacional do trabalho. Sendo
assim, sempre atuou com a recomendação aos Estados-
Membros, tal como o Brasil o é desde o princípio, o cumprimento
das normas internacionais (convenções e normatizações), 34
33
referentes aos mais diferentes aspectos das condições e relações
de trabalho.
Podemos afirmar que o Brasil possui como marco legal
de mercantilização da força de trabalho a abolição da
escravatura, em 1888. No entanto, o estabelecimento das
relações de trabalho livre ou de transição teve seu início em
1850, como foi analisado por Clóvis Moura (2020a) como o
período do “escravismo tardio” (1851-1888). Consequentemente,
identificamos no decurso histórico, do século XIX ao século XX,
uma lenta e desigual aparente “modernização do arcaico” e
“arcaização do moderno” das relações de trabalho (Fernandes,
2006; 2009). Constituindo o processo sócio-histórico da
formação das nossas classes sociais e, portanto, das nossas
classes trabalhadoras. 35
As marcas econômicas e político-culturais desse
processo se estruturam no que foi denominado como a não
resolução da questão nacional e étnico-racial, 36 que se
expressam em inúmeros aspectos da vida social brasileira, mas
aqui ressaltamos a degradação material e moral da exploração
da força de trabalho, compondo uma particular divisão
sociossexual e étnico-racial do trabalho na heteronomia
econômica e cultural do capitalismo dependente. 37
Em um caldo compósito, a sociedade brasileira é
atravessada por uma nefasta trajetória de violência, de
cerceamento das manifestações populares, da privatização do
público, em que há uma visível incompatibilidade entre a
dominação burguesa e a democracia, com uma constante
anulação da política e do dissenso. 38 E a base estrutural do
escravismo colonial se expressa na reinvenção das suas
características marcantes: como vistos em diversas formas da
apropriação do corpo e da anulação do/a outro/a; a comum
proibição da fala e o rigor da coerção estatal, como o veto à
34
reivindicação; além da apropriação da coisa pública, presente na
corrupção e na impunidade. 39
Como pode ser recuperado neste depoimento, presente
no livro A escravidão na Amazônia, de um trabalhador que
conseguiu fugir da escravidão contemporânea, em uma fazenda
no Sul do Pará, em 1983:
35
De 1995 até 2021, foram resgatadas mais de 57.644
pessoas da escravidão contemporânea 43 em distintos setores
econômicos no Brasil. 44 Segundo uma pesquisa da OIT, 45
publicada em 2011, indicava-se a predominância da pessoa
resgatada ser homem, negra e analfabeta funcional, com idade
média de 31,4 anos, e a grande maioria ser oriunda do Nordeste,
77%. 46 Atestamos, com base em inúmeras pesquisas, que a
necessidade de sair do seu país ou região em busca de trabalho
ou por motivo de força maior 47 e a condição de migrante com
documentação irregular proporcionam condições favoráveis ao
contrabando de migrantes e ao tráfico de pessoas, direcionando-
as, na maioria dos casos, para o trabalho escravizado
contemporâneo. No Brasil, em sua maioria, os/as
trabalhadores/as resgatados/as são migrantes internos ou
externos em busca por alguma ocupação e, hegemonicamente,
são atraídos/as por falsas promessas.
Os dados do Ministério Público do Trabalho (MPT), de
2003 até 2020, apresentam que 70% dos/as resgatados/as
ocupavam, em geral, o trabalho agropecuário, e a maioria
possuía até o 5º ano incompleto (37%) ou era analfabeta (30%).48
Em 2019, foram 1.054 pessoas resgatadas da escravidão
contemporânea e o setor agropecuário ainda registrava o maior
número, com 62% dos casos: na produção de carvão vegetal, no
cultivo de café e milho, como também na criação de bovinos para
36
o corte. Em áreas urbanas, 37,8% das pessoas foram resgatadas
na confecção de roupas, na construção civil, nos serviços
domésticos e ambulantes. 49 Cabe salientar que 43% da "lista
suja do trabalho escravo” de 2018 foi preenchida pelo
agronegócio que, entre 2003 e 2014, foi um dos maiores
responsáveis na utilização do trabalho escravizado contempo-
râneo, com praticamente 80% dos/as resgatados/as em
lavouras, plantação de cana, desmatamento e pecuária. 50
Nos anos de 2020 e 2021, graças ao Decreto n. 10.282
de 20 de março de 2020, a fiscalização do trabalho foi
considerada e mantida como atividade essencial. No segundo
ano de pandemia, tivemos o número significativo de 1.937
pessoas resgatadas, o maior desde 2013. O estado de Minas
Gerais teve o mais alto quantitativo de resgatados/as, em
segundo lugar foi Goiás, depois São Paulo e Pará. Quase 90%
(89%) das pessoas resgatadas estavam no trabalho agropecuário
e a liderança foi a do setor cafeicultor (310), que também
apresentou o maior cômputo de crianças e adolescentes
escravizados resgatados. Depois do café, a produção de alho
(215) teve um número elevado de resgates, seguida pelo carvão
vegetal (173), preparação de terreno (151), cana-de-açúcar (142)
e criação de bovinos para corte (106).
Nas atividades urbanas, em 2021 foram resgatadas 210
pessoas, a maioria estava em empreendimentos imobiliários e
construção civil (108), e no trabalho doméstico foram 27 pessoas
resgatadas, em 2020 havia sido apenas três. O “perfil” desses/as
trabalhadores/as resgatados/as, em 2021, é semelhante aos
das outras pesquisas e de dados de fiscalização: 90% são
homens, 80% negros/as, 47% nordestinos/as e 6% são
analfabetos. 51
As informações da Secretaria de Inspeção do Trabalho
(SIT) do Ministério do Trabalho e Previdência 52 ratificam os
37
determinantes étnico-raciais na nossa divisão social do
trabalho. 53 Porque, entre os anos de 2016 e 2018, a cada cinco
resgatados do trabalho escravizado contemporâneo quatro são
homens negros, de um total de 3.365. E dos 2.400
resgatados/as que receberam o auxílio de seguro-desemprego,
82% são negros/as. 54 Dentre os/as negros/as 55 estão
principalmente homens (91%), jovens de 15 a 29 anos (40%) e
nascidos no Nordeste (46%).
Apesar dos dados oficiais, oriundos dos resgates,
indicarem que a escravidão contemporânea atinge majoritária-
mente os homens, uma pesquisa recente da OIT (Organização
Internacional do Trabalho, 2018b) aponta que o número de
mulheres pode ser maior do que é auferido nos resgates. A
amostragem da pesquisa revela que 12,7% das mulheres, no
estado do Maranhão, já podem ter sido submetidas a formas
contemporâneas de escravização (Organização Internacional do
Trabalho, 2018b, p. 95). Talvez essa invisibilidade ocorra por
causa da não fiscalização das condições de trabalho das
trabalhadoras que atuam na reprodução social de diversas
famílias 56 ou em frentes de trabalho reprodutivo, invisibilizadas,
nas empreitadas, como também no mercado do sexo. De acordo
com a estimativa global da OIT, aproximadamente 55% das
38
vítimas de trabalho forçado são mulheres e meninas, na
exploração sexual e nos trabalhos domésticos. 57
Em coerência com esses dados globais da OIT e
investigação realizada pela mesma instituição no estado do
Maranhão, a pesquisa realizada por Natália Suzuki e Thiago
Casteli (Suzuki, 2020) reitera a necessidade de pesquisarmos
mais profundamente as condições de trabalho das mulheres.
Essa última investigação elucida e indica dados, de 2003 a 2018,
de que, das mulheres resgatadas em todo o Brasil a maioria é
oriunda do Maranhão, 53% são mulheres negras (42% pardas e
11% pretas) e 62% não concluíram o ensino fundamental (42%
estudaram até o 5º ano do ensino fundamental e 20% são
analfabetas). Grande parte das mulheres resgatadas, 71,3%,
eram trabalhadoras rurais, 8,1% cozinheiras e 7,8% costureiras.
A pesquisa também apresenta algumas exceções diante das
ocorrências de resgatados/as em âmbito nacional, como na
cidade de São Paulo, onde a quantidade de homens e mulheres
resgatados/as não é tão desproporcional como a média nacional.
Além disso, Natália Suzuki e Thiago Casteli constatam que há
uma invisibilidade da atividade das mulheres e que,
consequentemente, há uma subnotificação, porque
39
A discussão acerca do trabalho das mulheres na esfera
privada envolve inúmeras e imprescindíveis análises sobre a
desmercadorização desse trabalho, que retira, aparentemente, a
sua importância para a reprodução ampliada do capital. Porque
o trabalho doméstico, o trabalho de cuidar dos/as filhos/as, em
síntese, o trabalho reprodutivo é vital para o capital, já que traz
a potencialidade da permanência da força de trabalho sob
inúmeras gerações. 58
Nessa análise, é preciso a apreensão de que o
patriarcado 59 e a escravidão colonial alicerçaram o capitalismo,
em sua frente pioneira de expropriações de fundação, e se
expressam de forma particular em nossa divisão sociossexual e
étnico-racial do trabalho. Nesse sentido, ao analisarmos o
processo histórico de mercantilização da força de trabalho no
Brasil, identificamos que, além dos determinantes estruturais
da sociedade burguesa estarem alicerçados na escravidão e no
patriarcado, houve o aprofundamento dessas vigas, mediante
componentes históricos específicos, a exemplo da ausência de
políticas de integração ao mercado de trabalho “formal” para
os/as negros/as e as ações estatais eugênicas. Consequen-
temente, isso dificultou tanto a competição com os imigrantes
europeus como também para alcançarem outras ocupações não
braçais, mantendo majoritariamente a inserção de negros/as em
ocupações degradantes e mal remuneradas. 60
40
As mulheres negras 61 são maioria, ainda hoje, nas
profissões com a marca da “tradição de doméstica, da prática
dos dois papéis (o de trabalhar e o de satisfazer o apetite sexual
do patrão ou do filho-famílias) e da prostituição como
alternativa” (Fernandes, 1989, p. 58). Essa situação presente,
predominantemente, na realidade brasileira é resultante das
mediações estruturantes do capitalismo, que aparecem no que
podemos chamar de uma divisão social, sexual e étnico-racial do
trabalho, apresentando-se como se fossem continuidades da
escravidão colonial com as atrocidades da Casa Grande e da
Senzala, mediadas pelos elementos históricos-estruturantes do
patriarcado, introduzidos na vida das mulheres negras africanas
pelo colonialismo. 62
Os dados acima, sobre a escravidão contemporânea, são
alguns dos indicadores, 63 que demonstram como as medidas
político-econômicas no pós-abolição consolidaram o lugar
dos/as negros/as na divisão social do trabalho e, dessa maneira,
sua subalternidade e sua criminalização nas fileiras da
superpopulação relativa, estabelecendo particularidades em
nossa divisão sociossexual e étnico-racial do trabalho.
A história brasileira apresenta violentas expropriações
que atingiram e ainda afetam com espoliação e extermínio, sob
diferentes circunstâncias, os povos indígenas. O grau elevado de
hostilidade e desprezo permanece e os penaliza como os mais
suscetíveis à escravidão contemporânea 64 junto com negros/as,
trabalhadores/as migrantes internos das franjas mais
depauperadas das classes trabalhadoras e migrantes
internacionais em situação irregular.
41
É com um terrível histórico da documentada e não
documentada transição do período tardio da escravidão ao
trabalho livre, de permanência e/ou convívio com formas
transitórias ou híbridas de exploração da força de trabalho, que
podemos analisar as desigualdades do desenvolvimento
nacional se refletindo nas condições de trabalho. Até porque a
modernização burguesa no Brasil se revelou de forma paulatina
e se espraiou, onde era imprescindível, acompanhando as
dinâmicas do desenvolvimento interno diante da inserção do
nosso país na divisão internacional do trabalho.
Portanto, consideramos a escravidão contemporânea
como inicialmente uma marca das expressões de formas
transitórias ou híbridas de exploração da força de trabalho, que
teve como um dos símbolos de visibilidade, em nosso país, a
emblemática carta de Dom Pedro Casaldáliga, em 1971.65
Depois desta denúncia até o início dos anos 1990, muitas outras
ocorreram − realizadas pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) e
por outras organizações e movimentos sociais − sobre as
violações dos direitos fundamentais do trabalho, 66
principalmente na região Amazônica brasileira, com destaque
para o Sul e Sudeste do Pará.
65Casaldáliga, 1971.
66Como no caso emblemático “Zé Pereira”, ocorrido em 1989, o qual a CPT,
o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e Human Rights
Watch denunciaram à Comissão Interamericana de Direitos Humanos
(CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) em 22 fev. 1994. Para
mais detalhes ver: Costa, 2010.
42
psicológicas, compostas por ameaças, espancamentos e
mesmo assassinatos. A justificativa para a relação
estabelecida era de uma suposta dívida do trabalhador. Os
autores dos crimes, eram grupos empresariais do capital
financeiro e industrial, que ali se tornaram empresas
agropecuárias. Os responsáveis pelos crimes são estes, os
seus prepostos e o Estado brasileiro, que os incentivou e
os financiou em suas atividades predatórias (Figueira;
Prado; Palmeira, 2021, p. 16).
67 “As Convenções sobre trabalho forçado, nos 29 e 105, estão entre os seus
43
criação do Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado
(GERTRAF) e o Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM)
pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso, em 1995. 71
O GEFM possui a finalidade de fiscalização das condições
de trabalho 72 e resgate dos/as trabalhadores/as escravi-
zados/as, além de garantir-lhes o recebimento de suas verbas
trabalhistas. 73 Ademais, para reduzir as pressões ou ameaças
sobre a fiscalização local, 74 tem comando centralizado, com a
padronização dos procedimentos, para assegurar o sigilo
absoluto na apuração das denúncias. Tendo em vista o “perfil”
autoritário e truculento das classes dominantes brasileiras, que,
em algumas situações, com o auxílio de pistoleiros e capatazes,
não permitem ou dificultam qualquer forma de fiscalização que
vise uma regulamentação social em prol das classes
trabalhadoras.
Como no representativo e trágico caso da Chacina de
Unaí, no dia 28 de janeiro de 2004, na qual quatro servidores
(os auditores fiscais do trabalho Erastóstenes de Almeida
Gonsalves, João Batista Soares Lage e Nelson José da Silva e o
motorista Aílton Pereira de Oliveira) do Ministério do Trabalho e
Emprego foram executados, porque iriam fiscalizar uma
denúncia de trabalho escravizado contemporâneo em uma
fazenda de plantação de feijão, em Unaí - MG, dos irmãos
Norberto e Antério Mânica. Importante destacar, que esses dois
irmãos ruralistas exercem grande influência político-econômica
judiciais cabíveis.
74 É formado por auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Previdência,
44
na cidade, com o primeiro conhecido como o “rei do feijão” e o
segundo foi prefeito de Unaí entre 2005 e 2013, eles foram
condenados a 100 anos de reclusão. No entanto, após Norberto
ter se assumido como único mandante do crime, Antério foi
retirado do caso e a justiça reduziu para 65 anos a pena de
Norberto, mas este aguarda, já há 15 anos do crime cometido,
em liberdade, porque entrou com recurso em segunda instância.
Esse caso reflete a impunidade e a expressão explícita de uma
justiça de classe e parcial na sociedade brasileira. Por isso, no
ano de 2009, o dia 28 de janeiro foi proclamado como o Dia
Nacional de Combate ao Trabalho Escravo. 75
Dentro da trajetória do combate ao trabalho escravizado
contemporâneo, houve a implementação do Programa Nacional
de Direitos Humanos (PNDH), estabelecido pelo Decreto nº 1.904
de 13/05/1996, que era um plano de ação com o objetivo de
coibir o trabalho forçado e possuía como ponto central a revisão
da legislação, com vistas à eficácia do Programa de Erradicação
do Trabalho Forçado e do aliciamento de trabalhadores
(PERFOR), criado em 1992. Depois de uma década, em 2002, foi
criada uma comissão especial para elaborar o I Plano Nacional
para a Erradicação do Trabalho Escravo (PNETE), 76 que foi
lançado publicamente em 2003, pelo Presidente Luiz Inácio Lula
da Silva.
A OIT, ao iniciar uma cooperação técnica, em 2002, 77
atuou de forma articulada com as instituições brasileiras para
auxiliar a desvelar e combater a escravidão contemporânea. Por
meio de sua articulação e importância internacional, garantiu e
ainda viabiliza pesquisas fundamentais para identificar a
predominância de um “perfil” das pessoas resgatadas. A
instituição auxiliou em comissões de pesquisa para mudanças
no arcabouço jurídico e em políticas de combate (proteção,
repressão e erradicação).
No Projeto de Cooperação Técnica “Combate ao Trabalho
Escravo no Brasil”, a OIT apoiou o desenvolvimento de uma base
de dados no âmbito da Secretaria de Inspeção do Trabalho;
colaborou na elaboração de diversos planos de combate ao
45
trabalho escravizado; capacitou agentes do sistema judiciário e
apoiou tecnicamente os estados onde há maior incidência de
formas contemporâneas de escravização.
Cabe ressaltar que as campanhas da CPT 78 e do MPT,
articuladas à OIT, foram fundamentais e mobilizaram o meio
acadêmico, o meio jurídico e os movimentos sociais. Houve
muitos debates e profícuas análises para garantir uma melhor
apreensão da escravidão contemporânea, sendo assim, majo-
ritariamente, designada no meio acadêmico.
Foi por meio da Comissão Especial do Conselho de
Defesa dos Direitos da Pessoa Humana da Secretaria Especial
dos Direitos Humanos 79 que se possibilitou evidenciar e elaborar
as tipificações adicionadas pela Lei nº 10.803 (de 11 de
dezembro de 2003) ao artigo 149 do CPB, 80 que são: quando a
vítima for submetida a trabalhos forçados ou à jornada
exaustiva; quer sujeitando-o a condições degradantes de
trabalho; quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção
em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.
Desse modo, estabelecem-se quatro modalidades da escravidão
contemporânea: “a) sujeição da vítima a trabalhos forçados; b)
sujeição da vítima a jornada exaustiva; c) sujeição da vítima a
condições degradantes de trabalho; d) restrição, por qualquer
meio, da locomoção da vítima” (Menezes; Miziara, 2020, p. 141).
Além dessa mudança no artigo 149, houve, anterior-
mente, modificações na penalidade e adições fundamentais na
caracterização da escravidão contemporânea nos artigos 203 e
207 do CPB, com a lei 9.777/98.
78 Como a emblemática campanha da CPT “De olho aberto para não virar
46
Art. 203. Frustrar, mediante fraude ou violência, direito
assegurado pela legislação do trabalho:
Pena - detenção de um ano a dois anos, e multa, além da
pena correspondente à violência." (NR)
"§ 1º Na mesma pena incorre quem:
I - Obriga ou coage alguém a usar mercadorias de
determinado estabelecimento, para impossibilitar o
desligamento do serviço em virtude de dívida;
II - Impede alguém de se desligar de serviços de qualquer
natureza, mediante coação ou por meio da retenção de
seus documentos pessoais ou contratuais.
§ 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço se a
vítima é menor de dezoito anos, idosa, gestante, indígena
ou portadora de deficiência física ou mental.
Art. 207. Aliciar trabalhadores, com o fim de levá-los de
uma para outra localidade do território nacional:
Pena - detenção de um a três anos, e multa."(NR)
"§ 1º Incorre na mesma pena quem recrutar trabalhadores
fora da localidade de execução do trabalho, dentro do
território nacional, mediante fraude ou cobrança de
qualquer quantia do trabalhador, ou, ainda, não assegurar
condições do seu retorno ao local de origem.
§ 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço se a
vítima é menor de dezoito anos, idosa, gestante, indígena
ou portadora de deficiência física ou mental. 81
10 maio 2020.
47
Tabela 1
Elaboração da autora 82
48
se reproduzir e se multiplicar sem passar pela esfera produtiva.
Sobre esta análise nos deteremos mais adiante.
Retomando o histórico brasileiro de enfrentamento ao
trabalho escravizado contemporâneo, em 2008, a CONATRAE 83
(antigo GERTRAF) 84 lançou o II Plano Nacional de Erradicação
do Trabalho Escravo, incorporando todos os aspectos anteriores,
porém com mudanças a fim de garantir maior impacto sobre a
destinação orçamentária das ações, melhora na implementação
das políticas de combate à escravidão contemporânea no país e
“esforços nas medidas para reduzir a impunidade e para garantir
emprego e reforma agrária nas regiões fornecedoras de mão de
obra escrava” (Castilho, 2017, p. 117). 85
Destaca-se um instrumento importantíssimo de combate
ao trabalho escravizado contemporâneo que é o Cadastro de
Empregadores Infratores (a conhecida “Lista Suja”), 86 que é uma
lista pública de pessoas físicas e jurídicas flagradas com a
escravidão contemporânea. Foi instituída em 2004, pelo
Ministério do Trabalho e Emprego, e tornou-se um importante
meio de repressão devido às consequências econômicas para o
infrator. 87 Por isso, os diferentes setores econômicos pressionam
para não ser divulgada, tal como aconteceu entre 2014 e 2016,
resultado da exigência das empresas da construção civil, e, em
2017, sob a presidência do governo golpista de Michel Temer, 88
com a pressão da “Bancada BBB” (Boi, Bala e Bíblia) no
Congresso Nacional.
suja da escravidão”.
https://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2017/10/25/mpt-cobra-r-
320-mil-do-governo-temer-por-ocultar-lista-suja-da-escravidao/ Acesso em
out. 2017.
49
Diante da apresentação dos mais relevantes instru-
mentos governamentais de combate à escravidão contem-
porânea, é fundamental destacar que o Brasil foi sentenciado
pela Corte Interamericana dos Estados Americanos (OEA), em
outubro de 2016, pelo caso de 85 trabalhadores resgatados em
2000, na “Fazenda Brasil Verde”, em Sapucaia, município
localizado no Sul do Pará. Nosso país foi o primeiro a ser
condenado pela corte, apesar de ter “avançado consideravel-
mente no desenvolvimento e aplicação de instrumentos de
repressão a esse crime, deixou de lado a efetivação de ações do
ponto de vista estrutural” (Sakamoto, 2017, p. 99).
Discutiremos esses aparentes paradoxos no último
capítulo deste livro.
50
capitalista − engendrando heterogêneos movimentos na força de
trabalho no território nacional e mundial. Assim como os
elementos particulares do capitalismo dependente, dentre os
quais destaca-se a superexploração da força de trabalho, que
será nosso foco de análise mais adiante.
Os fluxos migratórios na sociedade burguesa possuem
uma grande diversidade, no que se refere à divisão internacional
do trabalho, em seu desenvolvimento desigual e combinado
entre os países e regiões. Nesse sentido, abrange elementos
circunscritos à origem-destino, às classes sociais e ao momento
histórico do capitalismo. Existem particularidades de
determinados contextos sócio-históricos, que indicam o
direcionamento do fluxo de pessoas e como os distintos
movimentos de expropriações 91 − a exemplo das guerras, da
expansão da fronteira agrícola 92 − expulsam e atraem
contingentes populacionais. Como os ocasionados pelos
conflitos pela terra, pelos impactos dos chamados desastres
ambientais, que desterram populações ribeirinhas, povos
originários e comunidades quilombolas. Em outra ponta, na
cidade do Rio de Janeiro, temos conflitos urbanos
(narcotráfico/milícia), que se delineiam semelhantes às guerras
civis e trazem discussões sobre as emigrações internas forçadas
das favelas, determinando uma modalidade de refúgio interno. 93
Além disso, há as permanentes reestruturações da
produção, seja com o aumento da composição orgânica do
capital ou com a desterritorialização das cadeias produtivas, que
ocasionam a falta de emprego e a ausência de possibilidades de
sobrevivência. Sintetizando, vemos que os fluxos migratórios
acompanham o modo como as leis econômico-sociais, tenden-
ciais, do capital se irradiam em determinadas particularidades,
assim como suas consequências.
A maior parte dos/as trabalhadores/as, quando migram
diante das situações supracitadas, torna-se mais suscetível a
51
uma situação de trabalho mais precarizada. Essas pessoas só
saem de seus países ou região de origem para locais onde há
oferta de ocupação e de, supostamente, melhores condições de
vida, porque vivem ou a ausência do trabalho, ou um cenário de
conflitos/guerras ou perseguições políticas ou étnico-raciais e
culturais. 94
No atual contexto, o Brasil é considerado, ao mesmo
tempo, um país de origem, de trânsito e de destino de migrantes.
Do nosso país, até a metade do ano de 2019, saíram
aproximadamente 1,7 milhões de emigrantes, de acordo com a
Organização Internacional para as Migrações (OIM). 95 Tratando-
se, particularmente, sobre um lugar de destino, podemos
destacar que o Brasil registrou, entre 2010 e 2018, a entrada de
quase 775 mil imigrantes, segundo o Observatório das
Migrações Internacionais do Ministério da Justiça. 96 Segundo o
Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados
(Acnur), o Brasil recebeu mais de 550 mil venezuelanos/as −
entre refugiados/as, solicitantes de refúgio e residentes
temporários −, ocupando o quinto lugar entre os países da
América Latina que mais recebe refugiados/as venezuelanos/as,
segundo o Senado Federal (Brasil, 2020b). 97
Essas pessoas se somam a uma força de trabalho
passível de se submeter a qualquer tipo de trabalho degradante,
exaustivo e fora das normas da Consolidação das Leis do
Trabalho, podendo se caracterizar no trabalho escravizado
contemporâneo. É importante pontuarmos que o capitalismo,
desde a sua gênese, dispõe da violência e das expropriações (a
escravização, as consequências do patriarcado, a expulsão de
povoados originários de seus territórios e do acesso à terra e,
atualmente, expressa-se também na retirada dos direitos do/a
trabalhador/a) para sua consolidação e desenvolvimento.
nitf-content-1566502830.29
97 Nesse ranking, o Brasil está atrás da Colômbia, do Peru, do Chile e do
52
Atualmente, a contemporânea recepção aos/às mi-
grantes internos ou internacionais no Brasil causam estranheza
em algumas pessoas devido às construções de mitos da imagem
do nosso país, onde supostamente existem apenas brasileiros/
as hospitaleiros/as e amigáveis, que recepcionariam a todos/as
de “braços abertos”, como o Cristo Redentor da Guanabara. A
verdade é que essa recepção calorosa depende da origem, da
raça/etnia e da classe social do/a migrante. E esse mito de “povo
hospitaleiro” é correlato a um outro mito que é o da “democracia
racial”.
A verdadeira história da nossa formação econômico-
social requer o resgate sem mistificações sobre a implementação
do trabalho livre junto às políticas de incentivo à imigração que
tiveram o propósito de embranquecer o nosso país e garantir o
extermínio de negros/as, indígenas, “híbridos” como os/as
planaltinos/as e nordestinos/as, no plano dos eugenistas. Com
políticas institucionais que indicavam a necessidade de fomento
à chamada “disciplina” da força de trabalho por meio de
trabalhadores/as oriundos da Europa Ocidental. Uma falaciosa
justificativa que, na realidade, acompanhava o desenvolvimento
do racismo científico, fruto da racialização da humanidade,
necessária para as expropriações da modernização, de avanço
do imperialismo e da “civilização” burguesa.
Sobre o mito do brasileiro cordial, Clóvis Moura o
desmistifica e revela que, na década de 1920, a “pregação da
Liga [da Higiene Mental, em 1928] concentrou seus fogos
particularmente na imigração: o Brasil deveria, nesse campo,
adotar rigorosos critérios seletivos, em que se inseria a
condenação à entrada de negros e asiáticos em nosso país –
‘rebotalho de raças inferiores’ –, alegando que ‘já nos bastavam
os nordestinos, os híbridos e os planaltinos miscigenados com
negros’” (Moura, 1994, p. 7). E como é apresentado no capítulo
II, o governo de Getúlio Vargas foi o último governo a
implementar políticas explicitamente eugênicas no Brasil.
Abrimos esse parênteses histórico, que é melhor
apresentado mais adiante, para destacarmos que o grau de
violência, − visto, hoje, no cenário brasileiro diante de migrantes
internacionais como haitianos/as, senegaleses/as, congoleses/
as, venezuelanos/as, bolivianos/as e peruanos/as − não pode
53
ser considerado apenas como uma expressão contemporânea
xenófoba da extrema-direita, mas devem ser destacados os
processos estruturais da racialização e, por sua vez, de uma
suposta hierarquização étnico-racial cultural, que alicerça o
tecido social capitalista mundial e apresenta particularidades
marcantes na formação econômico-social brasileira.
É evidente que em uma conjuntura internacional de crise
estrutural do capital, que promove o avanço de posturas
reacionárias e de bandeiras anti-imigração, pioram as possibili-
dades de progresso de políticas imigratórias mais amplas e
“legitimam-se” as agressões morais e físicas a essas pessoas.
De acordo com a pesquisadora Patrícia Villen (2020),
aqui no Brasil, a partir do golpe jurídico-parlamentar 98 que
derrubou a presidenta Dilma Rousseff, houve uma reorientação
das políticas imigratórias em uma direção mais restritiva, por
passarem a assumir a xenofobia e o racismo como uma prática
legítima. A vitória, nas eleições de 2018, de Jair Bolsonaro, “que
possui um posicionamento anti-imigrante e xenófobo bastante
explícito, ajuda-nos a entender como esses fenômenos são
construídos e fomentados pelo alto” (Villen, 2020, p. 51-52).
Portanto, uma camada social composta por migrantes e
refugiados/as, 99 que longe de suas pátrias – alguns indocumen-
tados/as −, é alvo de variadas agressões, e grande parte é
condicionada a vender sua força de trabalho em condições de
máxima degradância.
Dados, compilados pelo Frei Xavier Plassat da CPT,100
apresentam que dos locais onde mais migrantes internacionais
foram resgatados/as da escravidão contemporânea, entre o
período de 2010 a 2018, foi o estado de São Paulo, seguido de
Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Santa Catarina, Rio de
Janeiro, Mato Grosso e Roraima. A origem dessas pessoas, em
sua maioria, é, em primeiro lugar, a Bolívia, 101 seguidos do
Paraguai, da China, da Venezuela, do Haiti e do Peru, nos mais
Baeninger, 2011.
54
diversos setores econômicos, com destaque para as confecções,
construção civil, pecuária, lavoura e setor de alimentação
(restaurantes).
É importante destacar que, em 2019, a Polícia Federal
(PF) encontrou venezuelanos em situação de escravidão
contemporânea no setor de construção civil, na cidade de
Votorantim, interior do estado de São Paulo. Esse resgate
ocorreu durante a investigação a um empresário suspeito de
praticar tráfico de pessoas em Roraima. Tal operação da PF
prendeu o empresário após a denúncia de trabalhadores que
conseguiram escapar e denunciar o caso às autoridades em
Pacaraima/RR. 102
Como destacamos no primeiro item deste capítulo, a
proporção de resgatados/as da escravidão contemporânea são
94,7% de homens para 5,2% de mulheres referente a dados
nacionais. No entanto, a pesquisa supracitada, realizada pela
Ong Repórter Brasil (Suzuki, 2020), apresenta ressalvas
importantes, como o caso do estado de São Paulo, onde a
proporção de homens e mulheres resgatados é de 81,6% e
18,3%, respectivamente. E no município de São Paulo, 30,4%
dos/as resgatados/as são mulheres e 93,1% destas mulheres
são migrantes internacionais, a maioria trabalha em confecções
e é boliviana. Sobre a migração interna, como supracitado,
temos a predominância dos/as resgatados/as ser oriunda do
estado do Maranhão.
Temos uma ampla diversidade do destino dos fluxos
migratórios que acompanham as consequências da expansão da
fronteira agrícola e da reestruturação produtiva. É fato, como a
professora Virgínia Fontes (2020) assevera que, desde a década
de 50 do século XX, houve um aumento brutal das pessoas do
campo expropriadas indo para os centros urbanos para tentar
sobreviver. Destaca-se que
com/sp/sorocaba-jundiai/noticia/2019/09/24/venezuelanos-sao-
encontrados-em-situacao-analoga-a-escravidao-em-votorantim.ghtml.
Acesso em: 18 maio 2020.
55
território nacional, onde as vertentes da industrialização e
das fronteiras agrícolas constituíram os eixos da dinâmica
da distribuição espacial da população no âmbito
interestadual, muito embora a primeira vertente detivesse
os fluxos mais volumosos. Nesse sentido, as análises a
respeito do processo de distribuição espacial da população
nos anos 70, e até mesmo durante a década de 80,
estiveram baseadas e preocupadas em apontar o crescente
e intenso movimento de concentração: da migração, com a
predominância do fluxo para o Sudeste; do processo de
urbanização, com a enorme transferência de população do
campo para a cidade, quando cerca de 15,6 milhões
deixaram as áreas rurais nesse período; e, a concentração
da população, manifestada no processo de metropolização
(Baeninger, 2012, p. 79).
56
no período de 1970 a 1994, no Sul do Pará, 19.843
trabalhadores/as foram escravizados/as, em um total de 165
fazendas e 1.000 trabalhadores/as foram resgatados/as. 104
57
trabalhadores/as rurais em âmbito nacional, temos inusitadas
situações, como a de modelos na cidade do Rio de Janeiro e de
trabalhadores/as em cruzeiros, 106 que envolvem pessoas de
diferentes “perfis” da maioria resgatada, mas que em sua
maioria são migrantes.
O quadro predominante nos casos é que há um
imaginário, por parte dos/as trabalhadores/as, de possibili-
dades de um futuro melhor, e, grande parte das situações da
escravidão contemporânea na qual há o tráfico de pessoas,
ocorre por meio de um “gato/a”, 107 denominação dada ao/à
aliciador/a, que com uma falsa promessa engana o/a
trabalhador/a disposto a migrar.
Dos casos mais frequentes da escravidão contemporânea
no Sul e Sudeste do Pará é a servidão por dívida, que garante a
permanência da pessoa no trabalho até conseguir pagar uma
quantia, que às vezes pode se tornar impagável, devido ao
superfaturamento dos valores auferidos do transporte e
hospedagem até o instrumento de trabalho e alimentação. Os
autos de resgate revelam em suas descrições e fotos, as
condições brutais a que os/as trabalhadores/as são
submetidos/as.
58
conduzir pessoas no trabalho, se tornaram firmas
empreiteiras com registro em cartório e nomes fantasias.
A pessoa física dos irmãos Modesto, virou Empreiteira
Reunidas. Conhecidos popularmente como “gatos”, esses
homens apresentavam, em geral, algumas características
comuns: eram empreendedores determinados, que
conjugavam a sedução e a violência. Zezinho da Codespar
tinha a fama de ter assassinado, de uma só vez, 60 homens
em uma fazenda da região em meados dos anos 1970. A
polícia teria encontrado em outra fazenda, fruto de ação de
outros gatos, ossos humanos escondidos em um poço. Em
uma terceira propriedade, no chiqueiro, junto ao alimento
dos porcos, havia vestígios de ossos humanos (Figueira;
Prado; Palmeira, 2021, p. 57, grifos dos autores).
59
contemporâneo, tentando demonstrar melhor suas tipificações,
conforme consta no artigo 149 do Código Penal Brasileiro.
A condição da servidão por dívida, primeira tipificação
reconhecida na trajetória nacional, ocorre quando o/a
trabalhador/a é mantido/a no trabalho para pagar uma
fraudulenta dívida contabilizada pelo/a patrão/oa e/ou pelo/a
aliciador/a, seja com o adiantamento da remuneração,
deslocamento, alimentação ou equipamentos de proteção
individual.
Como já foram apresentadas as especificações do
trabalho degradante e da jornada exaustiva, apenas
relembramos que a primeira se configura quando as condições
de trabalho podem consolidar riscos para a segurança e saúde
dos/as trabalhadores/as. Uma pesquisa da OIT realizada no
Maranhão, caracterizou a degradância mediante a
60
do Trabalho, 2018a, p. 89). Além dessas quatro condições,
colocou como indicador da jornada exaustiva a intensidade da
jornada de trabalho que “[...] é indicada pelo uso muito frequente
de medicamentos e pelo relato de extrema fadiga para a execução
das atividades diárias. Essas duas categorias deveriam ser
relatadas simultaneamente pelo entrevistado para que ele fosse
considerado vítima de Jornada de Trabalho Exaustiva”
(Organização Internacional do Trabalho, 2018b, p. 89).
No caso de trabalho forçado, resumidamente, a pessoa
é impedida de sair do trabalho por meio de ameaças psicológicas,
físicas e/ou retenção de documentos e salários, de acordo com
a Convenção 29 da OIT.
É preciso ressaltar que não é necessário que haja todas
as quatro tipificações (trabalho degradante; jornada exaustiva;
servidão por dívida e trabalho forçado) para que seja
caracterizada a escravidão contemporânea. No entanto, muitas
dessas características aparecem juntas e a degradância é uma
das predominantes. Assim como a servidão por dívida
geralmente está articulada ao trabalho forçado. Em relação à
jornada exaustiva, esta ocorrência raramente está isolada nas
constatações das fiscalizações, frequentemente é identificada em
conjunto com as condições degradantes.
Talvez pareça, em nossa discussão, que existe um
enfoque à servidão por dívida e ao trabalho degradante, mas
recebem um certo destaque porque são reconhecidamente
marcas históricas, no Brasil, do trabalho escravizado
contemporâneo, principalmente a servidão por dívida. A
degradância é o tipo penal que aparece na maioria dos autos,109
e a consideramos como uma expressão da condição fundante da
mercantilização da força de trabalho, em nosso país, como
produto da passagem da escravidão colonial ao capitalismo
dependente que mantém, no trabalho braçal, o caldo cultural da
subalternidade e da violência, expressas na permanência ou
reinvenção de formas transitórias ou híbridas de exploração da
força de trabalho.
A caracterização das tipificações da escravidão
contemporânea aqui apresentadas e analisadas tem por base o
61
artigo 149 do Código Penal Brasileiro, assim como os estudos de
pesquisadores/as da temática, que estiveram envolvidos/as
diretamente com a ampliação do artigo com a Lei 10.803/2003.
Conforme supracitado, o maior número de resgates até
hoje (dez/2021) ocorreu em âmbito rural (43.978) e a maior
parte dos/as trabalhadores/as resgatados/as, no geral, segue
sendo no estado do Pará (13.295), como podem ser auferidos nos
dados das fiscalizações, sistematizados pela Secretaria de
Inspeção do Trabalho (veja o Gráfico 1). Com a exceção do estado
de São Paulo, que possui na relação urbano versus rural, um
maior número de resgatados/as na área urbana, com 1.457
trabalhadores/as contra 608 na área rural. Por isso,
apresentamos abaixo os quatro primeiros estados que tiveram
mais resgatados/as no Brasil, além de São Paulo, para explicitar
essa exceção. (Gráfico 2).
Gráfico 1
62
Gráfico 2
63
Como pontuamos anteriormente, os processos
migratórios são ocasionados por contextos sócio-históricos
distintos, que se irradiam em configurações particulares das
tendências e contratendências da acumulação capitalista, em
sua necessidade de expandir e capitalizar todos os espaços.
Algumas análises 111 apontam a ampliação da servidão
por dívida, que vem acompanhada da degradância e, em muitas
situações, é acompanhada dos atributos das jornadas
exaustivas e do trabalho forçado, durante o período da ditadura
empresarial-militar, entre 1964 e 1985. É sabido que, a partir
de meados dos anos 1960, ocorreu uma acelerada ocupação
territorial do Norte do Brasil, sobretudo da região Amazônica,
onde foi amplamente utilizado o trabalho escravizado
contemporâneo, 112 para o desmatamento e formação de
pastagens para a instalação dos novos latifundiários, que
contaram com incentivos e com apoio dos governos militares
para a ocupação da Amazônia.
64
soberania nacional. 113 Assim, os custos privados para a
implantação dos grandes projetos de pecuária extensiva foram
reduzidos a zero.
113 O lema dos militares era “integrar para não entregar”, ou seja, a
integração da Amazônia era fundamental, para que supostamente não fosse
ocupada por potências estrangeiras. Ainda se referia à ocupação dos
espaços vazios, apesar da região ser ocupada por povos indígenas e por uma
pequena população camponesa. A ojeriza aos verdadeiros povos da terra
expressa o caráter racista, antinacional e antissocial da autocracia
burguesa brasileira.
114 A expropriação e ocupação da Amazônia remonta ao final do século XIX
65
Parágrafo único: Os Estados e Territórios daquela região,
bem como os respectivos municípios, reservarão, para o
mesmo fim, anualmente, três por cento de suas receitas
tributárias. Os recursos de que trata este parágrafo serão
aplicados por intermédio do Governo Federal (Brasil,
1946).
66
Engenharia S/A, Encol, Andrade Gutierrez −, e madeireira
– Madeireira Agropecuária S/A Ind. Com. Agropecuária
(Maginco). [...] O outro tipo de empreendimento
agropecuário implantado na região era composto por
empresas familiares, como as de membros das famílias
Lunardeli, Barbosa, Mutran, Bannach, Quagliato,
Avelino, Andrade, Pires, José Coelho Vitor e Maurício
Pompéia Fraga, possuidores de 47 fazendas. [...] Outros
proprietários destacam-se pela incidência das denúncias
de mão de obra escrava como Jairo Andrade, Luís Pereira
Martins e Antônio Barbosa de Melo (Figueira, 2004, p.
