Costa, Ana Paula. Escravos Armdos
Costa, Ana Paula. Escravos Armdos
Costa, Ana Paula. Escravos Armdos
Tese de Doutorado
Rio de Janeiro
Abril de 2010
2
Rio de Janeiro
Abril de 2010
3
_______________________________________
Prof. Dr. Jean Marcel Carvalho França
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP)
_______________________________________
Prof.a. Dr.a. Maria Luiza Andreazza
Universidade Federal do Paraná (UFPR)
_______________________________________
Prof.a. Dr.a. Cacilda da Silva Machado
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
_______________________________________
Prof. Dr. Antônio Carlos Jucá de Sampaio
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Ficha Catalográfica
RESUMO
ABSTRACT
The present work has the objective of analyzing the formation of what we call
“milícias particulares” (private militias) of armed slaves organized by local powerful
established on the county of Vila Rica between 1711 and 1750. More specifically, we
would like to research what make possible to those potentates put guns on the hands of
their slaves and take them on diligence to serve the Portuguese Royalty with the
purpose of getting royal “mercês” that would build and/ or reaffirm their status of
powerful man, with no fear of retaliation. With this purpose, on the first part of the
thesis, we made a study about the economical and socio-political profile of the
individuals that came to live and to organize the region of Minas. On the second part,
the purpose was to analyze on what was based and how it happens on the practice the
negotiations and reciprocities between masters and slaves that make possible to the first
put guns on the hands of their slaves, showing also which kind of benefits and gains the
individuals in focus could obtain with those interactions. At last, and in a
complementary form, we try to analyze the occurrence of certain conflicts and their
motivations and, then, others forms of interdependence between masters and slaves
through the criminal actions.
7
AGRADECIMENTOS
SUMÁRIO
Lista de Abreviaturas....................................................................................................11
Introdução......................................................................................................................15
Capítulo 4. O compadrio.............................................................................................251
Capítulo 5. A alforria..................................................................................................283
Considerações
finais....................................................................................................351
Referências bibliográficas..........................................................................................354
11
LISTA DE ABREVIATURAS
TABELAS
1. Naturalidade dos poderosos locais presentes na comarca de Vila Rica (para os quais
temos informações)..........................................................................................................67
2. Atuação na conquista pelos poderosos locais (para os quais temos
informações)....................................................................................................................87
3. Cargos políticos ocupados pelos poderosos locais (para os quais temos
informações)....................................................................................................................97
4. Potentados com patentes militares (para os quais temos informações).....................118
5. Títulos possuídos e solicitados pelos poderosos locais da comarca de Vila Rica
(para os quais temos informações)................................................................................126
6. Taxas de Alfabetização ente os potentado locais, relacionadas com sua naturalidade
(para os quais temos informações)................................................................................143
7. Estado civil dos potentados locais (para os quais temos
informações)..................................................................................................................150
8. Taxas de retorno ao reino dos potentados locais (para os quais temos
informações)..................................................................................................................157
9. Padrão de posse de escravos entre os poderosos locais visualizado nos inventários
post-mortem (para os quais encontramos informações)................................................168
10. Padrão de posse de escravos entre os poderosos locais visualizado nas listas para
cobrança dos quintos reais por localidades – 1718 – 1725............................................169
11. Ocupação econômica dos potentados locais da comarca de Vila Rica (para os quais
temos informações)........................................................................................................179
12. Percentual de homens e mulheres escravos aparentados nos plantéis dos potentados
locais encontrados nos inventários post-mortem (para os quais encontramos
informações)..................................................................................................................212
13. Origem dos cônjuges dos casais escravos encontrados nos inventários post-mortem..
.......................................................................................................................................217
14. Presença e quantidade de filhos nas famílias escravas encontradas nos
inventários.....................................................................................................................220
13
GRÁFICOS
4. Distribuição (%) dos alforriados conforme sua naturalidade e tipos de alforria (para
os quais temos informações), 1711-1750......................................................................303
5. Distribuição (%) dos tipos de cartas de alforria, 1711-1750.....................................312
15
Introdução
1
LARA, Sílvia Hunold. Fragmentos setecentistas – escravidão, cultura e poder na América portuguesa.
Campinas: Unicamp, 2004. Tese de Livre-Docência, p. 16-17. Para exemplos dos estudos mencionados
que fazem as respectivas revisões historiográficas ver: In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda
& GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa
(séculos XVI – XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. FURTADO, Júnia Ferreira (Org.).
Diálogos Oceânicos. Minas Gerais e as novas abordagens para uma história do império ultramarino
português. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2001. ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes.
Formação do Brasil no Atlântico sul. Séculos XVI e XVII. S. Paulo, Companhia das Letras, 2000.
16
se forjou pela imposição de um topo, mas pela negociação, processo no qual as elites
coloniais foram capazes tanto de opor resistência quanto de usar as instituições
metropolitanas em prol de seus objetivos6. Tais assertivas são válidas não só para o
contexto das Minas, mas para várias localidades da América portuguesa, conforme
alguns estudos apontaram.
Rodrigo M. Ricúpero, por exemplo, analisando a formação da elite baiana no
século XVIII destaca que no processo de colonização da região, a Coroa portuguesa se
utilizou de recursos humanos e financeiros particulares para viabilizar seus projetos,
sem que lhe coubesse nenhum ônus, cedendo em troca terras, cargos, rendas e títulos.
Afirma assim que tais benesses foram a base da consolidação do patrimônio econômico
que levaria a constituição da elite baiana colonial7. De acordo com o autor, ao associar a
elite ao governo, além de dividir as tarefas da colonização com os colonos, a Coroa
reforçava os laços de solidariedade, garantindo a fidelidade à metrópole. A elite colonial
seria assim, em última instância, o sustentáculo do Império no Brasil, sendo a afinidade
de interesses entre Coroa e colonos tão grande que suas riqueza e poder cresciam num
mesmo sentido. Assim, a necessidade objetiva da colonização portuguesa exigia como
parceiros vassalos enriquecidos que pudessem ser associados ao aparelho
governamental8.
Evaldo Cabral de Mello também assinala a atuação das elites pernambucanas em
prol da Coroa, destacando o auxílio prestado na guerra para restauração pernambucana
contra os holandeses. Neste conflito ao disporem de suas vidas, cabedais e escravos
armados em favor de uma causa que não era apenas sua, mas dos grupos que
representava (os principais da terra transformados posteriormente em nobreza da terra)
tornavam-se, enquanto vassalos do Rei, agentes da construção da soberania lusa no
além-mar 9.
Da mesma forma argumenta Maria Verônica Campos ao analisar a formação da
sociedade mineira, nas suas décadas iniciais, através da tentativa da Coroa de impor
6
GREENE, Jack. “Negotiated Authorities: the problem of governance in the extended polities of the early
modern Atlantic world”. In: Negotiated Authorities. Essays in colonial political and constitutional history.
Charlottesville, University Press of Virginia, 1994, passim.
7
RICUPERU, Rodrigo. Honras e mercês. A criação do Governo Geral e a formação da elite colonial.
Texto apresentado na ANPUH (núcleo São Paulo), 2002. Apud: BICALHO, Maria Fernanda. “Elites
coloniais: a nobreza da terra e o governo das conquistas. História e historiografia. In: MONTEIRO, Nuno
G. CARDIM, Pedro & CUNHA, Mafalda Soares da (Orgs.). Optima Pars – elites ibero-americanas do
Antigo Regime. Lisboa, ISC – Imprensa de Ciências Sociais, 2005, p. 91.
8
Idem, p. 92.
9
MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro veio: o imaginário da restauração pernambucana. Rio de Janeiro:
Topbooks, 1997, cap. 3, passim.
18
uma estrutura administrativa e fiscal para recolhimento de direitos e tributos, bem como
para controle da região mineradora. Essa autora assinala que nestes primeiros tempos os
conquistadores e primeiros povoadores da região ao atuarem na defesa e ordenamento
do território às custas de suas vidas, fazendas e escravos armados, não se viam como
colonos mas como sócios da empresa colonizadora10.
A questão crucial colocada por todos estes estudos é a formação de alianças
assimétricas entre Coroa e seus administradores e elites locais para afirmação de seu
domínio. Em outros termos, a Coroa procurou enraizar interesses associando-se a
poderosos locais que tinham sua forma e força na dinâmica local das relações de poder.
Desta forma, tais evidências nos levam a crer que, ao mesmo tempo em que tentava
estabelecer algum tipo de controle sobre a população das Minas, a Monarquia
portuguesa só conseguia estabelecer sua governabilidade à custa da legitimação da
autonomia e do poder das elites locais. Estas por sua vez na sociedade em que se
inseriam não tinham este poder de forma automática, ele pressupunha legitimidade
social. Esta era construída entre tensões, conflitos e negociações através de
entendimentos com ministros do Rei, lavradores, libertos, comerciantes e,
principalmente, por meio de refinadas barganhas com os escravos11. Neste caso,
consideramos que era fundamental que os potentados locais da região enfocada pela
pesquisa se reconhecessem e fossem reconhecidos como um grupo de “qualidade
superior” para conseguir exercer o seu mando e neste momento as negociações e
reciprocidades – além daquelas com a própria elite – com os “estratos subalternos”
assumiam papel fundamental12.
A importância destas interações entre os chamados “estratos subalternos” neste
contexto de formação da sociedade colonial mineira, de definição de hierarquias e
construção e divisão do poder pode ser muito bem exemplificada pela própria
necessidade do uso de fazendas, cabedais e escravos por parte dos poderosos locais em
suas empreitadas de conquista da região, mecanismo do qual a Coroa não pode
prescindir. Com efeito, e como se verá posteriormente, acompanhados de seus negros
10
CAMPOS, Maria verônica. Governo de Mineiros. De como meter as Minas numa moenda e beber-lhe o
caldo dourado. São Paulo: FFLCH-USP, 2002. Tese de Doutorado, p. 408.
11
FRAGOSO, João. “Alternativas metodológicas para a história econômica e social: micro-história
italiana, Fredrik Barth e a história econômica colonial”. In: ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de e
OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de. (Orgs.). Nomes e números: alternativas metodológicas para a história
econômica e social. Juiz de Fora: Ed. da UFJF, 2006, p. 5.
12
FRAGOSO, João. “A formação da economia colonial no Rio de Janeiro e de sua primeira elite senhorial
(séculos XVI e XVII)”. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria F. & GOUVÊA, Maria de Fátima
(Orgs.). O Antigo Regime nos trópicos... Op. cit., p. 58-60.
19
13
Esta realidade se fez presente em várias partes da América Portuguesa. Para o Rio de Janeiro,
Pernambuco, São Paulo, Minas Gerais e Goiás, são inúmeros os relatos que apontam as constantes
intromissões daqueles que se arrogavam o título de principais da terra na conquista, defesa e povoamento
da colônia, o que na maioria das vezes era feito à custa de seu sangue, vida, fazenda e escravos. Neste
sentido ver: BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o Império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, cap. 12; Ver também: FRAGOSO, João. “A nobreza vive em
bandos: a economia política das melhores famílias da terra do Rio de Janeiro, século XVII: algumas notas
de pesquisa”. Revista Tempo, volume 15, Niterói, 2003, p. 11- 35. MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro
veio... Op. cit. MELLO, Evaldo Cabral de. A fronda dos mazombos: nobres contra mascates,
Pernambuco, 1666-1715. São Paulo: Ed. 34, 2003. NAZZARI, Muriel. O desaparecimento do dote: 1600-
1900. São Paulo: Cia. das Letras, 2001, partes 1 e 2. KARASCH, Mary. “The Periphery of the periphery?
Vila Boa de Goiás, 1780-1835”. In: DANIELS, Christine & KENNEDY, Michael V. (Orgs.). Negotiated
Empires: Centers and Peripheries in the Americas, 1500-1820. New York & London: Routledge, 2003, p.
143-169.
14
KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Cia. das Letras,
2000, p.260.
15
LARA, Sílvia Hunold. Fragmentos setecentistas – escravidão, cultura e poder na América portuguesa...
Op. cit., p. 123.
16
LIMA JR. Augusto de. Vila Rica do Ouro Preto. Síntese histórica e descritiva. Belo Horizonte: Edição
do autor, 1957, p. 62.
20
Este assunto será melhor abordado na parte 2 desse trabalho, por ora cabe apenas
ressaltar que, se por um lado, ter armas e contar com uma guarda pessoal de escravos
armados era símbolo de poder pessoal e demonstração de prestígio para os senhores, por
outro lado, para cativos e camadas pobres da população, isso poderia significar a
manutenção da liberdade e sobrevivência. Por isso se fazia necessário para manutenção
da tranquilidade pública ao menos tentar estabelecer medidas proibitivas e punitivas
acerca de seu uso desenfreado. Assim, Rei, conselheiros, governadores e camaristas
proibiram sucessivas vezes que os cativos portassem armas ou circulassem pelas vilas e
fora delas sem autorização de seus senhores. Não é segredo, como bem já demonstrou a
historiografia sobre escravidão na colônia, que negros e negras sob cativeiro tinham
ampla mobilidade geográfica, podendo circular por diferentes lugares, estabelecer
17
ROMEIRO, Adriana. Paulistas e Emboabas no coração das Minas. Idéias, práticas e imaginário
político no século XVIII. Belo Horizonte: Ed UFMG, 2008, p. 89 e 124.
18
AHU, Minas Gerais, cx. 1, doc. 28. CARTA do governador Antônio de Albuquerque Coelho de
Carvalho ao rei. Minas Gerais, 7 ago. 1711. Apud: ROMEIRO, Adriana. Paulistas e Emboabas no
coração das Minas... Op. cit., p. 89.
21
contatos com diferentes setores sociais e ter assim maiores chances de inserção e
ascensão19. Por isso mesmo o temor de rebeliões escravas era também uma constante, e
o fato desses cativos terem essa relativa liberdade de circulação e de alguns andarem
armados potencializava o clima de insegurança e violência nas Minas que se formava.
Contudo, apesar dos temores, do clima de instabilidade, das tentativas de proibição do
uso de armas por parte dos cativos, a prática de se usar escravos armados fazia parte do
dia-a-dia dos indivíduos que se prestavam a defender as povoações, fazer diligências em
lugares distantes como o Rio de Janeiro, São Paulo e Mato Grosso, cobrar impostos em
nome de El Rey, enfim, conquistar e organizar política e socialmente o espaço
enfocado.
Nesta questão do uso do escravo como braço armado cabe aqui uma ressalva de
fundamental importância. Em nosso trabalho nos referimos a um uso privado dos
mesmos, uma espécie de guarda pessoal constituída informalmente, isto é, sem a
conotação militar que se associa as tropas de negros montadas recorrentemente durante
todo o período colonial em caso de necessidade, sendo a mais famosa conhecida como
“terço dos Henriques”. Por isso, optamos por nomear o séquito de escravos armados que
eram usados pelos potentados em suas diligências como “milícia particular”, justamente
para passar essa idéia de informalidade, num sentido genérico que desse a noção de se
tratar de algo que, apesar de ser usado em determinados momentos com fins militares,
não pode ser atrelado à estrutura formal da organização militar lusitana. Esta constituía-
se a partir de três tipos específicos de forças: os Corpos Regulares (conhecidos também
por Tropa Paga ou de Linha), as Milícias ou Corpo de Auxiliares e as Ordenanças ou
Corpos Irregulares20. Mas havia outras formas de organização mais específicas que
subdividia as forças de acordo com as hierarquias sociais. No caso dos negros poderiam
ser agrupados, basicamente, em quatro espécies de milícias: as companhias auxiliares
de infantaria; as companhias de ordenanças de pé; os corpos de pedestres e os corpos
de homens-do-mato. Essas milícias foram institucionalizadas nas Minas a partir dos
primeiros anos dos setecentos e foram vistas de maneiras distintas pelas diversas
autoridades portuguesas21.
19
SILVEIRA, Marco Antonio. “Aspectos da luta social na colonização do Brasil: crioulos e pardos forros
na Capitania de Minas Gerais”. Mariana: mimeo, 2007, p. 1 a 6.
20
COSTA, Ana Paula Pereira. Atuação de poderes locais no Império Lusitano: uma análise do perfil das
chefias militares dos Corpos de Ordenanças e de suas estratégias na construção de sua autoridade. Vila
Rica, (1735-1777). Rio de Janeiro: UFRJ, 2006. Dissertação de Mestrado, p. 17.
21
COTTA, Francis A. No rastro dos Dragões: universo militar luso-brasileiro e as políticas de ordem nas
Minas setecentistas. Belo Horizonte: UFMG, 2005. Tese de Doutorado, p. 207.
22
22
APM. SC. Cód. 229, fl. 75 v. Apud: COTTA, Francis A. No rastro dos Dragões... Op. cit., p. 208.
23
Idem.
23
holandeses e espanhóis parecem ser aterrorizados pela imagem dos negros em batalha,
considerados selvagens e ferozes24.
No final do período colonial esta prática ainda se fazia comum. É o que
demonstra Gabriel Aladrén ao analisar a existência e funcionamento das companhias
milicianas de escravos e forros em Rio Grande de São Pedro nos anos de 1811 a 1820.
De acordo com o autor, era comum que pretos e pardos livres e libertos se engajassem
em milícias, no exército ou em outras formas de organização militar no Rio Grande de
São Pedro a fim de obterem uma forma de inserção social. Deste modo, poderiam
participar da divisão do botim – comumente cabeças de gado vacum e cavalar – e ter
acesso a terra. Nesse equilíbrio delicado entre subordinação, violência, negociação e
possibilidade de mobilidade social os pretos e pardos definiam e escolhiam seus
caminhos, dentre as (com certeza poucas) alternativas disponíveis. Assim, apesar das
más condições de vida no exército e da violência do recrutamento, é fato que, ainda
assim, as forças armadas foram um canal para a mobilidade social de pretos e pardos no
período colonial25.
Portanto, durante todo o período colonial a América portuguesa manteve o
costume de recrutamento de escravos e forros em caso de movimentação bélica. E ainda
que essas tropas de escravos fossem irregulares, as ordens régias para a organização das
mesmas continha regulamentos determinando que os nomes dos escravos úteis para a
guerra viessem listados juntamente com o de seus senhores. Desta forma, o
recrutamento de escravos, forros e a criação de regimentos de negros não eram
fenômenos raros no período colonial26.
Porém, há de se destacar que era bem diferente a lógica de montagem,
recrutamento e funcionamento do armamento de escravos nas Milícias ou Ordenanças,
ou seja, via algo mais institucionalizado, e o armamento particular feito pelos senhores
que necessitavam de uma guarda pessoal para atuar em situações variadas. A prática de
armar seus próprios escravos, seja para lutar em guerras, seja para entrar em confrontos
diversos, era difundida em quase todas as sociedades escravistas e também o foi no
24
SILVA, Kalina Vanderlei. “Os Henriques nas Vilas Açucareiras do Estado do Brasil: Tropas de
Homens Negros em Pernambuco, séculos XVII e XVIII”. Estudos de História. Franca, v.9, n.2, 2002,
UNESP, p. 2-3.
25
ALADRÉN. Gabriel. “Guerra, fronteira e liberdade: fuga de escravos e vivências de forros durante a
campanha contra Artigas (Rio Grande de São Pedro, 1811-1820)”. Anais do II Encontro Internacional de
História Colonial. MNEME – Revista de Humanidades. UFRN –, v. 9, nº. 24, set/out. 2008, p. 11-12.
Disponível em www.cerescaico.ufrn.br/mneme/anais
26
Idem, p. 1 e 3.
24
Brasil27. Alguns autores ressaltam mesmo que pegar em armas para, eventualmente,
lutar em diversos tipos de conflitos ao lado de seus senhores era considerada uma
extensão dos serviços usualmente prestados pelos cativos.
Já sugerimos anteriormente que nesta sociedade o poder dos homens media-se,
sobretudo, pelo número de pessoas que gravitavam em sua volta, que buscavam auxílio
e proteção. Não por acaso a riqueza era um dos elementos que compunha a
caracterização de um homem poderoso. Porém ela por si só não bastava para conferir
este status, sendo também necessário que o indivíduo constituísse um pólo de poder
privado, tido e reconhecido pelos contemporâneos. Segundo Adriana Romeiro, como
bem o demonstra a documentação de época, aqueles que se enriqueciam com os
negócios da mineração ou do comércio podiam frequentemente alcançar uma posição
social mais elevada aos olhos da população, conquistando um território de mando.
Nesses territórios de mando, parentes, afilhados, vizinhos e agregados se articulavam
em vastas cadeias clientelares que se distribuíam em povoados e arraiais, unindo
homens pobres aos poderosos locais em relações de dependência e obrigação, sendo
isso também a eles necessários para sua sobrevivência numa região dividida em
territórios de mando. Presos as redes clientelares, eles encarregavam-se de executar as
ordens dos potentados, que em retribuição podiam, por exemplo, solucionar querelas e
agravos, tomar para si as suas causas e enfrentar os seus inimigos, protegendo-os de
outros poderosos28.
Desta forma, além da prestação de serviços ao Rei na conquista e na defesa do
território, da posse de grossos cabedais e da ocupação dos chamados cargos honrados da
Republica o poder dos principais moradores da terra da América portuguesa devia-se ao
fato também de disporem de uma clientela ou de um séquito de homens livres e de
escravos. Respeitando suas especificidades regionais, a utilização por parte das
autoridades e dos potentados locais de guerreiros indígenas, escravos armados,
“desclassificados” e indivíduos livres pertencentes às camadas populares para o
exercício da violência foram práticas comuns nas diversas partes da América
portuguesa29.
Assim sendo, podemos sugerir que no além-mar o exercício do mando se dividia
em diversos planos: os senhores exerciam poder sobre seus escravos e outros segmentos
27
Ibidem, p. 9.
28
ROMEIRO, Adriana. Paulistas e Emboabas no coração das Minas... Op. cit., p. 84 e 87.
29
GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias D’El Rey: tropas militares e poder no Ceará
setecentista. Niterói: UFF, 2009. Dissertação de Mestrado, p. 92-93.
25
sociais, mas em contrapartida, estavam submetidos aos desígnios da Coroa. Esta, por
sua vez, contava com a ação dos potentados locais para a manutenção do poder
metropolitano e ao legar a ocupação de determinadas funções a esses indivíduos, abria
espaço para que os mesmos usassem as ditas concessões em benefício próprio.30 Mas
para que conseguissem exercer poder sobre seus escravos, para conseguir montar suas
“milícias particulares” e assim serem reconhecidos como homens poderosos na
localidade, os potentados tinham de interagir com os cativos por meio de relações que,
do nosso ponto de vista, ultrapassava a simples coerção e uso da força. Nesses casos em
que, em última instância, necessitava da colaboração dos escravos, de manter relações
de confiança para que ao armá-los os mesmo não se rebelassem, defendemos que seria
muito mais lógico que o senhor negociasse, barganhasse, concedesse ou estabelecesse
relações pautadas em reciprocidades com seu cativo, nas quais cada parte interagia
visando o que lhe fosse mais benéfico.
Dito de outra forma, o que os escravos ganhavam em troca de sua atuação como
braço armado, de manter-se ao lado de seu senhor num momento em que, ao menos em
teoria, teriam mais vantagens e chances de ser bem sucedido em uma possível fuga ou
ato de rebeldia, como o deveria ser ao ter em suas mãos armas para atacar um quilombo,
ou para transportar ouro, atividades em que comumente alguns desses potentados
levavam seus cativos e que seriam momentos propícios para reagirem contra seus
donos. O que mediava essas práticas? Quais os mecanismos que engendravam este tipo
de interação? O que possibilitava a construção destas relações pautadas nas negociações
e reciprocidades? Estas foram questões que tentamos responder ao longo da pesquisa
para uma melhor compreensão das relações escravistas estabelecidas na sociedade em
questão, tentando ressaltar outras formas de convívio entre senhores e escravos que
extrapolavam o simples uso da violência física como elemento responsável pela
manutenção da escravidão.
Como marco cronológico, optamos por analisar a primeira metade do século
XVIII notadamente os anos entre 1711 a 1750. Este foi um período extremamente
crítico para o governo das Minas, marcado por várias revoltas e motins, por indefinições
de fronteiras e pela “era dos potentados”31. No entanto, este período é também
usualmente visto como de constituição e afirmação do poder metropolitano na capitania
por sua institucionalização administrativa no qual esses potentados e seu “séqüito”
30
Idem, p. 198-200.
31
SOUZA, Laura de Mello e. Norma e conflito: aspectos da história de Minas no século XVIII. Belo
Horizonte: UFMG, 1999, p. 87-97.
26
tiveram papel ativo ora atuando em concordância, ora atuando em ruptura32. O marco
inicial foi escolhido por balizar medidas concretas de tentativa de normatização deste
espaço colonial – que nestes primeiros anos se encontrava em processo tão incipiente de
configuração que nem ao menos se constituía em capitania com governo independente33
– com a criação de diversas vilas e arraiais a saber, Ribeirão do Carmo, Vila Rica,
Sabará, Rio das Mortes, Serro Frio e Brejo do Salgado 34. O Marco final foi escolhido
por marcar o fechamento do ciclo de expansão e riqueza característico deste primeiro
momento de desbravamento da região35. Foi este o início de um período de muitas
mudanças na capitania, tanto políticas quanto econômicas, no caso, um maior controle
administrativo da capitania por parte da metrópole, se comparado ao alvorecer das
Minas36, e uma queda na produção do ouro que se seguiria na segunda metade do XVIII.
*******
Desde pelo menos a década de 70 tornou-se cada vez mais evidente os impasses
pelos quais passava a ciência histórica, notadamente a história social de matriz francesa,
herdeira da tradição dos Annales, cujas características básicas eram: estudo das séries
(pois só delas se poderia extrair leis para criação de grandes modelos), ênfase na longa
duração para se estudar transformações globais, o recorte macro, o uso da quantificação
e o estudo do coletivo37. Nesse viés, o mundo social era tido como perfeitamente
integrado por suas partes sendo os comportamentos dados por normas sociais prontas38.
Muitas críticas contra esse estado da história social foram surgindo, sobretudo após a
crise dos dois paradigmas centrais da abordagem histórica até então, a saber, o
32
FURTADO, Júnia. Homens de negócio: a interiorização da Metrópole e do comércio nas Minas
setecentistas. São Paulo: Hucitec, 1999, p. 27.
33
Somente em 1720 Minas Gerais torna-se capitania independente e separa-se de São Paulo. Ver:
SOUZA, Laura de Mello e. Norma e conflito... Op. cit., p. 88-89.
34
COTTA, Francis A. “Para além da desclassificação e da docilização dos corpos: organização militar nas
Minas Gerais do século XVIII”. MNEME – Revista de Humanidades. UFRN –
http://www.seol.com.br/mneme/ p.4.
35
FURTADO, Júnia. Homens de negócio... Op. cit., p. 27.
36
Neste sentido ver ANASTASIA, Carla. Vassalos e rebeldes: violência coletiva nas Minas na primeira
metade do século XVIII. Belo Horizonte: C/ Arte, 1998, p. 12.
37
Cf.: BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a História. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1992, passim. Ver
também: DOSSE, François. A história em migalhas: dos Annales à Nova História. Campinas: Ed. da
Unicamp, 1992, p. 61-166.
38
REVEL, Jacques. “Microanálise e construção do social”. In: REVEL, Jacques (Org.). Jogos de escala: a
experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1998, p. 17 a 19.
27
39
REVEL Jacques. “A história ao rés-do-chão”. In: LEVI, Giovanni. A herança imaterial. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2000, p. 13.
40
STONE, Lawrence. “Prosopography”. Daedalus: Journal of the American Academy of Arts and
Sciences, v. 100, 1971, nº 1, winter, p. 46-47.
41
HEINZ, Flávio M. “O historiador e as elites – à guisa de introdução”. In: HEINZ, Flávio M. (Org.). Por
outra história das elites. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2006, p. 9.
42
LEPETIT, Bernard. “Sobre a escala na história”. In: REVEL, Jacques (Org.). Jogos de escala: a
experiência da microanálise... Op. cit., p. 88-89.
43
REVEL, Jacques. “Microanálise e construção do social...” Op. cit., p. 26-27.
28
44
GRIBAUDI, Maurizio. “Escala, pertinência, configuração”. In: REVEL, Jacques (Org.). Jogos de
escala: a experiência da microanálise... Op. cit., p. 136.
45
Para exemplos de estudos que criticaram tais noções ver: FRADKIN, Raúl y GELMAN, Jorge.
“Recorridos y desafios de una historiografia. Escalas de observácion y fuentes em la historia rural
rioplatense”. In: BARGONI, Beatriz (Org.). Microanálisis. Ensayos de historiografia Argentina. Buenos
Aires, 2004. FRAGOSO, João & FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto. Rio de Janeiro :
Civilização Brasileira, 2002.
46
CUNHA, Mafalda Soares da. A Casa de Bragança, 1560-1640: práticas senhorias e redes clientelares.
Lisboa: Editora Estampa, 2000, p. 96.
47
Cf.: GRIBAUDI, Maurizio. “Escala, pertinência, configuração”. In: REVEL, Jacques (Org.). Jogos de
escala: a experiência da microanálise... Op. cit., passim. Ver também: REVEL, Jacques. “Microanálise e
construção do social...” Op. cit., p.21-23.
48
HEINICH, Nathalie. A sociologia de Norbert Elias. São Paulo: EDUSC, 2001, p. 101. Ver também:
ELIAS, Norbert. Os Estabelecidos e os Outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma
pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
29
49
CHARTIER, Roger. “Formação Social e economia psíquica: a sociedade de corte no processo
civilizador”. In: ELIAS, Norbert. A Sociedade de Corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da
aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 13.
50
ELIAS, Norbert. Introdução à Sociologia. Lisboa: Edições 70, 2005, p 142-143.
51
ELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994, p. 29-30
52
Idem, partes II e III.
53
ELIAS, Norbert. Introdução à Sociologia... Op. cit., p. 139.
30
sejam grandes ou pequenas as diferenças de poder entre os atores, seu equilíbrio está
sempre presente onde quer que haja uma interdependência funcional entre pessoas54.
Na verdade, para Elias, a questão do poder constitui-se no seio da elite, ou
aristocracia, como ele prefere chamar, um fenômeno característico de seu grupo, já que
possuem a tendência não somente de construir ou manter relações de desigualdade, mas
também de legitimá-las, explicando-as por diferenças de valor individual55. Cabe
sublinhar que este autor vai além da idéia de luta de classes para compreender a relação
de dominação entre grupos, pois mostra que a discriminação apoiada nas diferenças de
recursos econômicos é apenas um caso particular – e talvez não o mais característico –
dos processos de segregação ou de estigmatização. Assim, segundo o referido autor, o
processo de discriminação e dominação se constituiria e se manifestaria a partir de
comportamentos, práticas mundanas, convívio com certas pessoas e em certos lugares e,
sobretudo, pela construção de referências que permitem diferenciar-se de um outro
grupo percebido ou constituído como inferior56.
Em um estudo clássico Elias e John L. Scotson analisaram esta questão da
segregação, estigmatização e dominação sob o ponto de vista da introdução de um
grupo de outsiders em uma sociedade já estabelecida57, e que muito pode nos auxiliar na
elaboração de reflexões sobre a natureza do escravismo colonial. Segundo os autores, os
estabelecidos, detentores de mecanismos de marginalização, manteriam os recém-
chegados em uma posição inferior, vedando-lhes o acesso a instrumentos que poderiam
promover a sua ascensão social. Nestas condições, os habitantes mais antigos da dita
sociedade tenderiam a se ver como seres humanos superiores, relegando os outsiders a
uma posição inferior, tidos como anômicos e sujos, enfim o oposto da auto-imagem que
os estabelecidos têm de si. Assim, se criaria uma estrutura de poder razoavelmente
sólida, privando os outsiders até de uma auto-imagem positiva, que lhes permitisse
refutar as humilhações dirigidas pelos estabelecidos. Associando tais premissas ao
estudo da escravidão no contexto abordado, podemos argumentar que os cativos
constituíam-se nos outsiders, sendo os africanos ainda mais estrangeirizados pelo fato
de serem outsiders para dois grupos diferentes: para os brancos seus senhores e para os
crioulos seus “companheiros”. Entra em marcha nesse momento um duplo processo de
absorção sócio-cultural. Por um lado, o boçal tem de lidar com o idioma, com as tarefas
54
Idem, p. 80-81.
55
HEINICH, Nathalie. A sociologia de Norbert Elias... Op. cit., p. 103.
56
Idem, p. 109-110.
57ELIAS, Norbert e SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders... Op. cit.
31
e com todo o universo luso-brasileiro, que lhe outorga o trabalho e a condição servil.
Por outro, temos visto em inúmeros trabalhos, enfrenta um sem fim de querelas com os
crioulos, estabelecidos no mundo cativo antes deles58.
Ocorre, no entanto, que esta situação de “estranho” não pode se sustentar ad
eternum, algum destino o novo grupo há de ter: extermínio, expulsão ou absorção (ainda
que numa posição inferior). O tempo de convívio e os processos aculturadores que se
estabelecem nesse tempo podem ser a chave da expectativa de infiltração e ascensão do
boçal que se ladinisa, no caso da escravidão. Por outro lado, além da faixa de
propriedade, aguardava o escravo aquela outra hierarquia, pela qual ele era inserido em
posição deveras desprivilegiada, não se livrando nunca do estigma de outsider59.
Tais noções nos fazem repensar muito acerca da escravidão na sociedade
colonial, na medida em que nos ajuda a entender o conceito de escravo ou escravidão
não como algo estático, mas sim como algo que se forma a partir de interações, de
relações dos senhores com seus escravos e por isso inserido em um contexto e
periodização. Ao se estudar comportamentos, ações, hábitos dos atores envolvidos nas
interações focadas em diversos momentos percebemos nas fontes utilizadas padrões,
que são traduzidos como experiências freqüentes ou tendências gerais. Porém, conforme
alertou Carlos Engeman, não estaremos outorgando que tais números correspondem a
totalidade dos casos ou que tais padrões constituem leis inescapáveis. Muito mais
estaremos tratando de práxis, costumes, que eram abundantes neste ou naquele grupo e,
portanto, revela um traço da ordem da cultura engendrada por tais indivíduos em sua
ação conjunta60.
Ressalte-se que do entrecruzar de ações de muitas pessoas podem emergir
conseqüências sociais que ninguém planejou. Ou seja, o decurso do “jogo social” tem
poder sobre o comportamento e pensamento dos “jogadores” individuais uma vez que
suas ações e idéias não podem ser compreendidas e explicadas se forem consideradas
em si mesmas; precisam ser inseridas na estrutura do “jogo”61.
Utilizaremos ainda de N. Elias o conceito de habitus para analisar,
principalmente, questões acerca do perfil dos potentados locais, bem como de suas
relações econômica, sociais e políticas. A noção de habitus nos permite fazer a ligação
58
ENGEMANN, Carlos. De laços e de nós: constituição e dinâmica de comunidades escravas em grandes
plantéis no Sudeste brasileiro do Oitocentos. Rio de Janeiro: UFRJ, 2006. Tese de Doutorado, p. 30-31.
59
Idem.
60
ENGEMANN, Carlos. De laços e de nós: constituição e dinâmica de comunidades escravas em grandes
plantéis no Sudeste brasileiro do Oitocentos... Op. cit., p. 6.
61
ELIAS, Norbert. Introdução à Sociologia... Op. cit., p. 103- 104.
32
criavam-se laços afetivos e econômicos entre os dois pólos da relação que, por serem
desiguais, eram também desequilibrados. Gerava-se, portanto uma espiral de poder que
tendia a crescer em grandes proporções72.
Dentro deste viés, a ocupação de cargos administrativos, postos militares,
aquisição de títulos, são vistos numa perspectiva que destaca que se ao mesmo tempo
em que ser provido nestes postos e cargos eram graças que muitos almejavam alcançar,
o exercício dos mesmos era também entendido pelos súditos como serviços prestados e,
portanto, dignos de serem recompensados, principalmente se tivessem como comprovar
que tiveram bom desempenho ao ocupá-los73, o que acabava por propiciar um espaço
para a negociação nas relações destes homens com a Coroa.
Malgrado as contribuições que este trabalho proporcionou para muitos
estudiosos no entendimento das relações processadas na sociedade de Antigo Regime,
acreditamos que tal modelo é estático, pois como dito, tem-se o comportamento como
dado. As ações sociais devem ser entendidas como ferramentas para se conhecer a
realidade e deste modo, não devem ser entendidas como dadas, nem vistas como presas
mecanicamente às normas sociais, pois são constituídas a partir das interações entre
diversas pessoas ou grupos dependentes de seus status e recursos sociais. É exatamente
neste ponto que podemos estabelecer um diálogo frutífero com a obra de Fredrik Barth,
na medida em que seus pressupostos nos remetem para o fato de que em meio ao
processo de interação, novos recursos e estratégias, novos valores e status (direitos e
deveres dos agentes históricos) podem ser delineados, ou seja, tal análise sofistica o
entendimento das relações sociais; pois questiona os mecanismos que levam os
indivíduos a interagirem.
Ademais, na noção de economia moral do dom a idéia perpassada ao final da
interação entre os atores é a de dependência de apenas uma das partes, no caso a
“dominada”, o que, determina de antemão a posição do ator no processo de interação
sem mesmo analisar sua ação dentro da configuração estabelecida. Em Barth, ao
contrário, a idéia perpassada é a de que para que uma interação social, entre dois
indivíduos ou inúmeras pessoas, seja bem sucedida ambas as partes devem sair
ganhando. Em outras palavras, ambas as partes devem maximizar seus interesses, pois
72
GOUVÊA, Maria de F.; FRAZÃO, Gabriel A & SANTOS, Marília N. dos. “Redes de poder e
conhecimento na governação do Império Português, 1688-1735. Topoi. Revista de História. Rio de
Janeiro, vol. 5, nº. 8, 2004, p. 98.
73
ALMEIDA, Carla M. C. de Homens ricos, homens bons: produção e hierarquização social em Minas
colonial (1750-1822). Niterói: UFF, 2001. Tese de Doutorado, p. 252.
35
se leva em conta que as expectativas dos atores que estão interagindo são diferentes e
que cada um tem uma noção diferenciada do que é ganhar, fato que está relacionado
com o status de cada um e com seu posicionamento social. Ressalte-se que a
possibilidade de fracasso também existe bem como um ganho mínimo dentro do que se
almejava74. O valor é identificado por escolhas que se repetem, que adquirem
regularidade. Segundo Barth, valores são o que as pessoas pensam e como agem sobre
certo fim. São julgamentos75. Saliente-se que a busca por maximização de interesses
pode ser realizada por diferentes escolhas e caminhos, mas que são norteados pela
mesma matriz de valores e a comparação é um meio de observar, por diferentes
trajetórias individuais, esta “gama de possíveis”76.
Esta interpretação possibilita ver o indivíduo como um ser racional que persegue
objetivos e visa maximizar seus interesses, onde as regras e os limites impostos às suas
próprias capacidades de escolha estão essencialmente inscritos nas relações sociais que
ele mantêm. Eles se situam, portanto nas redes de obrigações, de expectativas, de
reciprocidades que mantêm e caracterizam a vida social77. Para além disso, tal
perspectiva permite analisar o tecido social como uma interação contínua entre diversas
pessoas e grupos que se lançam ativamente a cada momento em busca de diferentes
objetivos e articulando diversas formas de ação78. Este modelo guiado pela geração do
processo analisa as escolhas para perceber como se dá à interação ente as pessoas onde,
através do que Barth denomina de transação (sequências de interações sistematicamente
governadas pela reciprocidade), é possível perceber as limitações e possibilidades dos
atores. Relevante ressaltar que este processo tem uma mobilidade e o resultado dele não
necessariamente é o que os atores esperavam visto que, existe a ação do outro – a
incerteza – como um dos componentes deste processo de interação 79. Como em Barth o
indivíduo é pensado de forma relacional, isto é, em suas relações com outros indivíduos,
o social assume uma dimensão dinâmica visto que muitos elementos estão envolvidos
na tecitura do sistema: estratégias, incerteza, concepções e necessidade diferenciadas80.
74
BARTH, Fredrik. “Models of social organization III: the problem of comparison”. In: Process and form
in social life... Op. cit., p. 61-75.
75
BARTH, Fredrik. “Models of social organization II: processes of integration in culture”. In: Process
and form in social life... Op. cit., p. 48-60.
76
Cf.: LEVI, Giovanni. A herança imaterial... Op. cit.
77
CERUTTI, Simona. “Processo e experiência: indivíduos, grupos e identidades em Turim do século
XVII”. In: REVEL, Jacques (Org.). Jogos de escala... Op. cit., p. 189.
78
LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana... Op. cit., p. 261.
79
Neste sentido ver: LEVI, Giovanni. A herança imaterial... Op. cit.
80
BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa
Livraria, 2000, p.107-139.
36
Por isso, para Barth o processo é sempre uma barganha, pois é formado por agentes com
status diferentes que vão estabelecendo estratégias, ou seja, para ele o processo é
sempre algo tenso81. Em outros termos, as ações que formam o real são respostas dadas
pelos atores a uma determinada situação condizente com suas expectativas, recursos,
campo de pertencimento, etc.82.
Vale lembrar que na perspectiva aqui adotada os indivíduos não podem ser
tomados como pontos fixos no espaço, pois alterações em suas posições são inevitáveis,
até por que o espaço no qual se inscrevem também se modifica, o que resulta em
mudanças em suas próprias idéias, valores e recursos83. Assim, os grupos analisados
serão tratados de forma relacional, ou seja, tomaremos os agentes em um espaço de
posição, o que implica em percebê-los como agentes em relação. Da mesma forma que
não se pode tratá-los como pontos fixos imutáveis, não é possível isolá-los em suas
posições. É por relação aos demais agentes, por suas disputas, concorrências e alianças,
que suas ações, estratégias, investimentos, tomadas de posição assim como seus valores
podem ganhar maior inteligibilidade84. Seu reconhecimento enquanto elite e suas
estratégias individuais estão relacionadas a diferentes posições sociais por eles ocupadas
e aos recursos que controlam85.
Em outros termos ao analisarmos as relações entre potentados e seus escravos
sob a perspectiva de redes interpessoais, estamos entendendo que as escolhas de um
ator no momento de interação não dependem apenas de si próprio, ou seja, de seus
recursos e obrigações, mas também das ações e reações (da interação) dos outros
atores posicionados para o jogo (social)86. Entendemos assim que, durante os
momentos de interação, todos os envolvidos buscavam maximizar seus ganhos sociais,
políticos, econômicos e simbólicos.
Baseado então nas premissas anteriormente explicitadas observaremos o modo
pelo qual as relações sociais entre os indivíduos em foco criaram solidariedades,
alianças, reciprocidades para assim entendermos, por um lado, como as redes tecidas
com os escravos puderam auxiliar na aquisição e manutenção do poder dos poderosos
81
BARTH, Fredrik. “Analytical dimensions in the comparison of social organizations”. In: Process and
form in social life... Op. cit., p. 119-137.
82
LEPETIT, Bernard. “Sobre a escala na história”. In: REVEL, Jacques (Org.). Jogos de escala: a
experiência da microanálise... Op. cit., passim.
83
GRYNSZPAN, Mario. Ciência, política e trajetórias sociais: uma sociologia histórica da teoria das
elites. Rio de Janeiro: Ed. FVG, 1999, p. 15-16.
84
Idem, p. 17.
85
Ibidem, p. 42.
86
ROSENTAL, Paul André. “Construir o macro pelo micro: Fredrik Barth e a micro história” In: REVEL,
Jacques (Org.). Jogos de escala... Op. cit., p. 158-9.
37
da localidade. Por outro lado, levando em consideração que toda relação social é
recíproca, analisaremos tais relações também do ponto de vista dos escravos, isto é,
focando os possíveis benefícios e ganhos que estes adquiriram nestas interações.
*******
lista na qual figurou o nome de 193 potentados locais. Partindo então desta lista
priorizamos inicialmente fontes que nos permitissem visualizar parte de suas trajetórias
de vida para que conseguíssemos estabelecer seus padrões de condutas, interações com
outros atores sociais, suas formas de inserção e o perfil sociológico dos mesmos. Neste
sentido, na definição e investigação dos membros desse grupo procuramos levantar o
maior número possível de informações para cada um dos nomes listados nos seguintes
documentos:
2) Listas para a cobrança dos quintos reais (imposto de 20% sobre a produção aurífera) 89
nas quais vinha disposto o nome dos proprietários de cativos da localidade e o tamanho
de seu plantel.
