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Laços de Compadrio
Laços de Compadrio
Laços de Compadrio
São Luís/MA
2017
ANTÔNIA DE CASTRO ANDRADE
São Luís/MA
2017
Ficha gerada por meio do SIGAA/Biblioteca com dados fornecidos pelo(a) autor(a).
Núcleo Integrado de Bibliotecas/UFMA
Aprovada em _________/___________/_________
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________________
Prof. Dr Ítalo Domingos Santirocchi (PPGHIS/UFMA, Orientador)
________________________________________________________
Profª Drª Regina Helena Martins de Faria (UFMA, co-orientadora)
___________________________________________________________
ProfªDrªPollyannaGouveia Mendonça Muniz (PPGHIS/ UFMA)
______________________________________________________________
Prof. Dr Luiz Alberto Alves Couceiro (PPGCSOC/UFMA)
Aos meus pais Luiza e Adilon Andrade (In
memorian), ainda é por e para vocês. Saudades!
AGRADECIMENTOS
Trabalho feito com a ajuda de tanta gente, pessoas generosas e amigas que fui
cultivando ao longo de minha vida e dessa escrita.
Aos meus irmãos e irmãs, meu porto seguro, refúgio nas horas de angústia e em quem
me espelho.
A Hortência de Souza Viegas, por trazer cores para a minha vida, obrigada minha flor!
A Ione Marly Arouche, pela amizade e por despertar em mima vontade de me tornar a
cada dia um ser humano melhor, você é linda!
A Dona Edite Mendes, minha mãe-postiça, pelo carinho, atenção e afeto, obrigada por
estar sempre de braços abertos para receber essa sua “amiga do interior” para uma
xícara de café!
Aos “amigos viajantes”: Lúcio Castro, Niobel Bessa, Vinícius Guimarães e Jacqueline
Mendes, melhores companhias de viagens não há....Amigos queridos.
A Inácio Araújo, amigo-irmão, pela paciência, pelas palavras de incentivo e por sempre
me ajudar a encontrar um norte quando me encontrava perdida nas leituras e escritas
desse trabalho...sem sua generosidade, meu amigo, não teria conseguido, muito
obrigada!
A Josy Cantanhede, amiga querida, que sempre me socorre nas minhas inúmeras
dúvidas sobre as regras da ABNT, obrigada pela paciência!
A Marcos Fernandes, por sua amizade e companheirismo, obrigada por tornar possível
algumas reflexões nesse trabalho.
A meu amigo Carlos Reis, pelo empréstimo de alguns materiais, valeu companheiro!
A Professora Drª Regina Faria, por aceitar enfrentar comigo esse terceiro round,
obrigada pela generosidade e elegância com que orientou esse trabalho, suas
ponderações foram importantíssimas para melhorar várias questões e lançar meu olhar
sobre outras....a ti todo meu respeito e admiração pela profissional que és. Obrigada!
A Professora Drª Antônia Motta, minha primeira orientadora, por me mostrar que era
possível falar sobre a escravidão no sul do Maranhão, obrigada!
Aos colegas de turma do mestrado 2015-2017, pelas manhãs e tardes cheias de muitas
discussões e café!
Aos companheiros de trabalho, IFMA- Campus São Raimundo das Mangabeiras, pela
compreensão e ajuda, sem vocês não teria chegado até aqui, obrigada!
Aos meus novos companheiros de trabalho, IFMA- Campus Itapecuru-Mirim, por ter
me liberado nesses últimos dias para terminar esse trabalho, meus sinceros
agradecimentos.
A Nila Micheles, pelas trocas de materiais e a Arlin Silveira, pela ajuda na leitura dos
documentos.
Ao senhor Gentil e Alexssandra Dias, pela gentileza de ter me recebido em sua casa no
período que andava coletando material em Carolina-MA.
Ao Pe. Cícero Cirqueira e a Fábia de Jesus Santos, por permitirem o meu acesso aos
livros de registros de batismos da Freguesia de São Pedro de Alcântara, obrigada!
Ao Pe. Egon Schuster da paróquia de São Bento em Pastos Bons, por ter gentilmente
cedido os livros de registros de batismos da Freguesia de São Bento de Postos Bons,
obrigada!
Estudo que tem por finalidade discutir como a escravidão negra foi vivenciada pela
sociedade sertaneja na região sul-maranhense, analisando, através de inventários e
registros de batismos, quais as estratégias que os escravizados utilizaram para criar
espaços de sociabilidade e solidariedade em um meio que lhe era tão hostil. É preciso se
(re) pensar as relações que foram gestadas dentro e fora das fazendo de gado no sertão
do Sul do Maranhão. Mais do que isso, é necessário construir uma narrativa que possa
dar visibilidade e mesmo dizibilidade a todos os agentes históricos que compunham
aquele espaço social.
A study that aims to discuss how black slavery was experienced by the Sertanean
society in the south of Maranhão, analyzing, through inventories and records of
baptisms, which strategies the enslaved used to create spaces of sociability and
solidarity in a medium which was so hostile to him. It is necessary to (re) think the
relationships that were born in and out of cattle ranching in the backlands of the south
of Maranhão. More than that, it is necessary to construct a narrative that can give
visibility and even readability to all the historical agents that composed that social
space.
Fonte: HTTP//maranhaodosul.blogspot.com/
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO______________________________________________________14
REFERÊNCIAS_____________________________________________________ 116
14
INTRODUÇÃO
1
Termo utilizado pelas novas tendências historiográficas sobre a escravidão para designar os africanos e
seus descendentes que viviam sob o regime escravista.
2
Entrevista realizada em 7 de maio de 2014, na casa paroquial na cidade de Loreto-Maranhão.
15
Estratégia nesse trabalho será usada com o sentido de estratagema, tática; (fig.) ardil; astúcia; manha.
3
16
por extensão, o Maranhão tornaram-se uma nova costa d`África, isto é, passaram de
mercado consumidor para mercado abastecedor de força de trabalho. Em 1850, o
governo brasileiro aprovou outra lei que colocou fim ao tráfico internacional de
escravizados, e cuidou que essa fosse cumprida, diferente do que ocorreu com a de
1831. Sem o abastecimento externo e vendendo parte de seu contingente de
trabalhadores escravizados para outras províncias, o Maranhão vivenciou a diminuição
dessa força de trabalho. O período foi marcado também pela aprovação de várias leis
que tinham como objetivo acabar de forma lenta e gradual com tão vergonhosa situação
no país. Em 1871, foi aprovada a conhecida Lei do Ventre Livre, que a partir daquela
data determinava que, todos os filhos de escravizadas nasceriam “livres”. Tais medidas
acabaram provocando alterações significativas nas relações sociais entre os próprios
cativos e entre estes e os libertos e os livres.
Diante da multiplicidade de caminhos teóricos e metodológicos que hoje se
apresenta ao fazer historiográfico, situei meu objeto de estudo nas trilhas sugeridas pela
Micro-História e pela História Social Inglesa, orientando-me especificamente pelos
trabalhos de Edward Palmer Thompson. Giovani Levi diz que a Micro-História e o que
ela propunha como método de análise, a variação de escala, vieram para dar respostas a
determinadas situações sociais que eram concretas. Tal perspectiva nos convida a fazer
uma nova leitura do social, a qual, até então, “tinha dificuldades para apreender as
durações médias ou curtas, e com mais razão ainda os acontecimentos; não sabia muito
o que fazer com os grupos restritos, recusava-se por definição a levar em conta o
indivíduo” (LEVI, 2000, p. 16).
É uma nova maneira de se compreender e de se fazer a história, que possibilitou
“[...] identificar não só o indivíduo, mas [...] a complexa rede de relações, a
multiplicidade dos espaços e dos tempos nos quais se inscreve” (LEVI, 2000, p. 17).
Tais relações ou inter-relações não estão determinadas por uma estrutura rígida que a
engessem, pelo contrário, são móveis e inseridas em um determinado contexto que está
em constante mutação e adaptação, possibilitando uma variedade de possíveis
abordagens de um único objeto.
Essa aproximação com o objeto ajuda a adensá-lo e a complexificá-lo, na
medida em que, para compreender um determinado acontecimento, é necessário inseri-
lo “[...] aos diferentes níveis de uma dinâmica histórica” (LEVI, 2000, p. 35). Para
tanto, é preciso que o historiador assuma uma postura de um verdadeiro detetive, atrás
de pistas e de indícios “[...] pouco notados ou desapercebidos dos detritos ou ‘refugos’
17
as pessoas neles envolvidas, uma vez que “as relações sociais são códigos ou idiomas
construídos por pessoas e constituindo uma realidade para elas” (GUDEMAN;
SCHWARTZ, 1988, p. 35-36).
Diante desses campos de análises, procuro identificar as possíveis
representações que o batismo cristão teria para os indivíduos que formavam o cotidiano
nas campinas do sertão de Pastos Bons, na segunda metade do século XIX; assim como
vislumbrar, através dos indícios encontrados na documentação disponível, aspectos que
pudessem dizer algo sobre as relações sociais que formaram aquela realidade.
Entendo que os laços que foram criados diante da pia batismal entre
escravizados, livres e libertos representassem um desses espaços, onde poderiam ser
relativizadas as regras existentes, senhores e escravizados estabelecendo relações que
foram para além das determinadas por suas condições jurídico-sociais.
Outro corpus documental utilizado por mim, como já citei, foram os inventários
post mortem. Estes constituem-se em uma importante fonte de pesquisa. De caráter
jurídico-civil, neles encontramos indícios que nos dão pistas sobre a vida econômica,
social e cultural das pessoas que viveram em um determinado contexto. Ajudam a
compreender como estava organizada a vida material e cultural de alguns indivíduos e
grupos sociais, pois contêm
Segundo Furtado (2009, p. 105), tendo por base as disposições contidas no Livro
de Provimento dos Órfãos e nas Ordenações Filipinas, os inventários eram formados
pelas seguintes partes:
20
4
Ver: FREYRE, 2001.
23
Em alguns documentos maridos chegam a dizer que a esposa ‘he a mais vil
negra que tinha na sua cozinha’ [Há ainda] queixas de esposas que dizem que
o marido tratava-a como [...] sua vil escrava, dando-lhe muitos coyses [...]
não tratava como Sua Companheira e igual senão como peyor e vil escrava,
tratando-a de palavras indecentes e indecorozas (SILVA , 2002, p.34).
Para aquela sociedade, ser escravizado não significa ser apenas um fiel serviçal,
é também sinônimo de baixeza, de algo desprezível. Ser chamada de “escrava” ou
receber o mesmo tratamento dado a esta era inadmissível para aquelas que tinham um
nome ou/e uma posição a zelar.
A autora ainda destaca a preocupação de alguns testadores em “mandar rezar
várias capelas de missas pelas almas dos escravos falecidos” (SILVA, 2002, p.19).
Descortina-se, dessa forma, um mundo cheio de relações complexas; pois ao admitir
que o escravizado tinha uma alma, implicitamente, também se reconhecia a humanidade
desse indivíduo, o qual no inventário dos bens podia aparecer apenas como mais uma
propriedade que compunha a herança de seu senhor. O escravizado era a um só tempo
coisa e pessoa.
A consciência desse fato não se restringe ao olhar sobre os homens e as
mulheres do século XVIII. A elite maranhense da primeira metade do século XIX
também percebeu essa dupla e contraditória face daqueles(as) encarregados(as) de seu
sustento (escravizados). Em seus escritos, Garcia de Abranches, segundo Faria R.(2001,
p.82), “deixa perceber que não vê os escravos como máquinas para o trabalho agrícola
ou seres bestiais capazes de suportar o trabalho sob o rigor do clima equatorial. Tem
deles outra representação: são seres humanos submetidos a péssimas condições de vida
e de trabalho”.
Pensando as relações escravistas nessa perspectiva teórico-metodológica, Souza
(2002) ressalta a importância das práticas familiares como elemento definidor não só da
identidade do escravizado, mas também como lugares onde o cativo pudesse formar
laços de solidariedades, de afetividades. Lugares de autonomia, de liberdade, como diria
Pereira (2001).
