Dissertação Thiago Lima Dos Santos - Opt PDF
Dissertação Thiago Lima Dos Santos - Opt PDF
Dissertação Thiago Lima Dos Santos - Opt PDF
São Luís
2014
THIAGO LIMA DOS SANTOS
São Luís
2014
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BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________
Prof. Dr. Sergio Figueiredo Ferretti (Orientador)
Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais
Universidade Federal do Maranhão
_____________________________________________
Prof. Dr. Lyndon de Araújo Santos
Departamento de História / Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais
Universidade Federal do Maranhão
_____________________________________________
Prof. Dr. Aldrin Moura de Figueiredo
Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia
Universidade Federal do Pará
São Luís
2014
4
AGRADECIMENTOS
Seria redundante agradecer aos meus pais e avós pelo exemplo de vida e pelo
apoio dado durante os momentos de vida acadêmica e principalmente nas retas finais,
momentos decisivos e quando falhei. Mas, não é demais agradecer a confiança depositada em
mim durante esse tempo, faço de tudo para ser este investimento que algum dia deve dar
certo.
Agradeço a minha irmã por me tirar do sério e mais ainda ao meu cunhado por ter
levado o pacote embora. Agradeço ao João por estar grudado e reclamar minha companhia e
por começar a aceitar a ideia de que eu sempre vou chamá-lo de neném.
Agradeço ao meu orientador, Professor Dr. Sergio Ferretti, por acreditar no meu
trabalho, ceder material para a pesquisa, corrigir o texto, pelo espaço profícuo para o
desenvolvimento da minha trajetória acadêmica e pelo incentivo a continuar pesquisando.
Ao Grupo de Pesquisa Religião e Cultura Popular (GP Mina), por preencher o
descanso sabático com uma boa dose de discussões e troca de conhecimentos e em especial à
Professora Drª. Mundicarmo Ferretti pelas contribuições feitas ao trabalho, reconheço-a como
verdadeira coorientadora. Agradeço aos demais pesquisadores por estarem presentes no
debates, sempre elevando o nível das discussões.
Ao Grupo de Pesquisa História e Religião (GPHR) por ter me acolhido no início
da graduação, pelas contribuições que foram dadas desde os primeiros passos desta pesquisa e
aos demais pesquisadores do grupo pelo exemplo de pesquisas bem sucedidas. Agradeço ao
Professor Dr. Lyndon de Araújo Santos, coordenador do grupo pela participação na banca de
qualificação, na defesa e pela leitura minuciosa do texto.
Agradeço ao Professor Me. Raimundo Inácio por ter contribuído com debates
sobre a pajelança na reta final da escrita e ao Professor Dr. Antonio Evaldo pela participação
na qualificação e por ter atendido ao pedido de criticar sem “dó nem piedade”. Agradeço a
designer Raiama Portela pelas imagens desenhadas a partir da descrição dos jornais.
Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais pela oportunidade
dada ao projeto e principalmente aos professores Benedito de Souza Filho, Elizabeth Beserra
Coelho e Marcelo Carneiro, cujas disciplinas contribuíram bastante na orientação desta
pesquisa bem como na tentativa de defini-la em um espaço liminar entre as ciências sociais e
a história, confesso que não sei se consegui nesse texto, mas estou muito satisfeito com o
início das reflexões.
6
RESUMO
ABSTRACT
LISTA DE SIGLAS
LISTA DE QUADROS
LISTA DE MAPAS
LISTA DE IMAGENS
LISTA DE ANEXOS
ANEXO 1
Quadro de Henrique Bernardelli representando o momento em que Deodoro da
Fonseca derruba o chefe do Gabinete Imperial e é ovacionado como proclamador
da República ........................................................................................................... 209
ANEXO 2
Decreto sobre a proibição de intevenção do Estado em assuntos religiosos ........... 210
ANEXO 3
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia: Trecho referente às
regulamentações acerca da magia e outras práticas religiosas ................................ 211
ANEXO 4
Quadro contendo os números relativos ao surto de varíola em algumas cidades
do Brasil no ano de 1908 ......................................................................................... 214
ANEXO 5
Pedidos de Licença Para Festa ................................................................................ 215
ANEXO 6
Calendário Ritual do Terreiro de Manoel Teu Santo em comparação aos
calendários da Casa das Minas e Casa de Nagô ...................................................... 217
ANEXO 7
Suposta fotografia de Manoel Teu Santo, publicada por Euclides Ferreira em um
livro de sua autoria, sem citar a origem da imagem reproduzida ............................ 219
ANEXO 8
Quadro contendo informações sobre diversos pedidos de licença para Tambor de
Mina ......................................................................................................................... 220
15
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
1
Fontes pesquisadas desde a graduação e utilizadas como principais fontes na monografia.
17
Biblioteca Benedito Leite (BBL) o acesso aos jornais, rica fonte de referências sobre as
religiões afro-brasileiras no passado, não foi possível.
Ainda com todas as limitações persisti com a ideia de continuar buscando
informações nos arquivos policiais e pouco antes de submeter projeto à seleção do Programa
de Pós Graduação em Ciências Sociais consultei os Pedidos de Licenças para Festa (PLF).
Esses documentos não foram utilizados na monografia por ter dado prioridade a
imensa série documental dos ODS e somente a partir de julho de 2012 foi possível ter acesso
aos jornais, por meio da Hemeroteca Digital Brasileira (HDB), portal do acervo de periódicos
digitalizados da Biblioteca Nacional, voltarei a esta documentação a seguir.
2
As fichas estão organizadas em documentos do Microsoft Word divididos por temática (Pajelança, Pajé,
Curandeiro, Feiticeiro, Festa do Divino). Esses documentos digitais encontram-se dentro de pastas que levam o
nome de cada jornal pesquisado.
18
extraiu dados a serem utilizados nesse trabalho e material para pesquisas futuras em outros
projetos sobre religião e cultura popular ou artigos sobre a temática.
A escrita da introdução é uma tarefa que aparentemente aflige a maioria dos
autores. A introdução só pode ser escrita após o trabalho pronto, de maneira que possa
informar ao futuro leitor daquilo que trata o texto em sequencia. Não há como apresentar
informações sobre algo que não existe e este é o ponto chave do temor com relação a
introdução, pois de fato este é o momento em que a escrita do trabalho é dada por finalizada.
A introdução é um ponto final que vem antes do fim de qualquer trabalho.
Uma introdução não deve ser escrita antes de um trabalho apresentar conteúdo
definido, não em termos tão prontos e acabados, sob o risco de não condizer com o que está
expresso no restante do texto. Não só durante a pesquisa, mas também durante a escrita
elementos podem surgir modificando os rumos da compreensão do objeto. As ideias não são
imutáveis e surgem a partir de diversas operações executadas pelo pesquisador ao longo do
tempo, como informa Pierre Bourdieu.
[...] a construção do objecto – pelo menos na minha experiência de investigador –
não é uma coisa que se produza de uma assentada , por uma espécie de acto teórico
inaugural, e o programa de observações ou de análises por meio do qual a operação
se efectua não é um plano que se desenhe antecipadamente, à maneira de um
engenheiro: é um trabalho de grande fôlego, que se realiza pouco a pouco, por
retoques sucessivos, por toda uma série e correções, de emendas, sugeridas por o
que se chama o ofício, quer dizer, esse conjunto de princípios práticos que orientam
as opções ao mesmo tempo minúscula e decisivas (BOURDIEU, 2007, p. 27)
Narrar ou deixar claro a experiência pessoal durante as pesquisas “não deve ser
confundida como um divã” em que todos os percalços pessoais devem ser apresentados como
importantes para a pesquisa. Uma pequena biografia e a relação direta entre pesquisador e
objeto pode confundir a dissociação necessária para a postura metodológica de objetivação,
que dá o tom científico dos trabalhos das ciências sociais.
Aquilo a que chamei de a objectivação participante é sem dúvida o exercício mais
difícil que existe, porque requer a ruptura das aderências e das adesões mais
profundas e mais inconscientes, justamete aquelas que, muitas vezes constituem o
interesse do próprio objecto estudado para aquele que o estuda, tudo aquilo que ele
menos pretende conhecer na sua relação com o objecto que ele procura conhecer.
(BOURDIEU, 2007, p. 51).
3
Ainda nos casos de pesquisas que são realizadas por um pesquisador em sua própria sociedade é possível
afirmar que há o entrecruzamento de realidades, pois o antropólogo está buscando uma compreensão em uma
racionalidade distinta daquela que é fornecida pelo meio em que vive.
20
Em São Luís, contatei dona Celeste para conversar sobre as pesquisas que têm sido
feitas em sua casa. Cheguei a esse terreiro numa tarde chuvosa de julho de 1995 e
entrei pelo corredor que conduz à varanda interna onde os voduns costumam dançar
em noites de festa. Ao final do corredor encontrei duas velhinhas sentadas no
pequeno muro que separa a varanda do gume, um quintal onde florescem pés de
pinhão branco ao lado de uma frondosa cajazeira. Identifiquei-me meio sem jeito e
perguntei por dona Celeste. “Ela não está”, respondeu-me uma delas, dona Deni, “e
hoje não é dia dela vir” (Amélia, Celeste e Deni, formam um singular “triunvirato”
feminino de poder religioso na Casa das Minas. Conheci essas veneradas senhoras
de outras visitas que fiz a esse terreiro acompanhado de pesquisadores do lugar e das
etnografias que li sobre a religião dos voduns no Maranhão). Portanto, sabia que
solicitar naquele momento uma entrevista a dona Deni, tendo primeiramente
contatado dona Celeste, não seria uma política adequada. A divisão de poder nos
terreiros gera rivalidades e ciúmes entre os membros. (SILVA, 2006, p. 41-42).
A entrevista, que ocorreu no dia seguinte, poderia ter demorado mais alguns dias e
isto poderia estar fora dos cronogramas e orçamentos da viagem. A perspicácia do
pesquisador em não tentar adiantar as entrevistas com outras informantes e a paciência em ter
esperado foram escolhas significativas para tentar assegurar sua permanência no campo.
O relato acima está repleto de fatores que podem afetar uma pesquisa. Em se
tratando daquilo que pode atrapalhar o andamento de observações, visitas, filmagens, enfim,
da pesquisa como um todo, deve-se dar destaque aos fatores que podem não estar dentro do
raio de ação do pesquisador e da possibilidade de serem alterados para dar prosseguimentos às
atividades.
Eu pretendia centrar mais [a pesquisa] na questão do caboclo [...] Só que eu comecei
este trabalho e vi logo que tinha de mudar de estratégia. Ninguém me avisava de
coisas que não eram muito valorizadas. Eu não tinha chance de assistir rituais de
caboclo e toda hora estavam me avisando de candomblé e de saída de iaô [...]. Eu vi
que tinha que assistir muito candomblé para poder saber quando ia acontecer estas
outras coisas. (SILVA, 2006, p. 37, entrevista concedida por Mundicarmo Ferretti).
que a escrita do trabalho segue. Deixar claro a intenção daquilo que se quer dizer, daquilo que
se fez e que não fez é uma das funções da introdução, muito embora não seja o único espaço
para se executar tais inserções explicativas.
Pretendia considerar o maior número possível de fontes dos arquivos de polícia,
pois não pensava que teria a oportunidade de trabalhar com os periódicos. Não tinha
esperança que a biblioteca voltasse a funcionar e que o seu acervo fosse reorganizado após
anos de fechamento do prédio para reforma. No entanto, com a possibilidade de consulta dos
jornais na HDB pude ampliar o rol de fontes disponíveis e isso forçou a redução do recorte
temporal em cerca de vinte anos (de 1889 – 1930 para 1889 – 1910).
Após o levantamento dos periódicos para o período de 1890 a 1930 foram
selecionados 11 jornais4 (lista abaixo) dos quais três (em destaque) foram mais utilizados não
só por abranger o período que pretendia pesquisar inicialmente, como por apresentar uma
maior série documental e com mais referências ao objeto pesquisado.
4
Disponível para consulta em: http://hemerotecadigital.bn.br/
5
Os periódicos em negritos foram utilizados na pesquisa.
22
Atualmente essa fórmula que confere autoridade perdeu sua validade por diversas
causas. O antropólogo não é o único capaz de compreender e dar a compreender culturas
diferentes. O que está em jogo agora não é mais a presença comprobatória, o holismo ou a
onisciência do pesquisador, muito menos a sua capacidade de ser científico escondendo-se
atrás dos dados e de uma linguagem impessoal e sim a capacidade de ser crítico em todas as
suas ações.
Faço esta ressalva para poder aproximar o trabalho do historiador com o do
antropólogo. Segundo Geertz (2001, p. 113) a tentativa de compreender o “outro” é o que
aproxima história da antropologia, mas o outro pode estar localizado em diferentes espaços
temporais e/ou espaciais. Ainda assim não se trata da mesma coisa, história e antropologia
distinguem-se (e divergem) por conta de suas abordagens acerca do “outro”.
Na verdade, nem mesmo o “nós”, o “self” que busca essa compreensão do “Outro”,
é exatamente a mesma coisa aqui, e é isso que explica, ao meu ver, o interesse de
historiadores e antropólogos pelo trabalho uns dos outros, bem como os receios que
surgem quando esse interesse é levado adiante. O “nós”, assim como o “eles”,
significam coisas diferentes para quem olha para trás e para quem olha para os lados,
problema este que não se torna propriamente mais fácil quando, como vem
acontecendo com frequência cada vez maior, alguém tenta fazer as duas coisas.
(GEERTZ, 2001, p. 113).
Uma das formas mais simples de se perceber a relação da qual falo desde o início
é considerar o trabalho de campo de cada um dos profissionais das diferentes áreas do
conhecimento. Ir a campo pode significar práticas diferentes entre antropólogos e
historiadores, ainda mais se considerarmos que dificilmente um historiador diz que está indo
ao campo. No entanto, pesquisa de campo é apenas uma designação específica da atividade de
pesquisa na busca pelo outro, como cita Geertz (2001). Assim as aproximações não são só
reais como significativas.
Outra forma de pensar metodologicamente a aproximação entre história e
antropologia a partir do campo é pensá-lo como algo construído e não como um espaço
preexistente e para onde o pesquisador se desloca. Dessa forma uma leitura antropológica de
23
6
Clifford Geertz (2011) trabalha com o conceito de cultura que segundo ele é semiótico, ou seja, uma teia de
significados tecidas e interpretadas pelo homem. Dessa forma o homem é o primeiro a analisar e interpretar a sua
própria cultura – “por definição, somente um ‘nativo’ faz a interpretação em primeira-mão: é a sua cultura
(GEERTZ, 2011, p. 11) –, e o antropólogo ao questioná-lo ou observá-lo estará fazendo uma interpretação de
segunda mão, ainda mais se consideramos que o antropólogo pertence a uma cultura distinta da do entrevistado
ou não partilha das mesmas teias de significados (nesse caso a própria linguagem acadêmica e os objetivos para
o qual a pesquisa é direcionada geram uma interpretação à luz de significados diferentes). Assumindo que a
pesquisa sobre determinada realidade lê algo de segunda mão, o historiador dedicado aos registros históricos de
determinada cultura estaria trabalhando com o as informações de “etnógrafos” situados no passado e portanto
fazendo leituras de terceira mão.
25
Os jornais não são imparciais, fazem parte de um jogo social em que relações de
poder são travadas todo momento por meio das informações divulgadas. Não há somente as
disputas entre jornais – A Pacotilha criticava ferrenhamente o Diário do Maranhão (alinhado
ao governo) taxando-o negativamente de governista e acusando-o de legitimar os desmandos
políticos de governadores e intendentes –, mas os jornais por si só, são espaços em que
7
Nos ODS pesquisados foram encontrados vários relatos de prisão de negros por distúrbios e ofensas à moral e
aos bons costumes, mas sem maiores informações do que se tratavam. Lendo os jornais pude ter ideia de que as
manifestações religiosas de matriz-africana também eram acusadas de provocar distúrbios que afetavam o
sossego público além de seus rituais ofenderem a moral e os bons costumes. No entanto, não poderia considerar
tais casos de distúrbios presentes nos ofícios como tendo relações com aspectos da religiosidade da população
negro-mestiça, pois poderiam englobar brigas, desentendimentos, bebedeiras, fatos estes também arrolados como
distúrbios e atos imorais.
26
acusações são feitas e rebatidas costumeiramente em que situações do cotidiano são redigidas
de modo vexatório, substituindo os nomes de figuras públicas por apelidos.
Se existem e são vendidos é porque seu discurso diz respeito a ideias correntes em
determinados meios sociais. A existência de um jornal depende muito do seu público
consumidor (fundamental para manutenção do funcionamento das prensas) e periódicos com
grande número de edições mostram que suas ideias reverberam na sociedade que compra e
consome a informação, mas também a sua forma de lê-la.
A forma de ler uma informação é tão importante quanto a mesma, sem
compreender tal característica correria o risco de repetir estereótipos, cair no discurso da
objetividade e da imparcialidade e de nunca perceber os interesses e motivos pelos quais
determinado acontecimento virou notícia. Essa ressalva é muito importante, pois muitas vezes
as notícias falam indiretamente ou como afirma Merleau-Ponty (1989, p. 93) “a linguagem diz
peremptoriamente quando renuncia dizer a coisa mesma”. Sem essa visão critica do jornal
enquanto um “sujeito” (ou vários) que falam aquilo que falam porque sabem que serão
ouvidos nunca poderia compreender porque a pajelança é notícia recorrente.
A documentação de polícia compreende, além dos PLF e ODS, algumas outras
séries documentais que não foram pesquisadas. Havia uma constante troca de informações
entre as autoridades policiais (representação no gráfico abaixo). Neste tráfego de informações
estavam presentes as temáticas relativas à segurança pública, ao sossego, manutenção da
ordem e dos bons costumes além de outros assuntos relativos a urbanidade, pois uma das
funções da polícia era fiscalizar o respeito às posturas municipais.8
Chefe de
Polícia
Delegado de
Polícia da
Capital
Suddelegados
de Polícia
(Distritos e
Vilas)
8
Assim, desde o início de nossa história e formação social a polícia esteve agindo no sentido de impor uma
lógica organizacional urbana pensada pelas elites e para as elites em que o benefício de uns era marcado pela
supressão da ampla liberdade de outros. Essa é uma das justificativas para o fato da história dos africanos e seus
descendentes no Brasil ser contada a partir dos arquivos de polícia.
27
[...] a etnografia é uma descrição densa. O que o etnógrafo enfrenta, de fato – a não
ser quando (como deve fazer, naturalmente) está seguindo as rotinas mais
automatizadas de coletar dados – é uma multiplicidade de estruturas conceptuais
complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são
simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas, e que ele tem que, de alguma
forma, primeiro apreender e depois apresentar. E isso é verdade em todos os níveis
de atividade do seu trabalho de campo, mesmo o mais rotineiro: entrevistar
informantes observar rituais, deduzir os termos de parentesco, traçar as linhas de
propriedade, fazer o censo doméstico... escrever o seu diário. Fazer a etnografia é
como tentar ler (no sentido de “construir uma leitura de”) um manuscrito estranho,
desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários
tendenciosos, escrito não com os sinais convencionais do som, mas com exemplos
transitórios de comportamento modelado. (GEERTZ, 2011, p. 7).
1ª Parte
32
compreensão do outro de forma errada (o que é pouco provável) e pela deturpação mútua da
identidade das disciplinas (o que é bem provável).
Infelizmente cada grupo tende a perceber o outro como um estereótipo bastante
grosseiro. Ao menos na Grã-Bretanha, muitos historiadores ainda consideram os
sociólogos pessoas que fazem afirmações sobre o óbvio em um jargão primitivo e
abstrato não têm nenhum sentido de lugar nem de tempo, espremem, sem piedade,
os indivíduos em categorias rígidas e, ainda por cima, descrevem essas atividades
como “científicas”. Os sociólogos, por sua vez, há tempos consideram os
historiadores coletores de fatos, míopes e amadores, sem nenhum sistema ou
método, sendo a imprecisão de sua “base de dados” equiparada apenas à sua
incapacidade de analisá-los. (BURKE, 2002, p. 13).
Geertz alerta que ao tratar de junção de disciplinas não está se referindo a uma
fusão – no sentido de criar uma antropologia histórica, uma história antropológica ou mesmo
uma etno-história –, “mas de redefini-los em termos um do outro” (2002, p. 119). Deve-se
buscar afastar as mútuas desqualificações e em troca buscar uma relação mais complementar,
como informa Peter Burke (1997) ao falar da Escola dos Analles, perspectiva de pesquisa
histórica entre as décadas de 1930 e 1980.
A viragem antropológica pode ser descrita, com mais exatidão, como uma mudança
em direção à antropologia cultural ou “simbólica” Afinal de conta [March] Bloch e
[Lucien] Febvre leram o seu Frazer e o seu Lévy-Bruhl e usaram essas leituras em
suas obras sobre a mentalidade medieval e seiscentista. [Fernand] Braudel era
familiarizado com a obra de Marcel Mauss, que fundamenta sua discussão sobre
fronteiras e intercâmbios culturais. Na década de 60 [Georges] Duby utilizara os
trabalhos de Mauss e Malinowski sobre a função dos presentes, afim de entender a
história econômica da baixa Idade Média (Duby, 1973).
Tudo o que os historiadores anteriores pareciam desejar de sua disciplina vizinha era
a oportunidade de sobrevoá-la, de tempos em tempos, em busca de novos conceitos.
Alguns historiadores das décadas de 70 e 80, contudo, demonstrarem intenções mais
sérias. Podiam mesmo pensar em termos de casamento, em outras palavras em
termos de “antropologia histórica” ou de “etno-história”. (BURKE, 1997, p. 94)
9
É possível encontrar exemplos para as considerações de Lévi-Strauss ao observar alguns trabalhos, como o de
Radcliffe-Brown em que são dedicados espaços para as definições identitárias de sua área a saber: “Concebo a
antropologia social como a ciência teórico-natural da sociedade humana, isto é, a investigação dos fenômenos
sociais por métodos essencialmente semelhantes aos empregados nas ciências físicas e naturais. [...] Como os
senhores sabem, há etnólogos ou antropólogos que afirmam não ser possível, ou pelo menos proveitoso, aplicar
aos fenômenos sociais os métodos teóricos das ciências naturais. Para essas pessoas a antropologia social, tal
como a defini é algo que não existe e nunca existirá. Para eles, evidentemente, minhas observações não terão
valor algum ou pelo menos o significado que pretendo.” (RADCLIFFE-BROWN, 1973, P. 233)
36
Devido a essa tradição ter se mantido muito forte durante boa parte da primeira
metade do século XX e ao fato da própria noção de história estar presa ao documento escrito,
é que Lévi-Strauss afirmava que os etnólogos não tinham a capacidade de fazer a boa história
até então, já que não possuía os elementos necessários para tal. Sem conseguir alcançar um de
seus objetivos de análise, afirmava Lévi-Strauss:
37
O fato de não considerar a história como uma ciência, ou pelo menos no nível
científico da antropologia social, corrobora ainda mais para a necessidade de não trabalhar de
maneira detida com a história de determinado povo, a não ser em seu caráter anedótico,
pontual e exemplificador. Sem possuir o nível de ciência a história e seu objeto não possuíam
pertinência nas análises de cientistas sociais, marcada pela constatação da “continuidade da
estrutura através do tempo” (Radcliffe-Brown, 1973, p. 237).
Por toda a vida de um organismo sua estrutura está sendo sempre renovada; e de
modo idêntico a vida social constantemente renova sua estrutura. Assim, as relações
concretas de pessoas e grupos de pessoas mudam de ano a ano, ou mesmo de dia-a-
dia. [...] Mas enquanto a estrutura social muda deste modo, a forma estrutural geral
poder permanecer relativamente constante por período de tempo maior ou menor.
Assim, se visito uma comunidade relativamente estável e a revisito após dez anos,
10
Radcliffe-Brown denomina sociedade compositórias ou sociedades plurais aquelas marcadas pelo domínio de
uma população sobre outra em que uma nova estrutura surge a partir das relações sociais orientadas por
diferentes valores e interesses. (1973, p. 248).
38
para tal feito, daí a “negação da história” por parte de alguns, como é possível observar nas
palavras de Lévi-Strauss.
É essa a atitude de Malinowski, cuja prudência tardia não basta para fazer esquecer
tantas proclamações ambiciosas. É também essa a atitude de muitos etnólogos da
nova geração, que, antes de irem a campo, não se permitem realizar o estudo das
fontes e da biografia regional, sob o pretexto de não estragar a maravilhosa intuição
que permitirá ao etnólogo, num diálogo atemporal com sua pequena tribo e acima de
um contexto de regras e costumes altamente diferenciados [...] atingir verdades
eternas sobre a natureza e a função das instituições sociais. (LÉVI-STRAUSS, 2012,
p. 33).
A atitude de negação de uma pela outra não deixa claro em que cada uma das
ciências que “estudam sociedades que são outras em relação àquela em que vivemos” (LÉVI-
STRAUSS, 2012, p. 30). A questão que merece resposta permanece: com quais definições
opera a história e a etnologia para diferir uma da outra? Essa pergunta também foi elaborada
por Lévi-Strauss e respondida da seguinte forma.
[...] é nas relações entre história e etnologia no sentido estrito que reside o debate.
Propomo-nos a mostrar que a diferença fundamental entre elas não é nem de
objetivo, nem de método e que, tendo o mesmo objeto, que é a vida social, o mesmo
objetivo, que é a melhor compreensão do homem, e um método em que varia apenas
a dosagem dos procedimentos de pesquisa, elas se distinguem, sobretudo pela
escolha de perspectivas complementares. A história organiza seus dados em relação
às expressões conscientes, e a etnologia, em relação às condições inconscientes da
vida social. (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 42).
11
O trabalho de Vivaldo da Costa Lima ao qual faz referência Nicolau Parés é a sua dissertação de mestrado
intitulada A família-de-santo nos candomblés jejes-nagôs da Bahia: um estudo de relações intragrupais (UFBA,
1977).
12
Parés (2007, p. 26) identifica a transposição da identidade metaétnica – atribuída a um grupo por indivíduos de
fora dele – para a identidade étnica a partir dos processos de socialização dos escravos, que poderia ocorrer tanto
na África quanto no Brasil.
41
dos africanos denominados Mina por se originarem do forte de São Jorge da Mina na Costa
do Ouro, atual Gana.13
As várias denominações dadas aos negros sofreram alterações de sentido ao longo
do tempo. Uma destas alterações diz respeito ao momento em que a identidade de um
indivíduo ou grupo deixa de ser relativa a sua origem em África (ou relativa a ideia desta
origem) e passa a fazer referência a iniciação ritual do grupo religioso o qual passa a fazer
parte.
Indivíduos de etnias diferentes passavam a se reconhecer e se denominar como
parte desta ou daquela comunidade religiosa à revelia de sua origem em termos estritamente
geográficos. Atualmente pessoas podem reivindicar para si uma identidade africana relativa
ao terreiro de iniciação sem que o pai ou filho de santo tenham tal ascendência.
O cotidiano e a cultura são marcados pela dinâmica. As mudanças ocorrem devido
ao fato do primeiro nem sempre favorecer a manutenção da segunda, sem que isto possa
invalidar uma determinada prática. Um indivíduo iniciado no Candomblé pode se denominar
como participante de uma nação, mesmo que esta não corresponda àquilo que designava os
indivíduos que iniciaram o candomblé. Seguindo o raciocínio de Sahlins (2003) a história
teria modificado a cultura em suas estruturas no momento em que a organização social dos
indivíduos escravizados teria sido determinante na estruturação de sua cultura religiosa,
mesmo sem invalidar elementos rituais e simbólicos.
É possível trabalhar com a mesma perspectiva de análise quando Parés busca a
compreensão do processo de mudança ritual ocorrida durante o século XIX, através do
processo que chamou de “institucionalização ou reinstitucionalização das formas de
organização religiosas negras no Brasil e da constituição de uma religião afro-brasileira”
(Parés, 2007, p. 118).
A minha tese de base para entender o problema sustenta que esse processo se deu
através de um progressivo nível de complexidade social e ritual. De um estágio
inicial, em que “fragmentos de cultura religiosa” foram retomados e postos em
práticas por pessoas carismáticas que atuavam de uma forma relativamente
individual e independente (em interações pessoais, visando principalmente a fins de
cura e adivinhação), passou-se pela formação das primeiras congregações religiosas
de caráter familiar ou doméstico, geralmente dedicadas ao culto de uma só
divindade, até se chagar à formação das primeiras congregações extra-familiares,
socialmente ainda mais complexas nas suas estruturas hierárquicas e práticas rituais,
que com o tempo chegaram a funcionar com certa estabilidade em espaços próprios,
com um calendário litúrgico recorrente e dedicadas ao culto de uma pluralidade de
divindades, “assentadas em altares ou espaços sagrados individualizados. (PARÉS,
2007, p. 118).
13
O caso do Forte ou Castelo de São Jorge da Mina ou São Jorge D’Elmina é comentado por Parés (2007, p. 27)
e a história do forte por Mariza de Carvalho Soares (2000, p. 45 – 48)
42
A segunda diz respeito à relação econômica que foi imposta sobre a tradição do
que Sahlins (2003, p. 27) chamou de “amor das mulheres havaianas”.
As mulheres “eram pouco influenciadas por motivos de interesses, em seus
intercursos conosco” diz um apontamento característico em um dos diários, “sendo
que quase usavam de violência para nos forçar aos seus abraços, quer lhes déssemos
algo ou não”. Ainda assim os marinheiros sabiam retribuir os serviços prestados.
Para ser mais preciso, eles reificavam as carícias das mulheres como “serviços”
pagando por elas com presentes. Com transações desse tipo, o comércio erótico
deixou de repetir a tradição e começou a fazer história. (SAHLINS 2003, p. 27 –
grifo meu).
Nesse sentido podemos dizer que uma leitura antropológica das fontes históricas é
um avanço na compreensão do passado. A narrativa que supervalorizava o diacrônico torna-se
mais complexa com as análises sincrônicas, deixando de ser necessariamente atreladas a um
período de tempo, mas valorizando os elementos culturais que dão significado as ações
humanas dentro de um recorte temporal.