Raposo de Almeida Figueiredo e Maria Verônica Campos. Quanto às listas de vereadores, elas foram
inventariadas dos Termos de Acórdãos e Vereanças, que contêm o nome dos elegíveis da Câmara de
Mariana, alocados no Arquivo Público Mineiro Cód. 02, 05 e 06; e da relação dos oficiais da Câmara de
Ouro Preto, desde sua fundação, retirada do Memorial Histórico-Político da Câmara Municipal de Ouro
Preto. Cor & Cor Editorial: Ouro Preto, Dezembro de 2004.
89
As listas de registro para cobrança dos quintos reais utilizadas foram as do Arquivo Público Mineiro,
Coleção Casa dos Contos códices 1022, 1024, 1025, 1026, 1028, 1029, 1030, 1033, 1034, 1035, 1036,
1039. Listas de registro para cobrança dos quintos reais do Arquivo da Câmara de Mariana, códice 150 e
códice 166.
90
Catálogo de sesmarias. Revista do Arquivo Público Mineiro. Série Instrumento de Pesquisa. Ano
XXXVII, volumes 1 e 2, Belo Horizonte, 1988.
39
ligações com o próprio Rei, com autoridades metropolitanas, com outros setores da elite
colonial e reinol e com os chamados “grupos subalternos”.
Escolhidos os atores históricos a analisar, procuramos segui-los nas múltiplas
relações que mantinham com seus escravos, o que significou continuar a investigá-los
em outros tipos de fontes de forma a contemplar diferentes aspectos e momentos de sua
história de vida91 e, consequentemente, de seus escravos. Assim, no primeiro conjunto
documental analisado o objetivo era tentar coletar informações sobre o grupo de
potentados que listamos para, posteriormente, os seguirmos em suas relações com seus
cativos, as formas de construção e funcionamento do recurso de se montar “milícias
particulares de escravos” e assim tentar reconstituir com maior rigor como se
estabeleciam relações de negociações e reciprocidade entre ambos. Desta forma,
ampliamos o corpus documental utilizando fontes onde fosse possível vasculhar
escolhas interpessoais nas relações interindividuais entre os agentes aqui em foco92.
Neste sentido, optamos por analisar:
10) Cartas de alforria presentes nos Livros de Registros de Notas do 1º e 2º ofícios dos
arquivos da Casa Setecentista de Mariana e no Arquivo Histórico do Museu da
Inconfidência93.
91
FRAGOSO, João. “Afogando em nomes: temas e experiências em história econômica”. Topoi. Revista
de História. Rio de Janeiro, vol. 5, 2002, p. 62.
92
CUNHA, Mafalda Soares da. A Casa de Bragança, 1560-1640... Op. cit., p. 398.
93
Em Mariana existe para o primeiro ofício 140 livros que abarcam o período de 1711-1929 e para o
segundo ofício 48 livros que abarcam o período de 1722-1923. Existem também para Mariana e seu
termo 3 livros de registros de alforrias que abarcam o período de 1736-1808 localizados no arquivo da
Casa Setecentista de Mariana. Para Ouro Preto tal documentação encontra-se no arquivo da Casa do Pilar
de Ouro Preto atrelada ao fundo judiciário do fórum de Ouro Preto e abarca o período de 1719-1955.
41
Como a análise das fontes revelou-se não tão promissora quanto se imaginava a
princípio, tivemos de utilizar essa ampla e variada documentação para responder as
questões propostas, pois eram muitas as lacunas e dados insuficientes que surgiam à
medida que pesquisávamos. Desta forma, em se tratando de um estudo que procura
investigar as interações feitas por um grupo que poucos registros diretos deixaram
acerca de sua vivência na sociedade em questão, ou seja, os escravos, para que
conseguíssemos visualizar, mesmo que muito parcialmente, alguns aspectos relevantes
das formas de pensar e agir dos atores tentamos aplicar o modelo indiciário
sistematizado por Carlo Ginzburg na análise das fontes sob as quais nos debruçamos94.
Neste modelo de análise defende-se que os detalhes aparentemente marginais e
irrelevantes são formas essenciais de acesso a uma determinada realidade. Segundo
Ginzburg são esses detalhes que podem dar acesso a redes de significados sociais e
psicológicos. Trata-se assim de um procedimento interpretativo centrado em resíduos,
sinais ou dados marginais. Em uma documentação repetitiva, incompleta e cerceada por
regras de comunicação entre autoridades em diferentes níveis hierárquicos, muitas vezes
são os detalhes que funcionam como elementos reveladores dos processos históricos e
sociais95. A partir de tal procedimento metodológico foi possível responder as perguntas
que eram propostas, juntando “cacos” achados nos arquivos. Conforme destacou Sílvia
Lara, puxando os fios e trilhando caminhos que não são muito comuns, os fragmentos
permitem aos poucos vislumbrar nexos importantes. Como pequenas frestas por onde se
consegue divisar um ambiente mais amplo, eles permitem iluminar significados da
experiência humana numa sociedade fundamentalmente diversa da que vivemos hoje
em dia96.
De forma complementar, um último corpo documental analisado foram os
processos-crime a fim de trazermos à tona o conflito existente nas interações feitas entre
os atores focados, e suas motivações. Ao contrário da análise funcionalista que enfatiza
a ordem e a harmonia inerente ao convívio humano, acreditamos que o conflito possui
um papel fundamental na forma em que os seres humanos interagem, refletindo na
relação ação social/estrutura. Neste sentido, também utilizamos esta documentação
como um campo privilegiado para a percepção de prática de interdependência, assim
94
GINZBURG, Carlo. “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”. In: Mitos, Emblemas e Sinais:
morfologia e história. São Paulo: Cia. das Letras, 2001.
95
Idem, p. 143-179.
96
LARA, Sílvia Hunold. Fragmentos setecentistas – escravidão, cultura e poder na América portuguesa...
Op. cit., p.20.
42
como uma referência para o estudo dos valores e normas sociais presentes na vida de
senhores/potentados e escravos. Isto se tornou possível porque os processos mostram
em suas linhas e entrelinhas todo o desenrolar da montagem, negociação e conclusão de
certos conflitos. Revelam os dramas, os valores, as noções de justiça, moral e as
concepções de mundo que se revelam na interação que se estabelece nas ruas, no
interior do campo jurídico e na disputa aí aberta97.
Para Mariana e seu termo os processos criminais encontram-se alocados no
Arquivo da Casa Setecentista de Mariana no fundo Fórum de Mariana, grupo cartório
de ofício. Estão organizados onomasticamente e agrupados cronologicamente. Para
Ouro Preto e seu termo os processos criminais encontram-se alocados no Arquivo
Histórico do Museu da Inconfidência também organizados onomasticamente e
agrupados cronologicamente.
*******
que era desempenhado pelos escravos na vida do potentado, para além do braço armado,
qual seja, o do escravo produtor. Objetivamos assim identificar um padrão de posse de
terras e escravos entre os poderosos locais, seu modo de vida e as atividades produtivas
nas quais estavam envolvidos. A relevância deste tipo de investigação se confirma pela
importância que a riqueza possuía para a sustentação da “qualidade” dos indivíduos na
sociedade mineira setecentista, que, como se verá, foi determinante na definição dos
lugares sociais.
Na segunda parte, constituída por 3 capítulos, o objetivo foi analisar no que se
baseava e como ocorria na prática as negociações e reciprocidades entre senhores e
escravos que possibilitavam aos primeiros pôr armas nas mãos de seus cativos,
evidenciando também que tipos de benefícios e ganhos os indivíduos em foco podiam
adquirir com estas interações. Sublinhamos assim as relações destes potentados com
seus escravos como um recurso utilizado por ambos em suas ações para maximizarem
interesses. No caso dos potentados a tentativa se voltava para a fixação de suas
identidades como poderosos e conseqüentemente a aquisição de poder de mando e
legitimidade social. Já para os cativos talvez o maior ganho que poderiam conseguir
seriam melhoras nas suas condições de vida visualizadas a partir da possibilidade de
formação de famílias escravas nos plantéis, do estabelecimento de vantajosas redes de
compadrio e do alcance da manumissão. No capítulo 3 destacamos a questão da
formação das famílias escravas analisando como e porque ela pode ser vista como um
dos mecanismos que poderiam ser utilizados nas negociações e reciprocidades dos
potentados com seus escravos. Para referendar a argumentação traçamos um panorama
acerca da formação das mesmas em termos quantitativos e qualitativos, e assim
visualizarmos em que medida certas interações entres estes dois grupos em foco
possibilitaram criar laços de aliança, solidariedade e ganhos para ambos os lados –
mesmo que tais ganhos fossem extremamente desiguais –, indo além de relações que se
pautavam exclusivamente na violência, força e crueldade.
No capítulo 4 tratamos da questão do compadrio observando como ele foi
vivenciado pelos atores que estamos investigando. O objetivo foi evidenciar mais um
mecanismo que podia ser usado nas interações que visavam estabelecer negociações e
reciprocidades entre senhores e seus escravos, destacando, mais uma vez, as vantagens e
ganhos de tal mecanismo para ambos os lados. Para os escravos ressaltamos as redes de
compadrio em que os cativos se imiscuíam e a importância delas para sua sociabilidade
e melhor sobrevivência em território colonial. No caso dos senhores observamos como,
44
98
PAIVA, Eduardo França. “Pelo justo valor e pelo amor de Deus: as alforrias nas Minas”. Anais do IX
Seminário sobre a economia mineira. CEDEPLAR: UFMG, 2000, p. 65.
99
Cf.: THOMPSON, E. P. Costumes em Comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
100
Cf.: BARTH, Fredrik. Process and form in social life... Op. cit.
45
PARTE I
Elite colonial, escravos e redes sociais em perspectiva
Capítulo 1
A caracterização social dos potentados locais
102
BOXER, Charles. “Vila Rica de Ouro Preto”. In: A Idade do Ouro do Brasil. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2000.
103
FRAGA, Ana Maria Almeida. Cativeiro barroco: a escravidão urbana em Minas Gerais. Mariana e
Ouro Preto na primeira metade do século XVIII. Vassouras, Universidade Severino Sombra, 2000.
Dissertação de Mestrado, p. 36
47
104
ROMEIRO, Adriana. “Soberania e poderes locais: os paulistas nos sertões dos Cataguases, as vésperas
do levante emboaba”. Anais do I Simpósio Império e lugares no Brasil: território, conflito e identidade.
Mariana, ICHS - UFOP, 2007, p. 6.
105
MONTEIRO, Rodrigo Bentes. O rei no espelho: a monarquia portuguesa e a colonização da América
(1640-1720) São Paulo: Hucitec, 2002, p. 285-286.
106
BICALHO, Maria Fernanda. “Sertão de estrelas: a delimitação das latitudes e das fronteiras na
América portuguesa”. Varia Historia. Revista do Departamento de História da UFMG, nº. 21, Belo
Horizonte, julho de 1999, p. 81.
107
Idem, p. 83.
48
108
MONTEIRO, Rodrigo Bentes. O rei no espelho... Op. cit., p. 44.
109
Idem, p. 48.
110
TAUNAY, Afonso de. História das bandeiras paulistas. São Paulo: Melhoramentos, Brasília, INL,
1975, p. 157. Apud: ROMEIRO, Adriana. “Revisitando a Guerra dos Emboabas: práticas política e
imaginário nas Minas setecentistas”. In: BICALHO, Maria F. & FERLINI, Vera Lúcia do Amaral
(Orgs.). Modos de Governar. Idéias e práticas políticas no Império português, séculos XVI a XIX. São
Paulo: Alameda, 2005, p. 390.
111
ROMEIRO, Adriana. “Revisitando a Guerra dos Emboabas: práticas política e imaginário nas Minas
setecentistas...” Op. cit., p. 388.
49
paulistas foram prontamente mobilizados para atuar “em serviço do seu rei como leais
vassalos seus”112.
Não por acaso depois que chegou aos ouvidos do Rei a possibilidade de
descoberta de ricas lavras de ouro na região das Minas, este mandou o governador Artur
de Sá e Menezes a São Paulo:
112
Idem, p. 390-392.
113
TAUNAY, Afonso de. Relatos sertanistas. São Paulo: Ed. Itatiaia, 1981, p. 171-172.
114
FRAGA, Ana Maria Almeida. Cativeiro barroco: a escravidão urbana em Minas Gerais... Op. cit., p.
18.
115
ROMEIRO, Adriana. “Revisitando a Guerra dos Emboabas: práticas política e imaginário nas Minas
setecentistas...” Op. cit., p. 392 e 395.
50
medidas eram tomadas por governadores, sobretudo Artur de Sá e Menezes, para inibir
a concentração de muitas lavras nas mãos de um único proprietário e assim diminuir o
poder e a possibilidade de surgimento de novos líderes125.
Mas, de qualquer forma, nestes tempos iniciais a Coroa acabava por render-se
ante ao poder dos paulistas reconhecendo – para o bem e para o mal – que eles eram os
depositários de um saber prático sobre as matérias da mineração e, sobretudo, da
arrecadação dos quintos que os tornavam os mais aptos a cuidar da administração local.
Neste sentido os anos que se seguiram às descobertas auríferas bem podem ser
chamados de “a época de ouro dos paulistas”, quando, como já mencionado, estiveram à
frente dos principais postos e cargos administrativos da região, tornando realidade as
velhas aspirações de domínio absoluto das minas. Tal período findou com a eclosão de
um movimento tido por muitos autores como “divisor de águas” para a formação da
capitania: a Guerra dos Emboabas.
Já no ano de 1708 a situação não era mais a mesma e tudo parecia indicar uma
nova investida da Coroa sobre a região. Por todos os lados, chegavam notícias sobre a
iminente vinda de D. Fernando Mascarenhas de Lencastre, com a instrução de pôr fim
às desordens relativas às disputas pela repartição das datas e arrecadação dos quintos
que estavam ocorrendo entre paulistas e portugueses126. Vários teriam sidos os fatores
que contribuíram para a eclosão do conflito, como o antagonismo entre o português
Manuel Nunes Viana e o paulista Manuel Borba Gato, antigo bandeirante e dos mais
notáveis paulistas na região, ou a arrematação do contrato dos cortes de carne para as
minas em 1707, que beneficiava o fluminense Francisco do Amaral Gurgel. Para além
disso tinha-se o apego dos potentados locais para com a escolha de autoridades
administrativas afinadas com seus interesses, em contraposição ao governo da Coroa,
causando, como mencionado, muitas desordens na distribuição de cargos, datas e
funções militares. O conflito foi se generalizando a ponto de Manuel Nunes Viana ser
proclamado governador das Minas pelos forasteiros, que tencionavam daí expulsar os
paulistas127. Conforme destacou Maria Verônica Campos a inserção ainda indefinida e
confusa da Coroa em Minas, com atribuições superpostas e partilhadas com os membros
125
Como exemplo de tais medidas podemos citar o privilégio do couto: regimento elaborado em 1702 em
Lisboa que dava aos descobridores, mesmo aqueles incursos em crimes em outras partes da colônia –
excetuados os crimes de lesa majestade – o privilégio da exploração da lavra. In: CAMPOS, Maria
verônica. Governo de Mineiros... Op. cit., p. 57.
126
ROMEIRO, Adriana. “Soberania e poderes locais: os paulistas nos sertões dos Cataguases, as vésperas
do levante emboaba...” Op. cit., p. 11-14.
127
MONTEIRO, Rodrigo Bentes. O rei no espelho... Op. cit., p. 287.
53
das facções em luta abriram espaço para conflitos que na realidade envolviam disputas
por cargos e poder128.
A resposta da Coroa ao movimento foi a do perdão do levante como um todo,
com exceção de seus cabeças (sobretudo Manuel Nunes Viana que foi exilado em suas
terras no sertão de São Francisco), com instruções para seus governadores e
administradores agirem com brandura para com os paulistas, que de qualquer forma
saíram bem prejudicados em suas aspirações, tendo seu “governo” inicial derrogado.
Pelo exposto pode-se argumentar que o conflito pode ser considerado um
indicativo de que a colonização inicial das Minas fora feita pela ordem privada e que a
Coroa não via no governo dos poderosos locais, ao menos até o ano de 1707, uma
ameaça séria aos seus domínios, pois importava tão-somente a garantia da arrecadação
dos tributos129. O próprio estabelecimento do governo emboaba corrobora tal
argumento, visto que não resta dúvida que no período compreendido entre novembro de
1708 a agosto de 1709, o poder local esteve nas mãos de particulares. Conforme
destacou Adriana Romeiro, tratava-se sem dúvida de um governo privado – como bem
notaram os contemporâneos, escandalizados pela desfaçatez com que Nunes Viana se
apossou dos principais cargos e postos. Porém essa atitude complacente com a ordem
privada começa a sofrer ainda em 1707 uma profunda inflexão, alterando
irreversivelmente o lugar e o papel dos paulistas na administração das Minas. Com as
descobertas neste período da zona aurífera – e sobretudo do promissor ouro de beta – os
homens do Planalto se transformaram num verdadeiro problema para a Coroa: era
preciso afinal rechaçá-los, enfraquecendo-os politicamente. Para tanto, além do levante
protagonizado pelos forasteiros, a Coroa se valeu da nomeação de um novo governador,
Antônio de Albuquerque, a fim de estabelecer as linhas-mestras do governo na capitania
– nomeação aliás que foi feita quando ainda não se tinha notícias em Lisboa sobre o
levante Emboaba130.
De fato, no governo de Antônio de Albuquerque várias medidas foram tomadas
no intuito de dar para a Coroa uma maior parcela de autoridade sobre a região e
equilibrar o poder entre os partidos da Guerra dos Emboabas. Dentre estas medidas
destacam-se a criação da capitania de São Paulo e Minas do ouro, em separado da
capitania do Rio de Janeiro, a elevação da vila de São Paulo a cidade e uma intensa ação
128
CAMPOS, Maria verônica. Governo de Mineiros... Op. cit., p. 85.
129
ROMEIRO, Adriana. “Soberania e poderes locais: os paulistas nos sertões dos Cataguases, as vésperas
do levante emboaba...” Op. cit., p. 14.
130
Idem, p. 14-15.
54
Ouro Preto foi descoberta por volta de 1699-1701 por Antônio Dias Oliveira,
natural de Taubaté, pelo Padre João de Faria Fialho, que viera como capelão das tropas
de Taubaté e por Tomás Lopes de Camargo, também paulista, que se instalou nas lavras
localizadas no Morro do Ouro Podre138. O ouro atraiu novos exploradores que seguindo
o Regimento das Terras Minerais procuravam por novas lavras distantes pelo menos
meia légua umas das outras, para que assim fossem reconhecidos como descobridores e
tivessem o privilégio de ter duas datas próprias. Com isto novas lavras, ranchos e
futuros arraiais foram se espalhando:
“Em toda a parte eram pesquisadas as areias dos ribeiros e a terra das
montanhas e, quando encontravam algum terreno aurífero, construíram
barracas em suas vizinhanças, a fim de explorá-lo. Estas espécies de
acampamentos (arraiais) tornavam-se pequenas povoações, depois
vilas; e foi assim que os paulistas começaram a povoar o interior da
terra”139.
Com a notícia dos novos descobrimentos e a fama da riqueza aurífera deste lugar
“se começaram a povoar as Minas de gente de várias paragens, que logo trataram de
fazer plantação, frutificar a terra e cultivá-la para haverem de se sustentar e habitar
nela”140. A população alcançou tal aumento que, em pouco tempo, foram construídas
igrejas e erigidas freguesias. Nas palavras de Afonso de Taunay “assim se foram
aumentando as povoações e os lucros, no lavrar e abrir as terras. Assim foi crescendo
o negócio de escravos, gados, cavalgaduras, fazendas e mais víveres de toda sorte”141.
Deu-se à região de Ouro Preto este nome por causa do aspecto escuro do ouro aí
encontrado. O arraial de Outro Preto firmou-se no local onde se encontra hoje a matriz
de Nossa Senhora do Pilar, galgando pelas encostas dos morros até o alto onde se
encontra a capela de Nossa Senhora do Carmo. Por outro lado estendia-se até as beiras
do córrego do Caquende. Para esse arraial do Caquende eram levados os mantimentos, o
137
Idem, p. 196.
138
LIMA JR. Augusto de. Vila Rica do Ouro Preto. Síntese histórica e descritiva. Belo Horizonte: Edição
do autor, 1957, p. 43.
139
FRAGA, Ana Maria Almeida. Cativeiro barroco: a escravidão urbana em Minas Gerais... Op. cit., p.
37.
140
LIMA JR. Augusto de. Vila Rica do Ouro Preto... Op. cit., p. 55.
141
TAUNAY, Afonso de. Relatos sertanistas... Op. cit., p. 48.
56
gado da região do Rio das Velhas e os negros da Bahia e do Rio de Janeiro142. Do outro
lado estava o arraial de Antônio Dias, “pouso da antiga bandeira ligado a um que se
estabeleceu junto dele, denominado dos Paulistas que se distinguia do vizinho
constituindo todo por gente de Taubaté”. Subindo ao Alto da Cruz onde se situava a
capela de Santa Efigênia dos Pretos estava o arraial de Bom Sucesso e de Padre Faria143.
Assim a vila foi fundada em 11 de Julho de 1711, no arraial de Nossa Senhora
do Pilar do Ouro Preto “por ser sitio de maiores convivências que os povos tinham
achado para o comércio”144. Neste período:
Pelo que foi discutido até o momento podemos supor que foram os
conquistadores, ou seja, aqueles que se dispuseram a doar suas vidas e seus cabedais
para crescimento do Império, que se tornaram os poderosos da região. Pelo fato de
muitos deles já possuírem um poderio econômico e político acumulado em outras
paragens, e neste sentido poder de influência para arregimentar homens (livres ou
escravos) que levavam consigo na conquistas, tinham maiores recursos para adquirir e
manter posições de destaque na escala social e, conseqüentemente, exercer seu mando.
Isso nos leva a perceber uma cultura desigualmente distribuída, gerando transações
onde cada parte, com estratégias e recursos diferenciados, buscava maximizar seus
ganhos146. Tal ciclo se fechava ao receberem mercês do Rei como recompensa por terem
participado da conquista de Minas, o que os colocavam como líderes da região,
denotando assim que, não só, mas também, as mercês régias tiveram papel fulcral na
consolidação de posições sociais privilegiadas.
É interessante sublinhar que neste cenário inicial as bases da Coroa para a
tentativa de implementação de interesses fiscais, políticos e administrativos são ainda
muito frágeis. A própria dependência dos recursos destes primeiros conquistadores –
índios flecheiros, escravos e cabedais – no povoamento, defesa e ordenação das Minas,
bem como a concepção de sociedade corporativa, na qual o poder era repartido, formava
142
LIMA JR. Augusto de. Vila Rica do Ouro Preto... Op. cit., p. 61.
143
Idem, p. 62.
144
Idem, p. 37
145
Idem, p. 68.
146
BARTH, Fredrik. “Models of social organization I: Introduction. The analytical importance of
transaction”. In: Process and form in social life...Op. cit., p.32-47.
57
um pano de fundo das relações entre Coroa e leais vassalos no qual estes teriam
variados recursos para elaboração de suas estratégias de negociação para com o Rei. Já
foi sugerido que, como recompensa de sua atuação na conquista do território mineiro,
esses primeiros bandeirantes e sertanistas receberam da Monarquia várias mercês, na
forma de terras, títulos e, principalmente legitimação régia para exercício do poder, ou
seja, o direito de organizar a sociedade local segundo os paradigmas do Antigo Regime
luso147.
Por seu turno podemos assinalar que a liderança na conquista vinha
acompanhada pelo exercício do poder, legitimado pela Coroa através da concessão de
mercês, no novo território. Cabia ao conquistador a organização sócio-administrativa da
nova área, feita através da ocupação de cargos no poder municipal e também em outras
instâncias como a justiça e a fazenda148, assuntos que serão melhor trabalhados em sub-
capítulo posterior. Por ora, cabe ressaltar que neste contexto alguns indivíduos puderam
acumular cabedais e produzir ou recriar privilégios; e com isto, sua legitimidade social e
autoridade ia-se criando e ampliando149.
Desta forma adquiriam legitimidade do Rei para mandar ante seus pares e aos
subalternos. Somado a legitimidade dada pelo Rei, tais homens estabeleciam relações de
poder (baseadas não só no temor, mas na negociação e reciprocidade) com outros
estratos sociais para deles também conseguir legitimidade para mandar. Desta forma
pode-se argumentar que o poder advinha das relações que eram construídas e mantidas.
Como bem destacou N. Elias, a questão do poder constitui-se no seio da elite um
fenômeno característico de seu grupo, já que possuem a tendência não somente de
construir ou manter relações de desigualdade, mas também de legitimá-las, explicando-
as por diferenças de valor individual150. Em última instância está chamando atenção para
o fato de que é preciso pensar a determinação de condutas individuais pela vinculação
ao coletivo: o indivíduo não existe no grupo enquanto indivíduo, mas enquanto elo em
uma cadeia de gerações151. Neste sentido deve-se pensar o mundo social como uma rede
de relações. É uma dependência do “eu” em relação ao “nós”, da experiência com
relação aos recursos coletivos, do indivíduo em relação às configurações sociais152.
147
FRAGOSO, João. À Espera das frotas: micro-história tapuia e a nobreza principal da terra ... Op. cit.,
p. 42-44.
148
FRAGOSO, João. À Espera das frotas: micro-história tapuia e a nobreza principal da terra ... Op. cit.,
p. 59
149
Idem, p. 73-74.
150
HEINICH, Nathalie. A sociologia de Norbert Elias... Op. cit., p. 103.
151
Idem, p. 113.
152
Ibidem, p. 115-116.
58
163
BICALHO, Maria Fernanda A cidade e o Império... Op. cit. CAMPOS, Maria verônica. Governo de
Mineiros... Op. cit. FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda & GOUVÊA, Maria Fátima. “Bases
da materialidade e da Governabilidade no Império: uma leitura do Brasil colonial...” Op. cit. MELLO,
Evaldo Cabral de. Rubro veio... Op. cit.
164
BICALHO, Maria Fernanda. “Conquista, mercês e poder local: a nobreza da terra na América
portuguesa e a cultura política do Antigo Regime...” Op. cit., p. 22.
165
Neste sentido ver: PUJOL, Xavier G. “Centralismo e localismo? Sobre as relações políticas e culturais
entre capital e territórios nas monarquias européias dos séculos XVI e XVII”. Penélope. Fazer e Desfazer
a História, nº. 6, Lisboa, pp. 119-142, 1991. MONTEIRO Nuno G. “Os concelhos e as comunidades”. In:
HESPANHA, António M. (Org.). História de Portugal... Op. cit., passim.
166
FRAGOSO, João, BICALHO, Maria Fernanda & GOUVÊA, Maria de Fátima. “Introdução”. In:
FRAGOSO, João, BICALHO, Maria Fernanda & GOUVÊA, Maria de Fátima. (Orgs.). O Antigo Regime
nos trópicos... Op. cit., p. 24.
167
HEINZ, Flávio M. “O historiador e as elites – a guisa de introdução...” Op. cit., p. 8.
168
BICALHO, Maria Fernanda. “Conquista, mercês e poder local: a nobreza da terra na América
portuguesa e a cultura política do Antigo Regime...” Op. cit., p. 23-24.
63
169
BICALHO, Maria Fernanda. “Elites coloniais: a nobreza da terra e o governo das conquistas. História
e historiografia”. In: MONTEIRO, Nuno G. CARDIM, Pedro & CUNHA, Mafalda Soares da (Orgs.).
Optima Pars – elites ibero-americanas do Antigo Regime. Lisboa, ISC – Imprensa de Ciências Sociais,
2005, p. 73-74.
170
Idem, p. 74.
171
BICALHO, Maria Fernanda. “Elites coloniais: a nobreza da terra e o governo das conquistas. História
e historiografia...” Op. cit., p. 30.
64
172
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. “Poder senhorial, estatuto nobiliárquico e aristocracia” In: HESPANHA,
António M. (Org.). História de Portugal... Op. cit., p. 298-299. Cabe sublinhar que fidalguia e nobreza
hereditária não podem ser usados como sinônimos, pois a condição de fidalgo podia ser dada pelo rei,
assim como a “nobreza civil ou política”, mas a nobreza hereditária se assentava na linhagem passando de
pai para filho constituindo-se em uma nobreza “natural”. Ademais, se podia herdar durante várias
gerações a condição de nobre sem por isso se ser fidalgo. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Ser nobre
na colônia. São Paulo: Ed. Unesp, 2004, p. 159-160.
173
Acerca desta noção ver: FRAGOSO, João. “A nobreza da República: notas sobre a formação da
primeira elite senhorial do Rio de Janeiro (séculos XVI e XVII)...” Op. cit.; FRAGOSO, João. “A
nobreza vive em bandos: a economia política das melhores famílias da terra do Rio de Janeiro, século
XVII: algumas notas de pesquisa...” Op. cit. Ver ainda BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o
Império... Op. cit., principalmente capítulo 12.
174
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Ser nobre na colônia... Op. cit., p. 17.
175
Idem, p. 18.
176
BICALHO, Maria Fernanda. “Elites coloniais: a nobreza da terra e o governo das conquistas. História
e historiografia...” Op. cit., p. 30.
65
em certa medida pela riqueza e pelo modo de vida, era essencial para que tal ascensão
se exercitasse a prestação de serviços ao Rei. Por isso não é demais afirmar que através
da centralidade que os serviços prestados assumem na conformação de hierarquias
sociais, a Monarquia instituía-se como reguladora fundamental no acesso superior à
mesma. Essa dimensão constituía um vetor decisivo que conferia à Monarquia
importância fundamental e a transformava num fator decisivo de coesão social e política
do imenso espaço por ela tutelado177.
Para o caso de Minas Gerais a definição de uma elite envolvia além dos
elementos indicados até aqui, alguns outros itens, pois esta foi uma sociedade peculiar
em certos aspectos. Como sugerido anteriormente, Minas Gerais em seus primórdios era
uma região de fronteira, ou seja, formou-se a partir de um rápido e desordenado
povoamento, onde as hierarquias eram fluidas e onde se congregou elementos sociais
variados, sobretudo aqueles que, contando com perspectivas reduzidas na terra de
origem, dispunham-se a ganhar riqueza e notoriedade na capitania em pouco tempo.
Tratava-se, portanto, de um mundo de possibilidades e soluções novas que influenciou
na constituição da elite mineira178. Como assinalou J. Fragoso, sua formação combinaria
antigas práticas, já mencionadas aqui, tais como: atuação na conquista, alianças
parentais, ocupação de cargos políticos e uso de negros armados; com novos
componentes, tais como, a posse de áreas minerais e atuação no grande comércio de
arrematação de contratos de diamante e “entradas”179.
Embora não seja objetivo central da pesquisa analisar a gênese e o perfil dos
potentados locais na Comarca de Vila Rica, isto se faz necessário para que possamos
entender a dinâmica das relações de negociações, reciprocidades e conflitos
estabelecidas entre tais indivíduos com sua escravaria. Desta forma, procuraremos
entender sua origem, quais os fundamentos de seu poder político e econômico, como se
reproduziam e que estratégias utilizavam parar criar um consenso social que lhes
legitimasse o estatuto e os papéis sociais180.
177
MONTEIRO, Nuno G. “O ‘ethos’ nobiliárquico no final do Antigo Regime: poder simbólico, império
e imaginário social...” Op. cit., p. 19.
178
SOUZA, Laura de Mello e. O sol e a sombra. Política e administração na América portuguesa do
século XVIII. São Paulo: Cia. das letras, 2006., p. 154 e 160.
179
FRAGOSO, João. “Potentados coloniais e circuitos imperiais: notas sobre uma nobreza da terra,
supracapitanias, no Setecentos”. In: MONTEIRO, Nuno G. CARDIM, Pedro & CUNHA, Mafalda Soares
da (Orgs.). Optima Pars... Op. cit., p. 161.
180
DUARTE, Luís Miguel. “Os melhores da terra (um questionário para o caso português)”. In:
BARATA, Filipe Themudo (Org.). Elites e Redes Clientelares na Idade Média: problemas
metodológicos. Actas do Colóquio. Évora: Edições Colibri, 2000, p. 92-93.
66
181
FRAGA, Ana Maria Almeida. Cativeiro barroco: a escravidão urbana em Minas Gerais... Op. cit., p.
47.
182
ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil. São Paulo: Ed. Melhoramentos, 1976, p. 167.
67
Foi mencionado anteriormente que chegaram a capitania gente das mais variadas
partes da América portuguesa e também do reino. Para o grupo aqui enfocado, e como
mostra a tabela a seguir, sobressaíram nessa primeira leva imigrantes paulistas e
portugueses.
TABELA 1
Local Nº. %
Portugal 54 46,95
São Paulo 52 45,21
Rio de Janeiro 5 4,34
Pernambuco 2 1,73
Minas Gerais 1 0,86
Bahia 1 0,86
Total 115 100
Fonte: FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil. Belo
Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. USP, 1989. Inventários post-mortem e Testamentos da Casa
Setecentista de Mariana e da Casa do Pilar de Ouro Preto, 1º e 2º ofício. ANTT – Habilitações para a
Ordem de Cristo, Habilitações para o Santo Ofício, Fundo do Registro Geral de Mercês (documentos
diversos) e Fundo da Chancelaria Régia D. João V (documentos diversos).
183
Ver por exemplo:VASCONCELOS, Diogo de. História Antiga das Minas Gerais. Belo Horizonte, Ed.
Itatiaia, 1999. LIMA Jr. A capitania de Minas Gerais... Op. cit.. TAUNAY, Afonso de. História das
bandeiras paulistas... Op. cit. TAUNAY, Afonso de. Relatos sertanistas... OP cit.
184
Ver: ALMEIDA, Carla M. C. de. Homens ricos, homens bons: produção e hierarquização social em
Minas colonial (1750-1822). Niterói: UFF, 2001. Tese de Doutorado; FURTADO, Júnia. Homens de
negócio... Op. cit. MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa: A Inconfidência Mineira, Brasil e
Portugal, 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
68
Em 1692 ele seguiu para a barra do rio Jaguaribe onde ergueu um arraial, base das
expedições. Dali seguiu para o Rio Grande do Norte, “e por quatro anos andou
destruindo tribos indígenas, queimando aldeias e aprisionado escravos entre o
gentio”190. Assim, argumenta que:
“Fez várias plantas na serra de Pacativa aonde como nas mais partes se
sustentou a companhia do capitão Miguel de Godoy de Vasconcelos
sempre a suas custas empenhandose em grande quantidade de
dinheiro(sic) para vestir a maior parte da infantaria e fazendo o mestre
de campo jornada do Ceará para o Rio Grande e deixar por cabo de
toda a gente todos os seus poderes para a disposição do que fosse mais
conveniente no que dispendeo de sua fazenda 140 mil reis para fardar a
infantaria e ultimamente chegando ao rio grande ahonde se formou
arraial fazer duas sahidas a campanha em que gastarão sete meses athe
ser mandado retirar por fugir a infantaria por lhe faltarem os socorros e
pondose em marcha com a pouca gente que tinha pelo interior do certão
caminhar com grande risco de vida sem pólvora nem balla em distancia
de 110 legoas de campanha”191.
Fez ainda “Três entradas athe o anno de 1694 para conquista dos bárbaros que
infestavão o recôncavo da Bahia em que aprisionou muitos e elles e arruinou as suas
aldeias com que ficarão aqueles moradores quietos e sossegados”. Por todos estes
feitos na campanha nortista ganhou o posto de coronel de Ordenanças e uma grande
sesmaria em terras baianas, com o senhorio192 da vila que seu pai havia fundado em
189
ANTT. Registro Geral de mercês. João Amaro Maciel Parente. Título de donatário. Pedro II, livro 10,
folha 97-97v, microfilme 2156.
190
FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil... Op. cit.,
p. 289.
191
ANTT. Registro Geral de mercês. João Amaro Maciel Parente. Título de donatário. Pedro II, livro 10,
folha 97-97v, microfilme 2156.
192
A doação de um senhorio referia-se a concessão de direito de exercício de jurisdição e direitos de foral
por parte do beneficiado sobre a nova terra. Para além desse caráter honorífico, em alguns casos ter posse
de um senhorio significava também a aquisição de grossas rendas. In: MONTEIRO, Nuno G. “O ‘ethos’
70
1673, chamada vila de Santo Antônio da Conquista, erguida no local de uma antiga
aldeia indígena. No documento em que solicita e ganha o título de donataria desta vila,
localizado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, ficava assim estipulado:
Abriu também uma estrada pelas matas de Ilhéus, indo até as margens do rio São
Francisco. Foi a primeira e maior via que se obteve no sertão baiano. Com as notícias
do descobrimento de ouro na região de Minas Gerais, vendeu sua sesmaria para um
potentado baiano, o coronel Manuel de Araújo Arzão, e migrou para a zona
mineradora194. Chegando as Minas por volta de 1703 se estabeleceu inicialmente no Rio
das Velhas. Neste primeiro momento não se dedicou a mineração, mas ao comércio de
gado, que ia buscar nos currais da Bahia, talvez se aproveitando de seu conhecimento
das estradas e caminhos do sertão baiano, bem como da situação inicial da capitania
marcada pela escassez de gêneros alimentícios (dentre eles a carne) e conseqüentemente
pelos seus exorbitantes preços. Depois de enriquecer como comerciante de gado foi para
Guarapiranga, freguesia da Vila do Carmo, e aí fixou residência. Neste local fundou
uma grande fazenda com engenho de açúcar195.
Em Minas não deixou de atuar também em bandeiras, tanto que em 1718 foi
com o paulista José Dias Leme, por ordem do Conde de Assumar, em uma expedição
para o rio da Casca em busca de ouro. Enviuvou na capitania e contraiu novas núpcias
nobiliárquico no final do Antigo Regime: poder simbólico, império e imaginário social...” Op. cit., p. 12.
193
ANTT. Registro Geral de mercês. João Amaro Maciel Parente. Título de donatário. Pedro II, livro 10,
folha 97-97v, microfilme 2156.
194
FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil... Op. cit.,
p. 289.
195
Idem, p. 290.
71
com Maria Furquim, irmã de Cláudio Furquim, outro potentado da região, descobridor e
fundador do arraial do Furqim196.
Como já mencionado, as qualidades guerreiras dos bandeirantes, o custeamento
das expedições e bandeiras, estavam a serviço da Coroa na exata medida em que esta
assegurasse a eles as devidas recompensas. Na verdade esses indivíduos realizavam
essas “aventuras” com base no “direito de conquista”197. Os saberes e fazeres da
conquista que envolviam o desbravamento do interior para dilatar os limites do Império,
o estabelecimento de povoações, a luta contra o gentio bravo, o cultivo das terras, a
abertura de canais/picadas para facilitar o comércio, tudo às custas de recursos próprios;
eram compartilhados, aceitos e respeitados pelo conjunto dos indivíduos que atuavam
nestas empreitadas, gerando um certo habitus. Em outros termos, a colaboração existia
desde que viesse atrelada a vantagens traduzidas em forma de benesses reais.
Não por acaso, João Amaro ganhou em Minas, em recompensa pelos serviços
prestados, bem como em reconhecimento da autoridade que possuía, uma patente de
capitão-mor em 1711 e, em 1714, o governo do distrito de Guarapiranga 198. Além disso,
conservou o posto de coronel que tinha na Bahia. Completando o quadro de bem
sucedidas investidas em sua busca por ascensão e reconhecimento de sua legitimidade
perante seus pares, demais habitantes coloniais e a Coroa, recebeu a comenda do hábito
da Ordem de Cristo, com 40 mil réis de pensão199. Nas provanças para recebimento do
hábito declarava ser filho mais velho e legítimo de Estevão Ribeiro Baião Parente e de
sua mulher Maria Antunes da Luz. Neto pela parte paterna de João Maciel Valente e de
sua mulher Maria Ribeira. Neto pela parte materna de Inocêncio Preto e de Izabel de
Pina “todos naturaes e moradores na Villa de São Paullo na freguesia da igreja matriz
da mesma Villa districto e jurisdição do Rio de Janeiro”200. Nessas mesmas provanças
ficava atestado a sua qualidade e a de seus familiares visto que, conforme relato de uma
testemunha do processo:
196
Idem.
197
ROMEIRO, Adriana. “Revisitando a Guerra dos Emboabas: práticas política e imaginário nas Minas
setecentistas”. In: BICALHO, Maria F. & FERLINI, Vera Lúcia do Amaral (Orgs.). Modos de
Governar... Op. cit., p. 392 e 395.
198
FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil... Op. cit.,
p. 290.
199
ANTT. Habilitação da Ordem de Cristo de João Amaro Maciel Parente. Letra J, maço 75, doc. 1. Data
27 de novembro de 1697. Ver também: FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de
Bandeirantes e Sertanistas do Brasil... Op. cit., p. 289-290.
200
ANTT. Habilitação da Ordem de Cristo de João Amaro Maciel Parente. Letra J, maço 75, doc. 1. Data
27 de novembro de 1697.
72
201
Idem.
202
Investido do cargo de capitão-mor uma pessoa podia penalizar qualquer pessoa que não cumprisse as
suas ordens; ter alçada no crime e cível sobre todas as pessoas que morarem na localidade de sua
jurisdição; demarcar e tomar posse de todas as terras descobertas; nomear tabeliões e mais oficiais de
justiça em terras descobertas. Tinha ainda o direito de aprovar as nomeações de postos de menor escalão
feitos pelo capitão das companhias; nomear pessoas para o posto de ajudante de Ordenança, que
anteriormente era provido por eleição; nomear os ocupantes dos postos de sargento-mor e capitão de
companhia (as duas das patentes mais altas depois da sua no quadro das companhias de ordenanças). A
principal função do capitão-mor era saber quantas pessoas capazes de pegar em armas existiam na
localidade em que atuava, ou seja, ter conhecimento da população militarmente útil, o que lhes atribuía
um forte poder à escala local. In: SALGADO, Graça (Org.). Fiscais e meirinhos: a administração no
Brasil colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 127 e 312. Ver também: COSTA, Ana Paula
Pereira. Atuação de poderes locais no Império Lusitano... Op. cit., p. 48.
203
TAUNAY, Afonso de. Relatos sertanistas... Op. cit., p. 27.
204
Idem, p. 38.
205
Ibidem, p. 42.
73
Cabe sublinhar que em tais entradas indivíduos como Salvador Fernandes iam
com seus índios, escravos e cabedais, o que os diferenciavam dos demais integrantes
mais pobres destas expedições, que iam sozinhos ou com apenas suas parentelas, por
exemplo208, indicando assim que muitos desses homens que para as Minas se dirigiam
tinham significativo cabedal econômico e político. Vale lembrar que em uma sociedade
escravista a posse de riqueza, traduzida principalmente em propriedades e escravos, era
forma de obter promoção social, pois a distinção se fazia mais pela posse (de riquezas, mas
também de cabedais políticos e sociais) do que pelo nascimento.
Nos serviços prestados para expansão desta fronteira e descoberta do ouro,
Salvador Fernandes ganhou várias mercês. Além das benesses anteriormente
mencionadas (patente de capitão-mor de Taubaté e o cargo de escrivão geral das
repartições dos ribeiros e datas descobertos) em 26 de março de 1711 Salvador
Fernandes ganhou uma sesmaria do governador Antônio Coelho de Albuquerque. Tal
sesmaria se localizava nas cabeceiras de seu sítio no Moro Grande, para a parte do
Brumado, com uma légua de sertão para Guarapiranga209. Ganhou ainda a patente de
206
FONSECA, Cláudia Damasceno. “O espaço urbano de Mariana: sua formação e suas representações”
In: Termo de Mariana... Op. cit., p. 28-29.
207
TAUNAY, Afonso de. Relatos sertanistas... Op. cit., p. 44.
208
FRAGOSO, João. À Espera das frotas... Op. cit., p. 49.
209
FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil... Op. cit.,
p. 252.
74
“Faço saber aos que esta carta patente virem que havendo respeito a se
achar nestas minas o dito, pessoa das principais famílias da Villa de São
Paulo e morador na do Taubate ocupando o posto de coronel de
ordenanças della que exercitou sempre nestas ditas minas com todo bom
procedimento e zello nas ocasiões que se oferecerão ter descubrimentos
de ouro e repartição de muitos ribeiros como guarda mor que era cujo
cargo lhe mandei continuar na ocasião em que vim para estas minas
socegar as revoluções della, pelas boas informações que achei de sua
pessoa, e que fez tudo em favor de V. Mag e por isso he merecedor de
toda a estimação e he conveniente que por ora se conserve no posto de
coronel de ordenança da vila de Taubate para as ocasiões que se
oferecerem se poder acodir com ella aos socorros para as defensas dos
portos de mar desta conquista e ainda para que quando suceda marchar
destas minas alguns dos seus soldados que se acham nellas se possa
conduzir e governar todas as vezes que por mim lhe for ordenado e por
isso hey por bem nomealo no dito posto de coronel de ordenanças de
Taubaté com exercício nestas minas”211.