24
ser pai ou mãe, filho ou filha, tio, sobrinho, primo, marido ou mulher,
afilhado ou afilhada, são os diversos tipos de parentesco que representava a
possibilidade de construção dessa identidade [...] passando a ser também
associado/identificado por meio de seus parentes, entes queridos e não
somente através da figura maior da condição jurídica a que lhe era imposta,
o seu senhor.
5
Ver: ANDRADE 2003 e 2005.
25
Busquei realizar uma análise micro, mas sem perder de vista uma gama de
outras relações que juntas constituíram aquela realidade social, pois, como assinala
Ginzburg, “[...] toda configuração social é o resultado da interação de incontáveis
estratégias individuais, um emaranhado do que somente a observação próxima
possibilite reconstruir” (GINZGURG, 2010, p. 277). Assim, tentei fazer uma história do
“revés do chão” (LEVI, 2000), dando visibilidade e dizibilidade à população
escravizada do Sul do Maranhão, ausente e silenciada da produção historiográfica local,
cujas relações podem ter sido construídas em vínculos pautados na coação cotidiana,
mas também podem ter surgido “[...] do desejo e do afeto [...]” (MOTA, 2004, p. 72).
Na tentativa de pensar nas várias formas que aqueles sujeitos históricos teriam
para construir suas relações, cito o batismo da menina Petronila, que teve como
padrinho Antonio [ileg] Costa Lima, dono de sua mãe, Sebastiana (LRB,6 1875-78, fl.
47v). Com o rito, o senhor se tornou “compadre de alma” de sua escravizada. Com
certeza houve expectativas bem particulares de ambas as partes desse contrato místico.
Antonio poderia estar reforçando uma relação de caráter paternalista com suas cativas;
Sebastiana talvez estivesse buscando um possível amparo para si e para sua filha.
Com práticas iguais a essa, escravizados e senhores criaram “espaços de
sociabilidade e construíram formas de visibilidade e dizibilidade”, as quais
ultrapassavam a imagem que por muito tempo pautou as discussões sobre o tema: de um
lado estava o escravizado (propriedade) e do outro o senhor (proprietário), imersos e
determinados por um sistema de produção (ANDRADE, 2005, p. 10). Lembro,
novamente com Thompson (1981, p. 126), que
A experiência humana, portanto, expressa o que há de mais vivo na história.
É a presença de homens e mulheres retomados como sujeitos. Construtores
do devir e do presente. Não são as estruturas que constroem a história. São as
pessoas carregadas de experiência.
6
Doravante utilizarei as iniciais LRB para referir-me aos Livros de Registro de Batismo das Freguesias de
São Bento de Pastos Bons e de São Pedro de Alcântara
26
fazendas espalhadas pelas margens dos diversos rios que cortavam o Sul da província
do Maranhão. Eram homens, mulheres e crianças que se moveram, se misturaram,
lutaram e negociaram cotidianamente para sobreviver a um meio que insistia em torná-
los invisíveis e mudos. Mas eles teimosamente resistiram.
No segundo capítulo, apoiada em artigos, monografias, dissertações e livros, fiz
um balanço historiográfico sobre as relações de compadrio que envolviam pessoas
escravizadas, libertas e livres. Utilizei trabalhos que fazem também uma análise
funcional do rito e mostram como o compadrio funcionava como um meio para criar ou
mesmo ampliar redes de clientelismo, bem como para atender a necessidade de se criar
“aliança para cima”, tendo os padrinhos uma posição socioeconômica superior ao da
família de seu afilhado. Recorri a textos como o de Arantes (1994), o qual destaca como
o verdadeiro significado do rito, o seu sentido místico. Para esse autor, os laços criados
diante da pia batismal poderiam ser utilizados para ressignificar relações sociais já
existentes, mas o que melhor o definia era seu sentido religioso. Abordei, ainda, estudos
que seguem a linha de análise de Gudeman e Schwartz, já citados anteriormente.
Nesse capítulo procurei ainda, identificar as tendências de escolhas de padrinhos
entre a população escravizada, em estudos sobre diferentes regiões e períodos históricos
(nos tempos Colonial e no Império) e as influências internas e externas à propriedade
escravista, que estariam por trás dessas escolhas. Tais estudos permitem-nos
compreender de que forma homens e mulheres escravizados foram criando, por meio do
batismo cristão, estratégias de resistência e também de adaptação ao meio tão hostil em
que viviam.
No terceiro e último capítulo, analisei as informações coletadas nos livros de
registros de batismos das Freguesias de São Bento de Pastos Bons e São Pedro de
Alcântara, entre os anos de 1854 e 1888. Analisei batismos tanto de crianças
escravizadas, quanto de filhos de escravizados nascidos após a Lei do Ventre Livre
(1871), os chamados ingênuos, e também dos filhos de livres que tinham escravizados
como padrinhos e madrinhas.Tais análises foram feitas no intuito de dizer algo sobre as
relações construídas pelos sujeitos escravizados com os livres e os libertos, dentro e fora
das fazendas espalhadas no cerrado do sul do Maranhão, no Dezenove. Dialogando com
a documentação e a bibliografia disponíveis, teci algumas considerações sobre os
significados que o batismo teria para os indivíduos que dele participavam. Buscando
ainda, compreender quais os fatores que poderiam influenciar na hora da escolha dos
27
padrinhos e madrinhas das crianças que eram levadas à pia batismal das freguesias em
foco.
28
Sabemos que as práticas sociais ocorrem dentro de um espaço, o qual “[...] surge
como elemento crucial da estrutura da sociedade” (ROCHA, 2014, p. 28). Precisamos
atentar que a noção de espaço é bem mais abstrata que a de lugar. Sena Filho (2009,
p.52) nos diz que o lugar seria “o espaço preenchido por valores/relações sociais”.
Partindo dessa compreensão, lanço meu olhar para as relações de compadrio
envolvendo sujeitos escravizados, ocorridas na região Sul da província do Maranhão, o
chamado sertão de Pastos Bons. Cenário preenchido e (re)significado pelas ações
socioculturais dos sujeitos que lá viveram, constituindo-o como um espaço vivo e
pulsante, caracterizado“[...] pelas operações que o orienta[vam], o circunstancia[vam], o
temporaliza[vam] e o leva[vam] a funcionar em unidade polivalente de programas
conflituais ou de proximidades contratuais (CERTEAU, 1998, p.202)”.
Segundo Santos (2010, p.32), a palavra sertão já era utilizada tanto na África
quanto em Portugal para identificar lugares que estavam localizados “no centro ou no
meio da terra”, longe da margem, do litoral. Morais (1823, p.673) o define como sendo
não só “o interior, o coração das terras”, mas como algo que se opõe “ao marítimo, e a
costa”. Castanheira (2012, p.2) analisa a categoria sertão por meio da dicotomia entre
dois opostos; a primeira seria o sertão, que representaria a parte do Brasil
“desconhecida, bárbara e atrasada”, aquela que ficava dentro, nas matas do território
brasileiro; e a segunda, representada pelo litoral, tido como o lugar da civilização, do
conhecido e do moderno.
Partindo da ideia de que os lugares e espaços são resultados também dos relatos
que se fazem sobre eles (CERTEAU, 1998, p.207), perguntei-me: como esse lugar
chamado de sertão de Pastos Bons tem sido visto na literatura que se volta para essa
temática?
Para responder a essa questão, comecei com os escritos deixados pelo militar
português Francisco de Paula Ribeiro, que viveu na Capitania do Maranhão nas
primeiras décadas do Oitocentos, e assim, delimitou o espaço geográfico que
denominou sertão dos Pastos Bons como o que compreenderia
29
Atendendo aos objetivos traçados pelo governo português para colonizar áreas
ainda fora de seu alcance, esse militar, na apreciação de Martins (2002, p. 10),
esteve envolvido no processo de fundação de muitas das povoações do
centro-sul da Maranhão (hoje sedes municipais), de abertura de estradas para
facilitar o contato entre o litoral e o sertão, além de estudar sistematicamente
a Capitania, especialmente a região sertaneja, de modo a identificar-lhe as
potencialidades e indicar possibilidades de aproveitamento racional de suas
riquezas.
Seus relatos eram referência para quem quisesse desbravar aquela região e para
quem a estudou e a estuda ainda hoje. Neles há descrições de elementos que
compunham a paisagem geográfica e social do sertão maranhense porque, ao percorrê-
lo,
[...] registrava as condições geográficas do território, sua ocupação,
condições e modo de vida dos habitantes-colonos e índios- avaliava as
potencialidades da região. A cada dia anotava distância e local percorridos,
especificando localização e aspecto dos terrenos, rios, riachos, serras, morros,
fazendas e povoações, que ficaram posteriormente registrados em seu Roteiro
(FRANKLIN; CARVALHO, 2007, p. 61).
Até o ano de 1750 (250 anos após a descoberta do Brasil) o imenso território
colonial brasileiro só contava com oito dioceses. Isso mostra que a escassez
de unidades episcopais no Brasil e o precário controle do Estado sobre as
Paróquias dispersas em razão do isolamento dessas células religiosas fizeram
da Igreja Colonial uma instituição muito solta e de débil controle das
hierarquias eclesiásticas existentes. Tudo era longe e de difícil acesso. É
dentro desse contexto histórico que surgem também as Igrejas do Norte do
Brasil, nas Capitanias do Maranhão e do Pará no século XVII, marco
temporal de um estilo especial de ser Igreja no Norte.
[...] o motivo provinha de ter vindo ali parar em 1810 um tal Francisco José
Pinto de Magalhães, que com seu negócio de tabaco de fumo e solas
costumava navegar em um pequeno barco do Porto Real do Pontal para a
cidade do Pará, e vendo nestas margens ditas, em que até então nunca
7
São, respectivamente, as atuais cidades de Balsas, Riachão e Carolina. Novas povoações continuaram
surgindo. A denominação Carolina coube, no início do século XIX, a uma povoação situada na antiga
Capitania / Província / Estado de Goiás. Por isso, a que pertence ao Maranhão foi chamada durante
algum tempo como a nova Carolina. A disputa pelo nome é parte da disputa territorial entre as então
províncias do Maranhão e de Goiás, resolvida em 1854. Ver MARQUES, 2008, p. 307.
31
8
Ver: MELO, 2010.
32
a região de Pastos Bons. O termo “foi então uma expressão geográfica, uma
denominação regional geral, dada pelos ocupantes à imensa extensão de campos abertos
para o ocidente [...]” (CARVALHO, 2011, p. 96-97).
Ela descreve o processo de ocupação e suas consequências para a população
autóctone, classificando de cruéis os métodos empregados na conquista do território.
Sobre os amanajós, entre outros povos, afirma que foram dizimados para dar espaço às
pastagens para a criação do gado: “[...] desapareceram da face da terra sem nela
deixarem mais que ossos – quando não carbonizados nos incêndios das ocas, e a
recordação da sua ingênita bondade” (CARVALHO, 2011, p.98).
Não foi só contra a sanha do conquistador em relação aos indígenas que a autora
se voltou. Denunciou, também, o tratamento que os senhores/fazendeiros do sul
maranhense davam aos seus escravizados,
Para esse lugar escuso, escondido pela mata - onde o negro morria dilacerado
pelo açoite ou quebrada a cabeça sem se ouvir fora um grito de dor e dentro
uma palavra de clemência ou de justiça- afluiu muita gente timorata em
1839-40, tempo da revolta dos bem-te-vis ou liberais do Maranhão
(CARVALHO, 2011, p. 138).
engenhos, sendo usado também como transporte e força motriz. Atendia “à crescente
demanda de carne por parte da região aurífera de Minas Gerais” (CABRAL, 2008, p.
24). Era, portanto, uma atividade econômica subsidiária à produção de açúcar.
Retomo, pois à questão, sobre como é visto o sertão. Muitos autores têm
buscado identificar que parte do território brasileiro é assim denominada, o que a
caracteriza, mas, principalmente, que relações sociais foram constituídas nesse espaço.