105-107).
67
para os povos originários; desapropriação das terras de
populações rurais; aumento da tensão nos núcleos urbanos;
destruição das terras indígenas, invadidas por estradas, inun-
dadas por hidrelétricas e abertas à mineração; concentração
fundiária e conflitos pela posse da terra.
Pode ser verificado que os programas oficiais, articulados
com os interesses privados e oligárquicos, buscaram abrir a
região Amazônica para os excedentes populacionais de outras
regiões, os quais, expulsos de sua terra-natal, transformaram-
se em sem-terra, peões, 117 operários/as, favelados/as e
garimpeiros/as.
68
em empreendimentos agropecuários, em condições totalmente
degradantes.
A servidão por dívida é o nosso ponto de enfoque neste
item, ao analisarmos também situações em que há a convivência
desse “arcaico” com a mais alta tecnologia, o “moderno”, inscrito
sob os parâmetros da reestruturação produtiva na agropecuária.
Entende-se que tanto são eliminadas as relações sociais e
produtivas que impeçam a reprodução ampliada do capital,
quanto são incorporadas a ela aquelas persistentes relações de
exploração da força de trabalho que podem ser recriadas em seu
processo de produção e reprodução.
Como podemos analisar no processo da formação da
sociedade brasileira, houve, desde seu tempo colonial, passando
pelos processos de emancipação política formal, uma ausência
de construção de um projeto de nação e a consolidação de uma
“classe dominante-dominada", que garante a permanência dos
seus superprivilégios na articulação dependência-imperialismo,
mantendo uma extrema concentração fundiária, que expropriou
e usurpa os meios de vida de um enorme contingente de pessoas,
tornando-as “livres” para terem como única fonte de sobrevi-
vência apenas sua força de trabalho explorada. 118
Essa condição os/as obriga a aceitar qualquer proposta
de ocupação para sustentarem suas famílias, pois as
alternativas que surgem, para esses/as trabalhadores/as, são
ocupações temporárias, de baixíssimos salários, nas quais
facilmente se evidencia a superexploração da força de trabalho,
além do sobretrabalho habitual deste modo de produção. O
sobretrabalho dos/as trabalhadores/as empregados/as, − que
Marx (1984, p. 203) identificou como uma das leis da
acumulação capitalista − que aumenta “as fileiras de sua
reserva”, ao mesmo tempo em que, essa última, obriga a
primeira “ao sobretrabalho e à submissão aos ditames do
capital”.
69
Portanto, em relação à situação dos/as trabalhadores/as
no sul do Pará, que em algumas situações eram conhecidos
como “peões de trecho”, 119 essas pessoas saem de seus locais de
origem, onde há uma extrema abundância de força de trabalho
e escassez de emprego, a procura de ocupação para sustentar a
si e suas famílias, percorrem o Norte do país ou se direcionam
para a região Sudeste. E a acelerada expansão em direção à
Amazônia, durante a ditadura empresarial-militar, constituiu-se
em um processo apoiado na repressão e na falta de liberdade
política, em um contexto de anticomunismo no qual, justamente
as classes trabalhadoras, na cidade e no campo, tornavam-se
suspeitas da subversão da ordem política sempre que reagiam
às péssimas condições de trabalho e vida.
Os principais aliados e favorecidos do regime
empresarial-militar foram os/as proprietários/as de terra e
os/as empresários/as, promovendo uma situação em que a
exploração da força de trabalho ficava acentuadamente na
dependência do arbítrio do fazendeiro ou de seus represen-
tantes. Esse ambiente repressivo, associado à constitutiva
superexploração da força de trabalho, demonstrava a aparência
de uma “debilidade” das instituições da justiça e da polícia, as
quais, por vezes, tornavam-se abertamente coniventes com a
escravização dos/as trabalhadores/as e com a expulsão de
camponeses/as da terra.
119 “Trabalhador fora de seu lugar de origem, desligado das antigas relações
familiares sem construir novas, trabalha sucessivamente em fazendas
atrelado a um ou diversos empreiteiros. Entre uma empreita e outra cria
débitos em pensões e cabarés, mantendo-se preso à rede de endividamento
e ao trabalho coercitivo. Em geral é analfabeto, sem qualificação profissional
e tem problemas de alcoolismo. É também chamado de peão rodado”
(Figueira, 2004, p.18).
70
endividamento no trabalho, situações degradantes de
moradia e alimentação − muitas vezes concluíam não
terem encontrado indícios de escravidão. Naturalizavam
violações de direito contra a pessoa ao registrarem que tais
modalidades [eram] comuns do trabalho e das condições
de vida dos assalariados na região. Raramente havia
inquéritos policiais e, algumas vezes, a própria polícia do
estado se envolvia favorecendo empregadores (Figueira;
Prado; Palmeira, 2021, p. 51-52).
71
Na “frente pioneira”, na década de 1970, o trabalho
escravizado contemporâneo foi utilizado, principalmente em
tarefas próprias da chamada acumulação primitiva, sendo um
momento de expropriação dos meios de vida, prolongando-se na
superexploração da força de trabalho.
E nessa análise de que a chamada acumulação primitiva
compõe a dinâmica da acumulação capitalista, vemos que a
escravidão contemporânea não está presente apenas nestes
processos de “frente pioneira”. A escravidão contemporânea
ocupa os mais diversos setores econômicos, isso porque, como
temos a apreendido, a dinâmica da acumulação capitalista e as
consequências das lutas de classes, com uma grande ofensiva
ao conjunto das classes trabalhadoras, têm desencadeado
intensos retrocessos. No âmbito rural, ainda como campo
predominante, os/as trabalhadores/as têm sido resgatados/as
da escravidão contemporânea, em plantações 121 de cebola, 122
tomate, 123 soja, milho, arroz, 124 no corte da cana-de-açúcar, na
colheita de café e de semente de capim para a formação ou
manutenção de pastos.
O emprego da escravidão contemporânea em setores
primordialmente agropecuários, voltados para o mercado
interno e para a exportação, faz-nos entender que essas formas
de exploração da força de trabalho não estão restritas aos
denominados mecanismos da chamada acumulação primitiva,
mas se estendem pelo interior de todo o processo de produção e
reprodução do capital, nas mais diversas cadeias produtivas de
valor.
Caracterizamos o trabalho escravizado contemporâneo
como a variação extrema do trabalho assalariado, resultante da
72
permanência das formas transitórias de exploração da força de
trabalho ou sua reciclagem em formas híbridas, e das
consequências contemporâneas geradas pelas transformações
nos circuitos produtivos. Em condições de superexploração da
sua força de trabalho, o/a trabalhador/a é levado/a ao limite de
comprometer sua própria sobrevivência tanto na violação do seu
fundo de consumo quanto no desgaste do seu fundo de vida,
com jornadas extenuantes, por ameaças e violência física e
psicológica.
Martins (1994) se refere à superexploração a que o/a
trabalhador/a é submetido/a nesse regime de “escravidão por
dívida”, porque é descartável e facilmente substituível, devido à
existência de um grande “exército de reserva”. Além disso, o
argumento da dívida contraída pelo/a trabalhador/a é
apresentado como prerrogativa para privação objetiva de sua
liberdade. Quanto à contração da dívida em si, ela é
perfeitamente compreensível com base no entendimento de que:
73
influência estruturalista, positivista, dualistas, evolucionistas,
que corroboram com a equivocada e permanente esperança em
teorias desenvolvimentistas, hoje “neodesenvolvimentistas”.
Abordaremos a crucial contribuição da TMD para nossa
apreensão da escravidão contemporânea de forma mais detida
no próximo capítulo.
Retornando à nossa discussão da servidão por dívida, é
inteligível o modo predatório que a Amazônia foi ocupada e
desenvolvida pelas burguesias oligárquicas e pelo grande
capital, com o objetivo de maximizar o lucro, violando
constantemente as legislações trabalhista e ambiental. Nessa
região, a agropecuária adquiriu extrema importância político-
econômica no favorecimento do superávit primário nacional, e é
onde se encontra a maior incidência da tipificação da servidão
por dívida, do trabalho forçado e das condições degradantes.
Esses empreendimentos produzem para o mercado
interno e exportam para os cinco maiores compradores do
agronegócio brasileiro: China, Estados Unidos, Países Baixos,
Japão e Irã. 125 A pecuária é outro ramo de atividade
correspondente a 80% das unidades de produção que utilizam a
escravidão contemporânea e é o principal responsável pelo
desmatamento da floresta amazônica.
O estado do Pará sempre ocupou o ranking do maior
número de resgatados/as da escravidão contemporânea, com
12.317 trabalhadores/as entre 1995 e 2020. 126A maioria estava
em propriedades atreladas à pecuária, derrubando a floresta
para aumentar a área ou limpando o pasto. A rede de
comercialização na qual estão inseridas essas fazendas escoa
sua produção para todos os continentes. Esses empresários
diminuem os custos trabalhistas e ignoram os direitos
74
humanos 127 para embolsar posições nesse cenário de grande
concorrência.
Os intermediários da cadeia produtiva e exportadores
nem sempre têm consciência desse crime. Sob o ponto de vista
legal, esses intermediários, varejistas e exportadores não
possuem responsabilidade pelos seus fornecedores. 128
Entretanto, é importante salientar que tanto o capital
nacional quanto o internacional, que têm investimentos no setor
agropecuário da região Norte, têm evitado posicionar-se sobre a
erradicação do trabalho escravizado contemporâneo. A
tendência dos governos, de forma significativa, mas com
relevantes diferenças, 129 até agora tem protegido, a todo custo,
o agronegócio brasileiro voltado ao mercado externo, que é um
dos principais responsáveis pelos resultados positivos em nossa
balança de pagamentos, conforme os técnicos do governo.
Os governos federal e estaduais, historicamente,
privilegiam madeireiros, pecuaristas e o restante do agronegócio,
e expulsam, com suas políticas de “desenvolvimento” ou pela
violência explícita das oligarquias agrárias, − com o auxílio de
pistoleiros semelhantes à capatazes − os/as ribeirinhos/as,
povos indígenas, comunidades quilombolas, pequenos produ-
tores rurais e moradores das reservas de exploração sustentável.
Situações perversas entremeiam as relações de trabalho e de
expropriação não só de terras, mas de corpos, que exigiam
direitos humanos.
128 “Se há uma enorme e reconhecida disparidade entre a possibilidade de
agressão aos direitos humanos por parte das empresas, devido ao seu
enorme poderio econômico e à falta de normatização quanto ao tema a fim
de responsabilizá-las por eventuais danos, ainda mais evidente fica a
omissão normativa quando a ofensa a tais direitos se dá no decorrer da
cadeia de fornecimentos das empresas e não necessariamente no vínculo
estabelecido com a empresa principal, a beneficiária final do produto dessa
cadeia. A insuficiência de mecanismo e instrumentos de responsabilização
das empresas por violações a direitos humanos é, portanto, potencializada,
quando se trata de extensas cadeias de produção e fornecimento” (Silva;
Bignami, 2022, p. 227). Sobre a responsabilização das empresas sobre suas
cadeias produtivas, ver Silva; Bignami, 2022.
129 Nos governos do PT, a agenda dos direitos humanos avançou
75
direitos ou apenas o salário combinado. Como pode ser retratado
no caso de
76
ruralista, 130 que no Congresso Nacional, conseguiu travar por
um longo período o andamento dos projetos de leis
fundamentais, a exemplo da proposta de emenda constitu-
cional, 131 que prevê o confisco das terras onde o trabalho
escravizado for encontrado. Esta proposta de emenda
constitucional foi promulgada como a Emenda Constitucional nº
81, em 05 de junho de 2014.
No entanto, de acordo com as alegações da bancada
ruralista, é necessário ocorrer uma revisão do conceito das
condições análogas à de escravo, já que o artigo 149 do Código
Penal Brasileiro recebeu o aditamento, por meio da Lei
10.803/2003, que não restringe a acepção da escravidão
contemporânea ao cerceamento da liberdade decorrente de
dívidas, como já apresentado, reconhecendo-a também nos
casos de condições degradantes e de jornada exaustiva.
Como pontuado acima, o processo do sistema da coerção
se inicia com o aliciamento dos/as trabalhadores/as, no qual
o/a fazendeiro/a geralmente alicia diretamente ou
indiretamente por intermédio dos/as empreiteiros/as, mais
conhecidos como “gatos/as”, trabalhadores/as de outros
municípios ou mesmo de fora do estado. O Maranhão e o Piauí
são os estados de origem com o maior número de
trabalhadores/as resgatados/as. Essas pessoas são
77
intermédio de empreiteiros – que também atuam nas
regiões de origem a mando dos usineiros – passam a morar
em alojamentos [precários], distantes da cidade, sujeitos a
maior pressão de seus patrões [...] (Iamamoto, 2001, p.
167).
78
dívida fraudulenta como forma de violentar ainda mais a
condição dessas pessoas.
79
As frentes de desmatamento para as empresas
madeireiras e/ou para a frente agropecuária, na maioria dos
casos, 132
80
A seguir destacamos algumas operações de resgate no
ano de 2020, ano de início da pandemia do novo coronavírus no
Brasil, nas quais podemos identificar diversas tipificações da
escravidão contemporânea, que geralmente estão combinadas e
que, em sua maior parte, há a presença da degradância.
Como pontuado, o desmatamento e a escravidão
contemporânea possuem uma relação quase inexorável. Em
2020, foram resgatados cinco trabalhadores da servidão por
dívida e condições degradantes, em uma serraria ilegal de
madeira nativa na Floresta Nacional de Caxiuanã, no estado do
Pará. 134 O alojamento onde os trabalhadores dormiam era de
cobertura de lona plástica sem paredes, sem acesso a condições
de higiene e saúde asseguradas, pois não tinham banheiros e
água potável. 135
Além disso, havia isolamento geográfico da serraria,
porque para chegar até o local eram necessárias 24 horas de
deslocamento via terrestre (por meio de trilhas) e fluvial,
dificultando o acesso ao comércio e aos serviços de saúde. Essa
condição facilitava a imposição da servidão por dívida, uma vez
que os trabalhadores tinham que comprar os alimentos em uma
cantina da propriedade. Havia o registro em um caderno do que
eles adquiriam na cantina, que seria descontado depois no
salário. Nesta situação de isolamento e de difícil acesso, um dos
trabalhadores sofreu um acidente de trabalho e não obteve
atendimento médico especializado, embora o necessitasse, dessa
forma, foi ajudado por outros trabalhadores que improvisaram
os curativos.
Em outra situação de escravidão contemporânea,
constatada em uma operação de resgate, também em 2020, na
cidade de Jacareacanga - PA, 39 trabalhadores foram resgatados
de um garimpo de extração de ouro. Eles estavam em condições
degradantes e submetidos à servidão por dívida. Os resgatados
81
trabalhavam sem equipamentos de proteção individual e tiveram
que comprar botas para o trabalho a preços superfaturados. 136
Situações como essa da servidão por dívida são muito
comuns na região Amazônica, mas não restritas a ela. No mesmo
ano de 2020, em terceira operação fiscal do ano em Santa
Catarina, auditores/as fiscais resgataram 43 trabalhadores em
plantações de cebola, no município de Ituporanga (SC), que
foram ludibriados por falsas promessas de emprego com carteira
assinada (com a suposta remuneração de valor diário acima de
R$ 100, hospedagem, alimentação e equipamentos para o
trabalho por conta do empregador), nos seus estados de origem:
Bahia, Ceará, Paraíba e Pernambuco. 137
No entanto, foram condicionados à servidão por dívida,
porque adquiriram uma dívida ilegal com o transporte e
alimentação durante o percurso, como também com o
alojamento, incluído a energia elétrica, o consumo de água e
todas as refeições. Além das ferramentas e equipamentos de
proteção, que também seriam cobrados, sofriam ameaças para
saldar as supostas dívidas.
Esses trabalhadores foram vítimas do tráfico de pessoas,
da servidão por dívida e de condições degradantes de trabalho,
essa última tipificação identificada pela falta de água potável
disponível, pela falta de ferramentas apropriadas para o trabalho
e pela precária situação de habitação e higiene. Quando não
existem condições sanitárias para o trabalho e para o repouso
há danos para a saúde, e em época de pandemia, essa situação
pode se tornar uma agravante, tendo em vista a necessidade do
distanciamento social e higiene adequada para evitar o contágio.
136 “Uma bota, por exemplo, cujo fornecimento seria obrigação dos
empregadores, custava até 3 gramas de ouro, aproximadamente R$ 600,
aos trabalhadores. O mesmo item é encontrado nas lojas de Itaituba a R$
180.” Disponível em:
https://www.gov.br/economia/pt-
br/assuntos/noticias/2020/trabalho/novembro/garimpeiros-sao-
resgatados-de-trabalho-analogo-ao-de-escravo-no-para Acesso em 10 nov.
2020.
137 Dos 43 trabalhadores resgatados, 36 voltaram às cidades de origem com
82
Em pleno pico de casos do novo coronavírus, 24
indígenas da etnia Guarani (sendo que quatro deles eram
adolescentes) foram resgatados/as da servidão por dívida. Eles
estavam em condições degradantes e eram submetidos a
jornadas exaustivas, em uma fazenda em Itaquiraí - MS 138 na
colheita da mandioca. Com jornadas de 11h por dia, foram
obrigados a comprar alimentos em mercado próximo à
propriedade, além de terem que pagar pelo transporte da aldeia
até a fazenda, pelo alojamento precário e pelos equipamentos de
trabalho, gerando a condição de servidão por dívida. Como
recebiam por produção, uma média de R$50,00, identificaram
que não conseguiriam obter nada por causa das “dívidas”
adquiridas.
Nestes quatro casos de resgate da escravidão
contemporânea, podemos identificar elementos para a discussão
sobre a superexploração da força de trabalho como caracteres-
tica particular, estrutural e sistemática do capitalismo
dependente. Analisando a superexploração em seus atributos
fundamentais e a capturando nas particularidades dinâmico-
conjunturais da dependência como na remuneração da força de
trabalho por baixo do seu valor (conversão do fundo de consumo
do trabalhador em fundo de acumulação do capital); o
prolongamento da jornada implicando o desgaste prematuro da
corporeidade físico-psíquica do trabalhador; o aumento da
intensidade do trabalho provocando as mesmas consequências,
com a apropriação de anos futuros de vida e trabalho do
trabalhador; e, finalmente, o aumento do valor da força de
trabalho sem ser acompanhado pelo aumento da remuneração
(Luce, 2013). Essa discussão estará esmiuçada com mais
elementos de análise em nosso capítulo II. Voltamos a
apresentar as tipificações da escravidão contemporânea com
casos concretos de resgates.
e-endividados-24-indigenas-guarani-sao-resgatados-de-trabalho-escravo-
em-fazenda-do-ms/ Acesso em 09 jul. 2020.
83
Condições degradantes de trabalho
84
contemporânea foram as condições degradantes de trabalho e o
aliciamento dos trabalhadores em outras regiões. Na mesma
operação de resgate, havia 159 trabalhadores locais que foram
admitidos sem vínculo empregatício e 127 desses estavam com
salários atrasados. Durante a operação a situação desses 159
trabalhadores foi regularizada.
A operação de resgate constatou a degradância das
condições de trabalho devido ao estado dos alojamentos
improvisados, onde os trabalhadores dormiam, que eram
localizados em duas chácaras, no município de Araxá, uma em
um galpão e a outra em uma varanda. Os trabalhadores sentiam
frio, devido ao local ser lateralmente aberto e não terem recebido
roupas de cama suficiente para todos. Os locais de moradia não
possuíam instalações sanitárias adequadas e não tinham
materiais de limpeza suficientes, a inspeção do trabalho também
constatou que os trabalhadores não receberam máscaras
descartáveis, álcool em gel, o sabão líquido era escasso, e não
tinham acesso a copos descartáveis, essa situação impede o
controle na situação da pandemia do novo coronavírus. 140
Uma outra situação identificada pelo GEFM de condições
degradantes de trabalho e aliciamento, nos estados de
Pernambuco e Piauí, foi em uma obra de um condomínio em
Águas Lindas, no estado de Goiás. Foram resgatadas 28 pessoas
que viviam em um alojamento superlotado e nos canteiros de
obras se submetiam a condições de total insegurança com
andaimes inadequados e fiações elétricas expostas. 141
noticias/2020/trabalho/agosto/auditores-fiscais-do-trabalho-resgatam-
28-trabalhadores-e-embargam-obra-irregular-em-aguas-lindas-go/ Acesso
em 28 ago. 2020.
85
Jornada exaustiva
86
para exemplificar essas tipificações da escravidão contem-
porânea.
Em novembro de 2020, 53 trabalhadores foram
resgatados de condições degradantes e jornadas exaustivas em
garimpos ilegais 142. Conforme constatado pela operação do
Grupo Especial de Fiscalização Móvel, os trabalhadores não
tinham seus contratos de trabalho registrados, os empregadores
não forneceram nenhum equipamento de proteção individual ou
coletivo para eles, que ainda trabalhavam em jornadas abusivas,
sem descanso semanal. Além das jornadas extenuantes,
dormiam em locais insalubres, como barracos de lona sem
proteção, sem cozinha e banheiro, consumiam a mesma água
utilizada pelos animais, que possuía insetos mortos e coloração
marrom.
Outra ação de fiscalização, que gerou o resgate de 15
trabalhadores, foi em duas carvoarias no município de Rio Pardo
de Minas, no estado de Minas Gerais. Nenhum dos
trabalhadores possuía a carteira assinada e tinham que carregar
sacos de aproximadamente 40 kg nos ombros, em uma escada
de madeira insegura para abastecer a carroceria do caminhão.
Somado a isso, não possuíam proteção contra calor, fumaça,
fuligem e pós, além de não terem máscaras de proteção contra o
novo coronavírus.
Com uma jornada exaustiva, sem tempo para descanso,
também não existia acesso a água potável para beber e se
limpar. Durante o período noturno, tempo que deveriam
repousar, um dos dormitórios de uma das propriedades recebia
fumaça vinda dos fornos de carvão, e em um outro local de
“repouso” também tinha um problema sério, pois absorvia gases
de recipientes de 50 litros com gasolina e óleo diesel. Além
dessas constatações horrendas, a inspeção identificou que os
alojamentos tinham goteiras por toda parte, tornando o local
ainda mais insalubre. 143
87
Já no município de Conceição da Aparecida (MG), em
uma fazenda de café houve o resgate de nove pessoas, oriundas
de outro município mineiro (Itacarambi), de condições
degradantes de trabalho e moradia (não tinham acesso a água
potável suficiente, não tinham banheiro e refeitório adequados,
não havia armários e camas) e de jornadas exaustivas, pois
trabalhavam por mais de oito horas diárias de domingo a
domingo. Os trabalhadores não recebiam salários, não tinham
contrato de trabalho formal e nem acesso a ferramentas de
trabalho e equipamentos de proteção individual (também sem
medidas de prevenção e controle contra o novo coronavírus). 144
Quando constatamos essa realidade, questionamos se
esses/as trabalhadores/as têm alternativas. Quais são as
possibilidades e as condições de venda da força de trabalho na
realidade do capitalismo dependente?
Vimos que esses casos se apresentam em diversos
estados e identificamos que se realizam sob diversas formas,
com violações brutais aos direitos fundamentais do trabalho. O
que essas tipificações da escravidão contemporânea têm em
comum? O que elas podem nos dizer acerca da nossa formação
econômico-social, não apenas do capitalismo dependente, mas
do capitalismo em âmbito mundial? É o que tentamos
demonstrar aqui neste livro.
norm/normes/documents/normativeinstrument/wcms_c029_pt.htm
Acesso em 20 jan. 2020.
88
decide sobre a sua permanência no trabalho e/ou aceitação
sobre o que cumpre, mesmo que inicialmente consentido, com
coação física, psicológica ou moral o/a impedindo de sair do
local de trabalho, ferindo a dignidade da pessoa humana.
Esmiuçando a tipificação em sua totalidade analítica,
89
A própria necessidade de sobrevivência faz com que
trabalhadores/as se submetam a trabalhos aviltantes, precários
e irregulares com uma submissão a uma violência física e/ou
psicológica, que se aproximam cada vez mais das tipificações da
escravidão contemporânea.
A escravidão contemporânea, como abordei no início
deste capítulo, atinge majoritariamente migrantes nacionais e
internacionais. Hoje, após as contrarreformas trabalhistas, sem
condições dignas 146 de trabalho asseguradas e com perdas de
direitos trabalhistas, também vimos que a estrutura da proteção
social brasileira, além de não absorver as franjas das classes
trabalhadoras que dela necessitam, deixa de fora centenas de
migrantes internacionais em situação irregular e refugiados/as.
Reiteramos, nesse sentido, “A expropriação, [como também] um
processo de subtração de condições históricas de reprodução da
força de trabalho, por meio da reapropriação, pelo capital, de
parte do fundo público destinado aos direitos conquistados pela
classe trabalhadora” (Boschetti, 2017, p. 61).
Apreender a escravidão contemporânea requer pensar-
mos elementos histórico-estruturais da formação econômico-
social brasileira; em outros termos, assimilar as
particularidades de como a legalidade da dinâmica da
acumulação capitalista se espraia e se desenvolve na totalidade
da divisão internacional do trabalho. Assim como, analisar a
formação das nossas classes dominantes e, por sua vez, o
encadeamento de um padrão de reprodução do capital, na
relação das economias hegemônicas imperialistas e as
economias dependentes, que repercutem em uma “classe
dominante-dominada” que demanda um padrão dual de
expropriação, na superexploração da força de trabalho.
À vista disso, a partir de um nível mais alto de abstração,
iremos no segundo capítulo dialogar com intérpretes marxistas
e do campo crítico, além do próprio Marx e Engels, para garantir
uma apreensão desde níveis mais abstratos para níveis mais
concretos de análise e tentar responder algumas daquelas
90
questões mencionadas, que versam o objeto em questão: a
escravidão contemporânea no capitalismo dependente.
147 Aqui nos referimos não somente às lutas organizadas, mas à forma como
cada trabalhador/a se vê diante do patronato em seu cotidiano e resiste sob
diferenciadas frentes.
148 Não estamos postulando que as instituições burguesas possam ser
91
Pode surgir a pergunta: Será um problema exclusivo do
Brasil, dos países periféricos-dependentes e subdesenvolvidos?
O que postulamos como caminho analítico, é o da clareza
da dialeticidade do real, na qual se apresentam as contradições
da sociabilidade burguesa e, consequentemente, dos aparatos
jurídico-políticos, que nas economias dependentes se apresen-
tam de forma mais clara.
92
Capítulo II.
DA ESCRAVIDÃO À SUPEREXPLORAÇÃO:
COMPONENTES HISTÓRICO-ESTRUTURAIS
DA FORÇA DE TRABALHO
93
2.1. Particularidade latino-americana: a mercantilização da
força de trabalho no Brasil
94
determinadas particularidades, fundando diferenciadas
formações econômico-sociais, concebendo uma relação
hierárquica entre as nações. Onde as mais desenvolvidas
constituíram e engendram relações de domínio e exploração
sobre as menos desenvolvidas (Netto; Braz, 2007).
De forma díspar, desenvolve-se o capitalismo, que
evidencia um movimento desigual e combinado, decorrente de
componentes histórico-estruturais (econômicos, políticos e
sociais) em um processo diferenciado nas diversas nações, onde
as “atrasadas” são pressionadas pelos capitais das nações
desenvolvidas, e progridem em “saltos” incorporando técnicas de
grande avanço técnico-científico, articuladas a relações sociais e
econômicas consideradas “pré-capitalistas” (Trotsky, 1982).
Pensando a dinâmica capitalista, em seu desenvolvi-
mento desigual de consolidação da divisão internacional do
trabalho, identifica-se o distinto desenvolvimento das forças
produtivas entre as nações e a forma hierárquica que se
organizam desde o colonialismo, passando pelos movimentos de
independência ao neocolonialismo, fomentado pela fase inicial
imperialista do capitalismo. Ademais, pode-se apreender neste
movimento, que determinados movimentos históricos, além de
serem fundantes do capitalismo, estruturaram a divisão social
do trabalho. Como os analisados na divisão sexual do trabalho
com o patriarcado e a sua racialização resultante da escravidão
colonial, aprofundados, posteriormente, com os processos de
neocolonialismo e de partilha do mundo nas duas grandes
guerras mundiais.
O pensamento social latino-americano pôde absorver do
arsenal clássico marxista em Lênin, Rosa Luxemburgo e
Trotsky, prioritariamente, a relação que se estabeleceu entre
alguns países independentes, no plano formal, mas articulados
em uma relação de dependência com as nações hegemônicas
imperialistas. Sob este ângulo de análise, podemos apreender as
particularidades da dependência, constitutivas: nos caminhos
da modernização capitalista, 149 no processo de mercantilização
149“Mucho más que cualquier otro país de América Latina, México logró su
independencia de España a través de una guerra de masas cuyas figuras
máximas, los curas Miguel Hidalgo y José María Morelos, eran a la vez
95
da força de trabalho 150 e nas atuais políticas macroeconômicas
sob a hegemonia dos países imperialistas, que incidem direta ou
indiretamente nas condições de exploração da força de trabalho,
e, por sua vez, na ocorrência do trabalho escravizado
contemporâneo.
“É na mediação entre a particularidade e a
universalidade que se estabelecem as concreções do modo de
produção geral − o capitalismo. Assim, a particularidade,
enquanto concreção da universalidade, não é mais do que a
própria formação social” (Mazzeo, 1997, p. 78). A universalidade
apreendida como a produção capitalista amolda-se em situações
concretas e particulares e estas não devem ser entendidas
isoladamente, mas com base nas leis gerais econômico-sociais,
que constituem o modo de ser da produção capitalista.
Ao apreendermos o desenvolvimento desigual e
combinado do capitalismo 151 e os determinantes da concreção
96
dos países, enquanto formações econômico-sociais particulares
na divisão internacional do trabalho, torna-se inteligível a
condição periférica e dependente latino-americana.
O modo de produção dominante – o capitalista –
subordina formas remanescentes de modos de produção já
substituídos ou os combina de acordo com as forças produtivas
e as relações de produção, que se realizam em uma determinada
formação econômico-social.
Com a apreensão da dinâmica imperialista do
capitalismo e do seu desenvolvimento desigual e combinado,
Vânia Bambirra, uma das fundadoras da Teoria Marxista da
Dependência, elucida que para analisarmos as economias
dependentes latino-americanas temos que nos ater a que, em
primeiro lugar, integram o mercado mundial capitalista e que se
constituíram em seu processo de mundialização. Portanto, a
“situação de dependência do sistema capitalista mundial (que se
manifesta historicamente através da dependência em relação a
um centro hegemônico) é uma situação condicionante do
desenvolvimento das sociedades latino-americanas”. E, em
segundo lugar, que são resultantes de uma reorganização
estrutural, porque “a dependência condiciona a estrutura
econômica que engendra os parâmetros das possibilidades
estruturais” (Bambirra, 2019, p. 41).
Esse desenvolvimento permitiu e, ainda possibilita, a
existência de um processo produtivo que aparenta uma
amálgama de temporalidades históricas distintas, no qual a
“anacronia”, como o trabalho escravizado contemporâneo, não é
uma “falha” do modo de produção capitalista ou produto da
“incapacidade” de seus agentes econômicos nacionais, ela é a
forma correspondente a um padrão de acumulação ancorado na
“sobreapropriação repartida do excedente econômico”
(Fernandes, 2009, p. 62). Da mesma forma, devemos apreender
que a dependência se estabelece por meio relações econômicas
internas e externas, nas quais os parceiros externos possuem
hegemonia e garantem vantagens que são compensadoras e
úteis para as burguesias locais. Porque as últimas identificam
97
que os objetivos das burguesias hegemônicas viabilizam um
“processo mais ‘lucrativo’, ‘rápido’ e ‘seguro’. Privilegiam, assim,
as vantagens relativas do polo dinâmico mais forte porque ‘jogam
nelas’ e pretendem realizar-se através delas” (Fernandes, 2009,
p. 60).
Tomamos como expressão da particularidade latino-
americana, o processo de mercantilização da força de trabalho152
– característico do período da passagem da formação econômico-
social colonial escravocrata ao capitalismo dependente − que se
consolidou, como nos termos de Florestan Fernandes, por meio
de uma “modernização do arcaico” e uma “arcaização do
moderno” nas relações econômico-sociais típicas dos países
periférico-dependentes. Uma vez que se consolidou na América
Latina um “sistema de produção colonial”, de acordo com a
funcionalidade de uma colônia de exploração, que combinava
formas escravocratas, servis e “modalidades meramente
suplementares de trabalho pago com a criação de uma riqueza
destinada à apropriação colonial, ordenada legalmente e
praticada por meios político-econômicos” (Fernandes, 2009, p.
54-55).
O processo de modernização capitalista, estabelecido
com o domínio externo, impediu o desenvolvimento indepen-
dente e a integração nacional, consequentemente sem uma
autonomia real. Porém, isso não significa que os setores sociais
internos não se beneficiaram desta situação, porque a
dependência e o subdesenvolvimento 153 foram e são proveitosos
152 “O mesmo México que viveu também uma verdadeira revolução popular
e camponesa, que marcou profundamente sua história, viu a autenticidade
da revolução de 1910 ser pouco a pouco eliminada pela prática da
institucionalização, por meio de um movimento que culminou no marcante
processo de tutela sindical por parte do Estado. Ainda assim, a Constituição
revolucionária de 1917 teve um forte sentido garantidor de direitos
trabalhistas – como a regulamentação das jornadas de trabalho, padrões
salariais mais favoráveis aos trabalhadores, liberdade de organização
sindical e direito a greve −, abrindo novos caminhos à emergência de
sindicatos que, cada vez mais numerosos ao longo das décadas seguintes,
promoveram diversas lutas pelo país”. (Antunes, 2011, p. 27).
153 “O termo subdesenvolvimento não é neutro: ele revela, pelo prefixo “sub”,
98
tanto para o domínio externo como para as camadas dominantes
internas (Fernandes, 2009).
Florestan Fernandes, ao se debruçar sobre a estrutura
capitalista dependente, demonstra três realidades que são
inerentes. Em primeiro lugar, a concentração de renda, de
prestígio social e do poder nos estratos e nas unidades sociais
que possuem importância estratégica para o núcleo hegemônico
da dominação externa; segundo, há uma coexistência de
estruturas econômicas, socioculturais e políticas que aparentam
ser de diferentes “épocas históricas”, mas na verdade são
interdependentes e igualmente necessárias para a articulação e
a expansão de toda a economia, como uma base para a
exploração externa e para a concentração interna de renda, do
prestígio social e do poder (implica a existência permanente de
uma exploração “pré ou extra-capitalista"); e, terceiro e último,
a “exclusão” 154 de uma ampla parcela da população nacional da
ordem econômica, social e política existente, como um requisito
estrutural e dinâmico para a estabilidade e crescimento de todo
o sistema (Fernandes, 2009).
Podemos salientar características das relações da forma
de exploração da força de trabalho, baseadas no “despotismo”, a
exemplo da servidão por dívida como abordado no capítulo
anterior, assim como o sistema de peonagem, retratado por
Adolfo Gilly (2013) sobre a realidade mexicana que é muito
semelhante à brasileira. 155 O historiador argentino, Adolfo Gilly,
154 “O termo exclusão está entre aspas, porque ressaltamos que os sujeitos
sociais não estão excluídos ou à margem do sistema, ou ainda vulneráveis,
mas a situação em que se encontram é componente primordial da produção
e reprodução do sistema capitalista, tal como a “superpopulação relativa”,
abordada por Marx no capítulo XXIII do livro I, tomo II, d’O Capital (1984).
155 “En líneas generales, las haciendas tenían cuatro clases de trabajadores:
99
demonstra em sua investigação sobre a história da Revolução
Mexicana, que não era só a dívida ou o medo do castigo que
amarrava o/a trabalhador/a braçal ao proprietário da terra, mas
também as relações de dependência enraizadas em costumes,
cultura e tradições fora das quais nenhum outro horizonte social
aparecia diante deles/as. 156
Nesse caminho, Gilly (2013) assevera que a instituição
agrária espanhola, transformada em sua adaptação à Colônia,
se consolida no século XVIII como elemento central que regula o
uso da força de trabalho e termina com seu esgotamento. Da
fase de abundante força de trabalho, passamos a outra, na qual
os distintos setores econômicos desenvolvem diversas
estratégias para atrair e fixar sua própria força de trabalho,
entre elas a ampliação dos salários e sua híbrida e forma
subsidiária, a servidão por dívida.
De acordo com o historiador, o equilíbrio foi estabelecido
por meio da combinação e divisão das classes trabalhadoras em
múltiplas categorias vinculadas aos proprietários das fazendas
através de diferentes laços de dependência e reciprocidade,
garantidos pela coerção estatal e privadas. Essa complexa rede
de relações sociais agrárias constitui a base rural do que seria
conhecido como a "paz porfiriana".
A realidade atual dos/as chamados/as jornaleros/as
agrícolas no México e dos trabalhadores resgatados da
escravidão contemporânea que demonstramos antes, se
assemelha ao sistema de peonagem descrito por Gilly, como
pode ser visto na reportagem abaixo:
pero incluía también una parte salarial. Entre los trabajadores temporales
figuraba otra categoría, la de los llamados indios vagos, que era fuerza de
trabajo migratoria que se trasladaba buscando trabajo temporal en
diferentes haciendas, en minas o en la ciudad, a cambio de una
remuneración en salario. c] Los aparceros, que vivían en la hacienda y
recibían de ésta en aparcería tierras de cuyo producto una parte iba en pago
a la hacienda y la otra constituía el ingreso propio del aparcero.
Generalmente el pago en especie se completaba con pago en trabajo. d] Los
arrendatarios, que pagaban en especie o en dinero por el arriendo de una
extensión variable de tierras y a veces hasta de un rancho entero, y podían
a su vez —como también los aparceros— contratar trabajadores” (Gilly,
2013, p.26-29).
156 Verifique como Gilly (2013, p. 66) demonstra em seu texto que esta
100
A maioria das centenas de milhares de jornaleros do
México, e alguns de outros países latino-americanos, que
emigram para o norte a cada ano em busca de trabalho,
acabam sendo contratados para trabalhar, em condições
subumanas, nos prósperos agronegócios do norte do
México, enquanto o resto sofre a provação do rio ou do
deserto ao saltar a linha de fronteira. Lojas abusivas:
Ronquillo destaca o detalhe da escravidão: "Muitas vezes,
a recompensa para as prostitutas é a concessão das lojas
do campo, que ainda funcionam com o esquema de las
tiendas de raya 157 das antigas fazendas". Ou seja, vendem
a preços abusivos que serão descontados do pagamento
final, se houver (Cano, 2007). 158
157 A extinção das tiendas de raya foi uma das exigências presente na
Revolução Mexicana, desde os 52 pontos do Partido Liberal Mexicano, tal
como parte do Programa Social de Pancho Villa. Sobre isso ver Rampinelli,
2011 e Gilly, 2013. Aqui no Brasil é conhecido como sistema de barracão.
158 Tradução livre do espanhol realizada pela autora.
159 Brasil, México, Argentina, Chile, Uruguai e Colômbia “esses seis países
101
No decurso da “modernização capitalista” mexicana
destaca-se que o meio de transporte (ferrovias 160) e de
comunicação (correios e telégrafos) foram fundamentais para
este processo, que viabilizou o escoamento das mercadorias
mexicanas ao norte, para o Pacífico e para o Golfo, para
abastecer os mercados da Europa e da Ásia. As ferrovias
conformaram uma grande estratégia para o desenvolvimento
econômico, mas também foram fundamentais para o controle
coercitivo das elites oligarcas sobre as classes subalternas que
se rebelassem. Apesar de que “os trilhos que escoavam seus
produtos trariam de volta os camponeses armados de Zapata e
Villa. Por fim, a industrialização e a classe operária vão acentuar
a entrada do capitalismo e de suas respectivas contradições no
país” (Rampinelli, 2011, p. 92).
No Brasil, sem semelhante processo revolucionário ao da
emblemática Revolução Mexicana, 161 foi no período da República
Velha (1889 - 1930) que obtivemos a constituição não apenas do
movimento operário, mas do amadurecimento das classes
trabalhadoras. Atrelado ao processo de mercantilização da força
de trabalho − de libertação dos/as negros/as escravizados/as,
alforriados/as e incentivo à imigração europeia, enquanto uma
forma de embranquecer e trazer uma suposta “disciplina” da
força de trabalho − havia uma inicial industrialização, no final
do século XIX, que vai se consolidar no período entre 1930 e
102
1950, e amadurecer justamente no período pós segunda
revolução industrial. Período no qual os países hegemônicos
passaram pelo momento de uma industrialização de "máquinas
de fazer máquinas” e necessitavam intensificar a exportação não
só de mercadorias, mas de capitais. Movimento garantido por
meio de uma nova partilha do mundo, que tinha interesse vital
também em garantir produtos primários e agrícolas baratos
(diminuir o valor do capital constante e baratear o valor da força
de trabalho) para levar adiante o processo industrial e de avanço
imperialista.