210
Com este posto era responsável pelo governo ordinário de seu regimento, transmitindo as ordens dos
capitães-generais. Tinha a jurisdição cível e criminal de seu terço com apelação para o general. Num
território tão vasto como o de Minas Gerais em muitas ocasiões era o responsável, juntamente com
capitães-mores e mestre de campo, por implementar as “políticas de ordem” nas localidades. In:
RAPOSO, Luciano & CAMPOS, Maria Verônica. Códice Costa Matoso.... Op. cit., p. 108.
211
RAPM, registro de patentes do governador Antonio Albuquerque Coelho de Carvalho (1711),
código 1136, ano 2, fascículo 4, ano 1897. Patente de Salvador Fernandes Furtado. 20 de abril de
1711, p. 785.
212
Como vereador tinha o poder de cuidar da administração dos bens do concelho. Em alguns casos podia
assumir o papel de ouvidor. Devia ainda fiscalizar a atuação dos juízes no cumprimento da justiça, por em
pregão todas as rendas do concelho e contratar com os rendeiros, recebendo as fianças, bem como
participar da escolha do juiz de vintena. In: SALGADO, Graça (Org.). Fiscais e meirinhos... Op. cit.
p. 132-133. RAPOSO, Luciano & CAMPOS, Maria Verônica. Códice Costa Matoso... Op. cit., p.126.
213
Acórdãos da Câmara Municipal de Mariana. APM. Seção Colonial – Cód. 02, 05 e 06.
214
O juiz ordinário tinha funções semelhantes as do juiz de fora nas vilas ou cidades onde este não existia.
Administrava a justiça na localidade e suas sentenças iam por apelação para o ouvidor. Podia ainda
fiscalizar a atuação dos almotacés, os serviços de estalagem e fixar seus preços, escolher o juiz de vintena
e acumular as funções de juiz de órfãos. SALGADO, Graça (Org.). Fiscais e meirinhos... Op. cit., p. 130-
131. RAPOSO, Luciano & CAMPOS, Maria Verônica. Códice Costa Matoso... Op. cit., p.104. Para todas
estas informações ver: FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas
do Brasil... Op. cit., p. 252
75
longo de sua vida, antes mesmo de atuar nas Minas, a posse de numeroso armamento,
bem como a posse de expressiva escravaria215.
Contrapondo essa imagem do sertanista, associada ao paulista, tem-se a figura
do reinol, forasteiro. Também vieram para as Minas muitos migrantes portugueses,
como indica a tabela 1, tendência esta que foi se ampliando, sobretudo após a Guerra
dos Emboabas, pois em tal conflito os paulistas, presença predominante até então,
saíram derrotados e se deslocaram da capitania. Com isso a presença dos reinóis foi se
aguçando no território mineiro ocorrendo mesmo uma explosão da migração de
portugueses em direção às Minas, contra a qual pouco ou nada se pôde fazer. De fato, o
incentivo para que portugueses viessem para a colônia era visível – lembrando aqui que
estamos falando de indivíduos que vão ocupar os quadros da elite mineira – e se
coadunava com os mesmos apelos que a Coroa fazia para potentados de outras regiões
da América.
Contudo as formas de deslocamento destes reinóis, bem como seus percursos
anteriores a chegada as Minas serão diferentes dos paulistas e mesmo entre si. Um
padrão de deslocamento possível para a capitania se dava a partir do provimento, ainda
no reino, em algum cargo político no ultramar. Este foi o caso de José Rebelo Perdigão.
Este reinol, natural de Lisboa, viera para o Brasil em 1697 acompanhando o governador
Artur de Sá e Menezes instituído no cargo de secretário da repartição do sul 216. Ficou no
Rio de Janeiro até aproximadamente 1700 atuando e acompanhando o dito governador
em muitas diligências na capitania fluminense, no sul e em São Paulo, “sempre a fazer
negócios de grande consideração com grave perigo de sua vida e despesa de sua
fazenda”217. Em São Paulo:
215
Só para termos uma idéia, em seu inventário, que reflete o momento final de sua vida, encontramos
listado um monte-mor de 33:482$400, um plantel composto por 61 escravos e 22 armas de fogo. Cf.:
CSM, 2º ofício – Inventário post-mortem de Salvador Fernandes Furtado de Mendonça. Códice 138, auto
2800, (1725).
216
FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil... Op. cit.,
p. 295.
217
AHU/MG/cx.: 22; doc.: 64.
218
Idem.
76
Ofereceu-se mais uma vez para conduzir ao Rio de Janeiro o ouro retirado desta
data no Rio das Velhas “com despeza de sua fazenda as custas de seus escravos”.
Ainda neste ano de 1701 foi pela segunda vez com o governador Artur de Sá para as
capitanias do sul exercendo o ofício de secretário, “tendo bom expediente com os
papeis da secretaria e levando os emolumentos rectamente”221. Em 1702 ganhou uma
data de terra aurífera de Artur de Sá no Ribeirão do Carmo, deixando então o cargo de
secretário para se dedicar a mineração222.
Essa trajetória bem sucedia de “fiel vassalo” foi recompensada com várias
mercês que além de atestar a figura respeitável que era e reconhecer sua autoridade,
aumentavam seu mando e legitimidade na sociedade que se formava. Em 1711 foi
nomeado superintendente do distrito da Vila do Carmo com jurisdição civil e crime 223.
Na provisão que lhe atribuiu o cargo vinha assim estipulado:
“Faço saber aos que esta minha provisão virem que tendo respeito a ser
muito conveniente ao serviço de V. Mag tratarse da boa administração
219
Idem. Grifo meu.
220
Idem. Grifo meu.
221
Ibidem.
222
FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil... Op. cit.,
p. 295.
223
AHU/MG/cx.: 22; doc.: 64. Ver também: RAPM, registro de patentes do governador Antonio
Albuquerque Coelho de Carvalho (1711), código 1136, ano 2, fascículo 4, ano 1897. Provisão para Jose
Rebello Perdigão servir de superintendente na Vila do Carmo. 7 de abril de 1711, p. 786.
77
da justiça nos distritos destas minas por faltarem nellas ministros que
possão julgar e determinar os direitos de suas partes e deferir a seus
requerimentos e não chegarem os ministros que V. Mag tem feito para
estas conquistas razão porque he preciso continuarem os
superintendentes que pella referida falta ellegi nellas e pelo regimento
que trouxe o desembargador Jose Vaz Pinto superintende que foy destas
minas cuja ocupação se deve encarregar a pessoa de talento e
inteligência e atendendo que tais requisito se achão na pessoa de Jose
Rebelo assistente nestas minas há muitos annos e dos principais
moradores della hey por bem nomeallo no dito posto cujo cargo
exercera enquanto eu tiver por bem e V. Mag não mandar em
contrario”224.
224
RAPM, registro de patentes do governador Antonio Albuquerque Coelho de Carvalho (1711), código
1136, ano 2, fascículo 4, ano 1897. Provisão para Jose Rebello Perdigão servir de superintendente na Vila
do Carmo. 7 de abril de 1711, p. 786.
225
CAMPOS, Maria Verônica. Governo de Mineiros... Op. cit., p. 64.
226
FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil... Op. cit.,
p. 295. Ver ainda: Acórdãos da Câmara Municipal de Mariana. APM. Seção Colonial – Cód. 02, 05 e 06.
78
“E porque V. Mag. não falta como premio aos vassalos que sem duvida
no real serviço souberam se empregar e distinguir desprezando o risco
de vida pede que respeitando a qualidade de huns e outros servissos
pede a mercê de uma comenda de 220 mil réis com o hábito de cristo e a
alcaidaria-mor de Vila Rica, ou em lugar dellas a propriedade do ofício
de escrivão das execucoens ou tabelião de Vila Rica e assim mais soldo
227
AHU/MG/cx.: 22; doc.: 64.
228
ANTT. Registro Geral de mercês. Jose Rebelo Perdigão. Patente. João V, livro 7, folha 43. Janeiro de
1715.
229
Idem.
79
Após todos estes 5 anos atuando na Índia, embarcou para a América Portuguesa,
por volta do ano de 1710, contando com apenas 23 anos. Aí instalado realizou
importantes serviços para a Coroa dentre os quais destaca-se:
“No tempo que governou as Minas D. Bras da Silveira foi por elle
encarregado de varias diligencias como quando foy ao rio das mortes a
sosegar hua soblevação que houve naquelle povo e acompanhou
naquella jornada a sua custa com que fes grande despesa com armas e
20 negros que o acompanharão. E sendo chegado a pouco tempo nas
Minas quando os franceses invadiram o Rio de Janeiro, foi dos
primeiros que se offereceo para acompanhar o governador António de
Albuquerque e o fez com despesa de sua fazenda. E tendo noticia que
havia se levantado o povo de Villa Rica marchou logo com seus
escravos armados para a parte aonde estava o dito governador conde
de assumar. E depois dado o perdão aos rebeldes de Villa Rica teve
noticia de que continuarão a sua rebelião e sendo lhe preciso acudir
aquelle grave perigo mandou o governador por carta sua chamar ao
suplicante para o acompanhar e na mesma noite em que foi avisado
partio logo com vinte negros seus armados para se achar com o dito
governador e o acompanhou a dita Villa e ainda depois de presos os
comparsas esteve assitindo nella com os ditos escravos hum mês athe
tudo ficar sussegado” 235.
234
ANTT. Habilitação da Ordem de Cristo de Caetano Álvares Rodrigues. Letra C, Maço 12, doc. 6. Data
24 de janeiro de 1731.
235
Idem. Grifos meu.
81
Como já indicado, era prática corrente o Rei recompensar aqueles leais súditos
que, às custas de suas vidas e fazendas, se empenhassem na defesa do Império. Assim,
por todos estes serviços Caetano Álvares Rodrigues ganhou, no ano de 1721, a patente
de coronel das Ordenanças de São Paulo236, e, no ano de 1720, foi escolhido para ocupar
o cargo de guarda-mor das Minas do distrito de Vila do Carmo 237. Este cargo dava
imenso poder a seu ocupante, visto que além do prestígio proporcionado, o cargo de
guarda-mor poderia também traduzir-se na produção de benefícios econômicos diretos,
pois entre suas funções estava a de distribuir as datas de terras minerais e colocá-las em
pregão. Após 1720 passava também a ser atribuição deste servidor distribuir os veios
das águas aos mineradores. Além disso, eram funções do guarda-mor: controlar os
descaminhos do ouro, a entrada de pessoas e mercadorias, fazer justiça no caso de
descumprimento do regimento das terras minerais e assentar os mineradores e seus
escravos nas datas238. Conforme argumenta Maria Verônica Campos tal cargo só poderia
mesmo ser exercido por indivíduo de grande poder e ascendência sobres os demais, sua
figura era o referendo de uma autoridade localmente respeitada239. Corrobora tal
assertiva o fato de Caetano Álvares Rodrigues ter sido eleito juiz ordinário e presidente
da Câmara da Vila do Carmo no ano de 1718240 e em 1745 ser novamente eleito para o
cargo de juiz ordinário na mesma localidade241.
Por fim, laureando essa trajetória bem sucedida de inserção nas Minas foi feito
cavaleiro professo da Ordem de Cristo em 1731242, condecorado com o foro de
Escudeiro e Cavaleiro Fidalgo da Casa Real em 1749243 e escolhido para atuar como
familiar do Santo Ofício na capitania. Cabe sublinhar que fora um dos mais ativos
236
FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil... Op. cit.,
p.343.
237
Em sua habilitação para Ordem de Cristo vem assim declarado: “por resolução de V. Mag. em 1703
foi servido dar me o poder de nomear nas minas guarda mores meus substitutos e conformando me com
a dita resolução hey por bem nomear para guarda mor meu substituto de que era guarda mor
Maximiano de Oliveira Leite, a Caetano Alvares Rodrigues por concorrerem nelle todas as requisições
necessarias para o bem exercer a dita ocupação e assim ordeno a todas as pessoas de qualquer grau
qualidade ou condição que assim o reconheção como guarda mor nas freguesias do São Sebastião,
gualaxo, sumidouro, brumado, rocha, rio do peixe e todas as vertentes”. ANTT. Habilitação da Ordem
de Cristo de Caetano Álvares Rodrigues. Letra C, Maço 12, doc. 6. Data 24 de janeiro de 1731.
238
FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil... Op. cit.,
p.343; e RAPOSO, Luciano & CAMPOS, Maria Verônica. Códice Costa Matoso... Op. cit., p.101-102.
239
CAMPOS, Maria Verônica. Governo de Mineiros... Op. cit., p. 56.
240
Acórdãos da Câmara Municipal de Mariana. APM. Seção Colonial – Cód. 02, 05 e 06.
241
Acórdãos da Câmara Municipal de Mariana. APM. Seção Colonial – Cód. 02, 05 e 06.
242
ANTT. Habilitação da Ordem de Cristo de Caetano Álvares Rodrigues. Letra C, Maço 12, doc. 6. Data
24 de janeiro de 1731.
243
AHU/MG/cx.: 86; doc.: 17.
82
Familiares do Santo Ofício atuando na região, em nome do qual realizara muitas prisões
mesmo antes de ser habilitado:
Por fim destaco uma outra possibilidade de deslocamento bem típica entre
muitos portugueses que se dirigiam para a América portuguesa. Em muitos casos esses
indivíduos para aí migravam bem jovens e atuavam em ofícios mecânicos, tais como
caixeiro, sapateiro, carpinteiro buscando, ao longo de sua trajetória, oportunidades para
ascender na hierarquia através do desempenho de atividades econômicas lucrativas, tais
como o comércio, mineração, ou através da prestação de serviços a Coroa portuguesa
que lhes proporcionassem o ganho de mercês. Um caso exemplar nesse sentido é o de
Gabriel Fernandes Aleixo, que tinha origem humilde no reino e conseguiu, ao migrar
para a América, estabelecer uma trajetória de ascensão social. Natural do lugar de
Vilaroco, termo da vila de São João da Pesqueira, comarca de Pinhel, bispado de São
Lamego, era filho legítimo de Manoel Fernandes Aleixo e Catarina Vaz. Ainda no reino
exercera o ofício de carpinteiro, que aprendera com o pai, que além dessa profissão
“andava com bestas vendendo pellos povos, azeite e sardinha, farinhas e outros mais
mantimentos”245. Saíra de sua terra natal em direção ao Brasil ainda bem jovem,
aproximadamente com 15 anos, intentando melhores oportunidades de vida. Segundo
relatos:
244
ANTT. Familiatura do Santo Ofício de Caetano Álvares Rodrigues Horta. Completa, maço 4, doc. 48.
Maio de 1745.
245
ANTT. Habilitação da Ordem de Cristo de Gabriel Fernandes Aleixo. Letra G, maço 4, doc. 6. Data 03
de Fevereiro de 1730.
246
Idem.
83
Depois de alguns anos morando em São Paulo, decidiu se dirigir para as Minas,
mais especificamente para Vila Rica, aí chegando nos primórdios de sua formação.
Como muitos outros foi para a capitania para minerar, enriquecer e melhorar sua
“qualidade”, no que, parece, foi bem sucedido, já que se tornou nas Minas um grande
proprietário de terras ao ganhar 5 sesmarias248, se tornar um homem de muitos
cabedais249 e conseguir atuar como escrivão das fazendas dos defuntos e ausentes
capelas e resíduos da comarca de Ouro Preto, ofício do qual era proprietário250.
Além disso, depois de seu estabelecimento nas Minas, procurou também ajudar
no real serviço, num momento em que a Coroa necessitava do auxílio de “fiéis
vassalos” para organizar, defender e governar a capitania, dando em troca mercês
régias. Assim é que “por proceder com muito zello em tudo do real serviço e sempre se
oferecer em todas as ocasiões como foi no levantamento dos moradores de Vila Rica no
tempo do Conde de Assumar em que se houve com toda a fidelidade e por Sua Mag.” 251
foi agraciado com a patente de capitão de Infantaria de Ordenança dos Reformados e
Privilegiados e mais Nobreza de Vila Rica em janeiro de 1728252.
Já com um certo status e “qualidade” social destacada tenta no ano de 1730
galgar um hábito da Ordem de Cristo, em respeito aos serviços de seu tio Andre Nabaes
natural da vila de Proença, comarca de Castelo Branco, “obrados na infantaria da
província da Beyra por espaço de 41 annos”253. Mas devido sua origem e ascendência
humilde e exercício de ofício mecânico nas provanças feitas pela ordem foi impedido de
ganhar o hábito. Assim:
247
Ibidem.
248
Ver: Catálogo de sesmarias. Revista do Arquivo Público Mineiro, Vol. 1... Op. cit., p. 28.
249
Ver: AHU/MG/cx:21, doc: 40.
250
Ver: AHU/MG/cx:21, doc: 16.
251
ANTT. Registro Geral de mercês. Patente de sargento mor de Gabriel Fernandes Aleixo. D. João V,
livro 19, folha 128.
252
Idem.
253
ANTT. Registro Geral de mercês. Gabriel Fernandes Aleixo. Carta de padrão de tença, João V, livro
20, folha 558.
84
Apesar de não ter conseguido o hábito de Cristo, que sem dúvida teria um peso e
tanto no reforço de sua “qualidade”, em agosto de 1733 ganhou a patente de sargento-
mor de Ordenanças em Vila Rica, que também lhe proporcionava poder e prestígio,
denotando assim como foi bem sucedido em sua busca por ascensão social. Na carta
patente que lhe foi passada estava assim relatado:
“Tendo respeito que o dito Gabriel Fernandes Aleixo estar provido por
D. Lourenço de Almeida sendo governador e capitão general de Minas
Gerais no posto de sargento mor das ordenanças da comarca de Vila
Rica que vagou por dessistencia que dele fez Sebastião Alvares Frias por
estar velho doente e quase cego, muito pobre incapaz de escrever, e
atendendo ao dito Gabriel estar servindo a quase 6 anos em posto de
capitão das ordenanças dos reformados e privilegiados e nobreza e
sempre cumprir as ordens que se lhe encarregarão e importantíssimas
diligências se havendo sempre com muita fidelidade e valor nas juntas
que se fizerão para o aumento dos quinto reais e estabelecimento das
casa de fundição e dos donativos do suprimentos dos gastos dos
casamentos de Sua Mag. Hey por bem de o confirmar no referido
posto”255.
254
ANTT. Habilitação da Ordem de Cristo de Gabriel Fernandes Aleixo. Letra G, maço 4, doc. 6. Data 03
de Fevereiro de 1730.
255
ANTT. Registro Geral de mercês. Patente de sargento mor de Gabriel Fernandes Aleixo. D. João V,
livro 19, folha 128.
85
256
FRAGOSO, João. “Potentados coloniais e circuitos imperiais: notas sobre uma nobreza da terra,
supracapitanias, no Setecentos”. In: MONTEIRO, Nuno G. CARDIM, Pedro & CUNHA, Mafalda Soares
da (Orgs.). Optima Pars... Op. cit., p. 133.
257
Idem, p. 93.
86
Por tais motivos, faremos a partir de agora uma análise destas práticas e
estratégias que permitem uma caracterização social deste grupo de forma mais
“homogênea”, nos auxiliando assim na reconstituição do perfil sócio-político destes
potentados, para assim explicitar elementos de suas trajetórias.
258
GOUVÊA, Maria de Fátima. “Diálogos historiográficos e cultura política na formação da América
Ibérica”. In: SOIHET, Raquel, BICALHO, Maria Fernanda & GOUVÊA, Maria de Fátima. Culturas
Políticas: ensaios de história cultural, história política e ensino de história. Rio de Janeiro: Ed. Mauad,
2005, p. 78.
259
BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o Império... Op. cit., p. 345.
260
FRAGOSO, João, BICALHO, Maria Fernanda & GOUVÊA, Maria de Fátima. “Introdução”. In:
FRAGOSO, João, BICALHO, Maria Fernanda & GOUVÊA, Maria de Fátima. (Orgs.). O Antigo Regime
nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa... Op. cit., p. 24.
261
FRAGOSO, João. “Alternativas metodológicas para a história econômica e social: micro-história
italiana, Fredrik Barth e a história econômica colonial...” Op. cit., p. 11.
87
TABELA 2
Informação N.º %
Descobridor 80 64
Primeiro povoador 115 92
Atuação na defesa 100 80
Fonte: FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil. Belo
Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. USP, 1989. Arquivo Histórico Ultramarino/Projeto Resgate –
Documentação avulsa de Minas Gerais/Cd-rom.
*Obs.: para a construção desta tabela encontramos dados para 125 indivíduos. Cabe sublinhar que no
caso desta variável encontramos exemplos em que um mesmo potentado agregou mais de uma das três
informações enunciadas, fazendo com que o número de informações listadas seja maior do que o número
de potentados para os quais encontramos elementos.
A tabela 2 nos mostra que dentre os 193 indivíduos analisados, 125 potentados,
ou seja, 64,76% deles atuaram na conquista da terra. A atuação nesta envolvia: ser um
descobridor do território mineiro, ou seja, sujeitos que participaram de bandeiras para
adentrar e expandir esta região de fronteira; ser um de seus primeiros povoadores,
muitas vezes contribuindo para construção não só de suas casas e sítios, mas de locais
como capelas, igrejas e prédios públicos e também ser atuante na defesa interna e
externa do território colonial. Neste caso consideramos desde episódios importantes
como a invasão dos franceses, a Guerra dos Emboabas e a revolta de Vila Rica, como
situações menos grandiosas, mas também de grave prejuízo para a Coroa, tais como
lutas com gentio bravo e contra negros quilombolas. Só para termos uma idéia, dos 100
potentados que prestaram serviços à Coroa auxiliando na defesa da colônia, 19 o
fizeram durante a invasão dos franceses no Rio de Janeiro, 93 durante a revolta de Vila
Rica em 1720, e 31 atuaram em outras localidades onde a ordem pública foi também
conturbada, tais como a Bahia, a Colônia de Sacramento e até mesmo o reino. Vale
lembrar que ser um conquistador não é um simples sinônimo de ser dos primeiros
povoadores. Ser conquistador implicava em submeter populações e/ou instituir a
88
autoridade do Rei nas novas terras, ou seja, garantir o seu governo 262, daí analisarmos as
três informações destacadas em conjunto.
Sabe-se que alguns destes conquistadores vieram de Portugal, outros de São
Paulo, outros do Rio de Janeiro e da Bahia. Mas o importante a destacar é que por
intermédio dos serviços prestados ao Rei na conquista do território esses homens se
transformaram nos poderosos da terra. A descoberta aurífera originou-se da lógica de
reiteração da própria sociedade colonial, sendo que os fenômenos provenientes de tal
descoberta ocorreram em uma sociedade hierarquizada e preexistente263. Daí não serem
estranhos alguns traços dos primeiros tempos da ocupação das Minas. Os bandeirantes
paulistas que acharam os metais se consideravam conquistadores e, portanto,
acreditavam ter certos direitos, como o controle político e econômico da nova região,
além das mercês régias264. Vejamos um exemplo.
O paulista taubateano Bento Fernandes Furtado de Mendonça, filho do
descobridor da Vila do Carmo, Salvador Fernandes Furtado de Mendonça, viera para as
Minas na companhia do pai ainda muito jovem para procurar descobrimentos aurinos.
Instalou-se inicialmente em Águas Claras e em 1704 foi com seus irmãos procurar ouro
pelas Minas Gerais, mais precisamente na região de São Caetano. Nesta localidade
casou-se com sua prima Bárbara Moreira de Castilho, neta do famoso mestre-de-campo
e sertanista Carlos Pedroso da Silveira265. Com tal matrimônio integrava-se a família de
uma das mais importantes figuras de todo o primeiro período do “ciclo” do ouro em
Minas Gerais. Desde 1683 fora Carlos Pedroso da Silveira companheiro do sertanista
Bartolomeu Bueno da Siqueira que, com numerosa bandeira, andava em sondagens pelo
sertão de Cataguases. Carlos Pedroso tomou parte ativa na bandeira de 1694, inclusive
custeando-a, na qual Bartolomeu Bueno achou ouro em Itaverava. A família de Carlos
Pedroso tornou-se muito rica e importante na região de São Caetano, onde se
estabeleceram, e onde este sertanista exerceu relevantes cargos como o de provedor dos
quintos266.
262
FRAGOSO, João. À Espera das frotas: micro-história tapuia e a nobreza principal da terra ... Op. cit.,
p. 58-59.
263
FRAGOSO, João. “Alternativas metodológicas para a história econômica e social: micro-história
italiana, Fredrik Barth e a história econômica colonial...” Op. cit., p. 11.
264
FRAGOSO, João. “Potentados coloniais e circuitos imperiais: notas sobre uma nobreza da terra,
supracapitanias, no Setecentos...” Op. cit., p. 141.
265
FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil... Op. cit.,
p.250.
266
FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil... Op. cit.,
p. 387; e VASCONCELOS, Diogo de. História Antiga das Minas Gerais... Op. cit., p.172-175. Ver
também: ANTT. Familiatura do Santo Ofício de Bento Fernandes Furtado. Incompleta, maço 23, doc.
89
272
Catálogo de sesmarias. Revista do Arquivo Público Mineiro, Vol. 1... Op. cit., p. 285.
273
FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil... Op. cit.,
p.259
274
ANTT. Familiatura do Santo Ofício de Bento Fernandes Furtado. Incompleta, maço 23, doc. 924.
Outubro de 1733.
275
FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil... Op. cit.,
p. 250. Ver também: Acórdãos da Câmara Municipal de Mariana. APM. Seção Colonial – Cód. 02, 05 e
06.
276
FRAGOSO, João. À Espera das frotas: micro-história tapuia e a nobreza principal da terra ... Op. cit.,
p. 51.
91
serviços ao Rei. No Rio de Janeiro “atuara como praça de soldado infante por mais de
5 annos dando inteira satisfação a todas as diligências”277. Depois foi para São Paulo:
contratos destas Minas”284. Por tão valorosos serviços ganhou como mercês, além das
patentes militares que foi recebendo de forma a subir no escalão da hierarquia militar
(passou de soldado, ajudante de terço, capitão, mestre de campo dos descobrimentos
chegando a coronel)285, sesmarias286 e um hábito da Ordem de Cristo287.
Percebe-se que conquistar novas terras implicava em submeter populações,
garantir sua organização e governo, o que resultava em superioridade em uma
hierarquia estamental para aqueles que realizassem tais tarefas. Isto se tornava ainda
mais reforçado quando tais feitos eram às custas de suas fazendas e escravos, fenômeno
que poderia traduzir-se em mercês régias para estes “leais súditos”288.
Isto fazia diferença na trajetória de indivíduos como Paulo Rodrigues Durão
diante das populações que afluíram para as Minas, no início do século XVIII. Natural de
Évora, Coutos de Alcobaça, Paulo Rodrigues Durão migrou para a América Portuguesa
e sertanejou nas Minas Gerais em seus primórdios, sendo dos seus descobridores e
primeiros povoadores. Estabeleceu-se inicialmente no Morro Vermelho do Sabará,
mudando-se depois para o Inficcionado onde ganhou patente de capitão de Auxiliares,
posto que exerceu entre janeiro de 1718 a dezembro de 1719289. O fato de possuir
patente de capitão naquelas paragens já lhe proporcionava uma melhor “qualidade”,
reforçada ainda mais pela sua liderança na conquista do território mineiro em várias
ocasiões, tornando-se assim hierarquicamente superior em relação aos simples
povoadores vindos do reino e de outras regiões do Brasil290. Vejamos estas ocasiões em
que atuou na conquista:
“Como no socorro que deo com seos escravos armados ao tenente general
João da Costa Fragoso para se prenderem e castigarem alguns negros
revoltosos de regulos insolentes de Cattas Altas em Matto Dentro que
andavam armados cometendo varias desordens sem atenção aos bandos do
Conde de Assumar que havia proibido aos negros o uso de armas para
praticar insultos que athe sua chegada a estas Minas sucedião” 291.
284
AHU/MG/cx.: 35; doc.: 81.
285
Idem.
286
Catálogo de sesmarias. Revista do Arquivo Público Mineiro, Vol. 2...Op. cit., p. 174.
287
Ver: CPOP, 2º ofício – Inventário post-mortem de Mathias Barbosa da Silva. Códice 101, auto 1257,
(1742).
288
FRAGOSO, João. “A nobreza vive em bandos: a economia política das melhores famílias da terra do
Rio de Janeiro, século XVII: algumas notas de pesquisa...” Op.cit., p. 2.
289
FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil... Op. cit.,
p. 145.Ver também: ANTT. Registro Geral de mercês. Paulo Rodrigues Durão. Patente. João V, livro 12,
folha 302, microfilme 161.
290
FRAGOSO, João. À Espera das frotas: micro-história tapuia e a nobreza principal da terra ... Op. cit.,
p. 58-59.
291
AHU/MG/cx.: 4; doc.: 76. Grifos meus.
93
292
Idem, grifo meu.
293
Ibidem, grifo meu.
294
ANTT. Registro Geral de mercês. Paulo Rodrigues Durão. Patente. João V, livro 12, folha 302,
microfilme 161.
295
RAPM, cartas patentes, código 1229, ano 4, fascículo 4, ano 1899. Patente de Paulo Rodrigues Durão,
sargento mor do Mato Dentro. 27 de outubro de 1722, p. 101-102. Grifos meus.
94
296
ALMEIDA, Maria Regina C. de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, p. 259.
297
BEBIANO, Rui. “A guerra: o seu imaginário e a sua deontologia”. In: HESPANHA, António Manuel
(Org.). Nova História Militar de Portugal. Vol. II – séculos XVI-XVII. Lisboa: Círculo de Leitores:
2003, p. 47.
298
BICALHO, Maria Fernanda. “Conquista, mercês e poder local: a nobreza da terra na América
portuguesa e a cultura política do Antigo Regime...” Op. cit., p. 26 e 31.
299
Idem, p. 32-33.
95
autoridade, pois era uma forma especial de participar do poder, de interferir em pontos
chaves desta sociedade como na justiça e na economia302, de partilhar da honra inerente
a tais funções, de incrementar redes de dependentes e de poder, ou seja, de fazer parte
da pequena elite colonial.
Dentre os poderosos locais aqui analisados a ocupação destes cargos era um
importante mecanismo de diferenciação social, de aquisição de “qualidade”,
principalmente os cargos relacionados com a governança, pois a ocupação de tais postos
era um importante meio de se obter o reconhecimento público de status. Na verdade,
segundo João Fragoso, em se tratando de indivíduos que atuaram na conquista da terra,
pode-se enunciar mesmo uma a seqüência de fatos que ocorriam numa região recém-
conquistada, onde os postos de governo da nova localidade eram distribuídos entre seus
conquistadores. Com isto, abria-se a possibilidade de criação nos trópicos, de uma
sociedade de Antigo Regime e, portanto, marcada por privilégios estamentais em sua
hierarquia social303. Não é à toa que os dados compilados mostraram uma considerável
presença destes indivíduos em cargos burocráticos:
302
FRAGOSO, João. “A nobreza vive em bandos: a economia política das melhores famílias da terra do
Rio de Janeiro, século XVII: algumas notas de pesquisa...” Op. cit., p. 4.
303
FRAGOSO, João. À Espera das frotas: micro-história tapuia e a nobreza principal da terra ... Op. cit.,
p. 50.
98
TABELA 3
A tabela acima mostra que entre os potentados para os quais conseguimos obter
informações acerca da ocupação de ofícios administrativos, todos desempenharam
algum tipo de cargo em uma, ou em mais de uma, das três principais instâncias de
poder, a saber, a Fazenda, a Justiça e a Câmara. O acesso a cargos na administração, em
qualquer uma das instâncias citadas, conferia a seus ocupantes dignidade e definia seu
lugar social perante os habitantes locais.
A ocupação de cargos na Câmara se sobressaiu na amostragem somando 68
casos contando com aqueles poderosos que ocuparam cargos na Câmara e na Fazenda, e
na Câmara e na Justiça simultaneamente. A Câmara na sociedade colonial sempre foi
um locus tradicional de poder, pois era o órgão especializado em cuidar do “bem
comum” da República, ou seja, dirigir a organização social e política das regiões 304. Os
cidadãos eram os responsáveis pela “coisa pública”, o que garantia aos camaristas
acesso a honras, isenções, foros e franquias. Além disso, tal instituição deve ser também
destacada como órgão fundamental de representação dos interesses e das demandas dos
304
FRAGOSO, João. “Afogando em nomes: temas e experiências em história econômica...” Op. cit., p. 44.
99
305
BICALHO, Maria Fernanda. “As Câmaras Municipais no Império Português: o exemplo do Rio de
Janeiro”. Revista Brasileira de História, v.18, n.36, São Paulo, 1998, p.252.
306
BRANDÃO, Michelle Cardoso. Forjando status e construindo autoridade: perfil dos homens bons e
formação da primeira elite social em Vila do Carmo (1711-36). Juiz de Fora, Instituto de Ciências
Humanas - UFJF, 2009. Dissertação de Mestrado, p. 59.
307
CAMPOS, Maria verônica. Governo de Mineiros... Op. cit., p. 115.
308
FRAGOSO, João. “Afogando em nomes: temas e experiências em história econômica...” Op. cit., p. 72.
309
MAGALHÃES, Joaquim Romero. “Os nobres da governança das terras”. In: MONTEIRO, Nuno G.
CARDIM, Pedro & CUNHA, Mafalda Soares da (Orgs.). Optima Pars – elites ibero-americanas do
Antigo Regime... Op. cit., p. 67.
310
Idem, p. 67-68.
311
FRAGOSO, João. “Afogando em nomes: temas e experiências em história econômica”. Topoi. Revista
de História. Rio de Janeiro, vol. 5, p. 41-70, 2002, p. 44.
100
(1722).
323
FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil... Op. cit.,
p. 90.
324
Catálogo de sesmarias. Revista do Arquivo Público Mineiro. Vol 1... Op. cit., p. 113.
325
FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil... Op. cit.,
p. 90. Ver também: Memorial Histórico-Político da Câmara Municipal de Ouro Preto. Cor & Cor
Editorial: Ouro Preto, Dezembro de 2004.
326
GOUVÊA, Maria de F.; FRAZÃO, Gabriel A & SANTOS, Marília N. dos. “Redes de poder e
conhecimento na governação do Império Português, 1688-1735...” Op. cit., p. 101.
103
destes mesmos homens em postos chaves para a gestão da nova sociedade. Esta
ocupação de variados ofícios administrativos por parte destes homens podia fomentar a
comunicação política entre estas instituições pela via da presença física dos
dirigentes327. Em contrapartida, a presença dos mesmos indivíduos em variados cargos
de poder acabava por consolidar o surgimento de poderosos grupos de dirigentes locais.
Ou seja, a incumbência de um cargo abria caminho para outros, criando assim uma
pequena oligarquia dirigente328.
A título de exemplificação destaco o caso de Sebastião Barbosa Prado. Este
português, considerado um dos principais da terra, era homem muito rico, sendo
contratador dos caminhos dos currais e da Bahia e um dos maiores comerciantes de
gado da região329. Ao longo de sua vida ocupou vários ofícios nas diferentes instâncias
de poder: em 1711 foi juiz almotacé na Câmara de Vila Rica e em 1713 atuou como
escrivão da Fazenda Real. Em 1725 fora eleito juiz ordinário na Câmara de Vila Rica e
provido no cargo de procurador do registro da passagem de Boa Vista na Bahia330.
Percebe-se a importância dos ofícios recebidos por Sebastião Barbosa Prado em uma
sociedade em formação, pois concediam a seu ocupante mando sobre os demais
habitantes da região, bem como sobre os negócios da Republica. Como juiz ordinário,
podia administrar a justiça na localidade tendo poder de decisão sobre várias
contendas331. Como escrivão da Fazenda Real tinha de se posicionar e escrever sobre a
solução adotada nos casos que envolvessem contendas acerca deste órgão332.
Além disso, com postos como o de juiz almotacé e procurador do registro da
Bahia o dito potentado tinha a chance de viabilizar com muitas vantagens seus
negócios. Levando-se em conta que o exercício dos cargos de juiz almotacé
possibilitava o controle dos preços e serviços ligados ao comércio da região sob sua
jurisdição333, e que com o cargo de procurador do registro “tinha conhecimento e poder
para cobrar tudo quanto pretende de todos os negros e outras mercadorias que
327
SUBTIL, José. “Os poderes do centro”. In: HESPANHA, António M. (Org.). História de Portugal...
Op. cit., p., 172.
328
RUSSEL-WOOD, A. J. R. “O governo local na América Portuguesa: um estudo de divergência
cultural”. Revista de História. São Paulo: FFLCH/USP, LV (109):25-79, 1977. Apud. SILVEIRA, Marco
A. O universo do indistinto: Estado e sociedade nas Minas setecentistas, (1753-1808). São Paulo:
Hucitec, 1997, p. 153.
329
AHU/MG/cx.: 9; doc.: 76.
330
AHU/MG/cx.: 14; doc.: 67.
331
RAPOSO, Luciano & CAMPOS, Maria Verônica. Códice Costa Matoso... Op. cit., p.104.
332
SALGADO, Graça. Fiscais e Meirinhos... Op. cit., p. 286.
333
FRAGOSO, João. “A formação da economia colonial no Rio de Janeiro...” Op. cit., p 46-48.
104
entrarem nestas Minas”334, pode-se supor que durante o período em que exerceu tais
ofícios seus negócios prosperaram.
Havia assim a possibilidade destes potentados ocuparem, simultaneamente, os
cargos da Câmara e da administração periférica (Fazenda e Justiça). Afinal, à boa parte
destes sujeitos coube a organização da localidade após seu desbravamento, povoamento
e defesa, o que lhes permitiria compartilhar o poder na região com a Monarquia335.
336
Idem, p. 141.
337
FRAGOSO, João. “Potentados coloniais e circuitos imperiais: notas sobre uma nobreza da terra,
supracapitanias, no Setecentos”. In: MONTEIRO, Nuno G. CARDIM, Pedro & CUNHA, Mafalda Soares
da (Orgs.). Optima Pars – elites ibero-americanas do Antigo Regime... Op. cit., p. 139.
338
RAPOSO, Luciano & CAMPOS, Maria Verônica. Códice Costa Matoso... Op. cit., p. 194-202.
339
Idem, p. 197.
340
Idem.
106
casos de figuras célebres das primeiras décadas de formação da capitania tais como
Manuel Nunes Viana, Domingos da Silva Monteiro, Jerônimo Pedroso de Barros,
Bartolomeu Bueno Feio, Salvador Fernandes Furtado de Mendonça, Pascoal da Silva
Guimarães, dentre muitos outros341.
O governador Martinho de Mendonça Pina e Proença, que em 1730 iria para
Minas organizar as arrecadações dos quintos e dos diamantes, em relatório que escreveu
ao Rei D. João V, resumiu assim os anos iniciais da região em relação aos potentados:
Apesar de nos relatos citados a posse de escravos armados surgir como algo
pejorativo, visto que abria procedência para se agir com desmando e violência tornando
esses indivíduos figuras temidas, não há como negar que o acesso a grande número de
cativos fazia parte da caracterização de alguém como poderoso. Conforme nos lembra
João Fragoso a conquista e a contínua experiência no mando político dava a estes
indivíduos um sentimento de superioridade sobre os demais moradores da colônia,
fenômeno que era referendado pelas mercês dadas por Sua Majestade. Através destas, a
Coroa reconhecia a importância do grupo na preservação e no engrandecimento da
Monarquia. Da mesma forma, era referendada a sua acuidade no bem-estar dos povos.
Entre tais serviços, vale a pena lembrar o uso de escravos armados na defesa dos
interesses do Rei ou na garantia da ordem pública. Ao se utilizarem desse recurso
tinham em mãos um instrumento eficaz para argumentar e solicitar as mercês régias,
bem como para evidenciar sua autoridade. E, ao receberem benesses por tais serviços, o
Rei estava, na prática, reconhecendo a importância do grupo na manutenção da
monarquia e no mando da Republica343.
Alguns exemplos podem ser esclarecedores e ratificar nosso argumento da
importância e uso recorrente desse recurso pelos potentados. O capitão-mor de Catas
Altas Bento Ferraz Lima, é um exemplo de potentado extremamente útil a Coroa. Este
reinol, natural de Ponte de Lima, era homem de muitas posses, minerador, senhor de
341
Ver: TAUNAY, Afonso de. Relatos sertanistas... Op. cit., p. 67-70.
342
LIMA Jr. Augusto de. Vila Rica do Ouro Preto... Op. cit., p. 73.
343
FRAGOSO, João. À Espera das frotas: micro-história tapuia e a nobreza principal da terra ... Op. cit.,
p. 36.
107
“Sendo capitão mor das catas altas teve a felicidade de suprimir e evitar
hua sublevação devendo se a sua diligencia e direção o não haver a tal
sublevação como consta da certidão do Conde das Galveas, e foi a Villa
de caeté com vinte negros seus armados a ajudar a prender as cabeças
que inventavam juntar armas para outra sublevação no que fez
considerável despesa. Acompanhou com seus escravos ao capitão mor
de Catas Altas a evitar o grande quilombo de negros fogidos que no
morro do carassa sahião as estradas a matar e roubar aos passageiros
com a mesma despesa de sua fazenda. E havendo na Villa de Pitangui
várias resoluções chegando se a tomar armas contra a justiça de V.
Mag. E matando se ao juiz ordinário e tomando se os postos e passagens
para não passarem as noticias daquelles insultos, e indo o ouvidor a
devaçar e castigar os criminosos com alguns militares e pessoas
particulares se ofereceo o suplicante para servir a V. Mag. nesta tão
importante ocasião passando com 12 negros seus armados a Pitangui
onde depois de hua grande resistência que fizerão aquelles moradores
paulistas e suas vizinhanças sendo atacados e obrigados a fogir depois
de hua grande peleja em que houve muitos feridos e nessa ocasião se
houve o suplicante com a sua pessoa e escravos tão valorosamente que
esteve em evidente perigo de vida pela ferida que recebeo na batalha,
passando lhe hua balla na perna direita devendo se ao seo vallor grande
parte daquelle bom sucesso e seguindo se aos ditos paulistas a fim de
sosegar aquele povo como a ferida que o suplicante tinha tão perigosa
não lhe deu lugar a continuar o progresso com a sua pessoa mandou
quatro escravos e does homens brancos que sustentou e pagou a sua
conta quatro meses fazendo grande despesa athe que se mandou
recolher a gente. E havendo outra rebelião na Vila Rica cabeça da
comarca das minas, querendo expulsar dellas o governador Conde de
344
Lista de registro para cobrança dos quintos reais de 1725. Arquivo da Câmara de Mariana, códice 150.
345
ANASTASIA, Carla. Vassalos e rebeldes... Op. cit., p. 100.
108
Como visto, foram freqüentes as vezes em que este potentado foi a confrontos
acompanhado de seus escravos armados, o que nos informa sobre possíveis práticas de
negociações. Portanto, para além do genocídio e do cativeiro, não há de se estranhar a
existência de reciprocidades entre estes potentados e seus cativos347. Ademais, neste
exemplo fica claro como era importante para tais potentados terem cabedais para servir
ao Rei; o que lhes possibilitava solicitar futuras mercês régias e honrarias. Afinal, eles
enfrentavam perigos diversos, tais como quilombolas, criminosos e sublevações a
pedido da Coroa e o faziam às custas de suas vidas, fazendas e escravos. No caso de
Bento Ferraz além das patentes de sargento-mor e capitão-mor de Ordenanças, com
todos estes serviços prestados solicitou também benesses que lhe permitiriam ter um
reconhecimento a nível imperial, no caso um hábito da Ordem de Cristo e o cargo de
Familiar do Santo Ofício348.
Outro exemplo é o de Torquato Teixeira de Carvalho. Natural do lugar do
Couto, freguesia de Santo André de Molares, termo da Vila de Celonio de Basto,
Comarca de Guimarães, este potentado foi um dos pioneiros no descobrimento da Vila
do Carmo349. Chegou à região por volta de 1700, sendo dos seus primeiros povoadores
ganhando aí uma sesmaria em 23 de maio de 1711350. Enriqueceu com a mineração,
tornando-se homem abastado e senhor de escravos. No registro para cobrança dos
quintos reais feito para a região da Vila do Carmo ente os anos de 1718 a 1721 constava
que era possuidor de um plantel composto por 43 escravos351. Conseguiu também
ocupar um lugar destacado na hierarquia sócio-política, visualizado pelos cargos
honrosos que ocupou – foi procurador da Câmara de Mariana em 1711, vereador na
346
ANTT. Habilitação da Ordem de Cristo de Bento Ferraz Lima. Letra B, Maço11, doc. 6. Maio de 1740.