Os estudos costumam apresentá-lo polissêmico, multiforme, com uma variedade de
sentidos e formas, algo móvel, mutável, real e também imaginário, que define e também
é definido pelas pessoas que com ele entram em contato. Não há um conceito fechado
para a categoria sertão; há relatos, há experiências socioculturais que o
constroem/definem/dizem (CERTEAU,1998, p. 199).
Melo (2010, p.42), em estudo sobre o sertão do Maranhão no começo do século
XX, sugere que ele deve ser pensado
[...] a partir de suas múltiplas dimensões simbólicas e culturais, desfiando as
redes de poder que configuram um cenário marcado por disputas, confrontos
e negociações. Trata-se de retratar o sertão como um grande caleidoscópio,
agenciador de falas, de memórias, de textos, de leituras, de vozes que
gravitam em linhas de fuga, e como tal estão em constante permutação e
transitoriedade.
Durante algum tempo se acreditou que o trabalho escravo fora incompatível com
as tarefas realizadas nas fazendas de gado espalhadas de norte a sul do Brasil durante o
Período Colonial e o Império. Tal certeza passou a ser questionada por historiadores
como Mott (2010) e Gorender (1985), entre outros. O primeiro, a partir de dados
levantados em duas listas nominais de habitantes feitas no Brasil, em 1697 e em 1762,
concluiu que
levantada por Gorender em 1985. 9 Faria R.(1998) em seu trabalho também havia
identificado indícios que apontavam para certo ‘engajamento’ de trabalhadores
escravizados nas atividades ligadas à pecuária no Maranhão. Essa autora nos diz que
9
Analisando os escritos deixados por Francisco de Paula Ribeiro esse autor, concluiu que, no sertão do sul
do Maranhão, “o caráter escravista da pecuária já aparece atenuado, mas, ainda sim, persistente no regime
de trabalho” (Apud GORENDER, 1985. p. 417).
37
Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse.
Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a
roupa, o defeito físico, se o tinha o bairro por onde andava e a gratificação.
Quando não vinha a quantia, vinha a promessa: “gratificar-se-á
generosamente”, ou “receberá uma boa gratificação”. Muita vez o anuncio
trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalço, correndo,
vara ao ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com todo o rigor da lei
contra a quem o acoutasse (ASSIS, 1906, p.2).
morosidade na realização das tarefas e outros comportamentos, que aos olhos da classe
senhorial eram exemplos de “péssima conduta”. Tais comportamentos, para Pereira
(2011, p.74), representariam “[...] em última instância frações de tempo de liberdade,
que do ponto de vista das autoridades poderiam significar vadiagem ou rebeldia em
potencial [...]”.
As relações entre senhores e escravizados eram marcadas por conflitos, é certo,
mas também por negociações cotidianas, como defendem Reis e Silva (1989). No caso
da liberdade, esta poderia ser conseguida com ações extremas como a fuga, mas outros
meios foram utilizados. No sertão do Maranhão houve escravizados que conseguiram
obter de seus senhores a alforria. As cartas de alforrias eram obtidas, segundo
Ribeiro(1990, p.112),de quatro maneiras:
[...] que os escravos fossem obedientes, não fugissem, não respondessem aos
maus tratos e aos abusos de seus senhores, não furtassem, não bebessem e
não brigassem na rua, ou com brancos, ou com outros escravos, ou libertos,
para resolverem seus problemas, quer fossem rixas amorosas ou questões de
outra ordem. E que não andassem [pelas ruas] fora de horário permitido, não
portassem armas sem a devida autorização, e além do mais, não falassem
alterado com as crianças brancas [...](PEREIRA, 2001, p.69).
41
Eis o veredito do juiz: “A escrava Vicencia, foi alforriada por seu senõr, o
inventariado; proceda-se a partilha dos bens do cazal. Com exclusão da referida liberta a
quem se expedirá nova carta, visto ter desaparecido a que lhe foi passada por seu senõr”
(Inventário post-mortem de Eufrásio Pinheiro Noleto, 1880, fl. 48). Não foi possível
saber se Vicencia voltou depois de ter sido proferida a sentença que a protegia da
reescravização. O certo é que preferiu aguardar o desfecho longe das garras de sua ex-
senhora, fugindo tão logo foi divulgada a morte do seu ex-senhor. O fato de ter criado
todos os filhos dos seus proprietários não lhe garantira que sua liberdade estivesse
assegurada.
Era uma liberdade precarizada que vários libertos viviam; o medo de uma
reescravização era constante. Estratégias eram criadas cotidianamente pelos libertos
para livrarem-se desse perigo que lhes rondava. Chalhoub, no livro A força da
escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista, narra a história de vários ex-
escravizados que tiveram sua condição jurídica contestada e viram-se ameaçados a
voltarem à condição anterior. Nas palavras desse autor,
Mesmo tendo sua carta de alforria nas mãos, vários libertos lutaram para ter a
liberdade reconhecida. A luta era cotidiana, agora não mais para conseguir ser livre, mas
para assegurar sua liberdade diante de uma sociedade marcada pela ideologia da
escravidão.10
10
Ver: VAINFAS, 1986.
11
Ver: CABRAL, 2008.
44
A Lei de Ventre Livre ou Lei Rio Branco, como também ficou conhecida, não
versava apenas sobre a liberdade dos filhos das escravizadas, nascidos depois de sua
promulgação. Era mais complexa. Conrad a resume.
Para Mendonça (1999) a Lei de 28 de setembro de 1871 não tinha como única
finalidade acabar com a escravidão. Nas palavras do autor, “Ao contrário, essa lei, de
forma bastante marcante, procurava também delimitar e compor as relações sociais na
‘sociedade livre’ (p. 45)”.
Para Fraga Filho (2006, p.49),
Este autor destaca, portanto, o papel ativo que os escravizados tiveram nas ações
que o governo brasileiro tomou para pôr fim à escravidão, demonstrando que eles não
eram passivos e que lutavam cotidianamente para mudarem sua situação. Segundo
Albuquerque e Fraga Filho (2006, p.175)
Voltando a questão da liberdade dos filhos das escravizadas, a Lei de 1871 dava
ao senhor a opção de receber uma indenização do Estado em troca da liberdade do
recém-nascido ou de ficar com ele até que alcance a maioridade. Muitos, se não a
maioria, ficaram com a segunda opção. Por isso, para Conrad (1989, p.129), essa Lei
[...] não trouxe qualquer mudança imediata nas vidas da maioria dos escravos
e nem mesmo as crianças cuja liberdade fora garantida podiam obter
qualquer benefício prático de seu status até alcançarem sua maioridade legal.
Quando esse dia chegasse, conforme os defensores da lei tinham
argumentado, criados e treinados num ambiente de escravidão, os ingênuos
seriam autênticos escravos por disposição; mesmo se não pela lei
encontrando-se mal preparados e pouco motivados por muito mais do que
uma vida de trabalho e de servidão nas lavouras dos donos de suas mães.
[...]obter êxito no ofício para o qual, por especial privilégio, foi escolhido,
dessa maneira aspirar à elevação da hierarquia dos escravos e, um dia, talvez,
comprar sua liberdade, ou fracassar e ser repelido para o meio dos
trabalhadores braçais sem qualificação, obrigados a uma vida de trabalho
extremamente dura (MATTOSO, 2001, p.131).
Também tratando sobre a condição das “crianças escravas, e das crianças dos
escravos” na cidade do Rio de Janeiro, Florentino e Góes (2010) descrevem como se
dava o aprendizado delas para a condição de trabalhadores. Nos primeiros anos de vida,
começavam a ser inseridas em atividades moderadas que se intensificavam depois.
O aprendizado da criança se refletia no preço que alcançava. Por volta dos
quatro anos, o mercado ainda pagava uma aposta contra a altíssima
mortalidade infantil. Mas ao iniciar-se no servir, lavar, passar, engomar,
remendar roupas, reparar sapatos, trabalhar em madeira, pastorear e mesmo
em tarefas próprias do eito, o preço crescia. O mercado valorava as
habilidades que aos poucos se afirmavam [...] Aprendia um ofício e a ser
escravo: o trabalho era o campo privilegiado da pedagogia senhorial
[...](FLORENTINO; GÓES, 2010, p. 184).
47
Não se nascia sabendo o que era ser escravizado, aprendia-se. E a lida diária
junto com seus genitores era a melhor escola, onde se aprendia a pedagogia de como
servir. A vida dos ingênuos parece não ter sido tão diferente das crianças nascidas
escravizadas. Teixeira (2010, p.59), em seu estudo sobre os filhos de escravizadas em
propriedade, cuja produção era destinada à subsistência, em Mariana (MG), entre os
anos de 1850-1888, ressalta que os ingênuos nascidos e criados dentro das senzalas,
junto com suas mães, “foram mantidos em quase sua totalidade na mesma condição
servil dos cativos de fato”. Nessas áreas, assim como nas propriedades criatórias do Sul
do Maranhão, distantes dos grandes centros produtores que exigiam um número cada
vez maior de trabalhadores escravizados, os filhos de escravizadas nascidos após a Lei
de 1871 devem ter sido aproveitados compulsoriamente como mão de obra.
Numa obra publicada a primeira vez em 1883, Nabuco (2012, p.61-62)
comentou os efeitos práticos dessa Lei sobre a vida daquelas crianças. Para ele, a
única parte definitiva e final [foi o] princípio: ‘Ninguém mais nasce escravo’.
Tudo o mais, ou foi necessariamente transitório, como a entrega desses
mesmos ingênuos ao cativeiro até aos vinte e um anos; ou incompleto, como
o sistema de resgate forçado; ou absurdo, como o direito do senhor da
escrava à indenização de uma apólice de 600$000 pela criança de oito anos
que não deixou morrer; ou injusto, como a separação do menor e da mãe, em
caso de alienação desta [...].
Com a Lei do Ventre livre, segundo Mattoso (1988, p. 54), criou-se “escravos de
um estilo novo”. Em estudo sobre crianças tuteladas, mecanismo de controle social e
econômico que alguns proprietários utilizaram para manter o domínio sobre os filhos de
suas escravizadas, Zero (2005) afirma que os ingênuos nada mais eram do que
escravizados disfarçados e que teriam o mesmo tratamento dado às suas mães e demais
companheiros de cativeiro. Analisando a situação dos ingênuos no Maranhão, Jacinto
(2005, p.139) localizou somente 7 menores sendo entregues aos cuidados do Estado
imperial brasileiro, apesar de haver no Maranhão “uma população estimada em 12.314
ingênuos, no ano de 1878”. Ferreira (2016, p. 26), em estudo sobre a aplicação da Lei
de 1871 no Maranhão (1871-1888), conclui que essa Lei fora criada “com a finalidade
de manter inalterada a estrutura de nossa sociedade em suas mesmas bases oligárquicas,
latifundiárias, racistas e afeiçoadas ao trabalho escravo”.
48
12
Foi criado pelo Art.3º da Lei 2.040 de 28 de setembro de 1871, era um subsídio do Governo Imperial às
províncias e aos Municípios, destinado à libertação de escravizados e utilizado para indenizar os
senhores.
13
Ver: FALCI, 1995.
14
Realidade que também fez parte da administração das fazendas do Piauí estudada por Mott (2010, p.
134).
50
O trabalho dos vaqueiros deveria ser conduzido com muito zelo. Ao exercer essa
profissão, em sua lida diária o escravizado Francisco talvez precisasse se deslocar de
uma fazenda a outra, para, assim, conseguir administrar os animais que constituíam o
patrimônio de seu senhor, pois não há referências a outros vaqueiros ou ajudantes no
inventário. Se existiram, a hipótese coloca Francisco numa situação bem mais peculiar,
seriam trabalhadores livres, comandados por um escravizado.
O trabalho do escravizado Cassimiro como vaqueiro parece ter-lhe exigido
esforço menor, considerando que os bens do seu senhor eram menores do que os do
senhor de Francisco. Constituíam-se de
[...] cento e vinte cabeças de gado vacum de toda a sorte, na fazenda
Chapadinha, que forão avaliadas a oito mil reis cada uma e todos por
novecentos e sessenta mil reis [...]//Cinco cavallos novos na mesma fazenda,
que forão avaliados por trinta mil reis cada uma e todos por cento e cincoenta
mil reis [...]//Duas egoas novas na mesma fazenda avaliadas a quinze mil reis,
por trinta mil reis [...](Inventário post-mortem de Manoel Pedro de Brito,
1879, fl.8).