Neste processo de industrialização latino-americana,
países “de tipo A”, conseguiram estabelecer e desenvolver, no
período entreguerras, uma burguesia industrial atuando como
classe dominante nacional. E, embora seus interesses se
chocassem com as propensões e dominação oligárquica, “(na
medida que sua classe foi gestada como um subproduto desse
mesmo sistema, ainda que o contradizendo), não podem
questioná-lo radicalmente, pois seguem necessitando daquele
sistema de dominação, inclusive como uma questão de
sobrevivência” (Bambirra, 2019, p. 91-92). À vista disso,
estabelece-se a necessidade de enfrentar os maiores obstáculos
à industrialização com a demanda de uma maior flexibilidade do
Estado e acesso ao poder por estes setores, que engendraram
uma dominação burguesa-oligárquica, que garantiu os
privilégios básicos das oligarquias. Nesse sentido, “ainda que a
burguesia alcance a hegemonia econômico-social sobre todo o
processo de desenvolvimento que ocorre a partir de sua
‘revolução burguesa’, trata-se de uma hegemonia comprometida”
(Bambirra, 2019, p. 91-92, grifos da autora).
Portanto, o "sistema monopolista com características de
integração mundial já começa a se formar desde o fim do século
XIX”. No entanto, é apenas no segundo pós-guerra que ocorre de
forma completa a integração monopólica mundial, garantindo a
hegemonia imperialista por meio "da criação de organismos
internacionais para a integração política, seja através dos
tratados de integração militar, seja, por último, através da
expansão do capitalismo monopolista de Estado” (Bambirra,
2019, p. 41).
103
No México 162 e no Brasil 163, ao mesmo tempo em que se
processava a industrialização sob bases periféricas e
dependentes, além do acirramento da luta de classes, existiam
disputas de projetos distintos: um que se apresentava como
nacionalista, 164 das burguesias locais articuladas com
representantes das camadas populares e outro propulsionado
pela burguesia interna diretamente vinculada à burguesia
imperialista, que defendia a internacionalização da economia, no
como com Cárdenas, Vargas e Perón, parte das burguesias locais tentaram
se consolidar e se desvincular do capital internacional, imaginando a
possibilidade de um capitalismo nacional capaz de defender-se dos
movimentos do capital em geral e foram derrotadas. No passado e no
presente, algumas decisões em países da América Latina são tomadas para
atender aos interesses do capital internacional, primordialmente dos EUA.
A importância das relações externas em assuntos internos de países latino-
americanos fica evidente quando lembramos das políticas adotadas pelos
EUA a partir dos anos 1930, como: Política da Boa Vizinhança, Aliança para
o progresso, Comitê de Santa Fé, entre outras. E hoje as transnacionais e
os organismos multilaterais substituem tais políticas: OEA, BID, FMI,
NAFTA, Mercosul, a tentativa de adotar a ALCA, o Banco Mundial.
104
novo ciclo de expansão capitalista. Apesar das singularidades de
cada país, ressaltamos as similitudes desse processo nos
governos de Vargas e Cárdenas, no sentido que objetivavam
“atrair as classes trabalhadoras para o âmbito estatal,
politizando a questão social, ainda que para tanto se utilizasse
largamente da repressão e da prática de divisão no interior do
movimento operário (Antunes, 2011, p. 23-26, grifos do autor).
Entre os anos de 1930 e 40, Getúlio Vargas combinou o
favor, a manipulação e a repressão para concretizar o
desenvolvimento industrial segundo uma perspectiva também
nacionalista de “conciliação”, principalmente por meio da
Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, em que esta se
apresentou não como fruto das lutas das classes trabalhadoras,
mas como uma benevolência de Vargas, que redundaria na
gratidão e retribuição dos trabalhadores de forma ordeira e
produtiva. Um processo que desencadeou o crescimento dos
sindicatos oficiais que tornaram as organizações sindicais
espaços de favores e recursos junto à burocracia estatal,
tornando-os espaços dos “pelegos” e de ações assistenciais
(Fontes, 2010).
O estabelecimento da modernização burguesa ocorreu de
forma apartada, segmentada, lenta e em locais onde fosse
inevitável, além disso, combinada com a permanência e
reinvenção de elementos conservadores e até mesmo
reacionários. As formas de estabelecimento da hegemonia eram
garantidas em diferentes formas de silenciamento do dissenso
ou pela repressão explícita ou por meio da cooptação. Na
América Latina, aqueles que eram a síntese do compromisso
paternalista burguês-oligárquico com a perspectiva moderni-
zante da burguesia industrial eram Vargas, Perón e Cárdenas,
que conseguiram mesclar traços conservadores e modernos para
“motivar as grandes massas, controlá-las e utilizá-las como
instrumento de realização da política de desenvolvimento
capitalista” (Bambirra, 2019, p. 95-96).
Nessa mesclagem destacam-se nas particularidades da
mercantilização da força de trabalho latino-americana, a
superexploração da força de trabalho como uma marca
estrutural e sistemática da dependência (Luce, 2018).
105
Portanto, na apreensão de como as relações de trabalho
de origem colonial foram cruciais para a eclosão do mercado
capitalista moderno, e, por sua vez, para a inserção no mercado
mundial e o esquema de produção-exportação-importação.
Essas relações de trabalho “pré-capitalistas”, formas
transitórias ou híbridas da exploração da força de trabalho,
permaneciam apenas nos locais onde o conjunto das relações
sociais modernizantes se amoldavam às antigas condições.
Para Florestan Fernandes, quando se iniciou a
industrialização, somente os setores econômicos e regiões com
“maior vitalidade” conseguiram adequar e “normalizar” as
relações de trabalho aos padrões capitalistas de mercantilização
da força de trabalho. Já em outros setores econômicos, que por
ausência de “vitalidade”, se transformaram “nos focos internos
de dependência e subdesenvolvimento. [E] sofrem a partir de
dentro o que foi descrito acima como sobre-espoliação e
sobreapropriação, através de agentes econômicos internos ou
externos”. (Fernandes, 2009, p. 67). A sobreapropriação garante
a partilha do excedente com as burguesias externas dominantes
e os superprivilégios das burguesias internas. Em análise sobre
este processo histórico-estrutural, Vânia Bambirra afirma como
as economias hegemônicas estabeleceram, no âmbito do
mercado mundial capitalista, a especialização das economias
dependentes como monoprodutoras, desencadeando a moderni-
zação com o desenvolvimento industrial, que, consequente-
mente, gerou os componentes para ultrapassar a especialização.
Apesar de que essa modernização tenha aberto possibilidades
“para a superação da divisão internacional do trabalho, a
indústria necessita do setor exportador como condição para a
realização de seu próprio processo” (Bambirra, 2019, p. 77).
Como destacamos, com base em Florestan Fernandes
(2006, 2009, 2011), a formação econômico-social capitalista
latino-americana é constitutiva de uma articulação que
aparenta uma “modernização do arcaico” com a “arcaização do
moderno”, que, por sua vez, estrutura o desenvolvimento da fase
industrial em ampla escala e garante o superprivilégio das
burguesias locais com a superconcentração de renda, por meio
da manutenção da degradação material e moral das classes
trabalhadoras.
106
Houve uma relação de interdependência entre o setor
exportador e o industrial, que se engendraram amparados pela
dinâmica do mercado mundial capitalista e explicam a aparência
de uma coexistência de “tempos históricos distintos”. “Tal
interdependência se reflete de uma forma muito nítida na
medida em que os capitais gerados no setor exportador são
transferidos ao setor industrial (direta ou indiretamente, como,
por exemplo, através do sistema bancário ou mediante subsídios
estatais) e possibilitam sua expansão” (Bambirra, 2019, p. 79).
Portanto, o compromisso oligárquico-burguês se constitui
mesmo com os antagonismos desses dois setores, com uma
burguesia industrial latino-americana comprometida com os
interesses oligárquicos. 165
Na trajetória do nosso país, mesmo com a modernização,
por meio do avanço técnico-científico implementado nos
circuitos produtivos rurais e urbanos, percebem-se formas de
exploração da força de trabalho que aparentam estar presas a
outro tempo histórico, notável no despotismo nas relações
sociais, na sobreapropriação e na sobre-expropriação do
trabalho. Porque engendrou-se uma formação econômico-social
capitalista que possui sua essência na crise do sistema colonial
e, ao mesmo tempo, captura sua dinâmica de organização,
apropriação e expropriação que são intrínsecas ao modo de
produção capitalista. Portanto, a economia dependente
brasileira continuamente se depara com o consumo, pelos
agentes hegemônicos externos, de suas riquezas naturais e
produzidas, situação que impede a centralização monopólica dos
excedentes econômicos pelas burguesias locais. No entanto, “a
depleção de riquezas se processa à custa dos setores
assalariados e destituídos da população, submetidos a
mecanismos permanentes de sobreapropriação e sobre-
expropriação capitalistas” (Fernandes, 2009, p. 51-52).
107
Referente a esta condição do desenvolvimento desigual
entre os países e a condição periférica e dependente da América
Latina, Ruy Mauro Marini ressalta que o mecanismo empregado
pelas burguesias latino-americanas para compensar a
transferência de valor como intercâmbio desigual nesta relação
com as burguesias externas, hegemônicas e imperialistas é a
superexploração da força de trabalho.
No segundo processo de industrialização e pouco antes
da integração monopólica ocorrida no pós-Segunda Guerra
Mundial, podemos observar que havia se instaurado um “padrão
de reprodução do capital” 166 que viabilizou um desenvolvimento
autônomo, nos termos de Osório (2012): um padrão industrial,
em sua etapa internalizada e autônoma, que se desenvolveu da
segunda metade dos anos 1930 até os anos 1940.
Identificamos, dessa forma, que o Brasil possui dois
períodos bem distintos, o primeiro demarcado entre os anos de
1922 e 1937, no qual houve diversas rebeliões e, segundo
Marini, a “revolução de 1930”. De acordo com o autor, os motivos
se devem ao processo de substituição de importações decorrente
da Primeira Guerra Mundial, que estabeleceram, na década de
1910, uma acentuação do processo de industrialização. Ainda
nesta primeira fase, a crise mundial, que eclode em 1929,
expande a modernização da indústria nacional porque o nível de
importações foi diminuído promovendo a necessidade da
industrialização. Nesse sentido, as alterações da estrutura
econômica constituem um setor burguês industrial para atender
as demandas de um mercado interno e de setores das classes
trabalhadoras que intimidam as tradicionais franjas das classes
108
dominantes para obter espaço na esfera pública e alcançar os
direitos reivindicados.
109
Vânia Bambirra (2019), ao analisar a realidade da divisão
internacional do trabalho no pós-Segunda Guerra Mundial,
constata que as economias hegemônicas controlam, monopolis-
ticamente, “os novos setores produtivos de ponta” e as
economias dependentes se detém à industrialização e à
exportação de produtos primários e de produtos com alta
utilização de força de trabalho. Portanto, essa situação se
estabeleceu como decorrência do:
110
dependente permanecem 168 e são aprofundados pela política
macroeconômica neoliberal. Ainda que ocorra a ampliação da
produtividade do trabalho e do mais-valor relativo, permanece e
se reproduz a superexploração da força de trabalho,
determinante constitutivo da dependência, que significa a
remuneração da força de trabalho abaixo do seu valor, por meio
de mecanismos usados pelo Estado e/ou pelo capital,
constituindo-se a base estrutural do ciclo do capital nas
economias dependentes. 169
Importante esclarecer que a superexploração da força de
trabalho, como regime de produção e acumulação de capital, não
é uma categoria que suprime a de mais-valor relativo; não nega
a dependência quando esse mais-valor emerge e se desenvolve
no sistema produtivo e industrial, impondo seu mecanismo de
extração de excedente. No entanto, não impõe sua hegemonia à
produção e acumulação de capital a partir da dinâmica de
acumulação e reprodução do capital. Isso é particularmente
verdadeiro nas fases de intensa industrialização das economias
dependentes, como ocorreu na América Latina nas três décadas
após a Segunda Guerra Mundial, especificamente, no México,
Brasil e Argentina, que aumentaram substancialmente seus
coeficientes de industrialização (Valencia, 2013).
Adrián Sotelo Valencia (2021) recupera a análise de Ruy
Mauro Marini para destacar as particularidades das economias
dependentes, tal como as condições do capital internacional, do
comércio mundial, da tecnologia e até do desenvolvimento
168 “Um desses momentos excepcionais foi vivido pelo proletariado brasileiro
nos anos imediatamente anteriores ao golpe militar de 1964. A grande
divisão que reinava nas filas das classes dominantes e os progressos dos
trabalhadores sobre a conscientização e organização de sua classe
desarticularam os mecanismos de pressão e provocaram – em consequência
da elevação do custo de vida – uma tendência de alta dos salários, que pôs
em xeque a base da acumulação de capital no Brasil, isto é, a
superexploração do trabalho. Isso se deu inclusive naqueles setores em que
a superexploração se exercia de forma mais brutal e desordenada – nas
massas rurais –, cujo processo intenso de organização sindical e luta
reivindicatória buscava tirar do papel a regulamentação de suas condições
de trabalho, recém arrancada das mãos da burguesia pelas forças populares
(o Estatuto do Trabalhador Rural foi aprovado pelo Congresso em 1962)”
(Marini, 2013, p. 174-175). Para mais esclarecimentos, veja também:
Osório, 2012 e Luce, 2018.
169 Ver Marini, 2012; Osório, 2016; Ferreira, 2018 e Luce, 2018.
111
científico, que é monopólio dos grandes centros imperialistas.
Portanto, na realidade das economias dependentes, o mais-valor
relativo se estabelece em ramos dinâmicos, todavia limitados,
com predomínio de grandes investimentos privados, nacionais e
internacionais, que reproduzem o ciclo de dependência
estrutural. As outras formas de mais-valor, o absoluto e a
intensidade da exploração da força de trabalho, juntamente com
o terceiro mecanismo identificado com a superexploração da
força de trabalho, tornam-se possibilidades para que
determinados grupos burgueses, que não operam com a
exploração do mais-valor relativo, pressionem os capitais que
nele atuam de modo a utilizar a superexploração e, assim, obter,
adicionalmente, lucros extraordinários. Nesse sentido, devemos
apreender que as economias dependentes latino-americanas se
constituíram
112
categoria particular, estrutural e sistemática dessas economias
é a superexploração da força de trabalho, que se apresenta como
a base do ciclo do capital nas economias dependentes, onde esta
categoria é hegemônica, se desenvolve e se reproduz, mesmo
com o aumento da produtividade do trabalho e do mais-valor
relativo, a ponto de dominá-las e subsumi-las. À vista disso, a
própria dinâmica da produção de lucros extraordinários leva a
esses resultados, de acordo com seus processos de acumulação
de capital na dinâmica da divisão internacional do trabalho
(Valencia, 2013). 170
As forças burguesas locais, no ciclo do capital nas
economias dependentes, para garantir a máxima exploração da
força de trabalho, viabilizam meios para aumentar as horas de
trabalho, a intensidade e a produtividade do trabalho, mas
também expropriam parte do fundo de consumo dos
trabalhadores, a fim de torná-lo uma fonte extra de capital que
é adicionada ao fundo de acumulação.
Portanto, nas economias dependentes, como a brasileira,
“se impôs uma realidade marcada por leis tendenciais
específicas − como são a transferência de valor como intercâmbio
desigual, a cisão nas fases do ciclo do capital e a superexploração
da força de trabalho, que se cristalizaram enquanto caracteres-
ticas sistemáticas e estruturais [...].” (Luce, 2018, p. 162, grifos
do autor). É sob este ângulo de análise, baseado em Ruy Mauro
Marini, que Mathias Luce (2018, p. 178) elucida como a
superexploração da força de trabalho pode ocorrer por meio “(i)
[d]o pagamento da força de trabalho abaixo do seu valor; (ii) [d]o
prolongamento da jornada de trabalho além dos limites normais;
e (iii) [d]o aumento da intensidade além dos limites normais”.
O primeiro atinge de forma mais direta o fundo de
consumo das classes trabalhadoras, ou seja, compromete parte
do que seria o equivalente ao valor histórico e moral do/a
trabalhador/a. Já os outros dois meios prejudicam o fundo de
vida, com sequelas para a saúde física e mental das classes
trabalhadoras. Luce (2018) assevera que existe ainda um quarto
113
meio de expropriação, que é consequente do primeiro, porque se
realiza no “hiato entre o elemento histórico-moral do valor da
força de trabalho e a remuneração praticada” (Luce, 2018, p.
178). Portanto, através da superexploração da força de trabalho,
as burguesias expropriam o fundo de consumo e o fundo de vida
dos/as trabalhadoras para seu fundo de acumulação (Luce,
2018).
A lei do valor 171 se determina para a remuneração da
força de trabalho abaixo do seu valor, tanto por determinantes
histórico-particulares da periferia capitalista como também será
circunscrita pelo aumento do grau de exploração de mais-valor
relativo. “A categoria da superexploração, definitivamente, não
sugere a anulação da lei do valor. Ela descreve e explica
elementos específicos da lei do valor, contribuindo para
aprofundar a teoria de Marx, a partir da historicidade, da
totalidade e da negatividade da lei do valor” (Luce, 2018, p. 154).
De acordo com Marini (2013, p. 173-174), nos países que
têm como cerne a superexploração da força de trabalho, torna-
se inviável o “desenvolvimento autônomo e de relações de
trabalho ‘justas’, imprimindo à luta de classes um cunho
necessariamente socialista”. Com base na análise marxiana, o
autor, reforça a necessidade de diferenciar o aumento do grau
de exploração dos processos de superexploração da força de
trabalho. Porque o aumento do tempo de trabalho excedente
sempre significa maior exploração da força de trabalho. Assim é
preciso esclarecer que os/as trabalhadores/as dos países
centrais estão subordinados/as a uma intensificação constante
de sua exploração. Porém, a elevação do grau de exploração pode
corresponder a uma redução real do tempo do trabalho
necessário, ou seja, tanto pode ser alcançado sem que o salário
do/a trabalhador/a reduza abaixo do seu valor, quanto pode
corresponder à extensão do trabalho excedente às custas do
114
tempo de trabalho necessário para a reprodução do valor da sua
força de trabalho. Sendo assim, neste último caso, a força de
trabalho será remunerada a um preço inferior ao seu valor real,
e o/a trabalhador/a não estará sujeito/a somente a um grau
maior de exploração, mas será também objeto de uma
superexploração.
115
Portanto, a superexploração da força de trabalho deve
ser entendida como uma expropriação que ocorre sob
distintas formas, como as mencionadas acima, mas
destacamos que quando a superexploração ocorre mediante
o prolongamento da jornada de trabalho, assim como por
meio do aumento da intensidade além dos limites normais,
podemos identificar as suas formas mais brutais como nas
jornadas exaustivas da escravidão contemporânea. Situação
em que os/as trabalhadores/as perdem seu fundo de consumo
e o seu fundo de vida, vistas também nas condições degradantes
a que são submetidos/as. Como apresentamos, no primeiro
capítulo, nos casos mais explícitos de superexploração na
escravidão contemporânea.
Estes procedimentos constituem a prática constante por
parte do capital e do Estado para remunerar a força de trabalho
abaixo do seu valor e assumir a existência de todo um sistema
institucional, social e legal que regula salários insuficientes para
garantir a reprodução das classes trabalhadoras em condições
normais (Valencia, 2013). No capitalismo dependente, a
superexploração da força de trabalho é uma exploração
redobrada como forma de compensar as transferências de valor
como intercâmbio desigual, no âmbito do mercado mundial
(Ferreira, 2018).
Valencia (2021, p. 87) reitera que Marini não ignorou
elementos superestruturais, que são mediações da superexplo-
ração da força de trabalho, ao analisar esta categoria, porque
mesmo ao colocá-la num plano mais elevado de abstração, ao
isolá-la, sempre considerou suas formas concretas nas
formações econômico-sociais dependentes, significando a
apreensão de “como ele se entrelaça com o Estado e com a
dinâmica da luta de classes que o modula, seja no sentido de
elevá-lo ou, bem, de revertê-lo em favor dos interesses da classe
trabalhadora”. 172
Ao apresentarmos a categoria superexploração da força
de trabalho 173 não temos o propósito de colocá-la na condição
116
de sinônimo de degradação das condições de trabalho, mas de
apreendê-la como uma exploração que atinge o fundo de
consumo e/ou o fundo de vida do/a trabalhador/a 174 e como
uma tendência estrutural e sistemática, enquanto conteúdo
categorial particular do capitalismo dependente. “Entende-se,
assim, que a superexploração – ao contrário de expressar uma
persistência de formas pré-capitalistas de existência do capital,
consiste em uma categoria específica do modo de produção
capitalista” (Luce, 2018, p. 139). Nesse sentido, busca-se aclarar
que a escravidão contemporânea não é resultado de resquícios
“arcaicos” ou “pré-capitalistas”, mas deve ser apreendida como
resultado da conformação do nosso processo de mercantilização
da força de trabalho no capitalismo dependente.
Sob este ângulo de análise, é impossível a apreensão da
categoria de superexploração da força de trabalho “sem
compreender que ela está absolutamente envolvida na luta entre
capital e trabalho, não apenas em relação aos salários, mas
também às condições gerais de existência” (Valencia, 2021, p.
93). 175
Cabe destacar que no capitalismo dos países
hegemônicos se identificam formas concretas de superexplo-
ração da força de trabalho, principalmente em momentos de
crise, como o que vivenciamos. Sendo assim, a análise deste
período histórico do capitalismo é crucial, como também é
importante recorrer ao pensamento social latino-americano para
a apreensão da nossa particularidade periférica e dependente e
da atual configuração da luta de classes que reverbera em nossa
cultura política. Nesse caminho de análise, de resgate analítico
das particularidades latino-americanas da dependência, torna-
se fundamental elencar especificidades da nossa formação
econômico-social para a apreensão da escravidão contem-
porânea no Brasil.
117
2.2. Capitalismo dependente brasileiro: precariedade e
superexploração da força de trabalho
118
trabalho de origem colonial tornaram-se um entrave à expansão
interna do mercado, exigindo a mercantilização da força de
trabalho.
No entanto, formas transitórias de exploração da força de
trabalho se estabeleceram mesclando-se sob a inovação em
formas híbridas do condicionamento de homens e mulheres,
sejam negros e negras ou imigrantes brancos/as. A exemplo de
que
119
Até porque a mercantilização da força de trabalho
brasileira engendrou-se em meio ao trabalho escravizado de
negras e negros, que foram fundamentais para o processo de
consolidação da economia capitalista mundial. Porque até a
metade dos anos 1850, a força de trabalho escravizada estava
na agricultura de exportação, nos portos, nos transportes
terrestres, no comércio e nas fábricas. Como “nas mais diversas
atividades, dos serviços domésticos aos ofícios mais
especializados, passando pelo trabalho pesado do transporte de
mercadorias e pelo variado comércio de rua” (Mattos, 2009, p.
17).
Esse período foi um marco importante de transição da
escravidão e do convívio entre livres e escravizados/as até a
generalização do trabalho livre. Neste caso, com base em Clóvis
Moura (2020a, p. 67-69), chamamos atenção para os/as
escravizados/as − ainda no “escravismo pleno”
(aproximadamente 1500 até 1850) no processo produtivo nas
cidades – estavam em ocupações que foram, posteriormente,
“reinventadas” no período de transição de convivência entre
livres, escravizados/as e alforriados/as. Como segue a seguir,
havia os:
120
liteiras * escravos caçadores * escravas mucamas e demais
escravos de serviço doméstico * escravas amas de leite *
escravas cozinheiras * escravos cocheiros etc. D) Escravos
de ganho nos centros urbanos: * escravos barbeiros *
escravos médicos * escravos(as) vendedores(as)
ambulantes * escravos carregadores de pianos, pipas e
outros objetos * escravos músicos componentes de
orquestras dos senhores * escravas prostitutas de ganho.
E) Outros tipos de escravos: * escravos dos cantos (de
ganho) * escravos soldados * escravos do Estado * escravos
de conventos e igrejas * escravos reprodutores * escravos
de aluguel (Moura, 2020a, p. 67-69, grifos do autor).
121
procuravam “mobilidade social vertical e/ou horizontal. Essa
mobilidade, porém, detém-se nas limitações da estrutura
escravocrata, somente a ultrapassando ou por uma
problemática alforria ou através das revoltas” (Moura, 1983, p.
130).
Frente à legislação inglesa de proibição do tráfico de
negros e negras africanas escravizadas, 177 que “manteve o
enquadramento como crime de pirataria para importação de
escravos e estabeleceu novas medidas para a repressão ao
tráfico, que já vinha proibido” (Coutinho, 2015, p. 28) desde a
Lei de 7 de novembro de 1831, que coibia a importação de
escravizados/as. Aprofundou-se, dessa maneira, em 1850, a
promulgação de inúmeras leis que indicavam a transição da
escravidão ao trabalho livre, produto da pressão externa da
modernização, como também resultado da luta e resistência dos
negros e negras que fugiam daquela odiosa situação.
Podemos constatar este período de convívio e transição
ao trabalho livre, no Decreto nº 1.566 de 24 de fevereiro de 1855,
em seu artigo 6º, parágrafo 6º, que direcionava o diretor da
Associação Colonial Agrícola do Rio Novo, no Espírito Santo, no
estabelecimento da cultura de café, a importar famílias
estrangeiras para habitar os seus terrenos. A esse diretor
competia: “§ 6º Engajar ou contractar os precisos trabalhadores
nacionais ou estrangeiros, como for possível, para coadjuvarem
nos serviços do estabelecimento das forças escravas da
Associação, quanto ao prompto preparo dos prazos, de que trata
o § 2º do art. 3º”. 178
Os elementos históricos e estruturais da escravização no
Brasil conduziram, da fase do “escravismo tardio” ao trabalho
livre, como nos termos de Moura (2020a): uma “barragem social
177 “Em 1850, com a lei de Eusébio de Queirós, o Brasil sanciona o fato
consumado da suspensão. No ano anterior haviam entrado 54.000 escravos
em nosso país. Em 1850, esse número caiu a menos da metade. Em 1851,
para 3.000. Em 1852, para 700. O tráfico estava liquidado. A suspensão
efetiva dos fornecimentos externos não tem, quanto ao mercado de mão de
obra, efeitos extraordinários: o estoque interno e seu crescimento vegetativo
são suficientes para atender à demanda” (Werneck Sodré, 2011, p. 116).
178 Disponível no CECULT, na Base de Dados "Legislação: Trabalhadores e
122
e étnica permanente” contra os/as ex-escravizados/as, e
determina ainda hoje uma enorme desigualdade étnico-racial
existente no Brasil.
123
que encontramos ainda hoje dentro das tipificações da
escravidão contemporânea, como a servidão por dívida, assim
como de trabalhadoras domésticas resgatadas no ano de 2021.
Podemos analisar também as Leis do “Ventre Livre”
(1871) e dos “Sexagenários” (1884) que tiveram um “sentido
praticamente inócuo e até protelatório, anunciavam a radical
condenação que pesava sobre o regime de trabalho escravo”
(Werneck Sodré, 2011, p. 123-124). O sentido ineficaz dessas
legislações, que encaminharam a libertação gradual de negras e
negros, é notória quando pensamos a expectativa de vida dessas
pessoas escravizadas, principalmente aquelas que atuavam no
duro trabalho braçal. Nessa perspectiva, “todos os escravos
libertados em virtude da lei permaneceriam durante 5 anos sob
inspeção governamental. E deveriam manter contratos de
locação de serviço para obtenção de renda, pois se vivessem na
vadiagem eram constrangidos a trabalhar em estabelecimentos
públicos” (Coutinho, 2015, p. 29).
Sob este ângulo de análise, a Lei dos “Sexagenários”
revela muito mais a desresponsabilização dos senhores aos/às
escravizados/as com “a concessão da alforria, que significava
um tipo especial de “liberdade”: a de morrer de fome, em função
da invalidez precocemente adquirida [...]” (Gonzalez, 2020, p.
61).
Em todas as legislações, que vinham para “libertar” as
pessoas escravizadas, garantiam-se a “disciplina” da força de
trabalho para banir a “vadiagem”, “com a obrigatoriedade do
domicílio permanente no município em que fora alforriado,
permanecendo em companhia dos ex-senhores, o combate à
vadiagem por meio do dever de trabalhar por mais 3 anos a título
de indenização pela alforria, prestando serviços aos ex-
senhores” (Coutinho, 2015, p. 31). A prisão era o principal
instrumento de criminalização dos/as negros/as libertos/as e
expressava o Estado autoritário, que condenava o/a alforriado/a
sem ocupação ou que não cumpria os contratos de trabalho
(Coutinho, 2015).
Ademais, em nossa desigualdade regional, todas essas
legislações de libertação de negros e negras da escravidão
colonial, − nesse processo histórico da mercantilização da força
de trabalho, passando pela CLT, pelo Estatuto do Trabalhador
124
Rural (1963), chegando inclusive nas conquistas da
Constituição Federal de 1988 − demonstram ao longo dessa
trajetória a permanência das condições de trabalho próximas a
uma semiescravidão, servidão, peonagem, condições transitó-
rias heterogêneas de “escravos (indígenas, negros, mestiços),
meeiros, colonos, parceiros, assalariados, diaristas e outros [...]”
(Ianni, 2005a, p. 127).
Sendo assim, o/a negro/a se deparou, majoritariamente,
com condições medíocres de trabalho livre em regiões com
economia relativamente estagnadas ou perdeu-se “nas grandes
cidades em crescimento tumultuoso [...] nos escombros de sua
própria ruína, pois onde teve de competir com o trabalhador
branco, especialmente o imigrante, viu-se refugado e repelido
para os porões, os cortiços e a anomia social crônica”
(Fernandes, 2010, p. 62). Dessa forma, Moura destaca que
125
articulada à histórica política eugenista do Estado brasileiro179
e à inexistência de uma política de reparação aos/às negros/as
− racializou ocupações e profissões. É de fundamental
importância destacar que todos e todas (livres, alforriados/as e
imigrantes) “comungavam, porém, de uma mesma perspectiva:
eram todos destinatários da ‘disciplina para o trabalho’, da
docilização para a submissão ao poder e da normalização para
convívio social, presente esteve o Direito Penal, a serviço, e, mais
tarde, em atuação coparticipativa com o Direito do Trabalho”
(Coutinho, 2015, p. 26).
No entanto, ao cabo de uma longa jornada de lutas
sociais, as táticas dominantes das classes proprietárias foi a
típica cisão das classes trabalhadoras ao atender às demandas
daqueles setores que eram essenciais ao ciclo do capital e/ou
inevitáveis de serem modernizados. “Eis a marca do mercado de
trabalho no Brasil: ordem e disciplina do trabalhador (liberto
com resquícios da escravidão e imigrantes estrangeiros livres
com traços da servidão), com transição lenta e gradual defendida
pelas elites agrárias” (Coutinho, 2015, p. 27). Ademais, houve a
promoção do rebaixamento do valor da força de trabalho dos/as
126
negros/as, tanto por serem lançados na fileira do desemprego
como também as classes dominantes se empenharam por uma
“reforma ‘eugênica’ dos salários: maiores para os brancos,
menores para os negros” (Moura, 1994, p. 7). Promovida
mediante a “existência de uma grande franja marginal capaz de
forçar os baixos salários dos trabalhadores engajados no
processo de trabalho. Essa franja foi ocupada pelos negros,
os/as submetendo à posição de “reserva de segunda categoria
do exército industrial” (Moura, 2020a, p. 148).
Interessa-nos ressaltar que
127
negro foi direcionado “para a franja dos piores trabalhos e de
mais baixa remuneração, ele se sentiu, subjetivamente, como se
ainda estivesse condenado à escravidão” (Fernandes, 1989, p.
20-21). Florestan Fernandes (1989, p. 36) destaca que, sob o
capitalismo monopolista, as oportunidades ocupacionais para
os homens negros colocam-se, massivamente, no trabalho
braçal, “dos ‘peões’ e da construção civil.”
Lélia Gonzalez (2020, p. 123) também problematizou
essa “divisão racial do trabalho” ao constatar que
128
rancoroso da senhora. Após o trabalho pesado na casa-
grande, cabia-lhes também o cuidado dos próprios filhos,
além da assistência aos companheiros chegados das
plantações, engenhos etc. quase mortos de fome e de
cansaço (Gonzalez, 2020, p. 62).
129
porque aqui não houve feudalismo, 180 mas de uma formação
econômico-social colonial escravocrata com uma ordem
oligárquica cafeeira, onde segmentos dessa oligarquia se
modernizam, se urbanizam e se aburguesam. Somando-se a
uma série de segmentos, formando um sujeito na direção de
valores na acumulação de capitais e de valores burgueses no
campo econômico, mas no campo político, social e cultural
permanecem prisioneiros do “mandonismo oligárquico”,
mantendo-se em “padrões de uma sociedade estamental e de
castas”.
Como pode se resgatar nas relações de trabalho que se
aproximavam daquelas da escravidão colonial, consolidando-se
numa “escravidão dependente capitalista”, em condições
transitórias ou híbridas, com imigrantes em fazendas, que eram
identificados como engajados. “Parece claro que a situação de
engajado respondia às necessidades do trabalho compulsório
nas fazendas: o isolamento do imigrante em face do poder quase
absoluto dos fazendeiros garantia a boa execução do contrato”
(Alencastro, 1988, p. 39).
Ao recorrermos à historiografia brasileira, podemos
identificar que o “sujeito da revolução burguesa” no Brasil era
um segmento da oligarquia cafeeira, escravocrata, que não se
separou dele. Ao contrário, dependia de recursos da própria
estrutura agrária. Uma aliança pelo alto com os oligarcas
excluindo a maioria, as classes trabalhadoras e subalternizadas.
Florestan Fernandes (2006, p. 240), em “A Revolução
Burguesa no Brasil”, destaca que “a oligarquia não perdeu a
base de poder que lograra antes, como e enquanto aristocracia
agrária; e encontrou condições ideais para enfrentar a transição,
modernizando-se, onde isso fosse indispensável, e irradiando-se
pelo desdobramento das oportunidades novas, onde isso fosse
possível [...].” Nesse sentido, apreende-se que a burguesia
brasileira tira
130
proveito dos tempos desiguais e da heterogeneidade da
sociedade brasileira, mobilizando as vantagens que
decorriam tanto do “atraso” quanto do “adiantamento” das
populações. [...] o grosso dessa burguesia vinha de e vivia
em um estreito mundo provinciano, em sua essência rural
− qualquer que fosse sua localização e o tipo de atividade
econômica −, e, quer vivesse na cidade ou no campo,
sofrera larga socialização e forte atração pela oligarquia
(como e enquanto tal, ou seja, antes de fundir-se e perder-
se principalmente no setor comercial e financeiro da
burguesia). [...] o mandonismo oligárquico reproduzia-se
fora da oligarquia. O burguês que o repelia, por causa de
interesses feridos, não deixava de pô-lo em prática em
suas relações sociais, já que aquilo fazia parte de sua
segunda natureza humana” (Fernandes, 2006, p. 240-
241).
131
contra as classes trabalhadoras fazem com que a ordem
burguesa no Brasil, se legitime de forma restrita a um cerco “pelo
alto”, ao que Florestan Fernandes denomina como um “circuito
fechado”.
Essa democracia restrita foi estabelecida por fundações
profundas que − com vigas da crueldade aos escravizados/as e
extermínio dos/as nativos/as − estabeleceram “muros” para
restringir a participação e qualquer usufruto, da riqueza
socialmente produzida, pelas classes trabalhadoras e
subalternizadas. Portanto,
132
Lélia Gonzalez, em seus estudos, auxilia-nos a analisar
que “o gênero e a etnicidade são manipulados de modo que, no
caso brasileiro, os mais baixos níveis de participação na força de
trabalho, ‘coincidentemente’, pertencem exatamente às
mulheres e à população negra” (Gonzalez, 2020, p. 27). Como
abordado no primeiro capítulo, no caso da escravidão
contemporânea no Brasil, 80% das vítimas resgatadas, entre
2016 e 2018, são pessoas negras e 90% são homens. Apesar
disso, temos pesquisas que vão questionar a invisibilidade do
trabalho reprodutivo, 183 tanto pelo seu não reconhecimento
enquanto trabalho e, por sua vez, sua desvalorização e sua
naturalização como função das mulheres, quanto pela
banalização do trabalho doméstico ser realizado, por mulheres
negras, em condições degradantes e, geralmente, com jornadas
exaustivas.
Identificamos que devemos enfrentar dois problemas: 1º)
a invisibilidade do trabalho reprodutivo das mulheres nas
empreitadas no âmbito rural 184 como garantidora da
alimentação, dentre outros aspectos vitais para o labor diário
dos trabalhadores resgatados; e 2º) a dificuldade de fiscalização
das condições laborais das trabalhadoras domésticas na
residência da “família tradicional brasileira”.
como seres sociais corporificados que precisam não apenas comer e dormir,
mas também criar suas crianças, cuidar de suas famílias e manter suas
comunidades, tudo isso enquanto perseguem esperanças no futuro”
(Arruzza; Bhattacharya; Fraser, 2019, p. 106, grifos das autoras).
184 Ver a pesquisa de Shirley Andrade (2020) sobre as mulheres que catam
133
elementos fundamentais para a manutenção da ordem
capitalista, especialmente, em países de capitalismo
dependente, como é o caso do Brasil. Porque terceirizar o
trabalho doméstico para as mulheres negras é muito mais
barato do que direcionar parte do mais-valor socialmente
produzido, acumulado no fundo público, e investir em políticas
públicas com a oferta de serviços sociais públicos vitais para a
reprodução social.
Salientamos que o pensamento social hegemônico se
estabeleceu coerente com os anseios de conservação dos
interesses e superprivilégios das burguesias brasileiras,
significando a valorização da racialização da humanidade, onde
a cultura europeia e branca são predominantes e as
“civilizadas”. Traduzindo a desimportância da escravização para
a consolidação do capitalismo e, por sua vez, ocultando os
determinantes históricos que asseguram a permanência dessas
mulheres que antes eram escravizadas e, hoje, estão em lugares
de subalternidade, garantindo a reprodução social de várias
famílias, com altos índices de precarização do trabalho ou
mesmo em condições de escravidão contemporânea.
Nesse sentido, é crucial destacarmos como, na história
do processo da formação econômico-social brasileira, as
mulheres negras foram fundamentais no estabelecimento da
força de trabalho nacional. Até porque, para as mulheres negras,
o trabalho sempre foi uma realidade, seja no período da
escravidão colonial seja no capitalismo dependente, onde, neste
último, a força de trabalho é expropriada duplamente.
Portanto, outro elemento de diferenciação étnico-racial
entre as mulheres é que os corpos e as vidas das mulheres
negras sempre estiveram no espaço público, inclusive na
construção política das classes trabalhadoras brasileiras.
Apesar de, historicamente, terem sido silenciadas de suas falas
e dos seus corpos, em uma sociedade sob um Estado autocrático
(Fernandes, 2019), com classes dominantes que não toleram o
dissenso (Oliveira, 1999).
Por estes elementos, como discutido anteriormente, é
importante ressaltar, em nossa argumentação, que o século XIX
foi emblemático da transição da escravidão e do convívio entre
livres e escravizados/as até a generalização do trabalho livre, e
134
quando se chega a este patamar torna-se notável a permanência
da heterogeneidade das condições de trabalho e acesso a
direitos. As formas transitórias ou híbridas de trabalho com
traços da subalternidade e violência escravocrata, somadas ao
incentivo à imigração europeia − sob o pressuposto da conquista
da “disciplina” da força de trabalho − e à política eugênica
brasileira, consolidaram a condição de semiescravidão aos/às
negros/as. Com uma política garantidora da predominância do
pagamento da força de trabalho negra sem correspondência com
suas necessidades de reprodução.
135
das classes trabalhadoras, Vargas implementou a primeira
legislação geral do trabalho direcionada apenas para os/as
trabalhadores/as urbano/as, deixando de fora os/as
trabalhadores/as do campo (Oliveira, 2003). Importante
ressaltar que esses direitos do trabalho foram resultantes das
lutas sociais e das forças políticas burguesas, que
modernizavam onde era inevitável.
“Vargas contava com o apoio das massas trabalhadoras
para lhe dar sustentação em sua relação com as distintas
frações das classes dominantes agrárias, além da nascente e
ainda incipiente burguesia industrial” (Antunes, 2011, p. 82). No
caminho da “conciliação”, houve a cooptação, a repressão e
eliminação das classes trabalhadoras em formação e
organizadas, principalmente, das camadas urbanas durante a
política trabalhista no período do Estado Novo (Ianni,1994). 186
No período pós-Segunda Guerra Mundial, início da
bipolarização da “guerra fria”, nosso país, sob o comando do
governo Dutra, passava por uma repressão policial intensa aos
sindicatos mais combativos. A polícia política, segundo o
historiador Marcelo Badaró Mattos (2009), estabelecida no
período da ditadura do Estado Novo, manteve a fiscalização e
vigilância sobre os sindicalistas e suas organizações.