347
FRAGOSO João “A nobreza vive em bandos...” Op. cit., p. 17.
348
Ver: ANTT. Habilitação da Ordem de Cristo de Bento Ferraz Lima. Letra B, Maço11, doc. 6. Maio de
1740. E: ANTT. Familiatura do Santo Ofício de Bento Ferraz Lima. Incompleta, maço 23, doc. 925.
Janeiro de 1730.
349
ANTT. Familiatura do Santo Ofício de Torquato Teixeira de Carvalho. Incompleta, maço 131, doc.
5361. Março de 1723.
350
Catálogo de sesmarias. Revista do Arquivo Público Mineiro, Vol. 1... Op. cit., p. 155.
351
Lista de registro para cobrança dos quintos reais da Vila do Carmo, 1718-1721. Arquivo Público
Mineiro, Coleção Casa dos Contos – 1036, microfilme 006.
109
352
Acórdãos da Câmara Municipal de Mariana. APM. Seção Colonial – Cód. 02, 05 e 06.
353
FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil... Op. cit.,
p. 113.
354
ANTT. Familiatura do Santo Ofício de Torquato Teixeira de Carvalho. Incompleta, maço 131, doc.
5361. Março de 1723.
355
ANTT. Chancelaria Régia, João V, Torquato Teixeira de Carvalho, patente. Livro 67, p. 197,
microfilme 1509. Data 5 de julho de 1725.
356
FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil... Op. cit.,
p. 113.
357
Chancelaria Régia, João V, Torquato Teixeira de Carvalho, patente. Livro 67, p. 197, microfilme 1509.
Data 5 de julho de 1725. Grifo meu.
110
Com este exemplo destacamos que os serviços que prestou em prol da Coroa, os
escravos armados que disponibilizou e as despesas feitas de sua fazenda na realização
dessas diligências, mais do que evidenciar sua proeminente posição social e a posse de
riqueza considerável, denotam como era fulcral para estes homens, neste contexto,
poder dispor deste recurso de formar tais “milícias particulares” de escravos para
mandar, afirmarem-se e legitimarem-se enquanto poderosos.
Temos também o caso de Rafael da Silva e Souza, natural do Porto e dos
primeiros povoadores das Minas. Estabeleceu-se inicialmente em Guarapiranga onde foi
feito capitão-mor em 1708, atuando no levante dos emboabas com 80 homens armados
“gastando considerável fazenda”358. Tornou-se capitão dos emboabas, combatendo os
paulistas “com grande zello evitando algumas vinganças e destruição que com este
levante se teve”359. Foi ainda capitão de infantaria na Vila do Carmo, sargento-mor de
Auxiliares na mesma localidade e coronel dos Privilegiados das Minas, fazendo
relevantes serviços para a Coroa:
358
FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil... Op. cit.,
p. 406-407.
359
AHU/MG/cx.: 6; doc.: 16.
360
Idem, grifos meus.
361
AHU/MG/cx.: 2; doc.: 119. Grifo meu.
362
FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil... Op. cit.,
p. 406-407.
111
363
AHU/MG/cx.: 6; doc.: 16. Grifo meu.
364
AHU/MG/cx.:11 doc.: 15.
365
ANTT. Habilitação da Ordem de Cristo de Rafael da Silva e Sousa. Letra R, maço 1, Doc. 25. Data 18
de agosto de 1745.
366
ANTT. Habilitação da Ordem de Cristo de Antonio Correa Sardinha. Letra A, maço 48, doc. 25. Data
13 de julho de 1724.
367
Ver: Catálogo de sesmarias. Revista do Arquivo Público Mineiro... Vol 2. Op. cit., p. 153.
368
Na lista de registro para cobrança dos quintos reais do Arquivo Público Mineiro, Coleção Casa dos
Contos códice 1035, referente a freguesia do Inficcionado de 1718-1720, declarava ter 52 escravos.
369
Idem.
370
ANTT. Habilitação da Ordem de Cristo de Antonio Correa Sardinha. Letra A, maço 48, doc. 25. Data
13 de julho de 1724. Ver também: ANTT. Chancelaria Régia, João V, Antonio Correia Sardinha, patente.
Livro 50, p. 254v. Data 2 de setembro de 1718.
112
de Cristo, mercê que aumentaria ainda mais seu status e, conseqüentemente, seu poder
de mando. Neste sentido:
Por fim destaco o caso de Manuel Jorge Coelho. Natural de Évora, Coutos de
Alcobaça, foi também dos primeiros descobridores e povoadores das Minas Gerais.
Eleito capitão-mor de Catas Altas em 1718372, encontramos relato de pelo menos duas
diligências em que levara seus escravos como braço armado. No ano de 1720:
371
Idem. Grifos meu.
372
ANTT. Registro Geral de mercês. Manuel Jorge Coelho. Patente de Capitão-mor. João V, livro 10,
folha 395v.
113
No mesmo ano, foi novamente chamado pelo Conde de Assumar a uma junta
que este realizara para acabar com as desordens ocorridas em decorrência das novas
arrecadações do quinto que naquele ano estavam sendo postas em prática, motim que
ficou conhecido como revolta de Vila Rica. Nesta ocasião:
Além desses serviços, como capitão-mor, posto que exerceu até o ano 1728,
auxiliou a Coroa portuguesa em outras situações de grande necessidade em que sempre
se mostrara um “fiel vassalo”:
“No ano de 1722 sendo preciso fazer hua ponte em hum rio por ser
estrada geral para todo o povo a mandar fazer obrigando se o
pagamento dos oficiais que a fizerão e intentando fazer o governador
uns quartéis na Vila do Carmo em que os soldados se recolhessem e
servisse de forte ficarão dar partida a dita obra 40 oitavas de ouro, no
mesmo ano havendo no dito distrito das catas altas umas
parcalidades(sic) prender aos mais culpados com toda a vigilância e na
ocasião em que se estabelecerão nas minas as casas de fundição e
moeda se haver com muito zelo para o aumento da real fazenda. E no
ano de 1724 prender por ordem que teve do governador todos os vadios
que existião no districto para o socorro de Montevideo e cobrar os
quintos que havião de vir na frota daquelle anno, ultimamente, no ano
de 1727 sendo chamado a hua junta que se fez em Villa Rica para a
contribuição do donativo para os desporcrios do príncipe do Brasil com
que concorreu com 125 arrobas de ouro no tempo de 6 annos”375”.
Por todos esses serviços, requisitou e alcançou várias mercês que lhe
propiciaram ascender e tornar-se homem de prestígio social destacado com considerável
373
AHU/MG/cx.: 16; doc.: 3. Grifo meu.
374
Idem, grifo meu.
375
ANTT. Registro Geral de mercês. Manuel Jorge Coelho. Tença com habito e carta de padrão. João
V, livro 21, folha 172.
114
poder de mando, tais como a patente de capitão-mor, o cargo de provedor dos quintos
reais e o hábito da Ordem de Cristo376.
Os exemplos sugerem que o mandonismo local não entrava, necessariamente,
em contradição com o poder emanado de Lisboa. Afinal tais poderosos se viam como
vassalos de El Rey e tinham de ganhar na repressão de outros régulos, pois disto podiam
ampliar seu poder na localidade em que habitavam, destruir adversários, além de
ganharem mercês que aumentariam seu status377.
Mais do que isso, relatos como os mencionados denotam indiretamente que a
violência e o castigo não eram os únicos meios de se conseguir “subordinação” de um
escravo. Consideramos que a imposição da autoridade do senhor não era dada
exclusivamente pela força, mas também através de negociações e concessões que
ajudavam no reconhecimento de sua legitimidade. O suposto aqui defendido é que seria
muito contraditório armar um escravo e confiar que ele não se voltaria contra o senhor
se ele fosse tratado apenas com violência e coerção. As relações entre senhor e escravo,
ainda que tenham por fundamento a violência e a opressão de um ser humano sobre
outro, têm necessariamente de estar pautada em uma ligação de confiança em casos
como os que venho analisando neste trabalho; confiança esta adquirida por meio de
reciprocidades e negociações.
Desta maneira, os exemplos mostram que muito das relações entre senhores e
escravos eram feitas de uma ética baseada em laços pessoais. Do ponto de vista do
escravo, o senhor era aquele que lhe informava sê-lo. Em outros termos, era de suma
importância no relacionamento senhor-escravo a figura do senhor enquanto indivíduo
posicionado para a interação, e não apenas a sua condição senhorial378. Ou seja, o
fundamental nessa relação era a postura pessoal do senhor com seus cativos, ou mesmo
dos seus intermediários com os mesmos. O respeito e a legitimidade perante seus
escravos era então construída, e também exigida, sobretudo na interação entre ambos.
Não era algo dado, mas conquistado. Se assim não o fosse seria muito difícil explicar a
possibilidade dos escravos de Bento Ferraz Lima, Torquato Teixeira de Carvalho,
Rafael da Silva e Souza, Antonio Correia Sardinha e Manuel Jorge Coelho portarem
376
ANTT. Registro Geral de mercês. Manuel Jorge Coelho. Tença com habito e carta de padrão. João V,
livro 21, folha 172.
377
FRAGOSO, João. “Potentados coloniais e circuitos imperiais: notas sobre uma nobreza da terra,
supracapitanias, no Setecentos...” Op. cit., p. 147.
378
LIMA, Carlos C. Pequenos Patriarcas. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997, p. 316-317.
Apud: FERREIRA, Roberto Guedes. “Autonomia escrava e (des)governo senhorial na cidade do Rio de
Janeiro da primeira metade do século XIX”. In: FLORENTINO, Manolo (Org.). Tráfico, cativeiro e
liberdade. Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 249.
115
armas. A postura desses potentados indica que os mesmos não temiam que alguns de
seus cativos armados se revoltassem contra eles. Não podemos nos esquecer que estes
confrontos poderiam se tornar momentos propícios para subversão dos negros,
principalmente se levarmos em conta que estes estavam armados. Assim, o fato de
senhores armarem seus escravos deve ser visto como resultado de uma relação de
interdependência bem sucedida entre ambos, sendo esse um bom índice para medir o
“sucesso” das negociações entre eles379. Portanto, o fato dos escravos lutarem ao lado de
seus senhores indica a presença de reciprocidades entre tais grupos, inclusive com
ganhos recíprocos, o que garantia a reprodução de uma determinada estratificação
social380.
Como já sugerido, para os poderosos da localidade o acesso ao mando e,
portanto, ao ápice da hierarquia social na colônia não era automático. Isto criava um
cenário tenso para ela, gerando facções adversárias, fenômeno que tornava mais urgente
à busca da legitimidade dada pelos cativos381. Desta forma tencionamos então enfatizar
não a exclusão dos cativos mediante o direcionamento da violência para eles, mas
observar sua inclusão no tecido social mediante o agenciamento de seu envolvimento no
exercício da força382. Essa discussão será retomada na parte 2 desse trabalho. Por ora
coube apenas evidenciar a existência dessa prática dos potentados de armarem seus
escravos para atuarem com eles em diligências para conquista, defesa e organização do
território mineiro, principalmente em seus anos iniciais. E destacar a importância desse
recurso para a afirmação destes homens como poderosos locais, para legitimação de sua
autoridade e para evidenciar um outro lado do sistema escravista nessa sociedade não
somente pautado na violência e coerção, mas em negociações, reciprocidades e relações
consensuais entre senhores e seus escravos.
domínios ultramarinos era fator primordial no seio das questões administrativas, sendo
isto feito tanto pela militarização dos colonos naturais e reinóis, quanto pelo reforço da
obediência dos súditos à autoridade de seus governantes, representantes da soberania
real no além-mar383.
Como na América Portuguesa a hierarquia social se forjava na presença do
escravismo, o corte social proposto pelas patentes militares era uma oportunidade de
afirmação social e de distinção entre os homens livres, sendo por isso sua aquisição algo
muito requisitado pelas elites locais384. Afinal ser coronel, mestre de campo, capitão-
mor, sargento-mor, capitão era uma forma de identificação no mundo colonial que
muitos indivíduos passaram a assumir e essa identificação definia seu lugar social na
hierarquia do Antigo Regime que, além de lhes impor uma série de obrigações, lhes
garantiam também respeito e direitos que faziam questão de usufruir385.
A estrutura militar lusitana, que se transferiu para o Brasil, era organizada a
partir de três tipos específicos de forças: os Corpos Regulares (conhecidos também por
Tropa Paga ou de Linha, que nas Minas Gerais eram denominados de Dragões), as
Milícias ou Corpo de Auxiliares e as Ordenanças ou Corpos Irregulares. Os Corpos
Regulares, criados em 1640 em Portugal, constituíam-se no exército “profissional”
português, sendo a única força paga pela Fazenda Real. Essa força organizava-se em
terços e companhias, cujo comando pertencia a fidalgos de nomeação real. Cada terço
era dirigido por um mestre de campo e seus membros estavam sujeitos a regulamentos
disciplinares. Teoricamente, dedicar-se-iam exclusivamente às atividades militares.
Seriam mantidos sempre em armas, exercitados e disciplinados386.
As Milícias ou Corpos de Auxiliares, criados em Portugal em 1641, eram de
serviço não remunerado e obrigatório para os civis constituindo-se em forças
deslocáveis que prestavam serviço de apoio às Tropas Pagas. Organizavam-se em terços
e companhias, sendo seu enquadramento feito em bases territoriais, junto à população
civil. Os Corpos de Auxiliares eram armados, exercitados e disciplinados, não somente
para operar com a Tropa Regular, mas também para substituí-la quando aquela fosse
383
BICALHO, Maria F. A cidade e o Império... Op. cit., p. 332.
384
PUNTONI, Pedro. “A arte da guerra no Brasil: tecnologia estratégias militares na expansão da
fronteira da América portuguesa (1550-1700)”. In: CASTRO, Celso; IZECKSOHN, Vitor & KRAAY,
Hendrik (Orgs.). Nova História Militar Brasileira. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004, p. 45.
385
COSTA, Ana Paula Pereira. Atuação de poderes locais no Império Lusitano: uma análise do perfil das
chefias militares dos Corpos de Ordenanças e de suas estratégias na construção de sua autoridade... Op.
cit., p. 118.
386
SILVA, Kalina Vanderlei. O miserável soldo & a boa ordem da sociedade colonial: militarização e
marginalidade na Capitania de Pernambuco dos séculos XVII e XVIII. Recife: Fundação de Cultura
Cidade de Recife, 2001, ver capítulo 2.
117
chamada para fora de seu território. Esta força era composta por homens aptos para o
serviço militar, já que eram “treinados” para tanto e que sempre eram mobilizados em
caso de necessidade bélica. Entretanto, não ficavam ligados permanentemente à função
militar como ocorre nas Tropas Regulares. Sua hierarquia se organizava da seguinte
forma: mestres de campo, coronéis, sargento-mores, tenentes-coronéis, capitães,
tenentes, alferes, sargentos, furriéis, cabos de esquadra, porta-estandartes e tambor.
Deve-se observar que o título de Mestre de Campo era atribuído ao comandante de
Terço de Infantaria, enquanto o título de Coronel era atribuído ao comandante do Terço
de Cavalaria387.
A completar o tripé da organização militar estariam os Corpos de Ordenanças.
Criados pela lei de 1549 de D. João III e organizados conforme o Regimento das
Ordenanças de 1570388 e da provisão de 1574389, os Corpos de Ordenanças, possuíam um
sistema de recrutamento que deveria abranger toda a população masculina entre 18 e 60
anos que ainda não tivesse sido recrutada pelas duas primeiras forças, excetuando-se os
privilegiados390. Conhecidos também por “paisanos armados” possuíam um forte
caráter local e procuravam efetuar um arrolamento de toda a população para as
situações de necessidade militar. Os componentes das Ordenanças também não
recebiam soldo, permaneciam em seus serviços particulares e, somente em caso de
grave perturbação da ordem pública, abandonavam suas atividades. O termo “paisanos
armados” carrega em si a essência do que seria a qualidade militar dos integrantes das
Ordenanças, isto é, um grupo de homens que não possuía instrução militar sistemática,
mas que, de forma paradoxal, eram utilizados em missões de caráter militar e em
atividades de controle interno391. Também se organizavam em terços que se subdividiam
em companhias392. Os postos de Ordenanças de mais alta patente eram: capitão-mor,
387
FILHO, Jorge da Cunha Pereira. “Tropas militares luso-brasileiras nos séculos XVIII e XIX”. Boletim
do Projeto "Pesquisa Genealógica Sobre as Origens da Família Cunha Pereira". Ano 03, nº. 12, 1998, p.
19-21.
388
A respeito disso ver: Regimento das Ordenanças de 1570. In: COSTA, Veríssimo Antonio Ferreira da.
Collecção Systematica das Leis Militares de Portugal, Tomo IV – “Leis pertencentes às Ordenanças”,
Lisboa, Impressão Regia, 1816. Localização: BN/F,4,3-5/Divisão de Obras Raras.
389
Esta provisão editada quatro anos depois de promulgado o Regimento das Ordenanças complementava
o mesmo com algumas alterações e esclarecimentos fundamentados nas necessidades decorrentes da
atuação prática das Ordenanças. Para maiores detalhes ver: Provisão das Ordenanças de 1574. In:
COSTA, Veríssimo Antonio Ferreira da. Collecção Systematica... Op. cit.
390
MONTEIRO Nuno G. “Os concelhos e as comunidades”. In: HESPANHA, António M. (Org.).
História de Portugal... Op. cit., p. 273.
391
COTTA, Francis Albert. “Os Terços de Homens Pardos e Pretos Libertos: mobilidade social via postos
militares nas Minas do século XVIII”. MNEME – Revista de Humanidades. UFRN – CERES.
http://www.seol.com.br/mneme/, p. 3.
392
Idem, p. 4.
118
“Essa força não é para em campo aberto pelejar com o inimigo, que não
há nem haverá naqueles sertões, mas para guarda dos governadores e
para comboiar a Fazenda de Sua Magestade e para acudir alguns
insultos ou levantamentos que façam algumas pessoas poderosas,
fazendo-se fortes com seus escravos; e nalguns lugares intricados, para
o que tudo são mais convenientes; e o manejo de infantaria parece será
conveniente que nessa oposição sejam admitidos os oficiais reformados
de infantaria”395.
TABELA 4
A tabela 4 revela que muitos desses potentados obtiveram ao menos uma patente
militar ao longo de suas trajetórias. Dentre estas patentes sobressaíram as referentes aos
Corpos de Ordenanças, onde dentre os 114 indivíduos para os quais encontramos
informações acerca dessa variável, 67 possuíram uma patente de Ordenanças. Esta força
era composta, como visto, por indivíduos que não recebiam soldo, e que em caso de
grave perturbação da ordem pública prestavam serviços militares. Pode-se dizer que os
privilégios da ocupação de um posto nas Ordenanças não representavam diretamente
ganhos monetários – o que representava para a Coroa uma economia em gastos diretos
com a administração – mas sim produção ou reprodução de prestígio e posição de
comando, bens não negligenciáveis no Antigo Regime, bem como isenções de impostos
e outros privilégios398.
Os privilégios adquiridos com uma patente de Ordenanças eram vários e sempre
sublinhados nas cartas patentes que assim sobre eles discorriam “[...]na ocupação do
posto não vencerá soldo algum mas gozará de todas as honras, privilégios, liberdades
e isenções e franquezas que em razão dele lhe pertencem[...]”. Através do Regimento
de 1570 podemos ter acesso a alguns destes privilégios dados aos homens de patente:
Mais do que isso, uma patente das Companhias de Ordenanças atribuía a seu
possuidor um poder de atuação muito cobiçado. Pelo próprio Regimento das
Ordenanças de 1570 ficava estipulado que os “capitães-mores e os capitães das
Companhias locais ficavam com um poder imenso de escolha dos aptos e não aptos
para o serviço militar”400, o que proporcionava aos oficiais uma rede de influências
muito importante sobre os habitantes das localidades onde se instituíam, pelo
conhecimento detalhado da população e pela autoridade de impor-lhes o treino
militar401. Assim, a obtenção de uma patente resultava em considerável aumento de
prerrogativas de mando, ressaltando assim a “qualidade” social de seus beneficiados 402.
Entre os recursos que podiam ser usados para obtenção dessas patentes destacam-se a
experiência com assuntos militares na ocupação de outros postos, o exercício de cargos
públicos e ser abonado de bens.
A título de exemplificação destaco o caso de Manuel de Souza Pereira. Natural
de Lisboa era filho de um escrivão proprietário das apelações cíveis chamado Manuel
da Costa Pereira. Seguindo um padrão típico de deslocamento dos portugueses para as
Minas que analisamos anteriormente, Manuel de Souza Pereira viera para as Minas
provido no cargo de inquiridor, contador e distribuidor em Vila do Príncipe, por sua
boa capacidade, por ser estudante de gramática e por já ter atuado como escrivão do
judicial em Lisboa403. Ainda no reino tivera suas primeiras atuações militares exercendo
a praça de soldado e alferes pago na guerra da grande aliança404. Já nas Minas alcançou
399
“Regimento das Ordenanças de 1570” In: VERISSIMO, Antonio Ferreira da Costa. Collecção
Systematica das Leis Militares de Portugal... Op. cit., p. 62.
400
MAGALHÃES, Joaquim Romero. “A guerra: os homens e as armas”. In: O Algarve Econômico: 1600-
1773. Lisboa: Editorial Estampa, 1993, p. 110.
401
MELLO, Christiane F. Pagano de. Os Corpos de Auxiliares e de Ordenanças na segunda metade do
século XVIII – As capitanias do Rio de janeiro, São Paulo e Minas Gerais e a manutenção do Império
Português no Centro-Sul da América. Niterói: UFF, 2002. Tese de Doutorado, p. 32.
402
COSTA, Ana Paula Pereira. Atuação de poderes locais no Império Lusitano: uma análise do perfil das
chefias militares dos Corpos de Ordenanças e de suas estratégias na construção de sua autoridade... Op.
cit. ver capítulo 3.
403
AHU/MG/cx.: 24; doc.: 85.
404
A guerra da grande aliança se refere ao conflito de Sucessão da Espanha ocorrido no início do século
XVIII, dentro do quadro de tensões que se seguiram à Restauração, que, em termos gerais, tinha como
protagonistas França e Grã-Bretanha. Neste conflito, Portugal coligou-se com a Inglaterra contra a
121
França, em troca da proteção daquela nos conflitos continentais e por vantagens comerciais em suas
possessões ao redor do mundo. Ao se colocar contra os interesses franceses, Portugal teve seus domínios
ultramarinos sistematicamente assediados pela guerra de corso promovida pela França. Corsários
queimaram a cidade de Benguela em 1705, saquearem a Ilha do Príncipe em 1706, São Tomé em 1709 e
Santiago de Cabo Verde em 1712. Mas nenhum desses empreendimentos foi tão lucrativo quanto à
invasão e o saque da cidade do Rio de Janeiro pela esquadra de Duguay-Tourin em 1711, depois do
fracasso da invasão de Duclerc no ano anterior. Sobre este assunto ver: BICALHO, Maria Fernanda. A
cidade e o Império... Op. cit.
405
AHU/MG/cx.: 85; doc.: 75.
406
Idem. Grifo meu
407
Ibidem. Ver também AHU/MG/cx.:44; doc.: 81.
408
AHU/MG/cx.: 85; doc.: 75, e “Relação dos privilegiados existentes na capitania de Minas”.
AHU/MG/cx.: 111; doc.: 38.
409
ANTT. Familiatura do Santo Ofício de Nicolau da Silva Bragança. Completa, maço 3, doc. 41.
Novembro de 1727.
122
Além disso, Nicolau da Silva Bragança serviu por muito tempo como provedor
dos quintos da freguesia do Furquim e “achandosse na cobrança delles fazendo todo
este serviço a sua custa procedendo em tudo com grande honra e acerto obrando da
mesma sorte no posto de sargento-mor do Brumado e Rio abaixo413”.
Por todos os serviços que prestou além de adquirir a patente solicitada, ganhou
outras graças tais como o hábito da Ordem de Cristo414 e o cargo de familiar do Santo
Ofício. Na sua habilitação ficava registrado a sua boa fama, riqueza e autoridade
alcançada nas Minas que revelam o sucesso de sua empreitada ao sair de do reino em
busca de melhores oportunidades de ascensão social:
415
ANTT. Familiatura do Santo Ofício de Nicolau da Silva Bragança. Completa, maço 3, doc. 41.
Novembro de 1727.
416
MELLO, Christiane F. Pagano de. Os Corpos de Auxiliares e de Ordenanças na segunda metade do
século XVIII... Op. cit., p. 5.
417
AUFDERHEIDE, Patricia Ann. Order and violence: social deviance and social control in Brazil, 1780-
1840. Thesis of the University of Minnesota, 1976. Vol. 1, p. 126. Ver ainda: KARASCH, Mary. “The
Periphery of the periphery? Vila Boa de Goiás, 1780-1835…” Op. cit., p. 155.
418
FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil... Op. cit.,
p. 199.
419
Idem, p. 211.
124
Ao que parece a briga começou porque o dito padre não quis confessar uma
mulher “que o suplicado Maximiano lhe foi pedir confeçase o que o suplicante
repugnou por saber que andava o sobredito amancebado com ela”426. Percebe-se que
420
Idem, p. 211-212.
421
Ibidem.
422
AHU/MG/cx.: 46; doc.: 8.
423
Acórdãos da Câmara Municipal de Mariana. APM. Seção Colonial – Cód. 02, 05 e 06.
424
FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil... Op. cit.,
p. 212.
425
AHU/MG/cx.: 8; doc.: 7.
426
Idem.
125
427
SILVA, Célia Nonata da. A teia da vida: violência interpessoal nas Minas setecentistas. Belo
Horizonte: UFMG, 1998. Dissertação de Mestrado, capítulo 1.
428
Idem.
429
AHU/MG/cx.: 8; doc.: 7.
430
Idem.
431
Ibidem, p. 67.
126
432
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Ser nobre na colônia... Op. cit., p. 321.
127
TABELA 5
Títulos possuídos e solicitados pelos poderosos locais da comarca de Vila Rica (para
os quais temos informações)
Ordem de
Nome Fidalgo Familiar
Cristo
António Alves Ferreira - - X
António Correa Sardinha - X
António Martins Leça - X X
António Mendes da Costa - X -
António Pereira Machado - - X
António Ramos dos Reis - - X
Bento do Amaral Coutinho X - -
Bento Fernandes Furtado - X -
Bento Ferraz Lima - X X
Caetano Alves Rodrigues X X X
Cristovão Pinto Maciel - X -
Custódio Rebelo Vieira - - X
Domingos Francisco de Oliveira - X -
Felix de Gusmão Mendonça e Bueno X X -
Francisco Gomes da Cruz - X -
Francisco Pais de Oliveira - X X
Francisco Rodrigues Vilarinho - X -
Gabriel Fernandes Aleixo - - X
Henrique Lopes de Araújo - - X
João Amaro Maciel Parente - - X
João Gomes de Melo X -
João Lobo Leite Pereira X - X
José da Silva Pontes - - X
José de Seixa Borges - - X
José Furtado de Mendonça - - X
José Gomes de Melo X X -
José Martins Figueira Carneiro - - X
José Rebelo Perdigão - - X
José Rodrigues de Oliveira - - X
Leonel da Gama Bellens X - -
Manuel da Costa Amorim - - X
Manuel da Costa Pinheiro - - X
Manuel da Silva Borges - X -
Manuel de Almeida Costa - X X
Manuel de Barros Guedes Madureira - - X
Manuel de Fonseca de Azevedo X - X
Manuel de Lima Pereira - - X
Manuel de Sousa Pereira - X X
Manuel Ferreira de Sá X X -
Manuel Mendes de Almeida - X -
Mathias Barbosa da Silva - - X
Maximiano de Oliveira Leite X - X
128
Pela tabela acima percebemos que entre os poderosos locais que conseguimos
encontrar informações sobre essa variável havia 20 familiares do Santo Ofício, 9
fidalgos da Casa Real e 31 cavaleiros da Ordem de Cristo. A historiografia ressalta que
era relativamente comum que o Rei ou o governador empregassem instrumentos para
cooptar os colonos a fim de inclinar as atitudes dos dirigentes locais em favor da Coroa.
Neste sentido graus de cavaleiro, títulos, benefícios, podiam mediar os mecanismos de
negociação e garantir apoio. Tais favores jogavam com a vaidade destes dirigentes, já
que o reconhecimento do Rei com títulos nobilitantes poderia realçar seu prestígio e
reconhecimento social433.
O caso do já mencionado Maximiano de Oliveira Leite corrobora este
argumento. Como antes indicado, ele fora um dos maiores potentados da capitania,
homem de grande poder de mando, riqueza, mas também de comportamento às vezes
violento. Provavelmente por ter uma inserção política e econômica sólida e diferenciada
na região pôde buscar uma ascensão social de projeção mais ampliada. Neste sentido em
suas petições para recompensa de serviços prestados, solicitou não só cargos e honrarias
reconhecidas localmente, mas também no Império. Dentre estas honrarias conseguiu ser
nomeado escudeiro e cavaleiro fidalgo da Casa Real434 título que lhe dava um
reconhecimento tanto localmente, quanto em outras regiões do Império Português.
O mesmo pode ser observado com o já também mencionado Felix de Gusmão
Mendonça e Bueno. No início do século XVIII este fluminense se dirigiu para a região
das Minas a fim de sertanejar e descobriu ouro na região de Ouro Preto, tornando-se dos
433
RUSSEL-WOOD. A. J. R. “Identidade, etnia e autoridade nas Minas Gerais do século XVIII: leituras
do Códice Costa Matoso”. Varia Historia... Op. cit., p. 114.
434
Ver: FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil...
Op. cit., p. 212. Ser morador da Casa Real implicava receber uma “moradia” mensal e uma ração diária
de cevada, além de se poder subir de graduação, dando a sue possuidor uma natureza de fidalguia. In:
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Ser nobre na colônia...Op. cit., p. 161
129
seus primeiros povoadores, tanto que em 1710 ganhou uma sesmaria nas margens dos
rios Tripui e Passa-Dez435. Conquistada a riqueza empenhou-se em galgar também
prestígio e distinção social. Neste movimento pede para ser familiar do Santo Ofício
“por se considerar com requisitos para o serviço”, mas em suas provanças é
considerado não apto para exercer tal função, pois:
“Por neto de Anna Vieira Ferrete tem raça de mulato e seu avô paterno
o capitam Felix de Madeira como também seu avô materno Niculau
Barreto foram em algum tempo mordidos de ter algua coisa de cristão
novo, no que pois toca a pessoa do pretendente. Além disso he muito
moço e pouco modesto,cujo pay he pouco abastado de bens e tem muitos
filhos”436.
Negado então esse título para Félix de Gusmão, tratou logo de buscar outras
formas de distinção também muito visadas naquela sociedade. Em 1711 conseguiu
ocupar o cargo de vereador na recém-criada Câmara de Mariana 437, e assim ser
considerado como “homem principal da localidade” e, em 1712, ser agraciado com o
título de escudeiro e cavaleiro fidalgo da Casa Real, título que seu pai também
ostentava. No livro do registro de mercês ficava assim estipulado:
Ser familiar do Santo Ofício era também sinal de grande prestígio e um título
muito requisitado, pois proporcionava influência local (devido ao poder de repressão
religiosa e controle social que atribuía) e estatuto social. Além disso, atestava a pureza
de sangue daqueles que o possuíam, elemento crucial para aqueles que pretendiam
arrogar um certo “grau de nobreza”.
435
Catálogo de sesmarias. Revista do Arquivo Público Mineiro, Vol 1... Op. cit., p. 113.
436
ANTT. Familiatura do Santo Ofício de Felix de Gusmão e Mendonça e Bueno. Incompleta, maço 36,
doc. 1529. Março de 1702.
437
Acórdãos da Câmara Municipal de Mariana. APM. Seção Colonial – Cód. 02, 05 e 06.
438
ANTT. Registro Geral de mercês. Felix de Gusmão Mendonça e Bueno. Título de cavaleiro fidalgo.
João V, livro 5, folha 421, microfilme 1778.
130
A seleção dos familiares era feita entre pessoas que tivessem fazenda e
vivessem abastadamente, pois lhes eram exigidas, no decorrer de suas diligências,
viagens e deslocações. Eram eles quem informavam o comissário local sobre os casos
que pertencessem à jurisdição inquisitorial bem como se encarregavam de todas as
diligências determinadas pelo representante eclesiástico do Santo Ofício439. Os critérios
do Santo Ofício para aceitação dos candidatos a familiares eram, além da limpeza de
sangue, saber ler e escrever, ser capaz de se encarregar de averiguações secretas, possuir
bens de fortuna. Assim, a familiatura era um passo importante na caminhada de
ascensão social440. Aldair Carlos Rodrigues destaca que três elementos devem ser
considerados para compreendermos como o cargo de familiar do Santo Oficio podia
distinguir seu titular tornando tal título tão cobiçado: a prova pública de limpeza de
sangue, os privilégios inerentes ao título e o fato dos familiares serem representantes e
servidores de uma instituição metropolitana, a Inquisição441.
Uma das principais fraturas da ordem social portuguesa era a distinção entre
cristãos-velhos e cristãos-novos. E, com efeito, o atestado de limpeza de sangue que a
carta de familiar representava distinguia os indivíduos que a obtivessem. A familiatura
colocava os agentes do Santo Ofício do lado positivo da fronteira social. E no contexto
da sociedade escravista colonial, onde novas fraturas sociais ganham força,
nomeadamente, senhor/escravo, branco/preto ou mulato, os familiares do Santo Ofício
novamente ficam do lado dominante/positivo e consagrado pela ordem social, o que dá
ao título ainda mais relevância. Embora não tivesse o mesmo peso que o atestado de
limpeza de sangue, os privilégios dos familiares contribuíram também para aumentar o
valor simbólico da familiatura. Na sociedade com princípios estratificadores do Antigo
Regime, os privilégios assumem um peso simbólico fundamental. Citando José Veiga
Torres, Aldair Carlos Rodrigues destaca: “alguns dos privilégios a que [a familiatura]
dava acesso, pela carga simbólica de distinção nobre que possuíam, aproximavam os
familiares das gentes nobres das localidades, sem que fossem nobres, nem por origem,
nem por estatuto profissional”442. Dentre estes privilégios destacam-se as isenções de
obrigações e impostos, permissão para usar armas defensivas e ofensivas, direito a foro
privilegiado443.
439
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Ser nobre na colônia... Op. cit., p. 159-160.
440
Idem p. 161.
441
RODRIGUES, Aldair Carlos. Sociedade e Inquisição em minas colonial: os familiares do Santo Ofício
(1711-1808). São Paulo: FFLCH-USP, 2007. Dissertação de Mestrado, p. 192.
442
Idem, p. 194.
443
Idem, p. 195.
131
Por fim, o fato dos familiares serem uma espécie de elo entre a Inquisição,
instituição metropolitana, e a sociedade e, neste sentido, ser um representante do Santo
Ofício – um poder soberanamente incontestável na sociedade portuguesa – ser seu
agente em potencial nos confins das Minas acrescentava ainda mais valor simbólico à
medalha de familiar444. E não era qualquer um que podia ser familiar. Esse título era
reservado aqueles que pudessem arcar com os custos da burocracia do processo de
habilitação e que atendessem aos requisitos exigidos pela Inquisição.
Manuel de Sousa Pereira é exemplar neste sentido. Este reinol era considerado
um dos homens principais de Vila Rica, onde habitava, e soube muito bem acionar
diferentes papéis sociais por ele desempenhados para evidenciar e aumentar
prerrogativas de mando e ressaltar sua “qualidade” social. Cabe lembrar que os rumos
que um determinado indivíduo tomava poderia classificá-lo ou desclassificá-lo, assim
como a toda sua parentela, aos olhos dos seus iguais e dos seus desiguais, contribuindo,
dessa forma, para a reprodução dos sistemas de dominação445. No campo militar teve
uma carreira muito bem sucedida atuando como desde um simples soldado e alferes até
chegar a postos mais proeminentes como sargento-mor e coronel, promoções que
vieram em decorrência de sua boa atuação como militar, bem como de muitos serviços
prestados446. No campo político também conseguiu traçar um caminho de ascensão
social bem sucedido já que exerceu os cargos de inquiridor, contador e distribuidor na
Vila do Príncipe, escrivão da ouvidoria, escrivão dos órfãos447, juiz ordinário na Câmara
de Vila Rica e vereador na mesma 448. Era também homem muito abastado, que vivia “à
lei da nobreza” a ponto de ser mencionado na listagem feita pelo provedor da fazenda
Domingos Pinheiro em 1756 com o nome dos mais ricos moradores da capitania que
pudessem contribuir para a reconstrução de Lisboa destruída pelo terremoto de 1755449.
Para coroar esta trajetória em busca de posição proeminente só faltava mesmo
conseguir mercês que lhe possibilitasse um reconhecimento mais amplo, a nível
imperial, de sua “qualidade”. Neste sentido podemos entender mais
444
Ibidem, p. 196.
445
MELLO, Evaldo Cabral de Mello. O nome e o sangue: uma parábola familiar no Pernambuco colonial.
Rio de Janeiro: Topbooks, p. 13
446
AHU/MG/cx.: 85; doc.: 75.
447
AHU/MG/cx.: 24; doc.: 85. Ver também: cx.: 31, doc.: 27; cx.: 40, doc.: 8.
448
Ver: Memorial Histórico-Político da Câmara Municipal de Ouro Preto. Cor & Cor Editorial: Ouro
Preto, Dezembro de 2004
449
A localização da referida lista é a seguinte: AHU/MG/ cx. 70 doc. 40. Apud, ALMEIDA, Carla M. C.
de. Homens ricos, homens bons... Op. cit., p. 230.
132
Por volta de 1717 foi para a Bahia onde passou a viver de seos negócios e
bastante cabedal que adquiriu nas Minas457, conseguindo também nesta cidade ocupar o
posto de capitão-mor da freguesia de N. S. do Desterro, por patente passada pelo Conde
do Vimieiro em 1720458. Nessa época, já portanto bastante enriquecido e com prestígio
social destacado, decide ampliar ainda mais seu status buscando distinções mais
proeminentes que lhe desse um destaque também a nível imperial. Neste sentido, em
1722 solicitou a mercê do hábito da Ordem de Cristo, bem como pediu para ser familiar
do Santo Ofício459. No caso do hábito de Cristo teve inicialmente seu pedido recusado
porque constou-se que “seo pay fora sapateiro e as duas avos mulheres humildes que
vivião de seo trabalho e por estes impedimentos se julgou inábil para entrar na
ordem”. Mas recorreu ao Monarca alegando, como de praxe, serviços próprios feitos na
ocasião em que ocupou o posto de capitão de Ordenanças em Minas, e na sua ocupação
de “vereador da camara, e eleitor fazendo subir as rendas da camara como com efeito
455
Memorial Histórico-Político da Câmara Municipal de Ouro Preto. Cor & Cor Editorial: Ouro Preto,
Dezembro de 2004.
456
ANTT. Registro Geral de mercês. Manuel de Almeida Costa. Patente. João V, livro 11, folha 256,
microfilme 0389.
457
ANTT. Familiatura do Santo Ofício de Manuel de Almeida Costa. Completa, maço 88, doc. 1655.
Agosto de 1723.
458
ANTT. Registro Geral de mercês. Manuel de Almeida Costa. Patente. João V, livro 11, folha 256,
microfilme 0389.
459
Ver respectivamente: ANTT. Habilitação da Ordem de Cristo de Manuel de Almeida Costa. Letra M,
maço 39, doc. 17. Data 06 de maio de 1722. ANTT. Familiatura do Santo Ofício de Manuel de Almeida
Costa. Completa, maço 88, doc. 1655. Data agosto de 1723.
134
subirão sendo chamado muitas vezes para voltar e nos negócios graves e
levantamentos que houverão pello zello e bom modo com que me tudo se portava”460.
Além de seus serviços ofereceu de donativo cinco marinheiros para a Índia, pelos quais
pagou 250 mil réis, no que foi dispensado de todos os impedimentos e teve concedido
seu título461. Segundo Fernanda Olival no reinado de Pedro II, sobretudo no de seu filho,
os marinheiros foram muito solicitados para concessão de dispensas de defeitos.
Geralmente impunham-se dois a cada dispensado com este tipo de multa. Em regra,
destinavam-se aos navios do Oriente, embora fossem também pedidos para a Armada –
o que implicava menor dispêndio. Em 1735 havia no Estado da Índia falta de
marinheiros para guarnecer as embarcações; assim pedia-se ao reino o envio de um
mínimo de cem homens com estas habilidades para manterem armadas aquelas áreas462.
Em relação a familiatura teve também seu pedido deferido, o que se constituía
em uma prova de limpeza de sangue e tanto como argumentamos anteriormente, mas
pelo atraso na concessão da carta de familiar se sentia muito prejudicado na utilização
desse poderoso instrumento de distinção e recorria indignado:
460
ANTT. Habilitação da Ordem de Cristo de Manuel de Almeida Costa. Letra M, maço 39, doc. 17. Data
06 de maio de 1722.
461
Idem.
462
OLIVAL, Fernanda. As Ordens Militares e o Estado Moderno... Op. cit., p. 192.
463
ANTT. Familiatura do Santo Ofício de Manuel de Almeida Costa. Completa, maço 88, doc. 1655.
Agosto de 1723.
135
tais graças era necessário passar por toda uma engrenagem com regras próprias. Se
compararmos a concessão deste título com outros aqui também mencionados, como o
filhamento na Casa Real, as diferenças ficam mais nítidas. Se o ser fidalgo da Casa Real
dependia apenas da vontade do Rei, para receber os hábitos das Ordens Militares a
Mesa de Consciência e Ordens, instituição que administrava tais Ordens, colocava uma
série de exigências baseadas em estatutos e em uma série de provanças de isenção de
defeito “mecânico” e limpeza de sangue, que até a segunda metade do século XVIII
permaneceram muito rígidas464.
Segundo Nuno Monteiro, tais símbolos e distinções tiveram em Portugal e no
seu Império uma difusão e relevância dificilmente igualáveis, ao mesmo tempo em que
os diversos estatutos por elas atribuídos (o grau de cavaleiro) bem como os proventos
que podiam originar adquiriram importância decisiva na configuração das categorias
nobiliárquicas. Mas ainda em finais do século XVII e início do XVIII era espantosa em
Portugal a enorme difusão e generalização dos graus e dos símbolos das ordens
(sobretudo a de Cristo) utilizadas em quase todas as cerimônias e acontecimentos
públicos465. Em relação ao ultramar essa procura foi mais contida. Segundo Russel-
Wood no Brasil, e para o caso de Minas Gerais, a Coroa foi bem cautelosa na
distribuição de hábitos das ordens militares aos pioneiros da exploração e
povoamento466.
De qualquer forma, como mostra Fernanda Olival, entre 1700 e 1789 foram
lançados no Brasil 8,8% dos hábitos de cavaleiro da Ordem de Cristo, quase o dobro do
que se verificou nos sessenta anos anteriores467. Todavia, apesar de sua relativa
vulgarização, não desapareceu de modo algum o prestígio que tinha os símbolos das
ordens militares. Pelo contrário tiveram sempre papel fulcral nos rituais da Monarquia.
Monarquia essa que integrou as ordens nas suas instituições e nas suas lógicas de
remuneração de serviço468. Na verdade, para o centro político era importante que um
hábito concedido se efetivasse: tinha amplos efeitos político-sociais e disciplinadores.
Tanto servia de exemplo, de estímulo, como de moeda de pagamento de serviços 469.
464
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Ser nobre na colônia... Op. cit., p. 98-106.
465
MONTEIRO, Nuno G. “O ‘ethos’ nobiliárquico no final do Antigo Regime: poder simbólico, império
e imaginário social...” Op. cit., p. 9.
466
RUSSEL-WOOD. A. J. R. “Identidade, etnia e autoridade nas Minas Gerais do século XVIII: leituras
do Códice Costa Matoso”. Varia Historia... Op. cit., p. 114.
467
OLIVAL, Fernanda. As Ordens Militares e o Estado Moderno... Op. cit., p. 458-459.
468
MONTEIRO, Nuno G. “O ‘ethos’ nobiliárquico no final do Antigo Regime: poder simbólico, império
e imaginário social...” Op. cit., p. 10.