15
Ver: CONRAD, 1989; JACINTO, 2005; TEIXEIRA, 2010.
55
muito raras nesta sociedade com organização econômica e social tão rústica” (p.111).
Penso que a mesma dedução se poderia aplicar para a categoria de “escravo de aluguel”
para o sul do Maranhão, no período em estudo. A prática existia, de forma esporádica.
Os homens e mulheres daquela região, que vislumbrei nos inventários e nos
registros de batismo, são fazendeiros, seus familiares, outros livres, além dos
escravizados e dos libertos. Dos livres e dos libertos poucas vezes consegui identificar a
atividade econômica a que se dedicavam na luta pela sobrevivência.
A população livre registrada pelo censo de 1872 para aquela região, realmente
era a maioria, no entanto, isso não significa a inexistência de cativos naquela sociedade.
Havia espaços nos quais os escravizados se moviam e até mesmo exerciam atividades
que antes se acreditava serem de exclusividade do homem livre e branco.
escravizados são classificados como cabras, pardos, mulatos, cafuzos, mestiços e até
como negrinhas. Entre as classificações branco e preto existia, portanto, um gradiente
de cores. A cor também era usada como elemento de distinção e classificação social
(PEREIRA; VENÂNCIO; SOUSA, 2006).
Guedes (2014, p.185) ressalta que as pesquisas hoje realizadas sobre essa
temática vêm mostrando a necessidade que se tem de “dissociar escravidão e qualidade
de cor”, pois também, “entre livres e senhores, [havia] gente de todas as matizes entre
branco e negro”.
Para o referido autor:
De qualquer modo, pelo estágio atual da pesquisa, e sem esquecer que se lida
aqui com a denominação costumeira e cotidiana das cores, nos livros
paroquiais pesquisados a crescente escravidão foi (re) definindo a todos.
Como tendência, e não regra, escravos ficaram pretos; forros empardeceram;
e brancos assim o eram pelo silêncio. A escravidão criou as qualidades de
cor, inclusive a familiar herança mestiça; não o contrário. Branco era o bem
nascido, e nem todos os livres o eram, o que ajuda a compreender o silêncio,
até certo ponto. Basta não nascer escravo para, potencialmente, não receber
cor nos batismos de brancos e forros (GUEDES, 2014, p.185).
SEXO QUANTIDADE %
Mott (2010, p.113) tem uma hipótese para a predominância de homens nas
regiões dedicadas à pecuária. Segundo ele, “[...] explica-se tão alta relação de
masculinidade pelo fato de a pecuária, atividade econômica dominante, ocupar
exclusivamente mão de obra masculina”. Quanto às mulheres escravizadas, segundo
o mesmo autor, dedicavam-se as tarefas agrícolas (Idem, 2010, p.113).
Em média, o tamanho das escravarias no sul-maranhense era menor (de apenas 5
escravizados para cada proprietário), se comparado às regiões de agricultura mercantil.
Algumas eram formadas apenas por mulheres escravizadas, como a das duas senhoras
citadas a seguir. Uma tinha três escravizadas: Maria, Leoncia e Francisca, de 24, 21 e 20
anos, respectivamente (Inventário post-mortem de Maria da Motta e Silva, 1876, f. 31-
32). A outra, duas escravizadas: Conrada, de 42 anos e Tereza de apenas 17 anos
(Inventário post-mortem de Alsiria de Assis Mascarenhas, 1868, fl.7). No entanto, os
homens escravizados eram mais numerosos que as mulheres submetidas ao cativeiro,16
como podemos ver na tabela 7.
Assim, os vestígios presentes nos inventários deixados por senhores(as) da
região sul do Maranhão me possibilitaram perceber a existência de um sertão
caracterizado por vínculos sociais múltiplos e variados, no qual, livres, libertos e
escravizados se encontravam e estabeleciam relações, nem sempre harmoniosas. O
conflito era latente, mas houve espaços para as negociações cotidianas, nas quais os
agentes históricos iam construindo espaços de sociabilidade e de solidariedade no dia a
dia das fazendas. A relação de compadrio dentro desse contexto se apresenta como uma
estratégia usada pelos escravizados na construção de espaços de autonomia. Várias
leituras são feitas sobre os significados do rito para as pessoas nele envolvidas. Como os
16
Ver: MATTOSO, 2001.
61
Não se sabe o que esses homens e mulheres respondiam diante dessa “consulta-
prévia” antes de adentrarem no seio da sociedade cristã/escravocrata na América
portuguesa. Aos senhores, segundo as CPAB, caberia a tarefa de garantir a
conversão/salvação daquelas almas. Aos párocos competia ficarem vigilantes sobre essa
questão. Era dever dos representantes da Santa Sé garantir que o batismo cristão fosse
realizado em um maior número possível de pessoas, fossem livres ou escravizadas
(VIDE, 1853, p. 21-22).
Havia um tempo determinado para que as crianças fossem batizadas. Até oito
dias após o nascimento, era obrigação dos pais ou responsáveis levá-las para receber os
santos óleos. Caso não cumprissem essa orientação, pagariam “dez tostões para a
fabricada nossa Sé e Igreja Parochial” e se a negligência permanecesse seriam mais
gravemente castigados (VIDE, 1853, p. 14). Tal orientação era difícil de ser cumprida
em algumas regiões, a exemplo do sertão de Pastos Bons. A dificuldade de acesso e
mesmo as longas distâncias que algumas localidades ficavam da sede das freguesias
poderiam influenciar na demora em levar as crianças a receberem os santos óleos. Na
região objeto do meu estudo, a maioria dos batismos foi feita em ato de desobriga.17 As
crianças eram batizadas depois de meses ou mesmo anos de nascidas.
17
Desobriga: incursão da Igreja católica a regiões de difícil acesso, praticando a catequese e oferecendo o
sacramento do batismo aos pagãos. Cf. MOTA, 2015.
64
criança levada à pia batismal não só deixava de ser pagã, ela era também iniciada na
vida daquela comunidade cristã-católica. Era um nascimento cristão e social
(BASSANEZI, 2013, p.143).18 E são esses dados que me ajudaram a pensar algumas
questões na tentativa de compreender a realidade sociocultural sul-maranhense na
segunda metade do século XIX.
Entendo que os laços criados diante da pia batismal entre livres e escravizados
representassem um desses espaços. Eles estabeleceram relações que foram para além
das determinadas por sua condição jurídico-social.
A sociedade escravista brasileira não era formada por um só grupo social, o do
senhor. Sequer podemos tentar pensar esse sujeito sem pensar a posição social de outros
sujeitos que a ele estavam ligados, como os homens e as mulheres escravizados. Não há
como compreender a ação do opressor sem também compreender a ação do oprimido.
Um não vivia sem o outro. É o que nos lembra Thompson (1998, p. 57) ao analisar as
relações socioculturais existentes na Inglaterra do século XVIII. Para ele,
18
Os registros de batismo, no caso dos escravizados, eram o principal documento que comprovava que
eles pertenciam a alguém. Os batismos dos ingênuos eram utilizados como documentos para o senhor
pedir indenização ao Estado, caso quisesse entregar-lhe a criança. Ver GOLDSCHMIST, 1998.
67
19
Ver também: OLIVEIRA, 1995-1996; SCHWARTZ, 2001; ANDRADE, 2003; ANDRADE, 2005
MOTA, 2015.
68
20
Termo utilizado por Ferreira (1999)para se referir aos laços de compadrio entre as populações
escravizadas, livres e libertas na Freguesia de São José do Rio de Janeiro, na primeira metade do século
XIX.
69
21
Sobre essa questão específica, ver CRUZ, 2006.
22
Sobre o tema ver: KRAUSE, 2014; OLIVEIRA, 2014; BRUGGER, 2002; OLIVEIRA, 2014.
23
Não existe uma definição consensual sobre o que seria a comunidade escravista formada em terras
brasileiras. Slenes (2011) diz que, pelo menos no sudeste, a noção da existência de uma comunidade
constituída pela população cativa era caracterizada pela construção de uma identidade comum, chegando
mesmo a existir uma “proto-nação banto”, devido à grande predominância de indivíduos desse grupo
linguísticos. Já para Florentino e Goés (1997), as relações que se formaram no interior das senzalas eram
muito mais marcadas pelo conflito do que pela formação de uma identidade comum. Castro (1995)
ressalta que havia, sim, diferenças entre os grupos que formavam aquelas comunidades; por exemplo,
entre africanos e crioulos, que, em determinados momentos, eram “esquecidas”. Para Brugger (2004), é
interessante destacar que viver ou estar em uma comunidade não quer dizer que o conflito não vá existir.
24
Ver também: RAMOS, 2004.
25
Ver: LAGO, 2012.
70
No estudo sobre o compadrio em São José Del Rei, nos séculos XVIII e XIX,
Brugger (2003, p.8) afirma que “ninguém em princípio teria motivo para recusar um
apadrinhamento. Pelo contrário, ter afilhados era um ‘capital’ político importante”. O
apadrinhamento constituía-se em uma relação de mão dupla, uma troca entre afilhados /
sua família e os padrinhos. Estes, oferecendo proteção e alguns benefícios materiais,
aqueles, prestando lealdade e obediência. As relações compadrescas, segundo a autora,
tornaram-se um importante mecanismo para a formação e ampliação de redes
clientelistas. Burker (2002, p. 104) diz que essas solidariedades verticais eram
fundamentais para que alguns líderes transformassem suas riquezas em poder, uma vez
que “Os afilhados proporcionam apoio político aos padrinhos, bem como deferência,
expressa em várias formas simbólicas (gestos de submissão, linguagem respeitosa,
presentes, entre outras manifestações). Já os padrinhos oferecem hospitalidade,
empregos e proteção aos afilhados”.
Na população cativa baiana estudada por Gudernam e Schwartz (1988), os
padrinhos/madrinhas eram, em sua maioria, homens e mulheres livres ou libertos. 26
Essa tendência de “alianças para cima” também foi identificada por Brugger (2003), na
São João Del Rei, dos séculos XVIII e XIX. Homens livres brancos de status social
superior (padres, capitães, alferes, tenentes ou coronéis) foram os preferidos em todos
os segmentos sociais (livres, libertos e escravizados).
Era a esperança de verem seus filhos assistidos que levava pais e mães a
procurarem seus parentes espirituais em meio à população de status social superior ao
deles. Expectativa que devia ser atendida, em menor ou maior proporção, para gerar a
tendência mencionada linhas atrás. Eram laços de apoio e de ajuda, se possível mútuos,
que se buscava estabelecer com o batismo. Krause (2014) fala das “vantagens” que um
escravizado teria ao estabelecer relações de compadrio com um livre, ganhos que iam
desde a alforria para seu filho, as conhecidas alforrias na pia, até alcançar certo destaque
social. Nos casos estudados por ele, identificou que “mais do que a cor da pele, eram as
relações sociais estabelecidas com os livres que distinguiam esses cativos do restante da
escravaria, facultando-lhes, por exemplo, o acesso a ofícios especializados ou ao serviço
doméstico” (KRAUSE, 2014, p.295). É importante ressaltar que tais vínculos não
26
Padrão de escolha também encontrado em outras regiões: SILVA,2004; MACHADO, 2006;SIQUEIRA,
2008; BOTELHO, 2010; GOMES, 2013; OLIVEIRA, 2014.