Esse tipo de análise, que pode ser chamada de inter ou transdisciplinar, se
desenhou ao longo das pesquisas como uma necessidade de entender as manifestações
religiosas de matriz africana em São Luís do Maranhão na virada do século XIX para o XX. A
partir das informações documentais busquei explorar vários caminhos para entender as
questões relacionadas à temática.
Para facilitar poderia apresentar a definição do Tambor de Mina para aquilo que
chamo de religiões afro-brasileiras no título, fato este corroborado por estar trabalhando o
recorte espacial do Maranhão e mais especificamente de São Luis, cidade onde se localizam
as duas casas mais antigas onde são oficiados os rituais dessa religião afro-maranhense: a
Casa das Minas e a Casa de Nagô, ambas com fundação em meados do século XIX. No
entanto, essa definição não pode ser tão simples assim.
Não é possível aplicar a denominações conhecidas atualmente para as
manifestações religiosas do passado sem o devido cuidado. Tendo em mente que o projeto de
pesquisa foi elaborado com base nas análises realizadas a partir de pesquisas nos ODS da
segunda metade do século XIX, não seria possível afirmar que as práticas religiosas eram
candomblé, calundu e muito menos a tambor de mina expressões estas não localizadas. A
expressão batuque é utilizada largamente, mas sem uma definição precisa das práticas sob
essa denominação, como aponta Vagner Gonçalves da Silva:
O nome mais frequente para as religiões de origem africana no Brasil até o século
XVIII parece ter sido calundu, termo de origem banto, que ao lado de outros como
batuque ou batucajé designava e abrangia imprecisamente toda sorte de dança
coletiva, cantos e músicas acompanhadas por instrumentos de percussão, invocação
de espíritos, sessão de possessão, adivinhação e cura mágica (SILVA, 2005, p. 43).
14
Emanuela de Sousa Ribeiro em seu relatório de iniciação científica “Requerimentos de Licenças para festas na
secretaria de polícia de São Luís (1873-1933)” de 1998 informa que me suas pesquisas o termo mina aparece
pela primeira vez em 1896, no entanto não posso ratificar esta constatação, por uma série de razões. No período
entre 1891 e 1894 não há documentos arquivados nesta série documental, que podem ter sido extraviados ou
perdidos pela deterioração. No mesmo trabalho a autora apresenta como anexo uma tabela em que traz o registro
de um pedido de 1885, elencado por ela na categoria “Mina”. Localizei em minhas pesquisas registros no ano de
1895 referentes a tambor de mina, documentos estes que de alguma forma não foram pesquisados ou localizados
pela pesquisadora, portanto, anteriores ao que ela afirma como marco temporal do início das referências nesta
série documental. Como não considerei o período anterior a 1889 (devido ao tempo de execução das pesquisas
nos PLF’s) não desconsidero que os pedidos para tambor de mina tenham sido feitos anteriores a 1895, ano dos
primeiros registros localizados em minha pesquisa.
45
de quem escreve ou que ordena a escrita do mesmo, os quais dificilmente tinham contato ou
conheciam esse universo simbólico.
Para maior clareza e especificidade ao trabalhar com as fontes esse critério de
denominação deve ser flexível e os objetos aos quais os nomes se referem devem ser
caracterizados o máximo possível. Assim será possível a compreensão do cenário pesquisado
com certa fidelidade às fontes e aproximação com acontecimentos aos quais elas fazem
referência. Como afirmei anteriormente, ao duvidar das fontes, posso considerar e descartar as
informações obtidas levando em conta o contexto ao qual se refere e a organização do próprio
discurso. É assim que posso afirmar que ao falar de pajelança um delegado estava se referindo
a tambor de mina, ou que a pajelança era utilizada indiscriminadamente como uma
macrocategoria.
Da mesma forma como o antropólogo trabalha com as categorias êmicas em
relação aos grupos pesquisados, as expressões de época devem receber a mesma atenção por
serem chaves de compreensão das relações sociais e da cultura de então, mesmo sabendo que
tais denominações nem sempre condizem com as denominações internas aos grupos religiosos
como indica Nicolau Parés.
Cabe notar que as denominações metaétnicas (externas), impostas a grupos
relativamente heterogêneos, podem, com o tempo, transformar-se em denominações
étnicas (internas), quando apropriadas por esses grupos e utilizadas como forma de
auto-identificação.[...]
Desse modo, os africanos chegados ao Brasil encontravam uma pluralidade de
denominações de nação – umas internas e outras metaétnicas – que lhes permitia
múltiplos processo de identificação. Aqueles africanos não habituados às
denominações metaétnicas já na própria áfrica, uma vez no Brasil, rapidamente as
assimilaram e passaram a utilizá-las pela sua operacionalidade na sociedade
escravocrata, enquanto geralmente reservavam o uso das denominações étnicas
vigentes nas suas regiões de origem para o contexto social mais restrito da
comunidade negro-mestiça. (PARÉS, 2007, p. 26).
Não é preciso aprofundar muito para mostrar o que são as representações sociais
acerca das religiões afro-brasileiras, pois muitas delas ainda estão vivas na sociedade
atualmente, como a noção de feitiçaria, que está presente na história do Brasil desde a
colonização15 e que marcou profundamente as religiões não católicas.
Laura de Mello e Souza em o “Diabo e a Terra de Santa Cruz” (1986) mostra
como as concepções a cerca de bruxaria e feitiçaria foram utilizadas no Brasil em
decorrências das práticas de europeus, índios e negros, que acreditavam que podiam agir por
meio do sobrenatural para interferir no cotidiano, práticas estas reprovadas e combatidas pela
Igreja e Estado, principalmente por meio da Inquisição
João José Reis retoma uma série dessas representações ao falar sobre a invasão do
candomblé do Accú em 1829, citando o discurso do juiz que determinou a diligência policial
e prisão dos participantes do ritual.
Diante disso, não é de admirar que o Guimarães [juiz] tenha feito imediata relação
entre o candomblé e a quebra da ordem. Ganha também mais coerência sua escolha
da linguagem da ortodoxia católica, de um discurso inquisitorial para definir e
combater a festa de candomblé. Esta seria, para ele, perigosa brincadeira do diabo,
personagem considerado patrono de “feitiçarias” e “supertições” atribuídas aos
africanos desde o início de sua escravização no Brasil. Já no início do século XVII,
o autor dos Diálogos das grandezas do Brasil comentaria a eficácia dos “escravos
feiticeiros” no uso de ervas; em 1728, Nuno Marques Pereira, o Peregrino das
Américas, escrevia sobre “ritos supersticiosos e gentílicos” dos africanos; em 1761,
um ouvidor de Ilhéus mandaria prender “pretos feiticeiros” especialistas em “artes
diabólicas”, de adivinhar e curar; em 1785, quatro africanos seriam presos em
Cachoeira por promoverem “batuques, feitiçarias e ações supersticiosas”. (REIS,
1989, p. 41).
15
Francisco Bethencourt analisa inúmeros relatos da inquisição portuguesa no século XVI para mostrar parte de
uma tradição mágico-religiosa não católica que era partilhada por grande parte da população da Portugal
seiscentista.
47
Assim têm-se a impressão de que não se estava querendo apenas punir os agressores
de Joanna ou botar na cadeia os responsáveis pelo que foi feito nela, mas condenar
Amelia Rosa e pessoas do se grupo, cujos nomes já eram conhecidos da polícia. Isso
explicaria a condenação de réus que não confessaram e cuja participação não foi
comprovada nas sevícias e também, o desinteresse em localizar e/ou processar
outras pessoas que teriam sido igualmente citadas pela ofendida como colaboradores
de Amelia Rosa. (FERRETTI, M., 2004, p. 32).
que muito esforço é empreendido para reunir informações contidas nas entrelinhas, no
silêncio das fontes e no não-dito.
A história também pode (e deve) “trabalhar com as possibilidades”, ou seja, lidar
com as possíveis interpretações e respostas às questões feitas aos documentos, através da
análise do não dito, do que foi suprimido. Mesmo quando as respostas são parciais ou
incompletas é significativo o fato de que alguma pista pode se desdobrar em um universo de
possibilidades interpretativas.
Ao se falar de religiões afro-brasileiras há uma necessidade de se conhecer uma
tradição quase linear de autores e que é percorrida em boa parte dos trabalhos como uma
obrigatoriedade. Segundo Carlos Eugênio Líbano Soares e Flávio Gomes falar sobre cultura
afro-brasileira no Brasil é de certa forma revisitar essa produção, pois o negro
[...] apareceu como foco de estudo no Brasil na virada do século XIX para o XX,
associado ao Folclore e aos temas da diversidade cultural brasileira. Falava-se em
reminiscência da cultura africana no Brasil. Era necessário classificá-la e também
escolher seus cenários. A África no Brasil teria palcos privilegiados. Estes
guardariam seus mistérios e encantos. Foi um pouco por aí que uma certa
antropologia caminhou numa tradição que – guardadas as especificidades –
percorreu de Nina Rodrigues, a Arthur Ramos, Edson Carneiro, Roger Bastide e
Pierre Verger. (SOARES e GOMES, 2001, p. 3).
Essa exigência define-se por uma caminho que se inicia com essa primeira
tradição que vai até Pierre Verger, período a partir do qual há um crescimento significativos
nas pesquisas surgindo uma nova tradição, com novos objetos, teorias e análises. Kabengenle
Munanga (2009, p. 19) afirma que a obra Os Africanos no Brasil transformou Nina Rodrigues
no primeiro intelectual a pensar a presença dos negros africanos no Brasil.
[...] a obra de Nina Rodrigues prefigura todas as questões com as quais se debruçam
ainda hoje os estudiosos da população negra no Brasil, a saber: a presença africana
no Brasil e suas contribuições; o problema da miscigenação e as relações raciais
entre negros, brancos e mestiços; a mestiçagem como solução para as mazelas
raciais brasileiras e para o processo de construção da identidade nacional no
pensamento de alguns ideólogos, como Oliveira Vianna, Sílvio Romero e João
baptista Lacerda. (MUNANGA, 2009, p. 19).
Beatriz Góis Dantas (1988, p. 19-20) informa que a busca pela compreensão do
Candomblé resultou em muitos estudos num direcionamento para a África, como a origem de
um sistema religioso que permaneceu puro. Compreender que existem modelos de religião
que resistiram ao longo do tempo e não perderam sua essência é um problema de
interpretação que simplifica a compreensão histórica de todos os processos sociais, políticos e
econômicos que influenciaram direta e indiretamente na reorganização das crenças e rituais
em terras brasileiras.
Reginaldo Prandi atenta para essa questão quando afirma que os processos de
mudança foram significativos para as religiões afro-brasileiras
O tecido social do negro escravo nada tinha a ver com família, grupos e estratos
sociais dos africanos nas suas origens. Assim, a religião negra só parcialmente pôde
se reproduzir aqui. A parte ritual da religião original mais importante para a vida
cotidiana, constituída no culto aos antepassados familiares e da aldeia, pouco se
refez, pois a família se perdeu, a tribo se perdeu. [...] Quando as estruturas sociais
foram dissolvidas pela escravidão, os antepassados perderam seu lugar privilegiado
no culto. Sobreviveram marginalmente no novo contexto social e ritual. As
divindades mais diretamente ligadas às forças da natureza, mais diretamente
envolvidas na manipulação mágica do mundo, mais presente na construção da
identidade da pessoa, os orixás, divindades de culto genérico, estas sim vieram a
ocupar o centro da nova religião negra em território brasileiro. (PRANDI, 1995,
p.68)
de que forma estas se materializam nas vivências dos indivíduos e quais as relações com os
aspectos sociais, cultuais e urbanos que influenciam a estrutura dos sistemas religiosos e que
podem ser pensados através da repressão.
51
Uma ideia adequada para representar a República no final do século XIX é de que
ela finalmente havia chegado. As ideias republicanas estavam presentes no cenário político e
intelectual brasileiro desde o século XVIII e propunham reformas significativas na política e
na sociedade brasileira. Caminhando vagarosamente por todo o século XIX os ideais de uma
mudança contra a monarquia finalmente chegaram ao seu máximo em 15 de novembro de
1889.
Mas, nas três últimas décadas do século XIX, a Monarquia pesou sobre si mesma.
Ano após ano os problemas cresciam ou se renovavam e o pensamento de mudança ganhava
força em determinados meios sociais. A crise econômica, a Igreja Católica, os militares, os
abolicionistas foram alguns dos agentes de deterioração da imagem do Império. Em 1888 a
abolição da escravidão trouxe consigo o agravamento dos problemas econômicos e, no esteio
do pensamento abolicionista, as ideias liberais e positivistas contribuíram para legitimar da
mudança.
No entanto, o momento máximo do republicanismo pode não ter representado
tanto assim do ponto de vista estrutural da sociedade brasileira. É corrente na historiografia
que os governos republicanos não conseguiram por em prática as suas proposições (FAUSTO,
2009; CARVALHO, 1987, 1990; COSTA, 2010). Houve intensa disputa entre os grupos
políticos com posicionamentos ideológicos diferentes e a transição entre modelos de governo
representou um momento de instabilidade e incertezas.
O movimento resultou da conjunção de três forças: uma parcela do Exército,
fazendeiros do Oeste Paulista e representantes das classes médias urbanas que, para
a obtenção dos seus desígnios, contaram indiretamente com o desprestígio da
Monarquia e o enfraquecimento das oligarquias tradicionais. Momentaneamente
unidas em torno do ideal republicano, conservavam, entretanto, profundas
divergências, que logo se evidenciaram na organização do novo regime, quando as
contradições eclodiram em numerosos conflitos, abalando a estabilidade dos
primeiros anos da Republica. (COSTA, 2010, p. 491).
O historiador não deve ser o juiz dos fatos históricos, e deve aprender a lidar com
as mais diversas versões sobre determinado acontecimento, inclusive com aquelas que negam
veementemente os acontecimentos. Essas várias versões representam pontos de vista distintos,
que dão subsídio para compreender as disputas pelo exercício de poder no novo cenário
político brasileiro. Foi a partir dessas disputas que a República foi instituída e, sem consensos,
a administração nacional da virada do século XIX caracterizou-se pela tentativa de
acomodação dos grupos políticos republicanos a partir da atenção às suas demandas.
O problema central a ser resolvido pelo novo regime era a organização de outro
pacto de poder, que pudesse substituir o arranjo imperial com grau suficiente de
estabilidade. Durante quase dez anos de República, as agitações se sucediam na
capital, havia guerra civil nos estados do Sul, percebiam-se riscos de fragmentação
do país, a economia estava ameaçada pela crise do mercado do café e pelas
dificuldades de administrar a dívida externa. Para os que controlavam o setor mais
poderoso da economia (exportação) e para os que se preocupavam em manter o país
unido, tornava-se urgente acabar com a instabilidade política. (CARVALHO, 1987,
p. 32).
16
O quadro ao qual faz o autor faz referência segue no Anexo 1.
53
(1990) e que a maior parte da população não foi atingida pelos benefícios que os republicanos
prometiam.
Diferente da suposta marcha evolutiva, única e mandatória, ocorreu uma
sobreposição de temporalidades e a afirmação de uma modernidade periférica.
Diante de um republicanismo radical – que se manifestou nomeadamente na
primeira década do século –, de uma faxina social nas cidades e da evidência de
novas formas de exclusão, eclodiram várias revoltas e manifestações de cunho
popular, as quais, cada uma à sua maneira, denunciavam as falácias desse processo
que prometia “civilização fácil” (SCHWARCZ, 2012, p. 21-22).
muitas eram as esperanças no modelo republicano e nas projeções sociais, políticas e culturais
de seus governantes.
Os jornais saudavam a República em letras garrafais ou por meio da reprodução
de telegramas vindos de diversas partes do país dando conta da adesão ao governo
republicano. As pessoas foram às ruas em passeatas, fogos e bandas seguiram para
determinados pontos da cidade onde oradores e políticos discursavam, festas foram
organizadas e aos poucos a República foi se espalhando pelo país em tom festivo.
Imagem 2 Capa do Jornal "O Novo Brazil" saudando a República.
As diversas opiniões publicadas nos periódicos viam com bons olhos não só o
momento em si, mas a possibilidade de mudanças reais, no sentido de tornar o Brasil moderno
e civilizado. Cada feito político posterior ao 15 de novembro era visto como a materialização
desse futuro que finalmente chegara e que prometia muito mais a cada dia.
55
duvidando sobre a origem da loucura, se das ações de conselheiro ou dos agentes legais: “É
que ainda não existe um Maudsley para as loucuras e crimes das nacionalidades”17.
A República poderia ser o seu próprio algoz na ótica de Euclides da Cunha e de
fato seria para boa parte da população. Formada por pobres, mestiços e ex escravos a grande
maioria da sociedade esteve à margem desses processos de mudança que buscavam articular o
Brasil à modernidade e a civilização.
Tudo parecia sinalizar para uma integração sem obstáculos e barreiras
intransponíveis. Contudo, tal abertura social – experimentada no Brasil no final do
século XIX, mas não apenas – seria freada por novos critérios de alteridade racial,
religiosa, étnica, geográfica e sexual. Marcadores sociais de diferença dos mais
vigorosos porque condicionados por realidades e hierarquias sociais, mas moldados
por critérios considerados racionais e objetivos – porque biológicos -, faziam agora
grande sucesso. Um novo racismo científico, que acionava uma pletora de sinais
físicos para definir a inferioridade e a falta de civilização, assim como estabelecer
uma ligação obrigatória entre aspectos “externos” e “internos” dos homens. Narizes,
bocas, orelhas, cor de pele, tatuagens, expressões faciais e uma série de “indícios”
foram rapidamente transformados em “estigmas” definidores da criminalidade e da
loucura. O resultado foi a condenação generalizada de largos setores da sociedade,
como negros mestiços e também imigrantes, sob o guarda-chuva seguro da biologia.
(SCHWARCZ, 2012, p. 21).
17
Henry Maudsley (1835-1919) foi um psiquiatra inglês, seus estudos e escritos pioneiros contribuíram para o
desenvolvimento das ideias sobre a sociopatia (disponível em
http://www.bbk.ac.uk/deviance/biographies/maudsley.htm consultado em 10/08/2013). O cadáver de Antonio
Conselheiro teria sido exumado para que a sua cabeça pudesse ser mostrada como troféu e objeto de estudos
científicos, que o consideraram como louco, segundo informa Euclides da Cunha. A crítica do autor assevera que
a loucura praticada pelo governo no combate a Canudos passaria incólume, já que ninguém a havia estudado.
(CUNHA, 2003)
57
18
Durante o intenso debate sobre os rumos do governo republicano, estabeleceu-se por meio da constituição a
proibição de retorno ao modelo monárquico ou a substituição do governo republicano por outro. Assim a
República começou a trabalhar no sentido de minar as resistências ou vozes e projetos dissonantes, boa parte
destes favoráveis ao monarquismo. (FLORES, 2008).
19
Estas cidades tiveram decréscimo respectivamente de 11.933, 1.556, 6.667 e 5.115 habitantes.
20
ANUÁRIO ESTATÍSTICO BRASILEIRO (1916, v.1, p. 256)
58
21
As imagens do bairro do Codozinho foram encontradas na internet em site de imagens de São Luís, como
sendo de um álbum de fotos da cidade do ano de 1904.
59
Características de uma sociedade dividida, as moradias dos que não tinham posses
demarcavam, para além dos fatores econômicos, as relações de poder que se estabeleciam no
cotidiano. É preciso observar os limites dos ideais de urbanização percebendo quais áreas
eram contempladas e de que forma. São Luís manteve o seu traçado colonial quase sem
modificações durante o século XIX e início do século XX e a urbes dos primeiros anos de
colonização manteve-se a partir da ocupação humana, definindo assim uma área central
(urbanizada) e uma área periférica (“desorganizada”). Esse traçado ainda é perceptível na
atualidade conforme se oberva a configuração das ruas entre o centro e os bairros ao seu
redor, onde as linhas deixam de ser gradativamente retas e passam a assumir um formato
curvilíneo em que o padrão passa a ser a irregularidade das formas.
O cortiço era tido como “ambiente moralmente degenerado”, um problema do
ponto de vista da urbanização (CORREIA, 2012, p. 47) e, portanto, passível da ação do poder
público no sentido de sanar tais problemas.
Por essas e outras tantas, e diante dos anseios por parte de frações das elites
intelectuais e econômicas de se instituírem novos modos de vida e sociabilidade na
cidade, de acordo com o artigo 83º do Código de Posturas Municipais de 1893,
ficava proibido o estabelecimento de cortiços no perímetro urbano, sendo multado
quem infringisse essa postura. Ainda seria obrigado a demolir a construção. Por
outro lado, os cortiços existentes que não oferecessem as mínimas condições de
higiene seriam fechados, estabelecendo-se como condições mínimas a conservação
do “melhor estado de asseio possível; perfeito encanamento para o esgoto das águas
pluviais e ainda caiação das paredes ao menos duas vezes por ano”. Quanto aos
“baixos de sobrados”, determinava que aqueles que não tivessem aberturas nas
61
paredes para renovação do ar estavam proibidos para moradia, de acordo com o 86º.
(CORREIA, 2006, p. 47).
Os cortiços eram apenas uma das representações do atraso ao qual o país estava
submetido. Retomo aqui a noção de “faxina social” para subsidiar a intenção das elites em, de
fato, efetuar uma limpeza na cidade retirando dela tudo aqui que incomodava ou que se
contrapunha aos ideais de civilização.
As novas gerações da elite intelectual brasileira, com formação militar e
tecnocrática, associadas aos estamentos tradicionais [...] tornaram-se extremamente
sensíveis à abertura do mundo, alavancada pelas transformações proporcionadas
pela belle époque europeia. Utopia difusa ou projeto realizável, o fluxo cultural
europeu apresentava-se capaz de romper de vez com o passado obscuro e vazio de
possibilidades do império escravista, e de abrir um mundo novo, liberal e
cosmopolita, progressista, abundante e de perspectivas ilimitadas. (SALIBA, 2012,
p. 240).
22
O Código de Posturas de 1893 é referenciado no jornal, mas não foi localizado no APEM, mesmo após várias
buscas junto aos funcionários da instituição.
62
23
A cultura letrada pode não ser universal se considerarmos os índices de alfabetização para o período entre
1889 e 1910. Para efeito de exemplificação o sistema eleitoral republicano manteve a exigência da alfabetização
como requisito para o eleitorado. Em 1910 do universo de 657.453 maranhenses apenas 32.774 estavam aptos a
63
e indique para um meio infinitamente menor e sem importância. Se a cultura popular era
manifesta entre os grupos que não faziam parte da elite, seria impossível pensar em uma
cultura restrita, já que a maioria da população era “popular”, logo suas manifestações não
estariam restritas a um universo em particular.
As manifestações populares, no entanto, também são universais no sentido de
possuírem uma complexidade que faz parte do cotidiano de vários indivíduos, servindo de
códigos que norteiam as relações socais e quase impossíveis de serem completamente
compreendidos em sua complexidade por estarem difusos nas ações dos seres humanos, ou
seja, enquanto “documentos de atuação” como define Geertz (2011, p. 8).
Embora uma ideação, não existe na cabeça de alguém; embora não física, não é uma
entidade oculta. O debate interminável, porque não-terminável, dentro da
antropologia, sobre se a cultura é “subjetiva” ou “objetiva”, ao lado da troca mútua
de insultos intelectuais (“idealista!” – “materialista!”; “mentalista!” –
“behavorista!”; “impressionista!” – “positivista!”) que acompanha, é concebido de
forma completamente errônea. Uma vez que o comportamento humano é visto como
ação simbólica [...] – uma ação que significa, como a fonação na fala, o pigmento na
pintura, a linha na escrita ou a ressonância na música, – o problema se a cultura é
uma conduta padronizada ou um estado de mente ou mesmo as duas coisas juntas,
de alguma forma perde o sentido. [...] O que devemos perguntar é qual é a sua
importância: o que está sendo transmitido com a sua ocorrência e através da sua
agência, seja ela um ridículo ou um desafio, uma ironia ou uma zanga, um deboche
ou um orgulho.
Isso pode parecer uma verdade óbvia, mas há inúmeras formas de obscurecê-la.
Uma delas é imaginar que a cultura é uma realidade “superorgânica” autocontida,
com forças e propósitos em si mesma, isto é, reificá-la. Outra é alegar que ela
consiste no padrão bruto de acontecimentos comportamentais que de fato
observamos ocorrer em uma ou outra comunidade identificável – isso significa
reduzi-la. (GEERTZ, 2011, p. 8).
votar. Os 4,9% da população que podia votar é um dos indicativos dos baixos níveis de alfabetização, um dos
meios pelos quais a cultura erudita era difundida.
64
excluídas. Num sentido totalmente liberal, elas não falavam aquela linguagem. A
pequena tradição, por outro lado, era transmitida informalmente. Estava aberta a
todos, como a igreja, a taverna e a praça do mercado, onde ocorriam tantas
apresentações.
Assim, a diferença cultural crucial nos inícios da Europa moderna (quero
argumentar) estava entra a maioria, para quem a cultura popular era a única cultura,
e a minoria, que tinha acesso à grande tradição, mas que participava da pequena
tradição enquanto uma segunda cultura. Essa minoria era anfíbia, bicultural e
também bilíngue. Enquanto a maioria do povo falava apenas o seu dialeto regional e
nada mais, a elite falava e escrevia latim ou uma forma literária do vernáculo, e
continuava a saber falar em dialeto, como segunda ou terceira língua. (BURKE,
2010, p. 56)
24
As referências legais sobre a relação entre Estado e Religiões encontra-se no Anexo 2.
66
No que diz respeito à ordem, entretanto, tudo indica que os conjuntos e seus séquitos
procuravam mantê-la a partir de iniciativa própria, a qual terminava por enquadrá-
los, mais ou menos, nos marcos daquilo que se configurava como um novo ideal de
civilidade, o que em outros termos quer dizer que seu comportamento talvez não
significasse mais do que o resultado de um amplo processo de circularidade cultural,
por meio do qual ideais das elites haviam sido apropriados e internalizados por
frações das camadas populares, isto porque a Polícia não parecia dispor de força
bastante e nem demonstrar empenho suficiente para que fosse mantida, uma vez que
os próprios soldados deixavam seus postos, para acompanharem os Bois.
(CORREIA, 2006, p. 124).
Renato Ortiz também destaca que a umbanda teria surgido a partir desse processo
de incorporação de elementos fora do mundo afro-brasileiro após a década de 1930.
A sociedade global aparece então como modelo de valores, e modelo da própria
estrutura religiosa umbandista. Isto faz com que as transformações do mundo
simbólico afro-brasileiro se realizem sempre em conformidade com os valores
legítimos da sociedade global. Valores como a moral católica (noção de bem e de
mal), a racionalização, a escrita, se integram a um outro tipo de moral e
racionalidade, características estas dos cultos afro-brasileiros. (ORTIZ, 2005, p. 15)
25
É necessária uma investigação pormenorizada de toda a série documental dos Pedidos e Licenças para Festas
para compreender a lógica de deferimentos e indeferimentos. Aparentemente a partir de 1895 os pedidos passam
a receber deferimento sem maiores problemas, o Bumba meu Boi que sempre foi alvo de críticas dos jornais e
perseguido pela polícia teve licenças aprovadas após 1895. Reitero que para esses casos seria preciso uma
análise mais detida em todos os pedidos, incluindo uma distribuição geográfica das festas, a identificação dos
requerentes com os respectivos motivos, a figura do chefe de polícia como individuo apto a autorizar ou não o
pedido.
67
A temática da liberdade religiosa deve ser retomada para que sejam entendidas as
relações entre essa tentativa de controle e as manifestações das religiões afro-brasileiras.
Alguns tópicos merecem atenção. Desde o período colonial as manifestações religiosas não
católicas sofriam perseguições por parte do Estado. Nas Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia (1707) constam as primeiras regulamentações acerca das práticas
religiosas não oficiais, ou seja, aquelas não professadas e defendidas pela Coroa Portuguesa.
As leis religiosas influenciavam diretamente no que poderia ser chamado de
administração civil do Estado, que sendo confessional, reconhecia o poder eclesiástico como
um dos mecanismos reguladores da sociedade, as leis da Igreja tinham validade na esfera
política e vice-versa. No Livro Quinto das constituições do arcebispado estão presentes uma
série de regulamentações sobre práticas heréticas que são consideradas crimes. O Títulos III,
IV e V26 do mesmo livro são dedicados à práticas largamente conhecidas como feitiçaria,
cabendo à Igreja punir os praticantes com penas que variam de pagamento de multas,
penitências e até a condenação de galés27
26
Os referidos títulos encontram-se no Anexo 3.
27
A condenação às galés era uma das penas mais severas e comuns ao império marítimo português. Segundo
SILVA (2011) o tipo de trabalho desenvolvido nas galés resultava em graves sequelas para aqueles que
conseguiam sobreviver à pena estipulada, ou como informa o mesmo autor:
A partir do século XVI, muitos portugueses foram condenados pela Inquisição a servir nas galés por períodos
que variavam de três a dez anos. Este também foi o destino de vários homens nascidos no Brasil. O Tribunal do
Santo Ofício, instituído em Portugal em 1536, se valeu desse tipo de pena para castigar quem não seguisse os
padrões morais e doutrinários por ele estipulados. Além dos tribunais eclesiásticos, as leis do reino também
68
Entre estes meios para punir, estão a associação com os crimes correlatos, como
roubar objetos para pagamento de trabalhos, insurreições, resistências inclusive mortes. No
código penal do Império, esses crimes estão regulados respectivamente nos artigos 6º
parágrafo 1º, 113, 116 e 182. Levando em consideração tais fatos, podemos inferir que não
haveria sequer a necessidade de um único dispositivo legal para incriminar os indivíduos que
praticassem feitiçaria, pois um inquérito policial cedo ou tarde levaria à descoberta de que o
feiticeiro denunciado estava cometendo algum tipo de crime. Os crimes correlatos eram peças
fundamentais para o combate à feitiçaria. Através destes, era possível a polícia identificar os
feiticeiros como criminosos, pois um sacerdote poderia utilizar-se de suas funções enquanto
líder religioso para divulgar ideais de revolta e combate à escravidão.