O capitalismo brasileiro de base oligárquica e dependente
é constituído inicialmente como um sistema desindustrializado
de exportação de matérias-primas e importação de produtos
industrializados dos países centrais. E mesmo quando se
desenvolve o capitalismo industrial no Brasil, engendra-se de
forma dependente e subordinada à fase imperialista do capital.
O desenvolvimento e a consolidação do capitalismo
monopolista no Brasil, que se processou segundo uma
ressignificação de elementos “pré-capitalistas” articulados a
“tipicamente” capitalistas, fizeram a burguesia se consolidar na
136
passagem da condição “colonial” para uma economia capitalista
“periférica-dependente”, de forma que as soluções “pelo alto” e o
“liberalismo excludente” marcaram uma democracia restrita e a
autocracia burguesa no país.
A historiadora Virgínia Fontes (2010) aponta três
períodos cruciais para a história do Brasil, de “revoluções
passivas” e “fugas para frente” nas lutas de classe e democracia,
com fortes reivindicações igualitárias e democratizantes, foram
os períodos de 1920-35, 1955-64 e 1975-89. Somente levando
tais lutas em consideração é possível compreender que a
violência da reação proprietária – como a ditadura de 1937 e o
golpe de estado empresarial-militar de 1964 – seria impotente
para conter a incorporação popular nos quadros estreitos dos
movimentos precedentes, a menos que ocorresse um recuo da
própria acumulação capitalista. Dessa forma, os setores
dominantes precisaram “pacificar” tais setores populares, o que
se realizou por meio da formulação legal de direitos, ainda que
amputados da capacidade socialmente transformadora que
originalmente continham.
É, então, no período de 1955-64, que as reivindicações
das classes trabalhadoras e das lutas populares rurais e
urbanas, ainda que expressas em termos democráticos,
chegaram a se configurar em uma situação pré-revolucionária,
não porque se organizassem para tanto, mas porque se
defrontavam com a truculência organizativa dos setores
dominantes e colocavam em risco o restritíssimo pacto
proprietário em vigor (Fernandes, 1975 apud Fontes, 2010).
Foi neste período que trabalhadores/as do campo
avançaram em sua luta, esta direcionada pela reivindicação da
reforma agrária e, consequentemente, pelo combate aos
latifúndios e às concentrações da propriedade agrária, e pela
legislação do trabalho no campo (Ianni, 2005a; Antunes, 2011).
Processo que fez desaparecer a imagem do/a trabalhador/a do
campo como camponês/a passando a ser identificado/a com a
nova categoria política de proletariado rural (Ianni, 2005a).
Porém, a implementação da autocracia burguesa
obstaculizou todo esse processo da organização sindical das
classes trabalhadoras no campo e na cidade. Foram criadas
iniciativas para atrair o capital internacional como a legislação
137
de controle de greve e o controle dos índices dos reajustes
salariais, conhecido como política do arrocho salarial. Também
foi criado o Fundo de Garantia por tempo de serviço (FGTS),
concebido para substituir as normas existentes de estabilidade
no emprego e para reduzir os custos imediatos da demissão de
trabalhadores.
138
totalitária, economicamente estatista e politicamente anti
ou unipartidária, quer dizer, em seu conjunto antiliberal,
não deixa de ser expressão extrema daqueles elementos
essenciais que conformam a ordem liberal capitalista. A
oposição entre liberalismo e fascismo apesar de ser real e
de expressar estágios distintos do capitalismo, portanto,
não é absoluta. Tampouco, não é absurdo pensar num
regime misto entre fascismo e liberalismo político no qual
predomine um ou outro aspecto (Santos, 2018, p. 12).
139
contrarrevolução capitalista e no “cerco ao comunismo”,
ambos de âmbito mundial, [..] acarretava, como
contrapartida, uma clara intensificação das tendências à
fascistização do Estado, apoiadas em assessoria policial-
militar e política, em recursos materiais ou humanos e em
estratégias vindas de fora (como parte da “modernização
global”) (Fernandes, 2015, p. 47).
140
camponesas, garantindo a especulação fundiária. Condições
fascistizantes que o capitalismo dependente brasileiro
engendrou, estruturado pelo racismo e pelo patriarcado, sob o
avanço dos monopólios e efeitos da crise estrutural.
141
e historicamente, na contradição entre uma constituição
“democrática” e os atos institucionais). [...] Trata-se de uma
composição que visa a duas coisas: aprofundar e
aumentar a duração da contrarrevolução; e, na passagem
da guerra civil a quente para a guerra civil a frio, garantir
a viabilidade de uma “institucionalização”, pela qual a
contrarrevolução continuaria por outros meios
(Fernandes, 2019, p. 88-89, grifos do autor).
142
para impedir que as massas populares conquistassem, de
fato, um espaço político próprio, “dentro da ordem”. [E]
Essa reação não foi imediata; ela teve larga duração, indo
do mandonismo, do paternalismo e do ritualismo eleitoral
à manipulação dos movimentos políticos populares, pelos
demagogos conservadores ou oportunistas e pelo
condicionamento estatal do sindicalismo (Fernandes,
2006, p. 244-245).
189 Conforme discutido acima, por meio de Ruy Mauro Marini (2011; 2013)
143
capitalistas centrais e hegemônicos. Ao mesmo tempo que “a
‘revolução contra a ordem existente’ envolve algo mais complexo:
[exige] uma ruptura com o passado e com o presente, bem como
a criação de um novo patamar evolutivo” (Fernandes, 2009, p.
126).
Dessa forma, a revolução burguesa, em solo latino-
americano, não constituiu uma transição para formas
crescentemente autônomas de capitalismo, nem maior ou
melhor distribuição de riqueza, tampouco um mercado de
trabalho dinâmico e expansivo comparado com as suas
estruturas e aos seus ritmos demográficos. Não eliminou, mas
ao contrário reforça constantemente suas características
essencialmente antinacionais, antissociais, racistas, patriarcais
e fascistizantes, que constituem o cerne da função predatória
dos “interesses privados” locais ou internacionais. Portanto,
somente a negação “ao mesmo tempo da dependência, do
subdesenvolvimento e do capitalismo, oferece uma alternativa
real ao padrão dependente de desenvolvimento capitalista”
(Fernandes, 2009, p. 90).
À vista desse processo sócio-histórico, é imprescindível
ressaltar que, mesmo alcançando a fase industrial em ampla
escala e a exportação de produtos industrializados, o sentido do
desenvolvimento, da modernidade e, por sua vez, do Estado
moderno, apresenta-se por meio da amálgama da “modernização
do arcaico” com a “arcaização do moderno”, garantindo o
superprivilegiamento de poder e prestígio das classes
dominantes. Em uma direção, na qual as
144
e com o Estado burguês) (Fernandes, 2019, p. 82, grifo
nosso).
145
trabalho (extrainstitucionais) para aumentar as horas de
trabalho, a intensidade e a produtividade do trabalho.
Garantindo a expropriação de parte do fundo de consumo
dos/as trabalhadores/as, a fim de torná-lo uma fonte adicional
de capital que é acrescentado ao fundo de acumulação.
Nesse sentido, a superexploração da força de trabalho é
“uma categoria necessária, embora não suficiente, para pensar
as formações econômico-sociais do capitalismo dependente, cuja
compreensão mais completa deve incorporar também as
relações de poder e opressão” (Ferreira, 2018, p. 228). Porque o
condicionamento das classes trabalhadoras sob o capitalismo
dependente é o de expropriação tanto dos meios de subsistência
como das condições de vida, sem direitos assegurados que os/as
colocam na condição de vender a sua força de trabalho sob as
piores condições, mediadas pelas opressões étnico-raciais e de
gênero.
Sob esta linha de apreensão, ao pensarmos a escravidão
contemporânea e decifrá-la, é necessária a análise sobre os
elementos históricos que fundaram o nosso estatuto
democrático, nosso estado nacional, onde o projeto de nação não
incorpora os/as subalternizados/as e racializados/as. Porque
nossas particularidades demonstram que as transformações e
modernizações burguesas ocorreram de forma “segura” e
coerentes com os interesses das burguesias locais e das
burguesias externas. Até porque essa desvinculação é intrínseca
ao processo do desenvolvimento do capitalismo dependente.
Ademais, para além das particularidades da dependência,
devemos apreender a maneira pela qual a modernização
burguesa, em âmbito mundial, se engendrou e se sustenta pelos
elementos histórico-estruturais do patriarcado e do racismo.
Portanto, não existem motivos para pensarmos uma
revolução burguesa que resolvesse a questão étnico-racial e o
patriarcado, porque tais questões não foram resolvidas e não o
serão sob o capitalismo, mesmo nos países hegemônicos.
Podemos dizer, atualmente, que as opressões de gênero,
sexualidade e étnico-raciais são “atenuadas” por bandeiras
liberais, hoje tipificadas como “agendas”, de uma suposta
146
igualdade alcançada pelo “empoderamento” 190 e/ou “empreen-
dedorismo”, com um sentido ressignificado da meritocracia.
Por isso, recuperamos, brevemente, elementos histórico-
estruturais para apreender as expropriações postas pelas
relações de dominação-opressões e exploração na perspectiva do
“nó ontológico” entre patriarcado-racismo-capitalismo, 191
analisando, por meio das linhas de continuidade e ruptura, os
elementos histórico-estruturais que engendraram a moder-
nidade e constituem o modo de produção capitalista em suas
particulares concreções nas diversas formações econômico-
sociais.
Entendendo todo o histórico da nossa formação
econômico-social e o condicionamento do capitalismo depen-
dente, fica claro como as condições de trabalho resultam desse
processo e são mediadas por componentes históricos que
fundam as relações sociais. E, sendo assim, serão coerentes com
a ausência de um projeto de desenvolvimento nacional que
garanta a participação das classes trabalhadoras e subalter-
nizadas, dentro dos marcos da democracia burguesa. O projeto
de nação das burguesias nativas dependentes foi estabelecido
sob as bases de uma forma particular de nacionalismo que, ao
mesmo tempo, afirma vangloriar sua nação, vende, desvaloriza
e massacra tudo que é nacional. Não à toa, temos a impressão
de um “patriotismo entreguista” aos interesses das burguesias
externas hegemônicas.
Reconhecendo o atual momento histórico do capitalismo,
e, dessa forma, além dos limites da periferia, tempo em que as
burguesias transitam “do autoritarismo presidencialista para o
fascismo, [...]” (Fernandes, 2009, p. 141). A fase atual do
capitalismo contemporâneo demonstra o caminho de uma
prolongada ofensiva às classes trabalhadoras com uma
orientação privatista e de desmonte de direitos por meio de uma
contrarrevolução preventiva e prolongada em âmbito mundial.
147
Com base nesse breve resgate de alguns elementos
históricos que traçam a heteronomia e o perfil autocrático,
racista e patriarcal das burguesias locais, assim como a
heterogeneidade das classes trabalhadoras brasileiras e a
degradação material e moral da exploração da força de trabalho
(Fernandes, 2009), é crucial para a nossa análise identificar
como a expansão, a expropriação e a busca pela capitalização de
todas as esferas da vida, com a incessante reestruturação
produtiva, concretizam-se mediadas pelas particularidades
sócio-históricas da dependência.
Ademais, destacamos a precariedade, o racismo
estrutural e o patriarcado compondo esses elementos
constitutivos da dinâmica, que se restabelecem permanente-
mente enquanto um “nó ontológico”, renovando-se mesmo com
o constante avanço das forças produtivas. Notável, hoje, no
controle algorítmico que, em um amplo solo histórico
consolidado de precariedade e mistificação da precarização,
facilita a burla do vínculo empregatício e o aprofundamento da
superexploração.
Portanto, diante de uma análise sobre as
particularidades da dependência e sobre alguns componentes
histórico-estruturais que alicerçam as especificidades
brasileiras, identificamos como a condução política brasileira
expressa a história da nossa formação econômico-social,
subordinada ao comando imperialista dos países hegemônicos,
com uma cultura política de supressão do dissenso pela
repressão, fascistizante, ou pelo encantamento, por meio de uma
falaciosa “conciliação de classes”. 192
2018.
148
pelo patriarcado e pelo racismo enquanto expropriações
fundantes e constitutivas do capitalismo.
O debate sobre a constituição da nossa formação
econômico-social e, por sua vez, das classes trabalhadoras
brasileiras, não é inédito, ao contrário, é um velho debate do
pensamento social brasileiro, mas atualíssimo e necessário, que
foi aqui recuperado no caminho dos clássicos e não clássicos.
Na tentativa de atualizá-lo, decifrando velhas polêmicas, como
as que perpassam a categoria da superexploração, como
desmistificando supostos caminhos para superar a
dependência, e, em nosso específico tema, erradicar a escravidão
contemporânea.
A análise da constituição das nossas classes burguesas
e sua relação com a estrutura fundiária muito nos elucida sobre
os baixíssimos salários agrícolas e a utilização intensiva de uma
força de trabalho abundante, que em sua extrema necessidade
acaba se submetendo a condições de escravização contem-
porânea. Porque, para os grupos econômicos agrários,
geralmente, 193 mas não somente, é mais vantajoso usar desta
forma a força de trabalho do que investir em avanço técnico-
científico em maquinários e instrumentos em grande escala. Ao
menos, que seja imposta pela dinâmica do mercado de acordo
com os níveis médios de produtividade de determinada
mercadoria ou em regiões que a modernização se torna
imprescindível devido à luta de classes e suas consequências.
149
150
Capítulo III.
A PERSISTÊNCIA DE FORMAS
CONTEMPORÂNEAS DE ESCRAVIZAÇÃO
NO BRASIL
https://bibliotecaprt21.wordpress.com/2013/11/06/poesia-escravidao-
em-tempos-modernos/ Acesso em 20 jan.2022.
195 A exemplo da pesquisa de Filgueiras, 2016.
151
capital, às particulares condições geopolíticas e, por sua vez, às
lutas de classe. No entanto, podemos perceber certas
regularidades na condução político-econômica dos/as
governantes brasileiros/as, ‒ que acompanham a legalidade de
como o modo de produção capitalista se irradia em nossa
formação econômico-social.
Um solo histórico estabeleceu-se para aprofundar as
contratendências necessárias 196 para superar a crise estrutural
do capital, tais como: a busca por força de trabalho abaixo do
seu valor; o estabelecimento de um monumental exército
industrial de reserva, e, consequentemente, a elevação da
intensidade da exploração da força de trabalho e expansão da
mundialização do capital, por meio do comércio exterior, são
alguns dos meios para retardar a tendência à queda da taxa de
lucro. 197 E isso exigiu a implementação, pelos Estados
nacionais, de políticas macroeconômicas para consumar o
aprofundamento dessas contratendências, repercutindo em
efeitos impiedosos para as classes trabalhadoras, principal-
mente aquelas dos países periféricos. No caso do nosso tema em
questão, a escravidão contemporânea, a entendemos como fruto
de um processo histórico de permanência de formas transitórias
ou híbridas de exploração da força de trabalho, como também
acentuada pelos elementos dinâmico-conjunturais que marcam
a fase contemporânea do capitalismo.
152
grifos do autor). Em vista disso, na direção da configuração
contemporânea do capitalismo, é sabido e já discutido
amplamente 198 que foi a partir da década de 1990, que se
desenvolveu a política macroeconômica neoliberal no Brasil,
com a ampliação da internacionalização da economia e,
consequentemente, a privatização do setor produtivo estatal
(siderurgia, telecomunicações, energia elétrica, entre outros) e
com a expansão do mercado de commodities, retomando o
impulso agroexportador e a “reprimarização” da economia. 199
Ao largo desse longo período de políticas de
reestruturação com inúmeras contrarreformas, os/as trabalha-
dores/as passaram a submeter-se com mais intensidade a
qualquer ditame do capital para manter seu emprego, assim
intensificando sua produtividade, tornando-se multifuncionais e
polivalentes, aceitando qualquer proposta, decorrente do
processo do
153
o desemprego é uma dimensão ainda mais crítica, que submete
os sujeitos a um estado de extrema penúria.
Neste período da chamada “acumulação flexível”, 200
modos diferenciados de “empresa enxuta”, “empreendedorismo”,
“cooperativismo”, “trabalho voluntário”, “trabalho intermitente”,
“trabalho sob demanda” 201 dentre as mais diversas formas
alternativas de trabalho precarizado proliferaram. E os ideólogos
da burguesia passaram a usar termos e expressões típicas
dos/as trabalhadores/as, em suas lutas na década de 1960,
transformando o sentido destes termos, conforme os interesses
da acumulação burguesa como “controle operário” e
“participação social”. “O exemplo das cooperativas talvez seja o
mais eloquente, uma vez que, em sua origem, elas eram reais
instrumentos de luta e defesa dos trabalhadores contra a
precarização do trabalho e o desemprego” (Antunes, 2009, p.
233).
E assim, colocaram como meta a maior “flexibilização” no
processo de produção, das relações de trabalho, dos direitos e
garantias trabalhistas e da seguridade social, sob um sistema de
subcontratação que impactou o “mercado de trabalho” e
debilitou o poder sindical. Identifica-se, desse modo, um
processo de degradação da vida humana, fruto desta sociedade
que gera “o desperdício, [e a] mercadoria crescentemente
desprovida de utilidade social. E, quando olhamos para o chão
produtivo, o que se vê é um mundo do trabalho crescentemente
precarizado” (Antunes, 2008, p. 46).
Foi na década de noventa do século XX, que esse
“modelo” destrutivo foi direcionado ao país, para a
reestruturação e reordenamento do capital em âmbito mundial,
que ainda tem como objetivo o retrocesso do sistema de proteção
social, constituído na Constituição Federal de 1988. Esse recuo
iniciou-se no governo de Fernando Collor de Mello (PRN), mas
intensificou-se em meados da década de 1990, desde o primeiro
governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), em uma
200Harvey, 2010
201Está em tramitação o problemático Projeto de Lei n. 3748/2020, que tem
como uma das proponentes a Deputada federal Tábata Amaral (PDT/SP),
que "Institui e dispõe sobre o regime de trabalho sob demanda", que de
acordo com a deputada busca estabelecer “um novo modelo de trabalho”.
154
conjuntura de rearticulação das forças do capital no país. A
chamada “Reforma Gerencial do Estado” iniciou a política de
privatização e sucateamento dos serviços públicos e a
precarização das relações de trabalho, perpetuadas e desenvol-
vidas sob “o encantamento” dos governos do Partido dos
Trabalhadores (PT).
No Brasil, as entidades representativas das classes
trabalhadoras, desde o final da década de 1990, já iniciavam um
desenlace com as perspectivas do “novo sindicalismo”, com um
discurso dos sindicatos, que trouxe a ideia de “parceria e
envolvimento” entre as classes e de um “sindicato de
resultados”. Há mais de duas décadas, com a ofensiva
neoliberal, ocorre um enfraquecimento da mobilização,
insurgente do período da redemocratização.
A ofensiva neoliberal, no decorrer da década de 1990,
promoveu a queda dos salários reais, devido à diminuição do
emprego formalizado nas empresas e no serviço público e ao
aumento de pequenos e precários empreendimentos, de
microempresas, do trabalho em domicílio, e do trabalho por
conta própria de rua, entre outras estratégias de sobrevivência
em um contexto de altíssimo desemprego produzido pelas
contrarreformas neoliberais.
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, por
meio do estabelecimento de direitos fundamentais do trabalho,
objetivava-se homogeneizar os limites da jornada de trabalho, de
forma a regulamentá-la e definir balizas para a dimensão da
jornada de trabalho nas 44 horas semanais, assim como
garantir os intervalos intrajornada e interjornada. 202 Nesse
sentido, acreditava-se que seria assegurado uma “jornada
padrão”. No entanto, “parte da jornada continuou flexível devido
à possibilidade de utilização de horas extraordinárias, que foram
155
intensamente usadas pelas empresas no início dos anos 1990,
como mostra Dal Rosso (2006)”. Portanto, vê-se que a chamada
flexibilidade, que na verdade é a expressão da precariedade
constitutiva do nosso mercado de trabalho e a precarização
acompanhando as demandas da fase contemporânea do
capitalismo, “tende a ser, inclusive, incentivada pela prevalência
de baixos salários. As horas extras tornaram-se uma alternativa
de aumento da renda devido aos baixos salários percebidos pelos
trabalhadores” (Krein; Abílio; Borsari, 2021, p. 254).
Dessa forma, o discurso da chamada reforma gerencial
do Estado trouxe a alegada “modernização” da legislação
trabalhista e da Constituição Federal, que objetivavam destruir
os direitos não acessados por grande parte das classes
trabalhadoras brasileiras. Porque para as nossas burguesias
fascistizantes, racistas e patriarcais as franjas mais
depauperadas das classes trabalhadoras nunca couberam no
Brasil que buscam construir.
Por conseguinte, nesta década, iniciaram-se as
modificações da regulamentação do tempo de trabalho, vistas na
liberação progressiva do trabalho aos domingos, na
incorporação do banco de horas, no prolongamento da jornada
de trabalho para até 12 horas para determinados segmentos, e
em acordos para diminuir o tempo intrajornada, como na
diminuição do intervalo para o almoço. Em outras palavras, já
havia uma desconstrução de direitos que nunca foram
acessados por grande parte das classes trabalhadoras, “para dar
maior liberdade às empresas em gerir o tempo de trabalho de
acordo com o que é mais conveniente para a dinâmica de sua
atividade econômica” (Krein; Abílio; Borsari, 2021, p. 254).
Nesse caminho, o aparato político-ideológico do neolibe-
ralismo garantiu a transformação dos processos produtivos,
assim como das relações de trabalho, com o aumento da
informalidade, da precariedade e da terceirização, reduzindo as
formas de contratação da força de trabalho com garantia de
direitos trabalhistas e ampliando os contratos temporários e/ou
intermitentes. Toda esta ofensiva às classes trabalhadoras
156
incidiu no incentivo ao autoemprego, ao trabalho voluntário,203
e no aumento de casos de trabalho escravizado contemporâneo,
além do enfraquecimento da organização sindical. Porque esse
período histórico do capitalismo contemporâneo consolidou uma
157
forma, o trabalho voluntário de diversos jovens esteve presente
como força de trabalho gratuita, mas com ares de integração e
oportunidade de experiência.
Esses retrocessos dos direitos trabalhistas e sociais, com
que nos deparamos neste momento, decorrem da
implementação de políticas macroeconômicas neoliberais e
consequente ideário, que veio como alternativa ao capital para
saída de sua “crise estrutural”, mas o que constatamos é que
tem cumprido com êxito seu papel político-ideológico, porque
economicamente não superou todas as expectativas.
Não temos interesse em recuperar, historicamente, toda
a trajetória de implementação deste chamado “ajuste fiscal” ao
longo dessas três décadas no Brasil, o que importa destacar, em
nossa discussão, é como a tática político-ideológica da
implementação da política macroeconômica neoliberal
acompanhou o movimento das lutas de classes e quais foram as
consequências para as condições de trabalho, visto que tais
táticas foram no sentido de se adequarem aos movimentos de
resistência das classes trabalhadoras e conseguirem galgar seu
“consentimento”, para depois “sem alternativas” de negociação,
as classes trabalhadoras não terem mais escolhas.
Isso posto, apesar de reconhecer as diferenças entre os
governos do PSDB e do PT, vamos argumentar por meio de uma
linha de raciocínio na qual as contradições que perpassam os
governos do PT trouxeram mistificações desastrosas para as
lutas das classes trabalhadoras e suas condições de trabalho e,
consequentemente, de vida.
Em primeiro lugar, é necessário ressaltar que ainda que
apresentasse um programa muito distante das lutas históricas
e universalizantes que marcaram os primeiros tempos do PT, a
eleição de Luiz Ignácio Lula da Silva, no final de 2002, expressou
o reconhecimento mínimo da existência infrapolítica das classes
trabalhadoras (Antunes, 2018).
O PT que “se inicia pela negação de uma ordem e que
acaba por encontrar um ponto de acomodamento no interior
desta mesma ordem que esperava negar” (Iasi, 2006, p. 376),
demonstrou, em seus treze anos de governo, a “integração pelo
alto” entre segmentos das diferentes classes sociais, realizada
por meio de novas posições sociais, econômicas e políticas
158
galgadas pelos altos escalões sindicais (inclusive em fundos de
pensão), e uma extensa política público-privada de alívio a
situações emergenciais de pobreza, sem configurar direitos
universais (Fontes, 2010). Configura-se realmente que “a
experiência do PT é um excelente exemplo do que acaba por se
amoldar aos limites da ordem que queria superar” (Iasi, 2006, p.
359). Por isso é importante ressaltar que
159
A ofensiva neoliberal “atenuada” dos governos do PT, deu
continuidade ao pagamento da dívida externa, à privatização e
precarização dos serviços públicos, além disso, reduziu-se a
ínfima política de reforma agrária dos governos do Partido da
Social-Democracia Brasileira (PSDB) e fortaleceu-se o
agronegócio em detrimento da agricultura familiar.
160
desigualdades econômicas, políticas e sociais (Lima, 2017,
p. 95-96).
161
Não podemos negar a popularidade dos governos Lula,
que teve como arcabouço uma importante base material, do
supracitado ascendente ciclo econômico, que perpassou
praticamente os seus dois mandatos, e ações estratégicas que
garantiram avanços na conquista de uma “nova pedagogia da
hegemonia”. 207
O “reordenamento” dos países na divisão internacional
do trabalho alavancou um processo de transformações
estruturais na economia que possibilitaram notáveis lucros para
o capital internacional, o que assegurou um apoio do setor
majoritário das burguesias ao seu governo. Articulado a isso,
aumentou a renda dos/as trabalhadores/as que ganhavam
menos, com pequenos reajustes do salário-mínimo, retirou da
extrema miséria diversas pessoas com o Programa Bolsa Família
e reduziu o salário dos/as trabalhadores/as mais especializa-
dos/as, o que garantiu a estagnação do salário médio do
conjunto dos/as trabalhadores/as. 208
Período em que a composição encantamento e
truculência trouxeram a falsa impressão de melhora da renda
do conjunto da classe, 209 quando, na verdade, houve uma
redistribuição de renda entre as classes trabalhadoras.
Desse modo, destaca-se que ocorreu neste período: i)
redução do desemprego, com a criação de empregos formais,
mas com remuneração de até 2 (dois) salários-mínimos, na
mesma medida houve o incentivo de uma política de geração de
emprego e renda, com o autoemprego atrelado ao discurso do
“empreendedorismo” e do “empoderamento”; ii) aumento do
salário-mínimo, mas não alcançando o valor necessário para
uma vida digna, conforme parâmetros do Dieese (o salário-
mínimo necessário era aproximadamente três vezes o valor do
salário-mínimo nominal); iii) promoção do crédito para o
mercado consumidor, mas em maior medida ampliaram-se as
162
isenções fiscais para grandes grupos econômicos; iv) acesso aos
bens necessários para a reprodução da força de trabalho por
meio do endividamento; v) aumento expressivo das políticas
sociais focalizadas/compensatórias, porém direcionou-se
grande parte dos recursos sociais para o pagamento dos juros
da dívida pública; 210 vi) abertura de concursos públicos e avanço
das políticas de ação afirmativa; e, vii) ampliação das vagas no
ensino superior, porém com grande repasse de recursos
públicos para grandes grupos econômicos do ensino superior.
Assim, é possível constatar que
163
fraturado como o Brasil (Demier, 2019, p. 49, grifos do
autor).
164
Dessa forma, em um cenário de extrema recessão, o
governo de “conciliação” já não interessava mais para as frações
burguesas dominantes, que ampliaram seu ódio de classe,
próprio do seu perfil plutocrático, e que, por sua vez, com o apoio
da grande mídia burguesa, construíram a hegemonia favorável
ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em agosto de
2016. Portanto, o golpe de governo teve como finalidade garantir
um governo que não tenha qualquer constrangimento para
efetivar plenamente o chamado “ajuste fiscal”, as contrarre-
formas e a repressão do conjunto das classes trabalhadoras,
exigidos pelo capitalismo brasileiro em crise.
165
já verificado nas últimas décadas no Brasil” (Welle et al., 2018,
p. 277).
As contrarreformas articuladas ao “ajuste fiscal” vêm
para garantir a existência de uma maior apropriação de mais-
valor, para dar concretude a títulos de direito de apropriação,
porque o crescimento destes títulos foi, e ainda é, muito mais
rápido do que o capital produtivo. A primeira fase da crise de
2008 ocasionou a segunda em 2012, com o endividamento
público, este promovido por meio da emissão de títulos públicos
para garantir a reprodução daquele capital fictício (Carcanholo,
2017).
A ampliação da liberalização financeira, da “mone-
tização” do capital fictício somada à desregulamentação e às
privatizações aprofundaram a necessidade de as forças
burguesas exigirem a implementação de mais movimentos
contratendenciais, que repercutem na expansão contrarrefor-
mista. Consequentemente, os efeitos são sentidos diretamente
nas condições de trabalho e de vida das classes trabalhadoras.
Uma vez que nesse processo, típico do capitalismo
contemporâneo, ocorre uma superacumulação de uma massa de
capital que se especializa apenas na apropriação de um mais-
valor que ele não produz, uma primeira requisição para a
retomada da acumulação é a expansão da massa de mais-valor
produzido, de forma a garantir concretude ao montante de
títulos de apropriação superproduzidos. Isso implica aumentar
a taxa de exploração do trabalho, por meio dos retrocessos dos
direitos das classes trabalhadoras como forma de reduzir o valor
da força de trabalho, assim como por meio do prolongamento da
jornada e/ou da intensidade do trabalho, sem o correspondente
aumento salarial (Carcanholo, 2017).
Dessa maneira, utiliza-se também o mecanismo do
“ajuste fiscal”, que é viabilizar a transferência permanente de
recursos públicos e de renda das atividades produtivas para a
especulação financeira. Sendo assim, constitui-se em adequar
todas as demais despesas do Estado em função do aumento da
despesa financeira. Por isso, tornam-se necessários os cortes
das despesas primárias sem redução das despesas com o serviço
da dívida pública. Esta política macroeconômica apresentada
como “ajuste fiscal” apresenta a penalização das classes
166
trabalhadoras, em especial, as franjas mais mal remune-
radas. 212 “Esta situação se agravou com a aprovação, em 2017,
da Emenda Constitucional 95, que prevê a definição de um teto
para os gastos primários e conduz a um outro patamar o trato
dos recursos públicos e a prioridade do pagamento de juros da
dívida” (Brettas, 2017, p. 64-65).
De acordo com Filgueiras (2015, p. 4), o “ajuste fiscal” é
uma política nociva do ponto de vista produtivo e social e “seus
efeitos são de longo prazo, afetam a trajetória de desenvol-
vimento da economia, porque, entre outras consequências,
queima capacidade produtiva instalada, estimula a especulação
financeira e alimenta a cultura rentista”. E as condições de
trabalho tornam-se mais precárias e as corporações passam a
concentrar e centralizar mais capital.
Como discutido no capítulo II, o Brasil é um país que
possui uma economia amparada na dependência técnico-
científica, comercial, tecnológica, monetária e financeira, com
um padrão exportador de especialização produtiva. Não gera
internamente, com algumas exceções, tecnologia própria, e como
todos os demais países de capitalismo dependente, não tem
moeda conversível internacionalmente, o que significa dizer que
sua inserção internacional está condicionada ao acesso às
moedas dos países imperialistas.
167
camadas da totalidade, que denotam algumas de suas
características mais imediatas. [...] Mas há, simultânea-
mente, outra acepção que sugere uma periodização da
dependência tomando como elemento distintivo as formas
da dependência que se apresentam com predomínio em
cada conjuntura histórica. [...] em nosso entendimento a
categoria que expressa com maior rigor a modificação das
formas históricas da dependência é a de padrão de
reprodução do capital (Luce, 2018, p. 48-49).
168
diversificação da expropriação do trabalho necessário, pela via
do sistema tributário regressivo, pelo endividamento das
famílias. Da mesma forma, “[...] os salários e benefícios
monetários concedidos aos usuários dos programas sociais do
governo são usados para remunerar o capital portador de juros,
alimentando a financeirização. A priorização da dívida alavanca
a transferência de valor para o grande capital imperialista”
(Brettas, 2017, p. 72-73).
A situação só piorou desde o golpe jurídico-parlamentar
até o atual governo (de Jair Bolsonaro), porque engendra-se uma
“agenda” ultraneoliberal com um viés autoritário e reacionário,
então as políticas compensatórias de “alívio da pobreza” 213 e a
pauta dos direitos humanos vem perdendo espaço por causa de
uma aberta política antinacional, antissocial, racista, patriarcal
e fascistizante, que aprofunda o processo de desregulamen-
tações e inovações financeiras para dar continuidade à sujeição
da dinâmica capitalista à lógica do capital fictício. 214
A dívida pública tem sido um dos principais alimentos
desse capitalismo sob hegemonia financeira, favorecendo a
concentração de renda no setor financeiro e aumentando ainda
mais o seu poder. Por isso, o endividamento é um problema
presente em quase todos os países capitalistas. A dívida pública
funciona como um mecanismo de transferência de valor, que vai
alavancar a superexploração da força de trabalho.
169
combinação desses dois primeiros fatores é o agravamento
da desigualdade entre as classes possuidoras (e seus
aliados funcionais) e as massas trabalhadoras e
expropriadas, com o agravante do exponencial
crescimento relativo das massas expropriadas e privadas
das condições formais de trabalho. A crise material da
classe é, também, a crise de sua consciência de classe
agravada pelo transformismo de sua principal referência
política. Dessa forma, amplos setores das massas
trabalhadoras se veem presos à ideologia burguesa e a
suas derivações, seja na vertente diretamente política
(conservadorismo, neofascismo etc.), seja nas suas
derivações religiosas (fundamentalismo, obscurantismo,
conservadorismo de valores, culto à família etc.) (Iasi,
2019, p. 434-435).
170
radiodifusão e telecomunicações); a força simbólica de
suas formas rituais, que incorporam elementos tanto do
catolicismo popular quanto das religiões de matriz afro-
brasileira (embora, no mais das vezes, a combatam
abertamente); e uma capacidade de criar − através da
prestação de serviços e do espírito de pertencimento ao
grupo − solidariedade comunitária em territórios
marcados pela violência e pela ausência de perspectiva de
futuro para maior parte de seus habitantes (Mattos, 2017,
p. 147).
216 Estamos de acordo com a análise de Lima (2019, p.19), quando afirma,
com base em Florestan Fernandes que, durante os governos do PT, vivemos
um período de contrarrevolução “a frio” com o estímulo ao “aburguesamento
das suas burocracias sindicais e partidárias pela defesa da política de
conciliação de classes”.
217 Sobre o debate crítico da Economia Solidária, ver Neves, 2013 e Wellen,
2012.
171
a exemplo do microempreendedor individual, terceirizações e
aumento de condições precárias e informais de trabalho,
facilitaram maiores expropriações de direitos. Uma vez que
grande parcela das classes trabalhadoras estava seduzida pelo
“sindicato de resultados” ou já não estava mais sindicalizada e
protegida. Em vista disso, não participaram do processo, porque
não foram convocadas ou impedidas, ou ainda, acreditaram que
uma suposta “modernização” da legislação trabalhista traria
mais empregos. Portanto, mudanças estruturais foram
aprovadas sem grandes enfrentamentos, como o teletrabalho,
que à primeira vista ilude diante da possibilidade de trabalhar
em casa; 218 o negociado sobre o legislado; o trabalho
intermitente; a “prorrogação de jornada em ambientes
insalubres, sem licença prévia das autoridades competentes” e
a legalização ou ampliação de práticas pregressas ilegais, devido
à dificuldade atual, pós-contrarreforma, de os/as trabalhado-
res/as acessarem à Justiça do Trabalho. A contrarreforma
trabalhista de 2017 “alterou pelo menos 16 aspectos da
regulamentação da jornada, na perspectiva de flexibilizar as
condições de uso do tempo de trabalho em favor das empresas,
de modo que a elas seja possível pagar somente as horas e
minutos efetivamente trabalhados” (Krein et al., 2019, p. 138).
Apesar da contrarreforma trabalhista não ter modificado
direta e formalmente o prolongamento da jornada laboral, houve
a alterações em relação à “distribuição da jornada, propiciando
um amplo leque de opções às empresas [de escalas de trabalho]
na utilização do tempo da força de trabalho” (Krein; Abílio;
Borsari, 2021, p. 268-269). Reforçando aspectos, apontados
anteriormente, que iniciaram desde a década de 1990, a exemplo
do banco de horas e do aumento progressivo da liberação do
trabalho aos domingos, principalmente no comércio e
supermercados, “com um acréscimo [em 2017]: fragilização do
poder negocial dos sindicatos” (Krein; Abílio; Borsari, 2021, p.
269).
É sabido que esse movimento contrarreformista não é
uma exclusividade brasileira, na verdade enquadra-se como
demanda do conjunto das burguesias em âmbito mundial. Por
172
isso se espraia como necessidade de expansão do comércio
exterior na contínua dinâmica capitalista de abranger mais
mercados e consolidar contratendências, como resposta às suas
contradições intrínsecas. Nesse sentido, destacamos como a
devastação provocada pela contrarreforma trabalhista mexicana
serviu como um modelo para o Brasil. Porque
173
aumento expressivo de posicionamentos ultraconservadores,
assim como protofascistas e fascistas. 219
Uma exacerbação do típico perfil plutocrático das
burguesias brasileiras, que na verdade constituem formas
particulares de enfrentamento às atuais necessidades sociais do
capitalismo. E, assim, dadas as circunstâncias do último
período ditatorial ter sido “abolido”, deixando seus vestígios de
permanência em uma “democracia restrita”, ressurgem
“louvores neopentecostais”, saudosos da ditadura empresarial-
militar, que seduziram, no processo eleitoral de 2018, a maior
parte das classes trabalhadoras brasileiras desempregadas e/ou
em situação precária.
Dessa forma, na ofensiva às classes trabalhadoras, as
leis contrarreformistas nº 13.429 e 13.467/17 destruíram
direitos, com o impacto de não gerarem mais empregos, e, em
sentido inverso ao postulado, aumentarem a informalidade,
rebaixando ainda mais o valor da força de trabalho. 220
Antes mesmo da aprovação dessas leis, já era evidente a
deterioração das condições de trabalho, e a terceirização
correspondia, aproximadamente, a 90% das pessoas resgatadas
nos dez maiores flagrantes de escravidão contemporânea, entre
2010 e 2014. 221
Trouxeram ainda a desconstrução do direito do trabalho,
porque além de retirar direitos, também permitiu a implemen-
tação de práticas que prejudicam os/as trabalhadores/as, o que
se reflete no campo individual e no coletivo (sindical). Ações que
eram proibidas como o banco de horas, a jornada 12 x 36h, salvo
negociação coletiva, passaram a ser admitidas, podendo ser
acordadas diretamente entre trabalhadores/as e empregadores/
as. Aliás, os limites de jornada são, agora, negociados
diretamente entre trabalhadores/as e empregadores/as. Os
atuais retrocessos na legislação trabalhista asseguram a
conclamada “‘segurança jurídica’ ao [patronato], para que não
venha a ter contestada a sua liberdade de determinar, de forma
sao-paulo-apontam-relacao-entre-trabalho-escravo-e-terceirizacao. Sobre
isto ver: Filgueiras, 2016.
174
unilateral e discricionária, as condições de contratação, uso e
remuneração do trabalho” de acordo com as requisições
particulares dos diferentes setores econômicos (Krein; Buarque,
2021, p. 32).
Nessa direção, o governo de Jair Bolsonaro implementa
sua política de expropriações, que visa acabar com os direitos
trabalhistas, a exemplo da Lei nº. 13.874/19 “Lei da Liberdade
Econômica”, sob o pressuposto da redução da burocracia e de
assegurar segurança jurídica para as atividades econômicas.
Esta nova lei aprofunda alguns dos retrocessos, porque promove
alterações no âmbito da Inspeção do Trabalho, como o aumento
na dispensa do controle de ponto de dez para vinte empregados;
a previsão do ponto por exceção (que permite o registro apenas
quando o horário for diferente do habitual). E amplia a dispensa
de inspeção prévia para verificação de segurança e saúde dos/as
trabalhadores/as para o início das atividades de uma empresa.
Cabe destacar que esta lei, em sua redação original,
remontava aos interesses mais reacionários das burguesias
brasileiras que compõem a famosa Bancada BBB (Boi, Bala e
Bíblia), pois pretendia também restringir a apreensão do
trabalho escravizado contemporâneo a trabalho forçado.
Também previa, em seu artigo 28, a retirada da
obrigatoriedade da instituição da Comissão Interna de
Prevenção de Acidentes (CIPA) para “locais de obra” ou
estabelecimentos com menos de 20 trabalhadores e para as
micro e pequenas empresas, modificando o art. 163 da CLT. A
CIPA é um instrumento importante de prevenção de acidentes.