71
27
Fragoso nos explica, através de uma pesquisa intensa sob um vasto e variado corpus documental, o que
seria essa nobreza da terra. Para esse autor: “Em outras palavras, não era o ser senhor de engenho,
escravos e terras, o que garantia a um sujeito ingressar no mando da república; na verdade, era o
contrário. Filhos e netos dos conquistadores mesmo sem engenhos e mesmo sem terras conseguiam ter
acesso àqueles postos e ainda casarem-se com integrantes do grupo detentor de engenhos e terras. Desse
modo, eles voltavam a ter o domínio formal de fábricas e terras. Nesse processo, pude ver que o eixo
central do pertencimento à nobreza da terra estava nas práticas maritais e, mais ainda, pude verificar o
domínio do grupo sobre o território da capitania, que era vista como conquista daquela nobreza
costumeira” (2010, p.40).
72
Outras leituras foram feitas dos vínculos que escravizados estabeleciam com
livres através do compadrio. Slenes (1997, p.23), por exemplo, ressalta a posição um
pouco desconfortável para alguns cativos, no meio do seu grupo, ao assumirem relações
tão estreitas com o mundo extra-senzala. Eles passariam, em certos casos, a serem vistos
como alguém não muito confiável, em situações que envolviam e contrapunham
interesses de escravizados e livres, propriedades e proprietários.
Eram livres, em sua maioria, os padrinhos e as madrinhas que levaram os
ingênuos à pia batismal em Santa Maria do Sacramento, na Chapada dos Guimarães, em
Mato Grosso, após a Lei de 1871, estudados por Crivelente (2009). A autora aventa
algumas hipóteses para essa tendência. Em uma delas, as mães veriam no batismo uma
forma de conseguirem um embranquecimento social, pois o compadrio garantiria às
suas crianças uma ascensão social mais segura. No universo que pesquisou, os
pais/mães espirituais eram “[...] agregados, trabalhadores livres, moradores do mesmo
engenho, além dos casos em que o próprio senhor tornava-se compadre [...]”
(CRIVELENTE, 2009, p. 10).
Um aspecto relevante para pensarmos as relações entre escravizados e senhores
é a mudança de comportamento destes últimos em relação à sua participação efetiva nas
cerimônias batismais dos ingênuos, filhos de seus cativos, após a Lei do Ventre Livre.
Dos 257 registros de batismos analisados por Crivelente, em 54 deles senhores ou
membros de sua família (filho, filha, genro ou nora) aparecem apadrinhando filhos de
escravizados. Para a autora, essas escolhas eram totalmente compreensíveis, na medida
em que o compadrio seria usado como uma estratégia de inserção desse recém-nascido
em Cristo no mundo dos homens livres ou libertos (CRIVELENTE, 2009, p. 10).28
Também era livre a maioria dos padrinhos dos ingênuos batizados em Curitiba
na segunda metade do século XIX, estudada por Schwartz. O referido autor levanta
algumas hipóteses para essas escolhas, que sinalizam as mudanças ocorridas no período
final da existência da escravidão como uma instituição legal no Brasil, ao afirmar: “É
claro que simplesmente havia menos escravos para escolher. Ademais, as crianças
batizadas nesse período eram reconhecidas como ingênuas, legalmente livres, embora
ainda sob o controle do senhor da mãe e, provavelmente, lhe parecia inconveniente ter
padrinhos escravos” (SCHWARTZ, 2001, p. 282).
28
Mudança de comportamento que também foi encontrada nos registros de batismos da Zona da Mata
mineira para o mesmo período, estudados por Andrade (2008).
73
29
Sobre essa questão, ver: BARROSO, 2013; GOMES, 2013.
74
Esses contatos poderiam ter se dado de forma direta, construídos na lida diária
daqueles indivíduos, mas também poderiam ter sido intermediados por terceiros que, no
vai e vem de suas atividades costumeiras, podiam atuar como construtores de vínculos
interpessoais. Engermann (apud BACELAR, 2011, p.9) chama-os de
“conectores”,30pois
Faziam contatos entre diversas senzalas, e que uma melhor identificação
poderia nos permitir discernir como possíveis condutores de tropas – livres
ou cativos – ou mascates, responsáveis por levar mensagens, mercadorias e
quem sabe, laços espirituais de mais longo alcance.
30
Ver: BARROSO (2012) fala da existência de “intermediários sociais”.
31
Ver: RAMOS, 2004.
75
32
Ver: SCHWARTZ, 1988.
33
Ver, também, KRAUSE, 2014; FRAGOSO, 2014.
34
Ver sobre o tema: BRUGGER, 2002; GOMES, 2013.
77
outra escrava como madrinha de seu filho não pode ser considerado, ao
menos de forma automática, uma aliança horizontal, ou seja, entre iguais.
Mesmo na senzala havia uma hierarquia e a mesma tinha que ser
devidamente ponderada quando da escolha dos padrinhos (Idem, p. 201).
Stein destaca a importância que tinha para os cativos a venda dos produtos de
suas roças, proporcionando-lhes ganhar algum destaque em meio aos companheiros e,
com isso, poderem ser escolhidos como protetores espirituais por terem a possibilidade
de oferecer algum benefício material ao seu afilhado e à sua família.
Os padrinhos escravos davam ao neném [escravizado] recém-batizado uma
toalha, sabonete, camisola de dormir e touca, comprados de caixeiros
viajantes com os trocados ganhos pela venda de seus produtos agrícolas ou
aves domésticas. Quando o afilhado chegava à idade “de fazer a barba” pela
primeira vez, seu padrinho presenteava-o com uma navalha de barba, e sua
madrinha comprava ou fazia uma toalha (apud SLENES, 2011, p.201).
Não era, portanto, somente o desejo de conquistar a liberdade de seus filhos, por
meio de uma carta de alforria, que motivava homens e mulheres escravizados a
buscarem “alianças para cima”, quando iam criar os laços de parentesco espiritual. Era
nas coisas “miúdas” do cotidiano, na labuta do dia a dia, nas necessidades diárias, que
esses laços provavelmente teriam maior representatividade e importância.35
Existiam nas senzalas aqueles que seriam os preferidos, os que sempre eram
convidados a apadrinhar/amadrinhar um escravizado. Homens e mulheres que, por
terem mais recursos materiais ou simbólicos, destacavam-se diante dos demais sujeitos
escravizados. Slenes (1997, p. 270) cita o caso de Balbina, escravizada no mosteiro de
São Bento, que entregou seu filho Fortunato, ingênuo, aos cuidados do padrinho,
“Porfílio, escravo do Exmo. Barão de Iguape, fosse, como ainda o é sujeito por [sua]
condição [de escravizado], tinha, contudo, mais meios do que ela”. Ferinatti (2012)
também fala da existência de uma hierarquia no interior das senzalas, que exerceria uma
forte influencia na hora da escolha dos padrinhos/madrinhas.
Fragoso (2014) coloca, como fazendo parte de uma elite na senzala, cativas que
adquiriam prestígio em relação às demais por estabelecerem relações amorosas/sexuais
com livres/nobres locais. Os filhos delas, ao serem apresentados à sociedade cristã
através do batismo, recebiam como protetores espirituais “outros nobres da terra”.
Slenes (1997, p.272) chama a atenção para o fato de que, se havia o grupo dos
preferidos, também criava-se o grupo dos excluídos, àqueles que nunca eram chamados
a apadrinhar/amadrinhar filhos de companheiros de cativeiro.
Para Vasconcelos (2002, p.154-57), a repetição de padrinhos e madrinhas
poderia ter várias interpretações, tanto em relação aos senhores como aos escravizados.
Para os senhores, o batismo poderia ser a aceitação de uma mera formalidade daquela
sociedade cristã, mas também poderiam ver nos padrinhos e madrinhas dos seus
escravizados – quem sabe se até escolhidos por eles – aliados no processo de conversão
do africano recém-chegado em cativo-cristão, principalmente nas cerimônias de batismo
coletivo. Para os senhores, o rito representaria ainda a possibilidade de formarem uma
ampla e complexa rede de alianças, de relações clientelistas. Para os escravizados, como
já enfatizei, tal prática poderia representar a construção de aliança com companheiros
que tivessem destaque dentro de seu grupo ou a consolidação de solidariedades
firmadas.
Fragoso (2014) narra um caso bem sugestivo, que serve para ajudar a pensar os
significados que esses vínculos, confirmados ou criados com a bênção dos santos óleos,
poderiam assumir para os escravizados e também para os senhores. Trata-se da relação
que havia entre a escravizada Helena, uma “super madrinha”,36 e seu senhor Inácio. Nas
palavras desse autor:
Sobre Helena, ela fora convidada como madrinha por cinco das 46 famílias
cativas de seu senhor. Fenômeno que demonstrava o respeito das senzalas a
ela e ainda a sua importância para a boa disciplina senhorial, portanto, ao
bom funcionamento do Engenho de Fora. As relações de reciprocidade entre
ela e Vilas Boas transparecem no testamento deste último, já que nele Helena
surge como escrava forra e beneficiada em 200$000 (FRAGOSO, 2014,
p.81).
36
Expressão utilizada por SILVA (2004) para designar homens ou mulheres (livres ou escravizados) que
aparecem mais de cinco vezes apadrinhando ou amadrinhando escravos.
79
Janeiro, nos séculos XVII e XVIII. Através do cruzamento de indícios encontrados nos
registros de batismos, óbitos e testamentos, define a sociedade carioca da época como
um complexo relacional. As relações de sociabilidades formadas dentro das senzalas
foram pautadas pelas normas impostas pelas camadas mais altas daquela sociedade
extremamente hierarquizada:
O batizado entre os escravos levava tal disciplina para o interior das senzalas
e transformava os cativos em patrões e clientes [...] Assim os aludidos nobres
da terra e seus escravos, ambos como sujeitos, compartilhavam a mesma
sociedade e eram cúmplices em sua produção (FRAGOSO, 2014, p. 35).
Bacelar (2011, p.8) vê, na repetição de alguns sujeitos como padrinhos, não só a
possibilidade que a família do batizando tinha para formar vínculos com alguém de
prestígio diante de seus pares, como, também, se considerada a alta taxa de mortalidade
entre a população escravizada, o fato de possivelmente algumas pessoas participarem de
vários ritos como padrinhos, por terem tido os laços formados anteriormente desfeitos
pela morte da pessoa que dera sentido ao vínculo, a outra criança/afilhado(a) que havia
falecido.
37
Sobre o tema: SCHWARTZ, 2001; BRUGGER, 2003; MACHADO, 2006; MARTINS, 2009;
FERINATTI, 2012; GUTERRES, 2013; MOTTA, 2014; VALENTIN, 2014.
38
Ver também: VASCONCELLOS, 2002; BRUGGER, 2004; MACHADO, 2006; ANDRADE, 2008;
BOTELHO, 2010; MOTA, 2015.
39
Sobre o tema: REIS; SILVA, 1989.
81
cativos possuiriam se comparados com aqueles das escravarias médias e pequenas. Nos
grandes planteis,
mais liberdade tinham os escravos de tomar suas próprias decisões e fazer
seus próprios arranjos. Assim, os escravos do campo teriam estado menos
sujeitos a interferência que os cativos domésticos, e os de unidades maiores
teriam tido mais sorte a esse respeito do que os escravos urbanos ou os de
propriedade de lavradores e pequenos agricultores.
40
Acabavam assim “abrindo a roda da família.” (expressão utilizada por SCHWARTZ, 2001).
41
Ver, também, SCHWARTZ, 2001; FERINATTI (2012); VASCONCELLOS, 2004; ANDRADE, 2008;
ROMULO, 2008; CRIVELENTE, 2009.
42
Ver: GOMES, 2013.
82
43
Sobre o assunto, ver OLIVEIRA, 1995-1996; GUEDES, 1999; CRIVELENTE, 2009; SCHWARTZ,
2001.
44
Ver: RAMOS, 2004.
45
É conhecida a recomendação que o Conde de Assumar deu aos párocos baianos, em 1719, sobre esse
assunto. Ele sugeriu que escravizados não fossem apadrinhados por cativos, mas a recomendação não foi
seguida e os escravizados continuaram apadrinhando seus irmãos de infortúnio. Ver: SCHWARTZ,
2001;BRUGGER,2004; RAMOS, 2004; CRIVELENTE, 2009. Gudeman e Schwartz (1988, p. 49)
também destacam exemplos nos quais os agentes que representavam as vontades dos senhores tentaram
limitar as escolhas dos parentes espirituais de suas escravarias, como ocorreu em 1699, quando “O corpo
de instruções emitido para o administrador jesuíta do engenho Sergipe [...] proibia a seleção tanto de
padrinhos escravos como livres de fora do engenho, e também proibia os escravos do engenho de se
tornarem padrinhos”. Ali, também, a intervenção não surtiu efeito e os escravizados continuaram
estabelecendo relações compadrescas extra-propriedade.