Nestes casos, a denúncia de um crime é sempre feita com base na relação deste
com questões religiosas, que serviam como prova para as suspeitas levantadas pelas
puniam delitos relacionados à fé. Entre os criminosos na esfera civil que foram condenados ao degredo nas
galés havia muitos que “blasfemavam de Deus ou dos Santos”. (SILVA, 2011.)
69
autoridades sobre a feitiçaria enquanto atos para camuflar crimes e sobre os feiticeiros
enquanto indivíduos perigosos. A repressão aos terreiros, batuques ou qualquer tipo de
reunião de negros trabalhava com a concepção de que muitos crimes tinham origem nas
práticas religiosas ou se utilizavam de artifícios religiosos em sua execução.
Assim não seria necessário um dispositivo direto e claro como havia no período
colonial, muito embora alguns artigos do Código Criminal de 1830 versassem diretamente
sobre a religião, tais como:
Art. 191. Perseguir por motivo de religião ao que respeitar a do Estado, e não
offender a moral publica.
Penas - de prisão por um a tres mezes, além das mais, em que possa incorrer.
[...]
Art. 276. Celebrar em casa, ou edificio, que tenha alguma fórma exterior de Templo,
ou publicamente em qualquer lugar, o culto de outra Religião, que não seja a do
Estado.
Penas - de serem dispersos pelo Juiz de Paz os que estiverem reunidos para o culto;
da demolição da fórma exterior; e de multa de dous a doze mil réis, que pagará cada
um. (Código Criminal do Império Brasileiro – 1830)
28
Os referidos artigos são:
Art. 279. Offender evidentemente a moral publica, em papeis impressos, lithographados, ou gravados, ou em
estampas, e pinturas, que se distribuirem por mais de quinze pessoas, e bem assim a respeito destas, que estejam
expostas publicamente á venda.
Art. 280. Praticar qualquer acção, que na opinião publica seja considerada como evidentemente offensiva da
moral, e bons costumes; sendo em lugar publico.
Art. 281. Ter casa publica de tabolagem para jogos, que forem prohibidos pelas posturas das Camaras
Municipaes.
70
Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros,
que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida
pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte.
[...]
V. Ninguem póde ser perseguido por motivo de Religião, uma vez que respeite a do
Estado, e não offenda a Moral Publica. (Constituição do Brasil de 1824)
Outros artigos ainda tratavam da religião católica, como os de número 103, 106 e
141 em que autoridades eram obrigadas a jurar manter a fé católica em suas atividades. Todos
esses artigos refletem que o Império não só incluiu elementos da religião católica como
integrantes da estrutura do Estado como reforçou o exercício dessa fé por meio das ações do
Estado.
A legislação republicana não se furtou ao trato com a religião, no entanto de
forma diferente. Como apresentado acima, nos ideais republicanos estava contido o
sentimento contra a igreja. Tida como uma marca do atraso devido ao seu envolvimento com
os assuntos políticos foi responsabilizada por parte dos gastos públicos que com a ascensão
dos governos republicanos foram cortados29.
Nesse mesmo escopo anticlerical decretou-se o fim do estado confessional30 e a
obrigação do estado em garantir a liberdade de culto ao passo que não subvencionaria
nenhuma religião bem como não impediria o seu exercício. Mas, como é sabido, há uma
distância muito grande entre a letra da lei e o seu cumprimento e uma lei por si só pode não
garantir uma mudança social significativa, ou mesmo não surtir efeito.
O fim do estado confessional e a laicidade são discutíveis. Muito embora a lei
fosse categórica fica claro que as práticas indicam para outra interpretação e é necessário
pensar relacionalmente os referenciais dessa laicidade presentes nas leis. Não houve o fim do
estado confessional, que continuou regulando sobre assuntos religiosos, dessa forma é mais
adequado afirmar que as relações entre Estado e Religiões a passaram a se realizar em um
nível de maior complexidade, em que o apoiar ou criticar não significava necessariamente
isso.
29
No decreto nº 7 de 23 de dezembro de 1889, já citado em nota acima os artigos restantes dizem respeitos a
suspensão dos gatos do Estado com a Igreja.
Art. 2º - Ficam desde já extinctos os subsídios até hoje prestados ao Asylo de Santa Thereza e ao Seminario, e
abolido o dote de 800$000 reis estabelecido para as educandas do referido Asylo que contrahem matrimonio,
respeitados os direitos das que já casaram e ou não receberam ainda.
Art. 3º - Fica igualmente extincta a verba – Culto Público –, suspensos quaesquer pagamentos que por ellas se
hajam fazer.
Art. 4º - São dispensados dos seus empregos ou comissões os padres ou sacerdotes em quaesquer repartições ou
corporações deste Estado servem de confessores e capellães e bem assim os chamados sachristães.
30
O fim do estado confessional brasileiro e a sua laicidade são discutíveis. Fica claro que a legislação criou
novos formatos dessa relação.
71
A religião católica não deixou de ser preponderante, muito menos de ser parte do
ethos das elites dominantes. O catolicismo não deixou de influenciar as relações sociais e nem
de tomar parte em vários discursos. Seguramente não é possível afirmar que houve um
completo desligamento entre Estado e Igreja, muito embora tenha havido animosidade e
diálogos entre as duas instituições. Talvez apenas o discurso de parte dos intelectuais e
defensores do positivismo tenha pintado com tintas fortes um cenário que não se concretizou
de fato, o Estado pode ter deixado de ser confessional, mas não católico.
Portanto, nesse contexto em que a expressão política da civilização é a República,
positivista e anticlerical; em que o professo e a expressão concreta da ciência que,
por princípio representa a superação das “irracionalidades” e do “mito” contidos no
princípio da fé, as manifestações de religião e religiosidade, particularmente as
oriundas das camadas inferiores da população, dando visibilidade e reafirmando
práticas do tempo do Imperador, serão objeto de frequentes denúncias e ardorosa
reprovação. De modo que, nesse contexto palavroso marcado por uma compulsão
pelo novo – que aliás, deveria ser construído a partir do nada, posto que do antigo
tudo se nega – os questionamentos e críticas que, teoricamente, se voltariam para
todas as manifestações religiosas jamais estariam isentos de uma concepção
hierárquica das religiões, porque hierárquico era o olhar que era pousado sobre os
fiéis. Em outros termos, estarão sempre marcados por conceitos estabelecidos em
torno do sagrado e profano, confirmando uma perspectiva dominante [...].
(CORREIA, 2006, p. 159).
Os artigos 156, 157 e 158 trazem nova forma de abordar às religiões populares. A
ciência passa a fazer parte das reflexões quase como em substituição às concepções religiosas
que antes se apresentavam no discurso das instituições e passa a ser preponderante um
31
Argumento novamente contra a ideia da exclusividade republicana no combate direto e regulamentado contra
a feitiçaria. A partir do que já foi apresentado, desde o período colonial as manifestações religiosas não católicas
sofreram perseguições que de alguma forma estavam contidas ou respaldadas por dispositivos legais.
72
discurso de cunho médico e higienista contra a pequena tradição da maioria, para reutilizar
os termos de Redfield e Burke.
CAPITULO III
DOS CRIMES CONTRA A SAUDE PUBLICA
Art. 156. Exercer a medicina em qualquer dos seus ramos, a arte dentaria ou a
pharmacia; praticar a homeopathia, a dosimetria, o hypnotismo ou magnetismo
animal, sem estar habilitado segundo as leis e regulamentos:
Penas – de prisão cellular por um a seis mezes e multa de 100$ a 500$000.
Paragrapho unico. Pelos abusos commettidos no exercicio ilegal da medicina em
geral, os seus autores soffrerão, além das penas estabelecidas, as que forem impostas
aos crimes a que derem causa.
Art. 157. Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilegios, usar de talismans e
cartomancias para despertar sentimentos de odio ou amor, inculcar cura de
molestias curaveis ou incuraveis, emfim, para fascinar e subjugar a credulidade
publica:
Penas – de prisão cellular por um a seis mezes e multa de 100$ a 500$000.
§ 1º Si por influencia, ou em consequencia de qualquer destes meios, resultar ao
paciente privação, ou alteração temporaria ou permanente, das faculdades psychicas:
Penas – de prisão cellular por um a seis annos e multa de 200$ a 500$000.
§ 2º Em igual pena, e mais na de privação do exercicio da profissão por tempo igual
ao da condemnação, incorrerá o medico que directamente praticar qualquer dos
actos acima referidos, ou assumir a responsabilidade delles.
Art. 158. Ministrar, ou simplesmente prescrever, como meio curativo para uso
interno ou externo, e sob qualquer fórma preparada, substancia de qualquer
dos reinos da natureza, fazendo, ou exercendo assim, o officio do denominado
curandeiro:
Penas – de prisão cellular por um a seis mezes e multa de 100$ a 500$000.
Paragrapho unico. Si o emprego de qualquer substancia resultar á pessoa privação,
ou alteração temporaria ou permanente de suas faculdades psychicas ou funcções
physiologicas, deformidade, ou inhabilitação do exercicio de orgão ou apparelho
organico, ou, em summa, alguma enfermidade:
Penas – de prisão cellular por um a seis annos e multa de 200$ a 500$000.
Si resultar a morte:
Pena – de prisão cellular por seis a vinte e quatro annos.
(Código Criminal da República, 1890 - grifo meu).
Em uma sociedade marcada pela religiosidade e que desde sua formação acreditou
no potencial sobrenatural do bem e do mal agindo no cotidiano, não poderia se distanciar de
suas crenças, inclusive na feitura de suas leis. A defesa da religião católica entre 1500 e 1889
não se fazia apenas pela ótica das relações institucionais, mas por uma crença real nos
benefícios da religião católica.
Era muito comum, em todo este vasto período anterior a 1889, as autoridades
justificarem sua impotência diante das epidemias, principalmente as de varíola,
afirmando serem aquelas moléstias “importadas”.
[...]
Apoiavam-se, no entanto em argumentação frágil, entre elas a da potencia natural da
terra maranhense, atributo que a tornava, por um do talvez divino, imune em si
mesma, aos males das epidemias.
Observou-se na verdade ao longo desse período (isso até mais ou menos a metade do
século XIX, coincidindo com o momento em que o poder público iniciou, de forma
até certo ponto ordenada, as primeiras gestões para a produção de serviços públicos
de infra-estrutura urbana) o emprego generalizado da fé religiosa como o recurso
profilático por excelência no enfrentamento da insalubridade pública. Não são
poucos os registros históricos que revelam um povo aflito recorrendo sempre,
durante as grandes epidemias, à “misericórdia divina”. Era muito comum, nos
momentos de grandes surtos, o viático sair até 5 ou 6 vezes por dia para socorrer
vítimas de moléstias epidêmicas, que depositavam suas esperanças na misericórdia
dos santos. O povo, verdadeiramente, não via necessidade de recorrer ao poder
público por uma razão também muito simples, é que o próprio poder público, via de
regra, também se valia daquela mesma fonte salvadora. Eram comuns os ofícios da
Câmara Municipal aos presidentes de Província, e ora destes à Câmara, pedindo a
bispos e às igrejas que rezassem missas e organizassem procissões para que os
flagelos epidêmicos abandonassem a cidade. A rigor, por ironia da sorte, todos
preferiam confiar muito mais nos milagres de São Sebastião, que na ação “Laica” do
poder público local. (PALHANO, p. 147-148).
‘confissão religiosa’ e o que não era” (Maggie, 1992, p. 42). A Festa do Divino Espírito
Santo é apresentada nos pedidos de licença como religiosa, envolvendo a devoção a terceira
pessoa da santíssima trindade. Nesse caso a autoatribuição religiosa deve ser levada em
consideração na caracterização de determinado evento como religioso e não há nada na
documentação policial que negue essa característica.
Muito embora apareçam reclamações nos jornais, há uma relação estreita entre a
referida festa e o catolicismo. O objeto de críticas muitas vezes era o barulho causado pelos
promotores das festas e os próprios promotores da festa, em sua maioria pessoas pobres e “de
cor”, sendo a que própria igreja não legitimava a devoção e a estética da festa.
Com base nessas informações é válida a afirmação de que havia uma
característica religiosa reconhecida na Festa do Divino e que sua “liberdade” não era
plenamente garantida pela lei e estava condicionada a liberação policial, objeto da qual a
religião católica não fazia parte. Havia uma tendência valorativa da religião católica e de
forma oposta uma tendência pejorativa em relação às manifestações religiosas populares.
A laicidade do Estado brasileiro da virada do século XIX era marcada por um
favorecimento do catolicismo que, se não foi subsidiado pelo governo, ao menos não sofreu
os mesmos percalços que as demais religiões, tendo o seu culto gozado de plena liberdade
após 1889. Nesses termos a ruptura com o catolicismo deve ser relativizada, pois as suas
visões de mundo continuavam influenciando a organização da sociedade e também do Estado,
no momento em que conferia ao credo católico um status diferenciado em relação às demais
manifestações.
O fim da escravidão e o decreto de liberdade religiosa podem ter surtido efeitos na
expansão das práticas religiosas de matriz africana. Ainda assim não é possível aferir o peso
desses dois eventos para os aspectos religiosos da sociedade, principalmente se pensarmos
que a repressão religiosa permaneceu no período republicano.
Com base nas pesquisas seria precipitado afirmar que houve uma maior liberdade
de culto, isto seria acreditar em uma execução plena da lei, algo que não ocorreu. Se os laços
com a igreja católica não foram quebrados e sim reconfigurados em um novo arranjo de
forças, não seria forçoso dizer que as religiões afro-brasileiras ainda permaneciam em sua
“ilegalidade”.
75
Para entender a relação entre crimes contra a saúde pública, exercício ilegal da
medicina e religiões afro-brasileiras é preciso atentar para dois fatores: a relação entre a
religião e as práticas de cura e a valorização da medicina no contexto sociopolítico da época.
Analisarei por hora apenas o segundo fator, deixando o primeiro para o capítulo seguinte em
que abordarei de maneira mais detida a pajelança enquanto uma prática de cura.
A valorização das ciências e não só da medicina é um processo que acompanhou o
desenvolvimento das ideias republicanas no país. A partir de 1870 o republicanismo começa a
se difundir, divulgando novas ideias políticas e um novo projeto de sociedade para o Brasil
que ganhou força devido ao desgaste do poder imperial.
Nesse mesmo período “introduzem-se no cenário brasileiro teorias de pensamento
até então desconhecidas, como o positivismo, o evolucionismo, o darwinismo”.
(SCHWARCZ, 1993, p43). Essas teorias tomam parte nesse projeto de Brasil em que a
ciência passa a ser responsável por instituir novas visões de mudo e formas de organização
das relações sociais.
A segunda metade do século XIX vê despontar a ciência como a forma de
conhecimento capaz de modificar a sociedade em vários aspectos, buscando principalmente
superar os problemas do passado e enfrentar os novos tempos, para os quais as velhas teorias
já não mais se aplicavam. O homem enquanto espécie animal passa a ser objeto de estudo
dessa nova intelectualidade, cujo pensamento vai se desenvolver em várias áreas a partir de
concepções biológicas.
A partir de meados do século XIX a hipótese poligenista transformava-se em uma
alternativa plausível, em vista da crescente sofisticação das ciências biológicas e,
sobretudo diante da contestação ao dogma monogenista da Igreja. Partiam esses
autores da crença na existência de vários centros de criação, que corresponderiam,
por sua vez, às diferenças raciais observadas.
A versão poligenista permitiria, por outro lado, o fortalecimento de uma
interpretação biológica na análise dos comportamentos humanos, que passam a ser
crescentemente encarados como resultado imediato de leis biológicas e naturais. [...]
Recrudescia, portanto, uma linha de análise que cada vez mais se afastava dos
modelos humanistas, estabelecendo rígidas correlações entre conhecimento exterior
e interior, entre a superfície do corpo e a profundeza do espírito. (SCHWARCZ,
1993, p. 48-49).32
32
Sobre a monogenia e a poligenia Lília Schwarcz (1993, p. 48) indica que a primeira encarava que a origem do
homem seria uma fonte comum, sendo a humanidade una. Essa teoria tinha suporte na religião católica e por
muito tempo foi utilizada por diferentes autores.
76
a sua competência legitimada pelo ideário político do momento o médico passou a ser não
somente o especialista do corpo individual, mas do social também.
A condição de especialista parece ser fundamental para o entendimento acerca do
processo social de legitimação da competência médica, ela faz parte dos atributos
portados pelo médico, daqueles atributos são tomados como critério ao exercício do
poder, não apenas no que tange àquelas relações mais propriamente referidas ao
campo médico: - a hegemonia das técnicas de controle dos corpos, ou a disputa pela
condição hegemônica, habilita ao médico a tomar não apenas o corpo humano como
objeto de intervenção, mas, mediante raciocínio analógico, é a condição de sua
capacidade para intervir no “corpo social”, para criar e controlar práticas referidas à
vida em sociedade. Diante da hegemonia das ciências naturais, sobretudo no século
XIX, a “sociedade” é interpretada como guardando semelhanças com o “indivíduo”.
Logo, um especialista na resolução dos problemas deste é também considerado
como um especialista nos problemas referidos a organização social.
O monopólio sobre certo código, regras e preceitos, referido à vida e à morte, à
saúde e à doença das “populações” permite atualizar formas de controle e
dominação sobre os corpos dos indivíduos, e parece constituir-se em atributo que
permite ao médico intervir na organização social: - erudição e especialidade
apresentam-se como atributos possíveis de serem aventados ao se buscar refletir
acerca das condições de possibilidades para o exercício do poder, por parte dos
médicos, em distintos lugares referidos à estrutura de poder.
[...] A sua condição de especialista no que tange aos “males” que afligem aos corpos
confere poder e autoridade para atuar sobre a própria sociedade, exercendo
atividades nos mais variados planos da organização social. (NUNES, 2000, p. 61-
62).
Como asseverado pela autora o que estava em jogo não era unicamente a
competência do médico enquanto profissional que lida com saúde/doença do indivíduo, mas
também do conjunto destes. Contempla-se assim porque a medicina passou a ser tão
valorizada no fim do século XIX e como o conhecimento médico tomou lugar em uma ampla
lista de ações que visavam sanar certos problemas sociais.
Ainda assim não é possível falar em um lugar social da medicina, pois a
influência na administração pública não significava necessariamente que as medidas sociais
fossem eficazes. A existência de códigos e regulamentações de caráter sanitário não significa
que a sua ação seja de fato eficaz.
O Serviço Sanitário do Estado do Maranhão criado por lei em 9 de Junho de
190433 pode ser tomado como exemplo do respaldo que a ciência gozava na República e da
amplitude da ação de caráter médico. Essa lei possuía 213 artigos e era complementada por
um Código Sanitário de 364 artigos. Esses dispositivos regulavam sobre as residências,
hospitais, bares, açougues, cemitérios, farmácias entre outros espaços.
Segundo a referida lei
Art. 2º O serviço sanitario estadual comprehende:
1 – O estudo scientífico de todas as questões relativas á Hygiene.
33
Lei n. 358 de 9 de Junho de 1904 - Organiza o Serviço Sanitário do Estado. Coleção de Leis e Decretos do
Estado.
78
Art. 151. Só é permitido o exercício da arte de curar em qualquer dos seus ramos, e
por qualquer de suas fórmas:
I ás pessôas que se mostrarem habilitadas por título conferido pelas Faculdades de
Medicina da Republica dos Estados-Unidos do Brasil;
II ás que, sendo graduadas por Escolas ou Universidades estrangerias, officialmente
reconhecidas, se habilitarem perante as ditas Faculdades, na forma dos respectivos
estatutos;
III ás que tendo sido ou sendo professores de Universidade ou Escola estrangeira,
officialmente reconhecida, tenham conseguido licença da Directoria Geral de Saúde
Publica para o exercicio da profissão;
IV ás que, sendo graduadas por Escola ou Universidade estrangeira officialmente
reconhecida, provarem que são autoras de obras importantes de medicina, cirurgia
ou pharmacologia e tenham conseguido licença da Directoria Geral de Saude
Publica para o exercicio da profissão.
§ Unico. Os que praticarem o espiritismo, a magia, ou annunciarem a cura de
molestias incuraveis, incorrerão nas penas do artigo 157 do Codigo Penal, além além
da privaçao do exercicio da profissão por tempo igual ao da condemnação, se forem
medicos, pharmaceuticos, dentitas e parteiras.
Art. 166. São expressamente prohibidos o annuncio e a venda de remedios secretos,
bem como a venda de drogas ou preparados medicamentosos em estabelecimentos,
que não estejam devidamente licenciados nas vias e logradouros públicos. (Código
do Serviço Sanitário do Estado do Maranhão, 1904).
34
Infelizmente não houve possibilidade de localizar documento referente ao Serviço Sanitário para acompanhar
a ação dessa polícia sanitária. Nos diários oficiais era registrado apenas o número de visitas realizadas pelas
autoridades do serviço sanitário, sem detalhes dessas ações.
79
Esta parte do código sanitário retoma o que já estava estabelecido pelo código
criminal de 1890, mas apresenta regulamentações mais específicas acerca da proibição do
exercício da medicina por profissionais não habilitados. Isso garantia o monopólio dos
profissionais formados em faculdades de medicinas reconhecidas e ratificava a importância de
sua ação na sociedade.
Mas a ação médica estava longe de ser abrangente e de fato conseguir atingir os
propósitos aos quais se destinava. Muito embora fosse valorizada como expressão do
progresso e da civilização, a medicina legal também sofreu percalços, principalmente pela
inoperância do poder público em materializar as propostas na área da saúde. Não são poucos
os registros que dão conta dos problemas de saúde e da falta de medidas ou mesmo de
medidas ineficazes para saná-los, como indica Raimundo Palhano.
O antigo regime realmente havia deixado uma herança maldita: as condições
sanitárias das cidades brasileiras eram verdadeiramente precaríssimas. As estatísticas
sobre mortalidade indicam, por exemplo, que no período entre 1860 – 1889 as
pessoas morriam muito cedo nas principais cidades do Brasil. Não se pode dizer que
a República tenha começado dando alguma prioridade a este problema. Basta ver
que a disseminação de vacinas só se iniciou efetivamente entre 1902-1903 e isso
graças ao avanço das epidemias, que ameaçavam exterminar a população, pondo em
risco as camadas mais aquinhoadas da sociedade. Pior ainda era a situação das
moléstias endêmicas, aquelas atingiam a especialmente as camadas pobres, pois
continuavam recebendo atenção inteiramente insatisfatória. (PALHANO, 1988, p.
152).
Esta “herança maldita” viria a se somar aos novos problemas ocasionados pelo
aumento populacional das cidades: as péssimas condições de moradia e de serviços públicos
de higiene (oferta de água própria para consumo e recolhimento de lixo e dejetos). Assim
poder público tinha que lidar com um problema estrutural relativo a organização da cidade,
bem como tratar os problemas de saúde já existentes e prevenir novos. Em outras palavras os
governantes deveriam ao mesmo tempo limpar, curar e vacinar a cidade.
O certo é que, só depois de superados os impasses fundamentais à consolidação do
novo regime, o que se deu por volta de 1902, principalmente a partir do governo
Rodrigues Alves (1902-1906), é que os crônicos problemas das condições de
salubridade urbana e da escassez de serviços públicos começaram a despertar o
interesse real do estado brasileiro. Até então, não era só a Capital do Maranhão que
estava pesteada; a Capital da República também o estava – o Brasil todo era um país
pestilento. (PALHANO, 1988, p. 152).
cidade de São Luís35 aproximadamente 0,4% da população da cidade enquanto Rio de Janeiro,
São Paulo, Salvador e Recife possuíam taxas de 1%, 0,6%, 0,02% e 0,4%36.
A capital do estado do Maranhão possuía índices próximos a de cidades com
maior população37. A defasagem nos serviços de prevenção e atendimento às vitimas fazia da
morte o fim quase certo daqueles que fossem acometidos de doenças graves por boa parte do
século XIX e início do século XX.
De acordo com um diagnóstico realizado pela Sociedade Philomática sobre as
condições sanitárias da cidade, naquele ano de 1847 em que formula, havia nos
quadros da municipalidade apenas “um médico para curar a pobreza”, mantendo-se
esse dado inalterado pelo menos até 1893, quando, sob pomposo nome de
Repartição de Higiene Pública, passaram a constar da folha de despesas do
município 1 inspetor, 1 ajudante e 1 secretário como sendo o efetivo da referida
repartição. Contudo, indicando uma indefinição ou absoluta falta de diretrizes para
uma política de saúde pública pela Lei n. 15 de junho de 1896, foi a referida
repartição extinta, ao mesmo tempo em que era criado o cargo de “médico da
municipalidade” Nesse ano, o manto largo e pesado da febre amarela se estendeu
sobre a cidade. Tratava-se de alguma surpresa? Sim e não, é o que considera Fran
Paxeco, tendo em vistas as condições de saúde, nada merecedoras de lisonja, que
apresentava a cidade, as quais se chocavam seus devaneios de capital civilizada.
Afinal, com maior ou menor intensidade, todos os anos presenciava-se a mesma
mortandade, conservando-se a pena e mudando somente o carrasco. Revezando-se
em sua sanha devastadora, numa feita era a vez da varíola; noutra, do beribéri, por
repetidas vezes a febre amarela se encarregava de o fazer, até que a peste bubônica
assumiu o posto. (CORREIA, 2006, p. 74-75).
Sem médicos e com medidas pouco eficazes no combate e prevenção das doenças
as “alternativas” à medicina oficial acabavam sendo a saída para a maioria da população que
não tinha acesso aos consultórios ou medicamentos legitimados pela ciência. A defasagem do
serviço era grande e cidades no Maranhão sofriam mais ainda pela completa falta de estrutura
para lidar com tais problemas como mostra a notícia abaixo:
Cartas vindas de Guimarães, uma das quaes nos foi facultada, informam como
irrompeu a variola naquella villa, para onde ja seguiu um enfermeiro, levando
medicamentos e lypha vaccinica conforme noticiamos.
Sabemos que o governo do Estado autorisou a colletoria a entregar a municipalidade
de Guimarães a quantia de quinhentos mil réis, para as despezas de tratamento dos
enfermos.
A carta que acima nos referimos narra que apparecera em Guimarães uma variolosa
ida aqui da capital, sendo removida para fóra do perimetro da villa e instalada numa
casa, que se improvisou de isolamento. Falecendo a doente, foi a casa queimada.
No logar Lago appareceu, posteriormente, outro caso procedendo-se de modo
identico ao primeiro. (PCT, 27 de julho de 1908).
35
Números registrados pelo Anuário Estatístico Brasileiro. Essa estatística oficial deve ter sido feita com base
nos registros do Serviço Sanitário levando em consideração pacientes internados ou que tiveram sua morte
comunicada às autoridades e não o número real de óbitos.
36
O Rio de Janeiro possuía uma população 16 vezes maior que a de São Luís, São Paulo 6 vezes, Salvador 5,8
vezes e Recife 3,4 vezes. (Anuário Estatístico Brasileiro – 1908-1912).
37
O ANEXO 4 apresenta uma tabela comparativa entre as cidades citadas e os números absolutos referentes ao
surto de varíola de 1908.
81
O tratamento médico para doenças ou a falta dele é uma das justificativas para a
pajelança ter conseguido se manter ao longo dos anos, mesmo com toda a perseguição e
legislação contra. Por ser uma prática que envolve tratamentos contra doenças e males em
geral conseguiu manter sua influência sobre aqueles que não tinham acesso à medicina legal
ou cujo tratamento tivesse sido ineficaz.
Assim a pajelança além de ser um sistema de crenças religiosas desenvolveu uma
característica terapêutica muito devido a demanda pela cura de doenças e principalmente
pelas falhas do aparato médico científico, que já sofria críticas à época. A cura pela magia ou
pela subscrição de medicamentos ou substâncias q.ue não fosse por um profissional habilitado
para tal, tornava a pajelança alvo direto da polícia e das fiscalizações do serviço sanitário da
cidade, mas também espaço de tratamento para quem a medicina alternativa era a principal
medida e daqueles que não tiveram seus problemas resolvidos pela ciência.
No entanto, esta notícia deixa claro que a medicina havia estagnado, perdendo
espaço para a pajelança que realizava as funções dos médicos, mas de forma ilegal. Essa
82
2ª Parte
84
No mesmo texto Fry identifica que outros elementos também foram assimilados,
mas com variação de grau, caso esse em que o autor inclui o samba e o candomblé (FRY,
1982, p. 47). No entanto, é a variação no grau de assimilação que denuncia os limites dessa
assimilação, reflexo não só da história longeva de perseguições e proibições às manifestações
religiosas afro-brasileiras como de uma problemática ainda não resolvida em nossa sociedade.
Somente muito recente é que os ideais de afirmação religiosa passaram a
substituir o discurso e a postura de “não aparecer” ou “não chamar atenção” que caracterizou
85
O europeu que aqui chegou também não era nenhum exemplo de retidão em
termos de sua moral religiosa. Vale lembrar, se não for demais, que a feitiçaria já era velha
conhecida (temida e creditada) dos europeus e que migrou junto com os colonizadores. Assim
antes de qualquer influência dos povos “bárbaros” o europeu já reconhecia a influência de
forças sobrenaturais e dela já fazia uso no seu cotidiano como informa o historiador português
Francisco Bethencourt ao analisar os processos inquisitoriais de Portugal do século XVI.