Com este objetivo, feria a Constituição Federal de 1988 e a
Convenção 155 da OIT, ratificada pelo Brasil, que dispõe sobre
a política de segurança e saúde dos trabalhadores. Apesar dessa
parte ter sido retirada pelo próprio relator, até mesmo para
viabilizar a aprovação da Lei n. 13.874/19, houve a retirada do
artigo 30 da CLT que exigia a notificação dos acidentes de
trabalho na carteira de trabalho do/a trabalhador/a acidentado.
175
legais; 3) o registro de jornada dos/as trabalhadores/as é
obrigatório apenas para as empresas que possuam mais
de vinte empregados/as; 4) a possibilidade de registro de
jornada por exceção, ou seja, são registradas apenas
situações que extrapolem a rotina comum, devendo ser
mediante acordo individual escrito, convenção coletiva ou
acordo coletivo de trabalho; 5) a criação de regras objetivas
para a desconsideração da personalidade jurídica das
empresas, dificultando a fase de execução da ação
trabalhista e o recebimento pelo empregado de suas verbas
trabalhistas [...] (Pitz; Soares, 2022, p. 462).
176
2017, uma média de 79,5 mil postos a menos por mês, durante
36 meses. 223
De acordo com os dados divulgados, a condição de
trabalho é uma das questões mais preocupantes, pois houve a
criação de 26.300 postos intermitentes e 13.320 parciais no
período (saldo). Os contratos atípicos e precários correspondem
a 78,4% do saldo de empregos formais gerados desde novembro
de 2017, que agora são formalizados pela nova legislação.
http://reporterbrasil.org.br/2013/09/fiscais-flagram-trabalho-escravo-
em-obra-da-oas-para-ampliacao-do-aeroporto-internacional-de-guarulhos-
sp/ Acesso em jan. 2014.
177
início de setembro de 2018, foram libertados, por auditores-
fiscais do trabalho, três trabalhadores da Bahia em uma
construção em Montes Claros (MG), trabalhavam em jornada
ininterrupta e em condições degradantes. 225
O rebaixamento salarial, o condicionamento à
degradância e a violação à dignidade constitucional do trabalho
se amplificam por meio de um discurso hegemônico de “cultura
da crise” 226 para avançar na retirada dos direitos sociais e
laborais. Esses retrocessos amparam-se no fortalecimento da
perspectiva meritocrática, posta no “empreendedorismo”.
À vista disso, identificamos que foi fundamental o
aparato político-ideológico para garantir a transformação dos
processos produtivos e das relações de trabalho, com o aumento
da informalidade, da precariedade e da terceirização, reduzindo
as formas de contratação da força de trabalho com garantia de
direitos trabalhistas. Dessa forma, a mistificação da
precarização das condições de trabalho e/ou a ausência de
emprego apresenta como “opção” às classes trabalhadoras: o
autoemprego nomeado como “empreendedorismo”, o volunta-
riado a serviço do capital ou a escravidão contemporânea.
Nesse sentido, as contrarreformas foram e são
implementadas sob a ideia de “modernização” das leis para a
precarizar o assalariamento e explorar a força de trabalho por
meio do trabalho sob demanda via voucher ou plataformas
digitais e aplicativos, com a ilusão de autonomia e de liberdade
aos/às trabalhadores/as. 227
Os retrocessos em curso 228 têm por base a política
macroeconômica ultraneoliberal, que privilegia uma política
https://g1.globo.com/mg/grande-
minas/noticia/2018/09/19/trabalhadores-da-construcao-civil-sao-
resgatados-em-condicoes-degradantes-em-montes-claros.ghtml Acesso em
set. 2018.
226 Sobre o mote de responsabilização da classe trabalhadora em pagar pela
178
monetária, fiscal e cambial em favor da hegemonia do capital
portador de juros e, consequentemente, do capital fictício, que
aprofundam as contradições das leis tendenciais capitalistas,
agravadas pelas particularidades da dependência.
Um movimento contrarrevolucionário prolongado e
permanente 229 que, no presente período, busca expropriar mais
direitos para succionar todo o mais-valor socialmente produzido,
acumulado no fundo público. Indicando a característica
antinacional, antissocial, racista, patriarcal e fascistizante das
burguesias brasileiras na direção de silenciamento do dissenso
para aumentar as possibilidades de exploração do mais-valor,
como impulsionar os processos de expropriação.
As consequências desta política de “ajuste fiscal” para
países de capitalismo dependente, pela via das expropriações de
direitos, 230 são: o expressivo desemprego, a maior precarização
das condições de opressão-exploração da força de trabalho e a
miserabilidade, mediadas pelos determinantes étnico-raciais e
de gênero.
Importante ressaltar que as transferências de valor,
como intercâmbio desigual articulado à cisão das fases do ciclo
do capital, expressam-se na nossa política comercial de
exportação. Podemos verificar o caso das exportações do
agronegócio, que atingiram o valor recorde nominal de US$
101,69 bilhões em 2018, com crescimento de 5,9% em relação
aos US$ 96,01 bilhões exportados em 2017. 231
As exportações brasileiras de carne bovina in natura
foram recordes em 2019, e o que favoreceu a pecuária brasileira
foi o custo de produção mais baixo do que o dos concorrentes,
além da redução na oferta global. Esses foram alguns dos fatores
que beneficiaram as vendas brasileiras, ao longo do ano de
2019. 232
Esse custo de produção baixo deve-se aos incentivos
fiscais, tanto nos tributos estaduais, tais como o ICMS, como
179
nos tributos federais, a exemplo das isenções da Lei Kandir.
Assim como o valor da força de trabalho, que tinha como média
o piso salarial, em todo o Brasil, o valor de R$ 1.144,87 (previsto
para o ano de 2020), no cargo de Trabalhador Agropecuário em
Geral, com uma jornada de trabalho de 44 horas por semana. 233
A média salarial para trabalhadores/as para a criação de
bovinos para corte é R$1.339,91, sendo que o salário-mínimo
necessário deveria ser de R$ 4.366,51, de acordo com valores
estipulados de fevereiro de 2020 pelo Dieese. 234
A criação de bovinos para corte lidera o ranking de
pessoas resgatadas da escravidão contemporânea (31% do
total) 235 e como destacamos acima, os valores da força de
trabalho neste setor não viabilizam salários dignos, nos termos
constitucionais. 236 E isso não importa, para boa parte do
empresariado do agronegócio brasileiro, porque o ciclo do seu
capital se realiza, majoritariamente, fora do Brasil, sendo assim
não interessa se os/as trabalhadores/as brasileiros/as estão
recebendo um salário que não dá para sobreviver ou se estão em
jornada exaustiva, degradante, ou seja, em escravidão
contemporânea. Repetimos, que a "lista suja" do trabalho
escravo de 2018 foi ocupada por quase metade de setores
econômicos do agronegócio e, que entre 2003 e 2014, 80% das
pessoas resgatadas trabalhavam para o agronegócio.
Durante a pandemia do novo coronavírus, com a alta do
dólar, o agronegócio brasileiro comemora seus lucros com a
prioridade ao mercado externo, enquanto mais da metade da
população brasileira está em situação de insegurança alimentar
CAGED/ST/ME.
https://www.salario.com.br/profissao/trabalhador-agropecuario-em-
geral-cbo-621005/ Acesso em jan. 2020.
234 Ver: https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/salarioMinimo.html
180
e nutricional. 237 O agronegócio tem se beneficiado com a
desvalorização da nossa moeda, devido à supracitada
dependência cambial, diante disso, o agronegócio aumentou a
exportação de produtos primários ocasionando a escassez de
alimentos para o mercado interno, uma das principais causas
do aumento dos preços da nossa cesta básica.
O Brasil, de acordo com ex-diretor da Companhia
Nacional de Abastecimento (Conab), Silvio Porto, perdeu 30% de
área de cultivo de alimentos para o agronegócio. 238 O chamado
Plano Safra lançado em 2020 reforçou ainda mais a política
agrária para o agronegócio e para as commodities para
exportação, 239 como soja, carne, açúcar e café. 240
A cadeia produtiva dessas commodities para a exportação
deve ser bem fiscalizada, tendo em vista que beneficiam,
historicamente, diversas corporações às custas do condiciona-
mento dos/as trabalhadores/as ao trabalho escravizado
contemporâneo 241 e à violação às legislações ambientais. Como
podemos atestar com o resgate da escravidão contemporânea,
em maio de 2021, de 80 trabalhadores de uma fazenda com
plantação de café, no estado do Espírito Santo. Os trabalhadores
estavam em regime de servidão por dívida, uma vez que foram
condicionados a pagar um débito ilegal referente ao custo do
transporte e alimentação ofertados pelo intermediário durante o
percurso do aliciamento até o local de trabalho. 242
2030 (2021).
238 Castro, 2020.
239 “Em documento produzido pela CNA [Confederação Nacional da
181
3.2. Expansão, pulverização e controle total: impactos nas
condições de trabalho
182
– entre outros fatores, porque os “salários” que entram no
valor da mercadoria podem descer muito abaixo do valor
da mercadoria força de trabalho, se os produtores forem
apenas semiproletários que ainda possuem seus próprios
meios para produzir artigos que necessitam, ou se forem
pequenos camponeses que praticam uma agricultura de
subsistência e cujo consumo se limita ao mínimo
fisiologicamente necessário à vida (Mandel, 1982, p. 49,
grifos nossos).
183
trabalhador/a no processo de trabalho. Ou seja, a forma típica
do processo de trabalho cada vez menos utilizada em sua
totalidade, como Marx demonstra em seu capítulo XIX do livro I,
cede lugar, por exemplo, a um processo de trabalho que não
pertence mais ao capitalista, mas sim ao/à trabalhador/a, mas
que este/a depende da demanda e compra do capitalista para
sobreviver. É, na verdade, a substituição do salário por tempo
pelo salário por peça, que predomina nas empreitadas da
construção civil, colheitas de cana, confecções de roupas, nos
“empreendimentos individuais” ou no processo de uberização,
que o/a entregador/a recebe por entrega realizada.
Para Marx, é o capital produtivo que produz riqueza e,
portanto, valor excedente, e o faz por meio do consumo da força
de trabalho, por mais que se desenvolva a tecnologia, por mais
que se amplie a composição orgânica do capital. Portanto, os
capitalistas, por meio da lei do valor, convocam, liberam,
assalariam, ou usam a força de trabalho na clandestinidade, e,
atualmente, tentam garantir a ilusão de autonomia e de
liberdade aos/às trabalhadores/as, seja na forma de
microempresa familiar ou por meio das plataformas digitais e
aplicativos.
184
produção, que já foram representativas de uma economia
atrasada, tornaram-se bastante funcionais à acumulação
capitalista. São essas formas que entendemos
consubstanciar a “nova informalidade” [...] (Tavares, 2004,
p. 43).
185
É nesse sentido que identificamos como o “sistema
financeiro alcançou um grau de autonomia diante da produção
real sem precedentes na história do capitalismo, levando este
último a uma era de riscos financeiros igualmente inéditos”
(Harvey, 2010, p. 181).
Sendo assim, há um investimento de excedente de capital
na esfera financeira; um crescimento do deslocamento espacial
na absorção de capital e de trabalho excedentes, o alargamento
do comércio e dos investimentos diretos 246 e novas possibili-
dades de exploração da força de trabalho. As liberalizações e
desregulamentações tornam-se essenciais para os oligopólios se
organizarem no processo de desterritorialização da produção
buscando vantagens nos custos da força de trabalho,
explorando as possibilidades do desenvolvimento desigual e
combinado do capitalismo (Harvey, 2010; Chesnais, 1996).
186
iniciativa cabe aos grupos industriais e comerciais dos
países pertencentes ao oligopólio mundial, que podem pôr
em concorrência a oferta de força de trabalho entre
diferentes países (Chesnais, 1996, p. 36-39).
existência como papel, mas que, num dado momento do tempo, não tem
lastro em termos de atividade produtiva real ou de ativos físicos. O capital
187
Apesar do sistema de crédito, da “financeirização” do
capital ser uma tentativa de o capital resolver suas contradições
internas, as contradições do modo de produção capitalista são
insolúveis pelo constante surgimento de novas e, em planos
mais profundos, o sistema de crédito acaba aumentando as
contradições em vez de amenizá-las (Harvey, 1990).
É inerente e constante ao movimento do capital a
necessária obtenção de respostas para elevar a taxa de lucro,
uma vez que o rebaixamento da taxa de lucro é uma tendência
contínua do capitalismo. As fases de recuperação da taxa de
lucro correspondem a sucessos temporários, com medidas de
forma quase permanente, e que geralmente são obtidos por
grupos capitalistas determinados.
A sociedade capitalista, ao longo de cinco décadas, busca
respostas aos efeitos da crise estrutural do capital. Em sua
contrarrevolução, com uma incessante reestruturação, enquan-
to base concreta e objetiva necessária para reverter as
tendências da própria dinâmica da acumulação capitalista,
engendra-se mais efeitos devastadores, sentidos em nossa vida
cotidiana.
É importante salientar que a acumulação capitalista
possui em sua essência a: expansão, a exploração e a
expropriação, que promove diferenciadas e particulares formas
de dominação, opressão e de violência. Portanto, as leis
tendenciais que estruturam a dinâmica do capitalismo
apresentam esses elementos, de forma articulada. E por isso,
indicamos que a sociabilidade burguesa possui um caráter
destrutivo.
188
O atual período histórico do capitalismo contemporâneo,
que se estabeleceu sob a hegemonia da chamada financei-
rização, força mecanismos acentuados de transformações nas
relações de produção e de trabalho, assim como
desregulamentações constantes, para garantir o aumento da
produtividade e da intensidade do trabalho. É onde entra a
importância da “reestruturação permanente” e da revolução
digital, com a chamada “indústria 4.0”. Portanto, para viabilizar
altos lucros, exige-se e transfere-se “aos trabalhadores e
trabalhadoras a pressão pela maximização do tempo, pelas altas
taxas de produtividade, pela redução dos custos, como os
relativos à força de trabalho, além de exigir a ‘flexibilização’
crescente dos contratos de trabalho” (Antunes, 2018, p. 37).
Com o desenvolvimento das tecnologias de informação e
comunicação (TIC) e sua expansão pelos grupos monopólicos, há
a incorporação, por meio das TICs, de quase todos os setores
econômicos possíveis. Desde aqueles mais precarizados/
autônomos até aqueles profissionais liberais dos setores médios.
De modo que nos deparamos com uma uberização e
plataformização do trabalho 250 que, ao mesmo tempo que
precariza, garante o controle do trabalho, por meio do Big data,
da “internet das coisas”, dos algoritmos e, por sua vez, garante
o controle também da quantidade de tarefas e do tempo de
trabalho (jornada e produtividade) (Antunes, 2020).
189
meio de plataformas digitais (Abílio; Amorim; Grohmann,
2021, p. 27).
190
de recrutamento e controle da força de trabalho tem se
homogeneizado por meios das novas tecnologias digitais.
O trabalho precário apresenta-se agora como um
determinante necessário da intercompetitividade capitalista 252
mundial, pois antes apresentava-se como uma característica
particular e estrutural da periferia. Ademais, cabe destacar que
a prática social aparenta apresentar que, como na avaliação de
Linden (2017), a “relação de emprego padrão” existente em
alguns países da Europa Ocidental e Nórdica, no período dos
“trinta anos gloriosos do capital”, foi uma “anomalia histórica”.
Porque
191
a possibilidade do pleno emprego em uma sociedade livre
(Mészáros, 2006, p. 31).
192
A colocação dos/as trabalhadores/as em concorrência
direta obedece à lei do valor, a qual postula que o valor de uma
mercadoria seja determinado pela quantidade de trabalho
socialmente necessária à sua produção. Dessa forma, os/as
trabalhadores/as ficam à mercê das relações políticas e sociais
internas que permitam às corporações pagar-lhes, variando de
país para país, salários inferiores aos dos países onde elas estão
sediadas, assim como negar-lhes as despesas de proteção social,
a que elas estão obrigadas nas economias de origem 255 –
situação possível mediante as contrarreformas, desregulamen-
tações e “flexibilizações” do circuito produtivo.
Dessa forma, as possibilidades apresentadas pela
terceirização de depreciar o custo variável da produção, por meio
da utilização do “trabalho informal”, refletem-se de forma
benéfica na valorização do valor (Tavares, 2004, p. 43).
Marx, no capítulo XVIII do livro I, cita uma denúncia de
padeiros londrinos, em 1862, que nos remete à intercon-
corrência capitalista e à submissão dos trabalhadores à
exploração.
193
outros, que são obrigados a aceitar qualquer salário que
possam obter (Marx, 1984, p. 138).
194
antigos meios de produção mediante sua obsolescência frente às
novas máquinas e aos equipamentos mais eficientes.
Dessa forma, reaparecem ou se tornam mais presentes
várias formas de contrato de trabalho, tais como o por
produção/por peça, pela via do trabalho em domicílio/familiar,
em cooperativas ou em microempreendimentos, tal como o
antigo mote do SEBRAE: pequena empresa grande negócio. E,
assim, o que
195
diretamente na realidade nenhuma relação de valor. Não
se trata de medir o valor da peça pelo tempo de trabalho
nela corporificado, mas, ao contrário, de medir o trabalho
despendido pelo trabalhador pelo número de peças que
produziu. No salário por tempo, o trabalho se mede por
sua duração direta; no salário por peça, pelo quantum de
produtos em que o trabalho se condensa durante
determinado período de tempo. O preço do próprio tempo
de trabalho, finalmente, determina-se pela equação: valor
do trabalho de um dia = valor diário da força de trabalho.
O salário por peça é, portanto, apenas uma forma
modificada do salário por tempo (Marx, 1984, p. 140).
196
tempo de trabalho, ela fornece o produto médio e o salário
global pago será o salário médio do ramo de atividade,
segundo, a proporção entre salário e mais-valia permanece
inalterada, pois ao salário individual do trabalhador
isolado corresponde a massa de mais-valia individual-
mente fornecida por ele. Mas a maior liberdade que o
salário por peça oferece à individualidade tende a
desenvolver, por um lado, a individualidade, e com ela o
sentimento de liberdade, a independência e autocontrole
dos trabalhadores; por outro lado, a concorrência entre
eles e de uns contra os outros (Marx, 1984, p. 142- 143).
197
tratações, como é o caso das relações entre médias e grandes
empresas.
198
exploração dos/as trabalhadores/as pelo capital se realiza agora
de muitas maneiras combinadas, inclusive, mediadas pela
exploração do/a trabalhador/a pelo/a trabalhador/a (Marx,
1984). É que na perspectiva neoliberal gerar o seu próprio
emprego ou trabalhar para o/a chefe fora dos limites da
indústria significa ter “autonomia”. “Seja qual for a modalidade
de trabalho, para sobreviver o indivíduo está obrigado a vender
a sua força de trabalho ou o seu trabalho” (Tavares; Lima, 2009,
p. 172).
O capitalismo, em sua configuração contemporânea,
encontrou, na desterritorialização da produção, a possibilidade
de ampliar e transformar o salário por peça em um meio para
mistificar/ocultar/burlar o vínculo trabalhista, como as
possibilidades vistas na “autonomia” no autoemprego do
“microempreendimento”, no trabalho em domicílio, nas
cooperativas e, hoje, no trabalho intermitente e sob demanda na
plataformização do trabalho. A desconcentração da produção
garante às grandes corporações o não pagamento dos encargos
sociais, uma vez que o salário por tempo é substituído pelo
salário por peça como meio de individualizar as relações de
produção. E, dessa forma, implica uma nova forma de contrato
de trabalho e traz uma suposta “autonomia” produtiva do salário
por peça (Soares, 2012; 2016).
199
intensificação e extensão da jornada de trabalho. E a relação de
exploração está velada, porque o/a trabalhador/a ou é dono/a
dos meios de produção ou os aluga, porém, depende de sua força
de trabalho, assim como da matéria-prima e da maior estrutura
de alguma empresa para colocar “seu produto” no mercado ou
entregá-lo.
As estratégias político-ideológicas do capital, a exemplo
do “empreendedorismo” ou do home-office/teletrabalho, incutem
a ideia de que gerar o seu próprio emprego ou trabalhar para
o/a patrão/oa fora dos limites da empresa significa ter
“autonomia” (Soares, 2016).
Portanto, dadas as condições da luta de classes, a
consequência deste processo é a flexibilidade de liberar,
assalariar, usar a força de trabalho por meio de voucher ou
aplicativos (a exemplo do Uber), com a ilusão de autonomia e de
liberdade aos trabalhadores. 258 Ou ainda, explorá-la na
clandestinidade com violações aos direitos humanos.
Dessa forma, faz-se indispensável analisar os caminhos
destas transformações nas relações de produção que repercutem
em mudanças necessariamente nas relações de trabalho,
sempre pela busca incessante de superar as contradições
intrínsecas do modo de produção capitalista. Os resultados são
processos intensificados de precarização que geram condições
de exploração muito próximas às da escravidão contemporânea,
e que se expandem para além das fronteiras das periferias
capitalistas.
200
3.3. Trabalho escravizado contemporâneo ou condições
estruturais da exploração da força de trabalho no Brasil?
201
A reestruturação da produção, por meio da inovação
técnico-científica e reinvenção de formas transitórias ou híbridas
de exploração da força de trabalho, aumentou substancialmente
a intensidade do trabalho e melhorou a produtividade por
pessoa empregada à custa da deterioração do salário dos/as
trabalhadores/as e condições gerais de vida e trabalho.
É necessário ressaltar que as contrarreformas
garantiram o aprofundamento das particularidades históricas
dos países periféricos e dependentes de subordinação da
apropriação do mais-valor à dinâmica da acumulação dos países
hegemônicos, em que a força de trabalho latino-americana é
submetida ao aumento da jornada de trabalho, à intensificação
da força de trabalho e à maior produtividade (mais-valor relativo)
(Valencia, 2013).
E, por isso, reconhecemos que existe um caminho de
permanência e ampliação da escravidão contemporânea com os
atuais retrocessos nesta “agenda” ultraneoliberal, reforçada com
a truculência das burguesias brasileiras, devido às suas
características antinacionais, antissociais, racistas, patriarcais
e fascistizantes. Não significa afirmar que nos países centrais e
hegemônicos não estejam ocorrendo ataques aos direitos
laborais, ao contrário, a ofensiva envolve o conjunto das classes
trabalhadoras em âmbito mundial, por causa da própria
dinâmica capitalista em sua hegemonia financeira.
Como Ursula Huws (2017) aponta sobre a formação do
cibertariado e Ricardo Antunes (2018) alerta-nos acerca da
uberização das relações de trabalho, estas são expressões
internacionais desta política que beneficia o “capitalismo
informacional-digital-financeiro" com o trabalho on-line.
Aparentemente um trabalho “autônomo”, porém, forma-se um
exército de trabalhadores/as intermitentes disponíveis que se
tornam “escravos digitais”, “com contratos ‘zerados’, ‘uberiza-
dos’, ‘pejotizados’, ‘intermitentes’, ‘flexíveis’, os trabalhadores
ainda são obrigados a cumprir ‘metas’, impostas frequentemente
por práticas de assédio capazes de gerar adoecimentos,
depressões e suicídios” (Antunes, 2018, p. 35).
E, ao analisarmos o histórico da realidade brasileira,
identificamos a não garantia dos direitos sociais do trabalho
para os/as trabalhadores/as, quando pensávamos que
202
poderíamos avançar após a Constituição Federal de 1988, fomos
cercados pela política macroeconômica neoliberal, em suas
diversas facetas, ao longo de três décadas.
Frente aos nossos antecedentes, as contrarreformas
trabalhistas de 2017 não geraram grandes enfrentamentos por
parte dos/as trabalhadores/as, porque sua formação e
consolidação sempre foi muito heterogênea, em termos de
condições de trabalho e conquistas de direitos. Como abordado
anteriormente, nos governos de “conciliação de classe” do PT,
instaurou-se uma política de geração de emprego e renda que
mistificou a precarização sob a ideia do “empreendedorismo”,
articulada às recomendações político-econômicas do Banco
Mundial.
A discussão que aqui apresentamos significa que, ao
questionarmos se a escravidão contemporânea seria ou não uma
condição estrutural da exploração da força de trabalho no Brasil,
tentamos elucidar componentes histórico-estruturais que se
engendraram aos processos de modernização burguesa e,
consequentemente, à formação do “mercado de trabalho”
brasileiro consolidando-se em regularidades que mediam as leis
econômico-sociais do capitalismo. É fato que não desconside-
ramos a luta de classes no processo sócio-histórico e não
queremos identificar uma suposta debilidade das classes
trabalhadoras em conquistar direitos e espaço no chamado
“mercado de trabalho formal”. No entanto, existem elementos-
chave que tornam a pressão pesada sobre as classes
trabalhadoras, como Marx identificou no papel da superpopula-
ção relativa e como chamamos atenção com base em Clóvis
Moura na formação de uma superpopulação relativa negra
considerada de “segunda categoria”. Além disso, sabemos como
a “precisão” 260 condiciona o aceite de qualquer proposta para
superar a fome e a miséria.
Sob este ângulo de apreensão, retomamos a discussão da
superexploração da força de trabalho e sua expressão mais
brutal na escravidão contemporânea apresentando a situação
diversificada dos/as trabalhadores/as, em diferentes regiões do
nosso país, e como a desigualdade regional afeta e explica alguns
203
dados socioeconômicos que são fundamentais para analisarmos
a escravidão contemporânea e a superexploração da força de
trabalho.
204
de acordo com a TMD, o desdobramento da categoria da
superexploração passa pela reflexão em torno do fato de
que a força de trabalho possui um valor diário e um valor
total, os quais se encontram imbricados com as categorias
relacionais: fundo de consumo e fundo de vida, que são
suas categorias mediadoras. [...] Fundo de consumo e
fundo de vida expressam, dialeticamente, a transubstan-
ciação do valor diário e do valor total. Uma insuficiência
do Fundo de consumo provocada pelo rebaixamento do
pagamento da força de trabalho influi negativamente sobre
o fundo de vida. E os ataques atentando contra o fundo de
vida obrigam ao aumento dos meios de subsistência para
restaurá-lo, mas somente até um limite, a partir do qual o
desgaste físico psíquico só poderá ser regenerado mediante
repouso, não bastando mais compensá-lo com o
incremento de valores de uso acessados (Luce, 2018, p.
158-159).
205
força de trabalho, tendo em vista este conjunto de novas leis que
fere a dignidade do trabalho e que retira ao máximo a regulação
social frente à exploração da força de trabalho. A legalização da
terceirização e as “novas” formas de contrato regulamentadas
nas novas leis trabalhistas reduzem a garantia dos direitos
laborais e ampliam a precarização, a degradância e as jornadas
exaustivas. Observadas, principalmente, nas ocupações de
“empreendedores/as” nas plataformas digitais e aplicativos 262
como uma alternativa ao desemprego. 263
A necessidade de diminuir os custos com o capital
constante faz com que as corporações retirem boa parte dos
insumos necessários à produção e terceirizem por meio de
vínculos com empresas menores, cooperativas, parcerias com
agricultura familiar ou mesmo o trabalho individual em
domicílio no “microempreendedorismo individual”.
Como já apresentado em Soares (2019), estamos em uma
jornada de grandes perdas de direitos sociais do trabalho, que
traçam uma linha tênue entre o trabalho escravizado
contemporâneo, conforme tipificação do artigo 149 do Código
Penal Brasileiro, e as condições atuais de trabalho, que podem
engendrar uma predominante naturalização das formas de
exploração do trabalho escravizado contemporâneo. Não à toa as
persistentes tentativas da Bancada Ruralista em retirar as
tipificações dada pela Lei 10.803 de 2003.
O contexto mundial é de uma contrarrevolução burguesa
explícita na sua inspiração antissocial, que impulsiona a
permanência da política macroeconômica neoliberal e uma
grandiosa “reestruturação permanente” do capital. 264
206
Apesar de termos a clareza de que a “agenda” atual da
política macroeconômica neoliberal está sendo implementada
em âmbito mundial, inserida neste longo período histórico
contrarrevolucionário, nosso interesse é recuperar o debate
sobre as especificidades da realidade brasileira. Nesse sentido,
identificamos como na reciclagem das formas transitórias ou
híbridas de exploração da força de trabalho veremos as
expressões mais nítidas da superexploração da força de
trabalho, no sentido da violação do fundo de consumo e do fundo
de vida. Isto significa que na jornada exaustiva, na servidão por
dívida e nas condições degradantes combinam-se as
expropriações do trabalho necessário e da expectativa de vida
dos/as trabalhadores/as. Portanto, verificamos condições
extremas as quais trabalhadores/as são submetidos/as, porque
a escravidão contemporânea, geralmente, compreende além da
207
se pensamos a classe “como processo e relação, e não
como um lugar estrutural, não há como fugir ao fato de
que, mesmo sem querer demonstrar uma evolução única
e direta entre a escravidão urbana e a formação da classe
trabalhadora assalariada, não é possível explicar o
processo de formação da classe instituindo um marco
inaugural em 1888, ou recuando no tempo apenas para
buscar experiências de trabalhadores livres (Mattos, 2008,
p. 21).
208
Bambirra, para quem não faz sentido falar em dependência
colonial. Situação colonial e situação de dependência são
realidades distintas” (Luce, 2018, p. 49). À vista disso,
reiteramos que
209
iii) a proximidade das atuais condições de trabalho, pós-
contrarreforma trabalhista, com a escravidão contempo-
rânea não significam a falta de desenvolvimento
capitalista, na verdade expressam a particularidade
latino-americana e nossas especificidades históricas,
revelando a forma como as forças burguesas
dependentes pressionam o aumento da taxa de
exploração por meio de inúmeras “velhas” e “novas”
táticas para conseguirem auferir uma quantidade
suficiente de riqueza para garantir sua manutenção e
seus superprivilégios, mesmo diante da necessidade de
compensar a transferência de valor como intercâmbio
desigual dentro do mercado mundial.
A apreensão da superexploração da força de trabalho e
sua relação com a escravidão contemporânea, como já discutido,
não tem o objetivo de caracterizar a superexploração como forma
“pré-capitalista”, como se o “arcaico” permanecesse como mero
produto da escravidão colonial. Nossa busca para recuperar
elementos histórico-estruturais é justamente para ter a
possibilidade de identificar mediações que vão absorver as leis
econômico-sociais do capitalismo. Ou seja, que dão cores e
sentidos específicos e únicos a como se engendraram e se
realizam as leis tendenciais do capitalismo, do mesmo modo
como temos uma ampla discussão sobre as particularidades da
dependência latino-americana que necessita ser recuperada.
Em nossa análise, a escravidão contemporânea
acompanha e é produto das diversas expressões das formas
transitórias ou híbridas de exploração da força de trabalho
estabelecidas a partir do processo de mercantilização da força
de trabalho, no início do “escravismo tardio” (1851-1888).
Concomitante ao processo da entrada do nosso país na divisão
internacional do trabalho com os vínculos da dependência. Essa
integração à dinâmica do mercado mundial capitalista se
fortalece após o segundo pós-guerra, quando houve uma
integração monopólica sob a soberania norte-americana
(Bambirra, 2019), como discutido anteriormente.
A existência e permanência dessas formas transitórias ou
híbridas de exploração da força de trabalho, que são mais
presentes em determinadas regiões do nosso país, acompanham
210
os determinantes da dependência tal como a superexploração da
força de trabalho, do mesmo modo que os elementos histórico-
estruturais da escravidão colonial e do patriarcado vistos nas
ocupações e profissões em que a classe trabalhadora negra se
inseriu, a exemplo da permanência das mulheres negras
cuidando da reprodução social das famílias brancas abastadas,
conforme citado no capítulo II, quando resgatamos Florestan
Fernandes, Clóvis Moura, Lélia Gonzalez e Vânia Bambirra.
Sob este ângulo de análise, ressaltamos que os elementos
histórico-estruturais da escravidão colonial, mediados nas
particularidades da dependência, circunscreveram o modo como
negros e negras serviram como uma “reserva suplementar” ou
de “segunda categoria”, como Clóvis Moura analisou. Não à toa
os dados do mundo do trabalho demonstram que negros e
negras permanecem majoritariamente como as franjas mais mal
remuneradas das classes trabalhadoras brasileiras e são os/as
mais encontrados/as nas operações de resgate da escravidão
contemporânea.
Cabe destacarmos que neste processo de inserção na
dinâmica da divisão internacional do trabalho, do mesmo modo
que a mercantilização da força de trabalho carrega esses
elementos específicos da formação econômico-social e da
dependência, tais determinantes serão vistos na conformação
das classes sociais e consequentemente na esfera estatal,
cristalizando o modo de comando das burguesias locais.
Posto isto, interessa-nos apresentar alguns dados
relevantes sobre as condições socioeconômicas de algumas
regiões brasileiras para a discussão desses elementos de
ruptura, de continuidade, reinvenção e expansão de formas
brutais de exploração e expropriação, vistas na escravidão
contemporânea.
Nesse sentido, para explicar também a predominância da
escravidão contemporânea em determinadas regiões e setores
produtivos, precisamos salientar que existe em nossa formação
econômico-social uma unidade em nossa diversidade regional,
resultante de como o capitalismo se consolidou modernizando
locais estratégicos e necessários, amoldando determinados
setores produtivos às necessidades das burguesias locais e
internacionais.
211
Desse modo, destacamos que não é coincidência que a
expectativa de vida no Maranhão seja uma das mais baixas do
nosso país (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística,
2020b), e que o estado maranhense é reconhecidamente o local
de origem-natalidade com maior número de resgatados/as da
escravidão contemporânea no Brasil e dentro da região Nordeste
é o que tem o maior número de resgatados/as ‒ de 1995 a 2021,
foram 3.474 pessoas resgatadas de formas contemporâneas de
escravização (Radar SIT, 2021).
A pesquisa supracitada da OIT (Organização
Internacional do Trabalho, 2018a), realizada no Maranhão,
estimou que, em 2017, em 16,2% dos domicílios visitados, havia
pelo menos uma pessoa de 18 anos ou mais submetida à
escravidão contemporânea. Dessa parcela, 6,2% dos domicílios
possuíam um indivíduo submetido ao trabalho forçado, 10,4%
em condições degradantes, 3,8% em jornada exaustiva e 1,6%
sob servidão por dívida. Especificamente, relacionado ao
recrutamento
212
O mapa dos conflitos ambientais no Brasil, por exemplo,
demonstra conflitos socioambientais que envolvem TE
[trabalho escravizado] na exploração de povos indígenas
no Amazonas, nos sistemas de precarização do trabalho de
marisqueiros e pescadores artesanais no Ceará, no
agronegócio da soja no Maranhão e Mato Grosso, na
expulsão de trabalhadores de suas terras no Pará para a
construção de estradas de ferro, na coação de agricultores
em fazendas do Acre, na escravidão por dívida para a
produção da indústria do fumo no Sul, na produção de
cana em Pernambuco e Rio de Janeiro, entre outros (Leão,
2016, p. 3932).
213
tonelada de cana cortada e baixa cobertura de direitos
trabalhistas e previdenciários (Leão, 2016, p. 3933).
214
contabiliza 8 mortes a cada 100 mil vínculos de emprego. No ano
de 2020, no Brasil, os acidentes de trabalho graves notificados
ao Ministério da Saúde se elevaram em 40%, além de solicitações
para auxílio-doença por ansiedade, estresse, depressão, dentre
outros problemas que acometem a saúde mental que subiram
em 30% (Organização Internacional do Trabalho, 2021).
Ainda nesse sentido, há uma pesquisa realizada pela OIT
com a OMS que apresenta que longas jornadas de trabalho
aumentam o número de mortes por doenças cardiovasculares.
Entre 2000 e 2016, em âmbito mundial, houve um aumento de
29% no número de pessoas que morreram por doenças
cardíacas e derrames. O ponto em comum, em todas estas
mortes, foi o tempo de jornada semanal exceder 55 horas (Pega
et al., 2021).
As jornadas de trabalho das pessoas resgatadas
geralmente ultrapassam as 44 horas regulamentadas, e o que
cada vez mais se constata é que longas jornadas laborais e
ausência de descanso, que se configuram na tipificação da
jornada exaustiva, tem se tornado um lugar comum na vida das
classes trabalhadoras. Ainda que vejamos nas estatísticas o
aumento de pessoas subocupadas por insuficiência de horas
trabalhadas, 266 vemos por outro lado aquelas pessoas que estão
ocupadas com longas jornadas e com ausência de repouso
suficiente para recomposição das suas energias físicas e
mentais. É importante ressaltar uma lei econômico-social,
analisada por Marx, já mencionada aqui, que é a de como o
sobretrabalho de parte ocupada das classes trabalhadoras
aumenta as fileiras da superpopulação relativa.
Mesmo que a jornada exaustiva seja uma das tipificações
da escravidão contemporânea, conforme o artigo 149 do CPB,
justamente porque se constata a violação à dignidade humana
215
devido ao prejuízo à vida, ainda é uma tipificação em disputa
não absorvida majoritariamente pelo judiciário, 267
216
A naturalização do vilipêndio do trabalho para as classes
trabalhadoras, principalmente as racializadas e regionalizadas
como o caso dos/as nordestinos/as, com o prolongamento das
jornadas de trabalho, pouco ou inexistente descanso, jornadas
noturnas sem descanso semanal e dormir no trabalho sem
qualquer aparato 268 são recorrentes nas fiscalizações realizadas
pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel.
Salários que não possuem correspondência com o valor
histórico e moral das classes trabalhadoras, incapazes de
garantir direitos fundamentais e que motivam os trabalhadores/
as a dormirem ou na rua ou no próprio local de trabalho para
economizarem e terem condições de subsistir. Foi o que
respondeu o gerente de uma empresa, em uma operação de
resgate na cidade do Rio de Janeiro, em que as pessoas
resgatadas da escravidão contemporânea preferiram dormir na
empresa para economizar, e por serem migrantes nordestinas
tinham que economizar para voltar para casa.
Abrindo um parêntese, ainda que estejamos dando
ênfase a esta tipificação da jornada exaustiva da escravidão
contemporânea, salientamos o movimento aprofundado pela
contrarreforma trabalhista de 2017 que é a “despadronização da
jornada de trabalho” (Gibb, 2017). Essa despadronização
demonstra uma maior heterogeneidade e nebulosidade na
duração das jornadas laborais e no tempo disponível para o
trabalho, pois parcelas determinadas de trabalhadores/as –
uma maioria jovem e com baixa escolaridade - estão “em faixas
mais extremas de tempo dedicado ao trabalho, por estarem em
atividades por conta própria e na subocupação por horas
insuficientes” (Krein; Abílio; Borsari, 2021, p. 265). Como
podemos ver, de outro modo, aqueles/as dos setores mais
escolarizados e com maiores rendimentos, que tiveram um
pequeno aumento da jornada média de trabalho. Krein, Abílio e
Borsari (2021, p. 265-266) acreditam que os últimos, que,
majoritariamente, estão na região sudeste, “tiveram que
trabalhar mais para manter o seu trabalho por exigências
217
crescentes impostas pelas modernas ferramentas de gestão na
perspectiva de atingir as metas e, também, pelo aumento da
concorrência por bons empregos”.
Retomando à análise do tempo de disponibilidade das
classes trabalhadoras, que se insere no debate das jornadas
exaustivas, com relevo à racialização e às opressões de gênero.
Vimos que as mulheres negras são maioria na condição de
subocupadas “por horas insuficientes, estão em ocupações mais
precárias [...]. Ao mesmo tempo, é possível identificar um
aumento da jornada em alguns setores mais precários, tais como
trabalhadores domésticos sem carteira e trabalhadores do setor
de transporte (‘uberização’)” (Krein; Abílio; Borsari, 2021, p.
278).
Nesse sentido, que destacamos, o caso de três
trabalhadoras domésticas negras resgatadas na capital do
estado do Rio de Janeiro, no ano de 2021. Primeiro, a
trabalhadora A, uma idosa de 63 anos, que viveu sob condições
de escravização contemporânea por 38 anos, por pelo menos
duas gerações da família da patroa, sem qualquer tipo de
remuneração, sem quaisquer direitos trabalhistas assegurados.
A idosa cumpria jornadas de trabalho que ultrapassavam 11
horas diárias, e o dinheiro que obtinha catando latinhas e
vendendo ao ferro-velho era retido pela empregadora, porque,
segundo esta, a trabalhadora “não conseguia responder por si”.
Assim como foi apropriado, também pela patroa, o valor de uma
parcela do auxílio emergencial, a que a trabalhadora A tinha
direito, sem que ela tivesse conhecimento, pois foi enganada de
que não tinha conseguido ter acesso ao direito porque “seus
documentos eram velhos demais e estavam vencidos”. 269
A trabalhadora não recebia salário, porque era “quase da
família”, de acordo com a empregadora, uma vez que recebia
moradia e alimentação. Ademais, dormia em um quartinho
desprovido de energia elétrica, com as paredes destruídas pelo
mofo, seus pertences ficavam amontoados em uma caixa no
chão, e sua referência de tempo dependia da luminosidade da
218
luz solar. Sua higiene pessoal era realizada em um precário
banheiro com o vaso sanitário sem assento. De acordo com a
auditoria fiscal do trabalho, o quadro laboral da trabalhadora
era ausente de férias, folgas e descansos, inviabilizando a
recomposição da energia e comprometendo a saúde física e
mental da trabalhadora. O Grupo Especial de Fiscalização Móvel
constatou a situação de jornada exaustiva e condições
degradantes, duas das tipificações da escravização contempo-
rânea, de acordo com o artigo 149 do Código Penal Brasileiro.