46
Ver ainda, FARIA S, 1998;VASCONCELLOS, 2002.
83
quem poderia ou não ser chamado para tornar-se os seus parentes espirituais, sem com
isso sofrer uma interdição de seu senhor. Um desafeto deste, por exemplo, não estaria
na lista de possíveis compadres ou comadres.
Nessa influência exercida pelo senhor na formação dos laços de compadrio de
seus escravizados, Barroso (2014, p. 212) vê não apenas uma ação limitadora, pois,
“não seria de todo irreal supor que seus senhores interferiam, até para facilitar as coisas,
abrindo as portas, fazendo de seu compadre um compadre de seu cativo implementando
redes de solidariedade mais complexas”. Fragoso; Guedes (2003, p. 2) trazem um
exemplo de como essas relações poderiam se dar e o tamanho da complexidade que elas
tinham: “Francisco Barreto de Faria, senhor de engenho do Rio de Janeiro do século
XVII, pretendendo manter-se como senhor da governância ‘facilitava’ o contato de seus
cativos com os de outros senhores e com lavradores pobres”.
A legitimidade ou não das crianças é outro elemento que poderia ter um peso na
hora da escolha dos seus pais espirituais. Para alguns autores, como Faria S. (1998), a
quantidade de famílias legítimas dentro dos plantéis pode estar relacionada ao tamanho
da escravaria. Nas maiores, como haveria um grande número de escravizados, isso
possivelmente representaria uma maior oferta no mercado de matrimônio legalizado
pela Igreja, assim, as crianças-escravizadas levadas para receber o batismo teriam o
nome do pai e da mãe registrados. Nas médias e pequenas escravarias, onde a oferta de
indivíduos casadouros não era tão grande, a maioria dos batizandos foi registrada como
filhos naturais e não constava o nome do pai nos registros, indicando que as relações
familiares não oficializadas pela Igreja não eram reconhecidas pelos párocos,
responsáveis pelos registros (Idem, p. 324-5).
A partir dessa perspectiva, quanto maior a escravaria, maior seria o número de
casamentos legalizados e reconhecidos pela Igreja Católica, é compreensível a maior
frequência de escravizados apadrinhando filhos registrados como legítimos, ou seja,
aqueles que teriam o nome do pai e da mãe registrados em seus assentos de batismos. O
inverso acontecia com os filhos naturais, que eram, em sua maioria, apadrinhados por
livres, libertos e escravizados pertencentes a outras propriedades.47 A legitimidade ou a
47
Sobre o tema, ver: FARIA S., 1998; FALCI, 1999; BRUGGER, 2004; MACHADO, 2006; GOMES,
2013; MOTA, 2015.
84
naturalidade dos batizandos por si só não era um elemento que pudesse definir os
padrinhos das crianças escravizadas. Ter ou não o nome de seus pais registrados era,
algumas vezes, influenciada pela falta de pessoas disponíveis ou interessadas em
oficializar sua união.
A combinação de padrinhos livres e madrinhas escravizadas aparece com mais
constância em algumas regiões. Na análise de alguns autores, tal escolha foi motivada
tanto por questões materiais quanto por questões afetivas, pois, “Em um mundo novo e
perigoso, talvez a escolha mais sensata para obter alguma proteção aos próprios filhos
fosse conjugar o apoio de um homem livre com maiores recursos com auxílio
quoditiano prestado pelas companheiras de labuta” (GOMES, 2013, p.11).48
48
Ver: VASCONCELOS, 2002; CRIVELENTE, 2009; KRAUSE, 2014.
49
Ver, também: BACELAR, 2011; BARROSO, 2012.
50
Ver: SCHWARTZ, 2001; BARROSO, 2012.
85
constatou que, diante da pia batismal, “[...] a hierarquização segundo a cor na sociedade
escravista [também] teve seus efeitos”. Vejamos o que ele nos diz:
Dos 32 pardos livres que serviram de padrinhos, quase 70% apadrinharam
crianças negras. Crianças pardas livres eram mais propensas a ter padrinhos
brancos do que pardos, e quase nunca negros. A cor, portanto, era uma
característica adicional que influía, juntamente com a condição social de livre
ou escravo, na escolha dos padrinhos. As preferências eram ascendentes na
escala somática de preto a branco. Em uma amostra de trinta batizados de
crianças pardas, dos sessenta padrinhos e madrinhas quase 90% eram
brancos. Escravos negros tendiam a procurar padrinhos de cor mais clara,
mas também havia uma grande proporção de padrinhos negros (idem, 1988,
p. 333).
51
Ao me referir à cor da pele de algumas mães e crianças levadas às pias batismais, utilizo a expressão
“condição de cor”, pois acredito ser mais abrangente e engloba as representações e apropriações da cor.
52
Sobre o tema, ver também: MARTINS, 2010.
86
para a festa e as crias de suas escravas para o batismo”. Em tais eventos, uma pessoa
poderia batizar tanto os filhos dos senhores, quanto os filhos de suas cativas.
Falci (1999) identificou as mesmas tendências em regiões piauienses. Constatou
uma grande concentração de batismos em determinados meses do ano e em outros um
número reduzido ou quase nenhum. A autora aventa alguns fatores que poderiam levar a
tanta desproporção.
A distância da paróquia e consequentemente a viagem ser precedida de
preparos custosos, inexistência de padres que permanecessem por todo o ano
na Paróquia (algumas Igrejas do interior chegavam mesmo a fechar,
aguardando a chegada de padres, em ocasiões específicas), épocas litúrgicas
pré-determinadas ou adversidade das condições locais em função do meio
rural [...](FALCI, 1999, p. 86).
54
Sobre essa temática ver o tópico: “Sertão de Pastos Bons: nascer livre, não era garantia de liberdade”,
dessa dissertação.
55
Ver: BRUGGER, 2003.
56
Sobre o tema, ver: GUDEMAN; SCHWARTZ, 1988, p. 50.
89
Aos seis dias do mês de Outubro de mil oitocentos e setenta e cinco, no logar
denominado Lagôa Seca desta Freguesia, em acto de desobriga, baptizei
solemnemente a Mamedia, nascida em dez de Agosto de setenta e quatro,
filha natural de Victoria, escrava de Victoriano Rubenes de Souza, forão
padrinhos Manoel Martins da Cunha e Verissima Maria de Jesus. Para
constar mandei (ileg.) este assento e assigno. O Vigário Encomendado P.
Candido Marinho d’Oliveira (LRB, 1875-78, fl. 13, grifo meu).
grupo social. Assim, ao tornar-se comadre de Dona Roza, é possível que Cândida
passasse a ter outro status no universo social a que pertencia. É possível até que
recebesse alguma ajuda material (eventual ou permanente) da comadre Dona, a qual, o
tratamento assim o indica, pertencia à elite pastosbonense e tornava-se, agora, parente
em Cristo daquela escravizada.
Uma série de expectativas girava em torno desses laços formados ou
confirmados diante da pia batismal entre livres, libertos e escravizados. Apontei no
capítulo anterior algumas delas. Essas “alianças para cima” 57 pressupunham, no
mínimo, que as relações entre as partes envolvidas passariam a ser pautadas no apoio e
na ajuda, se possível de ambas as partes. Um auxílio não só espiritual, pois essas
relações, como já disse, transpunham os muros das igrejas e se estendiam pela vida
secular.58
Cândida, como tantas outras mães, ao firmar laços com pessoas que tinham certo
prestígio talvez acalentasse o desejo de ver sua filha tornar-se beneficiária no testamento
de sua madrinha. Não era raro afilhados estarem presentes em testamentos como
recebedores de bens deixados por seus pais espirituais. Também não era tão incomum
que padrinhos abastados proporcionassem carta de alforria no momento do batismo para
seus afilhados escravizados. Foi o que ocorreu com o menino Pachoal.59 Estes exemplos
mostram os benefícios que os vínculos criados na pia batismal, com alguém de condição
social e jurídica mais elevada, podiam trazer para os batizandos.
Em relação a maior incidência de livres apadrinhando os filhos da Lei do Ventre
Livre (1871), Crivelente (2009) nos diz que, se levarmos em consideração o contexto da
época tal prática é totalmente compreensível, pois provavelmente as mães daqueles
ingênuos viam nos vínculos criados com pessoas de condição jurídica superior que a
delas, via batismo, um meio para que suas crianças entrassem, de forma segura, no
mundo dos livres. Schwartz (2001, p.182), também atento ao contexto em que os
ingênuos foram levados às pias batismais, sugere que o maior número de pais espirituais
de condição jurídica superior a das mães dos batizandos estaria ligado ao momento
histórico que o país estava passando, caracterizado pela crise do sistema escravista que,
por sua vez, causava a redução do número de escravizados e consequentemente
diminuia a disponibilidade deste segmento social no mercado de compadrio. Para o
57
Ver: BRUGGER, 2003.
58
Sobre o tema, ver: GUDEMAN; SCHWARTZ, 1988.
59
Ver: MOTA, 2001.
91
mesmo autor, tal fato se agravaria ainda mais se levarmos em conta o tamanho das
escravarias, as médias e pequenas, por exemplo, teriam sentido de forma mais
acentuada aquelas mudanças.
Ainda sobre o grande número de pessoas livres como padrinhos, Fragoso (2014)
é um dos autores que levantam a hipótese de que algumas crianças escravizadas levadas
diante da pia poderiam ser filhas de homens que pertenciam a chamada nobreza da terra.
Homens que teriam laços de afetividade com as mães e com as crianças levadas a
receber os santos óleos. Não assumiriam a paternidade, mas as colocariam sob a
proteção de pessoas de sua confiança: um irmão(ã) ou primo(a). Dos registros
analisados, em 50 deles pude observar que os padrinhos e as madrinhas possuíam
vínculos de parentesco com os senhores das mães dos batizandos. Cito dois casos. O
primeiro é o registro da pequena Raimunda, filha natural de Joana, “escrava de
Trajano Coelho de Sousa, sendo padrinhos Torquato Coelho de Sousa e Jardilena
Fernandes de Sousa Coelho [...] (LRB, 1875-1878, fl.40, grifo meu)”. O segundo é o
batismo de Maria, cuja mãe, a escravizada Catharina, pertencia a Pedro Pereira de Britto
e os padrinhos foram “Luiz Pereira de Britto e Anna Pereira de Britto [...]” (LRB,
1886-1888, fl. 2v, grifo meu).
Em casos como os citados acima, é possível que fossem um meio de “pais
incógnitos” colocarem “seus familiares não projetados” sob a proteção e auxílio de seus
parentes, como sugere Faria S. (1998, p.320).
Presumo que as relações de compadrio e apadrinhamento também servissem
como um meio para o senhor estender seu domínio sobre a vida dos ingênuos. Gerariam
laços indiretos de paternalismo,60mas deles talvez surgissem laços de ajuda mútua, de
cooperação e até mesmo de proteção no grupo ao qual o afilhado e sua família faziam
parte. Ser aparentado “em Cristo” de um membro da família de seu senhor poderia ter lá
suas vantagens, dentro das relações que cotidianamente aqueles indivíduos iam tecendo.
Pelas informações constantes nos registros de batismos não é possível identificar
o grau de parentesco que havia entre os padrinhos. Em apenas um caso foi especificado
o vínculo que ligava o padrinho e a madrinha. Foi no batizado do pardo Sipriano,
ocorrido
Aos trese de junho de mil oitocentos e setenta e oito em desobriga no sitio
vão-azul [...] filho natural de Francisca, escrava de Maria Francisca Pereira
de Sá, nascido a quinse de Março do mesmo anno: [teve como] seus
60
Ver: MACHADO, 2006.