Os testemunhos que recolhemos dão-nos conta dos poderes atribuídos ao homo
magus e das técnicas por ele utilizadas. Em primeiro lugar, a comunicação com os
espíritos (almas, demônios, anjos e santos,), obtida por revelação – v.g. aparições,
sonhos e vozes incorpóreas – ou por ato de vontade, que implica o conhecimento de
técnicas específicas de invocação – v.g. conjuros, transes, fervedouros. A vidência,
virtude inata ou revelada, exercia-se geralmente sobre superfícies elementares, como
a água e a terra, prescindindo, em certos momentos, de qualquer suporte (o
conhecimento do passado, do presente, e do futuro podia ser alcançado através de
visões e sonhos). As capacidades taumatúrgicas raras vezes se assumiam
abertamente, permanecendo envolvidas pela manipulação formal de algumas
técnicas tradicionais de cura: bênçãos, unções, rezas, mezinhas, emplastros,
unguentos e lavatórios. A adivinhação, que obedecia em geral a um questionário de
lógica binária, processava-se através do lançamento de sortes (preferencialmente de
chumbo derretido na água) e da consulta às estrelas. O encantamento podia ser
obtido por conjuros proferidos na presença da vítima, fervedouros, feitiços,
amuletos, ou ainda pela manipulação de imagens representando a pessoa visada. O
embruxamento decorria do mau-olhado e do lançamento de feitiços.
(BETHENCOURT, 2004, p. 164).
38
Mesmo com toda problemática em torno da palavra “moreno”, como forma de classificação ou adjetivação, o
que o autor busca mostrar é que no processo de mestiçagem o catolicismo ganhou formas particulares de
expressão que se distanciam de um modelo ortodoxo e se aproximam muito de outras formas de crença.
39
O clero católico do Maranhão também possuía as suas falhas e não era exemplo de obediência à própria
religião que representavam. Em sua tese de doutorado, Pollyanna Mendonça trabalha os desvios dos clérigos no
século XVIII e identifica uma série de processos da justiça eclesiástica em que o bispo buscava moralizar a ação
de seus subordinados a partir da punição de crimes como concubinato, assassinato, envolvimento com jogos,
sodomia, negligência sacerdotal, ministrar sacramentos ilegalmente, agressão e brigas, uso excessivo de bebidas,
incesto, sacrilégio, simonia entre outros num total de “147 acusações contidas nos 96 processos crime contra
clérigos, 66 dizem respeito a casos que maculavam o bom exercício do sacerdócio e não eram condizentes com a
condição de clérigos.” (MUNIZ, 2011, p. 247-248)
88
afirmar que em certo sentido foi o catolicismo que resistia ao avanço da religiosidade popular
e mestiça. As regras religiosas de conduta social e as punições a quem não as seguia são
exemplos claros de que a dominação religiosa se deu à muito custo por parte da Igreja
Católica.
Se pensarmos que o catolicismo que aqui chegou já tinha os seus problemas e que
era circundado por outras atividades religiosas – que corriam paralelas à religião oficial –
inspiradoras da credulidade popular, a nossa mestiçagem em termos de crença é tão antiga
quanto a nossa história e que a influência das tradições religiosas africanas e indígenas veio
apenas a somar em um panorama heterodoxo em práticas, símbolos e ritos. A umbanda e a
pajelança são apenas dois exemplos de manifestações religiosas cujo sincretismo se evidencia
com maior clareza e que as referências a tradições distintas são mais fortes do que a afirmação
de apenas uma ou outra.
Falarei mais detidamente sobre a pajelança no último capítulo. Por hora faço a
ressalva de que se os africanos não encontraram ambiente propício para reproduzir a sua
religião tal e qual o seu lugar de origem, tiveram, ao menos um espaço propício para a sua
adaptação tendo em vista o complexo cenário social que aqui se desenvolveu ao longo do
tempo, causa das várias manifestações culturais observadas desde o período colonial.
É necessário retomar o argumento de Marshal Sahlins (2003) já trabalhado no
início desta dissertação. A ideia de que a cultura pode ser alterada ou influenciada pela
história, ou seja, pelos acontecimentos que não são controlados pelos indivíduos, faz muito
sentido para o que busco descrever aqui. Se entendermos que a organização das religiões afro-
brasileiras dependeu de aspectos que não necessariamente internos às mitologias e visões de
mundo das diversas etnias escravizadas torna-se mais fácil identificar como o panorama sócio
cultural do Brasil ao longo do tempo afetou a religião e porque não houve uma reprodução
dos cultos africanos aqui.
Roger Bastide também refletiu de forma semelhante sobre esta condição, mas
fazendo uso do referencial marxista de infra-estrutura e superestrutura. Para ele o “encontro
entre deuses africanos e espíritos indígenas” resultou na incorporação ritual das entidades dos
índios por parte dos descendentes de africanos por uma série de fatores.
As infra-estruturas também intervêm naturalmente, e primeiro as de ordem
demográfica. Nos lugares, como o Nordeste, onde há uma grande maioria de pessoas
de cor, mulatos e negros, no litoral, e uma maioria de camponeses mais ou menos
mestiços de índios na direção do interior, os dois tipos de culto tendem a coexistir
lado a lado sem se fundir, já que cada um deles se dirige a populações separadas.
Um pouco mais para cima no Maranhão, as misturas começam a aparecer: um culto
aos voduns puro (Casa das Minas), cultos africanos sincréticos, com voduns fons e
89
Em meio a esta zona de influência indígena existe uma ilha de resistência africana,
mais especificamente daomeana, a cidade de São Luís do Maranhão e em torno dela
uma zona de transição onde o catimbó e o Tambor de Mina abandonam-se às mais
estranhas uniões. (BASTIDE, 1971, p. 256).
40
O interesse pela pureza religiosa faz Bastide considerar os trabalhos de Oneyda Alvarenga a partir dos
resultados da Missão Folclórica de Mário de Andrade (1938) como passíveis de precaução, já que informam
sobre religiões que não eram africanas e sim degeneradas como o próprio autor informa em nota de rodapé
(1971, p. 257), já que, muito embora com influências, tais religiões não eram dahomeanas.
91
No entanto, não é somente o fim do século XIX que verá a organização das
religiões afro-brasileiras e sim todo esse período. A existência das religiões não pode ser
confundida com o aumento no número de referências históricas (seja documentos escritos ou
mesmo a memória oral que remete a um período ainda mais limitado), como informa João
José Reis.
Um problema é a escassez e a natureza das fontes. A clandestinidade a que as
práticas religiosas africanas foram empurradas e a própria natureza secreta de muitos
dos seus rituais reduziram sua visibilidade e, portanto, seu registro sob, digamos,
condições normais de existência. (REIS, 1988, p. 57).
Durante o século XIX o crescimento das cidades foi responsável pelas mudanças
nas relações sociais e culturais dos grupos de escravos e seus descendentes. A dinamização da
vida urbana representou maiores possibilidades de contato entre os indivíduos e a formação de
grupos ligados por laços étnico-culturais e sem dúvida facilitou a formação de comunidades
religiosas em torno de lideranças ou mesmo de terreiros já organizados, o que não era tão fácil
em outros espaços em que o tempo e o deslocamento dos escravos eram controlados mais de
perto41, como no caso das fazendas.
Essa mesma condição urbana e social que facilitou o agrupamento de indivíduos
em torno da religião deu maior visibilidade às manifestações culturais da população negro-
mestiça, que passaram a tomar parte nos jornais sob a forma de denúncia e recheadas das mais
diversas críticas. A publicização das religiões de matriz africana a partir da segunda metade
do século XIX não significa que é somente a partir desse período que se organizaram.
João José Reis em artigo de 1988 publica o artigo “Magia Jeje na Bahia: A
Invasão do Calundu do Pasto de Cachoeira, 1785” apresentando análise de uma
documentação sobre a invasão de uma casa em que se realizavam rituais religiosos.
No dia 16 de fevereiro, portanto, em pela estação de embarque do fumo, entre 11
horas e meia noite, os ventenários Manoel Ferreira Morais e Serafim dos Anjos
Pacheco faziam ronda com outros oficiais de justiça na rua do Pasto. Aparentemente
já haviam recebido denúncia de que ali, numa casa de morada de africanos, se
faziam cerimônias de calundu. Mas tudo era silêncio quando lá chegaram. Um dos
membros da ronda deixa escapar em seu depoimento que a porta da casa fora
arrombada, assim como as portas de três quartos [...]. (REIS, 1988, p. 67)
41
As posturas municipais tentavam sem muito sucesso restringir a mobilidade dos cativos, impondo limites às
atividades que não fossem relacionadas ao trabalho ou o atrapalhassem de alguma forma. Há uma noção de
regime de comportamento que tais normas buscavam construir e que destinava ao escravo um espaço reservado
ao trabalho, limitando outros tipos de atividades.
92
Já no final do século XVIII, muito tempo antes do marco estabelecido por Prandi,
é possível falar de grupos religiosos estabelecidos em torno de suas manifestações religiosas,
como informa o autor.
O documento aqui analisado é uma devassa, um inquérito policial, em que um grupo
de pessoas é acusado de práticas de batuque, feitiçaria e superstições. A data, 1785,
é sugestiva do ponto de vista da história da perseguição religiosa no Brasil colônia.
Mott sugere que já em meados do século XVIII a Igreja foi negligente na repressão a
um terreiro mineiro. Outros historiadores da Inquisição parecem concordar que o
último quartel do século XVIII viu um afrouxamento em relação às práticas da
religião popular. (REIS, 1988, p. 62).
Esse é apenas um caso de organização religiosa de matriz africana que pode ser
citada como exemplo. Laura de Mello e Souza (1986) trabalha com outros casos dessa
religiosidade popular em que a população negro-mestiça aparecia como acusados de
feitiçarias. Mariza de Carvalho Soares (2000) identifica uma série de grupos étnicos que
buscavam reproduzir a partir de suas festividades elementos das relações sociais do continente
africano, em tais grupos e suas festivas poderiam estar contidas manifestações ou ideias
religiosas imbricadas na devoção católica42, como fala Nicolau Parés.
[...] com muita frequência, as irmandades encobriam práticas que não se ajustavam
aos cânones e regras da teologia católica: os calundus. As redes socais dos negros
que se articulavam nas irmandades católicas eram provavelmente as mesmas que
podiam garantir a organização de batuques e outras práticas religiosas que aos olhos
dos africanos possuíam tanta eficácia – e para alguns até mais – quanto a devoção
aos santos católicos. A dupla participação de muitos africanos e crioulos nos desfiles
e procissões das irmandades e nos calundus ou danças “supersticiosas” não era
vivida, como já foi dito, como uma contradição, mas como uma justaposição
benéfica de recursos conceituais para lidar com a adversidade do cotidiano. O
sincretismo afro-católico do Candomblé contemporâneo encontra as suas raízes
nessa duplicidade de práticas surgidas ainda no século XVII e que se desenvolveram
principalmente no século XVIII. (PARÉS, 2007, p. 111).
42
As obras O Diabo e a Terra de Santa Cruz e Devotos da Cor respectivamente de Laura de Mello e Souza e
Mariza Carvalho Soares representam ideias seminais para quem deseja compreender de maneira mais profunda
esse complexo cenário cultural das crenças e práticas religiosas populares não só no período colonial, visto que
algumas considerações podem ser estendidas para outros períodos.
93
XIX para criminalizar as manifestações culturais dos negros43 e que não permite a
diferenciação entre uma manifestação lúdica e uma de caráter religioso.
A dificuldade em se identificar as religiões de matriz africana também não deve
ser tomada como fator de sua inexistência. Dentro do batuque poderiam estar incluído o
Tambor de Mina, a Pajelança, o Candomblé e outros rituais religiosos. As fontes nem sempre
são claras ao se tratar dessas manifestações, assim muitos registros de festas e divertimentos
encontrados em documentos podem ser a respeito de rituais religiosos que dificilmente serão
identificados.
A partir da citação de Nicolau Parés fica claro que desde o século XVII africanos
praticavam a sua religião, por meio do sincretismo com a religião católica, algo que
Reginaldo Prandi já havia alertado acima. As comunidades de terreiros, tal como conhecemos
hoje, talvez não tenham tido lugar na sociedade colonial no mesmo grau que tiveram durante
o período do Império.
As formas rituais das religiões afro-brasileiras mudaram ao longo do tempo
assumindo aos poucos o formato que encontramos hoje, esse sim, já se fazia presente nas
cidades no final do século XIX. Se quisermos identificar a religiosidade afro-brasileira nos
séculos anteriores deveremos estar atento a essas manifestações de caráter lúdico e aos grupos
que não são identificados imediatamente como praticantes de “feitiçarias e superstições”
como as confrarias e irmandades. Foi a partir desse imbricado processo que Nicolau Parés
chama de “acumulação de recursos espirituais diferenciados” (2007, p. 111) que se deu a
organização das comunidades de terreiros.
Não é possível afirmar que os terreiros se formaram apenas no fim do século XIX.
No entanto não podemos também afirmar que os terreiros no formato atual existiam desde o
período colonial. Da mesma forma como devemos atentar para os processos de mudança nas
religiões é necessário observar a sua variedade em termos de rituais, símbolos e crenças.
Trabalhando com as especificidades tonasse possível dirimir falhas interpretativas de certas
análises que, ao generalizar, perdem a sua capacidade de abordar o problema de maneira mais
completa.
O desenvolvimento das religiões afro-brasileiras não obedeceu a uma única
lógica. Devido às diversas razões aqui expostas podemos descrever o processo, de forma
resumida, a partir da citação de Carlos Eduardo Moreira.
43
O artigo 36 do Código de Posturas de 1842 pretendia assegurar que os batuques fossem combatidos,
proibindo-os nas ruas da cidade e em horário de silêncio, Já nas posturas de 1866 os batuques estavam
“liberados” para que se realizassem em locais autorizados previamente pela polícia (Artigo 124 – Código de
Posturas de 1866).
94
No mapa acima é possível ver como o traçado das ruas muda ao se comparar a
área 1 correspondente ao antigo traçado colonial e as áreas 2 e 3, subúrbios de formação
distinta da organização pretendida pelos projetos urbanísticos. Muito embora o mapa seja
atual verifica-se como esse traçado não retilíneo foi mantido e como há uma diferença entre a
configuração de áreas. As duas cidades não levam em consideração somente o traçado urbano,
mas como as diferenças sociais tinham relação com a constituição do espaço urbano.
Nos capítulos seguintes irei tratar do Tambor de Mina e da Pajelança como
manifestações religiosas de matriz africana cuja existência também está ligada aos processos
acima relatados. Ainda que em um recorte temporal limitado (virada do século XIX para o
século XX) o olhar sobre essas religiões não está desligado de todo o contexto histórico do
qual fizeram e ainda fazem parte.
Lançarei mão de categorias de análise das ciências sociais e de etnografias sobre
religiões afro-brasileiras como forma de compreender melhor a estrutura dessas religiões no
passado, conhecimento esse que ainda incipiente causa dúvidas e mantém lacunas no meio
acadêmico. Inspirado em Burke proponho certas relações entre momentos históricos distintos
com a finalidade de entender a religião em si, fugindo da narrativa das práticas repressivas,
ponto central de muitos trabalhos.
Para entender qualquer item cultural precisamos situá-lo no contexto, o que inclui
seu contexto físico ou cenário social, público ou privado, dentro ou fora de casa,
pois esse espaço físico ajuda a estruturar os eventos que nele ocorrem. Na medida
em que a cultura popular era transmitida em casa, dentro do lar, ela praticamente
escapa ao historiador interessado nesse período. Apenas projetando
retrospectivamente as descrições das “ocasiões de conto” apresentadas pelos
folcloristas modernos e justapondo-as a alguns relatos de ficção sobre os século XVI
e XVII é que poderemos imaginar o cenário das narrativas tradicionais: o contador
de estórias em sua cadeira – se havia alguma – ao pé do fogo numa noite e inverno,
ou grupo de mulheres reunidas numa casa para fiar e contar estórias enquanto
trabalhavam. (BURKE, 2010, p. 153).
É com base nesse contexto social, cultural e urbano que pretendo analisar as
religiões afro-maranhenses, sempre que possível apresentando o maior número de detalhes
possíveis sobre essas manifestações religiosas e, quando não for possível, buscar outras
formas de compreender os silêncios e as lacunas que a documentação deixa. Seja por meio da
memória oral, de comparações ou de conjecturas a partir de pequenas pistas deixadas pelos
registros históricos como ressalta Ginzburg.
Por milênios o homem foi caçador. Durante inúmeras perseguições, ele aprendeu a
reconstruir as formas e movimentos das presas invisíveis pelas pegadas na lama,
ramos quebrados, bolotas de esterco, tufos de pelos, plumas emaranhadas, odores
estagnados. Aprendeu a farejar, registrar, interpretar e classificar pistas
infinitesimais como fios de barba. Aprendeu a fazer operações mentais complexas
com rapidez fulminante, no interior de um denso bosque ou numa clareira cheia de
ciladas.
96
Os Pedidos de Licença para Festas (PLF) eram documentos com estrutura simples
e fixa. O requerente (aquele que pedia; usualmente também chamado de suplicante ou
peticionário) apresentava-se, indicando o seu endereço e o objetivo do seu pedido de licença
(a festa em si) dando detalhes do que ocorreria e em alguns casos justificando o seu pedido.
No fim do documento quase sempre o requerente dava garantias de que manteria a ordem e os
bons costumes encerrando com a assinatura de seu nome ou com a assinatura de uma pessoa a
rogo.
Abaixo segue transcrição de dois pedidos, para efeito de exemplificação:
TRANSCRIÇÃO 1 44:
Indeferido. Secretaria de
Policia do Maranhão. 4 de julho de 1889.
44
A sigla ERMce no documento é a abreviatura de Espera Receber Mercê, suplica de quem espera um benefício
por parte de uma autoridade do Império. Com a República esse tratamento foi substituído pelo Pede Deferimento
(ou simplesmente P.D) ou E. Justiça, forma reduzida de Espera Justiça, mas em datas posteriores e próximas à
proclamação da República ainda é possível observar alguns documentos com esse tratamento. Da mesma forma
o Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Doutor Chefe de Polícia também foi substituído, em alguns casos por
Cidadão Chefe de Polícia ou Cidadão Doutor Chefe de Polícia.
97
Nestes Termos
ERMce
TRANSCRIÇÃO 2:
Pouquíssimos pedidos apresentam variações das formas acima que deviam seguir
algum modelo estabelecido à época. Alguns requerentes davam maiores informações sobre o
objeto de licença e outros não (como nos dois pedidos acima), na tentativa de justificar ou
convencer a autoridade policial a atender o seu pedido. Outros se resumiam às informações
básicas como as já descritas acima. O anexo 05 apresenta dois PLF digitalizados, para
exemplificação.
De qualquer forma não era necessariamente o conteúdo do documento que
garantia a licença. Muitos elementos estavam em jogo para que os pedidos fossem aceitos ou
não. A idiossincrasia do Chefe de Polícia pode ser destacada como um dos maiores entraves
às licenças. Um mesmo chefe de polícia poderia apresentar posturas diferentes.
Em 16 de agosto de 1889 Domingos Gustavo da Silva Maya solicitou licença para
fazer umas "brincadeiras dançantes" em sua casa, pedido este que foi aceito pelo chefe de
polícia Francisco da Cunha Machado. No dia 9 de novembro do mesmo ano o requerente
98
Marcelino de Jesus Pereira da Silva pediu licença para realizar o mesmo tipo de festa em sua
casa ao que obteve resposta negativa do mesmo chefe de polícia.
A mudança entre chefes de polícia poderia representar a mudança de postura em
relação aos pedidos de licença. No ano de 1890 o requerente Domingos Gustavo da Silva
Maya, já apresentado acima, teve duas licenças negadas, uma em 24 de janeiro de 1890 e
outra em 7 de fevereiro do mesmo ano pelo Chefe de Polícia Muniz Varella, que teve como
característica indeferir todos os pedidos que passaram pela sua mão.
Não é possível relacionar nenhuma causa externa às diferentes posturas dos
Chefes de Polícia, que possa justificar porque certos pedidos eram deferidos por uns e por
outros não ou porque pedidos semelhantes recebiam respostas distintas. O que fica claro a
partir da documentação é que o responsável pela Chefatura de Polícia tinha grandes poderes
de deliberar sobre tal assunto e a sua ação estava condicionada prioritariamente por sua
opinião. No mesmo ano em que Muniz Varella nega licenças para bailes, outro chefe de
polícia liberava o mesmo tipo de divertimento.
Para melhor compreender e classificar os PLF foi preciso elaborar uma tipologia
das fontes, em que se classificou os documentos em grandes grupos, a saber:
a) Brincadeiras;
b) Bailes;
c) Tambor de Mina;
d) Festa do Divino;
e) Bumba Meu Boi;
f) Tambor;
Essa classificação leva em consideração todos os mais de 500 pedidos
digitalizados de onde se extraiu os dados para esta dissertação. Os PLF não trabalhados
diretamente que estão no arquivo sem dúvidas, passam da casa dos mil documentos somente
no período entre 1889 e 191045. Não estão incluídas aí as licenças que envolvem
apresentações teatrais, circenses e de viagens para fora do estado.
A categoria brincadeiras é utilizada para os pedidos que assim se caracterizam e
geralmente envolvem manifestações respectivas ao período carnavalesco (mas não
exclusivamente) nas quais grupos saiam pelas ruas em períodos festivos. Brincadeira é uma
categoria ampla, que pode aparecer relacionada com manifestações que fazem parte de outras
categorias listadas acima.
45
A série documental corresponde ao período de 1873 a 1933.
99
Não há registro de cópias das portarias passadas aos requerentes. Nos documentos
é possível observar apenas a informação respectiva ao registro em algum livro da chefatura de
polícia em que eram listadas entrada de documentos ou expedição de portarias. Localizei
apenas algumas licenças expedidas para uma requerente da Casa de Nagô, que anexou em três
de seus pedidos portarias anteriores concedidas pela chefatura. Essa era uma forma de mostrar
ao Chefe de Polícia que seus pedidos já haviam obtido autorizações anteriores e que estas não
101
haviam sido cassadas pela polícia, indicando que suas festas mereciam novas licenças pois
mantinham-se dentro do que determinava a polícia.
Embora uma licença fosse concedida pela Chefatura de Polícia, não significava
que o objeto da solicitação seria atendido em sua totalidade, em alguns despachos é possível
observar as limitações impostas pela autoridade policial. Mesmo naqueles em que há uma
liberação não é possível precisar se a licença atendia a tudo que estava sendo solicitado pelo
requerente. A emissão da portaria era apenas o início de uma cadeia de etapas e de possíveis
interdições pelo qual o documento e o requerente deveriam e/ou poderiam passar.
A portaria era emitida por um escrivão que já conhecia as limitações que deveriam
ser impostas a cada tipo de pedido. Os próprios chefes de polícia às vezes escreviam nos
documentos: “passe-se a licença em conformidade com os meus despachos anteriores”, sem
que fosse necessário explicitar em todos os pedidos as suas determinações. Essa lógica de
funcionamento interno da instituição, que não é totalmente desconhecida, deixa claro que
havia uma espécie de senso generalizado nas liberações e proibições das licenças que davam
entrada na chefatura, sem que o chefe de polícia fosse obrigado a emitir um parecer completo
em cada documento.
Depois de emitidas, as licenças deveriam ser apresentadas aos subdelegados,
autoridades policiais dos distritos. Era a função deles passar o visto na portaria como forma de
se mostrarem cientes do que ocorreria em termos de festa nos distritos sob sua
responsabilidade, bem como preparar diligências para verificar se estavam ocorrendo em
observância às determinações da chefatura.
A aprovação por parte da polícia se fazia também por meio do pagamento do
tributo municipal. Logo nos primeiros documentos do ano de 1889 podem ser observados
comprovantes de pagamento dos emolumentos municipais46. Depois de determinado período
o recolhimento do imposto passou a ser feito através do pagamento do selo que deveria ser
colado no documento.
46
Não é possível definir se essa forma de recolhimento de taxas diz respeito ainda a uma lógica de tributação do
tempo Imperial. Os poucos registros de pagamento não permitem identificar como funcionava esse sistema e os
valores envolvidos.
102
O imposto do selo cobrado para tais licenças variava conforme o período, sendo
cobrado, via de regra, entre 200 e 300 réis no fim do século XIX e cerca de 600 réis no século
XX. Havia ainda a taxa de expediente no valor de 1 réis coletado pela expedição da portaria
(ver imagem 07, p. 98). A variação nestas cifras correspondia muito mais a problemas de falta
de selos do que devido a valores cobrados especificamente para cada tipo de festa que pedia
licença.
É a partir desta documentação que discorrerei acerca de alguns elementos em
torno do Tambor de Mina na cidade de São Luís do Maranhão na virada do século XIX para o
XX, visto ser esta um dos poucos registros que se tem acerca dessa religião. As referências
dos jornais são bem menores e quase inexistentes, sendo muito mais destacada a presença dos
pajés na cidade e que será trabalhada posteriormente.
103
4. TAMBOR DE MINA.
A Casa das Minas e a Casa de Nagô são os terreiros mais antigos da capital, em
minhas pesquisas até o momento não consegui relacionar outros ambientes religiosos de
matriz africana, cuja origem seja semelhante às citadas acima. Ambas teriam sido fundadas
em meados do século XIX e com pouca diferença de tempo entre uma e outra, conforme
memória oral coletada por pesquisadores. (BARRETTO, 1977; SANTOS E SANTOS NETO,
1989; SANTOS, 2001).
A Casa das Minas não possui uma data precisa de fundação, como boa parte dos
terreiros antigos em que não há registro ou a memória oral apresenta divergências. Segundo
Sergio Ferretti.
A época da fundação da Casa perdeu-se na memória dos seus participantes. Deve ter
sido fundada antes da metade do século XIX. O documento escrito mais antigo que
se tem notícia seria uma escritura do prédio de esquina datada de 1847, em nome de
Maria Jesuína e suas companheiras. (FERRETTI, S., 2009, p. 54)
Outra documentação sobre a casa me foi passada pelo professor Sergio Ferretti.
Destes documentos o mais antigo é de 20 de novembro de 1878 e se trata da uma doação de
uma casa e terreno pertencente a Hosana Maria da Conceição Ferreira para as “pretas fôrras
de nação mina” Joanna Rita Lopes, Joaquina Rosa de Queiroz e Cordolina Rosa Veloso.
106
Entre os relatos de fundação, a informação de que a casa teria sido fundada por
escravos que entraram no Brasil como contrabando foi passada por Mãe Andressa a Nunes
Pereira e dá pistas do período de fundação. Tendo sido abolido pela primeira vez em 1831, o
comércio de escravos permaneceu de forma ilegal e quase sem alterações visto que em 1850 a
Lei Eusébio de Queirós tinha como objetivo encerrar definitivamente o tráfico, objetivo não
alcançado após 1831.
De qualquer forma levas de escravos continuavam a ser transportados e
introduzidos no Brasil como contrabando. Como a escritura de compra relatada por Sergio
Ferretti data de 1847 é bem provável que os fundadores da casa tenham chegado após 1831,
dessa forma se confiarmos no relato de Mãe Andressa o período de fundação da casa fica
restrito a 16 anos.
Mas há outros relatos. Segundo a memória oral coletada por Sergio Ferretti o atual
prédio teria sido o segundo local de funcionamento do terreiro.
As filhas atuais dizem que esta é uma segunda casa, pois uma anterior funcionou à
Rua de Sant’Ana, num terreno baixo entre a Rua da Cruz e a Godofredo Viana. Mãe
Andressa, quando ia assistir a missa na Igreja do Carmo, passando por ali, mostrava
diversas vezes à Dona Deni o lugar onde as mais velhas diziam que funcionara antes
a primeira Casa. Não se sabe por quanto tempo a Casa funcionou ali. Tiveram que
107
mudar, pois a cidade estava crescendo e, naquele tempo, ainda havia muitos sítios e
47
terrenos vazios na Rua de São Pantaleão. (FERRETTI, S., 2009, p. 54)
No artigo “Uma rainha africana mãe de santo em São Luís” Verger comenta que
coletou em São Luís, junto a Mãe Andressa, nomes de Voduns cultuados na Casa das Minas
para buscar informações sobre os mesmos no continente africano, tendo as encontrado em
Abomé, cidade do atual Benim, de onde destaca um detalhe citado abaixo.
Assim podemos perceber que nenhum dos voduns citados é posterior ao reinado de
Agonglo. Acontece, também, que alguns destes nomes são conhecidos apenas pelos
sacerdotes de Abomé. O fato de eu ter encontrado estes nomes no Brasil significou
para eles a prova de que existiam, no Novo Mundo, descendentes de membros da
família real, mandados fora do Daomé no tempo do tráfico dos escravos. (VERGER,
1990, p. 151)
Segundo Pierre Verger este fato está relacionado com a sucessão do trono no
antigo Reino do Dahomey. Adandozan, filho e sucessor de Agonglo, governou entre os anos
de 1797 – 1818 e nesse período vendeu a rainha Nã Agotimé e parte da família da qual não
fazia parte por ter sido filho do rei com outra mulher.
Adandozan ficou como regente vinte e dois anos e Guezo teve que lhe arrancar o
poder. Expulsou-o do trono pois suas atrocidade e suas injustiças tinham enfastiado
os daomeanos. Adandozan, que era filho de outra mulher de Agonglo, não tinha
hesitado em vender aos mercadores de escravos da costa a mãe de Guezo e uma
parte de sua família. (VERGER, 1990, p. 153)
47
Se de fato funcionou anteriormente ao local atual, a Casa deve ter migrado entre os anos de 1831 e 1847.
108
aos voduns da família real. Para serem considerados contrabandos os fundadores da Casa das
Minas teriam entrado no Brasil ou mais especificamente em São Luís após 1851. A logística
do comércio de escravos não permite afirmar que a fundação teria ocorrido após a venda de e
transporte da rainha africana Nã Agontimé.
Segundo PRIORE e VENÂNCIO (2004, p. 42) os navios passavam de porto em
porto na costa da África buscando escravos, esse processo poderia demorar de três a sete
meses, até que o navio fosse completamente carregado (tanto de escravos como de provisões).
A esse período soma-se a viagem que poderia demorar até dois meses. Os escravos poderiam
ainda passar um período nos fortes a espera de um navio para ser vendidos.