469
OLIVAL, Fernanda. As Ordens Militares e o Estado Moderno... Op. cit., p. 215.
136
Assim, era usual que o Monarca pagasse serviços extraordinários ou urgentes com a
mercê do hábito, neste caso destacam-se em particular: as conjunturas de guerra, os
serviços dos índios e negros no Brasil, os procuradores de Cortes, a capitação de
soldados para o Oriente, as entregas dos quintos nas casas de fundição, etc. 470. O título
do hábito normalmente vinha acompanhado de uma tença, pois eram muito poucos os
cavaleiros que não recebiam qualquer estipêndio com o hábito, ou seja, que
professavam a título do patrimônio pessoal. Essa tença era de no mínimo 12.000 réis
para que assim se garantisse a dignidade do estatuto471.
Em Portugal as ordens militares surgiram no contexto da reconquista, havendo
três ordens: a de Cristo, a de Santiago e a de Avis. A ordem de Cristo foi criada pelo rei
D. Dinis e teve importante papel nos descobrimentos ultramarinos do século XV. Ser
membro de uma ordem militar era um sinal de prestígio que, a princípio, seria destinado
somente à nobreza, sendo o ingresso feito a partir de vários critérios a exemplo da
mencionada limpeza de sangue (ou seja, ausência de ascendentes judeus, mouros,
negros, mestiços) isenção de defeito mecânico (ou seja, ausência de trabalhadores
manuais entre os ascendentes). Porém nas conquistas outros critérios foram agregados
aos originais, sobretudo a prestação de serviços à Coroa472, que em muitos casos
poderiam mesmo ser utilizados para liberar impedimentos. Os serviços militares, por
exemplo, foram uma via decisiva para se receber mercê de um hábito de cavaleiro de
uma ordem militar473. Dois exemplos podem ser esclarecedores.
Em 1736 José Martins Figueira Carneiro faz um requerimento solicitando a
mercê do hábito de Cristo e 80mil réis de tença para o dote de sua sobrinha. À época do
pedido este reinol, natural da Figueira, estava com 55 anos e já era possuidor de um
hábito de Cristo. Este foi conseguido não sem impedimento, pois em suas provanças foi
inicialmente constatado que era inabilitado para ser cavaleiro da ordem já que, “apesar
de em sua pessoa concorrem as partes pessoaes e limpeza necessária, o mesmo foi no
seu principio alfayate seu pay avo materno e paterno lavradores jornaleiros e mãe e
avó materna e paterna mulheres de segunda condição e por estes impedimentos se
julgou não estar capaz de entrar na ordem”474.
Idem.
470
471
OLIVAL, Fernanda. As Ordens Militares e o Estado Moderno... Op. cit., p. 47.
472
VAINFAS, Ronaldo. Ordens Militares. In: Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro:
Objetiva, 2000, p. 437-438.
473
MONTEIRO, Nuno G. “O ‘ethos’ nobiliárquico no final do Antigo Regime: poder simbólico, império e
imaginário social...” Op. cit., p. 10.
474
ANTT. Habilitação da Ordem de Cristo de José Martins Figueira Carneiro. Letra J, maço 97, doc. 75.
Data 18 de outubro de 1718.
137
Mas apresentou uma série de serviços pessoais que lhe permitiram conseguir a
dispensa de seu impedimento e alcançar tão almejada mercê. Pela leitura de tais serviços
conseguimos visualizar sua trajetória e carreira militar destacada que lhe permitiram
conseguir não só um hábito para si, mas também, anos mais tarde, solicitar um outro
para o dote de sua sobrinha.
Este potentado se encontrava nas Minas desde 1719, quando para aí veio provido
em um posto militar, e na época do referido pedido já ocupava posição de destaque na
capitania. Em vários momentos ele foi um fiel servidor dos interesses da Coroa. Entre
os serviços que destaca para ganhar a dita mercê ressalta sua exemplar folha de serviços
militar. Com efeito, atuou em diferentes postos, passando de um escalão mais baixo
para um mais alto, atuando como “soldado, cabo de esquadra, furriel e alferes e
tenente tanto na cavalaria de Estremadura, província do Alentejo, como no principado
de Catalunha por 12 anos de 1703 a 1715”475. Ainda como militar no reino participou
de várias batalhas que, certamente, muito enriqueceram sua folha militar:
475
AHU/MG/cx.: 31; doc.: 85.
476
ANTT. Habilitação da Ordem de Cristo de José Martins Figueira Carneiro. Letra J, maço 97, doc. 75.
Data 18 de outubro de 1718.
138
Neste mesmo ano atuou também por ordem do Conde de Assumar no levante de
Vila Rica:
477
Idem.
478
Idem.
479
Ibidem. Grifo meu.
480
Ibidem.
139
cidade onde exerceu o ofício de sapateiro. Com a descoberta do ouro nas Minas para aí
se dirigiu no início do século XVIII para minerar onde, enquanto não enriquecia com o
ouro, exerceu também o ofício de sapateiro481. Ao que parece exerceu tal ocupação por
pouco tempo visto que já em 1714 aparecia em uma lista em que constava o nome dos
principais moradores da localidade de Vila Rica482. Nesse mesmo período ganhou uma
patente de capitão de Auxiliares, o que denota que estava conseguindo ser bem sucedido
em suas tentativas de mobilidade e, posteriormente, em 1721, a patente de sargento-mor
de Ordenanças483. Além das patentes, corrobora também o alcance de uma “qualidade”
social destacada o fato de ter ocupado vários cargos na Câmara de Vila Rica a partir
desse período. Em 1714 e 1718 exerceu o cargo de procurador da Câmara, em 1722 o
de juiz ordinário e, em data não especificada, o de juiz almotacé 484. Em 1726 abriu
processo para solicitar dois importantes títulos que dignificariam ainda mais sua
imagem: o de cavaleiro da Ordem de Cristo e o de familiar do Santo Ofício 485. Nas
provanças feitas em sua habilitação para entrar na Ordem de Cristo o ofício de sapateiro
que desempenhou na sua juventude, antes de se tornar um homem poderoso nas Minas,
constituiu-se em impedimento inicial para conseguir o hábito, segundo relato:
Para transpor esse obstáculo apresentou serviços pessoais que prestou à Coroa
nos quais demonstrava seu valor de “fiel vassalo” e que nos permitem visualizar a
trajetória de um homem de origem social humilde que, ao migrar para a América
481
ANTT. Habilitação da Ordem de Cristo de Antonio Martins Leça. Letra A, Maço 51, doc 15. Data, 11
de maio de 1726.
482
“Termo que se fes na junta, e rezoluçam que se tomou sobre o pagamento dos quinto de Sua Magestade
com os vereadores, procuradores, homens bons de Villa Rica, 6 de janeiro de 1714”. In: CARVALHO,
Feu de. Questões históricas e velhos enganos. Revista do Arquivo Público Mineiro. Ano XXIV, 1933, p.
26.
483
ANTT. Chancelaria Régia, João V, Antonio Martins Leça, patente. Livro 63, folha 54v. Data 20 de
agosto de 1722.
484
Memorial Histórico-Político da Câmara Municipal de Ouro Preto. Cor & Cor Editorial: Ouro Preto,
Dezembro de 2004.
485
Ver respectivamente: ANTT. Habilitação da Ordem de Cristo de Antonio Martins Leça. Letra A, Maço
51, doc 15. Data, 11 de maio de 1726. ANTT. Familiatura do Santo Oficio de Antonio Martins Leça.
Completa, maço 68, doc. 1362. Data maio de 1726.
486
ANTT. Familiatura do Santo Oficio de Antonio Martins Leça. Completa, maço 68, doc. 1362. Maio de
1726.
140
487
Em sua habilitação para o Santo Ofício dizia ter voltado para sua pátria com mais de 100 mil cruzados.
ANTT. Familiatura do Santo Oficio de Antonio Martins Leça. Completa, maço 68, doc. 1362. Maio de
1726.
488
OLIVAL, Fernanda. As Ordens Militares e o Estado Moderno... Op. cit., p. 187.
141
sempre que mais convinha a fazenda real. No anno de 1722 sendo juiz
ordinário em Vila Rica e servir de ouvidor por haver servido na
comarca de Ouro Preto procedendo nesta ocupação com muita limpeza
de mãos e bom procedimento”489.
Além disso:
“Votou com zello para a cobrança das trinta arrobas dos quintos que
conduzia com os seus escravos armados e entregava ao tesouro sem
levar ajuda de custo e por vezes mandava os seus escravos trabalhar
nos quartéis sem reparo algu do prejuízo que se lhe seguia de morrerem
e do ouro que podião tirar como requerem os mesmo governadores e
oficiais da camara nas certidões que apresentava a Eugenio Freire de
Andrada superintendente geral da casa da moeda”490.
489
ANTT. Habilitação da Ordem de Cristo de Antonio Martins Leça. Letra A, Maço 51, doc 15. Data 11
de maio de 1726. Grifos meus.
490
Idem.
491
Ibidem.
492
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Ser nobre na colônia... Op. cit., p. 104.
493
RUSSEL-WOOD. A. J. R. “Identidade, etnia e autoridade nas Minas Gerais do século XVIII: leituras
do Códice Costa Matoso”. Varia Historia... Op. cit., p. 115.
142
Já falamos até aqui sobre vários aspectos do perfil dos indivíduos que para as
Minas vieram, sejam eles paulistas, reinóis ou de outras localidades, para conquistar a
terra. Elementos estes que nos ajudaram a entender um pouco mais acerca da dinâmica
de surgimento dessa elite, os caminhos que levaram a sua formação e, em última
instância, como aprenderam a mandar e como este mando se caracterizou. Antes de
fecharmos este capítulo analisando a questão do matrimônio e, a reboque, da fixação ou
não destes homens no além-mar, gostaríamos de fazer uma breve investigação acerca de
um aspecto que recentemente tem chamado a atenção dos historiadores e
complementado a análise dos grupos que formavam as elites na América portuguesa, a
saber, suas taxas de alfabetização. Não é nossa pretensão fazer uma história da
educação, do livro ou das práticas de leitura e escrita na sociedade colonial 495. O que
gostaríamos de ressaltar é a constância ou não da alfabetização no seio do grupo que
estamos analisando e como isso poderia se constituir em um recurso e estratégia para
tais homens em sua busca por ascensão e prestígio social.
Na sociedade colonial, conforme destacou Luiz Carlos Villalta, como nas
sociedades do Antigo Regime europeu que lhes eram contemporâneas, o aprendizado da
leitura antecedia o da escrita e, por conseguinte, os registros produzidos pela última
partiram daqueles que, em teoria, já familiarizados com a leitura, eram capazes também
de escrever. Logo, em muitos casos, parte dos que não tinham a habilidade de escrever
sabiam ler, o mesmo se dando com aqueles que sabiam apenas registrar o próprio
nome496.
494
Idem, p. 114.
495
Para exemplos desse tipo de abordagem ver os trabalhos de: DARTON, Robert. O grande massacre de
gatos e outros episódios da história cultural francesa. 2ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra. CHARTIER,
Roger. Cultura Escrita, Literatura e História. Potro Alegre: ARTMED Editora, 2001. VILLALTA, Luiz
Carlos. Reformismo Ilustrado, Censura e Práticas de Leitura: usos do livro na América Portuguesa. São
Paulo: FFLCH-USP, 1999. Tese de Doutorado.
496
VILLALTA, Luiz Carlos. “Ler, escrever, bibliotecas e estratificação social”. In: RESENDE. Maria
Efigênia Lage de e VILLALTA, Luiz Carlos (Orgs.). História de Minas Gerais: as Minas setecentistas.
Vol. 2... Op. cit., p. 289.
143
497
SILVEIRA, Marco Antônio. O Universo do indistinto... Op. cit., p. 87-95. Apud: VILLALTA, Luiz
Carlos. “Ler, escrever, bibliotecas e estratificação social”. In: RESENDE. Maria Efigênia Lage de e
VILLALTA, Luiz Carlos (Orgs.). História de Minas Gerais... Op. cit., p. 290.
498
Idem, p. 296.
499
Idem.
144
TABELA 6
Taxas de Alfabetização ente os potentado locais, relacionadas com sua
naturalidade (para os quais temos informações)
Taxas Freqüência
Paulista
Alfabetizado 21
Sem informação 33
Português
Alfabetizado 44
Sem informação 10
Outras localidades
Alfabetizado 7
Sem informação 2
Sem procedência
Alfabetizado 21
Sem informação 57
Total 193
Fonte: ANTT – Habilitações para o Santo Ofício. Arquivo Histórico Ultramarino/Projeto Resgate –
Documentação avulsa de Minas Gerais/Cd-rom. Acórdãos da Câmara Municipal de Mariana. APM.
Seção Colonial – Cód. 02, 05 e 06; e Memorial Histórico-Político da Câmara Municipal de Ouro Preto.
Cor & Cor Editorial: Ouro Preto, Dezembro de 2004. Inventários post-mortem e Testamentos da CSM e
da CPOP, 1º e 2º ofício. Escrituras de alforria e liberdade dos Livros de Notas do 1º e 2º Ofício da CSM e
da CPOP.
buscamos informações acerca dessa variável em fontes como habilitações para ser
familiar do Santo Ofício (já que um dos requisitos para solicitar tal título era saber ler e
escrever), listagem de camaristas (pois na ocupação de cargos como vereador, escrivão
e procurador a alfabetização era necessária), documentação administrativa presente no
Arquivo Histórico Ultramarino feita e assinada por tais potentados no exercício de
cargos, e documentação cartorária e notarial tais como inventários, testamentos e
registros de alforrias em que constava a assinatura desses indivíduos. Contudo, só a
título de complementação, vale lembrar que nem sempre o fato de saber assinar indicava
alfabetização, pois era comum aprender-se somente a desenhar o seu nome. Quando era
este o caso, a pessoa em geral apresentava grande dificuldade ao traçar seu nome,
evidenciando um grande esforço em fazê-lo500. De qualquer forma, na investigação que
fizemos, relacionando nos casos encontrados fontes variadas, podemos indicar que os
índices encontrados são concretos.
Quando relacionamos essa taxa de alfabetização com a origem dos potentados,
temos o seguinte resultado: dentre os 52 paulistas que temos relacionados entre nossos
indivíduos temos que 21 deles eram alfabetizados, para 31 deles não nos foi possível
obter informações acerca dessa variável. Dentre os 54 portugueses que temos listados
44 possuíam a habilidade de ler e escrever e para 10 deles não foi possível ter tal tipo de
informação. Para os 9 potentados provenientes de outras localidades da América
portuguesa, 7 sabiam ler e escrever e para 2 não conseguimos ter notícias sobre tal
habilidade. Tivemos ainda 21 casos em que conseguimos classificar os potentados como
alfabetizados, mas sem saber sua origem. E tivemos 57 casos em que não conseguimos
obter nenhum tipo de informação, tanto sobre a origem, quanto sobre a alfabetização.
Percebe-se então que era entre os portugueses os maiores índices dessa variável
o que ratifica os resultados encontrados pela historiografia que recentemente tem
incluído esse item em suas análises acerca da formação da elite colonial 501. Ao analisar a
caracterização global dos modos de governar na Monarquia portuguesa na segunda
metade de setecentos com uma ênfase especial na política atlântica, traçando para tanto
uma breve investigação acerca do perfil dos portugueses que migravam para a América
500
FURTADO, Júnia F. Homens de negócio ... Op. cit., p. 109.
501
Ver os trabalhos de: FURTADO, Júnia F. Homens de negócio ... PEDREIRA, Jorge. “O Brasil,
fronteira de Portugal. Negócio, emigração e mobilidade social (séculos XVIIe XVIII)”. In: CUNHA,
Mafalda Soares da (Org.). Do Brasil à Metrópole: efeitos sociais (séculos XVII-XVIII). Anais da
Universidade de Évora, nº. 8-9, 2001, pp.47-72. MONTEIRO, Nuno G. “As reformas na monarquia
pluricontinental portuguesa: de Pombal a D. Rodrigo”. In: FRAGOSO, João et alli (Org.). O Brasil
Colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Vol. 3, no prelo.
146
502
MONTEIRO, Nuno G. “As reformas na monarquia pluricontinental portuguesa: de Pombal a D.
Rodrigo”. In: FRAGOSO, João et alli (Org.). O Brasil Colonial... Op. cit., p. 12-13.
503
FURTADO, Júnia F. Homens de negócio... Op. cit., p. 107.
504
Idem, p. 106.
147
Leandro Nunes Colhares (sic) lhe assistindo perto de hum anno antes de se embarcar
para as minas”, o que sem dúvida o ajudou a exercitar essa sua habilidade505.
A instrução que recebeu sem dúvida foi um recurso positivo e tanto em busca
por melhores oportunidades no além-mar. Não por acaso, ao embarcar para a América
portuguesa estabeleceu-se primeiro na Bahia onde “trabalhou como caixeiro de um
mercador de logea aberta na rua dos douradores, e depois foy para as minas donde
serve de minerar”506. Já nas Minas fixou-se na freguesia de Catas Altas, tornando-se ali
homem de muitas posses atuando como minerador, senhor de engenho, sendo também
um grande proprietário de escravos507.
Política e socialmente conseguiu também posição destacada. Tornou-se
sargento-mor e capitão-mor de Ordenanças em Catas Altas508, ocupou os cargos de
vereador em 1720 e juiz almotacé em 1721 na Câmara de Vila do Carmo 509 e tornou-se
cavaleiro da Ordem de Cristo510, pedindo ainda o título de familiar do Santo Ofício511.
Em sua habilitação para ser Familiar do Santo Ofício, título em que o requisito “saber
ler e escrever” era altamente destacado, apesar dos boatos que existiam sobre ter uma
filha ilegítima “com uma mulata forra de nome Thereza de Barros porque tem por ela
muito recolhimento e estimação”, era apontado como homem reputado:
Portanto, em todas essas etapas de seu bem sucedido percurso, certamente o fato
de saber ler e escrever auxiliou bastante na condução se seus negócios, no desempenho
de seus cargos e na solicitação de seus títulos.
505
ANTT. Habilitação da Ordem de Cristo de Bento Ferraz Lima. Letra B, Maço11, doc. 6. Maio de 1740.
506
Idem.
507
Para se ter uma idéia do tamanho de seu plantel ver: Lista de registro para cobrança dos quintos reais
de 1725. Arquivo da Câmara de Mariana, códice 150.
508
AHU/MG/cx.:29; doc.:77.
509
Acórdãos da Câmara Municipal de Mariana. APM. Seção Colonial – Cód. 02, 05 e 06.
510
ANTT. Habilitação da Ordem de Cristo de Bento Ferraz Lima. Letra B, Maço11, doc. 6. Maio de 1740.
511
ANTT. Familiatura do Santo Ofício de Bento Ferraz Lima. Incompleta, maço 23, doc. 925. Data
janeiro de 1730.
512
Idem.
148
Posteriormente:
“Abriu logea de fazenda secas cuja varejava pella sua mão na mesma
logea em que a estava vendendo pessoalmente a fazenda della e
ultimamente teve lavras em que tirou ouro por seus escravos no Ribeirão
do Carmo no sitio de matta cavallos aonde tem ainda um domicilio e
dahi veio por Pernambuco a esta corte em que se acha sem ocupação
algua”516.
1.9. Matrimônio
515
Idem.
516
Ibidem.
517
FRAGOSO João. “Afogando em nomes...” Op. cit., p. 46-47.
150
518
FIGUEIREDO, Luciano. Barrocas famílias: vida familiar em Minas Gerais do século XVIII. São
Paulo: Hucitec, 1997, ver cap. 1.
519
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. História da família no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1998, p. 36.
520
NAZZARI, Muriel. O desaparecimento do dote... Op. cit., p. 28.
151
Dentro dessa lógica, os casamentos dos membros dessas parentelas era forma de
ampliar o poder das mesmas, com novos recursos econômicos e humanos, e também de
se formar novo núcleos familiares, pois com a ajuda recebida desse novo enlace (em
armas, suprimentos, escravos) podiam começar a acumular recursos independentes521.
Assim, mesmo sabendo que o êxito das expedições em busca do ouro não dependia
tanto da quantidade de pessoas, obviamente que indivíduos que vinham acompanhados
de suas parentelas, isto é, índios, escravos africanos, agregados, utilizando-se de um
grosso cabedal anteriormente acumulado tinham muito mais chances de serem bem
sucedidos em suas empreitadas522.
Não por acaso muitos dos potentados que para a capitania vieram em seus
primórdios já eram casados e aqui se estabeleceram com suas famílias (lembrando que
estamos falando de um conceito de família ampliada, visto que eles vinham
acompanhados não só de mulheres e filhos, mas também de sue irmãos, pais, cunhados,
genros e escravos). Muitos outros que vieram solteiros, sem suas parentelas, ao se
instalarem nas Minas procuraram enraizar-se e constituir família. De qualquer forma
percebemos pela tabela abaixo que era alto o percentual de potentados casados. Senão
vejamos:
TABELA 7
524
FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil... Op. cit.,
p. 92.
525
CSM, 1º ofício - Inventário post-mortem de Bernardo de Chaves Cabral. Códice 16, auto 477, (1748).
Para informações sobre sua parentela ver: FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de
Bandeirantes e Sertanistas do Brasil... Op. cit., p. 199, 211, 282-285.
526
FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil... Op. cit.,
p. 92.
527
CUNHA, Mafalda Soares da. A casa de Bragança... Op. cit., p. 470.
528
RAPOSO, Luciano & CAMPOS, Maria Verônica. Códice Costa Matoso... Op. cit., p . 101-102.
153
529
FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil... Op. cit.,
p. 87-88.
530
FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil... Op. cit.,
p. 87-88 e CSM, 2º ofício – Inventário post-mortem de Pedro Frazão de Brito. Códice 132, auto 2658,
(1722).
531
VASCONCELOS, Diogo de. História antiga das Minas Gerais... Op. cit., p. 212.
532
CSM, 2º ofício – Inventário post-mortem de Pedro Frazão de Brito. Códice 132, auto 2658, (1722).
533
FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil... Op. cit.,
p. 87-88.
534
Idem, p. 386.
535
CAMPOS, Maria Verônica. “Goiás na década de 1730: pioneiros, elites locais, motins e fronteira...”
Op. cit., p. 356.
154
536
ALMEIDA, Carla M Carvalho de. “Trajetórias imperiais: imigração e sistema de casamentos entre a
elite mineira setecentista”. In: ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de e OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de.
(Orgs.). Nomes e números... Op. cit., p. 74.
537
ANTT. Familiatura do Santo Oficio de Francisco Gomes da Cruz. Completa, maço 60, doc. 1158.
Agosto de 1739.
538
Ver: ANTT. Familiatura do Santo Oficio de Francisco Gomes da Cruz. Completa, maço 60, doc. 1158.
Agosto de 1739. Acórdãos da Câmara Municipal de Mariana. APM. Seção Colonial – Cód. 02, 05 e 06.
539
ANTT. Familiatura do Santo Oficio de Francisco Gomes da Cruz. Completa, maço 60, doc. 1158.
Agosto de 1739.
155
540
RODRIGUES, Aldair Carlos. Sociedade e Inquisição em minas colonial: os familiares do Santo Ofício
(1711-1808)... Op. cit., p. 159-160.
541
ANTT. Familiatura do Santo Oficio de Francisco Gomes da Cruz. Completa, maço 60, doc. 1158.
Agosto de 1739.
542
ALMEIDA, Carla M Carvalho de. “Trajetórias imperiais: imigração e sistema de casamentos entre a
elite mineira setecentista...” Op. cit., p. 91.
543
LEME, Luiz Gonzaga da Silva. Genealogia Paulistana. São Paulo: Macromedia, 2002. CD, v.8,
p.251/252 – v.4, p. 719.
544
Ver: Lista dos homens mais abastados da capitania feita pelo provedor da fazenda Domingos Pinheiro.
AHU/MG/cx: 70; doc: 41. Para maiores detalhes acerca da referida lista ver: ALMEIDA, Carla. Homens
ricos, homens bons... Op. cit.
545
RAPM, cartas patentes, código 1229, ano 4, fascículo 4, ano 1899. Patente de Jose da Silva Pontes de
capitão de cavalos do Inficcionado. 16 de março de 1747, p. 128-129 e ver a do AHU.
546
ANTT. Habilitação da Ordem de Cristo de Joseh da Silva Pontes. Letra J, maço 100, doc. 10. Data 10
de setembro de 1749.
156
de Arruda Pires. Deste matrimônio José da Silva Pontes conseguiu muitas vantagens:
adentrou nesta prestigiosa família e conseguiu o cargo de guarda-mor das Minas do
Inficcionado e de Catas Altas, “ficando senhor de muitas lavras minerais em Minas
Gerais”547, se tornando mais um dos parentes nomeados por Garcia Rodrigues para
atuar no referido cargo. Portanto, com este matrimônio, José da Silva Pontes além de
sua inserção em uma importante família das Minas, adquirira um cargo que lhe
permitira transformar-se em um próspero minerador.
Os exemplos citados nos permitem assinalar que nesta sociedade as relações
matrimoniais foram importante recurso na realização dos propósitos de busca de
prestígio e demonstração de diferença em relação aos demais, fator essencial para
garantir a distinção, pois lhes forneciam algum tipo de “ganho”, material ou não. Tais
exemplos, portanto, vão de encontro à afirmação de Barth que salienta que a realidade
resulta do comportamento individual dos atores que dão forma aos seus atos através da
maneira que usam as oportunidades oferecidas, sendo que a descrição de uma
organização social deve representar as relações fundamentais que conectam as pessoas
em sociedade548.
No entanto, apesar da importância da família formalmente constituída para estes
potentados em termos de ganhos materiais e simbólicos, era comum também que estes
homens estabelecessem relações familiares informais com mulheres de cor, sejam elas
forras ou escravas, muitas vezes com presença de prole ilegítima. O destino dessa
família informal era incerto na maioria dos casos: muitos continuavam sendo escravos,
outros eram alforriados, outros conseguiam se tornar herdeiros dos pais. Com tais
atitudes estes mesmos homens acabavam por conferir um caráter de flexibilidade e
mobilidade àquela sociedade549, pois através de tais uniões essas mulheres de cor
conseguiam para si ou para seus filhos melhoras na condição de vida ou mesmo a
mudança de condição jurídica.
O coronel de António Gonçalves Torres, por exemplo, casado, natural do Reino,
era um dos homens mais poderosos da região do Furquim onde residia. Minerador, era
homem abastado, possuidor de 5 sesmarias, várias propriedades urbanas e rurais e um
plantel composto por 146 escravos, tendo um monte-mor avaliado, quando de seu
5 547
LEME, Luiz Gonzaga da Silva. Genealogia Paulistana. São Paulo: Macromedia, 2002. CD, v.8,
p.251/252 – v.8, p.252.
548
BARTH, Fredrik. “Anthropological models and social reality”. In: Process and form in social life…
Op. cit., p.14-31.
549
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. História da família no Brasil colonial... Op. cit., p. 168.
157
550
CSM, 1º ofício – Inventário post-mortem de António Gonçalves Torres. Códice 59, auto 1305, (1776).
551
Idem.
552
SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. “Os homens de negócio do Rio de Janeiro e sua atuação nos
quadros do Império português (1701-1750)”. In: FRAGOSO, João, BICALHO, Maria Fernanda &
GOUVÊA, Maria de Fátima. (Orgs.). O Antigo Regime nos trópicos... Op. cit., p. 105.
553
CSM, 1º ofício – Inventário post-mortem de António Gonçalves Torres. Códice 59, auto 1305, (1776).
554
CSM, Testamento de António Gonçalves Torres. Anexo ao seu Inventário, (1775).
555
CSM, 1º ofício – Inventário post-mortem de António Gonçalves Torres. Códice 59, auto 1305, (1776).
556
Neste sentido ver: KLEIN, Hebert S. “A integração social e econômica dos imigrantes portugueses no
Brasil no fim do século XIX e no início do XX”. Revista Brasileira de Estudos de População. São Paulo,
v.6, n. 2, jul./dez. 1989. MERRICK, Thomas & GRAHAM, Douglas. População e desenvolvimento
econômico no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. MONTEIRO, Miguel. Migrantes, emigrantes e
brasileiros (1834-1926). Fafe, NEPS/IBIT/IESF, 2000. Apud: FLORENTINO, Manolo & MACHADO,
Cacilda. “Imigração portuguesa e miscigenação no Brasil nos séculos XIX e XX: um ensaio”. In: LESSA,
Carlos. Os lusíadas na aventura do Rio Moderno. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 108-109.
158
muito dificilmente conseguiriam ter em suas terras de origem, o que pode ter se
constituído em um poderoso atrativo para sua permanência na região. Embora não seja
objetivo dessa pesquisa investigar a fundo essas taxas de retorno, e mesmo não tendo
dados concretos para tanto, ainda sim achamos interessante fazer uma rápida incursão
nessa temática, a fim de complementar a análise das trajetórias e perfil do grupo de
potentados que estamos investigando.
Os dados que temos para tentar fazer uma estimativa acerca da proporção de
reinóis que retornavam ao reino nos permitem visualizar uma tendência de fixação dos
mesmos na capitania. Na análise da origem desses potentados vimos inicialmente que
dentre os 115 potentados para os quais conseguimos encontrar informações acerca dessa
variável, 54 eram portugueses. Dentre esses, buscando informações em documentos
como inventários, testamentos, estado civil, familiaturas do Santo Ofício e habilitações
para Ordem de Cristo, chegamos ao seguinte resultado:
TABELA 8
Taxas de retorno ao reino dos potentados locais (para os quais temos informações)
Taxas Freqüência %
Permaneceram nas Minas 40 74,07
Retornaram ao Reino 3 5,55
Sem informação 11 20,37
Total 54 100
Fonte: ANTT – Habilitações para a Ordem de Cristo e Habilitações para o Santo Ofício. Arquivo
Histórico Ultramarino/Projeto Resgate – Documentação avulsa de Minas Gerais/Cd-rom. Inventários
post-mortem e Testamentos da CSM e da CPOP, 1º e 2º ofício. FRANCO, Francisco de Assis Carvalho.
Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. USP, 1989.
“Faço saber aos que esta minha carta patente virem que tendo
consideração aos muitos merecimentos do dito e aos particulares
serviços que tem feito como capitão mor de Vila Rica que exercita a oito
anos sendo huma das pessoas que no primeiro ajuste, que se fez de
quintos nestas minas por D. Braz da Silveira, agiu com muito zelo e a
todas as diligencias que o dito governador o encarregou deu inteiro
cumprimento não só com sua pessoa mas também com seus escravos
armados sem reparar na perca dos serviços dele, e sucedendo uma
alteração de alguas pessoas principais desta Vila Rica que com grande
sequito de gente armada quiserão expulsar o ouvidor geral ele foi a
única pessoa que seguiu o partido desse ministro o que resultou
inimizarçe com eles todos e na ocasião que S. Mag. ordenou que se
557
ANTT. Habilitação da Ordem de Cristo de Henrique Lopes de Araújo. Letra H, maço 4, doc. 31. Data
21 de março de 1732.
558
Idem.
559
Termo que se fes na junta, e rezoluçam que se tomou sobre o pagamento dos quinto de Sua Magestade
com os vereadores, procuradores, homens bons de Villa Rica, 6 de janeiro de 1714”. In: CARVALHO,
Feu de. Questões históricas e velhos enganos. Revista do Arquivo Público Mineiro. Ano XXIV, 1933, p.
26.
560
Câmara Municipal de Ouro Preto, Avulsos – Testamento de Henrique Lopes de Araújo. Caixa 5,
documento 10, (1733).
160
pagassem os quintos por bateas ser um dos que votaram na junta que se
fez em vila rica sempre na defensa da fazenda real. E suspeitando que os
negros dessas minas se querião soblevar em quinta feira mayor de 1719
contra os homens brancos para os destruir e sendo preciso toda cautela
por todas as vilas e arraiais se recomendou ao dito capitão mor a tivece
também nesta vila rica em cuja guarda teve o dito capitão mor grande
vigilância, fazendo com que todas as companhias de ordenanças
estivecem em armas de corte que se desvaneceo o horroroso intento dos
ditos negros. E acontecendo soblevarem se outros moradores desta dita
vila intentados por outras pessoas principais de dentro della e de fora
agiu com tanto zello que esteve em termos de ser morto pela fidelidade
com que seguia o partido do governador a por se pronto com seos
negros armados e hir dar prisão aos cabeças dos amotinados sendo que
em poucas pessoas desse pais se achou igual fidelidade, valor e zello e
em todas as mais diligencias, como foi na prisão de silvestre i e
acomodação da contenda que houve no sitio do carijó, prendendo uma
das pessoas revoltosas trazendoas na presença do governador e por
esperar dele que continuara agindo da mesma forma hey por bem de
nomealo no posto de capitão mor de vila rica”561.
Faleceu em Vila Rica no ano de 1733 deixando como seu testamenteiro outro
poderoso das Minas, o coronel Mathias Barbosa da Silva, indicando que conseguiu
também estabelecer ligações pessoais com importantes nomes da região, o que
certamente contribuía para reafirmar sua imagem de homem poderoso. No seu
testamento deixava vários legados. Dentre todos merece destaque o fato de deixar o
palacete que construíra para morada dos governadores para a Câmara de Vila Rica.
Deixava assim estipulado:
“Declaro que entre os mais bens que possuo é bem assim um chamado
Palácio em que assiste o exmo. Conde das Galveas Gov. e Cap. Gen. das
Minas, cujas casas com todas suas presenças de muros para dentro e as
em que eu assisto e as lavras que nelas conservo e de que estou de posse
para cima até a fazenda [perda] de uma parte e de outra até 2 o alto do
morro do Padre Faria em estando Domingos Francisco com o seu
córrego e de Domingos de Abreu Lisboa, e tudo assim como opressão e
tenho defendido e me expelia as ditas casas e palácio deixo à câmara
desta Vila Rica de Ouro Preto para habitação dos seus governantes, ou
para o que for mais útil ou conveniente à mesma câmara e bem comum
da república com a obrigação porem de 4 capelas de missas cada ano
que são 200 missas às quais mandarão dizer pela minha alma e de
minha mulher”564.
564
CMOP, Avulsos – Testamento de Henrique Lopes de Araújo. Caixa 5, documento 10, (1733).
162
Capítulo 2
O perfil econômico dos potentados locais
escrava que se pretende estudar568. Por muito tempo os estudiosos de Minas colonial
esquivaram-se da análise dessa documentação alegando que a sonegação contumaz –
suposta característica por excelência dos mineiros – resultara em arrolamentos de tal
maneira subnumerados que nem sequer permitiriam a elaboração de estimativas da
população escrava569. Que o ouro em pó e os diamantes tenham sido objeto de
sonegação e de contrabando não se pode duvidar, mas é preciso repensar a noção de que
os proprietários facilmente ocultassem a existência de escravos. Portanto, embora possa
se dizer que certamente a sonegação estivesse presente, ela pode ter sido minimizada
pela proximidade do coletor das informações com a população, visto que desde 1710 as
Câmaras eram incumbidas de preparar listas de proprietários e suas posses de escravos,
listas estas que eram utilizadas para calcular o quinto a ser pago pela população local.
Assim os coletores desse imposto eram indivíduos escolhidos pelas próprias câmaras,
que moravam na vila e conheciam os moradores. Além disso, este tipo de tributo gerava
uma “solidariedade” entre a população, pois era necessário completar uma certa
quantidade de arrobas de ouro, pactuada entre as Câmaras da região mineradora. O
imposto sonegado por um minerador teria de ser pago por outro570.
Quanto aos inventários vale lembrar também que eles são fontes valiosas, mas
no que diz respeito aos escravos arrolados é preciso proceder com cautela. A
inventariação exigida pela lei retrata para o historiador a posse de cativos existentes no
momento da morte do senhor e, portanto, reflete toda uma vida de práticas que
envolvem a compra de novas peças africanas e/ou o estímulo à reprodução natural. Isso
significa que as tendências detectáveis nos dados são de uma temporalidade complexa.
Como indícios da composição dos escravos introduzidos pelo tráfico negreiro
internacional, por exemplo, tais dados tendem a representar a composição de uma, duas
ou mais décadas anteriores571.
566
As listas de registro para cobrança dos quintos reais utilizadas foram as do Arquivo Público Mineiro,
Coleção Casa dos Contos códices 1022, 1024, 1025, 1026, 1028, 1029, 1030, 1033, 1034, 1035, 1036,
1039. Listas de registro para cobrança dos quintos reais do Arquivo da Câmara de Mariana, códice 150 e
códice 166.
567
Catálogo de sesmarias. Revista do Arquivo Público Mineiro. Vol. 1 e 2, Belo Horizonte, 1988.
568
BOTELHO, Tarcísio. “Família e escravidão em uma perspectiva demográfica: Minas Gerais (Brasil),
século XVIII...” Op. cit., p. 202.
569
LIBBY, Douglas Cole. “As populações escravas das Minas Setecentistas: um balanço preliminar”. In:
RESENDE. Maria Efigênia Lage de e VILLALTA, Luiz Carlos (Orgs.). História de Minas Gerais... Op.
cit., p. 409.
570
Idem, p. 408-409.
571
Ibidem, p. 421.
164
572
CARRARA, Ângelo Alves. Minas e Currais. Produção rural e mercado interno de Minas Gerais, 1674-
1807. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2007, p. 149-150.
573
RODRIGUES, José Damião. “A guerra no Açores...” Op. cit., p. 252.
574
CARRARA, Ângelo Alves. Minas e Currais... Op. cit., p. 149-150.
575
Idem, p. 33.
165
576
Sobre o estudo de Francisco Carlos Teixeira ver: TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos.
Morfologia da escassez: crises de fome e política econômica no Brasil colonial. Niterói: UFF, 1991. Tese
de Doutorado, p.321-343. Apud: CARRARA, Ângelo Alves. Minas e Currais... Op. cit., p. p. 57-59.
577
CAMPOS, Maria verônica. Governo de Mineiros... Op.cit.,p 114.
578
Catálogo de sesmarias. Revista do Arquivo Público Mineiro. Vol 1... Op. cit., p. 28.
579
CARRARA, Ângelo Alves. Minas e Currais... Op. cit., p. 159.
580
AHU/MG/cx.: 54; doc.: 46.
166
raiz, possuía um sítio com capoeiras situado na freguesia de São Sebastião “com suas
moendas, roda de moer e prensa de mandioca com suas casas de vivenda e senzallas
cobertas de palha com seu payol coberto de telha”586. Como em muitos casos aqui
vistos a propriedade fundiária não ficava dissociada da propriedade escrava, de tal
monta que ele tinha um plantel composto por 108 escravos587.
Mesmo padrão de propriedade encontramos entre os bens de Francisco Soares
Maciel, só que caracterizado como fazenda. Em seu inventário arrolava-se duas
fazendas que possuía, uma com “capoeiras e matas virgens que tem 114 alqueires de
milho com casas de vivenda, payol, casa de fumo coberta de telhas, moinho, monjolo e
todos os mais pertences” avaliada em 1:800$000. E uma outra fazenda de terras de
cultura localizada na capela de São Caetano com “45 alqueires de milho, com casas
térreas grandes cobertas de telhas já velhas, payol e mais pertences” avaliada em
1:000$000588.
Grande e variada fábrica tinha também em seu sítio o capitão-mor Manuel Jorge
Coelho composto por casas de vivenda, senzalas, engenho de cana, olaria, fornos de
telha, hortas e roças de milho, feijão e cana plantadas, tudo avaliado em 8:764$8000.
Além dessa grande e valiosa propriedade possuía, para trabalhar nela, um plantel de 80
escravos589.
Voltando a discussão para a questão da terra sob a ótica da sesmaria, talvez
possamos argumentar que a característica mais marcante que sua concessão nos pode
revelar é o fato de que elas devem ser consideradas como garantia das posses já
lançadas ou a terras já compradas. Esse lugar ocupado pelas concessões explica-se pela
poderosa fundação que é a própria natureza da economia mineira colonial: as terras
mudavam de mãos a um ritmo muito acelerado. Mais do que em qualquer outro lugar do
Brasil, a propriedade fundiária em Minas Gerais sempre funcionou como propriedade
privada, do ponto de vista econômico590.
Um exemplo disso é-nos dado pela carta de Caetano Álvares Rodrigues e seu
cunhado Maximiano de Oliveira Leite que garantiram apenas em 1749 a meia légua de
terras em quadra localizada na freguesia do Sumidouro e Furquim, comprada em 1718
586
Casa Setecentista de Mariana, 1º ofício – Inventário post-mortem de Francisco Ferreira de Sá. Códice
87, auto 1842, (1732).
587
Idem.
588
Casa Setecentista de Mariana, 2º ofício – Inventário post-mortem de Francisco Soares Maciel e sua
mulher (duplo). Códice 117, auto 2352, (1819).
589
CARRARA, Ângelo Alves. Minas e Currais... Op. cit., p. 192. Ver também: Casa Setecentista de
Mariana, 2º ofício – Inventário post-mortem de Manuel Jorge Coelho. Códice 15, auto 448, (1733).
590
CARRARA, Ângelo Alves. Minas e Currais... Op. cit., p. 162.
168
por 7.000 cruzados591. Na carta diziam que eram senhores e possuidores de tal pedaço de
terra “a maes de 8 annos por compra que delas fizerão na freguesia do Sumidouro e
Furquim, onde cultivavam com 224 escravos, os quais queriam que lhe concedesse o
governador por cesmaria na forma das ordens de V. Mag”592. Outro exemplo
encontramos na já citada carta de sesmaria de meia légua de terra localizada no braço do
córrego que deságua no Ribeirão da Perdição, freguesia do Furquim do coronel Antônio
Gonçalves Torres e seu sócio Manuel Domingues Espinosa que diziam já serem
possuidores de tal pedaço de terra “por título de compra desta rossa a qual já
cultivavam com seus escravos a bastante tempo”593.
Passemos agora para a análise de um outro bem valioso no contexto em questão
no qual os potentados investiam significativamente, os escravos. Este era um
investimento possível e acessível às suas fortunas, além de reiterar a diferenciação
sócio-econômica entre uma elite e outros homens livres. Na verdade, a expressão de
Antonil de que “os escravos são as mãos e os pés do senhor de engenho” revela com
primazia a importância dos escravos na colonização portuguesa na América, na medida
em que fora a escravidão de milhares de africanos que marcou as relações de trabalho
na colônia594. Desse modo, como bem nos lembra Tarcísio Botelho, quando da
descoberta do ouro na região das Minas Gerais houve uma “opção natural” pela
escravidão negra, ainda que existisse uma parcela razoável de escravos de origem
indígena nas primeiras décadas da mineração595.
Em menos de um século, a importação de cativos transformou as Minas Gerais
na principal região escravista do Império português. Esses escravos, inicialmente, eram
majoritariamente africanos, com o predomínio de denominações associadas à África
centro-ocidental. Progressivamente, essa população de escravos passa a ser constituída
também pelos filhos de africanos, nascidos no Brasil, ou desses com brancos ou
indígenas. Também houve progressivo aumento da presença de africanos oriundos de
portos mais ao sul da África, destacando-se entre eles os Angolas. Deve-se considerar,
591
CARRARA, Ângelo Alves. Minas e Currais... Op. cit., p. 169. AHU/MG/cx.: 55; doc.: 9.
592
AHU/MG/cx.: 55; doc.: 9.
593
AHU/MG/cx.: 54; doc.: 46.
594
BOTELHO, Tarcísio. “Introdução”. In: RESENDE. Maria Efigênia Lage de e VILLALTA, Luiz Carlos
(Orgs.). História de Minas Gerais... Op. cit., p. 403. Ver também: ANTONIL, André João. Cultura e
Opulência do Brasil... Op. cit.
595
Idem.
169
todavia, que tais transformações variaram no espaço e no tempo, e que ainda se conhece
pouco sobre esse processo em Minas Gerais596.
Cabe sublinhar que não é nossa intenção fazer uma análise demográfica escrava
no contexto em questão. Por isso não nos atentaremos para dados tais como
naturalidade dos cativos, composição das posses por sexo, distribuição dos cativos por
localidade a fim de fazer estatísticas de crescimento e concentração dos mesmos.