92
61
Ver: OLIVEIRA, 1995-96; MOTA, 2014.
93
madrinha, 62 indivíduos que tinham uma grande e extensa rede de relações formada
através dos diversos laços criados com o batismo cristão. O máximo que encontrei foi
uma pessoa apadrinhando 3 crianças diferentes: Maximo Pereira Bispo, homem livre e
dono de terras e gados, que em 1874 e 1875 apadrinhou os ingênuos Francisca, Angelo
e Paula (LRB, 1873-81, fls.12v, 21v e 31v, respectivamente).
Na construção dessa dissertação segui as pistas que encontrei nos documentos
disponíveis, pistas que nem sempre foram as desejáveis, mas as possíveis.63Na tentativa
de compreender as relações que foram construídas entre as populações livre, liberta e
escravizada do sertão maranhense – lugar que chamei em páginas atrás de sertão
múltiplo e mestiço em suas cores e relações–, decidi fazer algumas considerações sobre
os poucos batismos de escravizados que encontrei. Dos 34 batismos de crianças
escravizadas, 32 deles foram realizados entre 1854 a 1859, e apenas dois em 1875. A
amostra é reduzida, mas que sugere a confirmação de tendência de escolhas encontradas
em outros lugares e épocas entre a população escravizada, 64 livres continuaram
aparecendo como os preferidos para formarem o casal de padrinhos que abençoaram as
crianças escravizadas.
62
Sobre essa temática, ver: VASCONCELOS, 2002; FRAGOSO, 2014.
63
Ver: REIS; SILVA, 1989.
64
Ver: ANDRADE, 2003 e 2005.
94
meio que lhes era tão opressor. Eram alianças “verticalmente ascendentes”65 que, via de
regra, se formavam nas pias batismais do sertão sul-maranhense.
Da análise dos 178 batismos de ingênuos que receberam os santos óleos nas
Freguesias de São Bento de Pastos Bons e São Pedro de Alcântara, em apenas 9 deles os
senhores(as) aparecem como padrinhos ou madrinhas de filhos de suas escravizadas.
Victoriano Ribeiro de Souza compareceu à cerimônia de batismo realizada no dia 14 de
junho de1878, no Sítio Lagôa Secca, não só como senhor de suas duas escravizadas,
Theodora e Anna, mas também como padrinho dos filhos destas, os pequenos
Bernardino e Fabricio. Angelina Thereza da Silva foi a madrinha deste último e
Raimunda Francisca da Silva do primeiro (LRB, 1875-78, fl.111).
O mesmo ocorreu no batismo do menino João, vejamos:
O batismo, mais uma vez, acabou contribuindo para o alargamento das redes de
relações de sociabilidade e de solidariedade que eram gestadas à época. Escravizado e
senhor se encontravam e se misturavam, ao mesmo tempo em que podiam se chocar, se
contrapor. Isso ajuda a pensar em uma sociedade formada por relações não só de
conflitos, mas também de negociações, de barganhas, de concessões e, por que não
dizer, também de afeto?.66
Tudo indica que no sertão sul-maranhense também não era uma prática muito
difundida que senhores e senhoras de escravizados(as) apadrinhassem e amadrinhassem
filhos de escravizadas de outros proprietários. Cruzando os nomes dos padrinhos e
madrinhas com o dos proprietários(as) de escravizados(as) encontrei apenas 8 assentos
em que senhores aparecem como padrinhos de ingênuos filhos de cativas. Foi o caso de
Victorino, “[...] com trese mezes de idade, filho natural de Maria, escrava de Tollecto
Coelho de Souza [...]”, batizado no dia 4 de outubro de 1877, que teve como padrinhos
65
Sobre o tema, ver: GUDEMAN; SCHWARTZ, 1988.
66
Sobre o tema: REIS; SILVA, 1989; PEREIRA, 2001; MOTA, 2004.
95
João Coelho de Souza e D. Marianna Francisca de Souza (LRB, 1875-78, fl.97 v, grifo
meu). Este padrinho consta como dono da escravizada Helena, a qual, em 15 de outubro
de 1877, no lugar Santo Antonio, na Freguesia de Pastos Bons, levou seu filho Casimiro
de sete anos de idade para receber os santos óleos das mãos do Padre José Lopes, que ali
realizava uma desobriga (LRB, 1875-78, fl. 97). Esses senhores padrinhos, através dos
laços de compadrio, deram uma maior complexidade as relações gestadas no interior
daquela sociedade.
Se compararmos esses dados com os levantados para a São Luís dos séculos
XVIII e XIX, 67 percebemos que a tendência de não escolha, ou de uma recusa dos
senhores em constituir laços de parentesco religioso com sua escravaria ainda
permanecia. Muda-se o tempo e o cenário, mas a mentalidade era a mesma. É a “força
da escravidão”, na feliz definição de Chalhoub (20012). Parece que para aqueles
68
senhores sul-maranhenses, de poucos escravizados, como também observaram
Gudeman e Schwartz (1988) para a Bahia do século XVIII, os princípios que regiam o
ato cristão do batismo eram inconciliáveis com as práticas de subserviência que
pautavam as relações existentes entre eles e sua escravaria: a consequência foi que os
senhores não costumavam apadrinhar seus cativos, nem os filhos destes.
Crivelente (2009) constatou, em seus estudos, que após a Lei do Ventre Livre
(1871) houve um aumento na participação de senhores apadrinhando os filhos de suas
escravizadas. Essa prática, segundo a autora, era compreensível, pois as crianças, pelo
menos na teoria, já não eram mais suas propriedades. No sertão de Pastos Bons, para o
mesmo período estudado por Crivelente, os senhores, em sua maioria, continuaram
distantes da pia batismal nas cerimônias que envolviam os ingênuos de suas
propriedades.
Tive acesso ao inventário de alguns desses senhores, não encontrando nesse corpus
documental referências sobre seus afilhados ou comadres. Mesmo não encontrando
indícios que demonstrassem “recompensas” em ser apadrinhado por alguém de posses,
há a possibilidade de que elas existissem e fossem buscadas nas práticas cotidianas, nas
coisas miúdas, no dia a dia do trabalho nas fazendas de gados, nas plantações, no
trabalho doméstico, ambientes permeados de relações cheias de conflitos, onde a
negociação diária se tornava importante. O compadrio com um senhor poderia funcionar
como estratégia de barganha para algumas pequenas vitórias na luta diária pela
67
Ver: ANDRADE, 2003 e 2005.
68
Ver: FERREIRA, 2005.
96
sobrevivência. Lembramos com Burker (2002) que essas relações não eram
estabelecidas apenas na perspectiva de uma recompensa material. Muitas pessoas de
posses viam, nessas práticas, sua riqueza transformar-se em poder, na medida em que
seus compadres e afilhados passavam a tratá-las com deferência e subserviência.
Relações clientelistas eram também consagradas pelos santos óleos.
Em alguns registros, os senhores e as senhoras aparecem com títulos que os
diferenciavam. Eram coronéis, tenentes, doutores e donas. Ser escravizado do Doutor
Severiano Dias Carneiro, possivelmente teria uma representatividade social maior, do
que ser escravizado de um Severiano qualquer. Indago se, de certa forma, criar laços
com alguém que pertencia ao Doutor Severiano era também estabelecer alguma relação
com ele?Aqueles indivíduos que, na cerimônia de batismo ocorrida entre os dias
primeiro e 2 de julho de 1876 no Sitio do Meio, ao estabelecerem laços de parentesco
espiritual com Benta, Escolástica, Izabel, Leocadia e Filomena, todas escravizadas do
Doutor Severiano Dias Carneiro, obteriam alguma proximidade com o proprietário de
suas comadres? Lucio Francisco da Costa, padrinho do pequeno Virgilio, por exemplo,
passou a ser compadre de Leocadia, cativa do Doutor Severiano (LRB, 1875-78, fls.43-
43v). São perguntas que, nesta pesquisa, não consegui responder.
É conhecido, entretanto, que os escravizados sabiam manejar essas distinções
sociais adequadamente. Santos (2015), ao estudar o cotidiano da resistência escrava na
década de 1830, em São Luís do Maranhão, dá um exemplo de como essas relações
entre o escravizado e seu senhor eram tão complexas que o cativo podia se valer do
prestígio do seu dono. Um fragmento de um registro de polícia trazido pela autora
parece-me bem oportuno:
[...] perguntou o dito preto aos Guardas se não conheciam sua Senhora e
respondendo a Patrulha q’ não, disse o mesmo q’ ele era de D. Anna
Jancem aquela q’ já tinha posto dois Guardas na cadeia por dar em um
preto seu, e que o mesmo havia acontecer-lhes se bolissem com ele.
(SANTOS, 2015, p.123, grifo meu).
Fico a imaginar que tipo de “atrevimento” poderia ser cometido pelo ingênuo
Ciriaco e sua mãe Francisca (escravizada de “Dona Maria Gonçalves Lima”), depois de
serem afilhado e comadre, respectivamente, de “Dona Amancia Izabel de Arruda”,
situação sacramentada pelo batismo ocorrido na freguesia de Carolina, em 25 de
dezembro de 1874(LRB, 1873-81, fl.20). Talvez fossem permitidos a Ciriaco
comportamentos vedados a outros que estivessem no seu mesmo grupo social.
Analisando os registros de batismos das freguesias em foco pude observar que a
cerimônia batismal também foi utilizada para alguns senhores demonstrarem “sua
caridade”. Em 3 registros, junto com os santos óleos, as crianças também receberam a
tão desejada liberdade, sendo-lhes concedidas as conhecidas alforrias na pia. 69
Tornaram-se, a partir daquele momento, não só cristãs, mas também pessoas
juridicamente livres. Foi o que ocorreu com a menina Maria, batizada e alforriada em 25
de dezembro de 1857. Vejamos o que o padre registrou:
A 25 de desº de 1857 nest fregª de Carª o Rdº Ignacio Joaqm. Cortes batisou
solenemte e pos os santos óleos a innocente Maria filha natural de Marcelina
escrava do capm. Manoel Alves da Silva, nascida a 12 de maio de 57 cuja foi
forra no bastisterio por acto de caridade, e forão P.P. Manoel Soares de
Olivrª. e D. Carlota [ileg.] das Neves e pª. Constar fasço este assento(LRB,
1858-59, fl.74v, grifo meu).
69
Ver: KRAUSE, 2014.
Sobre o papel e importância que as “sonharas donas” exerceram no Maranhão dos séculos XVIII e XIX
70
menina. Assim, pelo que está dito nesse registro e tendo uma sociedade escravista como
pano de fundo, mais uma vez ousei conjecturar sobre o não-dito, os silêncios
audíveis.71A data de batismo da pequena Maria é bastante sugestiva, 25 de dezembro. É
Natal, e os sentimentos de caridade que a data desperta nas pessoas, podem também ter
contagiado o capitão Manoel Alves da Silva em “seu ato de caridade”.
Olhando esse registro, fico pensando que tipo de relação existia entre esses
sujeitos que, ligados pela mesma condição jurídica, agora também passavam a ter um
vínculo sociorreligioso tão forte e importante, como o criado diante da pia.
Em outra situação, o batismo da parda Joana criou laços entre sujeitos que
pertenciam a vários senhores. Sua mãe, Rita, pertencia a LudugerioTexeira de Carvalho
e seus padrinhos foram Procópio, “escravo de José de Carvalho e Roberta, escrava de
Joanna Texeira de Carvalho” (LRB, 1875-78, fl.107). Olhando os sobrenomes dos/as
senhores/as conjecturo que eram parentes e talvez até partilhassem a mesma residência.
Assim, provavelmente seus cativos deviam se encontrar com frequência ou até conviver
diariamente, possibilitando a Roberta, Rita e Procópio estabelecerem vínculos de
sociabilidade e ajuda mútua que foram confirmados pelo rito do batismo. Tornaram-se
71
Ver: DAVIS, 1987.