Em uma estimativa dilatada entre a captura e a chegada ao Brasil poderia demorar
cerca de um ano, ou um pouco mais dependendo se o destino fosse a área do caribe, de
qualquer modo seria impossível que Nã Agotimé tivesse chegado direto da África após a lei
que proibia o comércio de escravos. Mas duas hipóteses podem ser levantadas para ligar o
período anterior a 1818 ao posterior a 1831.
Considerando que a rainha tenha sido vendida mais de uma vez e tenha migrado
entre territórios na América até se instalar no Maranhão, o hiato no período é preenchido por
esse processo. A segunda possibilidade é que a fundação da casa tenha se dado apenas após a
formação de um grupo que possibilitou a organização religiosa o que poderia ter acontecido
somente após 1831 com a chegada de outros escravos vindos do Dahomey e que se agruparam
em torno da rainha.
Outra interpretação relaciona-se com a possibilidade de que a atual Casa das
Minas seria o segundo ou terceiro local em que o grupo teria instalado seu culto, como aponta
Sergio Ferretti (2009)48. Essa hipótese implicaria em uma “importação” direta da rainha para
São Luís, sem passar por outros lugares.
48
Sergio Ferretti (2009, p. 56-57) apresenta algumas versões dessa mudança do grupo jeje pela cidade de São
Luís, em que a atual casa aparece como um segundo ou mesmo terceiro local de culto, como no caso das
informações do escritor Waldemiro Reis, citadas pelo antropólogo.
109
Agotimé e quase nada dizem sobre Maria Jesuína, pois as mais velhas não
conversam sobre a fundadora, cujo nome é um dos segredos perdidos da casa.
Nossas tentativas para obter informações sobre a fundação da Casa das Minas foram
inúteis. Dona Amélia, nascida em 1903, diz que conheceu várias das velhas
africanas. Elas tinham o rosto “lanhado” com marcas tribais. [...] Dona Deni, que
frequenta a Casa desde 1936, diz que ainda conheceu velhas africanas que falavam
mal o português, como Mãe Preta. E que as primeiras velhas deviam já ter vindo da
África preparadas como filhas-de-santo (FERRETTI, S., 2009, p. 55)
Se Nã Agotimé fosse a mesma Maria Jesuína teria cerca de 100 anos ou mais por
volta da década de 1870, período este em que Mãe Andressa procurou a Casa das Minas para
se tratar e onde teria recebido o seu vodum quando tinha entre 08 e 15 anos. Essas narrativas,
embora incertas, fazem parte dos mistérios e segredos da fundação da Casa e não podem ser
desconsideradas, visto o poder de organizar e dar sentido a realidade vivida pelos indivíduos
cotidianamente.
Segundo Mircea Eliade o mito é um documento vivo, que atua na realidade de
uma determinada sociedade e:
[...] fornece os modelos para a conduta humana, conferindo, por isso mesmo,
significação e valor a existência. Compreender a estrutura e a função dos mitos nas
sociedades tradicionais não significa apenas elucidar uma etapa na história do
pensamento humano, mas também compreender melhor uma categoria dos nossos
contemporâneos. (ELIADE, 2000, p. 8)
primeira, conforme memória oral – o modelo ritual seguido pelos terreiros de mina da capital,
fundados por vodunsis que passaram por esta casa. (FERRETTI, M., 2008; 2008a).
Josephina ou Josepha de Oliveira como aparece em documentos seria uma das
primeiras mães da Casa de Nagô, localizada à Rua da Madre Deus como consta na
documentação de polícia49.
A primeira Mãe da Casa de Nagô foi Josefa, que era conhecida por Zefa de Nagô,
africana provavelmente de Angola. Contam que ela tinha sinais tribais, segundo
informação passada por sua sucessora. Abriu o terreiro juntamente com sua irmã,
sendo ajudada por Maria Jesuína, da Casa de Jeje (chefe) (SANTOS e SANTOS
NETO, 1989, p.52)
A Casa de Nagô teria sido fundada com ajuda da Casa das Minas que já era mais
velha cinco ou seis anos. (FERRETTI, M., 2011). No entanto, essa narrativa não especifica se
a fundação da Casa de Nagô acompanhou a Casa das Minas no endereço que está atualmente
ou em um dos locais que teria funcionando antes de 1847. Baseando-se na fundação constante
na data da escritura da informada por Sergio Ferretti, a Casa de Nagô teria, então, sido
fundada já na segunda metade do século XIX.
Com base nos dados de Maria do Rosário Santos (1989) a tabela a seguir
apresenta a sucessão de chefes da Casa de Nagô.
Quadro 4 Chefes da Casa de Nagô (Santos e Santos Neto, 1989)
49
Atualmente Rua Cândido Ribeiro, localizada no Bairro da Madre Deus, área central da cidade.
50
À época da escrita do livro Maria Lucia ainda era viva, a data de sua morte foi atualizada com base em
Mundicarmo Ferretti (2011, p. 100).
112
51
Josephina era a grafia mais recorrente nos documentos referidos, mas é possível encontrar Josepha, Sequins ou
Seguins.
52
Não há documentação arquivada entre os anos de 1901 e 1904.
53
Emanuela Ribeiro (1998) localizou no ano de 1912 o nome de Agostinha Silveira da Conceição, solicitando
licença para a polícia.
54
O termo malunga diz respeito a escravos transportados em um mesmo navio, tornando-se assim companheiros
ou irmãos a bordo dos barcos. Essa sociabilidade poderia estar relacionada com a proximidade e origem étnica
113
dote” (1977 p. 112-113) indicando que não foi apenas uma pessoa responsável pelo
assentamento da Casa.
Essa ideia é retomada por Mundicarmo Ferretti (2001, p. 96) ao afirmar que a
fundação teria sido realizada por Josefa e Maria Joana. A partir de informações da mesma
mãe de santo, acima citada, a primeira recebia Xangô e a segunda, Rei Badé.
É possível que algumas das fundadoras ou “vodunsis” mais antigas da Casa fosse de
Abeokutá (Nigéria), pois o pesquisador Nina Rodrigues encontrou em 1896, em São
Luís, residindo nas proximidades de São Pantaleão, onde está localizada a Casa de
Nagô, uma africana nagô de Abeokutá. (FERRETTI, M. 2011, p. 96).
A antropóloga afirma ainda que a relação da Casa com Angola teria sido sugerida
por Maria do Rosário Santos, Nunes Pereira e Pai Jorge Itacy. (FERRETTI, M. 2001, p. 96).
De qualquer modo, os dados apresentados pelos pesquisadores a partir de entrevistas e
informações obtidas na Casa indicam sempre para Josefa como a fundadora, mas não a única
responsável por esse processo, que teria sido participado por outras africanas.
Em nota de rodapé Mundicarmo Ferretti faz uma importante observação sobre as
datas e nome trabalhados por Maria do Rosário e que podem ajudar a pensar a questão da
fundação.
Existe divergência em Boboromina (SANTOS; SANTOS NETO, 1889, p. 50 e 52) e
em Caminho das Matriarcas (SANTOS, 2001, p. 26 e 87) tanto em relação às
entidades recebidas pelas fundadoras da Casa de Nagô quanto a respeito do
sobrenome de Maria Joana, que ora aparece como Travassos, ora como Bem Fica,
sobrenome às vezes atribuídos a Joaninha, outra Joana que chefiou a Casa mais
tarde. (FERRETTI, M. 2011, p. 96).
Com base nos registros de polícia trabalhados não há nenhuma referencia à Joana
Travasso que, a partir das observações de Mundicarmo Ferretti, pode ser a mesma Joana Bem
Fica. Mãe Dudu afirma que sua mãe-de-santo chamava-se Joaninha (SANTOS e SANTOS
NETO, 1988; SANTOS, 2001) e segundo informações de Maria Amália Barretto (1977, p.
114) Mãe Dudu, que na época contava com 84 anos, afirmava que tinha sido “feita” há 60
anos, por vota de 1917, quando Maria Joana do Bem Fica (segundo a tabela acima
apresentada) era a chefe da Casa de Nagô.
Como a memória da Casa foi se perdendo ao longo dos anos não é raro haver
informações desencontradas. Com base na documentação pesquisada apresentarei algumas
hipóteses cruzando os registros históricos com algumas informações da memória oral, sem
necessariamente apresentar uma versão definitiva, visto que há muitas incertezas nos relatos
além da descontinuidade da documentação no recorte temporal estudado.
dos escravos transportados, assim, as fundadoras da Casa de Nagô poderiam ter sido escravizadas na mesma
região, sendo também responsáveis pelos ofícios religiosos em África, já que vieram com os seus dotes.
114
Se admitirmos que a fundação da Casa teve relação com o fato das “africanas
malungas” terem sido um grupo de sacerdotisas que foram comercializadas juntas há a
possibilidade de fato semelhante ocorrido na Casa de Nagô. Justifica-se o fato de apenas o
nome de Josephina aparecer solicitando licenças à polícia. Ao passo que Joana Travasso e
Agostinha fariam parte dessa administração conjunta, mas responsáveis por outras funções.
Do mesmo modo o período indicado por Maria do Rosário não corresponde ao
período encontrado na documentação. Segundo os PLF Josephina ainda estava a frente da
Casa até 1902, quando seu nome aparece pela última vez na documentação. Sendo a chefe e
fundadora da casa dificilmente o cargo seria passado para a sua sucessora sem que fosse
devido ao seu falecimento.
A existência de outros nomes apresentados como chefes da Casa não significa que
tenham se sucedido linearmente como as datas da tabela sugerem. Outros fatores, como o
falecimento de ambas, podem ter feito com que Joana Travassos e Agostinha não chegassem a
estar a frente da Casa, respondendo pela documentação enviada à Chefatura de Polícia.
Se a tabela elaborada por Maria do Rosário contém informações minimamente
precisas acerca dos nomes, mas não das datas, como já foi possível observar, Joana Travassos
e Agostinha por alguma razão não chegaram a responder legalmente pela Casa, fator este que
justifica uma sucessão da chefia para Maria Joana do Bem Fica – que seria a Joaninha, mãe de
santo de Mãe Dudu, já que não há nenhuma referência específica a esse nome (Joaninha) na
tabela ou em outros autores – e que teria assumido a chefia provavelmente entre 1902 e 1906,
sendo este último o momento em que seu nome começa a aparecer na documentação.
Segundo CARDOSO JÚNIOR (2001, p. 27-28), Mãe Dudu informou a Olavo
Correia Lima que a ordem de chefias da Casa foi a seguinte: Josefa, Joana, Brígida, Honorina,
Cristina e Dudu. Essa ordem está em concordância com a documentação, mas não traz
informações ou mesmo pistas para se pensar porque aparentemente a casa ficou fechada
durante determinado período no início do século XX.
115
O relato acima inverte a versão corrente na Casa de Nagô de que esta teria sido
fundada após a Casa das Minas e com ajuda de sua chefe, Maria Jesuína, além de apresentar
datas que são incompatíveis com outros dados vindos da própria memória de que os
fundadores eram escravos contrabandeados e de outras pesquisas já realizadas. Essa narrativa
relaciona-se com uma tendência ao “envelhecimento dos terreiros”, partilhada pelos autores a
partir dos relatos das pessoas do terreiro. Buscando datas de fundação para legitimar uma
longevidade do Tambor de Mina no Brasil.
Talvez outras pesquisas sobre a escravidão possam fornecer dados preciosos na
tentativa de se compreender os sujeitos históricos que se fizeram presentes na organização das
religiões afro-maranhenses. Esta pesquisa, porém não poderá avançar além daquilo que já foi
informado até o momento em termos de datas e eventos, visto que as informações obtidas por
meio das pesquisas nos PLF são muito resumidas, podendo gerar inúmeras hipóteses ou
complementar as informações já conhecidas ou registradas por pesquisadores.
Nos pedidos de licença para festa o termo mina em referência a Tambor ou Dança
de Minas só vai aparecer com maior frequência em 1895. Não é possível saber de registros em
datas anteriores, pois o período entre 1891 e 1894 não possui documentos arquivados como já
117
informado anteriormente. Emanuela Ribeiro (1998) informa também ter localizado apenas um
pedido referente à Casa das Minas em 188555.
A categoria brincadeira é utilizada amplamente, quase sempre no sentido de
diversão e festa e está presente em boa parte dos documentos. É acompanhada desta noção
que os pedidos de licença para tambor de mina aparecem. Sergio Ferretti informa que as
obrigações religiosas da Casa das Minas e de alguns terreiros são caracterizadas como
brincadeiras.
Um tocador de outra casa nos disse que tocar tambor é uma obrigação para ele, mas
também é uma brincadeira. As festas de terreiro são, pois, uma obrigação realizada
por devoção e promessa, ao mesmo tempo que uma brincadeira em compensação ao
seu caráter penoso de obrigação. (FERRETTI, S., 2009, p. 140).
55
Como informado em nota de rodapé na página 44, foram encontrados alguns problemas no relatório de
Emanuela Ribeiro, assim não posso afirmar que somente a partir de 1885 é que o registro do Tambor de Mina
começa a aparecer na documentação.
118
aparecem a partir da festa como elemento central que permite as relações entre ambas, sem
que signifique oposições.
Sagrado Obrigação
FESTA
Profano Brincadeira
A Casa de Nagô pediu entre os anos de 1895 e 1907 dezenove licenças, entre os
terreiros este foi o maior número de pedidos, inclusive em relação à Casa das Minas. Desse
total apenas quatro foram pedidas em nome de Maria Joana e o restante em nome de
Josephina Seguins de Oliveria. Todos os documentos foram passados a rogo já que as
requerentes não sabiam ler e/ou escrever e das assinaturas destacam-se os nomes de Sabino
Saraiva e Antonio Carlos de Araújo Franco por terem assinado vários deles, podendo ser
pessoas pagas para fazer o documento ou mesmo amigas da casa que se disponibilizavam a
fazer esta tarefa que se tornava importante para a realização da festa.
120
56
Ritual dedicado à entidades femininas da Casa, chamadas de meninas ou princesas. No carnaval há a
preparação de comidas e bebidas especiais que são consumidas na quarta feira de cinzas (CARDOSO JÚNIOR,
2001, p. 116).
121
foram realizados rituais em homenagem das entidades centrais do terreiro sendo que em
outros anos apenas estas festas foram realizadas.
É muito improvável que as datas dos rituais tenham mudado com o passar do
tempo. A proximidade entre os dias de festa localizados nos PLF e os registrados pelos
pesquisadores são indícios de que estava sendo efetuado um deslocamento para momentos em
que era possível realizá-las, mesmo que isso significasse mudanças nas datas, em termos de
dias ou meses.
Os autores fazem também o registro da Festa do Divino Espírito Santo que é uma
das poucas festas realizadas na atualidade, no entanto não foi localizado nenhum registro nos
pedidos de licença oriundos da Casa de Nagô. Segundo Sebastião Cardoso Júnior (2001, p.
119), não havia Festa do Divino no calendário Nagô e que só foi iniciada em 1920 devido a
promessa de uma das chefes da Casa. A instituição de uma data comemorativa,
desaparecimento ou modificação são processos que podem ter ocorrido com o passar do
tempo, como no caso do Natal.57
Segundo pesquisas realizadas na casa afirma-se que atualmente, durante o natal,
não ocorre toque, apenas a montagem do presépio (CARDOSO JÚNIOR, 2001) e a visita dos
orixás (SANTOS, 2001), mas as referências históricas indicam que Josephina Seguins pediu
entre 1895 e 1902 três licenças para dança de minas em sua residência no período do Natal.
Maria Joana também solicitou licença para o mesmo período informando tratar-se da
brincadeira Tambor de Minas, ambas indicando haver toque de tambor e danças.
Provavelmente esta tenha sido uma prática que se perdeu ao longo do tempo,
tendo se simplificado até não ocorrer mais toque ou mesmo a vinda de entidades. Sergio
Ferretti (2009) informa que algumas festas da Casa das Minas deixaram de ser realizadas pela
morte das filhas dos voduns e que a diminuição do número de dançantes reduziu o calendário
festivo e a duração das festas.
Pode ser que no período do natal estivessem sendo realizadas outras festas, como
também tenham sido realizadas modificações na estrutura do ritual, como indica um dos
autores sobre a festa de Santa Bárbara.
Antigamente eram realizados três dias de toque. Porém atualmente a doença e a
idade avançada das dançantes levou a se realizar só um dia de toque, sendo realizado
no dia da santa. (CARDOSO JÚNIOR, 2001, p. 91)
57
Será dedicado um capítulo específico para a Festa do Divino Espírito Santo adiante.
122
longo período envolvendo vários dias, como no pedido de 28 de novembro de 1901 em que
requer autorização para:
[...] divertir-se em casa de sua residencia com a brincadeira denominada "Tambor de
Minas" nos dias 3, 4, 5, 24, 25, 26, 29 de dezembro proximo e nos dias 1, 2, 5, 6,7
do mes de janeiro proximo futuro do ano de 1902. (PLF, 28 /11/1901).
58
A cópia do registro cartorial desta doação data de 1985 e me foi cedida pelo professor Sergio Ferretti para que
fosse possível identificar os nomes dos donatários na documentação de polícia.
123
A Madre Deus fazia parte do subúrbio, conforme o mapa acima. Abaixo segue um
mapa com a ampliação detalhada da área 2 e a localização da Casa de Nagô e também da
Casa das Minas.
124
ou podendo ter sido apenas vodunsi sem grau de iniciação59 para assumir a chefia e que
Agostinha teria assumido depois de Maria Joana, pois os PLF indicam que quase sempre era a
chefe do terreiro que assumia as “responsabilidades legais” da Casa, pondo o seu nome na
documentação enviada à Chefatura de Polícia.
Como afirmado anteriormente várias eram as formas de negociar a aceitação de
um pedido, como apresentar bons argumentos para convencer o Chefe de Polícia. Josephina
de Oliveira apresentou em três pedidos portarias obtidas por ocasião de licenças já
concedidas, justificando assim que as suas festas mantiveram-se dentro dos padrões legais,
observando a ordem e os bons costumes esperados. Manter a posse de uma licença anterior
que não foi cassada era uma garantia a mais que a requerente fornecia ao passo que cobrava
da autoridade policial a aceitação de seu novo pedido.
Por conta disso consegui um conjunto completo de documentos (pedido e
portaria), que transcrevo a seguir.
PEDIDO – 5 de janeiro de 1897
Ao Cidadao’ Doutor Chefe de Policia
59
Na Casa de Nagô as dançantes possuem graus de iniciação e para assumir a Casa era necessário ser vodunsi-
gonjaí, ou seja, ter o maior grau de iniciação ou iniciação completa (CARDOSO JÚNIOR, 2001, p.47). Como
não foram mais realizados rituais para tal grau, as atuais chefes possuem funções religiosas reduzidas, pois não
receberam os ensinamentos mais complexos.
126
Chefatura de Policia
A portaria foi emitida no mesmo dia em que foi solicitada e pelo seu número uma
das primeiras do ano. É curioso notar que, mesmo sem o toque de tambor ser mencionado no
pedido, é feito referência ao mesmo na portaria. De alguma maneira essa informação foi dada
verbalmente ou já era de conhecimento da chefatura de polícia que tais festividades ocorriam
com toques de tambor.
Entre os anos de 1903 e 1905 não há pedidos referentes à Casa de Nagô. Informei
anteriormente hipótese de que este período poderia ter referência com o luto devido à
sucessão de chefes em curto espaço de tempo, algo que não foi registrado pelos pesquisadores
da Casa. Para se considerar tal possibilidade é preciso trabalhar com as versões sobre as
possíveis chefes africanas que teriam sucedido Josefa de Nagô, algo que não foi possível
identificar na documentação.
Informando sobre esse vazio documental, a antropóloga Mundicarmo Ferretti
disse que poderia se tratar de um período de crise em que a Casa ficou fechada por um tempo,
como pôde verificar na memória da comunidade, em que novos terreiros surgiram a partir da
saída de filhas de santo da Casa. Em nota de rodapé no “Desceu na Guma” faz a seguinte
observação.
Essa “explosão” da Casa de Nagô parece ter ocorrido durante um período de crise da
casa, por motivo pouco conhecido, quando o terreiro esteve de portas fechadas por
dois anos, o que deve ter ocorrido entre 1912 e 1913, uma vez que Mãe Dudu ‘bolou
no santo’ em 1916, no ‘toque’ de abertura da casa. Como a escritura do terreiro é de
1910 e fala-se que a parte da casa fora vendida no passado, por herdeiros, e depois
reconquistada pela ‘irmandade’, acredita-se que a crise que motivou seu fechamento
(em torno de 1912) tenha sido motivada por questões entre herdeiros das fundadoras
do terreiro. (FERRETTI, M., 2001, p. 68).
Os fatos ocorridos em torno deste episódio da Casa de Nagô são incertos, assim
como as datas. É provável que essa crise tenha sido antes e ocorrida após a morte de
Josephina Seguins de Oliveira, que sendo a mesma Josefa de Nagô, fundadora da Casa, gerou
problemas de sucessão ou de relações no grupo, de onde se justifica a saída de pessoas para
127
fundar novos terreiros, como Severa Soeiro, cujos documentos de pedidos de licença
começam a aparecer justamente nesse período (1905).
A escritura referida por Mundicarmo Ferretti e citada acima pode ter sido
elaborada depois para evitar problemas com os familiares dos fundadores da Casa, que já
vinham ocorrendo e não necessariamente ser o deflagrador dos conflitos que vieram a fechar a
Casa. Como os dados são incertos deve-se questionar não só o motivo de fechamento, mas
qual o sentido da palavra utilizada.
O Terreiro do Justino (do qual falarei adiante) foi fundado ainda no século XIX
por uma filha de Santo da Casa de Nagô, Maria Cristina Bayma. Dona Mundica Estrela, atual
chefe do terreiro, informa que a fundadora saiu da Casa de Nagô quando esta fechou, o que
teria ocorrido ainda no século XIX, segundo a memória do terreiro e em parte confirmada
pela pesquisa documental.
Como afirmado anteriormente a Casa passou um período inativa (no início do
século XX) e logo em seguida houve a mudança de nomes nos documentos, indicando para a
mudança na chefia pela morte da chefe anterior e um provável período de luto e reorganização
do terreiro para que os rituais pudessem voltar a acontecer. Assim posso afirmar que houve
‘fechamento’, mas no sentido de interrupção ou suspensão de suas atividades de forma
temporária, o que não era comum entre o grupo no período estudado.
Outros detalhes sobre o Tambor de Mina no passado podem ser obtidos através da
análise dos documentos referentes à Casa das Minas, que em comparação à Casa de Nagô,
apresenta um número bem menor de pedidos, deixando a impressão de que a casa jeje era bem
menos ativa em termos de festa. No entanto verifica-se a concentração de pedidos para
Tambor de Minas em períodos específicos do ano: dezembro e junho.
Em 5 de dezembro de 1896, aparece o primeiro pedido da Casa das Minas em
nome de Luiza Rosa da Silva, que pede
[...] permissao' para que ela com suas companheiras possao' divertirem-se com a
brincadeira de minas nos dias 5 e 6 do corrente em sua casa a rua de Sao Pantaleao'
nº 199 deste Estado, a petencionaria garante a boa ordem e decencia do costume.
(PLF, 5/12/1896).
abertura do ano litúrgico. (FERRETTI, S., 2009, p. 141). Nochê Sobô é uma das mais
importantes entidades da Casa das Minas, como informa Sergio Ferretti.
É considerada a mãe de todos os voduns de Quevioço. É um guia-astro, representa o
raio e adora Santa Bárbara. É comemorada no dia 4 de dezembro, data de uma das
mais importantes festas do tambor de mina do Maranhão. [...]
Na Casa das Minas afirma-se que a festa de Sobô é uma benção para a Casa. Pede-se
pelo público em geral, pela nação e por todos. Tem-se que pedir proteção para a
cidade onde se encontra a Casa, pois sem isso a Casa não estaria protegida. Na Casa
das Minas, em cima da porta do comé, há sempre um cromo retratando Santa
Barbára. (FERRETTI, S., 2009, p. 121).
A observação das datas dos documentos junto aos relatos orais permite recompor
parte dessa história aparentemente perdida. Sendo Mãe Luísa a segunda chefe, tendo estado à
frente da Casa por muito tempo e morrido com mais de 80 anos, é possível que tenha sido a
sucessora da primeira chefe após a fundação da Casa atual em 1847 ou antes. Não é possível
afirmar em qual data Mãe Luísa deixou de estar à frente da Casa e consequentemente quando
Mãe Hosana assumiu.
Depois da morte de Mãe Luísa, ocorrida provavelmente entre 1905 e 1910, a Casa
passou a ser dirigida por Mãe Hosana, filha de nochê Sepazim, que a dirigiu por
pouco tempo, até 1914. Morreu com mais de oitenta anos; era crioula e não mais
africana, com as mães anteriores. (FERRETTI, S., 2009, p. 58).
Entre os anos de 1907 e 1910 não há mais pedidos para Tambor de Mina, seja em
nome de Mãe Luísa ou de outra pessoa para o endereço da Casa das Minas. Em 1909, há um
pedido de Mãe Hosana solicitando licença para a Festa do Divino Espírito Santo, mas que não
é suficiente para afirmar que a esta data já chefiando a casa, pois nos anos de 1896, 1899 e
1909 já havia solicitado portarias para esta festa em específico.
Entre os pedidos da Casa das Minas também se identificam os pedidos de longa
duração, que abrangem mais de uma festa no calendário do terreiro. Em 22 de junho o tocador
Gregório José Vieira pede licença para
[...] celebrar na rua de S. Pantaleao' a tradicional brincadeira das minas, desde o dia
23 deste mez, até 30 de dezembro, do corrente anno; sendo que do mez de julho em
diante, a referida brincadeira, será feita em diferentes dias, como seja Domingos ou
129
feriados; vem respeitosamente pedir a V. Exa que se digne conceder a licença para
que tenha lugar o que o supplicante requer, garantindo desde já a bôa ordem que
sempre reinou em dias egaues. (PLF, 22/06/1898)
Nesse pedido que abrange um período de seis meses estão incluídas as seguintes
festas descritas no quadro abaixo.
Quadro 5 Festas incluídas no PLF 22/06/1898
FESTA PERÍODO
Nochê Naé Dias 23, 24 e 25 de junho correspondente a São João
Badé Dias 28, 29 e 30 de junho correspondente a São Pedro e São Marçal
Averequete 2º domingo de agosto correspondente a São Benedito.
Toçá e Tocé 27 de setembro, correspondente a São Cosme e Damião.
Nochê Sobô 3, 4 e 5 de dezembro, correspondente a Santa Bárbara.
Nochê Naé60 24, 25, 26 de dezembro no Natal.
Toquéns61 Último dia do ano.
60
A festa para Nochê Naé ocorre duas vezes ao ano.
61
São um grupo especial de voduns, conhecidos também como toquenos, caracterizados por serem mais jovens
do que os demais voduns.
62
Cecília do Nascimento Bandeira era avó de Dona Amélia (que chefiou a casa entre 1976 e 1997) e mãe do
tocador Gregório (cujo nome aparece em outros documentos). (FERRETTI, S. 2009, p. 279).
130
Não foi possível encontrar subsídios para tentar explicar uma atividade
relativamente pequena da casa. As condições materiais dos membros do grupo e os custos
131
envolvidos na realização de uma festa seriam razões que prejudicavam a manutenção rigorosa
de um calendário ritual contínuo, fazia com que estas se realizava quando era possível.
Afirmo novamente que é necessário dar certo “crédito” à documentação e
acreditar que pelo menos a Casa das Minas e a Casa de Nagô só faziam festas com
autorização da polícia. Embora seja perigoso, é possível traçar tal afirmação, pois tendo em
vista todo o trabalho para organização de um ritual a interrupção deste pela polícia não seria
desejada e representaria um grande problema ao grupo.
O Terreiro do Justino segundo memória oral teria sido fundado ainda no século
XIX por Maria Cristina Bayma, filha de santo da Casa de Nagô. Muito embora os PLF só
apareçam no final do início do século XX, uma matéria de jornal de 1898 indica o
funcionamento do terreiro no fim dos oitocentos, sendo atualmente o único terreiro do século
XIX ativo, realizando toques de Tambor de Mina já que a Casa de Nagô e a Casa das Minas
atualmente realizam apenas a programação da Festa do Divino Espírito Santo e ladainha em
algumas datas.
133
embora as filhas tivessem permissão para isso. Essa interdição também não tem suas razões
conhecidas, muito embora Dona Mundica desconfie de que tenha houve algum
desentendimento ou descontentamento entre as chefes – o que indica para um desligamento
não amigável entre os dois terreiros – ou por ordem das entidades. A razão da fundação e em
específico essa interdição são os mistérios do terreiro, como indica a atual chefe, “são
palavras que a gente recebe da chefe anterior e não pode descumprir.”
A matéria do jornal Pacotilha informa que na casa de Maria Cristina estavam
acontecendo sessões de pajelança e assim descreve o ritual em tom de ironia e na forma de
versos.
A Maria Christina
Senhor Verequete do mar
O Justino Pilôto
Tocador do Maracá
da sociedade – e o que a matéria indica é que se tratava de algum tipo de ritual ou sessão de
cura já que havia a presença de um “enfeitiçado”, possivelmente uma pessoa em tratamento.
Dona Mundica, que chegou a conhecer Maria Cristina, disse que ela era “Pajoa” e
que realizavam rituais de cura e pajelança no terreiro. De fato existem dois ambientes
distintos no Terreiro, um para a Mina e outro para a Pajelança. São Benedito (Averequete) e
Santa Bárbara são os donos do Terreiro, representando as entidades principais cultuadas e
ambos são citados na matéria do jornal. Dona Mundica identificou Malvina, citada na matéria,
como Malbina, uma das dançantes da casa. Todos esses elementos indicam que o ritual não
tenha acontecido na Casa de Nagô e sim já no Terreiro do Justino.