Objetivamos apenas fazer, a título de complementação, um levantamento simples acerca
do padrão de posse de escravos entre os potentados. Ademais, não se desconsidera o
fato de que se trata de números mínimos, visto que a quantidade de inventários
encontrada para o grupo em questão foi pequena e que o registro de quintos por ser uma
fonte produzida com finalidades fiscais apresenta problemas comuns a todas deste tipo,
como já destacado. De qualquer forma são fontes que oferecem ao pesquisador um
leque de dados que podem contribuir para se fazer estimativas dessa população escrava
entre o grupo investigado. As tabelas 9 e 10 mostram as estimativas encontradas nos
inventários e nas listas de quinto em separado, senão vejamos:
TABELA 9
596
BOTELHO, Tarcísio. “Introdução”. In: RESENDE. Maria Efigênia Lage de e VILLALTA, Luiz
Carlos (Orgs.). História de Minas Gerais... Op. cit., p. 403-404.
597
PAIVA, Clotilde Andrade. População e economia nas Minas Gerais do século XIX. São Paulo:
FFLCH/USP, 1996. Tese de Doutorado. LIBBY, Douglas C. Transformação e trabalho em uma
economia escravista: Minas Gerais no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1988. Apud FILHO, Afonso
de Alencastro Graça, PINTO, Fábio Carlos Vieira & MALAQUIAS, Carlos de Oliveira. “Famílias
escravas em Minas Gerais nos inventários e registros de casamento: o caso de São José do Rio das
Mortes, 1743-1850...” Op. cit., p. 189.
170
detinham apenas 2,37% dos 1.012 cativos de nossa amostra. As propriedades médias
(de 10 a 29 mancípios) significavam também 26,92% dos senhores de escravos e
detinham 10,37% dos cativos. As grandes posses (mais de 30 escravos) foram as mais
significativas englobando 46,15% dos proprietários que concentravam 87,25% do total
dos escravos analisados. Nas listas de quinto o resultado encontrado foi o seguinte:
TABELA 10
Padrão de posse de escravos entre os poderosos locais visualizado nas listas para
cobrança dos quintos reais por localidades – 1718 - 1725
Até 9 De 10 a 29 + de 30
Localidade Período
escravos escravos escravos
Vila Rica 1718-1723 1 2 2
Guarapiranga 1718 3 4 0
São Bartolomeu 1718 4 2 1
Itatiaia 1718-1719 0 1 1
São Sebastião 1718-1719 1 7 3
Itaverava 1718-1720 2 1 0
Sumidouro 1718-1720 1 2 0
Inficcionado 1718-1720 0 0 3
Brumado 1719-1720 0 1 0
Antônio Dias 1719-1723 0 1 1
Vila do Carmo 1718-1721 2 7 3
Vila do Carmo e seu termo 1723 1 6 13
Vila do Carmo e seu termo 1725 6 9 11
Total 21 43 38
Fonte: Listas de registro para cobrança dos quintos reais do Arquivo Público Mineiro, Coleção Casa dos
Contos códices 1022, 1024, 1025, 1026, 1028, 1029, 1030, 1033, 1034, 1035, 1036, 1039. Listas de
registro para cobrança dos quintos reais do Arquivo da Câmara de Mariana, códice 150 e códice 166.
598
FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil... Op., cit.,
p. 145.
599
AHU/MG/cx.:4; doc.:76.
600
Acórdãos da Câmara Municipal de Mariana. APM. Seção Colonial – Cód. 02, 05 e 06.
601
Casa Setecentista de Mariana, 1º ofício – Inventário post-mortem de Paulo Rodrigues Durão. Códice
115, auto 2377, (1743).
602
Lista de registro para cobrança dos quintos reais do Inficcionado, 1718-1720. Arquivo Público Mineiro,
Coleção Casa dos Contos, códice 1035.
603
Lista de registro para cobrança dos quintos reais de Mariana e seu Termo, 1723. Arquivo da Câmara de
Mariana, códice 166.
172
“Haverse com muito zelo na sublevação que os mesmos desta vila rica
fomentados de pessoas malignas fizeram contra o governador por este
não os deixar viver na continuação dos roubos e insultos, procedendo o
dito com toda a fidelidade porque logo que o Conde de Assumar lhe fez
aviso saiu em socorro trazendo todos os seus escravos armados que são
numerosos e muitas pessoas brancas sustentando todos a sua custa no
que fez considerável despesa de sua fazenda”606.
Com este exemplo procuramos demonstrar que no seio deste grupo os escravos
mostravam-se fundamentais não só em termos de mão-de-obra, como produtor, mas
também para atuarem em diversos momentos como braço armado, e desta forma, como
elemento fulcral para demonstração e manutenção de legitimidade e do poder destes
indivíduos. E, por isto mesmo, o investimento na compra de cativos foi algo a que
sempre se dedicaram, como conseguimos observar na análise das listas de quinto
referentes a diferentes momentos da vida de Paulo Rodrigues Durão como senhor de
escravos, pois deles não podiam prescindir nesta sociedade pelos motivos já
assinalados.
Temos em nossa amostragem vários outros exemplos que também corroboram
os argumentos defendidos acima. Podemos citar o caso do já mencionado capitão-mor
604
Lista de registro para cobrança dos quintos reais de Mariana e seu Termo, 1725. Arquivo da Câmara de
Mariana, códice 150.
605
Casa Setecentista de Mariana, 1º ofício – Inventário post-mortem de Paulo Rodrigues Durão. Códice
115, auto 2377, (1743).
606
RAPM, cartas patentes, código 1229, ano 4, fascículo 4, ano 1899. Patente de Paulo Rodrigues Durão,
sargento-mor do Mato Dentro. 27 de outubro de 1722, p. 101-102.
173
de Catas Altas Bento Ferraz Lima. Vimos anteriormente que além de homem de muitas
posses, minerador e senhor de engenho ele era um grande proprietário de cativos. Na
lista de quintos feita para a freguesia de Catas Altas em 1723 declarava ter um plantel
de 91 cativos607. Em um outro registro produzido em 1725 para a região da Vila do
Carmo e seu termo este potentado aparece como proprietário de 113 escravos608. Com
tão grande plantel podia se dispor a redirecionar alguns de seus cativos das atividades
da mineração para levá-los em suas diligências.
De fato, como visto em outra parte deste trabalho, este potentado auxiliou a
Coroa em diversos momentos em que a defesa da conquista e o apaziguamento de
conflitos se fez necessária. Agiu assim durante uma sublevação no ano de 1718 causada
pelo coronel João Barreiros e pelo Juiz de Cayeté, no levante de Vila Rica, na repressão
a um quilombo existente no morro do Carrasa e no levante de Pitangui609. Em todas
essas ocasiões atuou às custas de sua vida, fazenda e negros armados, o que denota certa
autonomia e poder de mando que homens como Bento Ferraz Lima tinham na sociedade
em questão, o que era dado muito em função da posse dessa numerosa escravaria da
qual podia se utilizar e colocar a serviço da Coroa, e da necessidade desta em recorrer
ao auxílio destes homens para exercer sua governabilidade.
Um último exemplo destaco na figura do mestre de campo Francisco Ferreira de
Sá. Este reinol, natural do Porto, foi dos primeiros povoadores da região das Minas
Gerais e já em 1714 era considerado dos “principais moradores da localidade”610. Essa
posição social de relevo, atestada por tal reconhecimento como principal, pelas patentes
militares possuídas611, pelos cargos ocupados (juiz ordinário por duas vezes na Câmara
da Vila do Carmo e provedor dos quintos em São Sebastião612), vinha também
acompanhada de considerável proeminência no campo econômico. Francisco Ferreira
de Sá era homem possuidor de grosso cabedal, num patrimônio, segundo registro de seu
inventário, que incluía várias propriedades rurais e urbanas, ouro lavrado, criações
607
Lista de registro para cobrança dos quintos reais de Mariana e seu Termo, 1723. Arquivo da Câmara de
Mariana, códice 166.
608
Lista de registro para cobrança dos quintos reais de Mariana e seu Termo, 1725. Arquivo da Câmara de
Mariana, códice 150.
609
AHU/MG/cx.:29; doc.: 77.
610
“Termo que se fes na junta, e rezoluçam que se tomou sobre o pagamento dos quinto de Sua Magestade
com os vereadores, procuradores, homens bons de Villa Rica, 6 de janeiro de 1714”. In: CARVALHO,
Feu de. Questões históricas e velhos enganos... Op. cit., p. 26.
611
AHU/MG/cx.: 21; doc.: 9.
612
Acórdãos da Câmara Municipal de Mariana. APM. Seção Colonial – Cód. 02, 05 e 06. E: Lista de
registro para cobrança dos quintos reais de São Sebastião, 1718. Arquivo Público Mineiro, Coleção Casa
dos Contos, códice 1024.
174
cavalares e de porcos, várias jóias e objetos finos tais como prataria, porcelanas, móveis
de jacarandá e um plantel de 108 cativos, tudo avaliado em 58:882$767613.
Este plantel foi sendo incrementado ao longo da vida deste potentado até chegar
nesse montante final contabilizado em seu inventário, datado de 1732. É o que
constatamos ao analisarmos novamente as listas para cobrança dos quintos reais que
levantamos, nas quais aparecem o nome dele entre os pagadores arrolados. Encontramos
seu nome disposto em 3 listas que nos permitem acompanhar o movimento de formação
de seu plantel. A primeira data de 1718 e se refere a freguesia de São Sebastião na qual
aparece como senhor de 78 cativos614. Em uma outra de 1723, referente a freguesia do
Furquim, atestava ter um plantel de 62 escravos615 e na lista de 1725 feita para a região
da Vila do Carmo e seu termo declarava ter 70 escravos616.
Percebe-se assim que este potentado sempre foi um grande proprietário de
cativos procurando cada vez mais investir na compra deste bem precioso, visando não
só mão-de-obra para usar no trabalho da mineração e agricultura, atividades econômicas
as quais se dedicava, mas também para de tais escravos se utilizar em “milícias
particulares” em todas as “revoluçoens e motins das Minas onde se distinguiu por
seguir partido de Sua Mag. estando sempre pormpto para servir com a sua pessoa e
com seos negros”617.
Os exemplos mostram o quanto o acesso à propriedade de escravos era
importante mecanismo de poder, riqueza e status. Tal afirmação é ratificada ao
lembrarmos que os negros constituíam-se em peças-chave na extração do ouro, no
cultivo da terra, na contenção de revoltas, na cobrança de impostos, na execução de
variadas diligências em que tais potentados atuavam levando esses negros como braço
armado. Portanto, o escravo se fazia presente de variadas formas na vida do senhor, e
seu uso variava de acordo com a situação apresentada, mas sempre implicando distinção
social e signo de poder. Em outros termos, o escravo era fundamental para eles porque
recorrentemente colocavam suas fazendas, cabedais e negros armados ao serviço da
Coroa. E para esta tal, disponibilização de serviços e de recursos desses súditos era
613
Casa Setecentista de Mariana, 1º ofício – Inventário post-mortem de Francisco Ferreira de Sá. Códice
87, auto 1842, (1732).
614
Lista de registro para cobrança dos quintos reais de São Sebastião, 1718. Arquivo Público Mineiro,
Coleção Casa dos Contos, códice 1024.
615
Lista de registro para cobrança dos quintos reais de Mariana e seu Termo, 1723. Arquivo da Câmara de
Mariana, códice 166.
616
Lista de registro para cobrança dos quintos reais de Mariana e seu Termo, 1725. Arquivo da Câmara de
Mariana, códice 150.
617
AHU/MG/cx.: 21; doc.: 9.
175
fulcral para manutenção de sua governabilidade. Não podendo prescindir do apoio dos
principais homens de suas respectivas localidades na capitania, por vezes deparava-se
com situações nas quais a inevitabilidade, por um lado, e/ou a estratégia, por outro,
convergiam para uma refinada negociação entre ela e esses homens618. Essa lógica pode
também ser válida para se analisar a relação senhor/escravo, visto que, como se tentará
mostrar ao longo de todo este trabalho, além do uso como mão-de-obra, aos potentados
não era possível prescindir de escravos, seu braço armado, em situações variadas, sejam
estas relacionadas à sua busca por mando e status nos serviços ao Rei, seja para
demonstração de legitimidade social, seja para resolução de conflitos pessoais. E por
isso, assim como a Coroa e tais potentados se relacionavam em muitos momentos tendo
por base mecanismos de negociação e reciprocidade – os potentados por interesse e a
Coroa por necessidade –, podemos dizer que entre aqueles e seus escravos o mesmo se
processava pelas mesmas razões. O que denota que a lógica da governabilidade e os
mecanismos de poder típicos do Antigo Regime, perpassavam todos os patamares
sociais, horizontal e verticalmente.
Outro dado a ser explorado na investigação do perfil econômico dos potentados
refere-se a sua preocupação de exteriorizar luxo, riqueza e poder por meio de
vestimentas e insígnias e outros objetos que demarcavam o espaço social ocupado,
conferindo status e prestígio ao indivíduo, os quais refletiam não só em seu
reconhecimento e distinção, como também na amplitude de seu poder político. A
relevância de se abordar tal aspecto reside no fato de que, na sociedade em questão,
além da terra e dos escravos, outra forma de denotar poder, prestígio e riqueza era o
“viver à lei da nobreza”. E viver à lei da nobreza implicava não trabalhar com as mãos,
não ser descendente de oficial mecânico, ter criadagem e escravos. Dispor de cavalo e
ter armas também era de consideração619. Cabe sublinhar que mesmo sabendo que nesta
sociedade a riqueza por si só não garantia a “qualidade” de um indivíduo, ela era
necessária para sustentá-la. E no Brasil colonial a “qualidade” implicava também em
um estilo de vida, em tratar-se à lei da nobreza, o que só seria possível para aqueles
possuidores de largos cabedais620. Na verdade, isto era fator sine qua non para o
618
MATHIAS, Carlos Leonardo K. “As condições da governabilidade: um refinado jogo de interesses na
América Lusa da primeira metade do século XVIII”. LPH – Revista de História. Mariana, n. 14-15, pp.
35-64, 2004-2005, p. 41.
619
MAGALHÃES, Joaquim Romero. “Os nobres da governança das terras”. In: MONTEIRO, Nuno G.
CARDIM, Pedro & CUNHA, Mafalda Soares da (Orgs.). Optima Pars – elites ibero-americanas do
Antigo Regime... Op. cit., p. 68.
620
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Ser nobre na colônia... Op. cit., p. 321-322.
176
621
CAMPOS, Maria verônica. Governo de Mineiros... Op. cit., p. 247.
622
DUARTE, Luís Miguel. “Os melhores da terra (um questionário para o caso português). In: BARATA,
Filipe Themudo (Org.). Elites e redes clientelares na Idade Média... Op. cit., p. p 104-105.
623
RUSSEL-WOOD, A. J. R. “Centros e periferias no mundo luso-brasileiro, 1500-1808”. In: Revista
Brasileira de História. v. 18, nº 36, 1998, p. 198.
177
cumpria uma função social específica: a de sinal distintivo do status social, como
instrumento de dominação necessário à consolidação e manutenção do mando624.
Acreditamos que os potentados se utilizaram de todos os mecanismos possíveis
para se manterem enquanto autoridade, e se o luxo e a ostentação eram socialmente
reconhecidos como um recurso legitimador do poder destes indivíduos, estes souberam
muito bem utilizá-lo. Objetos como talheres de prata, espadins, ornamentos religiosos,
botões e laços em ouro, roupas inglesas com brilhantes, toalhas de renda, chapéus finos
e capotes, colchas de cetim, cabeleiras, e até Estandartes de Tropas militares, serviam
para ostentar sua condição social, para se distinguirem dos homens comuns e da massa
escrava. A sociedade mineira, mesmo com a possibilidade de enriquecimento trazida
pelo ouro, era uma sociedade assentada na nobiliarquia, no reconhecimento social, no
prestígio exteriorizado, pois assim se enunciava o papel de cada indivíduo na hierarquia.
Vejamos alguns exemplos. O capitão de cavalaria de Ordenança Antônio Alves
Ferreira, era natural do Minho e saindo e sua terra natal em direção a América
portuguesa foi dos primeiros povoadores da região da Zona do Carmo 625. Aí se
estabelecendo procurou ascender a posições sociais de maior destaque buscando
associar-se aqueles elementos que atestariam sua “qualidade social”, tais como ter uma
patente militar626 e o título de cavaleiro da Ordem de Cristo627. Afora isso, buscou
também nas Minas enriquecer com a extração do ouro, no que parece foi bem sucedido,
já que ao falecer deixava a seus herdeiros um patrimônio cujo monte-mor era de
17:623$007628.
Tal patrimônio era composto por terras de cultura com casa de vivenda, paiol,
moinho, engenho, morada de casas, dívidas ativas, alguns animais e um plantel de 58
escravos; além de vários utensílios que evidenciavam sua distinção social como objetos
de ouro e prata, jóias de ouro e diamante, armas, móveis de jacarandá e vestimentas de
seda e linho629. Pelo exposto pode-se dizer que Antônio Alves Ferreira visava com estes
últimos elementos publicizar sua imagem, e assim deixar claro qual seu lugar na
hierarquia social.
624
MELLO E SOUZA, Laura de. Desclassificados do ouro. Rio de Janeiro: Graal, 1982, p.27. Apud.
ALMEIDA, Carla. Homens ricos, homens bons... Op. cit., p.188.
625
Ver: Casa Setecentista de Mariana, 1º ofício – Inventário post-mortem de Antônio Alves Ferreira.
Códice 36, auto 843, (1750).
626
AHU/MG/cx.: 35; doc.: 77.
627
Casa Setecentista de Mariana, 1º ofício – Inventário post-mortem de Antônio Alves Ferreira. Códice 36,
auto 843, (1750).
628
Idem.
629
Ibidem.
178
630
AHU/MG/cx.: 35; doc.: 81.
631
Memorial Histórico-Político da Câmara Municipal de Ouro Preto. Cor & Cor Editorial: Ouro Preto,
Dezembro de 2004.
632
AHU/MG/cx.: 38; doc.: 9.
633
Casa do Pilar de Ouro Preto, 2º ofício – Inventário post-mortem de Mathias Barbosa da Silva. Códice
101, auto 1257, (1742).
634
Lista de registro para cobrança dos quintos reais de Mariana e seu Termo, 1723. Arquivo da Câmara de
Mariana, códice 166.
635
Lista de registro para cobrança dos quintos reais de 1725. Arquivo da Câmara de Mariana, códice 150.
636
FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil... Op., cit.,
p. 344.
179
TABELA 11
Ocupação Freqüência %
Mineração 29 50,87
Negócio 5 8,77
Roceiro 4 7,02
Senhor de engenho 2 3,51
Administrador do contrato 1 1,75
Mineração + roças 5 8,77
Mineração + negócio 2 3,51
Mineração + roças + engenho 7 12,28
Negócio + roças 2 3,51
Total 57 100
Fonte: Inventários post-mortem e testamentos da CSM e CPOP, 1º e 2º ofício. FRANCO, Francisco de
Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo:
Ed. USP, 1989. Lista dos homens mais abastados da capitania feita pelo provedor da fazenda Domingos
Pinheiro. AHU/MG/cx: 70; doc: 41.
Obs.: Foram eliminados desta tabela os inventários para os quais só foi possível considerar o monte-mor.
646
MENEZES, José Newton Coelho. “A terra de quem lavra e semeia: alimento e cotidiano em Minas
colonial”. In: RESENDE. Maria Efigênia Lage de e VILLALTA, Luiz Carlos (Orgs.). História de Minas
Gerais... Op. cit., p. 341-342.
647
A exemplo do que viu ALMEIDA, C. Homens ricos, homens bons... Op. cit., p. 219.
648
Casa Setecentista de Mariana, 2º ofício – Inventário post-mortem de Salvador Fernandes Furtado de
Mendonça. Códice 138, auto 2800, (1725).
649
Idem.
182
fornos, o que denota que diversificava sua produção também a partir do beneficiamento
dos produtos de lavoura com a confecção de farinhas e produtos de cana. Para trabalhar
em todas essas atividades, Salvador Fernandes tinha um plantel de 61 cativos650. Assim,
conjugar a extração mineral com a agricultura parecia ser a opção econômica mais
viável para aqueles que tinham possibilidade de acesso a terra e escravos na comarca de
Vila Rica.
Outra atividade a que os potentados podiam se dedicar e obter enriquecimento
era o negócio. Alguns deles redirecionavam investimentos para a atividade mercantil,
visualizada, por exemplo, nas sociedades, na comercialização de víveres e de gado
vacum. O registro do inventário de bens do já citado capitão-mor Pedro Frazão de Brito,
por exemplo, datado de 1722, denota que era homem abastado651. Além de minerador,
atuara como comerciante de gado, “transportando novilhos de Curitiba – por onde
andou no final do século XVII – para as Minas” 652, atividade que realizara em sociedade
com Luis Pedroso de Barros653. Com o desempenho de tal atividade tornou-se um
homem rico (seu monte-mor fora avaliado em 9:692$400) e um grande senhor de
escravos, possuindo um plantel composto por 55 cabeças654.
Além disso, alguns possuíam sociedades em vários negócios, e alguns poucos
emprestavam dinheiro a juros. Este, ao que parece, era o caso do coronel Matias Barbosa
da Silva. Quando chegou as Minas, no início do século XVIII, dedicou-se um bom tempo à
mineração enriquecendo com tal atividade de forma substancial655. No entanto, analisando
seu inventário percebemos que foi ao longo do tempo se envolvendo com atividades
creditícias que o tornaram um grande credor na região. Tal fato é constatado pela grande
quantidade de dívidas ativas que estavam arroladas em seu inventário, na qual entrava
desde escravos de outros senhores, seu feitor, moradores de outras localidades como São
Paulo e São João Del Rey, sacerdotes; até sargentos-mores capitães-mores e mestres de
650
Ibidem.
651
Casa Setecentista de Mariana, 2º ofício – Inventário post-mortem de Pedro Frazão de Brito. Códice 132,
auto 2658, (1722).
652
Casa Setecentista de Mariana, 2º ofício – Testamento de Pedro Frazão de Brito. Anexo ao inventário,
(1722).
653
Luis Pedroso de Barros também fora um grande sertanista que atuar nas Minas no início do século
XVIII. Retornou após a guerra dos emboabas, em 1709, para sua vila de origem, Parnaíba, onde tinha
residência. Aparentemente comerciou gado vacum até 1726 quando temos informações de que seu
sobrinho trouxe de Mato Grosso um comboio pelo caminho (que ligava São Paulo a barranca do rio
Paraná no Mato Grosso) aberto por Luiz Pedroso. In: FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário
de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil... Op. cit., p. 65.
654
Casa Setecentista de Mariana, 2º ofício – Inventário post-mortem de Pedro Frazão de Brito. Códice 132,
auto 2658, (1722).
655
FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil... Op. cit.,
p. 385.
183
campo. Algumas dessas dívidas foram feitas a juros que variavam de 4% a 6% ao mês.
Além dessas dívidas, foram arrolados também vários penhores, quase todos de jóias de
ouro como cordões, anéis e crucifixos; bem como dívidas referentes a aluguéis de moradas
de casa, pagos ao referido potentado656, indicando assim que o desempenho destas
atividades de negócio eram lucrativas, procuradas e um meio de se obter uma fonte
adicional de ganho.
A ocupação de roceiro também obteve destaque. Levando-se em conta que as
atividades agrárias e a pecuária foram ao longo do século XVIII aumentando cada vez
mais seu dinamismo, não surpreende que alguns potentados revertessem seus
investimentos para tal setor. Por exemplo, ao analisarmos o inventário do sargento-mor
António de Faria Pimentel nos deparamos com uma propriedade rural que possuía
engenho de cana com moendas, outro engenho de mandioca “com sua rodas de ágoa e
prensa, uma olaria de fazer telha, casa de vivenda e senzallas de telha, mandioca que se
achou para desfazerem, quartéis de cana” e criações cavalares e vacum. Havia ainda
vários instrumentos de trabalho que eram utilizados no cultivo e fabrico dos produtos
agrícolas como enxadas, foices, machados, alavancas, serras, alambique, tachos de
engenho, bem como carros de boi e um rodeiro. Para trabalhar em sua propriedade possuía
um plantel de escravos que no momento final de sua vida contava com 34 “peças” 657. A
presença desses carros, tropas e outros instrumentos já seriam indicativos que este
potentado comercializava sua produção. Entretanto, contribui para corroborar essa
afirmação o fato de possuir uma casa de venda junto a sua propriedade na qual certamente
vendia o que produzia658.
Pode-se então dizer que a agricultura de alimentos se configurou como
fundamental alternativa econômica ao lado da mineração e do comércio e que em
muitos casos a própria mão-de-obra existente nas fazendas ou sítios era distribuída no
desempenho dessas funções. A respeito disso nos esclarece Diogo de Mendonça Corte
Real ao dissertar acerca da importância, benefícios e disseminação da agricultura nas
Minas e, conseqüentemente, do emprego da mão-de-obra escrava em tal atividade:
656
Casa do Pila de Ouro Preto, 2º ofício – Inventário post-mortem de Mathias Barbosa da Silva. Códice
101, auto 1257, (1742).
657
O termo “peça” foi usado corriqueiramente no período escravista para designar o escravo. Ver: LIBBY,
Douglas Cole. “As populações escravas das Minas Setecentistas: um balanço preliminar”. In: RESENDE.
Maria Efigênia Lage de e VILLALTA, Luiz Carlos (Orgs.). História de Minas Gerais... Op. cit., p. 407.
E: Casa Setecentista de Mariana, 1º ofício – Inventário post-mortem de Antônio de Faria Pimentel.
Códice 11, auto 384, (1723).
658
Casa Setecentista de Mariana, 1º ofício – Inventário post-mortem de Antônio de Faria Pimentel. Códice
11, auto 384, (1723).
184
Dessa forma, cabe sublinhar que os escravos não ficavam todo o tempo atrelados
ou disponíveis para seus senhores enquanto braço armado. Tal função era acionada em
caso de necessidade e, em tais momentos, o senhor provavelmente escolhia aqueles
mais capazes para desempenhá-la. Talvez optasse por aqueles que tivessem não só
força, idade e capacidade para “pegarem e armas”, mas também aqueles que tivessem
habilidade para tanto, que podia ser proveniente de uma experiência até mesmo anterior
a sua escravização na América; ou proveniente de sua atuação em várias diligências em
que foi levado por tal senhor como braço armado. Em alguns casos esses cativos
ficavam mesmo conhecidos por tais habilidades. Assim como é comum encontrar
nomes de escravos associados ao desempenho de alguns ofícios tais como ferreiro,
cozinheiro, sapateiro, etc. Encontramos também, sobretudo nas listas para cobrança dos
quintos reais, alguns nomes de escravos associados ao desempenho dessas funções
bélicas.
Esta questão será melhor trabalhada na parte dois deste trabalho, mas apenas
para termos uma idéia de como se processava esta associação destaco dois exemplos.
Na listagem dos 62 escravos pertencentes ao sargento-mor António Martins Leça e seu
sócio Manoel Coelho Neto referente a Vila Rica, dos anos de 1718-1723, encontramos
cativos que eram designados como Braz sargento, Lourenço capitão, um soldado Mina e
um escravo alferes662. Levando em conta que o referido potentado atuara em várias
ocasiões com seus escravos armados como o fez, por exemplo, no ano de 1717 quando
“foi mandado a extinguir um ajuntamento de negros que na entrada da Vila Rica
estavão roubando e matando e fazendo outros insultos o que executou levando consigo
40 negros armados e alguns homens brancos a sua custa”663; as habilidades bélicas
desses cativos, que eram inclusive reconhecidas publicamente a ponto de serem
designados com esse caráter militar, devem ter sido de grande ajuda.
Mesmo exemplo temos na listagem de escravos feita pelo guarda-mor
Maximiano de Oliveira Leite e seu sócio o coronel Caetano Álvares Rodrigues Horta.
Em uma lista para cobrança dos quintos reais feita para a freguesia de São Sebastião em
1718 em que declaravam ter 66 cativos, aparece um Pedro Congo capitão 664. E em uma
listagem feita para a mesma freguesia no ano de 1723 entre os 74 escravos declarados
662
Lista de registro para cobrança dos quintos reais de Vila Rica, 1718-1723. Arquivo Público Mineiro,
Coleção Casa dos Contos, códice 1028.
663
ANTT. Chancelaria Régia, João V, Antonio Martins Leça, padrão de tença. Livro 127, p. 237v. Data
20 de setembro de 1725. Grifo meu.
664
Lista de registro para cobrança dos quintos reais de São Sebastião, 1718. Arquivo Público Mineiro,
Coleção Casa dos Contos, códice 1024.
186
****
665
Lista de registro para cobrança dos quintos reais de Mariana e seu Termo, 1723. Arquivo da Câmara de
Mariana, códice 166.
666
AHU/MG/cx.: 86; doc.: 17. Grifo meu.
667
RODRIGUES, José Damião. “A guerra nos Açores”. In: HESPANHA, António Manuel (Org.). Nova
História Militar de Portugal. Vol. II – séculos XVI-XVII... p. cit., p. 252.
668
FRAGOSO, João. À Espera das frotas: micro-história tapuia e a nobreza principal da terra ... Op. cit., p.
73-74.
187
BICALHO, Maria Fernanda. “Conquista, mercês e poder local: a nobreza da terra na América
669
673
PINHEIRO, Cláudio C. “No Governo dos Mundos: escravidão contextos coloniais e administração de
populações”. Estudos Afro-Asiáticos, ano 24, nº. 3, 2002, p. 438.
674
WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. 5º. ed. Rio de Janeiro, Guanabara, 1982, p. 212. Apud:
FRAGOSO, João. À Espera das frotas: micro-história tapuia e a nobreza principal da terra ... Op. cit., p.
52-53.
675
FRAGOSO, João. “A formação da economia colonial no Rio de Janeiro e de sua primeira elite
senhorial (séculos XVI e XVII)” In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria F. & GOUVÊA, Maria de
Fátima (Orgs.). O Antigo Regime nos Tópicos... Op. cit., p. 58.
189
Não é a toa que tais indivíduos procuraram ao longo de suas vidas se utilizarem de
recursos que pudessem embasar suas ações e estratégias em suas buscas por
maximização de ganhos políticos, econômicos e simbólicos. Como analisamos nos
capítulos 1 e 2, dentre estes recursos que coadunavam suas ações e estratégias estavam a
atuação na conquista da terra e, atrelado a isso, circulação em outras localidades do
Império Português; acesso a cargos políticos; posse de milícias privadas de escravos; posse
de patentes militares; acesso a títulos; alfabetização; inserção local via matrimônio ou, em
caso de não fixação desses indivíduos nas Minas, retorno ao Reino. Além disso,
destacamos também o papel e a importância do escravo nas atividades produtivas e/ou
econômicas desempenhadas por estes homens assinalando a figura do escravo produtor
e sua importância para definição do status, riqueza e poder destes indivíduos. Vimos
assim como o escravo, além da posse da terra, se transformava em signo de riqueza e
prestígio social para estes homens, denotando também a existência e importância de seu
cabedal na sustentação de sua “qualidade” social.
Nos três próximos capítulos sublinharemos as relações destes potentados com
seus escravos também como um recurso utilizado por eles em suas ações para
maximizarem interesses, no caso, a fixação de suas identidades como poderosos e
consequentemente a aquisição de poder de mando e legitimidade social. Do ponto de
vista dos escravos tais relações com seus donos também lhes ajudariam a maximizar
ganhos, pois estamos considerando que as estratégias e recursos usados pelos variados
segmentos da sociedade devem ser entendidas a partir de suas visões de mundo, de uma
cultura que é própria a cada um destes setores e do desempenho de certos papéis sociais.
Assim, ao estarem posicionados para o jogo, os atores têm diferentes intenções ao
agirem, o que não anula o fato de que ambos podem tirar proveito de uma determinada
situação. Para os cativos analisados talvez o maior ganho que poderiam conseguir
seriam melhoras nas suas condições de vida visualizadas, como veremos a seguir, a
partir da possibilidade de formação de famílias escravas nos plantéis, da construção de
vantajosas redes de compadrio e do alcance da manumissão.
190
PARTE 2
“Leais vassalos e seu braço armado”: indícios e possibilidades de negociações e
reciprocidades entre senhores e seus escravos
Capítulo 3
A família escrava
de seu poder no território colonial681. Muito se tem dito acerca das redes tecidas intra-
elites visualizadas, por exemplo, em práticas parentais entre suas famílias; constituição
de alianças com frações das elites regionais da América Lusa e com autoridades
metropolitanas – inclusive com as de Lisboa; casamento com negociantes, etc.682.
Porém, continuamos a saber pouco sobre as ligações estabelecidas entre as elites com os
chamados “grupos subalternos”.
Alguns autores já sugeriram a hipótese de estabelecimento de negociações com
estratos subalternos como prática das elites coloniais a fim de formar redes de
reciprocidades e desta forma viabilizar o exercício de sua autoridade. A respeito disso,
João Fragoso, analisando as melhores famílias da terra no Rio de Janeiro seiscentista,
destaca a figura do que denomina “bando” para se entender a atuação das elites em
território colonial. De acordo com este autor, esses bandos resultavam dos embates
entre as facções da elite e, portanto, referiam-se à teia de alianças que elas criavam entre
si e com outros grupos sociais, tendo por objetivo a hegemonia política ou a sua
manutenção. Através destas práticas, as melhores famílias adquiriam algo indispensável
em suas disputas: a cumplicidade de outros estratos sociais. Mais do que isto, a
composição dos bandos legitimava a própria hierarquia estamental. Destaca-se assim
que a reiteração da sociedade implicava na “união do povo”, portanto, na existência de
um bando que tivesse legitimidade social. Nestas condições, as possibilidades junto aos
centros de poder eram ampliadas. Com isto, garantiam-se ações econômicas, políticas,
bélicas e sociais. Estes bandos estavam preocupados, antes de mais nada, em garantir
sua hegemonia sobre a sociedade colonial, o que acabava por aguçar lutas entre bandos
rivais683.
Segundo este autor, as famílias que pretendiam manter seus status de nobreza da
terra tinham de elaborar uma cultura política para tanto, isto é, estratégias que visassem
a manutenção e/ou ampliação de sua posição social684. Tinham de realizar estratégias
que incluíssem alguns itens: poder nas freguesias, negociações com outros estratos
sociais que dessem legitimidade social, redes de alianças que alcançassem os centros de
poder e negociações com os cativos. Neste sentido é que se entende, segundo J.
Fragoso, que os embates intra-nobreza consistiam em um traço estrutural da sociedade
681
FRAGOSO, João. “Afogando em nomes...” Op. cit., p. 46-47.
682
Idem, p. 47.
683
FRAGOSO João “A nobreza vive em bandos: a economia política das melhores famílias da terra do
Rio de Janeiro, século XVII: algumas notas de pesquisa...” Op. cit., p. 9.
684
FRAGOSO, João. “Potentados coloniais e circuitos imperiais: notas sobre uma nobreza da terra,
supracapitanias, no Setecentos...” Op. cit., p. 133.
192
colonial. O bando por ser uma engenharia de negociações com diversos segmentos
sociais, reiterava a sociedade estamental, sendo que, na sua formação, as barganhas com
os escravos eram essenciais. Garantiam legitimidade social à facção, além de os cativos
se constituírem no seu braço armado. Deste modo a reprodução das relações escravistas
se confundia em certos momentos com as disputas pelo domínio da Republica685.
Como visto anteriormente, na colonização da América Portuguesa a Coroa
recorreu em vários momentos as “fazendas e negros armados” de seus súditos, pois, no
ultramar, diante da dificuldade da metrópole em financiar as despesas com entradas,
expansões territoriais e defesa da colônia, não raro se transferiram aos colonos tais
custos que se tornavam assim os maiores responsáveis pela reprodução desta sociedade.
Alguns trabalhos como o de John Monteiro e Muriel Nazzari para São Paulo, João
Fragoso e Maria Fernanda Bicalho para o Rio de Janeiro, Evaldo Cabral de Mello para
Pernambuco e Maria Verônica Campos para Minas Gerais686 assinalam o custeio dos
coloniais nas entradas do sertão, na defesa e povoamento de novos territórios denotando
que muitos valorizavam sua condição de “parceiros” na colonização da América.
Obviamente que não era em todos os momentos que interesses da Coroa e dos
poderosos locais se convergiam, houve momentos em que o conflito entre tais setores se
fez marcadamente presente. A respeito disso, Marco António Silveira analisando a
colonização nas Minas Gerais no século XVIII também destaca a importância das
alianças traçadas entre cativos e elites locais para exercício de seu mando, porém
ressalta uma outra faceta deste fenômeno: evidencia como as estratégias bélicas de tais
elites colocavam em xeque os projetos de soberania do Estado Luso na região. Seu
enfoque está em demonstrar como os conflitos travados entre grupos de elite rivais, para
manutenção de poderes, prejudicaram a prática de inúmeras políticas governamentais na
região das Minas. Sendo mais enfático, Silveira argumenta que tais embates conduziam
constantemente a quebra da autoridade estatal principalmente porque em tais rixas estes
grupos faziam uso de “milícias privadas”, composto sobretudo por escravos687.
685
Idem, p. 138.
686
BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o Império... Op. cit. CAMPOS, Maria verônica. Governo de
Mineiros... Op. cit. FRAGOSO, João. “A nobreza vive em bandos: a economia política das melhores
famílias da terra do Rio de Janeiro, século XVII...” Op. cit. MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro veio... Op.
cit. MELLO, Evaldo Cabral de. A fronda dos mazombos... Op. cit. MONTEIRO, John M. Negros da
Terra. São Paulo: Cia. das Letras, 1994. NAZZARI, Muriel. O desaparecimento do dote... Op. cit., partes
1 e 2.
687
SILVEIRA, Marco Antônio. “Guerra de usurpação, guerra de guerrilhas: conquista e soberania nas
Minas setecentistas”. Vária historia. Belo Horizonte, nº. 25, 2001, p. 134.
193
691
Neste sentido ver a coletânea de artigos do livro de BROWN, Christopher Leslie and MORGAN, Philip
D. (Orgs.). Arming slaves: from classical times to the modern age. Yale University Press, New Have &
London, 2006.
692
Ver: HUNT, Peter. “Arming slaves and Helots in Classical Greece”. In: BROWN, Christopher Leslie
and MORGAN, Philip D. (Orgs.). Arming slaves: from classical times to the modern age... Op. cit., p 14-
39.
693
Ver: ISAACMAN, Allen & PETERSON, Derek. “Making the Chikunda: military slavery and ethnicity
in southern Africa, 1750-1900”. In: In: BROWN, Christopher Leslie and MORGAN, Philip D. (Orgs.).
Arming slaves: from classical times to the modern age... Op. cit., p. 95-119.
195
Esta questão do uso dos escravos armados como bravos guerreiros que podiam
ser utilizados como “vigilantes” particulares, foi muito bem trabalhada por Debra G.
Blumenthal694. Esta autora percebeu que devido à alienação da terra natal e a morte
social dos escravos africanos e mouros trazidos ainda crianças para a Valência do século
XV, eles se tornaram os guarda-costas ideais de seus senhores. Esses escravos eram
então utilizados para cometer vários crimes para seus senhores, que, com intuito de
humilhar seus inimigos brancos, ordenavam os seus “guarda-costas” negros a
ridicularizar, assaltar e agredir seus rivais695.
Segundo David Brion Davis, os imperadores romanos do primeiro século da era
cristão também eram servidos por “guarda-costas” escravos tirados do que é hoje a
Holanda. Como nesse período a disputa de poder estava no auge e a segurança dessas
elites se tornou algo complicado, a utilização de escravos armados como “guarda-
costas” pessoais – sobretudo os escravos de regiões distantes separados de suas famílias
e clãs – se tornou matéria comum696.
Esta realidade também se fez presente nas regiões da península arábica e da
Turquia. Tanto nos exércitos árabes e turcos quanto em milícias particulares era
generalizado o uso de escravos armados. Tais escravos eram conhecidos como
“mamluk” e representavam um tipo altamente distinto de escravidão. Assim como os
chikundas, eram trazidos ainda crianças de regiões distantes como o mar Cáspio e o mar
Negro e eram treinados para serem protetores devotos. Contudo, apesar desses mamluks
serem explorados como soldados que a todo o momento arriscavam suas vidas, essa
instituição peculiar de escravidão mostrava pouca intenção em desumanizar os jovens
guerreiros que eram altamente disciplinados em arte de guerra, principalmente no uso
do arco e flecha e da montaria. Portanto, como eram desprovidos de qualquer identidade
familiar ou tribal esperava-se que eles se unissem uns aos outros e especialmente a um
patrão ou sultão a quem eles deveriam expressar lealdade incondicional697.
694
BLUMENTHAL, Debra G. Implements of labor, instruments of honor: Muslim, eastern and black
African slaves in fifteenth-century Valencia. Ph.D. University of Toronto, 2000, p. 216-221. Apud:
DAVIS, David B. “Introduction”. In: BROWN, Christopher Leslie and MORGAN, Philip D. (Orgs.).
Arming slaves: from classical times to the modern age... Op. cit., p. 4.
695
Idem.
696
DAVIS, David B. “Introduction”. In: BROWN, Christopher Leslie and MORGAN, Philip D. (Orgs.).
Arming slaves: from classical times to the modern age... Op. cit., p. 4.
697
Ver estudo de AMITAI, Reuven. “The Manluk institution, or one thousand years of military slavery in
the Islamic world”. In: BROWN, Christopher Leslie and MORGAN, Philip D. (Orgs.). Arming slaves:
from classical times to the modern age... Op. cit., p. 40-78.
196
Todavia, alguns autores têm demonstrado que era relativamente comum que
senhores armassem seus escravos no Brasil colonial, desde o século XVI até o século
XIX, em diferentes paragens. A respeito disso Carlos Lima destaca como que no
período colonial a Coroa Lusa tirava partido da capacidade dos senhores de mobilizar a
“guerra escrava”. Na verdade, segundo este autor, havia uma aliança entre Coroa e
senhores para que a primeira recorresse à mobilização de escravos para a defesa do
território colonial, ancorada na capacidade senhorial de instrumentalizar os seus cativos.
Neste sentido, assinala como era coisa eminentemente normal o escravo andar sozinho e
armado, até porque muitos eram usualmente envolvidos nos conflitos pessoais de seus
senhores706. De acordo com este autor tal prática instituía ainda percursos valorizados
positivamente no interior da comunidade escrava que vem sendo apresentada, por
alguns autores, como hierarquizada internamente707. O que se defende aqui é a
concepção de que a capacidade escrava de matar, quando instrumentalizada por
senhores, também encaminha-nos para a compreensão das práticas que moldavam a
dominação escravista na América portuguesa708.
Já Hendrik Kraay, outro estudioso do tema, destaca que a historiografia
brasileira está repleta de exemplos de uso de escravos em milícias, públicas e privadas.
Estudando a capitania de Minas Gerais no século XVIII, este autor observou que ao fato
705
DAVIS, David B. “Introduction”. In: BROWN, Christopher Leslie and MORGAN, Philip D. (Orgs.).
Arming slaves: from classical times to the modern age... Op. cit., p. 7.
706
LIMA, Carlos A. M. “Escravos de Peleja: a instrumentalização da violência escrava na América
portuguesa (1580-1850)”... Op. cit., p. 149.
707
Neste sentido ver: ENGEMANN, Carlos. “Da comunidade escrava: Rio de Janeiro, séculos XVII-
XIX”. In: FLORENTINO, Manolo (Org.). Tráfico, cativeiro e liberdade... Op.cit. KARASCH, Mary C. A
vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850)... Op. cit.
708
LIMA, Carlos A. M. “Escravos de Peleja: a instrumentalização da violência escrava na América
portuguesa (1580-1850)...” Op. cit., p. 149.
199
dos senhores armarem seus próprios escravos se tornou rotina nas fronteiras e durante o
período do boom da mineração. Isso acontecia segundo o autor, tanto para a proteção
dos senhores, quanto em momentos em que os mesmos cometiam desmandos e
violências, praticando crimes com a ajuda desses escravos armados, sendo tais ações
uma extensão dos serviços que os escravos deviam prestar a seus donos709. Para Kraay o
uso de negros armados desde o início do século XVI até início do XIX no continente
americano não impediu o desenvolvimento de enormes sistemas de plantation do Brasil
até o vale do Mississipi. Na verdade, para os escravos o serviço militar, “formal” ou
pessoal, ofereceu uma bem vinda válvula de escape contra a miséria e a degradação do
trabalho nessas plantations. A esperança de uma promessa de liberdade juntamente com
uma mudança de status daí advinda poderia trazer a possibilidade de mobilidade,
dignidade e prestígio710.
Eduardo França Paiva também destaca que escravos armados, apesar de ter sido
algo que as autoridades coloniais temiam fortemente e proibiam, foi uma situação
relativamente comum na América Portuguesa. Para o caso de Minas Gerais assinala que
durante as primeiras décadas de ocupação das terras mineradoras isso se repetiu com
freqüência, não deixando de fomentar violências e desmandos da parte dos proprietários
que haviam montado suas milícias escravas e por parte dos próprios escravos armados.