72
Referência ao trabalho de Oliveira (1995-1996). A autora sugere que os laços de compadrio foram
utilizados pelos escravizados baianos para reconstruírem laços que teriam sido desfeitos com o tráfico
transatlântico
99
Os laços de compadrio criados por aqueles atores sociais podem ter esse sentido.
Escolastica, Alexandre, Cataharina, Rita, Procópio, Roberta, Valentina, Raymundo e
Marcolina estariam assim reforçando, através do batismo, vínculos sociais criados no
cotidiano, ou consagrando uma relação que há tempos vinha sendo construída, como
uma longa amizade, pois ninguém chamaria um desafeto para apadrinhar seu filho.75
73
Era nesses momentos, para autores como Faria S. (1998), que aqueles escravizados exerciam sua
subjetividade, sua autonomia. Ver, também: OLIVEIRA, 1995-96; GUEDES, 1999.
74
Expressão utilizada por Schwartz (2001) para explicar como os laços de compadrio expandiam os
vínculos familiares das pessoas que dele participavam.
75
Sobre esse tema, ver: GIL; SIRTORI, 2012; HAMEISTER, 2012.
101
76
Casos que não eram tão difíceis de ocorrer, se pensarmos o contexto da época. Sobre o tema, ver:
SLENES, 1997 e 2011; FRAGOSO, (2014).
102
O segundo:
Aos trinta de junho de mil oitocentos setenta oito em desobriga no sitio Aldêa
baptisei solemnemente com Santos Oleos a Maria, branca, filha legítima de
Raymundo Pereira dos Santos e Francisca Gomes da Costa moradores
no Burityzal, nascida a dezesette de setembro de mil oitocentos setenta e
quatro: forão seus padrinhos Gonçalo José Ferreira e Anna escrava, e
para que conste mandei fazer este, que assigno. O Vigário Encomendado Pe.
Antonio de Almeida (LRB, 1875-78, fl. 120, grifo meu).
maranhenses, o convívio entre escravizados e a população livre pobre talvez fosse mais
constante e, desses contatos, vínculos de ajuda mútua e de amizade se constituíram,
77
confirmados na cerimônia do batismo? Também é possível conjecturar se as
convenções sociais daquele contexto, fortemente marcado pelo preconceito racial/social,
não perturbavam as escolhas daqueles casais de homens e mulheres livres naquela
localidade e tempo específico. O que é possível saber é que Anna e Clemencia, de
alguma forma tornaram-se exceções dentro dos padrões de escolhas de madrinhas de
crianças juridicamente livres.
Exceções que também encontrei na escolha do padrinho de Geraldina, filha
natural de Dionisia Noronha. Esta escolheu Jacob “escravo de Maria Gonçalves Lima e
Maria escrava de Joanna [ileg.] Franco” para abençoarem o batismo de sua filha,
ocorrido em 22 de setembro de 1885 e registrado no livro de batismo da Matriz de
Carolina (LRB, 1884-1886, fl.102). E no batismo do Menino Antonio, que transcrevo
abaixo:
Aos quatro dias do mez de Outubro de mil oitocentos oitenta e cinco batisei
solennemente a Antonio, filho natural de Joanna Bomfim; nascido a cinco de
junho de mil oitocentos e oitenta e cinco forão padrinhos Eugenio escravo
de Maria Gonçalves Lima e Ignacia liberta [...] (LRB, 1884-1886, fl.103,
grifo meu).
Que lugar social era ocupado pelos padrinhos Jacob e Eugenio, ambos
escravizados? Eram roceiros, ou vaqueiros? Que tipo de relações existiam entre esses
escravizados e as mães desses inocentes para que elas, no momento de suas escolhas
compadrescas, fugissem do padrão existente?. Não consigo, no momento atual da
pesquisa, responder a essas indagações, mas tais indícios apontam, mais uma vez, para
a existência de uma sociedade marcada por relações complexas cheias de
ambiguidades. Dando origem assim, a uma sociedade com um “complexo relacional” diria
Fragoso (2014).
Quanto aos demais sujeitos sociais que formavam aquela realidade, os índios e
os libertos, na documentação analisada pouco foi registrado sobre eles. Apenas um
registro menciona o batismo da filha de uma índia.
No dia 22 de agosto de 1880 o Rer. Pe. Franco. Casemiro de Souza p. mª
autorização baptizou solennemente em desobriga na fazenda chapadinha a
innocente Jacintha, filha natural de Antonia: índia, nascida em 4 de agosto
d’este mmo. anno tendo sido padre. Tiburcio, escrª de Mel. Je. Nolleto e
Candida, escrava do mesmo senhor [...] (LRB, 1873-1881, fl. 122).
77
Ver: KRAUSE, 2014.
104
Já as mães libertas, de número bem reduzido nos casos analisadas (apenas 4),
preferiram estabelecer relações ascendentes, formando laços de compadrio com sujeitos
de condição jurídica superior à sua. O significado social que o rito assumia
possivelmente determinou essa tendência, como explica Samara(1998, p.32): ter
padrinhos em melhores condições socioeconômicas poderia ser “[...] uma forma de ser
bem aceito socialmente [...]”.
Em apenas três registros consta há referencias sobre a condição de cor das mães
dos ingênuos, que levaram seus filhos para receber os santos óleos. Anna, cativa de
Severino Dias Carneiro, foi classificada como preta, no assento de batismo de sua filha
Ursula (LRB, 1875-78, fl.103). E também Izidia, pertencente ao Coronel Antonio
Carneiro da Silva Oliveira, mãe do ingênuo Raimundo, classificado como pardo,
batizado no dia 3 de junho de 1878, na capela de Mirador (LRB, 1875-78, fl.110 v).
Não há indícios, na documentação estudada, de haver relação entre a condição
de cor dos batizandos ou das mães destes e a escolha dos padrinhos.78Pessoas livres –
condição que, por si só, já as colocava numa situação de vantagem diante dos libertos e
escravizados – apadrinhavam ingênuos, quer estes fossem apontados como pardos,
pretos, filhos de mulheres identificadas como pretas ou pardas.
78
Ver: GUDEMAN; SCHWARTZ, 1988; FARIA S., 1998.
105
Pelas CPAB (VIDE, 1853, p.27), “[...] quando alguem é padrinho em nome de
outrem, e toca como seu procurador, não contrahe parentesco senão aquelle, em cujo
nome toca [...].” Assim, os procuradores dos padrinhos faltosos não contraíam vínculos
com o batizando ou com sua família.
Gudeman e Schwartz (1988, p.35-36) nos dizem que dentro dos estudos sobre o
batismo cristão há várias correntes de interpretação. Uma delas seria o que esses autores
chamam de “funcionalista”, que teria como principal objetivo compreender os sentidos
político-econômicos e sociais que esse rito assumiria em um determinado contexto.
Seria uma leitura, digamos, mais terrena, dessa prática eminentemente religiosa. Leitura
que provavelmente também era feita pelos sujeitos que dele participavam e que estaria
80
por trás das suas escolhas no momento de formar laços compadrescos. Foi
provavelmente por isso que, na maioria das vezes, os padrinhos e madrinhas
compareceram diante das pias batismais de São Bento de Pastos Bons e São Pedro de
Alcântara.
79
Ver: BRUGGER, 2003.
80
Ver: GUEDES, 1999.
107
81
Ver: VIDE, 1853.
82
Sobre o tema, ver: RAMOS, 2004; VASCONCELOS, 2004; ROCHA, 2009; GUEDES, 2014.
108
A maioria das crianças libertas pela Lei de 1871 que receberam os santos óleos,
na região analisada, não tiveram o nome do pai registrado nos assentos de batismos.
Consta apenas o nome da mãe e a indicação de serem filhos(as) naturais. Entre os vários
exemplos, destaco os registros de Casimiro e Victorino:
Mesmo não havendo o nome do pai registrado, não significa que essas crianças
não possam ter convivido com seus genitores. Arranjos familiares que fugiam do
modelo nuclear (pai, mãe e filhos) não eram raros entre a população que formava aquela
realidade social, fossem escravizados, libertos ou livres. Nas relações que não eram
abençoadas pela Santa Madre Igreja, as crianças não poderiam ter o nome do pai no
assento batismal. Assim, concordo com Jacinto (2005), que, ao analisar as relações
familiares da população escravizada na São Luís do século XIX, preferiu relativizar a
existência de famílias matrifocais, apenas pelo não registro do nome da figura paterna
nesses documentos produzidos pela Igreja.
Nos inventários analisados também foram registrados vários núcleos familiares
formados apenas pela mãe e sua prole. Em 17 deles, há referências a mães (escravizadas
ou libertas) com seus respectivos filhos (forros, escravizados ou ingênuos) constituindo
parte significativa dos espólios. Cito como exemplo o inventário de Tomás de Aquino
Pereira(1873, fls.23- 36), mostrando as figuras 2, 3, 4, 5 e 6 a seguir:
Raimunda (40
e tantos anos)
Eduardo
Manoel (15 anos)
(12anos) Paulino Emigdio
(10anos)
(7anos)
Paulina
Cyriaco
Pedro (32 anos)
(21 anos) (6 anos)
Maria Ignacio
Zeferino
(8 anos) (3 anos)
(11 anos)
Mauricia
(55 anos)
Sebastianna
(18 anos)
Sebastianno
(2 anos)
Theodozia
30 anos
Domingos Pedro
16 anos
14 anos
Lourença
Criança do sexo
(25 anos) feminino/ ingênua
Lino (1 mês)
(8 anos) Domingos
Sebastianna
(4 anos)
(6 anos)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
da morte de seu senhor fugiu, com medo de uma possível reescravização. A de Luiza,
“outra fujona”, que passou a viver como livre em Barra do Corda. A de Jaciaria, que
diferente de outros companheiros de cativeiro conseguiu sua liberdade “gratuitamente”.
E tantas outras histórias, que nos dão pistas sobre a complexidade da dinâmica cotidiana
que marcou as relações de sociabilidade daqueles indivíduos escravizados convivendo
com a população livre e liberta do sul do Maranhão do século XIX. Relações que foram
marcadas ora pelo conflito, ora por ações cordiais. Desenhou-se uma sociedade na qual
os escravizados criaram em seu cotidiano estratégias de luta e resistência para
sobreviverem em um meio que lhes era hostil.
Vi como foi frequente a presença de escravizados arrolados entre os bens dos
proprietários sul-maranhenses, sugerindo a existência de uma pecuária onde a mão de
obra escravizada convivia com a livre. Em alguns casos, escravizados como os
vaqueiros Francisco e Manoel, exercendo atividades que se acreditava serem exclusivas
dos livres.
Expus a abordagem de alguns autores que procuram compreender as relações de
compadrio e as motivações dos compadres no momento de firmarem tais laços.
Apresentei estudos que apontam as principais tendências de escolhas dos padrinhos
entre a população escravizada. Concordei com eles quanto ao fato de os senhores não
costumarem ser padrinhos de seus escravizados. Assim considero que o batismo cristão
não tenha sido utilizado para fortalecer relações paternalistas nas propriedades
escravistas. Tratei também de estudos que analisam ser o tamanho da propriedade
influencia tanto na quantidade como na qualidade dos laços de compadrio formados
entre a população escravizada. Estudos que verificaram ter sido, na maioria das vezes,
libertos e livres que apadrinharam os filhos dos escravizados; os laços de compadrio,
desse modo, seguiram uma tendência jurídica e economicamente ascendente.
Nas análises dos registros de batismos das Freguesias de São Bento de Pastos
Bons e São Pedro de Alcântara, pude concluir que, no sertão sul maranhense, o batismo
cristão contribuiu para a formação de uma realidade constituída por teias que ligavam
indivíduos de diferentes posições sociais/jurídicas, vínculos que acabaram dando uma
complexidade às relações gestadas por aqueles agentes históricos.
A tendência de escolha dos padrinhos dos ingênuos seguiu o mesmo padrão dos
batismos das crianças escravizadas nesta e outras regiões, pois foram mulheres e
homens livres, preferencialmente, os escolhidos como seus protetores espirituais. O
apadrinhamento constituía-se em uma relação de mão dupla, uma troca entre afilhados /
116
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DOCUMENTOS :