Os versos destacam elementos importantes dentro dos rituais das religiões afro-
maranhenses e deixam entrever que quem o escreveu conhecia de forma próxima a casa, a
devoção a Santa Bárbara e os indivíduos que ali estavam. Descrever em versos, rimados e
musicados demonstra também a importância dessa forma textual como importante fonte de
informações sobre a casa, já que os cantos/orações trazem informações sobre as entidades,
histórias, estruturas de pensamento e de organização da vida dos indivíduos.
136
Imagem 12 Terreiro do Justino - Local para toque de Tambor de Mina (Arquivo Pessoal)
Praticar pajelança pode ter sido a causa algum tipo de desentendimento entre
Maria Cristina e o pessoal da Casa de Nagô tendo resultado em sua saída da Casa. Ou mesmo
o fato de já estar funcionando paralelamente à Casa de Nagô para rituais de cura, razão pela
qual foi instalado em um local distante. A pajelança era regulada pelo Código Criminal da
República – já apresentado anteriormente – e era considerada prática ilegal de medicina e
crime contra a saúde pública, o que poderia criar problemas entre a Casa de Nagô e a Polícia.
137
63
Piancó é uma localidade que divide dois bairros na região da cidade que é conhecida atualmente como área
Itaqui-Bacanga, que começa na margem esquerda do Rio Bacanga, que divide essa área com o centro da cidade.
No outro extremo da área encontra-se o Porto do Itaqui. Na segunda metade do século XIX a área fazia parte do
Distrito de São Joaquim do Bacanga, posteriormente apenas Distrito do Bacanga, que incorporava também áreas
da margem direita do rio de mesmo nome. O distrito era uma área pouco povoada, marcada por sítios e que em
1897, segundo dados da Chefatura de Polícia contava apenas com 17 quarteirões. Nos jornais a área aparece
como um local de pouca ação policial, problemas e conflitos quase nunca eram resolvidos pela Chefatura de
Polícia. Atravessando-se o Rio Bacanga a ação do poder público era menor ainda.
64
Gapara é um dos bairros da Área Itaqui-Bacanga, localizado um pouco distante do Bairro da Vila Embratel,
onde hoje localiza-se o Terreiro do Justino.
138
65
Nochê Naé nesse caso referente ao calendário da Casa das Minas. Segundo informações de Sergio Ferretti,
Nochê Naé nunca foi cultuada na Casa de Nagô e no Terreiro do Justino, portanto é provável que a festa fosse
algo referente à comemoração do Natal.
139
rural (onde também eram realizados rituais de Cura), o que, segundo Costa Eduardo
(1948), começou a ocorrer por volta de 1910. (FERRETTI, M., 2000, p. 68).
Como vimos Maria Cristina saiu da Casa de Nagô ainda no século XIX, vindo a
fundar o seu terreiro em um lugar afastado da cidade. Assim o processo de expansão da Mina-
Nagô iniciou bem antes do que os pesquisadores registraram (por volta de 1910). A
incorporação da Pajelança no Tambor de Mina inicia-se também nesse período o que justifica
a instalação do Terreiro do Justino em uma área distante e de difícil acesso.
Esse aviso foi publicado 15 vezes entre janeiro e abril, quando a correspondência
deve te sido recuperada. Não é possível afirmar que se tratava da mesma pessoa, mas uma
correspondência enviada com valores para o estado vizinho pode ser indicativo de uma
relação entre terreiros de dois estados que se constituiu após a fundação de terreiros no Pará
por filhos de santo de terreiros maranhenses. (SANTOS e SANTOS NETO, 1989).
No Jornal Pacotilha o nome de Severa Soeiro aparece em 1935 em um trecho da
coluna “Na polícia e nas ruas” informando as licenças concedidas para festas em abril do
mesmo ano.
Licenças
Foram dadas pela 1ª Delegacia licenças para festa do Divino E. Santo, ás seguintes
pessôas: Julieta Maria da Paixão, Severa Soeiro, Porfiro Pedro Baptista, Leopoldina
Meirelles, Andreza Souza.
So poderão tocar foguetes pela manhã, ao meio dia, e á noite, por occasião das
ladainhas, conforme consta nas licenças. (PCT, 18/04/1935)
O nome de Mãe Andreza, que chefiou a Casa das Minas entre 1914-1954, aparece
na listagem dos promotores de Festa do Divino Espírito Santo, característica dos terreiros do
141
Maranhão. No mesmo jornal, dois anos depois, foi publicada nota comunicando o falecimento
de Severa Soeiro, que morreu na sexta feira 16 de julho de 1937, aos 98 anos de idade.
Pela idade comunicada no jornal Vó Severa teria nascido em 1839 e poderia estar
na Casa de Nagô já nas primeiras décadas de seu funcionamento ou mesmo tendo relação com
os fundadores da Casa. A partir dos PLF Vó Severa mantinha o calendário da Casa de Nagô,
repetindo também a concentração dos pedidos nos períodos das principais festas do ano.
Neste caso em particular as festas concentram-se no fim e início do ano como informado no
quadro abaixo.
142
66
Os demais dias poderiam ser referentes a continuação da festa ou pagamento de alguma obrigação.
67
O Chefe de Polícia concedeu a licença, mas para apenas um dia, sem especificar qual.
143
Localizei seis PLF em seu nome e algumas notícias nos jornais (que o apresentam
como pajé), todas restritas ao século XIX. Neste tópico tratarei apenas do Manoel Teu Santo
que pedia licenças para realizar rituais de Tambor de Mina, deixando o pajé para outro
capítulo. Abaixo segue um quadro com as informações dos terreiros originados da Casa de
Manoel Teu Santo, que como a Casa de Nagô, teve uma grande importância na expansão do
Tambor de Mina, de onde saíram importantes terreiros cuja filiação estende-se até o vizinho
estado do Pará.
Quadro 10 Terreiros filhos do Terreiro de Manoel Teu Santo (Santos e Santos Neto, 1989)
Mapa 7 Mapa da área da Madre Deus: Localização do Terreiro de Manoel Teu Santo (Mapoteca APEM)
de Nagô, o que sugere certa proximidade entre os terreiros, pelo menos neste aspecto. Em
dois pedidos, Manoel Teu Santo pede licença para período que compreende vários meses e
para fornecer o maior número de informações possíveis foi elaborado quadro (Anexo 6)
contendo as informações básicas dos pedidos.
O calendário ritual segue, pelo menos em linhas gerais o da Casa das Minas e da
Casa de Nagô, o que sugere certa proximidade entre os terreiros, pelo menos neste aspecto, e
uma origem semelhante, mas sem possibilidades concretas de afirmar sua africanidade (como
faz Euclides Ferreira, chefe da Casa Fanti-Ashanti).
Nesse sentido o presente livro, ITAN DE DOIS TERREIROS NAGÔ, é uma
pequena contribuição ao resgate histórico destes. O primeiro [Casa de Nagô], sendo
fundado por africanos nigerianos com parcerias de negros de outra procedência
africana e o segundo [Terreiro da Turquia], sendo fundado por Anastácia Lúcia dos
Santos remanescente do terreiro do nigeriano Manoel-Teu-Santo (JOKOBYRA)
(FERREIRA, 2008, p. 23 – grifo meu)68.
68
No mesmo livro, o autor publica uma fotografia (ANEXO 7) que supostamente seria de Manoel Teu Santo,
mas sem citar a origem da imagem. Um homem negro, aparentemente calvo ou com pouco cabelo branco apoia
o queixo em seu braço direito, tendo o ombro esquerdo coberto por um tecido de cor clara.
147
Ao observar que tais noções são correntes nos documentos e, portanto, na fala dos
requerentes, fica claro que, de certo modo, esse processo civilizador surtiu efeitos. Ao afirmar
que faria de tudo para manter a ordem, moral e decência um requerente assumia que sua
religião poderia em algum momento ultrapassar certos limites e se tornar desordenada, imoral
e indecente, ferindo princípios de uma estrutura social a que deveria se submeter para ter a sua
licença aprovada e não ter a sua licença cassada.
Elias fala de um processo civilizador que não é proposital, ou seja, pensado para
atingir determinados objetivos, mas sim construído a partir da ação dos indivíduos neste
“entrelaçamento social”. O processo civilizador maranhense foge a caracterização de Norbert
Elias pelo fato de não ser articulado a partir das necessidades especificas da sociedade, mas,
sobretudo, por ser um projeto civilizador – muito próximo do que Thompson (1993)
compreende como uma tentativa de reforma dos costumes plebeus –, com objetivos bem
específicos dentre os quais o controle social das manifestações culturais de parcelas da
população.
Nesse aspecto vale destacar que, por se tratar de uma imposição, o alcance desse
projeto era limitado, pois sempre havia resistências que se articulavam para conseguir
ultrapassar os limites impostos. O Bumba-Meu-Boi talvez seja o maior exemplo de
manifestação cultural que conseguiu resistir aos limites impostos até se tornar reconhecido
pelo estado como elemento da cultura e identidade local.
Essa “resistência teimosa” (THOMPSON 1998, p. 13) pode ser ampliada às
demais manifestações culturais, mas sempre é necessário frisar que não se trata de uma
reflexão simples do tipo dual: resistência x subserviência. Pelo contrário, as manifestações
culturais devem ser vistas em cada caso específico com seus graus de resistência e de
subserviência, ou seja, em quais momentos e situações o Tambor de Mina, por exemplo,
incorporou as noções de moral e bons costumes e em quais e de que forma as negou ou até
mesmo quando se mostrou ambígua, como afirma Thompson.
149
Gregório José Vieira tocador da Casa das Minas se utiliza do mesmo argumento
da tradição, em pedido de 1898 para celebrar a “tradicional brincadeira denominada das
Minas”. Como o Tambor de Mina não aparentava aos olhos das autoridades ser uma prática
religiosa, e os requerentes se esforçavam para tal, não havia necessidade de apelar tanto à
tradição ou longevidade do objeto da licença para ter aprovação, algo que era recorrente em
alguns pedidos para a Festa do Divino Espírito Santo.
151
69
A imagem foi extraída de CORREIA (2006, p. 158).
152
Esse detalhe pode ter sido de algo que chamou atenção do desenhista ou até
mesmo uma falha do desenho, mas de qualquer forma é inegável a proximidade entre a
estética da imagem do jornal e a da festa atual. Esta imagem é muito semelhante a que se pode
153
observar em muitas festas de terreiros atualmente. Abaixo seguem duas imagens da Festa do
Divino na Casa das Minas, a primeira sem data precisa70 e a segunda de 2006.
Imagem 18 Festa do Divino, Casa das Minas (MAD)
Ano 1890 1896 1897 1898 1899 1901 1902 1903 1907 1909 1910
Mês
Janeiro 1 1
Fevereiro 1 1
Março 2 1 1 3 1 2
Abril 4 2 4 5 1 3 3
Maio 1 8 3 2 2 3 1 3
Junho 1 1 4
Julho 2
Agosto 1
Setembro 2 1 1
Outubro 1 1 1
Novembro 1 171 2 1
Dezembro 1
71
Neste ano um dos pedidos encontra-se deteriorado e não é possível identificar a data, mas pelo número do
registro no livro de portarias seria do mês de novembro.
155
ruas de determinado local angariando fundos entre os devotos do divino como informa Sergio
Ferretti.
A coleta de donativos através de cartas convite é também utilizada em outras festas
na Casa das Minas, e é muito comum em outros terreiros, tendo praticamente
substituído o que corresponderia à Folia do Divino, que percorria ruas e povoados
com esse mesmo objetivo. (FERRETTI, S., 2009, p. 170).
Algumas licenças eram pedidas bem antes da data de realização da festa, visto o
período de organização e preparação que poderia ser de meses. Outros pedidos eram
referentes tanto para o ato de angariar donativos como também para a realização da festa.
Dessa forma a distribuição dos PFL na tabela acima reproduz apenas em parte o período em
que a festa aconteceu. Mas ainda assim é possível observar uma concentração nos meses de
março, abril e maio.
Em muitas das Casas de Culto – em que a homenagem ao Espírito Santo associa-se
a uma outra divindade do seu panteão – é na data comemorativa desta divindade que
se realiza a festa, a exemplo de Senhora Santana (Julho), Dom Luís(Agosto), Nossa
Senhora da Conceição (Dezembro), São Sebastião (Janeiro). E, ainda considerando
os festejos promovidos por devoção individual, particular, pode-se afirmar que, no
“Maranhão, há Divino o ano todo” (CARVALHO, 2010, p. 10).
Em fevereiro de 1896 foi pedido licença para percorrer a ilha de São Luís
angariando donativos. Os recursos obtidos seriam utilizados no mesmo ano “para auxiliar os
ditos festejos e tocar as respectivas caixas no interior de sua casa nos dias que tiver logar os
ditos festejos” (PLF, 09/02/1896).
No mês de setembro do mesmo ano Mãe Hosana pediu licença para angariar
donativos para a festa do ano seguinte.
156
Osãna Maria da Conceição tendo por devoção festejar todos os annos, o Glorioso
Divino Esperito Santo, em sua caza de residencia a rua de S. Pantaliao', na caza
denominada Caza das Minas, dezejando retira-se para o interior d'este Estado,
angariar donativos pellos fiéis do mesmo Santo, para auxiliar os festejos do anno
proximo vindouro, vem respeitosamente solicitar de Vossa. Senhoria a respectiva
licença. (PLF, 30/09/1896)
O terceiro pedido da Casa das Minas só vai aparecer no ano de 1909. A partir da
documentação estudada apenas 3 festas podem ter sido realizadas, a de 1896, 1909 e
provavelmente a de 1897 para a qual os recursos possivelmente coletados pelo pedido acima
foram aplicados. Mesmo sendo uma festa importante a sua realização dependia
principalmente dessa captação de recursos que serviria para cobrir as despesas da festa e a
intermitência ou interrupção poderia estar diretamente ligada às questões materiais, como já
foi falado no caso das demais festas em terreiros.
Maria Rosa Ferreira Pinho72 pede licença para a festa do Divino em 20 de maio de
1897. Transcrevo abaixo o seu pedido por conter uma série de informações a serem
destacadas.
Illustrissimo Senhor Doutor Chefe de Policia interino
do Estado
A requerente possui dois outros pedidos registrados em seu nome, ambos para
Tambor de Mina, um em 1897 e outro em 1889 (Conforme ANEXO 8). A requerente também
informa que haverá danças por ocasião das festas, mas não deixa claro se há uma relação com
dança enquanto ritual religioso ou outras danças, como tambor de crioula, bumba-meu boi ou
de outras manifestações folclóricas (FERRETTI, S., 1995, p. 168).
Na Casa das Minas, como dito anteriormente, há uma relação entre as entidades e
a festa do Divino, inclusive a possibilidade de haver dança dos voduns.
Por ocasião dos festejos é comum a vinda de alguns voduns, como Sepazim, Daco,
Doçu, Bedigá e outros, no buscamento, no levantamento, no dia da festa e no
encerramento. Eles usam toalha, mas não danças. Antigamente, num dos dias da
festa tinha tambor e toque, com dança de voduns. (FERRETI, S., 2009, p. 171)
O local seria marcado com um mastro, um dos símbolos da festa e posto na frente
da casa da requerente, próximo ao Sítio Dois Leões, no antigo caminho grande e marco do
fim da área urbana da cidade no final do século XIX (AMARAL, 2003, p. 69). No mapa
abaixo há uma projeção do que era considerado o Caminho Grande e a possível localização do
Sítio Dois Leões
158
de maio de 1910. No pedido, Vó Severa indica que naquele ano a festa foi realizada de 21 a
24 de maio e nos dias 17, 18, 23, 24, 25, 28, 29 e 30 do mês de junho correspondente às festas
do meio do ano dos Terreiros de Tambor de Mina. Neste caso a festa poderia ter sido
realizada de forma conjunta ou a requerente aproveitou um pedido para solicitar licença
contemplando duas festas diferentes.
Os PLF e os respectivos despachos da Chefatura de Polícia permitem pensar uma
lógica de ocupação e organização do espaço urbano pelos diferentes grupos sociais. As
limitações impostas aos espaços em que a festa ou parte desta poderiam ocorrer reforçam os
traços da divisão entre as camadas ricas e pobres da população e a sempre presente tentativa
de civilizar, moralizar e organizar a cidade e a sua gente.
As caixas, instrumentos sonoros que acompanham musicas e orações, são marcas
características das festas demarcam sonoramente essa manifestação do catolicismo popular. O
ato de tocar caixa era o que mais incomodava e preocupava as autoridades, já que eram
recorrentes as interdições aos toques na rua. Os cortejos ou a prática de angariar donativos
não poderiam ser acompanhados de toque de caixas e talvez por isso o desenhista do jornal A
Flecha não tenha desenhado uma representante da festa com uma caixa, já que os batuques
eram proibidos pelo Código de Posturas da Câmara desde 1842.
As matérias de jornais sobre a Festa do Divino Espírito Santo podem ser divididas
em tipos:
a) Convites e Anúncios:
Por ocasião da festa muitas companhias de barcos a vapor anunciavam viagens
especiais para as cidades e vilas do interior onde as festas eram realizadas. São Bento,
Rosário, Cururupu e Alcântara são as mais recorrentes entre os anúncios publicados. Alguns
anúncios também continham informações sobre estadia e também sobre a festa, que muitas
vezes recebia elogios por sua pompa e organização.
160
O feriado católico marca o início da Festa do Divino, o que não quer dizer que era
uma festa da Igreja. Embora realizada tendo como referências o catolicismo a festa era “pouco
ortodoxa” reunindo diversos elementos, como tambores e cantos, que não estavam de acordo
com uma conduta ou devoção católica aos olhares das autoridades religiosas e de parte da
população, sendo por isso considerada “profana” pela instituição religiosa, que por muito
tempo criticou e combateu a heterodoxia religiosa de forma aberta e ainda hoje busca
reformar uma série de hábitos religiosos que divergem da doutrina católica.
Algumas das proibições e limites impostos pela polícia no começo do século XX
continuaram por muito tempo, ainda se baseando na relação com a perturbação do sossego
público ou afronta aos ideais de moral social. Moradores antigos do centro da cidade e que
conheciam ou participavam da festa contam que durante os cortejos o toque de caixas era
suspenso quando se passava em frente a uma igreja e as vezes atraindo olhares de reprovação.
As caixas não podiam entrar nas Igrejas e eram deixadas do lado de fora enquanto
ocorria a missa (imagem seguinte). Muito embora não fossem tocadas durante a missa, a
interdição colocava limites na utilização dos elementos considerados profanos e que não
deveriam estar presentes em momentos sagrados da vida religiosa católica. As caixas só
voltavam a serem tocadas durante o cortejo em direção ao local da festa.
162
Para mim, porém, o melhor de tudo isto é o serio com que a gente da <<Pacotilha>>,
sem desconfiar que estava pregando no deserto, se tem dirigido ao governo,
lembrando medidas prestando-lhe emfim, mão forte e amiga.
Não é que a censuremos por isso; longe de nós tal pensamento; a gravidade do
momento não comportaria proceder diverso.
Mas chega a ser de um comico a toda prova esses conselhos supplices – para salvar
uma população inteira! – atirados ao vento, quando aos ouvidos do governador só
chegara o plan rataplan plan dos tambores do Divino! (PCT, 06/06/1900)
Segundo o jornal, o governador poderia até pedir um milagre, mas não confiava
muito que isso fosse resolver a situação, visto que o correto era estar ouvindo os pedidos da
população que sofria constantemente com a falta de serviços públicos e não o som das caixas
do divino, que parecia incomodar mais do que qualquer outro elemento da festa.
Ao que parece, as caixeiras do divino não obedeciam aos ditames da Chefatura de
Polícia com relação ao toque de seus instrumentos. O “plan rataplan plan” incomodava
moradores que reclamavam de ter que “suportar” o barulho que vinha das ruas e festas. Em 24
de maio de 1910 uma longa matéria do Diário do Maranhão criticava o som característico da
festa.
Poderá haver couza mais detestável do que o batido descadenciado e sem harmonia
das caixas acompanhado do cantarolar dezajeitado com que, entre nós é festejado o
Divino Espírito Santo?
Haverá ouvido que se conforme com essa algazarra infernal que livremente percorre
as nossas ruas?
É impossível: nem mesmo as pessoas mais chegadas á relijião podem suportal-a,
penso.
Não condeno a festa, absolutamente não a reprovo, mas o que não posso é ouvir essa
cantilena choroza sem que tenha dezejo irrezistivel de furar todos os tambores e
calar a boca clangoroza das festeiras.
Nem temos o direito de estar tranquilos em nossa casa ás vezes quando, mais que
nunca, precizamos do silencio?! (DMA, 24/05/1910).
O autor do texto (não identificado) afirmava que não era contra a festa, mas contra
o som das caixas que, segundo ele, incomodavam ao passar livremente pelas ruas da cidade,
sendo impossível de suportar, mesmo pelas pessoas mais chegadas à religião. Ao expor a sua
opinião o autor busca generalizar para não se mostrar como único incomodado, em uma
tentativa de “falar pelos outros” a partir de fatos que giram em torno de suas experiências com
as caixeiras.
Passava ontem por uma das nossas melhores ruas, quando ouvi ao longe o alvoroço
dos tambores, entremeiado pela mais que infame voz de uma festeira que tentava
com os seus improvizados versos, fazer dezaparecer a humanidade, ou, quem sabe,
calar alguma creança manhoza que lá estrebuxava em gritos, aterrorizando-a.
E era tal a melodia desse concerto que eu, completamente alheio, como sou á
materia de canto, me senti aterrorizado. Vinha-me aos ouvidos a sensação de coaxar
de mil rãs confuzamente com o som que obtemos batendo noutras tantas latas
velhas. (DMA, 24/05/1910).
164
Ao dizer que passava por uma das melhores ruas da cidade ou autor deixa claro
que havia uma divisão dos espaços urbanos e era inadmissível que nos melhores espaços da
cidade fosse possível encontrar esse tipo de costume “antigo, que de nenhum modo lustram o
nosso orgulho de civilizados”. Era permitido então que tais costumes ocorressem nas piores
ruas, por onde não passavam outras pessoas que não aquelas acostumadas ou que também
participavam desse tipo de “algazarra”.
Em nome da civilização o autor defende que estes costumes sejam reformados,
evitando-se as caixeiras nas ruas ou restritas aos espaços em que não incomodem.
Para o estrangeiro que vizita qualquer uma de nossas cidades não pode haver peor
impressão que a cauzada por um desses atrazados festejos, mais próprio para as
região (sic) do Congo do que para o Maranhão, que goza do melhor conceito pela
sua civilização. (DMA, 24/05/1910).
A ligação com a África aparece como argumento contundente para uma reforma
nas estruturas sociais e para que o status de civilizado fosse mantido, assim a África aparece
como parte desse conteúdo ou herança etno-cultural negativa.
Portanto, mãos a obra.
Parte desta tarefa compete, na minha fraca opinião, á igreja e a outra a quem de
dever.
Que dentro de pouco tempo possamos gozar os deleites do sono da madrugada e ter
os ouvidos livres do rufo duradouro dos tambores festivos. (DMA, 24/05/1910).
O autor propõe uma reforma da Festa do Divino, tanto em sua estrutura simbólica
e ritual como na sua ocupação dos lugares públicos, mostrando que a reforma cultural
perpassava pela organização ou definição dos espaços urbanos.
Gostaria de cunhar a expressão “reforma da cultura popular” para descrever a
tentativa sistemática por parte de algumas pessoas cultas (daqui por diante referidas
como “os reformadores” ou “os devotos”) de modificar as atitudes e valores do
restante da população ou, como costumavam dizer os vitorianos, “aperfeiçoá-la”.
(GINZBURG, 2010, p. 280).
Não raras são as vezes em que nestas festas, onde o alcool corre com profuzão,
regando a guela seca das cantoras e convivas aparecem os disturbios, de onde saem
muitos para o hospital ou para o cemiterio.
No interior ha o arraigado habito do mastro, que já tem esmigalhado craneos na sua
queda vertijinoza. (DMA, 24/05/1910).
Reunindo então uma série de elementos negativos em uma única festa nada mais
normal do que buscar modificá-la em busca da manutenção da própria organização da
sociedade de maneira mais ampla e não unicamente daqueles que participavam das
brincadeiras populares, possuindo assim um sentido moral.
A segunda grande objeção à cultura popular tradicional era moral. As festas eram
denunciadas como ocasiões de pecado mais particularmente de embriaguez,
glutonaria e luxuria, estimulando a submissão ao mundo, à carne e ao demônio –
especialmente à carne. Não escapava aos devotos que o mastro de Maio era um
símbolo fálico, As peças, cantigas e, sobretudo, as danças eram condenadas por
despertar emoções perigosas e incitar à fornicação. (GINZBURG, 2010, p. 286).
6. PAJELANÇA
Entre os anos de 1613 e 1614 o padre Yves d’Évreux descreveu uma cerimônia de
cura realizada por índios no Maranhão.
73
Os trechos em que o missionário critica os rituais, acusando-os de supertições e influências demoníacas,
fornecem meios para que os leitores compreendessem do que se tratava a ação dos pajés. Essa compreensão
acompanhou e ainda acompanha boa parte da sociedade brasileira que partilha das ideias cristãs sobre a atuação
de pajés, curadores e pais de santo.
167
Estes bafejos lhes são muito particulares, com cerimonia necessaria para curar os
infermos, porque vós os vedes puchar pela bocca, como podem, o mal, dizem elles,
do paciente, fazendo-o passar para a bocca e a garganta d'elle inchando muito as
bochechas, e deixando d'ellas sahir de um so jacto o vento ahi contido, causando
estampido igual ao de um tiro de pistola, e escarrando com grande força dizendo ser
o mal, que haviam chupado, e fazendo acreditar ao doente.
A este respeito o Sr. de Pezieux e eu passamos um dia alegre na aldeia de Vsaap.
Um pobre moço selvagem estava atacado pela colica do pais.
Veio um d'estes feiticeiros exercer sua attração de espirito sobre o seo ventre,
fazendo muitos tregeitos, e retrahindo-se por diversas vezes vendo-nos prestar-lhe
muita attenção, e apesar de tudo isto o doente continuava a gritar. Veio o feiticeiro
depois procurar-nos e mostrando-nos dois outros pregos nos disse - <<eis, o que lhe
tirei do ventre, cujos intestinos estão cheios d'isto, é preciso tiral-os um por um. Si
eu não os tirasse todos, lhe vravariam as tripas e a garganta.>> (Evreux, 1874, p.
273-274).
O padre não cita pajés ou pajelança neste trecho, muito embora em outras
passagens do livro afirme que os pajés são referidos como responsáveis pelo contato com os
espíritos e oficiantes de outros rituais. Essa é a mesma descrição utilizada por Alfred Métraux
ao falar do tratamento das moléstias entre os Tupinambás e da ação do feiticeiro.
Como todas as moléstias eram causadas por sortilégio, cabia aos feiticeiros o seu
tratamento. Os mesmos conduziam-se exatamente como os médicos-feiticeiros em
geral das regiões equatoriais, da América do Sul, começando por soprar
energicamente o doente, fumigá-lo e em seguida, enfim, “sugar a parte molesta para
extrair-lhe o mal”. (MÉTREAUX, 1979, p. 80 - grifo meu).
Assim fica claro que a ritualística indígena é a matriz da pajelança que se conhece
atualmente, mas que não é realizada por pajés indígenas. Octávio da Costa Eduardo afirma
que os elementos da ritualística indígena foram tomados “emprestados” pelos curadores.
Some curadores engage in the pagelança [sic] dances of Indian origin, this being the
outstanding activity which gives them their name. During the pagelança dances,
which are held outside the city, the pagé is, as mentioned, possessed by an Indian
spirit. Under this state of possession he cures a client by taking from his body, as in
the interior, a small object, a thorn, a needle, fish scales, or a small animal, often a
lizard, placed in him by black magic. The dance in which these practitioners engage
reproduces with very slight changes shamanistic dances among the autochtonous
Indians. (EDUARDO, 1948, p. 102).74
74
Alguns curadores se envolveram nas danças de pagelança originárias dos índios, sendo esta a atividade
excepcional que lhes dá o seu nome. Durante as danças de pagelança, que são realizadas fora da cidade, o pagé,
como é mencionado, é possuído por um espírito indígena. Sob este estado de possessão, ele cura um cliente,
como se tirando do interior de seu corpo, um pequeno objeto, um espinho, uma agulha, escamas de peixe, ou de
um pequeno animal, muitas vezes, um lagarto, colocada nele por magia negra. A dança em que estes praticantes
se envolvem reproduz com ligeiras alterações danças xamânicas entre os índios autóctones. (Tradução livre).
168
Nicolau Parés (2011) fala de uma pajelança pelo menos em três níveis, uma
pajelança indígena, uma cabocla – derivada do ritual indígena e com elementos do
catolicismo popular ibérico – e uma terceira pajelança, mais difundida no caso do Maranhão e
especificamente de São Luís, que teria sido formada a partir da apropriação da pajelança
cabocla pelos negros. Esse processo de apropriação teria sido facilitado pela convergência de
crenças e rituais, como explica o autor.
[...] podemos concluir que a pajelança cabocla, derivada da pajelança indígena, foi
progressivamente apropriada pelos africanos e crioulos e que o processo de
caboclização e crioulização foi favorecido pelo grande número de convergências
existentes entre as tradições tupi-cablocas e as africanas, especialmente no que diz
respeito à ideologia da cura e da feitiçaria. (PARÉS, 2011, p. 125).
Uma definição da pajelança para o passado só pode ser pensada com base em
análises de informações obtidas do período estudado, mas com as restrições ao acesso a
informações sobre a pajelança no século XIX e início do XX talvez não seja possível propor
uma definição e sim descrever e caracterizar a partir daquilo que é dito nos jornais e ainda
assim sem a possibilidade de generalizações, já que há inúmeras variações dentro desse
complexo cultural, como informa Didier de Laveleye.
A "pajelança" refere-se a um conjunto de práticas e rituais e de representações da
natureza e do corpo, típica das populações amazônicas, aplicada principalmente
pelos pajés na cura das doenças e aflições. Habitualmente considera-se, em
Antropologia, que um tal "conjunto" (de ritos e mitos) enraíza-se na cultura de cada
povo. Existem, assim, tantas pajelanças quanto povos diferentes existem no Norte do
Brasil, tanto nas sociedades indígenas quanto no mundo "caboclo" ou camponês. [...]