O segundo caso, também na zona norte da capital
fluminense, da Trabalhadora B de 52 anos de idade, em cujo
resgate foram constatadas violações de vários direitos
trabalhistas, como os artigos: 2º, 12, 15, 16, 19, 32, 35 da Lei
Complementar 150, de 2015. Importante destacar que o
descumprimento destes artigos se refere, preponderantemente,
à jornada exaustiva e à impossibilidade de descanso da
trabalhadora, assim como a não garantia de proteção social.
Porém, como no caso anterior, não aconteceram apenas
violações à legislação trabalhista; o que ocorreu foi a constatação
de mais um caso de uma trabalhadora doméstica em condições
de escravidão contemporânea. Porque, desde 1989, quando foi
admitida pela família, a trabalhadora nunca recebeu salário,
além disso, sobreviveu em condições degradantes, pois não
possuía cama e todos seus pertences ficavam em um armário
pequeno no banheiro. Desse modo, não teve, ao longo dessas
três décadas, um espaço seu para recompor suas energias.
Nessas circunstâncias, foram mais de 30 anos de jornadas
exaustivas, sem direito às férias e ao descanso semanal
remunerado. Posto que a trabalhadora B ficava à disposição 24
horas por dia cuidando da idosa, a mãe da empregadora, além
de ter cuidado de toda a reprodução social de todas as outras
pessoas da família. Importa salientarmos que
219
“econômica” e remunerada com salários em dinheiro. A
reprodução foi relegada à “família”, onde foi feminilizada e
sentimentalizada, definida como “cuidado” e[m] oposição a
“trabalho”, realizada por “amor” em oposição ao dinheiro
(Arruzza; Bhattacharya; Fraser, 2019, p. 108-109).
220
condição de semiescravização ou escravidão contemporânea
para garantir que a mulher branca venda sua força de trabalho
fora do âmbito privado ou não precise se ocupar plenamente da
reprodução social da família. Ademais, como Vânia Bambirra
salienta
270 A denúncia pode ser realizada por meio de ligação para a central de
atendimento do Disque Direitos Humanos - Disque 100, que “é um serviço
disseminação de informações sobre direitos de grupos vulneráveis e de
denúncias de violações de direitos humanos. [...] Qualquer pessoa pode
reportar alguma notícia de fato relacionada a violações de direitos humanos,
da qual seja vítima ou tenha conhecimento”. Para mais informações acesse:
https://www.gov.br/pt-br/servicos/denunciar-violacao-de-direitos-
humanos Acesso em 01 maio 2022.
221
No caso das três trabalhadoras, os períodos que deveriam
ser dedicados ao repouso e recomposição das energias gastas ao
longo da jornada laboral, não tinham condições compatíveis. A
trabalhadora A tinha um quarto, mas que não possuía energia
elétrica, a trabalhadora B praticamente não conseguia dormir,
porque seu colchonete ficava logo ao lado da cama da mãe da
empregadora, que acordava várias vezes durante à noite para ir
ao banheiro e a trabalhadora tinha que acompanhar, já que a
idosa tinha Alzheimer. Já a trabalhadora C dormia nas
dependências da área de serviço e, conforme o relatório de
fiscalização, ficava à disposição 24 horas da patroa.
Esses três casos trazem à luz uma série de reflexões, não
apenas sobre o que se apresenta na aparência, sobre o caldo
cultural escravocrata na sociedade brasileira, mas também
referente à forma como as particularidades do capitalismo
dependente e as especificidades da formação econômico-social
brasileira se circunscrevem mediadas pelos elementos dinâmico-
conjunturais do capitalismo contemporâneo.
Destacamos, em primeiro lugar, que, em um país onde
uma das marcas estruturantes é a superexploração da força de
trabalho do conjunto das classes trabalhadoras, quando estas
classes finalmente conseguem a possibilidade de acesso a bens
– que antes eram suntuários, como os eletrodomésticos, e agora
são considerados como bens necessários, porque foram
incorporados ao valor histórico e moral das classes trabalha-
doras brasileiras –, não significa a garantia de acessá-los, porque
não houve o acompanhamento do aumento salarial. Sendo
assim, o acesso a esses bens, que facilitam a reprodução social,
ocorre pela via do endividamento (Luce, 2013). Vânia Bambirra
(1972) fazia referência, para diminuir a carga do trabalho
doméstico, à necessidade de industrializarmos o trabalho
doméstico e o socializarmos por meio da intervenção estatal.
Por isso, em segundo lugar, cabe a análise acerca da
inexistência da responsabilidade estatal frente à reprodução
social, a exemplo do número irrisório de creches, asilos públicos
e restaurantes populares; do sucateamento da assistência
social; da privatização da educação e da previdência social
consequente das contrarreformas que aprofundam as
222
expropriações de direitos como expressão das políticas
macroeconômicas ultraneoliberais.
É necessário salientar que a intervenção estatal, na
realidade brasileira, nunca se configurou como a de um “Estado
de Bem-estar Social”, justamente acompanhando as
especificidades da nossa formação econômico-social dentro da
divisão internacional do trabalho, inclusive desconsiderando as
lutas feministas sobre a necessidade de intervenção sob a
reprodução social, que se coloca para o conjunto das classes
trabalhadoras. Portanto,
223
foram tão arduamente conquistados. Na verdade, as conquistas
nas legislações (Lei n. 10.208/2001, a Lei n. 11.324/2006,
Emenda Constitucional n. 72/2013 e a Lei Complementar
150/2015) demonstram que foram incapazes
224
manifestações deste período histórico do capitalismo
contemporâneo, a exploração ocorre sob estratégias político-
pedagógicas de uma falsa ideia de liberdade, que na verdade
esconde a perversidade das relações de trabalho por meio do
controle algorítmico.
Frente a esta dinâmica do capitalismo contemporâneo
com o avanço do “trabalho digital”, 271 destacamos que no ano de
2020, uma startup 272 oferecia serviços de faxinas pelo valor de
R$19,90, situação amplamente divulgada, que ocasionou
grande comoção nas redes sociais. Porque se uma trabalhadora
recebe o valor de R$19,90 por faxina executada, como proposto
pela startup, para ela alcançar a remuneração equivalente ao
salário-mínimo nominal (R$1.100), a trabalhadora precisaria
realizar uma média de 55 faxinas durante o mês. Ao
compararmos com o salário-mínimo necessário, R$5.800,98
(Dieese, dez./2021), essa trabalhadora precisaria realizar,
aproximadamente, 291,5 faxinas no mês, condição
humanamente impossível.
Soma-se a isto o fato de que essas trabalhadoras
geralmente precisam realizar tarefas além das previstas porque,
dentro desses aplicativos, suas notas variam de acordo com seus
225
desempenhos, e quando a nota cai muito, elas ficam sem serviço
e sem dinheiro (Costa, 2021).
“Uberizada”, reconhecida agora como “empreendedora”,
porém aprisionada” aos componentes histórico-estruturais da
nossa formação econômico-social, portanto, a realidade das
trabalhadoras domésticas, assim como a de outros/as
trabalhadores/as, tende a ser condicionada a jornadas
exaustivas. Porque, neste “novo” condicionamento promovido
por meio do controle algorítmico, quantas horas diárias seriam
necessárias para efetivar as 291,5 faxinas no mês? Pensando em
uma média de 9 faxinas por dia, trabalhando de segunda a
segunda. Quando comparado ao salário-mínimo, seria uma
média de quase duas faxinas (1,8) por dia, mas o recebimento
de um salário-mínimo nominal é incapaz de garantir o valor
histórico e moral, antes disso, é inviável para garantir a
segurança alimentar e nutricional da trabalhadora e da sua
família.
No atual período histórico do capitalismo contemporâneo
de contrarrevolução prolongada, ultraneoliberal e fascistizante,
o “empreendedorismo” mistifica a precarização do trabalho ao se
apresentar como solução, culpabilizando a trabalhadora, que se
torna a responsável pelo seu “fracasso”, enquanto o Estado se
desresponsabiliza, cada vez mais, da garantia dos direitos
mínimos das classes trabalhadoras.
Nesse sentido, é importante lembrar que o atual quadro
pandêmico agravou uma crise econômica que já estava em
curso, e, há três décadas no Brasil, é implementada a
desconstrução dos direitos laborais. Significando que na
expropriação de direitos e no rebaixamento salarial, efetiva-se
um maior descompasso entre o valor da força de trabalho e sua
remuneração.
As expropriações de direitos e de maior quantum do valor
do fundo de consumo das classes trabalhadoras se realizam por
meio das desregulamentações trabalhistas e privatizações,
apresentadas como uma “agenda” de “ajuste fiscal” com o
objetivo de garantir a existência de uma maior apropriação de
mais-valor, ou seja, para dar concretude a títulos de direito de
apropriação, porque a multiplicação destes títulos é mais célere
do que a do capital produtivo.
226
Dessa forma, devemos garantir a apreensão de que as
opressões estruturam e mediatizam as formações econômico-
sociais, garantindo o sustentáculo do capitalismo. Assim como
as opressões, mediadas pelos elementos dinâmico-conjunturais,
asseguram o rebaixamento geral da força de trabalho, pela
existência de uma superpopulação relativa de “segunda
categoria”, em uma realidade que já está condicionada à
superexploração mediante as transferências de valor como
intercâmbio desigual e envolta na condução e manutenção de
superprivilégios das burguesias brasileiras, consolidada no
caráter autocrático do nosso Estado de expressões fascistas.
227
de um total de 15.340. 274 A maioria dos/as 38.537
resgatados/as possuía entre 18 e 34 anos (23.281), estudou até
o 5º ano incompleto (36,7%) ou era analfabeta (29,6%),
nordestina (42,7%) e 94,4% eram homens.
Assim como o racismo estrutura o capitalismo, ele é
constitutivo da nossa formação econômico-social, engendrando
especificidades nas condições laborais em nosso “mercado de
trabalho”. A precariedade é uma das suas expressões notáveis
ao longo da história social do trabalho brasileiro, sendo inclusive
primordial nas cadeias produtivas, dividindo espaço com
ocupações com vínculos empregatícios e direitos sociais do
trabalho. Nesse sentido, no processo de mercantilização da força
de trabalho, analisamos que as formas transitórias ou híbridas
de exploração dos/as trabalhadores/as se reinventaram
tomando a forma da informalidade e da precariedade do
trabalho, mediados por elementos histórico-estruturais da
escravidão colonial e do patriarcado.
Ademais, faz-se necessário destacar as particularidades
da dependência latino-americana no processo de inserção na
divisão internacional do trabalho (década de 1840/50) e na
integração monopólica, no pós-Segunda Guerra Mundial,
resultando no papel do nosso país nas cadeias produtivas, e em
como se estabeleceram as nossas classes sociais e suas disputas
intra e interclassistas. 275 Análise fundamental para entender a
condição das classes trabalhadoras e, consequentemente, os
direitos laborais.
Retomando a situação atual, vimos como resultado do
período pandêmico, de abril a dezembro de 2020, segundo a
Secretaria Especial de Previdência e Trabalho (Brasil, 2020a),
que 8,7 milhões de trabalhadores/as tiveram seus contratos
suspensos. E, de janeiro a novembro de 2020, houve 13,6
milhões de desligamentos de contratos celetistas. Um cenário
devastador, em que tínhamos, antes da pandemia, 41% da
274 Esses dados foram cedidos, gentilmente, pelo Frei Xavier Plassat da
228
População Economicamente Ativa ocupada na informalidade, e,
de acordo com dados do IBGE do trimestre encerrado em maio
de 2020, passamos para 36,9%, 276 devido à perda de 5 milhões
de ocupações informais, impossibilitadas de existir neste
período. 277
Acrescentamos que dentre as 8 milhões de pessoas que
perderam o emprego, entre o 1º e o 2º trimestre de 2020, 71%
eram negros/as, ou seja, 6,3 milhões. “Para os homens negros,
a taxa de desocupação passou de 11,8% para 14,0%, do primeiro
para o segundo trimestre de 2020; para os não negros, de 8,5%
para 9,5%; e para as mulheres negras, de 17,3% para 18,2%, no
mesmo período” (Departamento Intersindical de Estatística e
Estudos Socioeconômico, 2020, p. 3).
Como alternativa à sobrevivência para aqueles/as que
não conseguiram acessar o auxílio emergencial do governo,
identificou-se, por exemplo, o expressivo aumento de 300% do
cadastro de novos/as entregadores/as na empresa Rappi, nos
primeiros meses de pandemia. 278 As condições de trabalho
dos/as entregadores/as, nesta pandemia, são emblemáticas dos
retrocessos dos direitos trabalhistas, que chegam a um patamar
de generalização de condições degradantes e de jornadas
exaustivas.
Dessa forma, o efeito das novas tecnologias e
contrarreformas, sobre a situação laboral dos/as entregado-
res/as, deve ser apreendido mediado pelas particularidades da
dependência latino-americana e pelas especificidades sócio-
históricas da mercantilização da força de trabalho brasileira.
Identificável por meio da análise de elementos históricos com
relevantes consequências para a divisão social do trabalho, na
passagem da formação econômico-social colonial escravocrata
ao capitalismo dependente. Como discutimos no capítulo II,
pode-se constatar, a partir da segunda metade do século XIX, a
transição da escravidão, com o convívio entre livres, libertos/as
e escravizados/as, até a generalização do trabalho livre,
229
engendraram-se formas transitórias ou híbridas de exploração
que se renovam até hoje.
Sob este ângulo de análise, evidenciamos a situação
dos/as escravizados/as nas cidades e suas funções ‒ durante
esse período de transição ‒, de modo que, a maioria dos/as
negros/as permaneceram prisioneiros/as às funções mais
subalternizadas. Dentre essas funções, ressaltamos aquelas em
que vemos linhas de continuidade com o tema em questão, como
os: “1) - Carregadores de liteiras; [...] 3) - Vendedores
ambulantes; 4) - Carregadores de pianos, pipas e outros objetos
[...]” (Moura, 1983, p. 13). Ressaltamos a discussão realizada
anteriormente, quando Clóvis Moura (2020a) salienta como o
eugenismo e as políticas migratórias, durante o período do
“escravismo tardio”, formaram uma força de trabalho imigrante
europeia qualificada e condicionaram negros e negras a
permanecerem nas ocupações anteriores, ou os/as submeteram
à posição de “reserva de segunda categoria do exército
industrial”.
Nessa linha de investigação, interessa-nos a ênfase no
trabalho dos/as escravizados/as de ganho das cidades e os/as
libertos/as, principalmente os carregadores, no serviço de
transporte. Grande parte dos/as ganhadores/as utilizavam
parte do dinheiro arrecadado para obter sua alforria. 279 O
historiador Paulo Terra (2010), em uma análise sobre a relação
entre escravizados e livres na cidade do Rio de Janeiro, no século
XIX, alerta-nos sobre o processo de hierarquização no setor, e
nós ressaltamos a racialização da mercantilização da força de
trabalho, que segregou os/as libertos/as e os trabalhadores
livres brancos. Destaca-se que “apesar de transportarem
praticamente as mesmas cargas, o que os diferenciava e
hierarquizava era a forma de conduzi-las. A dificuldade de se
conduzir mercadorias nos ombros ou sobre as cabeças era com
certeza maior do que transportá-las em veículos” (Terra, 2010,
p. 77).
seus senhores e com o dinheiro que ficavam utilizavam para pagar sua
alforria. Dessa forma, “os carregadores [das] minas de café do Rio de Janeiro
adiantavam dinheiro para alforria [uns] dos outros, sendo reembolsados por
prestações mensais” (Cunha apud Terra, 2012, p. 32).
230
A inviabilidade financeira de obter seus meios de
condução para transportar as mercadorias, os direcionava para
o transporte de cargas sem nenhum meio que lhes facilitasse.
Nessa direção, as formas transitórias ou híbridas de exploração
do período do “escravismo tardio” amoldaram-se com novas
roupagens, porque aqueles trabalhadores, que eram brancos e
livres, “parecem ter reservado para si essa parcela do setor de
transporte, representando a maioria dos condutores de veículos,
como as carroças. O transporte manual de cargas e pessoas, por
sua vez, estava a cargo principalmente dos escravizados e
libertos, os carregadores” (Terra, 2010, p. 78). Dessa maneira,
os/as escravizados/as de ganho e os/as libertos/as, que foram
identificados como “ganhadores, desenvolviam as mais diversas
funções possíveis no meio urbano”. As atividades de serventes
de obras e ganhos com cesto eram exercidas apenas pelos
escravizados. “Nesta, os escravos exerciam a função de
carregadores responsáveis pelo transporte de cargas leves,
pacotes e até mesmo móveis” (Terra, 2010, p. 63-64).
O processo de construção de uma “disciplina” da força de
trabalho ‒ com a imigração europeia articulada à política
eugênica do Estado brasileiro 280 e à inexistência de uma política
de reparação aos/às negros/as, além da malfadada Lei de
Terras, em 1850 ‒ racializou ocupações e profissões. Assim
sendo, no decorrer de uma longa jornada de lutas sociais, 281 as
classes dominantes, por meio do estabelecimento do Estado
autocrático-burguês brasileiro, sempre buscaram a típica cisão
das classes trabalhadoras, ao atender às demandas dos setores
que eram vitais ao ciclo do capital e/ou inevitáveis de serem
modernizados.
Ademais, aos/às negros/as houve a repressão severa e a
promoção do rebaixamento da sua remuneração, porque foram
lançados/as na fileira de “segunda categoria” do desemprego, e
seus salários eram rebaixados por meio de políticas eugênicas,
conforme abordamos no capítulo anterior.
231
Como supracitado, os dados sobre a escravidão
contemporânea são alguns dos indicadores, que demonstram o
lugar dos/as negros/as na divisão social do trabalho e, dessa
maneira, sua subalternidade e criminalização nas fileiras da
superpopulação relativa. Exacerbando a condição estrutural e
sistemática da superexploração da força de trabalho latino-
americana, que compensa as transferências de valor como
intercâmbio desigual entre as economias dependentes e as
hegemônicas imperialistas.
É nesse sentido, no que se refere à localização da nossa
formação econômico-social no mercado mundial e, por
conseguinte, à apreensão da mercantilização da força de
trabalho ‒ no convívio inicial, durante o “escravismo tardio”,
entre escravizados/as, alforriados/as e livres ‒, que
identificamos linhas de continuidade e ruptura na
hierarquização e no “perfil” dos/as trabalhadores/as, no caso os
entregadores/as, no cenário atual.
Em meados do século XIX, notava-se que “as funções
realizadas pelas carroças eram praticamente as mesmas das
realizadas pelos carregadores negros.” Paulo Terra destaca que
entre os carregadores que possuíam carroças a “maioria
esmagadora era de trabalhadores livres, muitos dos quais
imigrantes portugueses, embora existissem alguns poucos
cativos nessa função” (Terra, 2012, p. 34).
A racialização da divisão social do trabalho permitiu a
permanência da condição de semiescravidão para a classe
trabalhadora negra em formação, estabelecendo especificidades
em nossa precariedade e informalidade do “mercado de
trabalho”. Dessa forma, percebemos uma aparente permanência
de uma hierarquia, tal como existia entre os carroceiros e
carregadores, se relacionarmos com um “perfil” predominante de
hoje, entre os/as entregadores nas plataformas digitais e
aplicativos. Porque existem aqueles tradicionais motociclistas
convivendo com os/as entregadores/as ciclistas, com os/as de
patinete e até mesmo aqueles/as que entregam a pé. Conforme
destaca a pesquisa da Aliança Bike (Associação Brasileira do
Setor de Bicicletas, 2019), na cidade de São Paulo, a maioria é
negra (71%) dos/as entregadores/as ciclistas que trabalham
para as plataformas digitais e aplicativos.
232
A plataformização do trabalho, 282 e, por sua vez, do setor
de entregas tem crescido em ritmo acelerado, e tem empurrado
milhares de desempregados/as para essas formas de venda da
força de trabalho dada a falta de oportunidades de emprego e
outras ocupações. E, como apontado acima, a taxa de
desemprego, historicamente, sempre foi maior para as pessoas
negras do que para as brancas.
Em meio à incessante inovação tecnológica, as
especificidades do nosso mercado de trabalho mediam este
processo nos dando a impressão de que os supracitados
componentes histórico-estruturais permeiam o avanço das
forças produtivas. Hoje, com motos, bicicletas e o controle
algorítmico, para a gestão e controle da força de trabalho, nota-
se que aqueles/as disponíveis para fazer entregas a pé ou de
bicicleta se assemelham aos ganhadores e às formas transitórias
ou híbridas de exploração da força de trabalho, reconhecidas no
mercado de trabalho como informais.
Na empresa Rappi, com um “perfil” semelhante, os/as
entregadores/as realizam entregas das mais variadas espécies,
compram a bag e a jaqueta, 283 se endividam e buscam, por meio
de jornadas exaustivas, subir ao topo da hierarquia do aplicativo
(nível 1 ao 4). Porém, por esta via, dificilmente alcançarão o nível
dos/as shoppers, que são trabalhadores/as celetistas, até
porque não aparece como uma possibilidade dentro da
gamificação 284 do processo de trabalho.
233
Cabe recuperar a análise do item 3.2, num nível mais
abstrato, na apreensão do capitalismo contemporâneo e sua
perene reestruturação, que impacta de forma deletéria as
condições de trabalho e, consequentemente, a vida das classes
trabalhadoras. Porque ao deslocar as ocupações e/ou atividades
para o controle algorítmico subsume-se, ainda mais, a vida ao
controle total pelo capital. Dessa forma, auxilia na burla da
legislação trabalhista com a ilusão de inexistência de vínculo
empregatício, assim como de inexistência de exploração de mais-
valor. 285
Com uma ofensiva burguesa, que objetiva ocultar as
definições claras acerca da “extensão, da distribuição e da
intensidade do trabalho dedicado à atividade econômica, assim
como das determinações socialmente estabelecidas sobre o que
é tempo de trabalho e o que não é; sobre o que é tempo de vida
à disposição da empresa sem pagamento” (Krein; Abílio; Borsari,
2021, p. 256).
Verifica-se que nas cadeias produtivas mesclam-se
diferentes formas de contrato de trabalho, dos mais precarizados
até os mais regulamentados. Só que as formas de recrutamento
e controle da força de trabalho têm se homogeneizado através
das novas tecnologias digitais, sob a perspectiva do trabalho sob
demanda. É importante destacar que o avanço das forças
produtivas é algo inerente ao capitalismo, ou seja, traduz as
suas leis tendenciais e contratendenciais.
O sentido dessa dinâmica de inovação é transformar os
processos produtivos para melhor responder à permanente
tendência decrescente da taxa de lucro que, com o aumento da
composição orgânica do capital, lança milhares de trabalhado-
res/as para as fileiras do desemprego. Ao mesmo tempo, essa
constante revolução tecnológica auxilia os processos de
realização antecipados do mais-valor e outras possibilidades ao
capital fictício 286 se reproduzir e se expandir sob a hegemonia do
234
capital financeiro. Dessa maneira, os instrumentos político-
ideológicos são essenciais para garantir a implementação de
novas formas de controle, produção e escoamento de
mercadorias.
O neoliberalismo como base ideopolítica foi e é
fundamental para prosseguir a “reestruturação permanente” do
capital, mas no período de 30 anos, no caso brasileiro,
apresentou-se como “social-liberal” e depois como “neodesenvol-
vimentista”, 287 articulando-se a estratégias para pacificar as
classes trabalhadoras. Hoje notamos que essa “nova pedagogia
da hegemonia” alcançou certo êxito, mas como os marcos
civilizatórios do capitalismo demonstram seu esgotamento,
apontam que os caminhos de reestruturação degradam a vida
das classes trabalhadoras. Nesse sentido, a objetividade da vida
dos/as trabalhadores/as lhes tem direcionado à percepção do
“empreendedorismo” como precarização, apesar dos esforços
político-pedagógicos dos ideólogos do capital terem sido incisivos
no decorrer desses anos.
No caminho dessa tentativa de encantamento, as
empresas, por meio das plataformas digitais e aplicativos,
apresentam-se como um “movimento social” com ideias
“inovadoras”, ‒ que remetem aos artifícios político-pedagógicos
do “empreendedorismo” assim como da “responsabilidade
socioambiental” empresarial ‒ ancorada na ideia de “solidarie-
dade” e de “compartilhamento”. É o chamado sharing economy
que corrobora para a mistificação da produção e da reprodução
do capital. Esses artifícios reforçam uma análise moral do
capitalismo como se bastasse uma “humanização” para frear
suas necessidades de produção e reprodução exacerbadas a
partir da sua crise estrutural. Momento em que se estabeleceu
uma contrarrevolução preventiva sob a hegemonia da
“financeirização”, com uma “reestruturação permanente”, na
qual o uso das tecnologias foram fundamentais para viabilizar
este processo.
A precarização do trabalho se hegemoniza, com uma
contradição de “formalização” e controle direto do capital sobre
ocupações historicamente informais e o desenvolvimento de
235
novas mercadorias. Assim, devemos analisar que o avanço
tecnológico serve não somente para a automatização e
simplificação do “trabalho, mas também para gerenciá-lo,
independentemente da distância, usando para isso combinações
de tecnologias da informação e das telecomunicações ‒ que se
desenvolveram rapidamente ‒ para transmitir dados ao redor do
mundo” (Huws, 2017, p. 12-13).
Em sentido contrário do que os ideólogos propagam com
a ideia de sharing economy, os donos das grandes corporações,
que se utilizam dos algoritmos, objetivam a “liberdade
econômica” para diminuir o controle e gastos em torno dos seus
negócios e, dessa maneira, exterminar a legislação do trabalho.
A fragmentação e os mecanismos de consentimento e apassiva-
mento das plataformas digitais e aplicativos objetivam falsear a
relação de trabalho por meio de operações algorítmicas
semelhantes a jogos com “missões” a serem cumpridas pelos/as
“colaboradores/as” ou “mandatários/as”. Essas pessoas são
recrutadas pelas plataformas digitais e aplicativos para cumprir
as “regras do jogo” na forma e no tempo que os algoritmos
controlam e possuem, majoritariamente, uma realidade concreta
de: i) jornadas exaustivas, ao prolongar a jornada para atender
a todas as demandas necessárias para garantir o salário diário
ou em aguardar por longos períodos, estando conectada em
vários aplicativos ao mesmo tempo, com o risco de ser punida se
mais de um aplicativo demandar ao mesmo tempo; ii) condições
degradantes, em esperas sentadas no meio-fio das calçadas, sem
acesso a banheiro, água potável e sofrer humilhações de donos
de estabelecimentos e clientes; iii) insegurança no valor a ser
recebido por entrega e, por sua vez, pagamentos irrisórios; iv)
submissão a um contrato em que você deve arcar com parte dos
instrumentos de trabalho, 288 e v) desproteção social, em caso de
gravidez, acidente de trabalho, doença, invalidez ou idade
avançada.
Essa objetividade incide no aprofundamento da
superexploração da força de trabalho com a não correspon-
dência do pagamento da força de trabalho com o seu valor
histórico-moral e/ou no adoecimento físico-mental, ou seja,
236
tanto seu fundo de consumo como seu fundo de vida são
altamente depreciados. Em contrapartida, essa objetividade
reflete em novas formas de solidariedade de classe e de
organização, 289 como pode ser visto em diferentes maneiras de
organização desses/as trabalhadores/as.
No caso da Rappi, a startup nasceu na Colômbia, em
2015, e possui um monumental número de entregadores/as
pela América Latina, que cresceu principalmente neste período
da pandemia do novo coronavírus. De acordo com o CEO da
corporação, esse número cresceu 300% em apenas um mês, o
que, segundo ele, equivaleria a seis meses de operação. Em cinco
anos, a Rappi conquistou fundos de investimento, principal-
mente de corporações do Vale do Silício, com foco em
administrar investimentos em capital de risco como Sequoia
Capital (origem norte-americana, Califórnia), DST Global (do
fundador russo Yuri Milner) e Andreessen Horowitz (origem
norte-americana, Califórnia). A Rappi conseguiu arrecadar US$
1,4 bilhão, por meio da avaliação do seu negócio em US$ 3,5
bilhões pelas corporações mencionadas. 290Não satisfeita com o
recrutamento em massa de trabalhadores/as nas principais
cidades latino-americanas, a Rappi iniciou testes, na cidade de
Medellín, com um minirrobô 291 para atender pedidos e
encomendas dos/as usuários/as do aplicativo. De acordo com a
startup, objetiva-se ser um complemento nos serviços de entrega
e garantir “uma nova camada de segurança para a empresa e
seus consumidores em meio à pandemia do novo
coronavírus.” 292
237
engendra na realidade brasileira e se desenvolve na dinâmica da
sua fase atual. A permanente anulação da fala e do dissenso,
seja pela expressão de uma “democracia restrita” ou por uma
“democracia de cooptação”, revela a inconciliável relação entre
dominação burguesa e democracia. 293
Numa realidade social onde a precariedade do trabalho é
elemento constitutivo, que após as contrarreformas 294 deterio-
rou-se ainda mais as condições de trabalho. Vistas no labor via
plataformas digitais e aplicativos com jornadas exaustivas de
trabalho, assim como condições degradantes para a juventude.
A perda de renda, com a pandemia, direcionou mais pessoas
para este tipo de trabalho, que acarreta, em sua maioria, num
desgaste físico-psíquico, que pode ser irrecuperável, além dos
casos de acidentes de trabalho. As condições de trabalho
tornaram-se mais perversas, próximas a uma “escravidão
digital”, com o aumento da fileira do “novo proletariado de
serviços”. 295
Além da legitimação de recorrentes práticas ilegais de
contrato e condições de trabalho que se consolidaram com a
contrarreforma trabalhista (Lei 13.467/17), esta modificou a
regulamentação da jornada com o objetivo de utilizar a força de
trabalho quando necessitar e pagá-la somente pelas horas
trabalhadas.
Nesse sentido, o trabalho sob demanda se legitima por
meio da plataformização do trabalho, com a falsa ideia de
ausência de vínculo empregatício. Dessa forma, não tem
contrato regulamentado e o existente é apenas pela plataforma,
como nos “Termos e Condições de Uso da Plataforma Entregador
Rappi”, onde o/a trabalhador/a muitas vezes é bloqueado/a e
recebe menos do que o esperado de forma unilateral.
A partir de dados da Pesquisa Aliança Bike (Associação
Brasileira do Setor de Bicicletas, 2019) notamos a prevalência
de jornadas prolongadas para os/as entregadores/as ciclistas,
tendo em vista as horas e a quilometragem que percorrem
durante o dia, que pode se aproximar das tipificações do artigo
238
149 do Código Penal Brasileiro, relacionado principalmente à
jornada exaustiva. Em relação à escravidão contemporânea no
Brasil, também destacamos a semelhança do "perfil" da maioria
ser homem, jovem e negro.
De acordo com a mesma pesquisa, a média de horas à
disposição do aplicativo é de 9 horas e 24 minutos por dia, sendo
que 7,7% trabalham até 5 horas, 31,9% trabalham de 6 a 8
horas; 54% trabalham de 9 a 12 horas; 6,1% trabalham mais de
12 horas. Desses/as entregadores/as ciclistas, ao realizarem as
entregas, 30% pedalam mais de 50 km por dia. E a média de
remuneração mensal deles/as é abaixo do valor do salário-
mínimo, eles/as ganham R$ 936. A pesquisa conclui que a
média dos/as entregadores/as ciclistas trabalham de domingo
a domingo, de 9 a 10 horas por dia, com rendimento mensal de
R$ 992,00. O menor valor mensal recebido encontrado no
levantamento foi 375 reais, para entregadores/as que trabalham
três horas diárias, e o maior foi 1.460 reais, para 14 horas
trabalhadas. Além de receberem remuneração muito abaixo do
valor histórico-moral das classes trabalhadoras brasileiras, se
considerarmos o valor do salário-mínimo necessário auferido
pelo Dieese, trabalham com jornadas que comprometem sua
força física-psíquica. Há, sob este ângulo de análise, a violação
do fundo de consumo e do fundo de vida desses trabalhadores.
Em relação à escolaridade, 53% tinham até o ensino
médio completo, 40% até o ensino fundamental completo e 16%
estudavam. Sobre a cor/raça, 44% se declaravam pardos, 27%
pretos (ou seja, 71% negros), 26% eram brancos, 2% amarelos,
1% indígenas e 99% eram brasileiros. A média de idade era de
24 anos, sendo que o mais novo entrevistado tinha 16 anos e o
mais velho, 59 anos.
Destacamos que 67% dos/as entregadores/as ciclistas
precisaram comprar a bag (mochila térmica) para iniciar o
trabalho nos aplicativos, e 59% realizaram alterações no plano
de dados do celular. E que somente 5% afirmaram a ausência
de investimentos para iniciarem as entregas. Essas “novas”
modalidades de trabalho remontam a diversas características da
hierarquização existentes entre escravizados, libertos e livres,
como também da escravidão contemporânea, tal como a jornada
exaustiva, condições degradantes e a servidão por dívida. No
239
caso da hierarquia, temos uma análise preliminar da diferença
entre os/as trabalhadores/as que para entregar as mercadorias
utilizam suas motocicletas, suas bicicletas (ou alugadas) ou
entregam a pé.
No caso do aplicativo Rappi, os/as entregadores/as “são
classificados por ‘níveis’, que variam em função de certos
requisitos definidos pela plataforma” (Rigo; Abreu, 2019, p. 30).
Assim, pode-se perceber que além da hierarquização, há a
competitividade e a necessidade do/a entregador/a otimizar as
entregas para chegar ao nível máximo da cadeia. 296 Ou seja,
para conseguir acesso a mais corridas e determinadas áreas com
restaurantes, cada trabalhador/a precisa atingir uma pontua-
ção mínima por semana, porque quanto maior o número de
entregas fizer, mais pontos acumula para o período seguinte.
Tendo em vista que sua remuneração é pelo montante de
mercadorias transportadas (salário por peça), os/as
entregadores/as se submetem a jornadas mais longas para
aumentar a produtividade, principalmente aos finais de semana,
porque, caso não alcancem a pontuação, têm sua área de
trabalho e número de pedidos restringidos pelo aplicativo nos
dias seguintes.
Sendo assim, “não é todo Entregador que recebe
pagamento em dinheiro, nem é todo Entregador que pode
receber pedidos de Supermercados, por exemplo” (Rigo; Abreu,
2019, p. 25). Ademais, nota-se a diferença entre os/as
entregadores/as e os/as shoppers, que selecionam os produtos
no supermercado e possuem vínculo empregatício, que é um
patamar quase inatingível pelos/as entregadores/as da
plataforma.
O trabalho via plataforma digital e aplicativos de entrega
tornou-se uma alternativa ao desemprego e de sobrevivência,
mesmo que os/as trabalhadores/as tenham que arcar com os
custos do processo de circulação/realização da mercadoria,
como a gasolina, a manutenção dos seus equipamentos, aluguel
da bicicleta, bag, jaqueta, celular, internet e alimentação.
240
Mesmo quando o/a entregador/a compra seus equipamentos de
trabalho, neste caso a bag e a jaqueta, a plataforma exige a
devolução, caso os/as entregadores/as sejam desligados/as.
“No próprio vídeo de treinamento da Rappi, sugere-se que o
Entregador deverá pagar pelos materiais de trabalho” (Rigo;
Abreu, 2019, p. 13). Violam, ainda, o Código Civil, já que
condicionam o uso da bag por meio de comodato, e este não pode
ser oneroso. “Logo, se a Rappi vende as bags e jaquetas, ela está
violando os próprios termos e condições de uso. [Porque, de
acordo com o] Art. 579. O comodato é o empréstimo gratuito de
coisas não fungíveis. Perfaz-se com a tradição do objeto” (Rigo;
Abreu, 2019, p. 13).
Vemos as corporações aumentarem seus ganhos e
rendimentos nos últimos anos e a remuneração dos/as
entregadores/as serem cada vez mais rebaixadas dado o número
expressivo de pessoas cadastradas nesses aplicativos. A concor-
rência entre os/as trabalhadores/as aumenta a oportunidade
dessas corporações cometerem abusos e violarem diversas
legislações, justamente por se autointitularem como sharing
economy ou como meras intermediadoras, elas têm conseguido
desregulamentar uma série de leis e burlarem o vínculo
empregatício.
Apesar da Rappi, em sua cláusula 10 dos “Termos e
Condições de Uso da Plataforma Entregador Rappi”, afirmar que:
“A OPERADORA declara que todos os valores pagos pelos
CONSUMIDORES por meio de sua plataforma a título de frete e
gorjeta são repassados integralmente ao ENTREGADOR que
executou o serviço [...]” (Rigo; Abreu, 2019, p. 18). Não existe
clareza para os/as entregadores/as os valores que serão
alcançados. Assim como em outras plataformas digitais e
aplicativos, ocorre que “as próprias regras sobre a distribuição
do trabalho, bonificações, determinação do valor do trabalho e
suas variações não são claras ou pré-definidas” (Abílio, 2019, p.
3).
Nos “Termos e Condições de Uso da Plataforma
Entregador Rappi”, ficam claros os elementos que configuram o
vínculo empregatício e que a plataforma não atua como mera
intermediadora, tendo em vista as exigências que impõem
aos/às “mandatários/as” como podemos verificar abaixo.
241
na Cláusula 16, XII, estabelece-se o dever de o Entregador
se abster de “forçar, induzir ou convencer o CONSUMIDOR
ou FORNECEDOR a cancelar o uso ou negociar para
atendimento fora a utilização da PLATAFORMA”. Destarte,
a relação de caráter intuitu personae existe entre a Rappi e
o suposto Mandatário do encargo, que, na realidade, é seu
preposto, seu empregado (Rigo; Abreu, 2019, p. 21).
242
De acordo com a plataforma, eles oferecem diversas
possibilidades de entrega de supermercados, farmácias,
restaurantes, serviços de frete como o RappiFavor que será
atendido de acordo com o nível do/a “entregador/a”, para
executar a “missão”. Por isso, existe uma relação “subordinada
(sujeita ao poder intraempresarial, exercido por meios
eletrônicos), onerosa (com repasses efetuados por sistema
eletrônico escolhido e imposto pela plataforma) e não eventual
de prestação de serviços. Em suma, relação de emprego” (Rigo;
Abreu, 2019, p. 26).
Ainda assim, as plataformas digitais e aplicativos
afirmam que os/as entregadores/as são apenas “parceiros/as”
ou “mandatários/as” e possuem liberdade de escolha para
executar as “missões” no tempo que desejam. Porém, identifica-
mos que essas corporações sujeitam os/as trabalhadores/as,
inclusive, a possibilidades de acidentes de trabalho. No caso da
Rappi, as auditoras fiscais do trabalho constataram que a
empresa envia os pedidos sem considerar os meios de transporte
utilizados pelo/a entregador/a. Portanto, existem “problemas de
dimensão da compra, que colocam em risco a vida de
motociclistas e das demais pessoas que circulam no trânsito”.
Acrescentamos ao debate, de acordo com Souza e
Machado (2020), a pesquisa realizada pela Rede de Estudos e
Monitoramento da Reforma Trabalhista (Remir Trabalho), que,
por meio de um questionário online, entrevistou 252 entregado-
res/as, de 26 cidades do Brasil, entre os dias 13 e 20 de abril de
2020. Dentre os/as entrevistados/as, 60,3% afirmaram o
rebaixamento da sua remuneração em relação ao período
anterior das políticas de isolamento social e quarentena. Contra
27,6% dos/as entregadores/as que mantiveram seus
rendimentos e 10,3% que afirmaram aumento da remuneração
no período citado.
Destacamos outra pesquisa “Projeto caminhos do
trabalho” (2020), realizada no período entre 26 e 31 de julho de
2020, em 38 cidades de 19 unidades da Federação (norte a sul
do país) com 103 entregadores/as (72 motociclistas e 31
ciclistas). Essa pesquisa constatou que, na sua maioria, os/as
entregadores/as são homens (95%), jovens de até 30 anos de
idade (56,5%) e negros (59,2%). No universo dos/as 103
243
entrevistados/as, 68% são motociclistas e os/as ciclistas
equivalem a 30,1%. Para aqueles/as que têm no “aplicativo” a
única ocupação, a média de trabalho é de 10 horas e 24 minutos
por dia, 64,5 horas por semana, ou seja, o equivalente a mais de
20,5 horas extras todas as semanas em uma jornada normal.
Em média, esses/as entregadores/as trabalham 6,16 dias por
semana, sendo que 40% deles/as trabalham todos os dias. Na
média geral (trabalho exclusivo ou em tempo parcial), a jornada
média semanal é de 55 horas, distribuídas em 5,8 dias, e 51,7%
recebem, proporcionalmente por hora, menos do que 1 salário-
mínimo.