Segundo o autor, até mesmo a Coroa acabou incorporando tal prática, montando tropas
de escravos armados e, também, os convocando entre os proprietários leais ao
governo711. Essas dimensões, na verdade, se misturavam no cotidiano das áreas de
mineração e de comércio, assim como nos caminhos das Minas Gerais, durante as
primeiras décadas de ocupação712, pois o uso de negros e suas técnicas militares eram
essenciais em muitas tarefas administrativas/militares.
Levando em consideração a questão da “doutrina da necessidade” e o argumento
de Peter Hunt de que os escravos armados se tornaram para seus senhores uma força
poderosa e indispensável especialmente em momentos críticos de estado de guerra,
pode-se argumentar que também em Minas Gerais tais premissas se faziam presentes.
709
KRAAY, Hendrik. “Arming slaves in Brazil from the seventeenth century to the nineteenth century”.
In: BROWN, Christopher Leslie and MORGAN, Philip D. (Orgs.). Arming slaves: from classical times
to the modern age... Op. cit., p. 147.
710
KRAAY, Hendrik. “Arming slaves in Brazil from the seventeenth century to the nineteenth century”.
In: BROWN, Christopher Leslie and MORGAN, Philip D. (Orgs.). Arming slaves: from classical times
to the modern age... Op. cit., p. 146-179.
711
PAIVA, Eduardo França. “De corpo fechado: o gênero masculino, milícias e trânsito de culturas entre a
África dos mandingas e as Minas Gerais da América, no início do século XVIII”. In: LIBBY, Douglas
Cole & FURTADO, Júnia F. Trabalho livre, trabalho escravo... Op. cit., p. 118.
712
Idem, p. 11.
200
Como indicado no capítulo1, Minas Gerais era uma região de fronteira cuja definição e
organização se dava por meio das “entradas”. A própria idéia de conquista desse
território fornece um caráter bélico para sua efetivação e, neste sentido, resgata a noção
de “guerra” iminente entre os diferentes potentados que para aí se dirigiam com intuito
de alcançar poder e riqueza. Neste cenário de expectativas, mas também de grande
instabilidade, os escravos armados seriam fundamentais em um momento crítico de
adentrar o sertão e disputar com outros poderosos o ouro, a organização política do
território e as mercês do Rei.
Além disso, talvez pela habilidade em sobreviver em condições inóspitas e pelo
domínio de táticas de combate que muitas vezes aprendiam nas suas terras natais, o uso
de escravos armados era visto como essencial para aqueles senhores que almejassem ter
não só capangas particulares para os protegerem de inimigos, mas também para utilizá-
los nos serviços de El Rey. Sugerimos anteriormente que os portugueses já haviam tido
uma experiência de utilização de negros e suas técnicas militares na África. O resultado
desta aprendizagem foi o surgimento de uma nova arte de guerra que combinava armas
e estratégias européias e africanas713. De fato, era prática comum em várias localidades
do continente africano não só a utilização de cativos como soldados, experiência que
depois seguiu para o contexto europeu e americano714; mas também a aprendizagem por
parte dos negros de técnicas de guerrilha. Estas englobavam o uso de arcos e flechas,
antigas espadas espanholas, escudos redondos e armas de fogo e que, provavelmente,
foram utilizadas pelos escravos, também nas Américas, nos conflitos em que eram
levados como braço armado715.
Para termos uma idéia de como tais táticas de guerrilha poderiam estar presentes
no contexto analisado pela pesquisa citamos um relato da “Relação do princípio do
descoberto destas Minas Gerais e os sucessos de algumas coisas mais memoráveis que
sucederam do seu princípio até o tempo em que as veio governar o Excelentíssimo
Senhor dom Brás da Silveira” referente a Guerra do Emboabas. Nele fica explícito
muitos elementos que compunham essa maneira de “guerrear” característica dos índios
e negros e que foram incorporados pelos colonos em variadas situações de conflito:
713
THORNTON, John K. “The art of war in Angola 1575-1680”. Comparative Studies in Society and
History, 30 (2):361, 1998. Apud: PUNTONI, Pedro. A guerra dos bárbaros... Op. cit., p. 190.
714
MATTOS, Hebe. “Henrique Dias: expansão e limites da justiça distributiva no Império Português”. In:
VAINFAS, Ronaldo, SANTOS, Georgina Silva dos & NEVES, Guilherme Pereira das (Orgs.). Retratos
do Império... Op. cit., p. 34.
715
THORTNTON, John K. A África e os africanos na formação do mundo Atlântico (1400-1800). Rio de
Janeiro: Elsevier, 2004, p. 363.
201
“Chegou este aviso em seis dias, e logo os moradores do Rio das Mortes se
começaram a fortificar fazendo uma fortaleza de pau-a-pique com seu fosso
de terra, e se recolheram a ela os moradores, que estes só tinham trezentas e
tantas armas. E dentro de poucos dias chegou o exército dos paulistas e
puseram cerco à fortaleza; e os dela se defendiam com tiros que descarregavam
que poucos ofendiam, por ficarem longe os cercados. E faziam os paulistas
amparo de uma igreja que estava perto da fortaleza. E os reinóis, como
estavam a peito coberto dentro da dita fortaleza, lhes não faziam mal as balas,
e alguns tiros empregavam em algum do cerco que se achava a tiro descoberto.
E antes do dito exército chegar à dita fortaleza, despediram os reinóis do Rio
das Mortes ao Ouro Preto pedindo socorro para impedirem o passo ao exército,
que traziam os paulistas, que se dizia se compunha de sete mil e tantas armas e
muitos índios de arcos. E com este aviso saíram os moradores do Ouro Preto e
Ribeirão para os Campos da Cachoeira, não ficando pessoa alguma, e logo
fizeram fortaleza para se defenderem e chegaram a tempo que os paulistas
tinham chegado havia 3 ou 4 dias e achando-se os reinóis faltos de água dentro
da fortaleza, fizeram conselho a que no dia seguinte sairiam fora todos da
fortaleza os que achassem capazes de arma e espada para fazerem alargar o
dito cerco e se poderem prover de água; (...) e o mesmo conselho sucedeu
fazerem os cabos paulistas a que, no dia seguinte de manhã, darem assalto à
fortaleza e se aproximarem dela antes que chegasse o socorro que esperavam
os reinóis da Gerais”716.
Pelo relato nota-se que a força bélica indígena se fazia presente no conflito e era
aproveitada, sobretudo, pelos paulistas. Isso os fortalecia na luta contra os “forasteiros”
pela defesa de seu espaço na região das Minas durante a Guerra dos Emboabas. O poder
de atuação destes indivíduos dependia também do uso das armas de origem européia.
Nas longas viagens enfrentadas pelos sertanistas as armas de fogo e algumas armas
brancas, como espadas, espadins e punhais, compunham as forças do grupo, juntamente
com o uso das técnicas nativas717. Estas, além dos indígenas, podem ser atreladas
também aos negros. A própria idéia de “capazes de arma e espada” mencionada no
relato nos sugere a presença e o reconhecimento de habilidades e experiências
guerreiras dos negros no uso de tais armas provenientes da África com as quais já
poderiam ter tido contato. Por mais valorizado que fosse o braço escravo para trabalhos
nas minas ou no campo o talento guerreiro, aprendido ainda na África, de alguns dos
716
“Relação do princípio do descoberto destas Minas Gerais e os sucessos de algumas coisas mais
memoráveis que sucederam do seu princípio até o tempo em que as veio governar o Excelentíssimo
Senhor dom Brás da Silveira”. RAPOSO, Luciano & CAMPOS, Maria Verônica. Códice Costa Matoso...
Op. cit., p. 201. Grifos meus.
717
SALES, Izabella Fátima Oliveira de. Difusão, status social e controle de armas na Mariana
Setecentista (1707-1736). Juiz de Fora: UFJF, 2009. Dissertação de Mestrado, p. 56-59.
202
escravizados talvez os qualificassem mais para serem cedidos para a guerra do que para
os trabalhos braçais718.
Portanto, fica explícito mais uma vez a necessidade que a Coroa portuguesa
tinha de contar com seus vassalos e escravos armados para a realização do projeto
colonizador e para manter o mando metropolitano nas diversas regiões, daí o dever
desses indivíduos em portar armas e de armar seus escravos para tanto 719. Por isso,
principalmente durante os primeiros anos de ocupação das minas, o uso de armas pelos
colonos era indiscriminado. Em 1750 um autor anônimo, por ordem do ouvidor Costa
Matoso, relembrava o início da ocupação de Minas Gerais afirmando que, nas Minas,
“o ouro era aos montes, mas também as mortes a chumbo eram muitas, todos os
dias720. Tal situação pode ser compreendida se levarmos em consideração o fato desses
instrumentos, apesar de apresentarem muitos inconvenientes na sua utilização,
ocuparem um lugar importante durante o desbravamento do sertão e no processo de
definição das hierarquias sociais721. As armas mais utilizadas nas Minas setecentistas
por “militares, nobres e senhores” eram as espingardas a pederneira e as pistolas. Em
contrapartida, as armas brancas – faca, punhal, adaga, espadim, bordões, estoques e
sovetas – estariam mais presentes no cotidiano das camadas populares.722
Todavia, cabe sublinhar que esta questão do armamento dos escravos era muito
polêmica. Ao longo do Setecentos vários bandos, ordens e cartas régias foram emitidos
proibindo aos cativos negros e mulatos o uso de todo tipo de armas, particularmente as
de fogo, embora sem muito sucesso723. De fato, as leis constituíam letra morta no
contexto social da colônia, pois o descumprimento a essas regras era freqüente.
Segundo Liana Reis essa característica seria conseqüência das redes relacionais
estabelecidas entre os colonos, na medida em que viabilizavam o acesso e o uso das
armas. Um exemplo seria a relação estabelecida entre quilombolas e determinados
grupos sociais, especialmente os donos de tabernas e vendas. Muitos comerciantes
718
MATTOS, Hebe. “Henrique Dias: expansão e limites da justiça distributiva no Império Português”. In:
VAINFAS, Ronaldo, SANTOS, Georgina Silva dos & NEVES, Guilherme Pereira das (Orgs.). Retratos
do Império... Op. cit., p. 34.
719
SALES, Izabella Fátima Oliveira de. Difusão, status social e controle de armas na Mariana
Setecentista (1707-1736)... Op. cit., p.190.
720
“Notícias do que ouvi dizer sobre o princípio dessas Minas”. RAPOSO, Luciano & CAMPOS, Maria
Verônica. Códice Costa Matoso... Op. cit., p. 219.
721
SALES, Izabella Fátima Oliveira de. Difusão, status social e controle de armas na Mariana
Setecentista (1707-1736)... Op. cit., p. 31-33.
722
REIS, Liana Maria. “Minas Armadas: Escravos, armas e política de desarmamento na capitania mineira
setecentista”. Varia Historia. Revista de História do Departamento da UFMG, n.o 31, 2004, p.197.
723
REIS, Liana Maria. “Criminalidade escrava nas Minas Gerais Setecentistas”. In: RESENDE. Maria
Efigênia Lage de e VILLALTA, Luiz Carlos (Orgs.). História de Minas Gerais... Op. cit., p. 478.
203
acobertavam a fuga dos cativos e forneciam a eles mercadorias, que incluíam armas e
pólvora. Esse posicionamento garantia o acesso dos quilombolas aos gêneros
necessários à sua sobrevivência e ao mesmo tempo se constituía em uma fonte de lucro
para os homens de negócio. Além disso, segundo a autora, essa relação marcaria a
opção da sociedade em estabelecer uma convivência com aqueles que fugiam do
cativeiro724.
Assim, vários eram os perigos que podiam advir do armamento dos escravos tais
como fugas, formação de quilombos, rebeliões, aquisição de experiência militar,
conhecimento de armas725. Ademais, é importante considerar também que a presença de
escravos armados podia afetar as relações entre senhores e escravos, possivelmente
oferecendo maior poder de barganha e negociação a uma parte da população que
permaneceu no cativeiro726. Não por acaso, nas ordenações, leis extravagantes, cartas
régias e determinações expedidas pelas autoridades locais existiam constantes menções
à proibição do porte de armas por parte dos escravos, à repressão aos quilombos, à
proibição de ajuda aos fugitivos, assim como indicação das medidas que deveriam ser
tomadas quanto aos roubos, brigas e assassinatos praticados pelos cativos. Na verdade,
em Minas Gerais, grande parte dos documentos referentes à legislação das armas
voltava-se para a questão da escravidão. As autoridades e colonos temiam que portando
armas, os cativos tivessem mais força para se rebelar contra o domínio escravista 727. São
vários os exemplos desta legislação que nos sugere tal fato. Temos por exemplo, a
ordem régia datada de 28 de março de 1714 aprovando um bando lançado pelo
governador das Minas e São Paulo D. Brás Baltasar da Silveira no qual ficou estipulado
a proibição do uso indiscriminado de armas de fogo. O uso destas só seria permitido aos
principais, quando fossem às suas fazendas ou a qualquer outra diligência, mas não aos
seus escravos. Dom João justificou que a proibição era conveniente, porque os cativos
eram os “maiores provocadores de insultos”728.
Em 29 de dezembro de 1717, o governador Conde de Assumar publicou um
724
Idem, p.196
725
LANDERS, Jane. “Transforming bondsmen into vassals: arming slaves in colonial Spanish America”.
In: BROWN, Christopher Leslie and MORGAN, Philip D. (Orgs.). Arming slaves: from classical times
to the modern age... Op. cit., p. 133.
726
MOREIRA, Vânia Maria Losada. “Entre índios ferozes e negros do mato: antinomias da construção da
ordem nos sertões do Espírito Santo durante a primeira metade do século XIX”. Anais do XXIV Simpósio
Nacional de História, São Leopoldo, Rio Grande do Sul, julho de 2007, p. 15.
727
SALES, Izabella Fátima Oliveira de. Difusão, status social e controle de armas na Mariana
Setecentista (1707-1736)... Op. cit., p. 34.
728
APM, Livro (1), 1709 – 1721, fl. 21v. Apud: SALES, Izabella Fátima Oliveira de. Difusão, status
social e controle de armas na Mariana Setecentista (1707-1736)... Op. cit., p. 34.
204
bando proibindo “os mineiros de juntar armas e trazê-las sem ordem sua”; do contrário
os infratores teriam suas fazendas seqüestradas; e que nenhum negro, mulato, carijó ou
bastardo poderia portar armas nem bastões, sob pena de serem açoitados pelas vias
públicas729. Nesse mesmo ano, regulamentou que o uso de armas (inclusive bastões ou
paus guarnecidos de castões de metal, ou paus agudos, porretes e machadinhas) por
negros, mulatos, bastardos ou carijós continuava proibido, mas os negros que
estivessem acompanhados de seus senhores poderiam conduzir armas lícitas e não
proibidas por lei730. Por fim destaco um bando datado de 24 de março de 1719,
publicado na Vila do Carmo, proibindo o porte de armas, de qualquer espécie, aos
negros, mulatos cativos ou forros731. Tal bando negou ainda o direito dos senhores de
armarem seus cativos. Também foi vetada a venda de pistolas, clavinas, espingardas,
bacamartes, punhais, espadas, adagas e pólvora. Apesar de todo este aparato legal, a
constante reedição dos bandos e o reforço que as autoridades aplicavam em relação a
algumas leis seria um indício de que as regras em relação ao porte de armas não
estavam sendo cumpridas pela sociedade732.
A descrição desta legislação proibitiva teve como propósito alertar que não
podemos deixar de levar em consideração os riscos de se armar um escravo, isto é, as
vezes em que tal fenômeno escapava ao controle do senhor, mesmo com todas as
tentativas de negociações e reciprocidades por detrás dessa atitude. Não por acaso, e em
conformidade com os dados de Carlos Magno Guimarães sobre a existência de
quilombos em Minas Gerais, o primeiro deles surgiu em 1711, ou seja, logo após o fim
da Guerra dos Emboabas. Levando em conta que ao guerrearem entre si os senhores que
participaram do referido conflito armaram seus respectivos escravos, possivelmente
tiveram depois de enfrentar a rebeldia negra, denotando assim que nem sempre essas
tentativas de interações ente ambos pautadas nas concessões, barganhas, confiança,
ética pessoal, foram bem sucedidas, assunto que será melhor trabalhado na parte 3 desse
trabalho.
Mas apesar dos riscos os senhores precisavam munir seus negros de facas,
facões, paus e até mesmo armas de fogo para que esses realizassem diversos tipos de
trabalhos, como as diligências em que prestavam serviços ao Monarca, para sua
729
RAPOSO, Luciano & CAMPOS, Maria Verônica. Códice Costa Matoso... Op. cit., p. 336.
730
SALES, Izabella Fátima Oliveira de. Difusão, status social e controle de armas na Mariana
Setecentista (1707-1736)... Op. cit., p. 35.
731
Idem.
732
Idem, p. 37.
205
733
RAMOS, Donald. “O Quilombo e o Sistema escravista em Minas Gerais no Século XVIII”. In: REIS,
João José e GOMES, Flávio dos Santos (Orgs.). Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil.
São Paulo: Cia das Letras, 1997, p.185.
734
RAPM, Vol. I, ano XVI, 1911. Belo Horizonte, Imprensa Oficial de Minas Gerais, título 22, p. 461.
206
Coroa contava com o poderio bélico de seus vassalos. Estes, ao atuarem na conquista do
território mineiro e em momentos de distúrbios que poderiam colocar em risco a ordem
estabelecida, tinham na força, na posse de armas e na utilização de seus escravos como
braço armado um elemento fundamental para a definição de seu poder e para a
manutenção dos interesses imperiais e, neste sentido, uma peça essencial no processo de
negociação com a Coroa pela busca de privilégios735.
Além do aspecto defensivo, possuir determinadas armas e o andar armado
servia, como sugerido acima, para distinguir e alardear a posição social dos indivíduos.
Em uma ordem do governador da Capitania D. Lourenço de Almeida datada dia 05 de
fevereiro de 1722 tal argumento se ratifica, pois:
práticas entre os dois grupos em questão? Em outros termos, se estes “leais súditos”
prestavam variados serviços ao Rei à custa de seus negros armados – e como visto isto
era essencial para o exercício do mando e manutenção da “qualidade” desses
indivíduos, ou seja, na sua definição como poderoso – não é incorreto dizer que a
“subordinação” destes negros não podia ser feita apenas pela via coerção, armas e
castigos. Tal “subordinação” envolvia também negociações e reciprocidades738, ou,
como bem destacou Carlos Lima, do ponto de vista do escravo, deve ter envolvido algo
centrado na possibilidade de barganhar as condições do cativeiro739. Segundo esta linha
de análise, estamos considerando que rebelião e o aquilombamento não foram os únicos
meios tomados pelos escravos a fim de reagir e sobreviver na sociedade escravista 740.
Assim, talvez possamos argumentar que entre seres humanos não há controles absolutos
e coisificações de pessoas, e que nas relações de dominação os dominantes não anulam
os dominados, ainda que possa haver um grande desequilíbrio de forças entre os dois
lados741. Nesta discussão, podemos recorrer, por um lado, a historiografia revisionista
sobre escravidão e, por outro, aos recentes trabalhos sobre política e administração no
Brasil colonial.
Recentemente Sílvia Lara destacou a importância de se fazer uma aproximação
entre os estudos da escravidão e aqueles do período colonial, indagando sobre o modo
como a escravidão e o Antigo Regime estiveram ligados e conviveram na América
Portuguesa742. Segundo a autora:
“Precisamos ir além das relações entre nobreza e rei, entre cabeça e membros
do corpo político, para lidar também com aqueles que eram considerados
excluídos da política, (...) principalmente se levarmos em conta que a maior
parte da população do período colonial era constituída de africanos e seus
descendentes743”.
738
FRAGOSO, João. “A formação da economia colonial no Rio de Janeiro e de sua primeira elite
senhorial...” Op. cit., p. 58.
739
LIMA, Carlos A. M. “Escravos de Peleja: a instrumentalização da violência escrava na América
portuguesa (1580-1850)...” Op. cit., p. 139.
740
ENGEMANN, Carlos. “Da comunidade escrava: Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX...” Op. cit., p. 173-
174.
741
BICALHO, Maria Fernanda. “Pacto colonial, autoridades negociadas e o Império Ultramarino
Português”. In: SOIHET, Raquel; BICALHO, Maria Fernanda e GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.).
Culturas políticas: ensaios de história cultural, história política e ensino de história. Rio de Janeiro:
Mauad, 2005, p. 98.
742
LARA, Sílvia Hunold. “Conectando historiografias: escravidão africana e o Antigo Regime na América
portuguesa”. In: BICALHO, Maria Fernanda & FERLINI, Vera Lúcia Amaral. Modos de governar:
idéias e práticas políticas no Império Português... Op. cit., p. 37-38.
743
Idem, p. 34-36.
208
744
Para exemplos da historiografia norte-americana ver: GENOVESE, Eugene. A terra prometida: o
mundo que os escravos criaram. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. SCOTT, Rebeca J. Emancipação
escrava em Cuba: a transição para o trabalho livre – 1860-1899. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial – 1550-1835. São
Paulo: Cia. das Letras, 1988. KLEIN, Herbert S. A escravidão africana: América Latina e Caribe. São
Paulo: Brasiliense, 1987. RUSSELL-WOOD, A.J.R. Escravos e libertos no Brasil colonial. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. Para exemplos da historiografia brasileira na década de 80 ver:
LARA, Sílvia H. Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro – 1750-1808.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. REIS, João José & SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a
resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Cia. das Letras, 1989. MATTOSO, Kátia Queirós. Ser
escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988. MATTOS, Hebe M. Das cores do silêncio: os
significados da liberdade no sudeste escravista – Brasil séc. XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional,
1995. Para exemplos da década de 90 ver: CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade. São Paulo: Cia.
das Letras, 1992. PAIVA, Eduardo França. Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII:
estratégias de resistência através dos testamentos. São Paulo: Annablume, 1995. GÓES, José Roberto &
FLORENTINO, Manolo. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro c.1790
– c.1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. SLENES, Robert. Na senzala uma flor. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1999. SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor: identidade étnica,
religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
745
PAIVA, Eduardo França. Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII... Op. cit., p. 48.
209
não era acessível a todos746. De qualquer forma, esta historiografia tem ressaltado a
importância de se revisar a polaridade entre liberdade X escravidão visto que entre estes
dois pólos havia outras formas de vivência do ser escravo747.
Como bem lembrou C. Hasenbalg o uso de incentivos como instrumento de
controle social e como forma de obter “consentimentos” dos escravos desempenhou
papel inegável na reprodução das relações escravistas. A aceitação pelos cativos de
pequenas recompensas materiais e certas oportunidades sociais abriu possibilidades para
melhores, embora limitadas, condições de vida748. Desta forma, a violência do senhor
convivia com outros mecanismos compensatórios para aliviar a tensão que ela própria
exercia sobre o cativeiro749. Neste sentido, pode-se argumentar, como já mencionado,
que o exercício da autoridade sobre o cativo era, muitas vezes, de natureza pessoal750.
Destas relações pessoais emergiam, por um lado, as condições necessárias para a
construção de referências que permitissem a caracterização de um senhor “legítimo”
perante seus escravos, a ponto de armá-los sem temores de retaliações; e por outro,
faziam surgir espaços sociais de ação dos escravos751 que ordenavam as relações e
tornavam o viver menos difícil e sofrido752.
Chegamos assim ao ponto central do trabalho. Nesta parte da tese
investigaremos como as interdependências entre potentados e seus escravos se
configuravam, ou seja, no que se baseava e como ocorria na prática as negociações e
reciprocidades entre os dois grupos que possibilitavam aos senhores pôr armas nas mãos
de seus cativos, evidenciando também que tipos de benefícios e ganhos os indivíduos
em foco podiam adquirir com estas interações. Sublinharemos as relações destes
potentados com seus escravos como um recurso utilizado por ambos em suas ações para
maximizarem interesses. No caso dos potentados a tentativa se voltava para a fixação de
suas identidades como poderosos e conseqüentemente a aquisição de poder de mando e
legitimidade social. Já para os cativos talvez o maior ganho que poderiam conseguir
seriam melhoras nas suas condições de vida visualizadas a partir da possibilidade de
746
FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 291.
747
Neste sentido ver: FLORENTINO, Manolo (Org.). Tráfico, cativeiro e liberdade... Op. cit.
748
Idem, p. 48.
749
ENGEMANN, Carlos. “Da comunidade escrava: Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX...” Op. cit., p. 189.
750
FERREIRA, Roberto Guedes. “Autonomia escrava e (des)governo senhorial na cidade do Rio de
Janeiro da primeira metade do século XIX... Op. cit., p. 249.
751
ENGEMANN, Carlos. “Da comunidade escrava: Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX...” Op. cit., p. 189.
752
FLORENTINO, Manolo. “Sobre minas, crioulos e a liberdade costumeira no Rio de Janeiro, 1789-
1871” In: FLORENTINO, Manolo (Org.). Tráfico, cativeiro e liberdade... Op. cit., p. 350.
210
753
Para o século XVIII ver: FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento... Op. cit. Para o século
XIX ver: GÒES, José Roberto. O cativeiro imperfeito. Um estudo sobre a escravidão no Rio de Janeiro da
primeira metade do século XIX. Vitória: Lineart, 1993; GÒES, José Roberto & FLORENTINO, Manolo.
A paz das senzalas... Op. cit.; MOTTA, José Flávio. Corpos escravos, vontades livres: posse de cativos e
família escrava em Bananal (1801-1829). São Paulo: Annablume, 1999.
754
BOTELHO, Tarcísio. “Família e escravidão em uma perspectiva demográfica: Minas Gerais (Brasil),
século XVIII”. In: LIBBY, Douglas Cole & FURTADO, Júnia F (Orgs.). Trabalho livre, trabalho
escravo: Brasil e Europa, séculos XVIII e XIX. Op. cit., p. 196.
755
GÓES, José Roberto & FLORENTINO, Manolo. A paz das senzalas. Op. cit.
756
Idem, p. 175.
211
solidariedade comunitária. Tais disputas acabavam por minar o domínio total dos
senhores escravistas757.
Carlos Engemann também destacou o grande peso que a família adquiriu no
fortalecimento da comunidade escrava (entendida por ele como grandes plantéis que
compartilhavam mito, rito e parentesco). Segundo o referido autor a formação de
parentes pode ser considerada uma estratégia dos escravos para fortalecer o grupo na
medida em que através da constituição de famílias se perpetuariam no tempo e
produziriam aliados758.
Os estudos citados alertam sobre a existência de acordos, negociações e
reciprocidades na relação senhor/escravo, denotando que o sistema escravista se
sustentava também sobre uma base de conciliação e busca por estabilidade social. Para
além disso, eles nos informam sobre os possíveis conteúdos que poderiam ser
negociados nas interações feitas entre os poderosos da localidade e seus escravos na
região e período enfocados. Em outros termos, estas barganhas ou negociações que
ajudavam ao senhor a ter maiores chances de estabelecer uma relação de confiança com
seu escravo a ponto de armá-lo, poderiam se traduzir na formação de famílias escravas
estáveis nos plantéis; em terrenos e equipamentos cedidos pelos senhores; em alforrias;
em redes parentais fictícias759; em melhoras nas circunstâncias de vida evidenciadas
pelo aumento da expectativa de vida, do bem-estar material, em funções desempenhadas
pelos escravos, moradia, melhores condições de trabalho e saúde, etc. Em estudo
recente sobre o tema J. Fragoso destacou que estes fenômenos podem ser interpretados
de diversos modos: conquista dos escravos retiradas de seus donos, estratagemas
senhoriais para evitar problemas nas senzalas, recompensa senhorial pela subserviência
de frações da população cativa, etc. Contudo, seja qual for à razão alegada, o fato era a
presença destes fenômenos no cotidiano escravista760.
Neste capítulo iremos analisar como e porque a família escrava pode ser vista
como um dos mecanismos que poderiam ser utilizados nas negociações e reciprocidades
dos potentados com seus escravos. Para referendar a argumentação traçaremos um
757
FILHO, Afonso de Alencastro Graça, PINTO, Fábio Carlos Vieira & MALAQUIAS, Carlos de
Oliveira. “Famílias escravas em Minas Gerais nos inventários e registros de casamento: o caso de São
José do Rio das Mortes, 1743-1850”. Varia Historia. Revista de História do Departamento da UFMG,
Belo Horizonte, vol. 23, nº. 37, p. 185-186, Jan/Jun 2007.
758
ENGEMANN, Carlos. “Da comunidade escrava: Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX...”. Op. cit., p. 182.
759
FRAGOSO, João. “Potentados coloniais e circuitos imperiais: notas sobre uma nobreza da terra,
supracapitanias, no Setecentos”. In: MONTEIRO, Nuno G. CARDIM, Pedro & CUNHA, Mafalda Soares
da (Orgs.). Optima Pars – elites ibero-americanas do Antigo Regime. Lisboa, ISC – Imprensa de Ciências
Sociais, 2005, p. 137.
760
Idem.
212
761
Inventários post-mortem da Casa Setecentista de Mariana e do Arquivo Histórico do Museu da
Inconfidência/ Casa do Pilar de Ouro Preto. Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana, registros
de casamento e batismos de Mariana e seu termo. Arquivo da Casa dos Contos, registros de casamento e
batismos de Ouro Preto e seu termo.
762
GÒES, José Roberto & FLORENTINO, Manolo. A paz das senzalas... Op. cit., p. 92.
763
MOTTA, José Flávio. Corpos escravos, vontades livres: posse de cativos e família escrava em Bananal
(1801-1829)... Op. cit., p. 229.
764
BOTELHO, Tarcísio. “Família e escravidão em uma perspectiva demográfica: Minas Gerais (Brasil),
século XVIII”. In: LIBBY, Douglas Cole & FURTADO, Júnia F (Orgs.). Trabalho livre, trabalho
escravo: Brasil e Europa, séculos XVIII e XIX... Op. cit., p. 196.
213
TABELA 12
Percentual de homens e mulheres escravos aparentados nos plantéis dos
potentados locais encontrados nos inventários post-mortem (para os quais temos
informações)
foi impedimento para formação de núcleos familiares. Além disso, nota-se também que
o fato do plantel ser grande (mais de 30 escravos) ou mediano (de 10 a 29 escravos767)
não era fator decisivo para a formação dessas famílias, visto que variou bastante o
tamanho da escravaria nesta porcentagem de alta incidência familiar cativa que ora
consideramos. Obviamente que o número de escravos aparentados em um plantel
grande seria muito maior se comparado com um plantel pequeno, mesmo que
proporcionalmente na comparação o plantel menor se destacasse. Como no caso dos
plantéis de Paulo Rodrigues Durão e Manuel Dias.
O sargento-mor Paulo Rodrigues Durão, falecido no Inficcionado em 1743, era
um grande proprietário de cativos e possuía, segundo seu inventário, 129 escravos.
Neste plantel o desequilíbrio sexual era alto e talvez por isso pouco mais de 10% de sua
escravaria se unia por relações de parentesco, desconsiderando aqui as uniões ilícitas
que não apareceram na descrição do inventário768. Já Manuel Dias faleceu no ano de
1720 e possuía no fim de sua vida 12 escravos. Destes, cinco estavam aparentados,
sendo todos de uma mesma família. No caso era a família do casal de escravos Manoel
Congo de 45 anos e Mariana Luanda de 35 anos que tinham três filhos, Antonio de 9
anos, Izabel de 6 anos e Ignácio de 3 anos769. Proporcionalmente o plantel de Manuel
Dias tinha muito mais escravos aparentados (quase a metade) do que o de Paulo
Rodrigues Durão, mesmo tendo um alto desequilíbrio sexual (Mariana era a única
escrava existente em seu plantel à época da abertura de seu inventário). Mas
comparativamente o plantel de Paulo Rodrigues Durão tinha mais arranjos, quatro no
total, sendo uma família nuclear (onde convivam pai, mãe e filhos); uma marital
(arranjos de casais cativos que não possuíam filhos, ou que pelo menos não foram
mencionados como morando com eles) e duas matrifocais (onde as crianças escravas
cresciam somente com a presença da mãe), que ligavam 14 escravos deste plantel em
relações de parentesco.
767
Vale lembrar que para estabelecer tais parâmetros recorremos ao modelo as faixas de posses de
escravarias trabalhadas por Douglas Libby e Clotilde Paiva. PAIVA, Clotilde Andrade. População e
economia nas Minas Gerais do século XIX. São Paulo: FFLCH/USP, 1996. Tese de Doutorado. LIBBY,
Douglas C. Transformação e trabalho em uma economia escravista: Minas Gerais no século XIX. São
Paulo: Brasiliense, 1988. Apud: FILHO, Afonso de Alencastro Graça, PINTO, Fábio Carlos Vieira &
MALAQUIAS, Carlos de Oliveira. “Famílias escravas em Minas Gerais nos inventários e registros de
casamento: o caso de São José do Rio das Mortes, 1743-1850...” Op. cit., p. 189
768
Casa Setecentista de Mariana, 1º ofício – Inventário post-mortem de Paulo Rodrigues Durão. Códice
115, auto 2377, (1743).
769
Arquivo Histórico do Museu da Inconfidência/ Casa do Pilar de Ouro Preto, 1º ofício – Inventário
post-mortem de Manuel Dias. Códice 41, auto 464, (1720).
216
770
Casa Setecentista de Mariana, 1º ofício – Inventário post-mortem de Antonio Gonçalves Torres. Códice
59, auto 1305, (1776).
771
Casa Setecentista de Mariana, 2º ofício – Inventário post-mortem duplo de Francisco Soares Maciel e
sua mulher D. Anna Joaquina de Almeida. Códice 117, auto 2352, (1819).
217
772
MOTTA, José Flávio. Corpos escravos, vontades livres: posse de cativos e família escrava em Bananal
(1801-1829)... Op. cit., p. 210.
218
TABELA 13
Origem dos cônjuges dos casais escravos encontrados nos inventários post-mortem
Origem N.º %
Casais crioulos 10 16,39
Casais africanos 28 45,90
Casais mistos 10 16,39
Sem informação* 13 21,31
Total 61 100
Fonte: Inventários post-mortem do Arquivo da Casa Setecentista de Mariana e do Arquivo Histórico do
Museu da Inconfidência/ Casa do Pilar de Ouro Preto, 1º e 2º ofício.
*Nesta variável inclui-se a viúva, dois casos de casamento fora do plantel e três casos onde não aparece
no inventário quem é o cônjuge no plantel; nos demais casos não aparece no arrolamento do inventário a
naturalidade de um dos cônjuges.
773
Em nenhum caso onde foi possível estabelecer a origem dos cônjuges o casamento se deu entre
indivíduos com condição jurídica diferente, e em apenas seis casos o casamento foi realizado entre
escravos com cores diferentes.
774
MOTTA, José Flávio. Corpos escravos, vontades livres: posse de cativos e família escrava em Bananal
(1801-1829)... Op. cit., p. 344. Ver também para mais exemplos: GÒES, José Roberto & FLORENTINO,
Manolo. A paz das senzalas... Op. cit. FILHO, Afonso de Alencastro Graça, PINTO, Fábio Carlos Vieira
& MALAQUIAS, Carlos de Oliveira. “Famílias escravas em Minas Gerais nos inventários e registros de
casamento: o caso de São José do Rio das Mortes, 1743-1850...” Op. cit.
775
ENGEMANN, Carlos. Da comunidade escrava: Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX. In: FLORENTINO,
Manolo (Org.). Tráfico, cativeiro e liberdade... Op. cit., p. 181.
219
776
Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Livro de Casamento A-27, p. 7
777
Arquivo Público Mineiro. Lista de registro para cobrança dos quintos reais de 1718. CC 1024,
microfilme 003-004.
778
Arquivo da Câmara de Mariana. Lista de registro para cobrança dos quintos reais de 1723. Códice 166.
779
Ver: Casa Setecentista de Mariana, 2º ofício – Inventário post-mortem de João Lopes de Camargo.
Códice 41, auto 936, (1743).
780
MATTOS, Hebe Maria & RIOS, Ana Lugão. Memórias do cativeiro: família, trabalho e cidadania no
pós-abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 148.
781
GÒES, José Roberto & FLORENTINO, Manolo. A paz das senzalas... Op. cit., p. 90
220
estabilidade social na senzala, de ter com seu escravo um mecanismo de interação que
ia além da violência e uso da força e que podia ser utilizado nas tentativas de
negociações com tais cativos para que agissem conforme seus interesses em situações
nas quais apenas a coerção não seria suficiente. Conforme destacaram Manolo
Florentino e José Roberto Góes:
782
Idem, p. 143.
783
Ibidem, p. 173-175.
221
TABELA 14
Presença e quantidade de filhos nas famílias escravas encontradas nos inventários
A tabela 14 revela que das 82 famílias cativas que conseguimos arrolar havia 44
famílias escravas com filhos nos inventários, chefiadas por casais ou por mães solteiras.
Dentre estas 44 famílias escravas com filhos, 23 casais tinham mais de dois filhos
tendo-se assim um indicador da estabilidade das famílias escravas formadas, não
obstante os obstáculos as quais se defrontavam para sua continuidade regular784. Uma
indicação desta estabilidade é dada pela família de Lourenço crioulo e Rosa Mina,
escravos do capitão António Alves Ferreira. Lourenço e Rosa se casaram no dia 04 de
abril de 1741 na capela de Santo Antonio do Rio Abaixo na freguesia de Guarapiranga,
ele com a idade de 22 anos e ela com 27 anos785. Em 1749 quando foi feito o inventário
de António Alves Ferreira constava que Lourenço e Rosa tinham quatro filhos: Ignácio
de 10 anos, Joana de 9 anos, Esperança de 7 anos e Rosa de 5 anos 786. Considerando que
pelo registro de casamento eles tinham oito anos de união legal e que seu filho mais
velho tinha a idade de 10 anos, nota-se que os dois viviam juntos ilicitamente a pelo
menos 2 anos antes de se casarem formalmente, e que após o nascimento de seus dois
filhos mais velhos resolveram legalizar a situação. Este casal e seus quatro filhos é um
exemplo de um possível relacionamento estável e duradouro entre a escravaria.
Outro exemplo encontramos na família de Suzana crioula e Manoel Benguela
também escravos de António Alves Ferreira. Estes cativos se casaram em 12 de agosto
de 1742 na capela de Santo Antonio do Rio Abaixo ambos com 23 anos787. No
inventário de seu senhor foram arrolados com mais quatro filhos: Julião de 8 anos,
784
MOTTA, José Flávio. Corpos escravos, vontades livres: posse de cativos e família escrava em Bananal
(1801-1829)... Op. cit., p. 285.
785
Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Livro de Casamento T-33, p. 93v.
786
Casa Setecentista de Mariana, 1º ofício – Inventário post-mortem de António Alves Ferreira. Códice 36,
auto 843, (1749).
787
Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Livro de Casamento T-33, p. 98v.
222
Vitória de 7 anos, Ignacia com 4 anos e Maria com 1 ano788. Assim como no exemplo
anterior, Suzana e Manoel já vivam juntos ilicitamente antes de se casarem e, após o
nascimento de seu primeiro filho e possivelmente grávida do segundo, resolveram
legalizar a situação. Os dois exemplos mostram a possibilidade dos escravos terem
uniões duradouras, estáveis, com prole numerosa e dos filhos crescerem em famílias
grandes, com irmãos, tendo assim uma vivência familiar ampla.
Os dados apresentados até agora sugerem que o parentesco era uma linguagem
comum das relações sociais entre os escravos. Uma afirmação que tem suas raízes
inclusive nas sociedades africanas, visto que lá o parentesco tinha também fundamental
papel na estruturação das relações interpessoais e na definição do lugar de um dado
indivíduo na sociedade; havia uma grande ênfase na descendência unilinear e nas
linhagens de parentes vivos e mortos; e até mesmo o recorrente uso da terra como
recurso para definir o tempo e a ascendência, sendo os ancestrais venerados localmente
e sendo a história e a genealogia particularizadas em pedaços de solo específicos789.
Complementando este quadro da estabilidade e da formação das famílias
destacamos os tipos de arranjos sob os quais os escravos aparentados se organizavam:
TABELA 15
Tipologia de arranjos familiares sob os quais os escravos aparentados dos
inventários se organizavam
788
Casa Setecentista de Mariana, 1º ofício – Inventário post-mortem de António Alves Ferreira. Códice 36,
auto 843, (1749).
789
MINTZ, Sidney W. & PRICE, Richard. O nascimento da cultura afro-americana: uma perspectiva
antropológica. Rio de Janeiro: Ed. Pallas, 2003, p. 92.
223
Ignácio crioulo e Inocência crioula que possuíam 4 filhos: Gaspar, Faustina, Manoel e
Eugenio, denotando a possibilidade que alguns cativos tinham de viver em família
completa, com a figura materna e paterna, com a presença de irmãos, o que devia ser
um tipo de vivência familiar muito almejado pelos escravos790.
Em segundo lugar vêm os arranjos de casais cativos que não possuíam filhos, ou
que pelo menos não foram mencionados como morando com eles. Foi um tipo de
arranjo também muito encontrado nos inventários. No plantel do coronel Salvador
Fernandes Furtado de Mendonça a situação se inverte em comparação com o exemplo
acima. Dos 23 cativos que se uniam em oito tipos de arranjos familiares, dentre os seus
61 cativos, quatro arranjos eram do tipo marital, como no caso de Gonçallo crioulo e
Domingas crioula ambos com 70 anos de idade, possivelmente já casados há algum
tempo, uma união estável, mas sem a presença de filhos ou pelo menos sem o registro
deles791.
De qualquer forma, os dados mostram que a grande maioria das unidades
familiares que conseguimos encontrar nos inventários post-mortem eram regularmente
constituídas, considerando aquelas ligações sancionadas pela igreja com a presença de
filhos, os cativos casados sem filhos e os viúvos792. Ressalte-se que no destaque que se
dá para a importância que tinha as relações familiares para os escravos enquanto meio
de integração, os dados apresentados podem ser subestimados pelo fato de que não
consideram, por exemplo, os casais em vivência consensual, sem filhos; os
companheiros presentes mas não identificados, os filhos que não viviam mais com os
pais, e aqueles indivíduos que tendo desfrutado de uma vida em família consensual
encontrava-se sós à época da abertura do inventário, devido à morte ou ausência do
companheiro (a), e à ausência ou inexistência de descendência793.
Os arranjos matrifocais vêm por último, mas tendo uma participação
significativa no conjunto das relações familiares estabelecidas pelos escravos. Nestes
casos as crianças escravas não cresciam com a presença dos dois pais e os papéis dos
escravos homens como pai e marido eram diminuídos. No inventário do mestre de
campo Francisco Ferreira de Sá encontrava-se arrolado um plantel de 108 escravos.
790
Ver: Casa Setecentista de Mariana, 2º ofício – Inventário post-mortem de Pedro Frazão de Brito.
Códice 132, auto 2658, (1722).
791
Casa Setecentista de Mariana, 2º ofício – Inventário post-mortem de Salvador Fernandes Furtado de
Mendonça. Códice 138, auto 2800, (1725).
792
MOTTA, José Flávio. Corpos escravos, vontades livres: posse de cativos e família escrava em Bananal
(1801-1829)... Op. cit., p. 332.
793
Idem, p. 313.
224
Neste havia cinco arranjos, sendo quatro de tipo matrifocal. As quatro escravas, todas
africanas na faixa dos 30 anos, que tinham este tipo de relação parental foram arroladas
com suas “crias de peito” sem menção aos pais dos mesmos, que poderiam, ou não,
viverem junto a estas mulheres e filhos794. Tal tipo de arranjo revela que diante da
instabilidade, das dificuldades ou mesmo impossibilidade de estabelecer uma estrutura
familiar nuclear os escravos rearranjavam suas vidas domésticas e familiares que, se por
um lado enfraqueciam laços paternos, ao mesmo tempo, reforçavam estes laços
maternos795. Vale lembrar que nestes casos de famílias matrifocais podia também se
estar falando de famílias nucleares, mesmo não sendo sancionadas legalmente, já que,
justamente por não serem formais, no arrolamento da escravaria no inventário podia não
se estar considerando os parceiros que eventualmente poderiam estar coabitando com
essas mães solteiras.