Assim, uma característica geral da pajelança está nessa flexibilidade cultural,
permitindo uma importante heterogeneidade de conjuntos rituais e míticos, e uma
larga distribuição em todo o espaço social. (LAVELEYE, 2008, p. 113).
75
A cura no Batuque é idêntica à pajelança em todos os aspectos essenciais, a tradição xamânica que tem
prosperado na Bacia Amazônica desde a chegada dos primeiros europeus. Pajelança desenvolveu-se quando
curandeiros entre o colono europeu tomou emprestado uma série de ideias e procedimentos dos índios xamãs
indígenas, especialmente aqueles das tribos de língua Tupi. (Tradução livre).
169
Burke chama atenção para a “distorção” da realidade por meio daquele que a
narra.
A cultura popular dos inícios da Europa moderna é esquiva. Ela escapa do
historiador porque ele é um homem moderno letrado e autoconsciente, que pode
achar difícil entender pessoas diferentes dele próprio, e também porque os indícios a
respeito de suas atitudes e valores, esperanças e temores são fragmentários. [...]
Queremos saber sobre apresentações artísticas, mas o que sobrevive são textos;
queremos ver essas apresentações através dos olhos dos artesãos e camponeses, mas
somos obrigados a enxergá-las com os olhos de forasteiros letrados. (BURKE, 2010,
p. 101).
76
A noção de distorção trabalhada pelo autor não faz referência a uma falseabilidade do documento e sim à
interpretação das informações e a reprodução dos ideais e referências de quem o escreveu.
170
destaca Robert Darnton: “Para penetrar nessa consciência, precisamos concentrar-nos mais
nos modos de descrever do que nos objetos descritos” (DARNTON, 1986, p. 144).
E somente a partir do conhecimento dessas “formas de ler o mundo” que seria
possível utilizar as matérias dos jornais para conhecer a pajelança sem o risco de falar
somente da perseguição, reafirmar as ideias correntes na época ou mesmo excluir as
possibilidades de trabalhar com fontes que são aparentemente contaminadas pela distorção do
olhar de quem narra.
Para se pensar essa pajelança também foi necessário utilizar a ferramenta da
análise regressiva, da qual faz referência Peter Burke.
Para evitar mal-entendidos, gostaria de dizer logo o que não é o método regressivo.
Ele não consiste em pegar descrições de situações relativamente recentes e supor
despreocupadamente que elas se aplicam da mesma forma a períodos anteriores. O
que defendo é antes um uso mais indireto do material moderno, para criticar ou
interpretar as fontes documentais. Ele é particularmente útil para sugerir ligações
entre elementos que podem ser documentados para o período de estudo ou para dar
sentido a descrições que são tão alusivas ou elípticas que por si sós não fazem
sentido. (BURKE, 2010, p. 123).
Por essa razão não é possível dispensar a definição de Gustavo Pacheco, pois se
torna útil para dar sentido ao que Burke chama de “descrições elípticas”, como será visto no
decorrer das análises em que serão usados vários referenciais contemporâneos para situar os
elementos rituais e simbólicos da pajelança no recorte estudado. As notícias dos jornais
associam o pajé a outras atividades que não só curar doenças, como informa o jornal Pacotilha
ao comparar a pajelança à medicina, sendo esta última limitada em relação a primeira ou nos
termos do redator da notícia: “A pagelança tem outras virtudes: - dá e tira uma fortuna, arranja
e desmancha amisades, faz apparecer as cousas perdidas e...”.
171
Para além da discussão acerca de uma medicina oficial e outra ilegal fica claro
que pajés e médicos disputavam o mesmo espaço, muito embora os agentes ilegais
oferecessem uma gama maior de serviços. A matéria pode ser interpretada de duas formas
completamente diferentes, mas não excludentes. A primeira é que se constitui uma crítica à
pajelança que por meio de certas práticas não convencionais promete a cura e a resolução de
problemas cotidianos.
A pajelança sempre era criticada nos jornais, principalmente por meio da
descrição de seus rituais como o caso que narram na mesma matéria.
Mas no caso que vamos relatar não entra esta especie de pagelança. É um facto real,
de pura sciencia. N'este negocio entra somente a pagelança-medica, essa que desde
tempos immemoriaes cose carne-aberta e nervo-torto, com pasmo e inveja do mundo
sabio, fazendo as vezes canceiras à policia com sua intuição inimiga da sciencia do
fundo.
Eis o caso, fresquinho, tal qual nos chegou ao conhecimento:
Norberto, carreiro, sentido o corpo adoentado, cheio de dores de cabeça, recolheu-se
á casa disposto à entrar em remedios, porem consultando conhecidos, gente de sua
feição, entre ellas uma tal Eugenia e sua companheira, todos foram de parecer que a
doença era obra de mondongo e disseram sentenciosamente:
- É feitiço, home de Deus; você está enfeitiçado.
O misero sentiu candeias na vista ao ouvir tão peremptoria revelação e, cabisbaixo,
descoroçoado, julgou-se cahir das nuvens; e pediu, então, que o livraseem de
semelhante mal; que o puzessem bom. E condoidos metteram mão á empreitada de
curar o doente, que nesse mesmo dia foi submettido as amarguras de certas
beberagens e as acres exhalações de insupportaveis defumadores.
Resignadamente, cheio de fé, exhortado constantemente por Eugenia, Norberto ha
cerca de um mez supporta tudo quanto a estupidez de sua alma acceita das mãos
criminosas das suas curandeiras.
Ante-hontem alguns amigos foram-n'o visitar e encontrando magro, cadaverico,
bestificado, quizeram chamar um medico.
-Não; não! atalharam as de casa.
O que elle tem, doutor não cura.
E Eugenia, para dar todo o cunho de verdade á affirmativa, foi apressada buscar um
embrulho, e, apresentando-o aos circumstantes, disse:
- Vejam; isto com umas defumações que so está fazendo sahiu hontem à noite da
cabeça delle.
E desenrolando o panno deixou ver uma cobra de duas cabeças, uma ratazana morta,
unhas de bizouro, espinhas de peixe e outras miudezas.
- Isto é impossivel, disseram os amigos de Norberto.
172
- Impossivel! oras quaes! Não é com essa; bradaram as curandeiras. Todo mundo já
veio aqui ver e està ahi p'ra quem quizer examinar.
E Norberto, animalisado, garantiu por sua sua vez aos amigos que tudo era certo.
Aquelles bichos sahiram do seu corpo.
E ninguém ousou convencel-o do contrario.
Aqui fica estampado o caso em mais pormenores.
Quem duvidar da sciencia de Eugenia e suas companheiras, procure-as no Becco do
Monteiro, que é onde se esta passando este acontecimento tão maravilhoso.
A policia também pode ir.
A entrada lhe será franca, supomos.
(PCT, 11/07/1890).
São esses objetos que representam o mal ao qual a pessoa está acometida e que
por sua origem espiritual não poderiam ser tratados pelo médico comum, como asseveraram
as curandeiras.
Embora seja de uso corrente o reconhecimento de um domínio específico para a
atividade do pajé - ou seja, perturbações que só ele pode tratar - sua esfera de ação
não se limita a este domínio, mas estende-se sobre uma área muito ampla e nem
sempre incompatível com a esfera de ação dos médicos. (PACHECO, 2004, p. 152)
A questão toda era assim perpassada pela disputa entre conhecimentos e técnicas
diferentes. Ambos defendiam as suas habilidades ao mesmo tempo em que criticavam e
excluíam do outro o domínio dos meios de cura dos demais. Configurando assim o que até
hoje se conhece como a distinção entre os problemas do domínio do pajé e de domínio dos
médicos.
Contrariamente às ideias correntes no meio médico e, em geral, entre “as pessoas
esclarecidas”, ou seja, essencialmente nas classes superiores e numa parte das
classes médias, que veem na procura do curandeiro o resultado de uma “mentalidade
mágica” e de uma atração irracional pelo obscuro e o misterioso, parece que um dos
principais méritos que os membros das classes populares reconhecem ao curandeiro,
reside, principalmente, no fato de que ele explica ao doente a doença que ele sofre.
173
[...]
A fiscalização não tinha por objetivo promover a saúde, mas sim coibir abusos e
práticas ilegítimas. Seu objetivo não era portanto a sociedade em geral, mas a
própria medicina. Esse modelo transplantado para o Brasil não pôde levar a cabo
seus objetivos, quer pela própria inexistência de físicos e cirurgiões-mores no país,
quer pela ineficiência de uma estrutura administrativa fortemente centralizada pela
metrópole e destinada a exercer atividades num território de tão grandes dimensões.
Por ser frágil, fragmentaria e ocasional em suas ações, essa estrutura político-
administrativa foi incapaz de cumprir as funções punitivas a que se destinava e
deixou um campo aberto as práticas terapêuticas, forjadas no seio de outros
patrimônios culturais, legitimadas e tornadas hegemônicas pela ausência de um
saber médico oficial atuante na sociedade colonial. (MONTEIRO, 1985, p. 28-29)
Parés afirma que este modelo também é compatível também com as religiões afro-
brasileiras e com o catolicismo popular. É possível encaixar nesse complexo a pajelança, que
assume uma posição de destaque na sociedade do fim do século XIX, em que a desarticulação
do sistema escravista forçou parcela da população a se acumular em certos pontos da cidade,
nos cortiços, e casebres dos subúrbios, com poucas possibilidades de trabalho e renda e
principalmente sem nenhuma perspectiva de serviços públicos que pudessem garantir a
mínima qualidade de vida (dentre estes o serviço de saúde).
As disputas e conflitos em tono da ação terapêutica legítima estão no cerne das
perseguições religiosas de 1889 em diante já que o código criminal republicano passa a versar
diretamente sobre essa temática, formatando a partir de alguns artigos a perseguição que já
vinha sendo praticada desde muito tempo. Falar da pajelança no século XIX sempre é muito
complicado, as indefinições e generalizações presentes nos documentos são sempre um risco a
uma análise mais complexa e que possa extrair um número razoável de informações para
compor minimamente um quadro descritivo, do tipo etnográfico em que se possa afirmar do
que se tratava a pajelança.
175
reintegrar a sociedade ao seu estado de organização e de equilíbrio, tanto almejado pela elite
dominante, mas que nunca foi alcançado, como destaca Aldrin Figueiredo.
De fato, existia uma tensão constante entre os órgãos públicos que cuidavam da
saúde e da ordem civil e as pessoas que exerciam ou frequentava as sessões de
pajelança, mas isso de modo algum impedia que os pajés continuassem exercendo a
sua “função” e fossem muito procurados pelos clientes. As dificuldades existiam,
assim, tanto para os pajés como para aqueles que procuravam por seus trabalhos ou
ainda frequentavam seus consultórios. (FIGUEIREDO, 2003, p. 279, grifo meu).
A demanda pelos serviços dos pajés criava um ambiente de disputa pela ação
legitima sobre a doença, mas que estava ligado a um contexto mais amplo de reforma social e
urbana. Os termos desse conflito eram bem claros, de um lado a ação dos órgãos de higiene e
saúde pública – propondo uma organização racional e cientifica da sociedade que para atingir
o grau de civilizada deveria ser saneada – e de outro a ação corretiva de outros órgãos e
instituições (como a Igreja Católica) – propondo uma organização baseada em termos de
moral e bons costumes.
A partir das notícias dos jornais a pajelança não pode ser refletida unicamente pela
via do debate em torno das questões de higiene pública, o repretório de representações
negativas em torno dos pajés está muito mais ligado à moral e aos bons costumes. É possível
que no período posterior a 1910 esse cenário tenha sofrido modificações, mas até esse ano
fica claro que a pajelança é, sobretudo, um problema moral e não um problema de saúde
pública.
É preciso observar primeiramente o impacto do serviço sanitário do Estado,
organizado em 1904 pela lei nº 358, para só então ter em mente se as medidas do Código
Sanitário surtiram algum efeito no que tange a tentativa de controle sobre a ação dos pajés e
se o intervalo de tempo entre a proclamação da república e o fim da primeira década do século
XX tenha sido um período de transição entre esses tipos de justificativa.
Ao se falar de uma medicina “convencional” e de uma “alternativa” podemos
estar criando uma divisão que não poderia ser tão abrangente assim na virada do século XIX
para o XX. A cura por meio da religião está relacionada a aspectos culturais que organizam e
dão sentido a vida de indivíduos, é também uma relação entre linguagens e saberes distintos
como indica Maria Andréia Loyola.
[...] assim como a difusão da linguagem das sensações mórbidas obedece ao modo
de hierarquização dos diferentes saberes no campo da oferta de serviços de cura,
também as representações e que a clientela tem do corpo (em função das quais
percebe e classifica as doenças) intervém constantemente, na relação que mantém
com este sistema de ofertas terapêuticas: tanto na maneira como se cuida, quanto na
escolha que faz entre uma ou outra categoria de especialistas. (LOYOLA, 1984, p.
162).
177
Nesse sentido a escolha por um ou outro serviço terapêutico tem relação com as
noções de doença/cura que um indivíduo possui. A relação entre uma medicina convencional
e outra alternativa só é lógica quando para aqueles que reconhecem ambos os modelos
terapêuticos. Uma medicina só poderia ser alternativa se o indivíduo que a busca
reconhecesse fora dela outra prática terapêutica legítima.
No entanto, para alguns a medicina “alternativa” era aquela reconhecida como
eficaz na resolução dos problemas vividos o que não quer dizer necessariamente que a
medicina dita convencional era uma opção. Ao se falar do pajé como um agente religioso da
cura estou me referindo a um indivíduo que junto a outros partilham de um mesmo sistema de
crenças, ligados a uma teia cultural que creditava na pajelança ou na cura religiosa a
capacidade de resolver os problemas vividos.
Frente a todos esses infortúnios, que desestabilizavam a vida de muitas pessoas, a
oferta de serviços religiosos que prometiam reverter tais situações se encaixava perfeitamente
na demanda social. É por esse viés que Renato Ortiz analisa a umbanda na década de 1930.
É interessante notar que a formação da Umbanda segue as linhas traçadas pelas
mudanças sociais. Ao movimento de desagregação social corresponde um
desenvolvimento larvar da religião, enquanto que ao movimento de consolidação da
nova ordem social corresponde a organização corresponde a organização da nova
religião. [...] A umbanda não é uma religião do tipo messiânica, que tem uma origem
bem determinada na pessoa do messias, pelo contrário, ela é fruto das mudanças
sociais que se efetuam numa direção determinada. Ela exprime assim, através de seu
universo religioso, esse movimento de consolidação de uma sociedade urbano
industrial. (ORTIZ, 2005, p. 32).
As notícias dos jornais dão conta de que a pajelança não estava circunscrita aos
meios pobres da população. Certas narrativas que indicam para a relação entre indivíduos da
elite em busca dos pajés. O Jornal A Campanha em sua coluna Traças e Troças publicou
entre 1902 e 1903 uma série de textos sugerindo que o governador e pessoas ligadas a ele
178
tambor de mina (permitido) diminuísse e assim pajés pudessem oficiar seus rituais com um
risco menor de serem presos.
Manoel Zeferino dos Santos, ou simplesmente Manoel Teu Santo conseguiu, entre
1896 e 1898, seis licenças para realizar Tambor de Mina (conforme trabalhando em capítulo
anterior), mas que era conhecido por ser pajé. Os jornais pesquisados são unânimes em
criticar os rituais de Manoel Teu Santo, também chamado depreciativamente de grande
sacerdote, sumo pontífice, santíssimo, sumo sacerdote, taumaturgo e chefe supremo da
pajelança. Boa parte dos registros são notícias sobre a ocorrência de rituais bem como de suas
prisões – que teriam sido cerca de quatro entre os anos de 1895 e 1899, mas que
provavelmente foram mais, pois uma notícia de 1895 informa ser Manoel Teu Santo velho
conhecido da polícia – como descreve a notícia transcrita abaixo do Diário do Maranhão.
Hontem pelas onze horas da noite o sr. delegado de policia em louvavel atividade,
auxiliado pelos inspectores de quarteirão alferes Gastão Lopes Varella e Antonio
Furtado e praças do Piquete de Cavallaria, deu um cerco em casa do conhecido pagé
Manoel de tal vulgo <<Teu Santo>>; encontrando-o em adorações ao seu idolo fel-o
, recolher á cadeia.
Apprehendeu diversos utensilios do officio, os quaes foram levados para a chefatura
de policia.
Entre os obejctos aprehendidos destacam-se duas cartas, que dizem-nos vão ser
publicadas, e quantidade de rozarios de contas esquisitas e variadas cores.
Foi uma boa diligencia que recommenda o zelo da auctoridade e a actividade dos
seus auxiliares. (DMA, 20/05/1895)
Tambor, lata, cabaça, contas e reques eram os instrumentos tocados todos os dias
em rituais que se buscava a felicidade segundo o redator, que também afirma ser sua casa uma
nova “casa de minas ca da terra”. Esta ideia remete à origem africana da Casa das Minas que
180
provavelmente não era a mesma do grupo de Manoel Teu Santo por ser originário de São
Luís. Fica difícil de saber se o redator da notícia estava se referindo a uma relação entre a
Casa das Minas e Manoel Teu Santo ou indicando que havia diferenças claras entre um e
outro em termos de elementos rituais ou simbólicos.
Seria esta a razão pela qual Manoel Teu Santo era constantemente chamado de
pajé? Seria esta razão pela qual a Casa das Minas e a Casa de Nagô não aparecem nas páginas
policiais por lá não haver rituais de pajelança? Embora não seja possível responder com
precisão às perguntas, visto a limitação das fontes, fica claro que algo diferenciava os
terreiros. Enquanto Manoel Teu Santo prometia felicidade a Casa das Minas cultuava Santa
Bárbara e talvez resida nesse pequeno detalhe a razão de ser conhecido como pajé, mesmo
antes de obter licença para rituais de Tambor de Mina.
Seria exagero afirmar que a polícia conhecia uma distinção clara entre pajelança e
Tambor de Mina, (1889 – 1910) mas é perceptível a diferença nas relações entre polícia e
certos terreiros no período estudado. Não há registro nos jornais acerca de prisões relativas a
pessoas da Casa das Minas ou Casa de Nagô, que aparentemente realizavam seus rituais
dentro de certo padrão aceitável pelas autoridades policiais, buscando afastar-se dos outros
terreiros, tidos como de pajés.
Na notícia anterior Manoel Teu Santo não é apresentado como pajé, mas sim
como praticante do Tambor de Mina, visto como bandalheira e reunião de pessoas vadias,
que sofria da mesma repressão que a pajelança. Os instrumentos não fazem referência aos
rituais praticados pelos pajés, não se fala em maracá ou qualquer outro elemento que indica
para uma pajelança propriamente dita.
Em uma terceira notícia, Manoel Teu Santo não é caracterizado nem como
“mineiro” nem como pajé, mas ressalta-se a existência do maracá e pandeiro, instrumentos
que acompanham os rituais oficiados pelos pajés. Assim informava o jornal.
O summo Pontifice Manoel Teu Santo teve no sabbado ultimo motivo de serio
desgosto.
Com o maior desacato a sua alta personalidade, foi a sua residencia cercada pela
policia, sem que a diligencia tivesse sido por elle requisitada.
O conclave estava reunido. O maracá e o pandeiro troavam, animando a dansa, que
dentro do Vaticano de Manoel Teu Santo se desenvolvia com verdadeiro
enthusiasmo.
Com o espirito entregue aos folgares, mal pensava o Pontifice da rua do Passeio, que
tao grande disabor lhe estava sendo preparado.
Manoel Teu Santo, na frente dos dansantes puxava a fieira, á toada dos seus
instrumentos predilectos, quando a policia appareceu e pretubou-lhe o socego.
Resultado: foram todos recolhidos ao xadrez.
Consta que a diligencia foi occasionada por queixa que dera a mãe d'uma criança
que havia sido espancada na porta do templo, por uma das sacerdotisas. (PCT,
17/02/1896)
181
Na primeira matéria chama-se Manoel teu Santo de pajé sem que pareça que
realizava um ritual de pajelança, na segundo chamam o seu terreiro de casa de minas sem
falar da pajelança apenas informando sobre a presença de tambor e na terceira não nenhuma
referência direta ao modelo ritual daquele momento, a não ser a existência de maracás e
pandeiros, instrumentos característicos da pajelança, como informa Gustavo Pacheco.
Enquanto no tambor de mina há uma dança coletiva das diversas dançantes ou
filhas-de-santo, na pajelança o curador quase sempre dança só. No que diz respeito
ao acompanhamento musical, na mina nagô a orquestra consiste geralmente em um
par de tambores horizontais chamados batás ou abatás, um sino de metal chamado
ferro ou gã, e algumas cabaças (chocalhos feitos de cabaças envoltas por uma malha
de contas); na grande maioria dos terreiros maranhenses existe ainda um longo
tambor vertical chamado tambor da mata. Na mina jeje, também se usa gã e cabaças,
mas em lugar dos dois batás e do tambor da mata há um conjunto de três tambores
chamados hum (o grande), humpli (o do meio) e gumpli (o menor). Essas formações
instrumentais contrastam com a da pajelança “tradicional”, em que as curas não
eram acompanhadas com tambores, mas apenas com pequenos pandeiros, palmas e
às vezes cabaças, como até pouco tempo atrás se via em São Luís [...] (PACHECO,
2004, p. 51-52).
Manoel Teu Santo iniciou outras pessoas no Tambor de Mina, conforme tabela já
apresentada acima, o que não torna estranha a existência das referências ao tambor, mina e à
dança coletiva. São os elementos da pajelança que chamam atenção nesses casos indicando
para um Manoel Teu Santo pajé e para a existência de uma Mina que já tinha incorporado
elementos da pajelança desde o século XIX.
Contudo, embora os rituais com tambor realizados por curadores a partir do século
XX fora da capital maranhense (denominados aqui Tambor de Curador) e os rituais
de cura/pajé realizados em terreiros de mina e de umbanda de São Luís (conhecidos
por Brinquedo de Cura) apresentem elementos da mina, do terecô, da umbanda e
também da pajelança indígena ou cabocla, são bastante diferentes deles e diferem
também das “sessões de mesa branca” (espíritas) realizados em alguns terreiros.
Essa constatação tem contribuído também para reforçar a nossa hipótese sobre a
existência de uma pajelança de matriz africana, com características próprias, daí
porque apesar da possibilidade de sincretismo com aqueles outros sistemas, não
pode ser reduzida a nenhuma daquelas manifestações terapêutico-religiosas.
(FERRETTI, M., 2011, p. 94).
Ao que tudo indica Manoel Teu Santo se encaixa nessa tipologia proposta pela
antropóloga. Os elementos presentes nas matérias destacam um modelo que cruza duas
“matrizes” culturais diferentes nessa “pajelança de matriz africana” que engloba tanto as
sessões de pajelança quanto os rituais da mina, como é possível observar na matéria que
segue.
No templo em que pontificava o summo sacerdote Manoel Teu Santo, houve hontem
estrondosa ceremonia, comparecendo as sacerdotisas toda enfeitadas e prolongando-
se até tarde o batuque.
As musicas executdas na festa erão todas de composição do summo Pontifice
Manoel Teu Santo que também é compositor musical !!!...
182
da polícia, que em sua busca por pajés acabou vendo nele a possibilidade ou mesmo a
comprovação de seus rituais de pajelança.
Os textos do jornal A Campanha, citados anteriormente podem ter sido escritos a
partir de situações reais, não literalmente as que descrevem, mas de políticos ou pessoas
influentes da elite que mantinham relações com os pajés ou pais de santo de forma a
possibilitar uma margem ou espaço social para que se defendessem ou pudessem se afirmar
enquanto uma prática religiosa, que teriam continuidade apesar da ação policial.
Em todas as matérias já trabalhadas até aqui fica claro que o tom depreciativo é
constante e é preciso depurar essa fala sobre a os pajés para conseguir compreender um pouco
da pajelança em si, como tentei fazer acima a partir da relação entre esta e o Tambor de Mina.
Isso nem sempre é possível, pois algumas referências não tratam especificamente de uma
descrição de rituais ou indicação/denúncia da existência de pajés.
Os jornais noticiam casos de intriga entre vizinhos, acusações de roubos e
suspeitas de comportamentos inadequados em que a pajelança aparece como uma
característica negativa que é atribuída a quem é acusado. Chamar alguém de pajé era uma
ofensa grave e mesmo que os casos não tivessem relação alguma com rituais de pajelança o
pajé era aquele que enganava, sem escrúpulos ou capaz de roubar.
A pajelança também podia incluir toda a forma de manifestação religiosa afro-
brasileira, inclusive o Tambor de Mina como é possível ver nas matérias que seguem.
Na casa á rua de S. Pantaleão n. 199, está installada a nova sala de audiencia do
chefe supremo da pagelança n'esta cidade, o conhecido da policia -- Manoel teu
santo.
A affluencia de partes, muitas até desinteressadas, tem obrigado o Juiz a dar
audiencias, á noute, o que não é prohibida pelas leis da feitiçaria.
Hontem após os trabalhos, por alvitre lembrado pelo chefe -- Manoel teu santo --,
formou-se um samba grosso, no meio do qual, alli pelas tantas o pao rolou devéras,
sendo precisa intervenção do juiz para acalmar os animos.
O nosso informante ignora se depois do rôlo, ainda continuou a festança. (DMA,
05/12/1895).
O endereço acima citado é o da Casa das Minas e foi informado erroneamente por
alguém que fazia referência direta ao que estava acontecendo na Casa das Minas
confundindo-a com o local de culto de Manoel Teu Santo ou mesmo fazendo referência e
estes rituais praticados por este último, mas sem saber ao certo onde estava ocorrendo, já que
ambas as casas eram próximas.
O “samba grosso” ao qual faz referência tem relação com o divertimento e com os
sons característicos dos batuques e das reuniões festivas, vistos pelos jornais como um
problema do ponto de vista da organização urbana e social, visto que o samba (não com o
184
Houve um tratamento diferenciado, algo que não era comum. Provavelmente por
ter sido informado ao jornal que se tratava de uma festa de Santa Bárbara e que havia licença
da polícia o redator da notícia mudou o tom ao falar da festa que estava dentro da legalidade,
enquanto Manoel Teu Santo, chefe supremo da pajelança e já conhecido da polícia não
mereceria palavras diferenciadas das que já haviam sido antes publicadas.
Mas nesse caso o que chama atenção não são os ocorridos em si, pois pode ser
que tenha havido apenas uma confusão de endereços, uma denúncia com base em dados
errados, mas sim o fato da notícia não citar ou mesmo ignorar que no endereço tratava-se da
Casa das Minas e de uma comunidade religiosa e que as festas eram marcadas pelo som dos
tambores.
A correção pode ter sido feita por alguém de dentro da Casa das Minas, que
relatou inclusive o nome da chefe, para se defender da “acusação” veiculada pelo jornal e uma
tentativa de não chamar atenção das autoridades policiais para a possibilidade de ali
desenvolver-se rituais religiosos que viriam a ser considerados como pajelança.
É preciso lembrar que a pajelança era perseguida e que os pajés sofriam sanções
policias quando descobertos, como foi o caso de Amelia Rosa, já citado acima. Assim os
mineiros buscavam se distanciar dos pajés e da possibilidade de serem caracterizados como
tal.
Como notou Heraldo Maués, os pajés não reivindicam uma identidade "pajelística"
(Maués 1995). No entanto, um pajé pode tocar Mina usando tambores e cabaças ou
trabalhar sozinho em frente de uma mesa ou unicamente com o seu maracá. De
qualquer forma, ele será sempre identificado como "curador" e pajé pelos clientes
doentes; talvez isso seja o mais importante para ele. Como notou também Maués, a
denominação "pajelança" não é usada em zona rural (Maués, idem), mas sim na
circunvizinha dos terreiros de Mina que querem se distinguir um pouco dessa prática
de curador. Então, a posição de um com o outro não é simétrica: Mina, Umbanda,
Espiritismo e Catolicismo são ortodoxias que afirmam se submeter a autoridade de
uma tradição fixada, coletiva, particular e assim nomeada. Quanto ao pajé, a
ausência de evocação da autoridade de uma tradição reconhecida e nomeada, um
185
tanto pouco fixada, consciente ou não, indica que ele se posiciona no "mercado dos
bens simbólicos" (LAVELEYE, 2004, p. 116-117)
notícia deixa claro a existência da pajelança, negras minas ou confraria de feiticeiros eram
largamente conhecida na cidade.
O que os jornais faziam, na maior parte das vezes, era alertar a população e
chamar atenção da polícia, isso fica claro quando avisos são dados à polícia no fim de
matérias ou quando o redator da notícia sugere que havia necessidade de ação da chefatura de
polícia. Os jornais estavam atentos, tanto para avisar sobre a existência de pajés enquanto um
problema, quanto para comunicar a prisão dos mesmos, quase em tom comemorativo.
Official.
Governo do Estado.
Secretaria de Policia.
Registro Policial
Dias 1, 2 e 3.
A' ordem do sr. subdelegado de Policia do 1º districto foram recolhidas á cadeia as
mulheres Capitolina Muniz, Ignez Maria da Conceição, Antonia Francisca Nogueira,
Candida Soares dos Santos, Raymunda Pereira da Silva, Luiza Carolina Correia,
Maria Thereza de Aguiar e Francisca Maria d'Oliveira todas por terem sido
encontradas nos baixos do sobrado nº 9, á rua da Palma fazendo pagelança e
imoralidades.(DMA 05/09/1905)
Imagem 24 Realização de um ritual de pajelança nos baixos de um sobrado. (Desenho de Raiama Portela)
Trazem nos a noticia de que a policia fez a noute passada uma excellente colheita, lá
para o Cutim, agarrando os devotos de ambos os sexos que tanta credulidade
mostravam pela maravilhosa cura do grande chefe. Sobe a 12 o numero de tão
felizes mortaes.