Outra análise mais recente de 2021, realizada por
pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB) e da
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), sobre os/as
entregadores/as em Brasília e em Recife, identificou semelhante
“perfil” dos/as entregadores/as como a maioria sendo não
branca e jovem, como nas pesquisas supracitadas. Foi
destacada, na pesquisa, as artimanhas da gamificação em que
“os aplicativos se utilizam da concorrência entre os próprios
entregadores na busca por mais entregas para obter maior
engajamento deles no trabalho e, portanto, maior tempo de
conexão no aplicativo, o que resulta em maior tempo de trabalho
não pago” (Central Única dos Trabalhadores, 2021, p. 215).
Ressaltam, na mesma medida, que a possibilidade de repouso
tem sido restringida da vida dessas pessoas, porque precisam
estar “logadas” em vários aplicativos para serem demandadas e
conseguirem a melhor performance.
244
rua, se mantiver conectado (“logado”) a cada vez a mais de
um aplicativo. O problema é que os aplicativos, por sua
vez, têm como estratégia exigir que o entregador se
mantenha logado o máximo de tempo possível, premiando
a conexão e penalizando a desconexão. Do lado do
entregador, há que se fazer todo um malabarismo no
acionamento dos aplicativos nos quais se cadastrou, para
melhorar seu rendimento (Central Única dos
Trabalhadores, 2021, p. 213 - 216).
245
Como se pode resgatar na historiografia, os escravizados
de ganho não tinham escolha, tinham que executar as tarefas e,
para otimizar o cotidiano do trabalho extenuante, os senhores
utilizavam formas de “alegrar” com um capataz que cantava. 297
No caso dos/as entregadores/as, a necessidade é um elemento
primordial para a submissão a jornadas extenuantes e a tarefas
nem sempre agradáveis ou fáceis. No caso da mistificação, as
plataformas digitais e aplicativos utilizam-se da gamificação com
a ideia de cumprir uma “missão”, como artifício para otimizar a
capacidade de trabalho dessas pessoas.
Apreende-se nas condições laborais dos/as entregado-
res/as, de forma explícita, a condição estrutural e sistemática
da superexploração da força de trabalho. Dessa maneira, ainda
que estejamos dando ênfase, neste item, às formas de trabalho
via plataformas digitais e aplicativos, é necessário enfatizar a
condição do trabalho no Brasil, por meio dos componentes
histórico-estruturais da nossa formação econômico-social e
dinâmico-conjunturais das atuais condições de trabalho após a
contrarreforma trabalhista, travestidas de trabalho autônomo,
intermitente, trabalho sob demanda, 298 uberizadas ou
plataformizadas. Portanto, identificamos elementos estrutu-
rantes da força de trabalho brasileira, que remetem à memória
do nosso passado colonial, e, no entanto, não devem ser
apreendidos como meros resquícios ou como ausência de
desenvolvimento capitalista.
Importa-nos reiterar que a nossa formação econômico-
social é engendrada por burguesias com traços fascistizantes
que reforçaram a racialização da divisão social do trabalho, na
qual as ocupações mais precárias e subalternizadas são
ocupadas majoritariamente pelos/as negros/as. Apesar do
nosso caldo cultural ter se consolidado sob a suposta ideia da
“democracia racial” e da “cordialidade” que seria incompatível
com a escravidão e o fascismo.
246
Hoje, no governo de Jair Bolsonaro, um fascista
ultraneoliberal, há o aprofundamento do superprivilegiamento
dos “mais iguais”; da retirada dos direitos dos/as trabalha-
dores/as; do aumento do custo de vida, com a escalada do preço
dos combustíveis e da cesta básica, impossibilitando o acesso de
grande parte das classes trabalhadoras aos bens necessários
para sua subsistência.
Com a alta da gasolina e a inflação de produtos básicos,
vários entregadores/as motociclistas tiveram que aumentar
suas jornadas e velocidade para otimizar o tempo para
realizarem mais entregas, resultando no aumento de aciden-
tes. 299 Talvez essa situação aumente o número de entrega-
dores/as ciclistas, temos que acompanhar.
Vemos, em âmbito nacional e mundial, que as burguesias
buscam reduzir os custos de produção e aumentar a taxa de
exploração para dar concretude à realização antecipada de mais-
valor. Assim, por meio de diversos procedimentos, objetivam: i)
individualizar os/as trabalhadores/as, fragilizando os laços de
solidariedade de classe; ii) invisibilizar a relação de contrato de
trabalho para defender uma suposta necessidade de
“modernização” nas leis trabalhistas; e iii) portanto, eliminar os
direitos sociais do trabalho e rebaixar ainda mais a
remuneração, condicionando trabalhadores/as a jornadas
exaustivas e condições degradantes de trabalho, que violam o
seu fundo de consumo e seu fundo de vida.
É nesse sentido que a atual “revolução digital”, ao invés
de regulamentar o trabalho para assegurar direitos, traz maior
precarização e desproteção social. Dessa forma, neste processo
contrarrevolucionário, as contrarreformas são possibilidades de
valorização do capital e de aumento da extração de mais-valor,
que, consequentemente, ampliam os efeitos da superexploração
da força de trabalho.
No delivery brasileiro, identificamos semelhanças com as
condições dos ganhadores, inclusive em relação à hierarquia da
gamificação (níveis dentro da plataforma) e a existente entre
os/as entregadores/as motociclistas e ciclistas ou até
aqueles/as que entregam a pé. Devido à diferença tanto no
247
acesso a mais possibilidades de trabalho como no modo de
entregar as mercadorias, essas pessoas vivenciam distintas
condições de trabalho e rendimento. Sendo que agora, sob o
“empreendedorismo” e a gamificação, nenhum entregador/a
consegue identificar de imediato quem é o “senhor” e não têm
certeza dos seus ganhos.
Reiteramos que esse resgate histórico do período do
“escravismo tardio” não significa afirmar que há a permanência
de um “colonialismo”, ou que há falta de desenvolvimento
capitalista, mas que é necessário analisarmos os períodos de
transição e de consolidação do capitalismo dependente para
apreendermos as especificidades da realidade brasileira na
relação entre as economias dependentes e economias
hegemônicas.
Sendo assim, apreendemos que, entre o ganho e a
gamificação do processo de trabalho, a maioria dos/as
entregadores/as tem percebido quais são as verdadeiras regras
do jogo da sua exploração nestas plataformas da escravidão.
Portanto, são nas linhas de continuidade e ruptura das formas
de submissão e exploração que, da mesma maneira, podemos
vislumbrar nas formas de resistência 300 novos caminhos para
alcançar a emancipação humana, que é inatingível na sociedade
capitalista.
248
das formas contemporâneas de escravização revelam a
expressão máxima de todo o processo de continuidade e ruptura
com a escravidão colonial, e carregam de forma nítida a
superexploração da força de trabalho. A todo momento
reiteramos que a escravidão contemporânea, o subdesenvolvi-
mento e a superexploração não significam uma anomalia ou
falta de desenvolvimento capitalista, ao contrário, expressam
como o capitalismo, em seu modo de ser, desenvolve-se de forma
desigual.
Portanto, é neste chão histórico que as lutas de classes
se realizam e as burguesias, em sua permanente reação, buscam
a manutenção de sua hegemonia político-econômica com a
implementação de estratagemas político-ideológicos, como a
“colaboração”, o “compartilhamento”, a “parceria” vistos nas
plataformas e aplicativos digitais. O objetivo dessas táticas é
burlar o vínculo laboral e passivizar as classes trabalhadoras,
mas também por meio da violência aberta, expropriam direitos,
e visam a apropriação de maiores taxas de exploração.
249
250
Capítulo IV.
251
da igualdade jurídico-formal, por meio da crítica marxiana e
engelsiana à acumulação capitalista, permite-nos entender os
limites de se estabelecer uma antítese à escravidão
contemporânea dentro dos marcos da sociabilidade burguesa.
252
“empreendedorismo”. A questão é o “poder dos indivíduos”, em
âmbito local, para o desenvolvimento local de “autoajuda”. 307
Nessa direção, fomentou-se a pauta dos direitos
humanos e houve o avanço na tipificação da escravidão
contemporânea, não restringindo-a ao trabalho forçado, para
assegurar a “dignidade” do e no trabalho, positivada na
Constituição Federal de 1988. Construiu-se, como apresentado
no capítulo I, um conjunto de políticas e instrumentos jurídicos
para a repressão ao trabalho escravizado contemporâneo,
constituindo-se um dos melhores sistemas de combate à
escravidão contemporânea no mundo. 308
Porém, os governos de “conciliação” do PT 309 continua-
ram a política macroeconômica neoliberal dos governos do
PSDB, 310 ao:
a) manter uma política de estímulo e apoio à expansão e
industrialização das commodities, com o agronegócio,
ampliando a “reprimarização” 311 da nossa economia
como política de um suposto “neodesenvolvimento”,
aprofundando as contradições que conformam a nossa
questão agrária; 312
b) priorizar “políticas focalizadas de alívio da fome e da
miséria em detrimento de um sistema de proteção social
253
universal”, 313 ou seja, uma estrutura 314 que não impede
a permanência do “ciclo do trabalho escravo” 315; e
c) investir em uma Política de Geração de Emprego e Renda
(PGER) que mistifica a precarização com o “empreen-
dedorismo” articulada à Agenda Nacional do Trabalho
Decente (ANTD), fomentada pela cooperação técnica com
a OIT, iniciada em 2003.
No lugar de combater a precarização, se a naturaliza com
a implementação de uma PGER que promove o autoemprego sob
o mote do “empreendedorismo” com a garantia de uma proteção
social básica, como no caso do Microempreendedor Individual
(MEI), que o/a trabalhador/a deve subsidiar. 316 Tornando essa
forma de ocupação como uma das alternativas de “trabalho
decente”, sem levar em consideração o tempo das jornadas de
trabalho a que as pessoas têm de se submeter para conseguir
sobreviver.
É fundamental ressaltar a distribuição desigual da
propriedade da terra, a desproporção do acesso ao crédito e às
máquinas e equipamentos, assim como a ausência de acesso
mais equânime a políticas que ofereçam serviços sociais de
qualidade, como: saúde, educação, formação e qualificação
profissional. São aspectos que contribuem para que uma parcela
muito elevada de trabalhadores/as seja incapaz de concretizar
uma inserção ocupacional ou um empreendimento rentável. No
entanto, cabe ponderar duas questões: 1º) a qualificação não
254
garante a chamada “empregabilidade”, e 2º) um “empreen-
dimento” pode até ser rentável, mas a forma estimulada pela
PGER não concede a suposta autonomia e liberdade aos/às
trabalhadores/as. Na verdade, tem acarretado maior
precarização das relações de trabalho. 317
Nesse sentido, ao analisarmos os documentos nacionais
e internacionais 318 sobre “trabalho decente” da OIT, percebemos
que o “trabalho decente” parece ter como limite apenas a não
submissão a “situações análogas à de escravidão” e às “piores
formas de trabalho infantil”. No entanto, os principais agentes
públicos envolvidos no combate ao trabalho escravizado
contemporâneo possuem uma acepção de “trabalho decente”
diferente, 319 como apresentado mais adiante, muito mais
próxima da dignidade, como consta em nossa Constituição
Federal de 1988, e inspirada na experiência europeia de Welfare
State. 320
É importante destacar que mesmo com diversos
problemas estruturais para erradicar o trabalho escravizado
contemporâneo houve a influência brasileira na campanha
internacional da OIT. O Brasil era o único país membro que
tinha um programa nacional de combate à escravidão
contemporânea, porém no próprio site da OIT não era
mencionado o termo “trabalho escravo”, mas apenas “trabalho
forçado” 321. Somente a partir do ano de 2013, a OIT adicionou
em suas campanhas contra o trabalho forçado os termos
“trabalho escravo” ou “escravidão moderna”, articulados ao
tráfico de pessoas, como forma de mobilização da sociedade
255
mundial. 322 Dispensando “o aditamento de análogo utilizado
tanto pela Organização das Nações Unidas (ONU) quanto pelo
Estado brasileiro desde a PEC do Trabalho Escravo” (Ferreras,
2017, p. 86).
A caracterização com o termo “trabalho escravo
contemporâneo” era muito polêmica, tanto no meio jurídico
quanto no meio acadêmico, até pouco tempo depois da adição
da Lei nº 10.803/2003 ao artigo 149 do CPB. Nesse sentido, é
significativo dizer que o Brasil optou “pela utilização da palavra
‘escravidão’ para se referir a certas formas de exploração da mão
de obra presente”. Refletindo uma escolha baseada na cultura
política, na história do Direito e do Trabalho no Brasil, com
capacidade de mobilização racional e afetiva (Ferreras, 2017, p.
87).
Reiteramos que, em nossa análise, apreende-se a
escravidão contemporânea como uma variação da utilização do
trabalho assalariado, em suas formas transitórias ou híbridas,
derivada tanto de como se constituiu a força de trabalho no
Brasil quanto como consequência dos elementos dinâmico-
conjunturais, a exemplo da chamada “flexibilização” das
relações trabalhistas. E a caracterização como escravidão
contemporânea é importante tanto para a mobilização quanto
para a referência à história de como se estruturou todo o tecido
social.
Relevante salientar também, que não se trata de uma
anomalia ou falta de desenvolvimento capitalista ou por simples
falta de valores morais por parte dos/as empregadores/as. E
apesar da escravidão contemporânea não ser uma exclusividade
dos países periféricos, é fundamental ressaltar a condição do
capitalismo dependente no Brasil.
Dada à inserção do nosso país na divisão internacional
do trabalho, para atender ao padrão de acumulação do capital
monopolista e à forma como o ciclo do capital nas economias
dependentes se engendra, estruturou-se uma classe dominante
que deteriorou e deteriora os frágeis dinamismos políticos,
256
impedindo a consolidação de uma democracia de participação
ampliada.
Desse modo, não se viabiliza um projeto de nação nos
“padrões eurocêntricos” e, portanto, garante-se os meios e
condições para que a riqueza do país seja expropriada, na
condição de uma burguesia associada ao imperialismo,
tornando suas ações político-econômicas, culturais e sociais
como “antinacionais e antissociais”. 323
Uma histórica naturalização das condições desumanas
de exploração da força de trabalho com alto nível de
degradância, que expressa a característica antissocial da
burguesia brasileira, relacionada à forma de expropriação do
trabalho e à exportação de excedente econômico. Ressaltando,
na mesma medida, a sua característica antinacional de condição
de burguesia associada como sócia menor do imperialismo,
como classe dominante-dominada em busca permanente pela
manutenção dos seus superprivilégios. 324
Nessa perspectiva, destacamos a análise de Jaime Osório
sobre o “padrão exportador de especialização produtiva”, com
novas roupagens nesta fase contemporânea do capitalismo, 325
que indica a apreensão de características estruturais da
condição do nosso país no mercado mundial.
323 Não significa dizer que as burguesias das economias hegemônicas são
257
alianças políticas que o sustentam. Isso indica tendências
profundas que as forças políticas que chegaram ao Poder
Executivo não conseguem reverter [...]. É na própria lógica
do capitalismo latino-americano e em sua versão histórica
atual, o padrão exportador de especialização produtiva,
que opera um núcleo concentrador e ao mesmo tempo
empobrecedor. Tudo isso também é produzido em
fórmulas estatais mais ou menos autoritárias e em formas
mais ou menos democráticas. Por essa lógica, as formas
de governo não parecem ter maior incidência e significado
(Osório, 2021, p. 63). 326
jan. 2018.
329Ver:
https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---dgreports/---dcomm/---
publ/documents/publication/wcms_615594.pdf. Acesso em jun. 2018.
258
2019, e que nos “países em desenvolvimento”, três a cada quatro
trabalhadores/as estão em “empregos vulneráveis”. No relatório
lançado em janeiro de 2019, em seu centenário, as
recomendações da OIT eram: o investimento na formação das
pessoas, a expansão das políticas sociais, o investimento nas
instituições de representação e a reorientação dos incentivos
com centralidade nas pessoas, no “trabalho decente e
sustentável”. 330
Em contraposição a estas orientações, sob o comando
fascistizante do chefe do executivo, o atual governo brasileiro
implementa políticas ultraneoliberais, que além ojerizar a defesa
dos direitos humanos, visa aprofundar o desmonte dos direitos
do trabalho, a exemplo de mais contrarreformas, sob o
pressuposto da “liberdade econômica” com redução da
burocracia para assegurar “segurança jurídica” às atividades
econômicas. Em outros termos, significa a liberdade de não ter
qualquer empecilho para aumentar as taxas de exploração.
Diante deste curso histórico e pensando na antítese à
escravidão contemporânea, primeiro apresentamos uma breve
reflexão sobre os direitos humanos à luz da análise da tradição
marxista à “igualdade jurídica”, 331 articulada às expressões
particulares da acumulação capitalista na realidade brasileira,
pensando o desenvolvimento desigual 332 do capitalismo. Para
assim, apresentarmos os parâmetros da OIT sobre o “trabalho
decente” e as perspectivas para sua concretização no atual
330Ver: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---dgreports/---
259
período histórico. Dialogando com a apresentação da
interpretação sobre direitos humanos e “trabalho decente” de
alguns agentes públicos fundamentais para o combate à
escravidão contemporânea no Brasil.
Questionamos antes, portanto: Quais são os parâmetros
e perspectivas para o “trabalho decente”? É possível? Deparamo-
nos com uma realidade extremamente adversa, onde os desafios
levam a concluir que para garantir a dignidade do/no trabalho
é necessária a articulação permanente com a verdadeira
emancipação.
Nesse sentido que resgatamos, historicamente, como os
chamados direitos humanos se estruturaram ao largo da
construção da Era Moderna, com o amadurecimento da
propriedade privada e da constituição do capital. A burguesia,
enquanto classe revolucionária, trouxe uma emancipação que se
traduziu nos seus interesses particulares, que até os dias atuais
são apresentados como interesses universais. Todavia, essa
emancipação, fruto das lutas sociais iniciadas pela burguesia e
expandidas pelas classes trabalhadoras, foi fundamental para o
avanço da humanidade, apesar de todas as suas contradições.
A “era das revoluções”, nos termos do historiador
marxista Eric Hobsbawm, objetivou elementos das reivindi-
cações dos chamados “direitos naturais” ou “direitos do homem”
no conhecido debate do jusnaturalismo. 333 De forma que o
triunfo da indústria capitalista, da sociedade burguesa liberal e
a defesa de direitos contemplam a sua época histórica e o lugar
de classe da burguesia.
333 “na figura do jusnaturalismo, o Direito pôde ter uma função concreta na
260
(parte da Europa e alguns trechos da América do Norte)
[...] (Hobsbawm, 2008, p. 16).
261
seria incoerente com a manutenção da escravidão no sul e o
forçado deslocamento dos indígenas para o oeste do país. 334
A sociabilidade burguesa estabeleceu-se mediante a
configuração de uma classe revolucionária que avançou frente
aos valores medievais, pois estes impediam a liberdade de
produção e reprodução social capitalista. Liberdade subsumida
à necessidade social de um modo de produção que se desenvolve
e se espraia enquanto um mercado mundial em um
desenvolvimento desigual.
A liberdade burguesa desencadeou a liberdade dos
servos dos meios de produção feudais, mas em contrapartida os
colocou diante da liberdade de ter como alternativa apenas a
venda da sua força de trabalho. 335 Para o debate aqui proposto,
é imprescindível pensar a igualdade e a liberdade tal como estão
alicerçadas, desde as clássicas revoluções burguesas, e como
elas se ampliam dentro do arcabouço jurídico e, ao mesmo
tempo, como se limitam pelos determinantes ontológicos da
produção e reprodução social capitalista.
As lutas de classes foram fundamentais para o avanço da
“igualdade jurídica” e Lukács demonstra a contradição que
abarca a modernidade, desde seus primórdios, e a mudança
para uma postura reacionária da classe burguesa após sua
consolidação, rejeitando todas as questões relativas à visão de
mundo, com a limitação da filosofia à lógica, somado ao repúdio
a todo movimento democrático anterior a 1848. 336
Inicia-se o movimento da “destruição da razão”, que
demonstrará que o projeto da modernidade não apresentava
todas as suas contradições, enquanto os interesses burgueses
ainda eram expressões aparentemente universais. Porém,
quando se evidenciou seu projeto particular de classe
dominante, os pilares centrais da modernidade e seu
262
desenvolvimento, que pode indicar a direção da emancipação
política à emancipação humana, passaram a representar uma
ameaça à sua forma de organização produtiva.
Sob as bases da “decadência ideológica” da burguesia,
que traz a razão fenomênica ou a razão instrumental como o
sentido de apreensão do real, teremos hegemonicamente
explicações dualistas, que não buscam a compreensão da
dialeticidade do real, e, por sua vez, da sociabilidade burguesa
em seu desenvolvimento desigual.
Nesse sentido, é importante apontar os determinantes
ontológicos e contraditórios e a longa trajetória dos direitos
humanos anterior à Declaração Universal dos Direitos Humanos
de 1948. E importa também ressaltar a sua importância para a
expansão dos espaços democráticos e que foi elaborada sob o
impacto dos horrores das duas grandes Guerras Mundiais. Mas
também serviu como uma possibilidade de propaganda e de
disputas geopolíticas, naquele período da Guerra Fria, e que
cabe, ainda hoje, como um importante instrumento no discurso
das potências imperialistas, com supostas “intervenções
humanitárias” e de “guerras preventivas".
Ao largo de quatro séculos de amadurecimento e
desenvolvimento do capitalismo, quando se ignora o fundamento
da emancipação política burguesa, ainda se crê na humanização
do capitalismo. Mesmo diante do aviltamento da vida humana
em âmbito mundial, quando vivemos um dos períodos mais
terríveis de migrações forçadas e impedimento de trânsito das
classes trabalhadoras, pelas fronteiras, em busca de uma
possibilidade de sobrevivência. 337
O debate a partir de Marx possibilita a apreensão de
como a igualdade e a liberdade são determinadas pela
necessidade social, 338 construída historicamente pela ordem
263
sociometabólica do capital, garantindo, dessa forma, que a
mercadoria-dinheiro mediatize a vida social. 339
por eles escolhidas’. Isso quer dizer o mesmo que antes formulamos do
seguinte modo: o homem é um ser que dá respostas. Expressa-se aqui a
unidade ‒ contida de modo contraditoriamente indissolúvel no ser social ‒
entre liberdade e necessidade; ela já opera no trabalho como unidade
indissoluvelmente contraditória das decisões teleológicas entre alternativas
com as premissas e consequências ineliminavelmente vinculadas por uma
relação causal necessária”. (Lukács, 1978, p. 16).
264
liberdade equivale ao direito humano à propriedade
privada (Marx, 2013, p. 49, grifos da editora).
265
Nesse caminho da construção dos direitos humanos, 341
“o liberalismo sempre fechou os olhos para o fato embaraçoso de
que uma melhoria significativa visando uma sociedade
equitativa só pode resultar de uma mudança fundamental na
estrutura da própria produção” (Mészáros, 2015, p. 25, grifos do
autor). Ao ignorar os determinantes constitutivos, os ideólogos
liberais sustentam apenas a defesa por uma sociedade “mais
equitativa” limitando suas reformas sociais, mesmo em seu
período mais progressista, com políticas direcionadas à esfera
de distribuição da riqueza socialmente produzida, nunca
atingindo a esfera da produção.
As possibilidades das reformas sociais no capitalismo
estiveram restritas a uma época histórica e a alguns países.
Reformas que foram viabilizadas mediante: a luta de classes; a
existência do bloco soviético contra-hegemônico; o próprio
momento histórico do capitalismo monopolista, e o posicio-
namento daqueles países na divisão internacional do
trabalho. 342 Houve reformas democrático-burguesas, que
garantiram a possibilidade de as classes trabalhadoras de
determinados países terem acesso à parte da riqueza
socialmente produzida.
Dos anos 40 aos anos 70 do século XX, o pensamento
keynesiano 343 constituiu-se na base doutrinária da política que
266
deixou de se guiar pelo princípio do “equilíbrio natural” na
economia capitalista. A resolução da configuração do Estado e
uso próprio dos poderes estatais só se conquistou depois do 2º
pós-guerra. Situação que garantiu o desenvolvimento pleno do
fordismo como regime de acumulação, que viabilizou a base das
“três décadas de ouro do capital”, devido aos países hegemônicos
terem alcançado altas taxas de crescimento econômico.
Foi possível notar que os direitos sociais se expandiram
e, por sua vez, os direitos humanos e os padrões de vida nestes
países aumentaram, as crises cíclicas foram amortecidas e o
prenúncio de guerras mundiais tornou-se distante. “O fordismo
se aliou firmemente ao Keynesianismo, e o capitalismo se
dedicou a um surto de expansões internacionalistas de alcance
mundial que atraiu para sua rede inúmeras nações
descolonizadas” (Harvey, 2010, p. 125).
Sob a era dos monopólios, atrelado à racionalização
produtiva massiva pelo fordismo-taylorismo, a organização
política dos/as trabalhadores/as, analisada no contexto de
entreguerras, consolidou o “pacto político” entre capital e
trabalho, mediado pelo Estado, ou pacto fordista-keynesiano.
Um processo que generalizou e institucionalizou as políticas
sociais, ou seja, direitos sociais, por meio da consolidação dos
“Estados de Bem-Estar Social”, de caráter keynesiano/fordista
em vários países da Europa Ocidental e Nórdica. Dentro desse
contexto histórico, de ampliação dos direitos humanos naqueles
países, no Brasil tivemos a experiência de períodos de
democracia restrita com ditaduras, engendrando, nos termos do
saudoso sociólogo Francisco de Oliveira, um “Estado de Mal-
Estar Social”.
O “consenso”, naqueles países, por meio de um “pacto
social” entre as classes sociais, viabilizou o abandono de grande
percentual das classes trabalhadoras pela busca da ruptura
com o status quo. Dessa forma, assegurou acordos entre
partidos de direita e de esquerda, que garantiram a aprovação
de algumas legislações sociais. Portanto, configurou o poder aos
partidos social-democratas, em alguns países, e institucio-
nalizou políticas sociais mais amplas e universais, pautadas no
267
compromisso político estatal de crescimento econômico e “pleno
emprego”, 344
268
sinais de mercado, como pregava, e continua pregando, o
pensamento ortodoxo. Ou seja, tratava-se de uma
proposta nacional-desenvolvimentista. Dentro do
pensamento crítico, essa proposta da Cepal foi alvo de
muitas condenações, seja porque desenvolvimento e
subdesenvolvimento fossem tratados apenas como uma
diferenciação quantitativa, não percebidos como uma
relação dialética de oposição e unidade, seja porque a
concepção de Estado fosse neutra, como se este estivesse
fora da sociedade, alheio às contradições de classe, e
possuísse uma racionalidade própria e autônoma, ou
ainda porque não se acreditava que a industrialização
resolveria os problemas do subdesenvolvimento e da
dependência, apenas conferindo-lhes outras formas de
manifestação (Carcanholo, 2010b, p. 120).
269
demanda por um envolvimento cada vez mais direto do
Estado na sobrevivência contínua do sistema, mesmo que
isso seja contrário à automitologia da “iniciativa privada”
superior (Mészáros, 2015, p. 27).
270
perspectiva de desenvolvimento que amenizasse os efeitos
nefastos neoliberais, e que trouxesse um “novo projeto de
desenvolvimento internacional”. Foi então que os organismos
internacionais, adotaram novas estratégias de “consenso” frente
à resistência das classes trabalhadoras em âmbito global.
Se outrora tínhamos a influência de uma concepção
desenvolvimentista 347 sob as bases cepalinas para superar o
“subdesenvolvimento” dos países latino-americanos. A partir dos
anos 1990, teremos a concepção de “desenvolvimento social” sob
a base do pensamento de Amartya Sen, 348 influenciando o
chamado “neodesenvolvimentismo”. 349 Na realidade brasileira, o
“neodesenvolvimentismo” ocupará o lugar do “social-
liberalismo” nos governos do Partido dos Trabalhadores.
As propostas de construção de um projeto
“neodesenvolvimentista” para o Brasil têm por base a análise
econômica tradicional, que na verdade vela os interesses
capitalistas com a difusão da falsa ideia de interesses nacionais,
por meio de conceitos da “economia vulgar”, “sem entrar nunca
em considerações de fundo sobre a natureza excludente do
processo de acumulação de capital” (Prado; Meireles, 2010, p.
185).
A nova Cepal, influenciada pela perspectiva de
“desenvolvimento social” do Banco Mundial, por meio do
discurso das oportunidades e da liberdade de escolha individual,
naturaliza os processos sociais. Portanto, recupera a base do
pensamento liberal, valorizando a permanência das
“desigualdades menores”, como fruto de capacidades
347 De acordo com Ruy Mauro Marini (2010), a tese central da Teoria do
Desenvolvimento afirma que o desenvolvimento econômico representa um
continuum no qual o subdesenvolvimento constitui uma etapa antecedente
ao desenvolvimento pleno.
348“O autor indiano demonstra que cada indivíduo tem a capacidade de
2011.
271
diferenciadas entre os indivíduos, para estimular a concorrência
entre os sujeitos. 350
350Castelo, 2010.
351É imprescindível ressaltar que de forma alguma somos contrários às
políticas de transferência de renda, mas não podemos concordar que elas
garantam possibilidade de empreender em igualdade de condições na
estrutura social burguesa.
272
ontológicos da sociabilidade burguesa. Por isso, é imprescindível
pensarmos os fundamentos dos tempos atuais e a essência da
emancipação política, que é última instância a segurança da
propriedade privada. 352
A questão crucial que se deve analisar é que se trata de
um determinante ontológico da necessidade social do capital e
não de uma questão moral apenas.
273
Foi nesse contexto que o capital, em escala mundial,
redesenhou “novas” e “velhas” modalidades de trabalho – o
trabalho precário – com o objetivo de redesenhar as formas
econômicas, políticas e ideológicas da dominação burguesa e
aumentar as expropriações e a taxa de exploração de mais-valor.
A política macroeconômica neoliberal de financeirização
e o aumento da exploração da força de trabalho, sem direitos,
passa a se tornar um determinante necessário da intercompe-
titividade capitalista mundial. Demonstra-se como algo crucial
para amenizar o efeito da chamada “equalização da taxa de
exploração diferencial”. E claro que, por questões objetivas e
históricas, esse trabalho precário irá apresentar um pouco mais
de “decência”, com uma certa proteção formal, nas economias
hegemônicas imperialistas do que nos países de capitalismo
dependente, tendo em vista que os últimos nunca vivenciaram
plenamente os efeitos do chamado Welfare State.
Nos anos 1990, o fim do bloco soviético desencadeou o
fundamentalismo de mercado com o discurso da liberalização
econômica e de uma suposta não intervenção estatal. Porém,
está na essência do Estado “proteger a ordem sociometabólica
estabelecida, defendê-la a todo custo, independentemente dos
perigos para o futuro da sobrevivência da humanidade”
(Mészáros, 2015, p. 27-28, grifos do autor).
Como nos termos de Linden (2017), a “relação de
emprego padrão” em alguns países da Europa foi uma “anomalia
histórica”. Considerando, desta maneira, que aquela forma de
trabalho assalariada com proteção social, organizada em
sindicatos e com certa estabilidade foi uma exceção na história
do capitalismo. Assim sendo, é imprescindível destacar que foi
fruto das contradições históricas da relação capital versus
trabalho e suas lutas sociais, assim como das necessidades
sociais do capital, circunscrito à sua fase monopólica inicial.
A concretização de inúmeras contrarreformas trabalhis-
tas, em diversos países do mundo, consolida e expande a
precarização das relações de trabalho. Com o trabalho zero hora,
o contrato intermitente, o trabalho domiciliar, o teletrabalho, o
trabalho sob demanda nas plataformas digitais e aplicativos.
Inúmeras formas de exploração da força de trabalho que
objetivam rebaixar o seu valor, que chegam a violar os direitos
274
humanos, principalmente nos países de capitalismo
dependente.
275
ou seja, como a modernidade burguesa se cristalizou em nosso
país.
Embora constatemos que, em âmbito mundial, vivencia-
mos um período histórico de grande ofensiva conservadora e
reacionária que ataca os direitos sociais do trabalho e
consequentemente os direitos humanos, é fundamental
apreendermos os determinantes particulares de como o modo de
ser do capital se irradia na realidade brasileira. Como discutimos
no capítulo II, pensar o Brasil e seus problemas é pensar o
capitalismo dependente e compreender a dinâmica do mercado
mundial. Porque
276
legitimar o “ajuste fiscal”, as contrarreformas, as privatizações e
a precarização das condições de exploração da força de trabalho
e dos direitos sociais.
A dinâmica mundial de crise estrutural do capital traz
um extenso percurso de imposição de retrocessos profundos na
legislação laboral, incrustada na política macroeconômica, que
se apresenta como “ajuste fiscal”. Os efeitos são ainda mais
perversos em países de capitalismo dependente como o nosso,
devido aos determinantes particulares da dependência e não por
ausência de desenvolvimento capitalista.
Portanto, assim como outras esferas da vida social
brasileira, a mercantilização da força de trabalho desenvolveu-
se expressando uma aparente contradição da “modernização do
arcaico e a arcaização do moderno”, que tem por alicerce as leis
tendenciais específicas do capitalismo dependente. Como já
mencionado: a cisão do ciclo do capital nas economias
dependentes (que representa o não atendimento das
necessidades das massas pela estrutura produtiva estabelecida),
onde a nossa dependência técnico-científica − imbricada com a
nossa inserção na divisão internacional do trabalho −, é uma das
causas das transferências de valor como intercâmbio
desigual, exigindo a superexploração da força de trabalho,
cada vez mais, com maiores violações aos direitos humanos.
277
As condições de exploração da força de trabalho brasileira
nunca se consolidaram, hegemonicamente, em um contexto de
garantia de direitos laborais, ao contrário, o chamado “trabalho
formal” sempre conviveu com a precariedade, apreendida em
formas transitórias ou híbridas, e com muitas violações aos
direitos humanos.
Há um fenômeno mundial de ampliação das condições
precárias de trabalho, mas que na periferia do capitalismo são
acentuadas devido às condições estruturais de conformação da
mercantilização da força de trabalho, assim como a nossa
inserção no ciclo do capital na divisão internacional do trabalho.
No Brasil, como abordado no primeiro capítulo, desde
1995, o Grupo Especial de Fiscalização Móvel resgatou de
situações de trabalho escravizado mais de 57 mil pessoas até o
final do ano de 2021. Existem inúmeras iniciativas, por meio de
instituições governamentais e não-governamentais, para coibir
e punir esta prática, como o Pacto Nacional de Erradicação ao
Trabalho Escravo, a Comissão Nacional de Erradicação do
Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas
(Conaete/MPT), a Comissão Nacional para a Erradicação do
Trabalho Escravo (CONATRAE/MDH), que possui em cada
estado as comissões estaduais − as chamadas COETRAE’S −, a
Instituição Pacto pela Erradicação do Trabalho Escravo
(InPacto), o Projeto Escravo Nem Pensar da ONG Repórter Brasil,
dentre outras.
Em contrapartida, constata-se que, na mesma medida
que o Brasil avançou em uma década (2003 a 2014) na
caracterização do trabalho escravizado contemporâneo na
legislação, ocorreu a degradação das condições de exploração da
força de trabalho, − a exemplo da contrarreforma trabalhista,
que legalizou a terceirização e estabeleceu a possibilidade da
prevalência do negociado sobre o legislado, desencadeando uma
maior precarização nas relações de trabalho no país.
Da mesma forma, podemos atestar que não é por acaso
que a Bancada Ruralista insiste em retirar da redação atualizada
pela Lei n. 10.803/2003 do artigo 149 do Código Penal
Brasileiro, os elementos: condições degradantes e jornada
exaustiva, porque são componentes constitutivos da perma-
278
nência de formas transitórias ou híbridas de exploração da força
de trabalho reinventadas, permanentemente, em nosso país.
Ainda que pareça um paradoxo esses avanços na
legislação acerca de violações dos direitos humanos e o avanço
das contrarreformas, exige-se uma análise cuidadosa acerca de
como os países periféricos e dependentes absorvem certas
legislações e protocolos exigidos pelos Organismos Interna-
cionais.
Como já afirmado, existe um aumento da criminalização
das migrações. Sob o pretexto da defesa dos direitos humanos,
adota-se um controle de fronteiras para prevenir a imigração
irregular e proteger as pessoas “vulneráveis” 354 do tráfico
humano. Na verdade, justifica-se o controle e restrição dos
fluxos migratórios por meio de diferentes políticas de combate
ao tráfico, que têm sido mais eficazes em criminalizar
279
populações econômica e racialmente marginalizadas (Dias,
2014). 355
Como discutido anteriormente, o Brasil, assim como
outros países periféricos e dependentes, estabelecem uma
política macroeconômica em acordo com o capital internacional
e suas instituições como o Fundo Monetário Internacional, o
Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento.
Além de seguirem cartilhas e protocolos internacionais de
direitos humanos para efetivar, por exemplo, o chamado
“trabalho decente”.
Dessa forma, o compromisso com a política macroeco-
nômica neoliberal internacional que impõe ao Estado a
precarização das relações de trabalho e a desresponsabilização
das obrigações públicas de proteção e garantia dos direitos
sociais. Não garante nenhuma “decência” às condições de
exploração da força de trabalho, até porque a superexploração
da força de trabalho enquanto estrutural e sistemática já
impedia, com poucas exceções, o desfrute do “trabalho decente”
pelas classes trabalhadoras latino-americanas.
Impedem também estes países de erigir uma política
integrada, mesmo que focal e minimalista, de prevenção e
reinserção das pessoas resgatadas da escravidão contempo-
rânea, por causa da extrema precarização e privatização dos
serviços sociais públicos, que são assumidos por ONGs, que
dependem da relação da parceria público-privada e, na maioria
dos casos, do volúvel e, geralmente, desprofissionalizado
trabalho voluntário.
Porque, transfere-se para o setor privado atividades que
possam ser controladas pelo mercado, como por exemplo, as
empresas estatais e as políticas sociais comercializáveis; outra
forma é a descentralização para o setor “público não-estatal”, de
280
serviços que não envolvem o exercício do poder do Estado, mas
devem ser subsidiados por ele. Trata-se da produção de serviços
competitivos ou não exclusivos do Estado, estabelecendo-se
parcerias com a organizações da sociedade civil para o
financiamento e controle social de sua execução (Behring, 2003).
Temos clareza que o projeto neoliberal desregulamentou
os mercados e "reformou" o Estado, privatizando e desnacio-
nalizando setores estratégicos da economia, além da retirada
sistemática de direitos e garantias das classes trabalhadoras.
Sabemos, pois, que o grande burguês e seus executivos almejam
acabar com qualquer instrumento que inviabilize a acumulação
do capital de forma livre e arbitrária conforme os seus interesses.
Assim, objetivam estabelecer “as condições ótimas (hoje só
possíveis com o estreitamento das instituições democráticas) para
direcioná-la segundo seus particulares interesses de classe”
(Netto, 2001, p. 81, grifos do autor).
Houve uma ampliação das políticas focais e compen-
satórias, políticas de combate à fome, a valorização dos direitos
humanos, o direito à vida, em detrimento dos direitos sociais,
em outros termos, significa a tentativa de restringir cada vez
mais a repartição do mais-valor socialmente produzido
cristalizado no fundo público. Dessa forma,
281
elevar o grau da exploração e baratear o valor da força de
trabalho e/ou remunerá-la abaixo do seu valor.
As condições de exploração da força de trabalho, na
realidade brasileira, é produto de um processo estrutural da
mercantilização da nossa força de trabalho, somado às políticas
macroeconômicas neoliberais implementadas ao largo das
últimas três décadas. A degradação foi de certa forma amenizada
pelos governos do PT, com um aumento da formalização da força
de trabalho, mas que foi insuficiente para recuperar o retrocesso
ocorrido nos governos do PSDB.
A política macroeconômica neoliberal dos governos do PT
implementou programas de transferência de renda que tirou
milhões da miséria e uma Política de Geração de Emprego e
Renda 356 articulada a uma Agenda Nacional de Trabalho
Decente que mistificou a precarização com o “empreen-
dedorismo” e não trouxe a “decência” esperada, além de não
modificar aspectos fundamentais da política monetária, fiscal e
tributária, o que beneficiou a chamada financeirização,
alavancando os efeitos da crise estrutural do capital. A partir do
golpe jurídico-parlamentar que iniciou o governo de Michel
Temer e do atual governo sob o comando do fascista Jair
Bolsonaro, temos políticas ultraneoliberais sem qualquer
mistificação e sem qualquer interesse em amenizar os efeitos
catastróficos da política macroeconômica neoliberal para as
classes trabalhadoras.
Por isso, diante das constantes e nefastas mudanças nas
relações produtivas e laborais − presentes nas cadeias
produtivas, iniciadas no Brasil nos anos 1990 – e da defesa do
“trabalho decente”, indagamo-nos: quais são os parâmetros e
perspectivas para pensar o “trabalho decente”?
Como mencionado, o termo surge como elaboração da
OIT, que traz como conceito de “trabalho decente” o ponto de
convergência de quatro objetivos estratégicos da Organização
Internacional do Trabalho: 357 1) o respeito aos direitos no
282
trabalho; 358 2) a promoção do emprego produtivo e de qualidade;
3) a ampliação da proteção social; e 4) o fortalecimento do
diálogo social.
Ao analisarmos cada um desses objetivos estratégicos,
percebemos que alguns podem ser considerados como objetivos
amplos (como o objetivo 1 e o 2) e que podem, de certa forma, se
adequar às transformações recentes nas legislações do trabalho.
Em relação ao primeiro, ao terceiro e ao quarto objetivos,
é necessário refletir quais são os direitos do trabalho e o diálogo
social estabelecido após as contrarreformas trabalhistas e
outros retrocessos em nosso país. Pois, se nos referirmos ao
direito de negociação coletiva e à liberdade sindical, observamos
o enfraquecimento destes pilares. E sobre a ampliação da
proteção social, é necessário saber qual proteção social. Será a
proteção social básica financiada pelas próprias classes
trabalhadoras, enquanto “empreendedoras portadoras de
capacidades individuais”? 359 Uma proteção que, geralmente, não
se sustenta, se os níveis salariais não permitem à pessoa repor
o seu desgaste e, portanto, ela não consegue pagar os tributos
devidos, para garantir seus direitos.
A terceirização irrestrita, agora reforçada pela última
decisão do Supremo Tribunal Federal, 360 e a prevalência do
negociado sobre o legislado trazem a dificuldade de se garantir
direitos do trabalho. Uma vez que já está comprovado por
inúmeras pesquisas que a terceirização gera precarização das
condições de trabalho e violação dos direitos do trabalho.361
Diante apenas desses pontos das leis nº 13.467/17 e
13.429/17, como pensar na possibilidade de igualdade de
negociação entre patronato e empregado/a? Como garantir o
“trabalho decente” nos termos atuais destas leis?
283
Menciono alguns dos muitos retrocessos, alguns já
destacados no capítulo anterior, que a Lei nº 13.467/17
desencadeou: autorização da terceirização da atividade-fim, com
responsabilidade apenas subsidiária do tomador, prevendo
“quarteirização”; o negociado sobre o legislado; o trabalho
intermitente para qualquer atividade e sem garantia sequer do
recebimento do salário mínimo; o teletrabalho sem limitação da
jornada; complexificação da responsabilidade do empregador
por acidentes; imposição do pagamento de honorários periciais,
mesmo na assistência judiciária gratuita; desmonte dos
sindicatos, tornando facultativa a contribuição e não criando
outra fonte de sustentação; impedimento do acesso à Justiça do
Trabalho e julgamentos conforme o Código Civil (Severo; Maior,
2017).
Antes desses retrocessos serem legitimados, muitos deles
já eram uma realidade ilegal da forma de exploração da força de
trabalho no Brasil.
A racionalidade burguesa, em sua superficialidade,
assume a leitura dos “direitos naturais” para justificar uma
suposta igualdade entre os sujeitos sociais. A “igualdade
jurídica” (formal-abstrata) não garante a igualdade substantiva
na negociação existente entre sujeitos que assumem condições
concretas distintas e díspares pela posse ou não da propriedade
privada e dos meios de produção.
284
estabelecendo limites a esse (Organização Internacional do
Trabalho, 2018a, p. 83-84).
285
no documento da OIT “Futuro do Trabalho no Brasil:
Perspectivas e diálogos tripartites”, do ano de 2018.
286
milhões de pessoas na informalidade, o que representa 41,4%
do total da força de trabalho ocupada. 362
A legalização da terceirização e as “novas” formas de
contrato regulamentadas na contrarreforma trabalhista
reduzem a garantia de direitos trabalhistas e ampliam a
precarização do trabalho nos contratos temporários, que
incidem no aumento de casos de trabalho escravizado
contemporâneo, além do incentivo ao autoemprego. “Essa
contrarrevolução burguesa descarregou sua profunda verve
antissocial em escala planetária: impulsionou a barbárie
neoliberal ainda dominante e deflagrou uma grandiosa
reestruturação produtiva do capital” (Antunes, 2018, p. 257,
grifos do autor).
Diante deste cenário, ao pesquisar sobre o tema
“trabalho decente” e analisar os determinantes da sociabilidade
burguesa e a objetividade das relações de trabalho em nosso país
torna-se necessário indagar: qual a apreensão de um “trabalho
decente”?
Nas entrevistas realizadas, é importante destacar que
valorosas e imprescindíveis pessoas para o combate à escravidão
contemporânea ressaltaram algumas contradições inerentes
desta sociabilidade, mas não deixam de acreditar que é possível
o “trabalho decente”, porém a defesa delas está pautada na ideia
de trabalho digno. 363
Ao pensarem e formularem todo o encadeamento das
ideias predominantes no direito positivo e na circunscrição dos
direitos humanos e, por sua vez, a defesa dos direitos humanos
e do “trabalho decente”. Os/as entrevistados/as apresentam as
contradições inerentes, em nosso país, ao se destacar a
realidade objetiva das condições das relações de trabalho e de
poder. Como em afirmações: “Negados historicamente a uma
grande parcela da população” e “Não consegue de fato ocorrer”.
Nesse sentido, analisamos como as leis econômico-
sociais do capitalismo engendraram-se de forma particular
362Ver: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/
2012-agencia-de-noticias/noticias/26741-desemprego-cai-para-11-9-na-
media-de-2019-informalidade-e-a-maior-em-4-anos. Acesso fev. 2020.
363Para uma análise sobre trabalho digno e trabalho escravo, ver: Conforti,
2017.
287
enquanto características sistemáticas e estruturais em nossa
formação econômico-social dependente. Portanto, partícula-
ridades expressas em aspectos econômicos, políticos e culturais,
como: a concentração de renda, de prestígio social e do poder
nos estratos e nas unidades sociais, que possuem importância
estratégica para o núcleo hegemônico da dominação externa;
uma base para a exploração externa e para a concentração
interna de renda, do prestígio social e do poder das burguesias
com seu perfil plutocrático; e a participação subalterna das
classes trabalhadoras na ordem econômica, social e política
existente, como um requisito estrutural e dinâmico para a
estabilidade e crescimento de todo o sistema. 364
Ao serem questionadas sobre o entendimento e defesa do
“trabalho decente”, as pessoas entrevistadas demonstravam a
crença no papel do Estado, no fortalecimento e na defesa da lei,
ainda que reconheçam os limites da forma como a sociedade
brasileira se organiza. Também podemos notar a prevalência de
uma análise moral, de forma a defender que os/as agentes
econômicos individuais deveriam ter “bom senso” na contratação
e uso da força de trabalho, ou esperar o “bom senso” do
judiciário.
A compreensão de muitos está pautada na ideia de que o
“trabalho decente” seria a concreção daquilo que se vivenciou,
no período de Welfare State, nos países da Europa Nórdica e
Ocidental nas “três décadas de ouro”. Essa comparação remete
à apreensão da dignidade e, portanto, ao cumprimento de
valores circunscritos à Ordem Social da nossa Constituição
Federal de 1988, de uma proteção social que garantiria a
reprodução social da força de trabalho. 365 E, por sua vez, na
garantia do contrato social, por meio das políticas sociais e
salários indiretos, favorecendo a redução do custo de
reprodução da força de trabalho.
Assim como, quando perguntados: “quais seriam os
caminhos para a concretização dos direitos humanos?” Muitos
consideraram o direito social, a existência de políticas públicas,
364Fernandes, 2009.
365A exemplo dos artigos 1º, 3º e 170 da Constituição Federal de 1988 na
garantia da “dignidade” do trabalho.
288
de um “Estado de Bem-Estar Social” e a necessária conquista da
igualdade substancial.
Esta configuração de expansão dos direitos humanos da
emancipação política, como afirmado antes, foi fruto das lutas
sociais que cristalizaram a intervenção estatal nos países de
economias hegemônicas, utilizando-se do fundo público para
políticas públicas, e salários indiretos para a produção
capitalista e reprodução da força de trabalho. Foram políticas
públicas e salários indiretos, para o consumo em massa;
consumo estatal e outros incentivos; ação social estatal; direitos
trabalhistas e civis, para a redução da conflitividade social; e a
legitimação e reprodução das relações sociais e da ordem
vigente.
Dessa forma, destacam-se as condições objetivas
concretas atuais de se realizar uma proteção social, com base
naquela que existiu do segundo pós-guerra aos anos 1970,
assim como é importante ressaltar os limites estruturais dos
direitos humanos e da particularidade brasileira.
Ao se analisar a mediação universal que a mercadoria-
dinheiro assume nesta sociabilidade e articular esta apreensão
às condições particulares do capitalismo dependente, torna-se
inteligível os caminhos adversos para a concretização plena dos
direitos humanos. Como aponta uma das pessoas entrevistadas
289
No cotidiano de implementação e de tentativa de efetivar
os direitos humanos, sociais e do trabalho, os/as operadores/as
do judiciário, deparam-se com as condições concretas que
impedem a sua execução, e que a efetividade das leis depende
dos interesses das classes dominantes. Como fica claro na
entrevista D:
290
Os direitos humanos engendram-se na sociabilidade
burguesa, sob a base da propriedade privada. Isso não significa
que devam ser ignorados, porque mesmo que colabore com a
reprodução social burguesa, garante a possibilidade de
ampliação dos espaços de realização da individualidade dos
sujeitos 366 e, mesmo com imensa contradição, a luta pelos
direitos humanos pode viabilizar concretamente a expansão dos
espaços democráticos.
291
Temos a clareza de que existe uma contradição inerente
às reformas sociais, que são concretizadas por meio das políticas
e direitos sociais, que viabilizam um certo “consenso” entre as
classes sociais fundamentais. Todavia, as atuais condições
concretas da acumulação capitalista têm demonstrado os limites
históricos daquelas reformas sociais. Como afirmado por muitos
analistas, 367 parte da riqueza socialmente produzida cristalizada
no fundo público, tem sido, cada vez mais, disputada e as
classes dominantes succionam crescentemente o montante, que
era direcionado às políticas sociais, para dar concretude ao
capital fictício. 368
Dessa forma, reconhece-se como fundamental a luta
pelos direitos humanos e pelo trabalho digno no lugar do
“trabalho decente”. Uma vez que a Agenda do Trabalho Decente
aparenta ser muito mais próxima da precarização, por meio da
“igualdade de oportunidades” ou de escolhas para
“empreender”, 369 do que dos parâmetros históricos e
constitucionais de dignidade.
Nesse sentido, é crucial salientar que esta luta
atualmente deve ser, cada vez mais, radical, no sentido de
apreender que os limites da acumulação capitalista são maiores,
pois, para amenizar a “equalização descendente da taxa de
exploração diferencial”, os capitalistas exigem uma maior taxa
de exploração, almejam a ausência de regulações sociais do
trabalho e a diminuição ou eliminação dos custos de produção.
A consequência deste processo já se vivencia com a exacerbação
da devastação social.
Em nosso país, o capitalismo dependente constituiu uma
estrutura social que absorveu as transformações do capitalismo
292
com modernização e crescimento, porém com o bloqueio do
desenvolvimento independente, da autonomia real e da
integração nacional em benefício das burguesias locais.
Impediu-se avanços concretos dos direitos humanos, dos
direitos sociais e dos direitos laborais para as classes
trabalhadoras, por meio de reformas sociais.
O movimento contrarrevolucionário do conjunto das
frações dominantes burguesas, no atual governo sob o comando
do fascista Jair Bolsonaro, amplia os retrocessos para viabilizar
a manutenção do seu controle econômico, político e
institucional. De forma a agudizar as contrarreformas 370 e
privatizações, que geram consequências perversas para as
classes trabalhadoras, como o aumento do adoecimento, do
assédio moral, dos acidentes de trabalho, dos suicídios, da
criminalização da sua condição de miséria e das suas lutas,
assim como a ausência de direitos sociais para suprir diversas
carências.
Como uma “volta ao passado”, as características
precárias da exploração da força de trabalho, típicas do cenário
europeu do início do século XIX ou muito próximas à nossa
escravidão colonial (nunca ausentes no cenário latino-
americano) são recicladas com uma nova aparência: com uma
suposta liberdade mediante o autoemprego e o
“empreendedorismo”, com o aumento das contratações por meio
do MEI (Microempreendedor Individual) e de ocupações via
plataformas digitais ou aplicativos.
Em escala mundial, aprofundam-se os processos de
opressão-exploração e expropriação com um profundo impacto
nas relações humanas e na natureza. As chamadas “políticas de
austeridade” com as contrarreformas, somada aos resultados
das mudanças nos circuitos produtivos e de gestão da força de
trabalho, por meio das novas tecnologias da informação e
293
comunicação (TIC), aumentaram o desemprego e fragilizaram as
formas de organização das classes trabalhadoras.
Estamos numa jornada de grandes perdas de direitos e
aqui destacamos os trabalhistas, que podem objetivar um
padrão hegemônico de naturalização das formas de exploração
do trabalho escravizado contemporâneo, conforme o artigo 149
do Código Penal Brasileiro. Portanto, faz-se indispensável o
resgate da análise dos fundamentos da sociabilidade capitalista,
assim como da particularidade brasileira, para a apreensão dos
limites da garantia do trabalho digno e, por sua vez,
emancipatórios do capitalismo, principalmente, neste cenário de
crise estrutural.
Os impactos devastadores das contrarreformas
trabalhistas no Brasil explicitam-se progressivamente, e o
Governo Bolsonaro apresenta a agudização da “agenda” de
destruição dos direitos sociais e laborais. De acordo com o Índice
Global de Direitos, 371 nosso país está pela primeira vez na lista
dos dez piores países do mundo para as classes trabalhadoras.
Nesse horizonte, é crucial apontar que nos governos do
PT houve uma mistificação da precarização como liberdade sob
a ilusão do “empreendedorismo”, como parte integrante da
política de assistência social que direcionou a PGER, no caminho
da “agenda” do Banco Mundial de “desenvolvimento social como
liberdade, no lema: liberdade de escolhas caracteriza um mundo
sem pobreza”. 372
Com todas as mudanças da “reestruturação permanente
do capital”, que devastaram os direitos das classes
trabalhadoras, a reivindicação pelo “trabalho decente” imprime
a indagação sobre seus parâmetros e perspectivas. Já que a
noção de “trabalho decente” é bastante ampla e na objetividade
da PGER brasileira incorpora inclusive “empreendedores/as
individuais”, que arcam, quando conseguem, com sua proteção
social.
371 https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/06/24/brasil-
esta-entre-os-piores-paises-do-mundo-para-trabalhador-aponta-debate
.Acesso em jun. 2019.
372 Ver: https://www.worldbank.org/pt/news/press-release/
294
O trabalho digno, constitucionalmente falando, frente às
contrarreformas tem sido direcionado para a concepção de
“trabalho decente” que é a “igualdade de oportunidades” ou de
escolhas para “empreender”. Porque a compreensão que a OIT
possui sobre o “trabalho decente” “inclui o emprego assalariado,
o trabalho autônomo ou por conta própria, o trabalho em
domicílio, assim como a ampla gama de atividades realizadas na
economia informal e na economia de cuidado” (Rodgers apud
Abramo, 2015, p. 29).
Nesse processo de obtenção de um “novo consenso”, a
PGER buscou mistificar o trabalho “autônomo” e precário na
ideia do “empreendedorismo”. E as últimas contrarreformas
trabalhistas, no governo Temer, aniquilaram os direitos do
trabalho e reforçaram práticas pregressas, como: o contrato
intermitente e a figura do autônomo permanente; a ampliação
das jornadas de trabalho com redução do tempo de descanso; a
alteração do enquadramento do grau de insalubridade, além da
terceirização irrestrita.
As contrarreformas trabalhistas reverberam em perdas
significativas para as classes trabalhadoras ao ampliar
condições aviltantes de exploração da força de trabalho.
Expressando a característica antissocial das classes dominantes
brasileiras referente à forma de expropriação do trabalho que se
eleva exponencialmente. Sendo assim, identificamos como a
superexploração da força de trabalho evidencia-se nas jornadas
exaustivas, que consomem o fundo de vida do/a trabalhador/a,
expressas nos adoecimentos físicos e mentais irreversíveis e
acidentes de trabalho.
Nesse caminho, a linha tênue existente entre a
escravidão contemporânea e as condições atuais de exploração
da força de trabalho, desencadeiam esforços da Bancada BBB
para retroceder a tipificação do trabalho escravizado
contemporâneo dada pela Lei nº 10.803/2003. Principalmente
após a aprovação da chamada “PEC do trabalho escravo” que
alterou o artigo 243 da Constituição Federal. 373
Diante desse contexto, é fundamental ampliar o debate
sobre a defesa dos direitos humanos, assim como do chamado
295
“trabalho decente”. Uma vez que esta defesa não pode ser
realizada desconectada da apreensão dos limites estruturais da
emancipação política e sem a defesa da emancipação humana,
portanto não pode estar descolada das lutas anticapitalistas,
visto que a prática social burguesa demonstra seus
instrumentos político-ideológicos para mistificar a degradância
do trabalho, e que seus limites civilizatórios se esvaziam, cada
vez mais, com seu poder de desumanização e de destruição da
natureza.
À vista disso, ressaltamos a grande importância dos
lutadores e lutadores, que compõem a grande empreitada do
combate ao trabalho escravizado contemporâneo e a
imprescindível defesa do trabalho digno e dos direitos humanos.
Porque é incontestável que “a legitimação de uma alternativa
socialista para a forma capitalista de intercâmbio social não
pode ignorar a questão dos direitos humanos” (Mészáros, 2008,
p. 179).
296
traduzida na construção literária, 374 as ações de fé e busca por
justiça social de clérigos e clérigas nas Pastorais da Terra, assim
como as denúncias em reportagens internacionais,
evidenciaram a situação de grande parte das classes
trabalhadoras brasileiras e trouxeram à luz caminhos de
interpretação e apreensão daquelas formas transitórias ou
híbridas de exploração da força de trabalho com violações aos
direitos humanos.
No tempo presente, com o avanço da ferocidade da
produção e reprodução capitalista, as formas contemporâneas
de escravização dilatam-se e consolidam-se em espaços, nunca
vistos, e esmagam os parcos direitos laborais das nossas classes
trabalhadoras.
Diante dessa situação, o resgate da análise de István
Mészáros (2015) sobre o Estado é fundamental, porque reitera a
apreensão marxiana sobre a futilidade dos esforços
voluntaristas para suprimir os problemas materiais desta
sociabilidade por meio de “decretos”. Portanto, de forma a
corroborar com nossa análise, vimos que mesmo com uma das
leis mais avançadas do mundo no combate à escravidão
contemporânea, não serão os “decretos” que irão extinguir esta
forma deplorável de exploração da força de trabalho. Até porque,
independentemente da forma particular assumida em nossa
formação econômico-social burguesa, “a lei do mais forte e a
ilegalidade do Estado [burguês] são em certo sentido sinônimos,
em vista da sua forma ou modalidade – isto é, a não violenta ou,
pelo contrário, até mesmo na sua forma mais brutal – de
afirmação do imperativo da lei do mais forte legitimador do
Estado” (Mészáros, 2015, p. 57).
Nesse sentido, tendo a clareza da essência do Estado
burguês e compreendendo que a escravidão contemporânea não
se trata de uma anomalia, afirmamos que se conforma nos
processos constitutivos da condição das classes trabalhadoras
brasileiras com tendência, neste período histórico, a se espraiar
se não for freada pelas lutas gerais das classes trabalhadoras.
297
Justamente porque nos deparamos com o aumento extremo do
desemprego, da fome, do adoecimento físico e mental, da
precariedade da vida, da violência, do sucateamento e
privatização das políticas públicas, dentre outras consequências
da forma particular como a Lei Geral da Acumulação Capitalista
se engendra na realidade brasileira e se desenvolve na dinâmica
do atual período histórico. Porque nosso Estado autocrático
constituiu uma permanente anulação da fala e do dissenso, seja
por meio de uma “democracia restrita” ou por uma “democracia
de cooptação”, para garantir o controle da força de trabalho e
sua extração máxima de mais-valor, expressando,
cristalinamente, a inconciliável relação entre a dominação
burguesa e a democracia. Ressaltamos, sob este ângulo de
análise, que o gozo da liberdade e da igualdade substantiva são
inalcançáveis em qualquer quadrante do mundo burguês.
Como indicamos no decorrer do livro, a fase atual do
capitalismo de crise estrutural, que abrange todas as esferas da
vida humana e natural, apresenta condições propícias para a
expansão da escravidão contemporânea. Porque as “novas” e
“velhas” formas de inserção laboral, a exemplo das alternativas
atuais ao desemprego como o trabalho nas plataformas digitais
e aplicativos, também têm indicado jornadas exaustivas de
trabalho com a ausência de descanso intrajornada e
interjornada, já que tem sido necessário para boa parte dos/as
trabalhadores/as estar disponível quase 24 horas por dia para
ser convocado/a e alcançar o suficiente para sobreviver. Assim,
vivem um cotidiano laboral degradante, típico da informalidade
“empreendedora”.
A perda de renda, com a pandemia, tem direcionado
ainda mais pessoas para este tipo de trabalho e tornado as
condições de trabalho ainda mais perversas. Sendo assim, é
imprescindível a análise de que nesta fase contemporânea do
capitalismo
298
portanto, de sua intensidade. Neste sentido, dimensiona-
se a importância da superexploração do trabalho no
sistema produtivo internacional e se revela a tendência do
sistema a homogeneizar o capital constante e incidir
diretamente na determinação da taxa de lucro. Marini
encontra neste fenômeno um ponto de inflexão que divide
duas épocas históricas do desenvolvimento capitalista
mundial. Como resultado disso, temos uma segunda
conclusão estratégica de sua análise: a homogeneização
tecnológica ao estimular a igualação das composições
orgânicas do capital na economia mundial provoca um
aumento da importância do trabalhador como fonte de
lucros extraordinários (Marini 1996, p. 65 e ss.) (Valencia;
Félix, 2021, p. 50).
299
nas cadeias produtivas, em âmbito mundial. Não obstante, por
causa do seu tripartismo, a OIT apresenta hegemonicamente os
limites de uma instituição que possui uma leitura da dinâmica
mundial pautada em aparentes paradoxos, 375 com a crença de
“justiça social” num “capitalismo humano e sustentável”.
Sob as bases de uma razão fenomênica e/ou
instrumental, prevalecem explicações dualistas, por conse-
guinte, apesar de analisar elementos fundamentais para as lutas
diárias das classes trabalhadoras, estabelecendo “agendas” com
“metas”, não se considera a essência da sociabilidade burguesa
em seu desenvolvimento desigual e suas contradições. Portanto,
adequa-se às vanguardas “humanistas” da burguesia com
“ilusões reformistas e legalistas”, 376 realizando análises
articuladas ao “neoliberalismo progressista”, que corroboram
indiretamente no rebaixamento da perspectiva de dignidade do
e no trabalho.
O “trabalho decente”, imbricado em nossa Política de
Geração de Emprego e Renda, auxilia na mistificação da
“igualdade de oportunidades como liberdade para empreender”,
e corrobora com o rebaixamento das bandeiras históricas das
classes trabalhadoras. Por isso, colocar o “trabalho decente”
como antítese do trabalho escravizado e reivindicá-lo como
alternativa para as classes trabalhadoras é não considerar sobre
quais bases se fundamenta. Ademais, um dos princípios do
“trabalho decente” é o respeito à legislação do trabalho. Mas,
como ficamos, com os atuais retrocessos que a tornaram mais
próxima das tipificações do artigo 149 do Código Penal
Brasileiro?
Apesar da apreensão da dinâmica do desenvolvimento
desigual, combinado e destrutivo do capitalismo, a luta por
direitos, por uma proteção social verdadeiramente digna,
atrelada a uma seguridade social universal, não deve ser
rebaixada, porque essas reivindicações explicitam as
contradições da sociabilidade capitalista e dão visibilidade à
pressão que o empresariado realiza, constantemente, para
depreciar a dignidade do e no trabalho, para o aumento da
extração de mais-valor. Porque
300
Se o fundamento da ação coletiva for voltado radicalmente
contra as formas de dominação do capital, com suas
alienações e seus estranhamentos, a luta imediata pela
redução da jornada ou do tempo de trabalho se torna
também importante e inteiramente compatível com o direito
ao trabalho. Desse modo, a luta contemporânea pela
redução da jornada (ou do tempo) de trabalho e a luta pelo
direito ao trabalho, ao invés de serem excludentes, se
tornam necessariamente complementares (Antunes, 2018,
p. 305, grifos do autor).
301
Como discutimos anteriormente, temos a apreensão de
como a fase atual do capitalismo contemporâneo demonstra,
cada vez mais, seu esgotamento civilizatório. As classes
burguesas, para apresentar respostas às leis tendenciais deste
modo de produção, apostam em contratendências que agudizam
as contradições e, consequentemente, as expropriações do fundo
de consumo e do fundo de vida das classes trabalhadoras.
A via para a dignidade do trabalho na periferia do mundo
capitalista sempre revelou que o grande dilema dos caminhos
das esquerdas socialistas, entre reforma ou revolução, foi a
clarividência de que o capitalismo não é reformável. Hoje, mesmo
nas economias hegemônicas imperialistas, as reformas
democrático-burguesas realizadas são esvaziadas pela necessi-
dade de manutenção do capital em efetivar cada vez mais
profundas expropriações e capitalização de todas as esferas
possíveis, para dar concretude a um capital especulativo que se
reproduz em uma velocidade muito maior do que a dos capitais
produtivos.
Sendo assim, as burguesias locais e internacionais, para
garantir a redução dos custos de produção e o aumento da taxa
de exploração, objetivam:
302
ii) camuflar as relações de contrato de trabalho para
defender a “modernização” na legislação laboral:
As artimanhas político-ideológicas de se apropriar de
bandeiras históricas das classes trabalhadoras e ressignificá-las
e/ou garantir que o pensamento hegemônico corrobore com a
falsa ideia da inexistência do antagonismo entre as duas classes
fundamentais, sempre estiveram presentes como táticas para
frear as lutas das classes trabalhadoras. Os ideólogos do capital
garantem estratagemas articulados às suas próprias
necessidades permanentes em busca por lucros extraordinários
e contra-arrestar as contradições da acumulação capitalista,
que prosseguem, aceleradamente, com o avanço das forças
produtivas, hoje vistos na vigilância total da força de trabalho,
em seu labor, lazer e consumo, garantida pelos algoritmos.
Permitindo a ilusão da inexistência de contrato de trabalho e
uma falsa liberdade de controle da disponibilidade ao trabalho
por parte das classes trabalhadoras; e, por conseguinte
303
todo tipo de ocupação em condições informais (quando se
consegue ter alguma!) são as atuais formas precárias de venda
da força de trabalho como tentativa de sobrevivência.
Sob esta perspectiva, a partir da historiografia brasileira,
salientamos o papel do registro e da memória e, hoje, a
relevância da auditoria fiscal do trabalho, não apenas para
garantir direitos do trabalho, mas para o fundamental registro
da fiscalização e de dados sobre: 1) os setores econômicos, para
verificar onde se encontram as pessoas em condição de
escravidão contemporânea ou situações muito próximas,
estabelecendo as características do local e das cadeias
produtivas, se havia terceirização ou quarteirização; 2) o local de
origem do/a trabalhador/a, que expressa o movimento dos
fluxos migratórios; 3) a cor, que garante visibilidade à
racialização e subalternização da nossa divisão social do
trabalho; 4) o gênero, para detectar e analisar quais setores e
ocupações as mulheres e a população LGBTQI+ mais se inserem;
5) a idade, para estabelecer conexões analíticas dos problemas
geracionais que envolvem a população economicamente ativa,
identificando a presença de crianças e adolescentes ou idosos; e
6) a escolaridade, já que, frequentemente, no caso da escravidão
contemporânea, as pessoas resgatadas possuem o ensino
fundamental incompleto ou são analfabetas.
Informações fundamentais sobre a organização
produtiva, reprodutiva e social, postas nos direitos violados e
condições laborais para a análise da nossa divisão sociossexual
e étnico-racial do trabalho. Permitindo uma melhor apreensão
da realidade social e da diversidade da classe, a qual se constitui
na unidade opressão-exploração; e auxiliando, principalmente,
os rumos para a organização das lutas das classes
trabalhadoras e subalternizadas para ultrapassarmos os muros
institucionais-parlamentares.
Sob o destaque da heterogeneidade das classes
trabalhadoras, como abordado nos capítulos anteriores, no ano
de 2021, segundo ano de pandemia do novo coronavírus, o
resgate da escravidão contemporânea de diversas trabalhadoras
domésticas, a maioria negra, demonstrou a racialização e a viga
do patriarcado para a garantia do trabalho reprodutivo de
diversas famílias brasileiras. Essas mulheres tiveram seu fundo
304
de consumo e de vida violados, dentro de um movimento global
de expropriação de direitos do conjunto das classes
trabalhadoras. No entanto, cabe destacar que, historicamente,
essas mulheres tiveram suas vidas negadas de humanização.
Com suas vidas degradadas, pela subalternização e
superexploração da sua força de trabalho, são apresentadas
“como se fossem da família”, dentro do pressuposto da
“democracia racial”. Todavia são designadas para
permanecerem uniformizadas, destacadas do livre acesso
“social” da casa, restrita à área de serviço e, ao mesmo tempo,
responsáveis por todos os atributos do trabalho reprodutivo.
Estabelecida pela “família tradicional brasileira”, preferencial-
mente como a “criada-muda”, sem qualquer possibilidade de
opinar e viver a sua vida, porque, na opinião do patronato, “não
conseguem responder por si” ou “tem um parafuso a menos”, 377
porém devem estar sempre aptas a servir.
Entendemos que a atual fase contrarrevolucionária
prolongada e permanente do capitalismo, cada vez mais
destrutivo e fascistizante, apresenta-se sem possibilidades de
ser reformado, em qualquer região do mundo burguês. Na
periferia do capitalismo, isso sempre se mostrou inviável. Por
isso, entender a estrutura da realidade social e seus elementos
dinâmico-conjunturais, o movimento dos capitais, na
particularidade brasileira, é fundamental para as lutas atuais.
Para barrar não somente o fascismo 378 de hoje, mas o
capitalismo cada vez mais fascistizante.
Até porque o que se apresenta como “arcaico” ou
supostamente não compatível com o capitalismo, na verdade,
estrutura a moderna sociedade burguesa, nítido no
ultraconservadorismo das burguesias brasileiras e na
precariedade estruturante do nosso mercado de trabalho, e se
acentua ao se espraiar por todo o planeta na fase contemporânea
do capitalismo.
Poggi, 2019.
305
A sociedade burguesa, por evidenciar suas mazelas em
um movimento desigual e contraditório, deixa a sensação, para
quem ignora sua essência e legalidade, de que algumas
conquistas das classes trabalhadoras − circunscritas a um
determinado tempo histórico e localidade, às custas da
exploração redobrada de boa parte das classes trabalhadoras
das economias periféricas e dependentes – possa retornar e se
expandir. No entanto, a prática histórico-social tem apresentado
que a superexploração avança para além das periferias do
mundo e que a condição antes restrita a migrantes, em situação
irregular, torna-se o “lugar comum” para o conjunto da força de
trabalho dos Estados nacionais também das economias
hegemônicas.
As formas contemporâneas de escravização expressam
cristalinamente a condição da superexploração, que é uma
particularidade sistemática e estrutural do capitalismo
dependente que não se confunde simplesmente com formas
“pretéritas” de exploração da força de trabalho ou com falta de
desenvolvimento capitalista. Porque a superexploração existe
mesmo em situações nas quais as classes trabalhadoras têm
acesso aos direitos fundamentais e não tem seu fundo de
consumo violado, porque temos visto a degradação do seu fundo
de vida por intermédio do prolongamento da sua jornada de
trabalho, que descontrói limites da vida privada com a
disponibilidade quase total ao trabalho.
Ademais, a tendência, acompanhada pela sociologia do
trabalho, é de que rapidamente essas parcelas das classes
trabalhadoras estão sendo absorvidas pela falta de
correspondência dos seus salários com o seu valor histórico e
moral, principalmente após as contrarreformas trabalhistas.
Não temos a pretensão de postular a generalização da
análise do mundo do trabalho brasileiro com a escravidão
contemporânea, que é uma terrível condição na qual grande
parcela das classes trabalhadoras foi submetida ou está vivendo.
Porém, o nosso objetivo foi reconhecer, em sua condição
particular, como fruto de um processo histórico-estrutural e
dinâmico-conjuntural na realidade brasileira, naturalizado por
grande parte do patronato que se estabeleceu enquanto “classe
306
dominante-dominada” pela opressão-exploração de pessoas
racializadas, regionalizadas e marcadas pelo gênero.
Além disso, constatamos a expansão de formas
contemporâneas de escravização em distintos e inusitados
setores econômicos, que em nossa análise é consequente da
difusão da precarização. A jornada exaustiva e as condições
degradantes têm se tornado uma trivialidade no cotidiano
laboral nas áreas rurais e urbanas, por isso as fortes disputas
ideopolíticas e jurídico-formais sobre o trabalho escravizado, em
caracterizá-lo como sendo apenas sinônimo de trabalho forçado
com o cerceamento da liberdade.
Dar ênfase à divisão social, sexual e étnico-racial do
trabalho e realizar o percurso de desmistificar as contradições
intrínsecas do capitalismo, que são necessariamente
exacerbadas nas economias dependentes, garante a apreensão
de que uma verdadeira antítese à escravidão contemporânea se
apresenta com a construção de uma nova necessidade social,
estabelecida por uma nova organização produtiva e reprodutiva
socializada e comunitária.
É crucial salientar que não dá para pensarmos em
políticas de combate à escravidão contemporânea em curto e
médio prazo se rebaixarmos os direitos sociais fundamentais, se
apresentarmos como alternativas de sobrevivência para os/as
resgatados/as o “empreendedorismo”. A pandemia do novo
coronavírus demonstrou a realidade do “empreendedorismo”,
destacadamente, com o setor de delivery. Como também aclarou
a importância da garantia da dignidade constitucional, do
investimento em educação, ciência, tecnologia, e obviamente na
saúde. Porque, quando não há investimento nestes setores,
estamos fadados ao caos social.
Por isso, uma primeira medida imediata, de curto prazo,
necessária para corroborar com o combate das formas
contemporâneas de escravização, seria o cancelamento da
Emenda constitucional 95/2016. Conhecida como a PEC do teto
dos gastos públicos ou pelos movimentos sociais como a “PEC
do fim do mundo”, 379 uma vez que o congelamento dos gastos
307
públicos por 20 anos compromete diretamente a efetivação dos
serviços sociais públicos, consequentemente, afeta a garantia
dos direitos fundamentais, assim como atinge a realização do
trabalho da auditoria fiscal do trabalho, que está com seu
quadro nacional de auditores/as defasado. 380 Sem financia-
mento e com a política macroeconômica neoliberal de
privatização de tudo, adentramos em um cenário ainda mais
perverso de total dependência técnico-científica, com saúde e
educação precárias e privatizadas, com a desproteção total das
classes trabalhadoras.
À vista disso, outra ação iminente é a reversão da
contrarreforma trabalhista de 2017, que atingiu de maneira
nefasta as classes trabalhadoras, que atualmente se deparam
com o desemprego ou, quase hegemonicamente, com situações
precárias e aviltantes de trabalho. Uma das mais marcantes
mudanças na legislação laboral foi permitir a possibilidade do
negociado sobre o legislado, que fragiliza ainda mais a situação
das classes trabalhadoras frente ao patronato. Quando
formalizada a sua contratação têm se submetido ao trabalho
intermitente, que não necessariamente prevê a garantia nem de
um salário-mínimo. Assim como é crucial a anulação da
contrarreforma da previdência que prejudica a perspectiva de
futuro e compromete a segurança frente a intempéries do
cotidiano laboral.
Reiteramos, nesse caminho de transformações
profundas e nefastas, as condições gerais do trabalho,
exemplificadas na uberização, parecem se aproximar das
tipificações da escravidão contemporânea, de acordo com o
artigo 149 do Código Penal Brasileiro, destacadamente a jornada
exaustiva e a degradância.
308
O setor do delivery que explodiu neste período da
pandemia escancarou a precarização da situação laboral. Se
antes o endividamento era para garantir o acesso a bens
suntuários, agora, as classes trabalhadoras se endividam para
trabalhar e não conseguem garantir a sua sobrevivência. Fora o
esgotamento prematuro decorrente das circunstâncias laborais,
que tem ocasionado cada vez mais acidentes de trabalho, além
do adoecimento físico e mental.
Outro determinante perverso das economias depen-
dentes é a não correspondência existente entre a esfera
produtiva de alguns setores econômicos com as necessidades
das massas, que condiciona a expansão de formas aviltantes de
exploração da força de trabalho e explica a sua superexploração
e, por conseguinte, a inexistência de um programa de segurança
alimentar e nutricional para as classes trabalhadoras.
Portanto, superar a cisão das fases do ciclo do capital,
assim como a transferência de valor como intercâmbio desigual
nas economias dependentes, como a brasileira, repercutiria em
rupturas com o mercado mundial, e, dessa maneira, com
possibilidades de superação das mazelas brutais que as classes
trabalhadoras brasileiras vivenciam.
Essas são transformações estruturais reivindicadas
desde os anos 1950/60, que somente acontecerão com a
interrupção da integração brasileira à dinâmica da divisão
internacional do trabalho, e, consequentemente, com o
capitalismo. Assim, abriríamos caminhos para efetivar uma
necessária reforma urbana e agrária articuladas na promoção
da integração do campo com a cidade. Com um outro tipo de
indústria combinado a um desenvolvimento tecnológico
vinculado à biotecnologia e à biodiversidade, preservando as
nossas riquezas naturais com base na produção agroecológica e
orgânica. Tendo em vista que a escravidão contemporânea deve
ser entendida também como fruto da desigualdade fundiária, 381
309
de insuficientes políticas agrárias, de devastação das florestas,
dos profundos contrastes regionais e sociais e da naturalização
do trabalho precário para as franjas mais oprimidas e
racializadas das classes trabalhadoras, uma vez que,
supostamente, estariam acostumadas e adaptadas a esta
condição.
Essa discussão, sem maiores aprofundamentos sobre as
transformações necessárias da realidade brasileira, requisita a
recuperação de um amplo e diversificado debate, realizado há
décadas, que não é nosso intuito neste livro. Tivemos, na
verdade, o interesse de pontuar alguns elementos − irrealizáveis
em nosso país − sob a hegemonia das burguesias brasileiras
antissociais, antinacionais, racistas, patriarcais e fascistizantes,
que na condição de “classes dominantes-dominadas”, parecem
espraiar seu ethos e modus operandi para as burguesias
hegemônicas, dado às acentuadas e explícitas contradições
deste modo de produção, atualmente, em todo o globo.
De fato, a realidade da economia dependente sempre
demonstrou as formas mais agudas das contradições do
capitalismo. No entanto, no tempo presente, dada a grande
ofensiva capitalista, essas formas destrutivas das classes
trabalhadoras nas economias hegemônicas são elucidadas como
se fossem um retorno àquele passado do século XIX, ausente
das legislações protetoras do trabalho.
Sendo assim, no movimento do mercado mundial, para
garantir a conservação da sua supremacia sobre as classes
trabalhadoras e subalternizadas, − com o aumento da taxa de
exploração e avanço da usurpação de territórios, direitos e meios
de vidas − foi imprescindível, e ainda o é, a “destruição da
310
razão” 382 e, indiretamente, o mundo vai se “esfarelando”, por
causa da devastação deste modo de produção. Portanto,
trazemos Lukács, em seu epílogo, referenciando Marx:
311
organização produtivo e reprodutivo da vida social e natural, que
busque atender genuinamente às necessidades humanas.
Acreditar em saídas legalistas é desconhecer a ontologia
desta sociabilidade e desconsiderar a urgência de que as lutas
mais gerais das classes trabalhadoras urbanas, rurais, “formais”
e precarizadas (entram também as uberizadas ou platafor-
mizadas) devem, necessariamente, se conectar às demandas
mais imediatas dos povos das florestas, ribeirinhos,
quilombolas, indígenas, étnico-raciais e por direitos
fundamentais das favelas, das pautas feministas e LGBTQI+
contra o patriarcado heteronormativo. Essas bandeiras devem
ser amalgamadas, local e internacionalmente, para romper a
opressão-exploração capitalista. Porque, como vimos, a
mundialização do capital afeta a todos e todas, negativamente,
de forma global, mas de forma distinta com suas cadeias
produtivas, seja na mercantilização de tudo sob diferenciadas
expropriações, seja na destruição e poluição com dejetos
industriais, resíduos tóxicos e lixo nos vales, mangues, riachos,
rios, ilhas e mares, devastando a vida terrestre e aquática. 383
Cabe resgatarmos a belíssima e, ao mesmo tempo, dura,
sábia e clássica poesia brechtiana “É preciso agir”,
312
depois agarraram seus desempregados
mas como tenho meu emprego
também não me importei
313
314
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SOBRE A AUTORA
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