Bem será que esta caça seja seguida de outras, e com o mesmo resultado.
Remettidos pelo subdelegado Pinto deram hoje entrada em S. João os 12 crentes,
com o chefe Silvino Jose de Britto, e 2 creanças.
Amanhã daremos outros pormenores. (DMA 10/12/1896)
Silvino Jose de Britto foi preso junto com 12 pessoas que participavam de um
ritual de cura. Na notícia o redator deixa claro que os pajés abusavam da credulidade das
pessoas, uma caracterização que acompanhou por muito tempo os pajés como ressalta
Antonio Evaldo Barros.
77
No Mapa 7 (página 156) é possível observar onde se localizavam o Cutim e o Anil, distritos afastados do
centro da cidade.
188
Em complemento á noticia, que hontem demos, da vinda dessa celebre gente, abaixo
inserimos o officio com que a auctoridade policia do Cutim a fez apresentar ao Dr.
Chefe.
Na policia foram recebidos, pertencentes a essa cafila de mulheres preguiçosas e
especuladoras, e de homens, que só se entregam a vida de ladroeira e devassidão,
estes objectos:
A policia deu prompto emprego a esses vadios, emprego que deve continuar, e
expôl-os aos olhos do povo para assim envergonhal-os. Ha muita rua a limpar,
largos a capinar, e pedras a carregar, emprego muito decente e diverso desse, a que
se entregam, e onde tem entrada todos os vícios.
É este officio, a que nos referimos, e pelo qual o leitor fará ideia da importancia dos
figuroes e figuronas, sacerdotiza, Papas etc.:
O turbante também poderia ser parte dos paramentos utilizados pelo pajé ao
receber determinado encantado de origem nobre, conhecidos no meio religioso afro-
maranhense como gentis78 afirma Mundicarmo Ferretti.
Os gentis recebidos no Tambor de Mina são, geralmente, ‘donos do poder’,
representantes da nobreza de países cristãos de ‘além-mar’ que têm alguma relação
com o Brasil Colônia. São, por exemplo, portugueses (colonizadores) como D.
Manuel e D. João ou franceses (fundadores da cidade de São Luís), como D. Luis.
Os caboclos mais antigos da Mina (ao contrário do que se diz os que são recebidos
no Candomblé de Caboclo), não tem origem indígena mas pertencem a grupos
combatidos ou não controlados pelos portugueses e pela igreja católica (como os
turcos ou mouros). Assim, o caboclo Guerreiro de Alexandria lutou contra os
cristãos no tempo das cruzadas e seu irmão Tabajara, além de ser filho de turco com
cigana, casou-se com uma índia paraguaia.
78
Segundo Mundicarmo Ferretti (2000, p. 73-74) as entidades espirituais do Tambor de Mina podem ser
divididos da seguinte forma:
Voduns e Orixás: entidades de origem africana e geralmente associados a santos católicos; Gentis: nobres,
geralmente europeus, as vezes confundidos com orixás e também associados a santos católicos; Gentilheiros:
fidalgos classificados como caboclos e que não pertencem a cristandade europeia; Caboclos: protetores
espirituais cuja origem não remete à África, porém podendo ter origem nobre, mas com vida terrena ligada a
grupos fora do mundo nobre; Índios e Selvagens: entidades de origem nativa brasileira e que não seguem as
normas do mundo civilizado; Meninas: entidade femininas e infantis que não participam dos rituais, sendo
homenageadas separadamente.
191
Não foi possível localizar o fim que era dado aos objetos apreendidos,
provavelmente eram destruídos ou jogados fora e não devolvidos aos donos, para dificultar a
reutilização em novos rituais. Em todo caso a cultura material dos terreiros do período não
demonstrava grande riqueza de objetos, muito embora o valor ritual e simbólico superasse o
seu valor material.
Imagem 26 Cultura material de um ritual de pajelança (Desenho de Raiama Portela)
Ele era conhecido ou chamado por seus filhos-de-santo de Dom Martins, provável
nome de sua entidade no momento do ritual. Outras três pessoas presas tiveram o nome de
suas entidades relatadas: O “preto Martiniano” que seria secretário (ou segunda pessoa na
hierarquia do grupo) de Pai César era conhecido por “Sinhásinha”, Thomaz Araujo era
chamado “Rei de Pombal” e “Filomena, mulata, gorda” era conhecida por “Don Floriano”.
Dos quatro nomes apenas Dom Floriano foi localizado em uma lista de entidades
espirituais de alguns terreiros de São Luís e do interior do Estado elaborada por Mundicarmo
Ferretti (2000). Dom Floriano, conhecido também por “Dom José Floriano” é entidade
conhecida na Casa de Nagô, mas também de outros terreiros. Como inúmeras entidades são
conhecidas na encantaria maranhense tais nomes podem vir a ser encontrados em algum
terreiro.
Novamente não fica bem claro se a matéria faz referência a um ritual do Tambor
de Mina, embora tudo indique que sim, a existência do maracá deixa aberto para hipóteses de
se tratar de um tipo de terreiro ou casa de culto em que se praticava ambas as linhas ou
“águas” como informa Mundicarmo Ferretti.
Nos terreiros de São Luís que se definem como mina, mas realizam Brinquedo de
Cura, a cura ou pajé é ali apresentada como uma obrigação contraída no passado
pelo pai ou mãe-de-santo (como ocorre no de Mãe Elzita). Nesses terreiros o
“Brinquedo de Cura” (ritual público festivo da cura/ pajé), embora tenha uma
estrutura bem diferente da encontrada no Tambor de Mina e independa da mina,
possui vários pontos de intercessão com ela, pois diversas entidades espirituais não-
africanas (caboclos e gentis/nobres) recebidas no Tambor de Mina passam na
Cura/Pajé ou “navegam nas duas águas” – salgada (mina) e doce (cura/pajé) – e às
vezes são muito conhecidas e procuradas como curadoras, como é o caso da cabocla
Mariana, filha do encantado conhecido por Rei da Turquia. (FERRETTI, M. 2011,
p. 97).
Refiro-me nesse caso não a entidades que navegam nas duas águas, mas aos
próprios terreiros ou comunidades que se organizaram em torno dos dois modelos rituais e de
crença, independente desta realidade ter ligação direta com a perseguição, que como afirmado
anteriormente, teria forçado alguns pajés a enveredarem pelo Tambor de Mina, mais como
uma necessidade de salvaguarda do culto do que como um movimento “natural” de
sincretismo.
193
Seria esse o caso de Manoel Teu Santo e Pai César? As fontes levam a pensar que
este tipo de sistema religioso tenha se desenvolvido derivado de um sistema africano em
contato com outras expressões de crenças religiosas – catolicismo e religiões indígenas – e
não necessariamente do Tambor de Mina Maranhense seja da Casa das Minas e de Nagô e
que provavelmente tenha se desenvolvido pari passu ao tambor de mina e semelhante a este
por resguardar certa raiz africana.
Por essa razão é que se destaca nos casos noticiados a característica de pajelança
ao mesmo tempo em que se fala sobre a presença dos negros mina em alguns casos, ligando a
essa etnia uma manifestação religiosa característica dos terreiros em geral. Assim são as
notícias que envolvem Pai Cesar.
Em plena sessão de pagelança foi surprehendida á noite passada no seu templo, á rua
da Mizericordia, o pagé Francisco Cesar, todo entregue aos seus altos mysterios e
com as vestes do rito.
Nú da cintura pra cima, nos braços e pescoço voltas de buzios, n'uma das mãos um
cachimbo comprido com o taquary envolto de missangas e na oitra um grande
maracá de cabaça envolvida em malhas presas com contas de varias cores, achava-se
D. Cesar pontificando, quando a policia foi perturbar-lhe as funcções.
Rodeavão-no, vestidos de camisolas as sacerdotisas, que com elles se preparavam
para a procissão que a seita effectuava n'essa noite, depois da ceremonia das flores.
A casa que fica quasi na esquina da rua de S. João foi cercada cautelosamente,
dirigindo a diligencia o sr. subdelegado Alfredo Silva, que zombando do poder de D.
Cesar e da devoção de suas sacerdotisas e fieis, não teve medo dos esconjuros e
amuletos do chefe-pagé.
Uns por devoção e poucos por curiosidade estavão assistindo os tregeitos do zambá
sem que a alguem ocorresse o receio de que fosse a festança perturbada pela policia,
quando esta, tomadas as providencias que assegurassem o exito da diligencia,
apresentou-se e tangeo sacerdotes, sacerdotidas e assistentes para a estação de S.
João.
Foi isso pelas onze horas da noite, mais ou menos.
Forão todos como estavão, sendo recolhidos pela auctoridade os maracás,
cachimbos, voltas, agulhetas, carteiras com cartão de visita e etc. etc.
O facto divulgou-se logo pela manhã e a garotagem promptificou-se a prestar as
honras aos crentes da pagelança, quando sahião da detenção.
Foi uma manhã cheia para a garotagem, a de hoje.
Subião a 25 pagés e seus devotos. (PCT, 10/12/1898)
Pai César, diferente de Manoel Teu Santo, não aparece entre a documentação de
licenças para Tambor de Mina pesquisada, mas as notícias de jornais apresentam pequenas
194
pistas de que seus rituais não se tratavam unicamente da pajelança do tipo cura, em que o pajé
ou curador oficia tudo só, ao som de seu maracá e de palmas ou pandeiros na extração de
feitiços de pessoas doentes, semelhante a um caso já relatado e muito menos que estava
restrito unicamente a este tipo ritual, já que poderia ser algo semelhante ao brinquedo de cura
ao mesmo tempo em que praticava o Tambor de Mina.
Esses terreiros possivelmente não atingiram o mesmo grau de organização da
Casa das Minas, Casa de Nagô e do Terreiro do Justino, que conseguiram ultrapassar cem
anos e que, por ter mantido os rituais de pajelança de maneira mais aberta e clara aos olhos da
polícia, tenham sofrido mais perseguições do que os terreiros de Mina, principalmente a partir
do final do século XIX quando o crescimento urbano aproximou as localidades e a ação da
polícia e de outros órgãos de controle social, como a Junta de Higiene, passaram a trabalhar
de forma mais sistemática, mesmo com os problemas da administração pública.
Nesse sentido é possível afirmar que a Casa das Minas e a Casa de Nagô tenham
sido menos perseguidas em relação aos demais terreiros e não que o Tambor de Mina, pelo
menos no período estudado, em si foi menos perseguido. De alguma forma os terreiros acima
citados conseguiram se articular de forma a não serem vistos como manifestações religiosas
próximas da pajelança e sim festividades, brincadeiras.
Essa seria uma das razões pelas quais ambas as Casas não aparecem nos
noticiários, somente em raras exceções e nunca ligada à pajelança, fora o caso em que foi
confundida como o local de culto de Manoel Teu Santo. É possível que tenha havido um
esforço também de não tornar as Casas públicas, buscando formas de contornar a presença
nos noticiários e a proximidade com a pajelança ou mesmo com os rituais de terreiros
“híbridos”, já que poderiam também ser consideradas como terreiros de pajé e sofrer as
mesmas sanções que a pajelança sofria.
Já os terreiros em que se realizava a pajelança ou rituais de “mina-pajé” tiveram o
seu funcionamento prejudicado justamente pela atenção que era dada pela polícia e pelo jornal
tornando pública a sua existência, muitas vezes por meio de denúncias, que tratavam de
indicar à polícia onde se localizavam.
É provável que tenham sido fundados casas e terreiros sincréticos nos quais era
efetivamente difícil saber onde começava e terminava o que se denominava
Pajelança ou Tambor de Mina, macumba/magia ou diversão. Entretanto, a
indistinção proposta pela imprensa consistia, antes de tudo, numa estratégia que
visava legitimar a perseguição policial a todas e quaisquer expressões cognoscitivas,
terapêuticas e religiosas ligadas especialmente aos mais pobres e negros, reduzindo-
as a práticas ilegais e imorais. (BARROS, 2009, p. 158)
195
Não era a simples introdução do tambor e dos rituais de mina que fariam com que
a polícia deixasse de perseguir, já que a pajelança não possuía uma definição muito precisa na
forma como era operada pelas autoridades, assim muitos mineiros foram presos acusados de
estar realizando rituais de pajelança.
O nome de Pai César aparece ligado a três endereços diferentes e essa mudança
poderia se uma forma de fugir da ação policial que ao prendê-lo acabava recolhendo também
os objetos rituais, prejudicando assim o funcionamento do culto o que influencia diretamente
na perpetuação dos terreiros, hipótese esta corroborada pelas poucas referências existentes no
espaço de tempo pesquisado.
A manutenção da pajelança, seja em seu formato mais próximo da cura, seja por
sua relação com o Tambor de Mina conseguiu avançar no tempo mesmo com toda a
perseguição. A demanda social pela cura e a obrigação em manter a religião criou um
ambiente propício para que a pajelança se difundisse ao mesmo tempo em que esbarrava na
ação da polícia.
196
Esse seria um ritual de cura em que uma criança era submetida ao tratamento de
algum problema de saúde ou espiritual. Todas as pessoas envolvidas foram presas e, depois
que saíssem da cadeia, voltariam a praticar a pajelança, segundo o jornal. Em outras palavras
o jornal deixava claro que os pajés eram em muitos casos reincidentes em suas atividades,
sendo que a prisão poderia representar um grande obstáculo, mas que era contornado para que
o maracá voltasse a ser usado novamente.
197
Mapa 9 Localização do Lugar “Furo” em relação ao centro da cidade de São Luís (Mapoteca APEM)
A posse dos dados e das informações necessárias seria uma etapa que, concluída
satisfatoriamente, tornaria fácil a escrita do trabalho em que as análises são apresentadas, mas
um novo esforço foi empreendido. Situar a pesquisa em um espaço acadêmico exigiu atenção
ao referencial teórico e metodológico para legitimar a cientificidade das considerações
apresentadas.
O primeiro capítulo deste trabalho resulta, sobretudo, de um esforço para situar ou
criar um espaço apto para que um trabalho de história fosse aceito e praticável dentro das
exigências das ciências sociais, sem que fosse necessário unicamente apelar para o discurso
de uma origem comum das áreas. Foi preciso ir além e mostrar como dentro de epistemes
específicas seria possível articular elementos para tornar possível ler um objeto da história
dentro das ciências sociais e ai a noção de ler antropologicamente os textos históricos,
trabalhada por Sahlins (2003) se mostrou adequada e capaz de imprimir uma identidade a
perspectiva aqui trabalhada.
No segundo capítulo, historiográfico, propriamente dito, o trabalho passa a se
dedicar necessariamente ao objeto ao retomar aquilo que já foi produzido sobre a temática não
somente para situar a fala sobre o objeto, mas também identificar possíveis elementos a serem
utilizados, discutidos e refutados. O contato com o que já foi produzido sobre o tema forneceu
ferramentas de análises úteis para compreensão de uma série de fatores que estão presentes no
trabalho e que merecem atenção por ser pertinente a análise pretendida.
O período entre 1889 e 1910 representa um momento de incertezas e indefinições
no plano político e econômico nacional. A adaptação a um novo modelo de governo e a
reorganização das instituições e órgãos administrativos foi fundamental para a elaboração de
um tipo de Brasil que viria a se constituir após a proclamação da República. Os autores são
unânimes em mostrar o quão intenso foi o período no que tange as mudanças, mas alguns
poucos preocupados em demonstrar que tais mudanças devem ser matizadas já que se
distribuíram irregularmente ao longo do espaço.
De certa forma este é o cenário que tenho em mente ao trabalhar questões
culturais no período republicano em que dois Brasis se encontram no ambiente urbano, de um
lado a tentativa de reforma social e urbana e do outro uma resistência às ações dos órgãos
públicos. Essa resistência, no entanto, nada tem relacionada com a intenção de resistir
racionalmente e arquitetadamente contra a ação do poder público, mas é uma resistência que
se constitui nas práticas cotidianas, na ação dos agentes culturais que nesse momento de
indefinições aproveitam para reelaborar suas formas de expressão, seja lúdica, religiosa ou
artística.
201
O Tambor de Mina ou a Pajelança são apenas dois, dos vários objetos regulados
por órgãos públicos que visavam construir um cenário urbano propicio ao desenvolvimento de
uma sociedade articulada a partir de um modelo que excluía as formas populares de
expressão. Por serem manifestações religiosas da população pobre e principalmente negra e
mestiça eram vistas ainda como exemplo de um tempo passado, do atraso e da barbárie que
impediam a civilização de se desenvolver.
A ação dos órgãos de higiene tinha na pajelança, enquanto exercício ilegal de
medicina, uma de suas inimigas. Mas não foi unicamente a ação dos ideais de higiene e saúde
pública que viriam a se constituir como combatentes dos pajés, um longo histórico de
perseguições, que também eram religiosas, ainda ecoavam nas ações do estado laico.
Dentro dessas formas de reinventar-se e de manter-se viva, seja pela demanda
social pelos serviços dos pajés, seja pelas obrigações religiosas e pela devoção, a Pajelança e
o Tambor de Mina, foram aos poucos dando lugar a uma religiosidade característica desse
espaço sincrético e mestiço. Ainda no século XIX é possível observar uma relação muito
próxima entre o Tambor de Mina e a Pajelança, que merece ser bem mais explorada, tendo em
vista que não são tão distantes assim uma da outra.
202
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206
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Pedidos de Licenças para Festas. (1889 - 1910).
Relações Enviadas ao Chefe de Polícia por Ofício de 2 de abril de 1835. Guarda Municipal
Permanente.
2. Periódicos:
Jornal Pacotilha.
Jornal Diário do Maranhão
Jornal A Campanha.
3. Legislação:
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia.
Código de Postura de São Luís- 1866
Código Criminal do Império – 1830
Constituição do Império do Brasil - 1824
Constituição da República do Brasil – 1891
Lei 358 de 1904 – Organiza o serviço sanitário do Estado.
4. Diversos:
Levantamento Censitário - 1872
Anuário Estatístico Brasileiro – 1908
Museu Afro-Digital (www.museuafro.ufma.br)
209
ANEXOS
210
ANEXO 1
ANEXO 2
ANEXO 3
TITULO III
894 Assim como com todo o cuidado, e vigilancia devemos procurar por todos os meios, a
conservação, e augmento de nossa Santa Fé Catholica, e Religião Christã, assim somos
obrigados a trabalhar por extingir os pecados, que por algum modo offendem a sua puresa, e
santidade, entre os quaes é usar de Arte Mágica. Por tanto, em satisfação de nosso Pastoral
Officio, ordemanos, e mandamos, que toda a pessoa que fizer alguma cousa conhecidamente
procedida de arte Magica, como é formar apparencias fantasticas, transmutações de corpos, e
vozes, que se oução, sem se ver quem falla, e outras cousas que excedem a efficacia das
cousas naturaes, incorrerá em pena de excomunhão maior ipso facto a nós reservada. E sendo
plebeo, em que caiba pena vil, será posto á porta da Sé em penitencia publica com uma
carocha na cabeça, e vela na mãe em um Domingo, ou dia Santo de guarda no tempo da Missa
Conventual, e será degredado para o lugar que parecer. E cahindo segunda vez fará a mesma
penintencia e sera degradado para algum lugar de Africa; e se for convencido terceira vez,
será degradado para galés pelo tempo que parecer, conforme a qualidade da culpa, e mais
circunstancias, que concorrerem.
895 E sendo a pessoa nobre, em que não caiba pena vil, pagará pela primeira vez, sendo
convencido, cincoenta cruzados; pela segunda cem; e pela terceira duzentos, e será degradado
para algum dos lugares de Africa. E se for Clerigo de Ordens Sacras, haverá a mesma pena
com suspensão de suas Ordens e será ultimamente privado de todos os Beneficios, e pensões
que tiver, e continuando nas taes culpas lhes serão accrescentadas as penas na fórma que
parecer conveniente.
TITULO IV
896 Fazer pacto com o Demonio contêm em si grave malicia, assim pela inimisade, que Deos
no principio do mundo poz entre elle, e os homens, como tambem porque é fazer concerto
com u inimigo de Deos. Por tanto ordenamos, e mandamos, que o que fizer pacto com o
Demonio, ou invocar para qualquer effeito que seja, ou usar de feitiçarias para mal, ou para
bem, principalmente se o fizercom pedras de Ara, Corporaes, e cousas sagradas, ou bentas, a
fim de legar, ou deslegar, conceber, mover, ou parir, ou para quaesquer outros effeitos bons
ou máos, incorrerá em excomunhão maior ipso facto. E sendo Clerigo o comprehendido em
alguma dessas cousas será pela primeira vez suspenso das Ordens, e degradado pelo tempo
que nos parecer, e condemnado em vinte cruzados para as despezas da Justiça, e accusador; e
sendo mais vezes comprehendido se lhe aggravarão as ditas penas conforme a qualidade da
pessoa, e circunstancias da culpa.
897 E se for leigo nobre, alem da dita pena de excommunhão, e dinheiro, será degredado pela
primeira vez por dous annos para fóra do Arcebispado; e sendo mais vezes comprehendido se
lhe agravarão as penas conforme sua culpa pedir. E sendo plebeo fará penitencia pública na
213
Igreja em um Domingo, ou dia Santo à Missa Conventual, e pagará dous mil reis, apllicados
na maneira sobredita. E não podendo pagar a pena pecuniaria se lhe commutará na corporal
que parece; e se reincidir na culpa, será degradado para S. Thomé, ou Benguella.
898 E nas mesmas penas de excommunhão, pecuniarias, e corporaes respectivamente,
incorrerão aquelles, que consultarem feiticeiros, ou usarem de feitiarias conhecidas por taes, e
tiverem ou lerem seus livros, ou de supertições, e advinhações, ou usarem de cartas de tocar,
ou fizerem quaesquer outras coisas semelhantes a estas: e os que apremderem, ou ensinarem
publica, ou secretamente todas, ou cada uma dellas.
TITULO V
899 Prohibimos estreitamente a todos os nossos subditos, que usem palavras, cartas de tocar,
e de cousas, que affeiçoem, e alienem os homens de suas mulheres, e as mulheres de seus
maridos, e de medicamentos, que tirem o juizo, ou consumão os corpos. E fazendo alguem o
contrario haverá as penas impostas no titulo precedente, provando-se que as taes cousas
tiveram effeito: porque em tal caso se fica concluido, que as taes palavras e obras procedem
de algum commercio, familiaridade, e pacto com o Demonio. Porem se por outra via se
mostrar, que as taes palavras se dizem, e as taes obras se fazem por engano, e fingimento sem
algum effeito, e só a fim de ganhar dinheiro, serão os delinquentes castigados arbitrariamente
com penas pecuniarias, e corporaes, de modo, que semelhantes desordens se atalhem.
900 E pelo mesmo modo serão castigado, e julgados os que advinharem cousas secretas, e
casos futuros, ainda que se faça juízo e levantem figuras pelos movimentos do Sol, Lua,
Estrellas, e quaesquer outras cousas, salvo se forem aquellas, que pedem do movimento dos
Ceos, e suas influencias, força dos elementos, e efficacia das cousas naturaes, como são bom,
ou máo tempo para as sementeiras, fructos, navegações, saude, doenças, e outros effetios
semelhantes, sem que se intromettão nos sucessos que dependem do livre alvedrio, e
consquencias delles: porque estas pertencem á judiciária, condemnada pelos Summos
Pontifices, que suppoem commercio, familiaridade, e pacto com o Demonio.
901 E porque destes delictos, ha outras desordens de algum modo a elles semelhantes, como
são: rezar á Lua, e ás Estrellas; fazer deprecações aos Santos com certas ceremonias para taes
effeitos, e ainda bons, assentando, que sahirão infaliveis; ter por certaes as cousas que se
representão em sonhos; fazer observações dos dias para bons, e máos sucesso, pelas vozes, e
encontro dos animaes, ou pelo cantar ou voar das aves, e outras, supertições semelhantes, as
quaes ainda que regularmante procedão de simplicidade, sempre tem algum genero de
malicia, e fraqueza na Religiã. Por tanto mandamos, que todos aquelles, que as ensinarem, e
usarem com escandalo, sejão castigados com as penas, que parecer a nossos Ministros. E
encarregamos muito aos Confessores reprehendão a este vicio nas Confissões, e os Pregadores
no pulpito, para que de todo o modo se extingua a este ressabio do gentilismo neste nosso
Arcebispado, no qual cada da entrão gentios de varias partes.
902 E ainda que Deos em sua Igreja deixou graça para curar a qual se póde achar não somente
nos jstos, mas ainda nos pecadores; com tudo, porque no modo com que se costuma usar desta
graça se podem introduzir perniciosas supertições, e peccaminosos abusos, estreitamente
prohibimos, sob pena de excomunhão maior ipso facto incurrenda, e de vinte cruzados, que
ninguem em nosso Acerbispado benza gente, gado, ou quaesquer animaes, nem use de
ensalmos, e palavras, ou de outra cousa para curar feridas, e doenças, ou levantar espinhela
sem por Nós ser primeiros examinao, e aprovado, e haver licença nossa por escripto. E sob a
214
mesma pena prohibimos, que nem-uma pessoa secular intente deitar Demonios fora dos
corpos humanos.
903 E quando as ditas feitiçarias, sortilegio, e supertisções envolverem manifestamente
heresia, ou apostasia na Fé, avisarão nossos ministros com todo o segredo, e recato aos
Inquisidores do Santo Officio, para que no dito Tribunal se ordene o que se ha de fazer, pois a
elle pertence o castigo deste crime. E mandamos a todos os parochos que ao menos tres vezes
cada anno leião este titulo a seus freguezes.
215
ANEXO 4.
ANEXO 5
Pedido de Licença Para Festa.
O pedido abaixo em nome de Osana Maria da Conceição (Mãe Hosana da Casa das Minas).
Este documento possui certo detalhamento sendo mais extenso em comparação aos demais.
217
Pedido de Licença Para Festa em nome de Francisco Xavier das Chagas. O pedido é bem
objetivo informando os dias e o endereço e para que solicita licença.
218
ANEXO 6
Calendário Ritual do Terreiro de Manoel Teu Santo em comparação aos calendários da Casa
das Minas e Casa de Nagô
Data do Período da Festa Calendário Casa de Nagô79 Calendário Casa das Minas80
Pedido (Solicitado para licença) (Festas Compreendidas no (Festas Compreendidas no
Período) Período)
24, 25, 26 de dezembro: Nochê
Dezembro: Natal. Naé (Natal)
31 de dezembro: Tóquens
21/ 12/ 25 de dezembro a 24 de 1e 2 de janeiro: Zomadônu (Ano
1896 janeiro Novo)
5, 6, 7 de janeiro: Doçu (Festa de
Reis)
19 e 20 de Janeiro: São 19 de janeiro: Davice (Queimação
Sebastião (Xapanã). de Palhinhas)
20 e 21 de janeiro Tói Acossi (S.
Sebastião; S. Lázaro e S. Roque).
21/ 06/ 23 ao dia 30 de junho (S. 24 de junho: S. João (Xangô e 23, 24, 25 de junho: Nochê Naé
1896 João, S. Pedro e S. Marçal) Badé) (S. João);
[1]
30 de junho: S. Pedro (Pedro 28, 29, 30 de junho: Badé. (S.
Angasso) Pedro e S.Marçal)
13 e 27 de maio; Maio: Festejo do Divino Maio: Festejo do Divino Espírito
Espírito Santo 81 Santo
12/ 06/ 6, 13, 17, 23, 24, 25, 29 e 24 de junho: S. João (Xangô e 11, 12 e 13 de junho: Poliboji (S.
1897 30 de junho [2] Badé) Antônio)
30 de junho: S. Pedro (Pedro 23, 24 e 25 de junho: Nochê Naé
Angasso) (S. João).
25 de julho [3] 2º Domingo de agosto: S. 2º Domingo de agosto:
Benedito Averequete (S. Benedito)
15 e 31 de agosto 25 de Agosto: S. Luís Rei de Julho: Tambor de Choro.
França.
8 e 19 de setembro [4]
15 e 31 de outubro [5] 27 de Setembro: Cosme e 27 de Setembro: Toçá e Tocé
Damião (S.Cosme e Damião).
1º de novembro [6]
24, 25 e 31 de dezembro Dezembro: Natal. 24, 25 e 26 de dezembro: Nochê
Naé (Natal)
21/ 12/ Janeiro: Festa de Reis e 1, 2 de janeiro: Zomadônu (Ano
Queimação de Palhinhas82 Novo)
79
Calendário baseado em: SANTOS (2000); CARDOSO JÚNIOR (2001), organiza a sua descrição do
calendário da Casa de Nagô a partir das efemérides católicas, não apresentado em todos os casos quais as
entidades afro-brasileiras que estão presentes na festa.
80
Calendário baseado em FERRETTI, S. (2009).
81
Como informado anteriormente, as festas para o Divino Espírito Santo não aparecem como Tambor de Mina
nos pedidos. Como se desconhece a estrutura ritual do terreiro de Manoel Teu Santo fica difícil afirmar como a
festa era organizada ali.
82
Cerimônia em que se desmonta o presépio e as folhas de murta que servem de adorno são queimadas.
219
ANEXO 7
Suposta fotografia de Manoel Teu Santo, publicada por Euclides Ferreira em um livro de sua
autoria, sem citar a origem da imagem reproduzida.
221
ANEXO 8
Quadro contendo informações sobre diversos pedidos de licença para Tambor de Mina. Os
mapas abaixo indicam os locais presentes nos pedidos de licença que puderam ser
identificados
83
A semelhança no nome das duas requerentes me faz interpretar que é a mesma pessoa, apenas com mudanças
ou erros na grafia do documento, o que era comum. Os locais dos pedidos são diferentes, razão pela qual foram
mantidas separadas.
84
Maria do Rosário e Manoel dos Santos Neto a apresentam como Maria Protestada, cuja localização do terreiro
não foi identificada. (SANTOS e SANTOS NETO, 1989, p. 36.)
222
nascimento em sua
residência. 31 de
dezembro; 1, 5, 6, 19
e 20 de janeiro.