Cabe sublinhar também que é possível que algumas dessas mulheres escravas
solteiras com filhos tenham-os gerados não apenas fora do matrimônio legítimo, mas
igualmente fora de uniões consensuais de natureza estável. Por exemplo, temos o caso
de uma mulata do plantel do sargento-mor Paulo Rodrigues Durão que em seu
inventário foi arrolada como tendo cinco filhos, o mais velho com 13 anos e o mais
novo com 1 ano. Os outros filhos tinham 8, 5 e 4 anos796. Pelo fato de haver uma
disparidade tão grande entre a idade de seus filhos, sendo o intervalo intergenésico entre
eles bem irregular, podemos suspeitar que esta prole era fruto de uniões informais desta
escrava, bem como de pais diferentes797.
Portanto, vistas no cenário do parentesco, as discussões sobre o motivo
subjacente à resistência e à fuga dos escravos terão de ser rearticuladas. Os maus-tratos
dos donos permanecem como fator óbvio, mas os fugitivos em potencial tinham de
ponderá-los diante da decisão de abandonar a família e os parentes. Do mesmo modo,
apesar das restrições impostas pela escravidão, os escravos buscavam manter as
cerimônias de casamento ou rituais substitutos, na preservação de uma família coesa798.
Em face das dificuldades impostas pela instituição da escravidão, os escravos
794
Casa Setecentista de Mariana, 1º ofício – Inventário post-mortem de Francisco Ferreira de Sá. Códice
87, auto 1842, (1732).
795
CUNHA, Maísa Faleiros da. “Reconstituindo famílias escravas”. Anais do XV Encontro Nacional de
Estudos Populacionais. Caxambu: ABEP, 2006, p. 10.
796
Casa Setecentista de Mariana, 1º ofício – Inventário post-mortem de Paulo Rodrigues Durão. Códice
115, auto 2377, (1743).
797
MOTTA, José Flávio. Corpos escravos, vontades livres: posse de cativos e família escrava em Bananal
(1801-1829)... Op. cit., p. 212.
798
RUSSELL-WOOD, A.J.R. Escravos e libertos no Brasil colonial... Op. cit., p. 241.
225
procuraram criar formas sociais e culturais que lhes proporcionassem consolo e apoio
naquele mundo hostil. E a formação da família, em especial através do sacramento do
matrimônio, bem como o batismo, eram duas destas formas sociais e culturais de
extrema importância para ampliar oportunidades melhores de vida799. Mais do que isso,
a força e a importância das relações familiares entre os escravos está justamente na
humanização que proporcionam aos cativos face à animalização genérica da
escravidão800.
Para fechar o quadro é necessário também que façamos uma pequena incursão
sob a questão da possível desestabilidade que tais famílias escravas poderiam passar. A
questão é válida para que possamos visualizar, mesmo que parcialmente devido à
pequena quantidade de fontes ora utilizadas e os problemas metodológicos das mesmas,
se as relações familiares, como já notado tão importante nas interações entre senhores e
escravos e entre os escravos em si, conseguiam se manter sólidas em contextos
adversos. Para tal investigação nos valemos das partilhas contidas nos inventários
analisados, que nos permitiram perceber o destino de algumas das 82 famílias por nós
computadas nesta documentação quando da morte de seus proprietários.
TABELA 16
Destino das famílias escravas no ato da partilha entre os herdeiros
801
GÒES, José Roberto & FLORENTINO, Manolo. A paz das senzalas... Op. cit., p. 116.
802
Idem, p. 115.
803
Ibidem, p. 118.
804
Casa Setecentista de Mariana, 2º ofício – Inventário post-mortem de Manuel Jorge Coelho. Códice 15,
auto 448, (1733).
227
805
Idem.
806
Casa Setecentista de Mariana, 2º ofício – Inventário post-mortem de João Lopes de Camargo. Códice
41, auto 936, (1743).
807
Casa Setecentista de Mariana, 2º ofício – Inventário post-mortem de Salvador Fernandes Furtado de
Mendonça. Códice 138, auto 2800, (1725).
808
MOTTA, José Flávio. Corpos escravos, vontades livres: posse de cativos e família escrava em Bananal
(1801-1829)... Op. cit., p. 202.
228
809
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos... Op. cit., p. 314.
229
TABELA 17
Número de escravos dos potentados locais que se casaram entre os anos de 1711-
1750 (para os quais encontramos informações)
inventário para termos uma idéia do tamanho de seu plantel, tentaremos suprir esta
lacuna com listas de registro para cobrança dos quintos reais em que constava o número
de escravos destes potentados em diferentes períodos da primeira metade do século
XVIII. Mesmo com os problemas advindos do uso desta documentação, bem como da
ausência do inventário em alguns casos para compararmos os diferentes momentos
desta família cativa até seu ciclo final (dada aqui pela morte de seu senhor), achamos
relevante utilizar a documentação das listas dos quintos para que possamos ter ao menos
uma idéia do tamanho da escravaria de um potentado em determinado momento de sua
vida, mesmo considerando que em muitos casos o tamanho dela variava bastante ao
longo do tempo.
Antes de fazermos uma análise mais minuciosa sobre o estabelecimento destes
casamentos e famílias cativas, vamos nos ater a um panorama mais geral destes
casamentos cativos revelados pelos registros. Para tanto consideramos as seguintes
variáveis: origem dos cônjuges, seu estatuo jurídico, cor e quem eram os proprietários
dos mesmos, no intuito de perceber se havia, ou não, e em que medida, casamentos
entre escravos de plantéis diferentes.
231
TABELA 18
Casamento entre os escravos dos potentados segundo sua origem, estatuto jurídico,
cor e proprietário (para os quais encontramos informações). 1711-1750
Variáveis N.º %
Origem
Africanos 39 47,56%
Crioulos 6 7,31%
Misto 13 15,85%
Não consta 24 29,26%
Estatuto Jurídico
Escravo 68 82,92%
Forro 4 4,87%
Misto 10 12,19%
Cor
Mesma cor 64 78,04%
Mista 6 7,31%
Não consta 12 14,63%
Proprietário
Mesmo proprietário 68 82,92%
Proprietário diferente 3 3,65%
Não consta 11 13,41%
Total 82 100%
Fonte: Livros de casamentos de escravos de Mariana e seu termo e de Ouro Preto e seu termo. Arquivo
Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana e Arquivo da Casa dos Contos, período de 1711-1750.
Senhora da Conceição dos Carijós com Maria da Motta, escrava de Estevão da Motta,
tendo como testemunhas de seu casamento o sargento-mor Alexandre Pereira de Araújo
e Pedro da Cunha de Aguiar814. Outro exemplo é o de Francisco Dias, crioulo pardo do
Rio de Janeiro e escravo do mestre de campo Francisco Ferreira de Sá, filho de André
de Matos com a crioula Juliana, esta escrava de Paulo da Costa. Francisco Dias casou-se
em 1734 às 18:00 horas na matriz de Nossa Senhora da Conceição com Thereza, crioula
de São Paulo, escrava de Agostinho Dias dos Santos e filha de Luiz crioulo e Maria
Conga, forra e ex-escrava de Francisco Ferreira de Sá815.
Porém, casos como os citados eram esparsos já que não era comum que escravos
de diferentes plantéis se casassem, o que limitava em alguns casos as oportunidades
familiares para os escravos, especialmente em propriedades menores ou com grande
desequilíbrio sexual. A regra vinha das complicações que podiam surgir quando este
tipo de união ocorria: residências diferentes, separação forçada, conflitos sobre
tratamento humano e direitos de propriedade. Mas esta falta de circulação ou restrição
quanto ao estabelecimento de suas relações sociais, era mais visível somente na questão
do casamento, pois em outras situações tais como o compadrio, participação em
associações religiosas, amizades, envolvimento em conflitos e laços de afeição
demonstram que o isolamento não se aplicava, ou seja, as relações dos cativos
ultrapassavam os limites das propriedades as quais se vinculavam816. Revela-se então a
predominância de uniões endogâmicas no que concerne a origem, cor, condição social e
a raridade de enlaces entre escravos de plantéis diferentes, dado já comum na
historiografia817.
Diante do que foi esboçado até aqui talvez possamos argumentar que a
importância dos laços de família para os escravos está no fato de permitir uma
experiência que se opunha em parte à escravidão818. Assim, conseguir uma família e
814
Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Livro de Casamentos I-09, p. 145v.
815
Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana Livro de Casamentos O-24, p. 10v.
816
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos... Op. cit., p. 313.
817
MOTTA, José Flávio. Corpos escravos, vontades livres: posse de cativos e família escrava em Bananal
(1801-1829)... Op. cit., p. 330. Para exemplos de trabalhos na historiografia sobre os dados acerca da
endogamia citada ver: LUNA, Francisco Vidal & COSTA, Iraci del Nero da. Vila Rica: nota sobre
casamentos de escravos, 1727-1826. África. Revista do Centro de Estudos Africanos da USP. São Paulo:
FFLCH, n. 4, 1981; SLENES, Robert. Escravidão e família: padrões de casamento e estabilidade familiar
numa comunidade escrava (Campinas, século XIX). Anais do IV Encontro Nacional de Estudos
Populacionais. São Paulo: ABEP, vol. 4, 1984.
818
MATTOS, Hebe Maria & RIOS, Ana Lugão. Memórias do cativeiro: família, trabalho e cidadania no
pós-abolição... Op. cit., p. 89.
234
mantê-la foi uma ambição constante, e essa ambição foi um dos pilares em torno do
qual se estruturaram as estratégias de negociação entre potentados e seus cativos.
Para tentar corroborar e reforçar esta declaração analisaremos a partir de agora
alguns casos mais emblemáticos de forma qualitativa a fim de observarmos como tais
indícios quantitativos de formação de famílias cativas nas fontes analisadas se
configuravam nas relações destes cativos com o grupo analisado e, sobretudo, como
podiam intermediar as práticas de negociações e reciprocidades que se pretende
enfatizar. Para tanto utilizaremos dados contidos nos inventários, testamentos, listas de
registro dos quintos reais e relatos do arquivo histórico ultramarino destes potentados,
bem como registros de casamento e de batismos referentes aos escravos dos mesmos, a
fim de seguir os atores nas múltiplas relações que mantinham entre si, o que significa
investigar tais sujeitos em vários tipos de fontes de forma a contemplar diferentes
aspectos e momentos de sua história de vida819.
O já mencionado capitão-mor Manuel Jorge Coelho, que como visto no capítulo
1 era um homem de muito poder e autoridade nas Minas; dos seus primeiros
povoadores, possuidor de uma patente tão prestigiosa como a de capitão-mor, ocupante
de um cargo muito influente, o de provedor dos quintos820, e que levou em duas
diligências escravos como braço armado821, era também um grande proprietário de
cativos. Na lista de cobrança dos quintos reais na freguesia de Catas Altas, onde residia,
datada de 1723 relatou que era possuidor de 76 escravos822, em outra lista do ano de
1725 na mesma freguesia declarou que possuía 65 cativos823 e no final de sua vida
(faleceu no ano de 1733) possuía um plantel composto por 80 escravos824. Analisando o
inventário de Manuel Jorge Coelho observamos mais de perto as possibilidades de
interações pautadas na negociação e reciprocidade dele com seus escravos que, muito
provavelmente, permitiram sua utilização como braço armado sem preocupações, ao
menos graves, de retaliações. Além disso, permitiram também sua caracterização como
um senhor legítimo, isto é, como alguém cuja autoridade não se baseava unicamente no
uso da força contra o escravo, mas como alguém que tinha sua autoridade e
819
FRAGOSO, João. Afogando em nomes.... Op. cit., p. 62.
820
Ver: Arquivo da Câmara de Mariana. Lista de registro para cobrança dos quintos reais de 1723. Códice
166.
821
Ver: AHU/MG/cx.: 16; doc.: 3.
822
Arquivo da Câmara de Mariana. Lista de registro para cobrança dos quintos reais de 1723. Códice 166.
823
Arquivo da Câmara de Mariana. Lista de registro para cobrança dos quintos reais de 1725. Códice 150.
824
Casa Setecentista de Mariana, 2º ofício – Inventário post-mortem de Manuel Jorge Coelho. Códice 15,
auto 448, (1733).
235
830
Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Livro de Casamento F-26, p. 26.
831
Casa Setecentista de Mariana, 2º ofício – Inventário post-mortem de Manuel Jorge Coelho. Códice 15,
auto 448, (1733).
832
Ver: AHU/MG/cx.: 16; doc.: 3.
237
833
Idem.
834
ENGEMANN, Carlos. “Da comunidade escrava: Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX...” Op. cit., p. 183
835
BOTELHO, Tarcísio. “Família e escravidão em uma perspectiva demográfica: Minas Gerais (Brasil),
século XVIII...” Op. cit., p. 218.
836
“Termo que se fes na junta, e resoluçam que se tomou sobre o pagamento dos quintos de Sua
Magestade que Deus Guarde, 1714 Villa Rica”. In: CARVALHO, Feu de. Questões históricas e velhos
enganos. Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte, Ano XXIV, 1933, p. 22-24.
837
AHU/MG/cx.: 21; doc.: 9.
238
“Quando o rei ordenou que refizesse o número de oficiais que havia nas
Minas e deichasse ficar somente os poucos escolhidos dos maes capazes
este foi hum delles a que passei a patente inclusa, por ser um homem
velho, capaz e de muita autoridade, que em todas as revoluçoens e
motins das Minas se distinguio por seguir partido de V. Mag e estar
sempre prompto para servir com sua pessoa e com seus negros
armados”840.
Para estar sempre pronto para atuar nas diligências e prestar serviços ao Rei com
seus escravos armados, deveria ter um número substancial de cativos. De fato era
também um homem muito abastado e um grande proprietário de escravos. Em uma lista
de quintos reais feita na freguesia de São Sebastião em 1718 relatou que era possuidor
de 78 escravos841, em outra lista do ano de 1723 na freguesia do Furquim constava que
possuía 62 cativos842 e no final de sua vida (faleceu no ano de 1732) possuía um plantel
composto por 108 escravos, além de uma fortuna avaliada em 58:981$487843.
As relações que necessitava manter com os cativos que armava para ficar sem
receio de sofrer nenhuma emboscada tinham, a nosso ver, de serem pautadas mais na
negociação do que na coação e força. Como de um modo geral os cativos buscavam
meios de melhor se adaptarem e sobreviverem na condição escrava, e dentre estes meios
a família era um dos mais almejados e realizados este talvez tenha sido um poderoso
artifício que Francisco Ferreira de Sá possuía para estabelecer estas relações baseadas
838
Ver: Arquivo Público Mineiro. Lista de registro para cobrança dos quintos reais de 1718. CC 1024,
microfilme 003-004.
839
CHAVES, Cláudia Maria das Graças. PIRES, Maria do Carmo & MAGALHÃES, Sônia Maria de.
(Orgs.). Casa de Vereança de Mariana: 300 anos de história da Câmara Municipal. Ouro Preto: UFOP,
2008, p. 191 e 193.
840
AHU/MG/cx.: 21; doc.: 9. Grifo meu.
841
Arquivo Público Mineiro. Lista de registro para cobrança dos quintos reais de 1718. CC 1024,
microfilme 003-004.
842
Arquivo da Câmara de Mariana. Lista de registro para cobrança dos quintos reais de 1723. Códice 166.
843
Casa Setecentista de Mariana, 1º ofício – Inventário post-mortem de Francisco Ferreira de Sá. Códice
87, auto 1842, (1732).
239
844
Idem.
845
Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Registros Paroquiais de Batismos, livros O-03, O-
04, O-05, 1711-1750.
846
Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Registros Paroquiais de Batismos, livro O-03, p. 54
e p. 83.
847
Ver: Casa Setecentista de Mariana, 1º ofício – Inventário post-mortem de Francisco Ferreira de Sá.
Códice 87, auto 1842, (1732).
240
africanos neste plantel e a estabilidade precisava ser buscada para convivência amistosa
entre indivíduos tão distintos culturalmente. Dos 95 homens do plantel, 89 eram
africanos, dentre os quais a metade era classificada com a etnia mina, tratando-se a
grande maioria de escravos jovens, o que denota ser este um plantel novo formado por
uma participação ativa deste senhor no tráfico. Nestes casos a família seria fundamental
para amenizar as tensões, incorporar os recém-chegados e dar a eles possibilidade de ter
um mínimo de segurança e melhorar sua sobrevivência no novo contexto, possibilitando
ainda estabelecer alianças e laços de solidariedade. Já para o senhor além de um artifício
para “controlar” a escravaria e assim ter a possibilidade de alcançar estabilidade no
plantel, a família podia também ser utilizada como canal de negociação e reciprocidade,
como mecanismo fulcral para que o senhor conseguisse estabelecer com seus escravos
relações baseadas não só na violência e coerção, mas em laços pessoais e assim
conseguir aumentar sua legitimidade perante eles, a ponto de ter a esperança de que ao
armar tais cativos eles não se voltariam contra seu senhor.
Obviamente que, além desses mecanismos como a família, ajudava também para
a manutenção do respeito, legitimidade e diminuição de chances de retaliações e ataques
contra esse senhor, seu status de homem poderoso na localidade. Afinal, estamos
falando de uma sociedade escravista onde a dominação, o respeito e a desigualdade na
relação senhor/escravo era algo tácito, não obstante a necessidade de a todo o momento
o senhor “conquistar” sua autoridade interagindo com seu escravo, seja por meio da
força, seja por meio da negociação – o que será definido de acordo com a situação
vivida e com a função e atuação desse cativo na vida do senhor. De qualquer forma,
poderia matizar no cativo a tentativa de afrontar seu proprietário o poder que este tinha
na região. Quanto mais importante e mais bem posicionado socialmente o potentado
maior também poderia ser o impacto social da afronta por parte do escravo e
conseqüentemente maior a punição. Não por acaso, e como visto no capítulo 1, os
homens aqui investigados procuraram ao longo de suas vidas aderir ao elementos que
lhes forneceriam poder, autoridade e prestígio, e revelariam seu status de homem
poderoso, tais como atuação na conquista da terra, as patentes, os cargos políticos, os
títulos, as sesmarias e, claro, a posse de numerosa escravaria.
Temos também o exemplo de Antônio Ramos dos Reis. Natural do Porto,
chegara ao Brasil com 9 anos de idade com seus pais Antônio Martins Ramos e Maria
Gonçalves e vivera no Rio de Janeiro antes de vir para as Minas, para onde se dirigiu
241
por volta de 1714848. No território mineiro Antônio Ramos dos Reis estabeleceu uma
trajetória de sucesso ocupando vários postos militares importantes como o de capitão de
auxiliares no distrito de São Bartolomeu, o de mestre de campo de Vila Rica em 1732 e,
em 1741, o de capitão-mor das Ordenanças de Vila Rica849. Além da ocupação de
importantes postos militares ocupou também importantes cargos como o de vereador em
1719, juiz ordinário em 1739, 1745 e 1757850 e foi cotado para ser juiz de órfãos em
1732851, ambos em Vila Rica, sendo ainda contemplado com o hábito da Ordem de
Cristo852, o que consistia, como visto no capítulo 1, num poderoso mecanismo de
distinção social que evocava dignidade e nobreza853.
Em todas as ocasiões em que a Coroa precisou de sua ajuda mostrou-se sempre:
Além de todos estes postos e cargos que lhe conferiam enorme prestígio e
atestavam sua “qualidade”, este potentado foi também um dos homens mais abastados
das Minas Gerais, sendo descobridor de uma grandiosa lavra localizada no morro
chamado comumente de morro do Ramos onde tem serviço de talho aberto e varias
minas com muitas grades, tanques de recolher águas onde tem para cima de 100
escravos. Além disso, tinha também várias moradas de casas em Ouro Preto e no Rio
de Janeiro, além de outra fazenda, também no Rio de Janeiro, com casa de vivenda e
capela, hum curral de criação de gado vacum com mais de 20 escravos, tendo também
sesmaria no distrito de Iguaçu que cultiva há 14 anos por seus escravos que em sua
848
Arquivo Histórico do Museu da Inconfidência/ Casa do Pilar de Ouro Preto, 1º ofício - Testamento de
António Ramos dos Reis. Livro n.º20, folha 74, (1761).
849
AHU/MG/cx.:20; doc.: 48. Ver também: AHU/MG/cx.: 39; doc.: 67.
850
Memorial Histórico-Político da Câmara Municipal de Ouro Preto. Cor & Cor Editorial: Ouro Preto,
Dezembro de 2004
851
AHU/MG/cx.: 22; doc.: 52.
852
AHU/MG/cx.: 31; doc.: 1. Ver também: AHU/MG/cx.: 41; doc.: 10.
853
CUNHA, Mafalda Soares da. A Casa de Bragança... Op. cit., p.48-53.
854
RAPM, cartas patentes, código 1229, ano 4, fascículo 4, ano 1899. Patente de capitão-mor de Antonio
Ramos dos Reis. 05 de outubro de 1750, p. 119-121. Grifos meus.
242
estimação vale par cima de 60$000 cruzados855. Seu patrimônio segundo consta em seu
testamento somava 78:400$000856.
Assim, por ser homem tão abastado e possuidor de um plantel tão grande podia
prestar serviços ao Rei às custas de sua fazenda e escravos armados. Como estamos
ressaltando a todo o momento neste trabalho, para que os senhores conseguissem por
armas nas mãos de seus escravos sem receio dos mesmos se rebelarem, estes potentados
precisavam tecer com seus cativos relações de confiança que poderiam ser conseguidas
através de barganhas onde se priorizassem elementos do interesse destes escravos tais
como a possibilidade de ter uma vida familiar. Não desconsiderando, é importante
lembrar, que nesta interação entrava também o respeito pelo status de homem poderoso
do senhor e o reconhecimento tácito de que se tratava de uma relação de subordinação,
apesar dessa não ser automática, sobretudo em situações como as que estou ressaltando.
De qualquer forma, os ditames e o julgo da escravidão eram por si só um elemento de
disciplina para o senhor, pois interiorizavam no escravo o reconhecimento da sua
situação de cativo naquela sociedade e, neste sentido, constituía-se num elemento para
ajudar a limitar revoltas. Sabendo de sua condição e sendo escravo de um senhor
poderoso, ele provavelmente sabia que seria muito arriscado voltar-se contra seu dono,
pois as chances de ser mal sucedido eram significativas: poderia ser severamente
punido, ser preso e até mesmo morrer. E talvez isso tenha tido um peso grande na
tomada de decisão desses escravos para que lutassem armados ao lado de seus senhores
sem se rebelarem, medindo assim as desvantagens e as vantagens ao optarem por este
comportamento. Conforme nos lembra Barth, em situações onde aparentemente a
situação se revela contraditória, devemos considerar que na execução de determinada
ação normalmente se leva em conta que o valor ganho é maior do que o valor perdido.
Infelizmente não conseguimos achar o inventário de António Ramos dos Reis
para conhecermos a totalidade de seu plantel e as possíveis ligações familiares que
poderiam existir entre a escravaria no momento final de sua vida. Em seu extenso
testamento encontramos alguns vestígios destas ligações parentais escravas, mas são
muito esparsas. Contudo, através de registros cartoriais conseguimos ter acesso a um
número significativo das ligações familiares entre os escravos do plantel deste
855
AHU/MG/cx.: 22; doc.: 52. Ver também: Arquivo Histórico do Museu da Inconfidência/ Casa do Pilar
de Ouro Preto, 1º ofício - Testamento de António Ramos dos Reis. Livro n.º20, folha 74, (1761).
856
Arquivo Histórico do Museu da Inconfidência/ Casa do Pilar de Ouro Preto, 1º ofício - Testamento de
António Ramos dos Reis. Livro n.º20, folha 74, (1761).
243
857
BOTELHO, Tarcísio. “Família e escravidão em uma perspectiva demográfica: Minas Gerais (Brasil),
século XVIII...” Op. cit., p. 213.
858
Arquivo da Casa dos Contos. Livro de Casamento, rolo 029, volume 0506, 1711-1750.
859
Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Registros Paroquiais de Batismos, livros O-03 e T-
01. Arquivo da Casa dos Contos. Registros Paroquiais de Batismos, rolo 027, volume 491 e 493; rolo104,
volume 492, 1711-1750.
860
BOTELHO, Tarcísio. “Família e escravidão em uma perspectiva demográfica: Minas Gerais (Brasil),
século XVIII...” Op. cit., p. 215.
861
Arquivo da Casa dos Contos. Livro de Casamento, rolo 029, volume 0506, p. 86.
862
Arquivo da Casa dos Contos. Registros Paroquiais de Batismos, rolo 027, volume 491, p. 07 e p. 238;
rolo 027, volume 493, p. 28v.
244
estabelecesse relações deste tipo, fazendo com que experimentassem diferentes tipos de
arranjos familiares.
Outro caso é o da escrava Quitéria que entre 1740 e 1748 teve cinco filhos todos
de pai desconhecido ou incógnito, provavelmente de relações instáveis e curtas, pois os
intervalos intergenésicos entre os filhos eram logos: o primeiro nasceu em 1740, o
segundo em 1742, o terceiro em 1745, o quarto em 1746 (apenas estes dois tiveram um
espaço curto entre o nascimento um do outro) e o último filho nasceu em 1748863.
Na verdade das 26 crianças batizadas no plantel de António Ramos dos Reis, só
foram consideradas legítimas três delas, denotando assim que nessa escravaria as
mulheres tinham mais probabilidade de viverem relações informais, muitas com prole
acima de dois filhos e provavelmente de parceiros diferentes. Cruzando os dados dos
batismos com os de casamento o argumento se reforça já que dos nove casamentos
realizados no plantel de Antônio Ramos só encontramos registros de nascimentos de
filhos de um casal (o de Gregório e Gracia), até porque seis destes casamentos foram
entre um escravo e uma mulher forra, fazendo com que os filhos destas uniões
nascessem já livres, daí não encontrarmos registros dos filhos nascidos destas uniões,
caso eles existissem, nos registros de batismo de escravos analisados. Essas várias
possibilidades que as mulheres cativas tinham na formação de seus laços parentais são
representativas das duas imagens construídas acerca da maternidade escrava: aquela da
estabilidade gerada pelo casamento e, como seu contraponto, a da promiscuidade
favorecida pelas duras condições do cativeiro864. De qualquer forma fica constatado as
inúmeras possibilidades dos escravos deste potentado estabelecerem variados tipos de
relações parentais, inclusive com mulheres de estatuto jurídico superior, uma vantagem
a mais na formação de tais famílias.
Outro exemplo que reforça o que acabamos de dizer surge quando analisamos o
caso do capitão-mor Pedro Frazão de Brito. Como já destacado ele era natural de São
Paulo e firmou-se como um dos primeiros povoadores e renomado potentado na Zona
do Carmo865. Fez várias bandeiras pelo sertão mineiro, lutou em levantes importantes
ocorridos nas Minas como a Guerra dos Emboabas, realizou várias tarefas para
organizar a nova sociedade que se formava na região do Carmo a ponto de ser eleito
863
Arquivo da Casa dos Contos. Registros Paroquiais de Batismos, rolo 027, volume 491, p. 114 e p. 166;
rolo 027, volume 493, p. 20v, p. 21 e p. 46v.
864
Idem, p. 215.
865
FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil... Op. cit.,
p. 87-88.
245
regente das Minas866, situações nas quais certamente usou seus escravos como braço
armado. Desta forma, e como assinalado no capítulo 1, era homem abastado, de
prestígio e status alargados, fatores indicados pelas suas patentes, cargos, riqueza e
quantidade de escravos possuídos. No final de sua vida seu plantel era composto por 56
cativos867.
Dos 56 escravos listados em seu inventário, havia 36 homens, dos quais 20 eram
africanos e também havia 20 mulheres, das quais 5 eram africanas, sendo que dessas 20
mulheres 18 se ligavam em relações parentais, fossem esposas, fossem mães, fossem
filhas. Dos cativos existentes neste plantel, 30, ou seja 53,57%, estavam unidos por
relações de parentesco. Ao analisarmos a formação das famílias cativas entre esta
escravaria observamos que havia ao todo sete arranjos familiares organizados das mais
variadas formas: pai, mãe e filhos, mãe e filhos, marido e mulher868. Alguns casais
arrolados tinham mais de três filhos, o que denota estabilidade nas uniões parentais 869 e
a qualidade das relações interpessoais que se podia estabelecer entre um senhor e seus
cativos. Por exemplo, temos a família do casal Ignácio crioulo e Inocência crioula que
possuíam 4 filhos: Gaspar, Faustina, Manoel e Eugenio, denotando as possibilidades de
se constituírem famílias estáveis neste plantel, bem como a possibilidade que alguns
cativos tinham de viver em família completa, com pai, mãe, filhos e irmãos. Uma
estabilidade parental que foi preservada até mesmo no momento da partilha, pois das
famílias existentes no plantel deste senhor, apenas uma foi separada quando da morte de
Pedro Frazão de Britto870, indicando assim a oportunidade que os cativos aqui tinham de
formarem uniões permanentes, sem separação dos cônjuges e filhos, o que também
pode ser encarado como parte de um processo de negociações e reciprocidades entre
eles.
Mais uma vez insistimos que a presença de famílias de cativos neste plantel
poderia fazer parte de uma estratégia de Pedro Frazão de Brito para que este reforçasse
sua legitimidade perante sua escravaria, já bem realçada pela estrutura da sociedade
escravista, levando-a a um outro patamar, pois tais fenômenos faziam parte dos anseios
dos cativos e poderiam ser um artifício eficaz nesta situação. Assim, possibilidades de
866
Idem.
867
Casa Setecentista de Mariana, 2º ofício – Inventário post-mortem de Pedro Frazão de Brito. Códice 132,
auto 2658, (1722).
868
Idem.
869
Neste mesmo sentido ver: FRAGOSO, João. À Espera das frotas... Op. cit., p. 106.
870
Ver: Casa Setecentista de Mariana, 2º ofício – Inventário post-mortem de Pedro Frazão de Brito.
Códice 132, auto 2658, (1722).
246
interação onde ambas as partes saíam ganhando (os escravos, suas famílias e os
senhores, seu braço armado), se constituía num momento essencial para a reafirmação
do poder e legitimidade do potentado; um mecanismo que viabilizava sua autoridade.
Como dito anteriormente, para que estes poderosos locais exercessem sua autoridade,
eles necessitavam do “consentimento” da sociedade e neste momento, as negociações e
reciprocidades com estratos subalternos, sempre muito desigual vale salientar, – além
daquelas com a elite – assumiam papel fundamental871. Muito provavelmente era através
de mecanismos como o citado acima que Pedro Frazão de Brito conseguia estabelecer
interdependências com seus cativos, ou seja, estabelecia as condições necessárias para
utilizar os mesmos como milícia em suas diligências para busca e manutenção de sua
autoridade. Já para os escravos aparentar-se significava a obtenção de aliados. Assim o
parentesco promovia a multiplicação das alianças sociais e políticas. Ao conviverem no
mesmo espaço, ficavam juntos, em alguns casos, por gerações872, e neste sentido eram
forçados a buscarem estabelecer regras de convivência que minimizassem o conflito,
auxiliassem em sua sobrevivência e criassem espaços de sociabilidade.
Consideramos, portanto, que as relações sociais entre os dois grupos em questão
aconteciam nesses moldes, em detrimento da força, imposição e punição porque nessas
situações extremas onde se fazia necessário por armas nas mãos dos escravos a
autoridade e o poder possuídos pelo proprietário, apesar de se constituírem em
importante meio de referencial de dominação, não eram suficientes para amenizar os
temores de retaliações e rebeldia dos cativos. Além disso, pesava também o fato de que
com estas interações pautadas nas negociações e reciprocidades haveria vantagens para
os dois lados, ou seja, ambas as partes maximizariam ganhos, pois se leva em conta,
como já indicado, que as expectativas dos atores que estavam interagindo eram
diferentes. Elas relacionavam-se com suas visões de mundo, com uma cultura que é
própria a cada um destes setores e com o desempenho de certos papéis sociais. Ao
estarem posicionados para “o jogo social”, os atores tinham diferentes intenções ao
agirem, o que não anula o fato de que ambos podiam tirar proveito de uma determinada
situação873. Dessa forma, com os exemplos aqui mostrados e nas situações destacadas,
podemos argumentar que a escravidão, embora originalmente imposta e mantida pela
871
FRAGOSO, João. “A formação da economia colonial no Rio de Janeiro e de sua primeira elite
senhorial...” Op. cit., p. 58-60.
872
ENGEMANN, Carlos. “Da comunidade escrava: Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX...” Op. cit., p. 181-
182.
873
BARTH, Fredrik. Models of social organization II: Processes of integration in culture. In: Process and
form in social life... Op. cit., p. 50-52.
247
faleceu deixando inventário de seus bens, conseguimos por meio deste vislumbrar a
parentela existente entre os cativos deste potentado.
No inventário de seus bens, aberto em 1725 na freguesia de São Caetano na Vila
do Carmo, encontramos arrolado um plantel de 61 cativos. Neste havia 44 homens dos
quais 33 eram africanos e 11 crioulos, denotando aqui também se tratar de um senhor
que participava ativamente do tráfico africano de escravos para suprir constantemente
seu plantel. E por isso, como não podia deixar de ser, na escravaria o desequilíbrio
sexual era alto, visto que 72,13% eram homens e apenas 27,87% eram mulheres. Não
obstante, encontramos 23 cativos, ou seja, uma porcentagem de 37,70%, unidos por
relações de parentesco, totalizando 8 arranjos que englobava uniões nucelares, maritais
e matrifocais, ressaltando que, pelo o que conseguimos perceber, dentre as 17 mulheres
existentes neste plantel apenas 3 não se envolviam em relações parentais. Portanto neste
plantel os arranjos familiares eram organizados de diferentes formas, sobressaindo as
relações sancionadas pela igreja. Ao todo existiam 6 casais unidos legalmente, 4 com
presença de filhos e outros 2 com ausência destes, e com relativa estabilidade marital880.
Os outros dois arranjos eram do tipo matrifocal, no caso a de duas mulatas: uma de
nome Josepha de 30 anos a outra de nome Barbara de 38 anos que possuíam 2 e 5 filhos
respectivamente. Isto sugere que as organizações parentais (sancionadas ou não) não
eram estranhas ao cotidiano cativo. Também neste caso a estabilidade e formação da
família foi preservada no momento crítico da morte do senhor. Das 8 famílias, apenas
uma foi separada no momento da partilha, no caso a da mulata Barbara que tinha 5
filhos. Dos seus 5 filhos, ela ficou apenas com dois na divisão dos cativos, os outros três
foram herdados por diferentes filhos de Salvador Fernandes881.
Vale lembrar que tal geografia parental é também política. Como já mencionado
nela estariam presentes as práticas de legitimidade e de mando de indivíduos como
Salvador Fernandes Furtado, assim como os interesses pretendidos pelos escravos882.
Claro que os senhores pressupunham sua própria soberania absoluta e o poder ostentado
por eles na localidade provavelmente ajudou a matizar nos escravos atitudes mais
revoltosas, abrindo espaço para barganhas e negociações que possibilitassem vantagens
para ambos os lados. Contudo, os escravos nunca abandonaram o direito de controlar
880
Casa Setecentista de Mariana, 2º ofício – Inventário post-mortem de Salvador Fernandes Furtado de
Mendonça. Códice 138, auto 2800, (1725).
881
Idem.
882
FRAGOSO, João. À Espera das frotas... Op. cit., p. 117.
249
seu próprio destino, vendo tais concessões como conquistas883. Assim, para o senhor tal
fenômeno era forma de amenizar os medos e tensões do cativeiro e reforçar
legitimidade perante seus cativos, para que pudessem se dispor dos mesmos na
formação de “milícias privadas” para suas diligências enquanto poderosos locais. Tal
fenômeno era, portanto, canal vital de reciprocidade para que conseguissem o apoio
necessário (traduzido em braços armados) na sua constante movimentação para
“mandar”, ascender socialmente e aí se manter. Do ponto de vista do escravo, dentre
outras coisas, a possibilidade de constituir uma família era significativa e vista como um
enorme ganho, pois através disso podiam conseguir uma ascensão social intracativeiro,
estabelecer alianças e conexões de amizades884. Mesmo em um universo onde se relata
a dureza do trabalho nas minas e elevado nível de exploração, os escravos conseguiram
ou procuraram “acomodar-se” a sua nova realidade com intuito de tornar menos penosa
suas condições de vida.
Obviamente que nenhuma barganha era estável e duradoura, pois na medida em
que o poder passava do senhor para o escravo e vice-versa os termos da escravidão eram
negociados, e a seguir, renegociados. Para essas negociações era central o trabalho que
os escravos realizavam, pois quando, onde e especialmente como os escravos
trabalhavam determinava, em grande medida, o curso de suas vidas885. Dito de outro
modo, os escravos procuravam criar instituições que se mostrassem receptivas as
necessidades da vida cotidiana, dentro das condições limitantes que a escravidão lhes
impunha. Estas instituições podiam ser qualquer tipo de interação social que adquirisse
um caráter normativo e que fosse empregada para atender as necessidades dos cativos.
Dentro dessa definição ampla uma dada forma de casamento, um dado culto religioso,
um dado padrão de amizade ou de compadrio podem ser citados como exemplos de
instituição, pois serviam como vínculos ou pontes entre escravos e homens livres886.
Claro que, apesar da imagem de aparente “facilidade” para se alcançar tais
benefícios e para se estabelecer relações “amistosas” entre senhores e escravos que tais
interações de negociação e reciprocidade podem passar, não podemos desconsiderar os
problemas enfrentados pelos senhores no governo de seus escravos. Dentre eles, a
contradição clássica dos escravos serem legalmente definidos como bens, mas terem sua
883
BERLIM, Ira. Gerações de cativeiro... Op. cit., p. 16.
884
ENGEMANN, Carlos. “Da comunidade escrava: Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX...” Op. cit., p. 203.
885
BERLIM, Ira. Gerações de cativeiro... Op. cit., p. 16.
886
MINTZ, Sidney W. & PRICE, Richard. O nascimento da cultura afro-americana: uma perspectiva
antropológica... Op. cit., p. 43.
250
*****
887
Idem, p. 45.
888
MINTZ, Sidney W. & PRICE, Richard. O nascimento da cultura afro-americana: uma perspectiva
antropológica... Op. cit., p. 61
889
BERLIM, Ira. Gerações de cativeiro... Op. cit., p. 50.
251
890
MINTZ, Sidney W. & PRICE, Richard. O nascimento da cultura afro-americana: uma perspectiva
antropológica... Op. cit., p. 61.
891
BERLIM, Ira. Gerações de cativeiro... Op. cit., p. 119.
252
Capítulo 4
O compadrio
892
ENGEMANN, Carlos. “Da comunidade escrava: Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX...” Op. cit., p. 189.
893
FLORENTINO, Manolo & GÓES, José Roberto. A paz das senzalas... Op. cit., p. 91-92.
894
FREIRE, Jonis. “Compadrio em uma freguesia escravista: Senhor Bom Jesus do Rio Pardo – MG,
(1838-1888)”. Anais do XIV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, Caxambu - MG, 2004,
p 2.
895
BRUGGER, Sílvia Maria Jardim. Minas Patriarcal. Família e Sociedade (São João del Rei – séculos
XVIII e XIX). São Paulo: Annablume, 2007, p. 284.
253
batismo dos inocentes, do nome do seu proprietário, o que lhe garantia a posse efetiva
dos mesmos. Pois:
parentelas com forros, com outros cativos e com pequenos senhores, produziam sua
sociabilidade e ao mesmo tempo agiam como canal de comunicação de seu senhor com
tais segmentos sociais901.
Assim, neste capítulo trataremos, para além do sacramento do batismo, da
instituição do compadrio observando como ela foi vivenciada pelos atores que estamos
investigando. O objetivo é evidenciar mais um mecanismo que podia ser usado nas
interações que visavam estabelecer negociações e reciprocidades entre senhores e seus
escravos, destacando as vantagens e ganhos de tal mecanismo para ambos os lados. Para
os escravos ressaltaremos as redes de compadrio em que os cativos se imiscuíam e a
importância delas para sua sociabilidade e melhor sobrevivência em território colonial.
No caso dos senhores observaremos como, através do contato parental fictício da
escravaria, conseguiam manter e ampliar sua legitimidade e poder de mando.
Trabalhamos com um total de 539 registros de batismos, para o período de 1711-
1750, feitos por 89 potentados locais que investigamos. Portanto, infelizmente não
conseguimos encontrar registros de batismos de escravos para todos os potentados.
Vários poderiam ser os fatores que explicariam essa ausência: talvez alguns deles
faleceram antes de 1711, ou voltaram para suas terras de origem sem deixar nenhum
tipo de registro nas Minas, ou foram mesmo para outras localidades da capitania, saindo
da comarca de Vila Rica sem deixar informações nos documentos que privilegiamos na
pesquisa. De qualquer forma, apesar de nem todos os 193 potentados que temos listado
terem seus nomes registrados nesta documentação, isso não diminui a sua importância
para investigação do tema proposto. Até porque procuramos ao longo da pesquisa
investigar tais sujeitos em vários tipos de fontes de forma a contemplar diferentes
aspectos e momentos de sua história de vida902, e assim matizar as ausências, falhas e
sub-registros nos diferentes tipos de documentação utilizados.
Os registros paroquiais de batismos, casamentos e óbitos generalizam-se a partir
do Concílio de Trento (século XVI). No Brasil eles existem desde o início da
colonização, mas apenas a partir de finais do século XVIII eles podem ser encontrados
com alguma abundância nos arquivos paroquiais. Apresentam, todavia, falhas já que
muitos eventos escapavam-lhes. Nem todos os recém-nascidos, por exemplo, eram
batizados, sobretudo aqueles que morriam nos primeiros dias de vida; mesmo esses
óbitos podiam não ser registrados já que não havia a preocupação em comunicar o
901
FRAGOSO, João. À Espera das frotas: micro-história tapuia e a nobreza principal da terra (Rio de
Janeiro, c.1600 – c.1750)... Op. cit. ver capítulo 2.
902
FRAGOSO, João. Afogando em nomes... Op. cit., p. 62.
255
evento ao pároco local. Mas apesar dos problemas, tais registros são valiosos e os mais
pertinentes para o pesquisador para se conhecer o estabelecimento do compadrio903.
Vale lembrar que tais registros abrangem tanto as crianças nascidas na
localidade quanto os adultos recém-convertidos. A fórmula geral, empregada nesses
registros de batismo, permite-nos ter acesso basicamente às seguintes informações, no
caso dos escravos: data da celebração do sacramento, local de sua celebração, prenome
da pessoa batizada, nome dos pais, nome e sobrenome dos padrinhos – no caso de serem
livres – com seus respectivos estados conjugais; nome do proprietário dos pais e do
cativo batizado, nome dos proprietários dos padrinhos, quando estes eram escravos, e
freguesia a que pertenciam pais e padrinhos do batizado. Outras informações aparecem
esporadicamente nos registros, derivações do zelo ou da falta do mesmo por parte
daqueles que faziam o assento904.
Do total de registros, 234 deles (43,41%) se referiam a batismos de crianças e
305 (56,58%) a batismos de adultos. Dentre os adultos 279 (91,47%) eram homens e 26
(8,52%) eram mulheres e dentre as crianças 120 (51,28%) eram homens e 114 (48,71%)
eram mulheres. Das crianças, 80 delas (34,18%) eram legítimas e 154 (65,81%) eram
ilegítimas. Essa presença maciça de escravos adultos a serem batizados revela a força do
tráfico na constituição do contingente escravo no seio do grupo que analisamos. Por
outro lado, as crianças também ocupam uma faixa constante nos registros de batismos, o
que indica não só a importância da reprodução natural em algumas escravarias para sua
formação, mas também a possibilidade de alguns cativos estabelecerem relações
parentais, muitas vezes estáveis, dado o significativo número de filhos legítimos905.
Voltaremos a esse assunto mais adiante.
Faremos também neste capítulo dois tipos de análise para conhecermos a malha
parental fictícia dos escravos: uma mais geral, quantitativa, a partir da investigação das
variáveis: número de escravos batizados por plantel, origem dos pais, mães, padrinhos e
madrinhas, condição social dos padrinhos e madrinhas e, no caso dos padrinhos e
madrinhas escravas, a procedência dos mesmos. Faremos em seguida uma análise mais
qualitativa a partir de casos específicos que nos revelem a faceta estratégica e política
deste mecanismo.
903
BOTELHO, Tarcísio. “A família escrava em Minas Gerais no século XVIII”. In: RESENDE, Maria
Efigênia Lage de (Org.). & VILLALTA, Luiz Carlos (Org.). História de Minas Gerais... Op. cit., p. 463.
904
FREIRE, Jonis. “Compadrio em uma freguesia escravista: Senhor Bom Jesus do Rio Pardo – MG,
(1838-1888)...” Op. cit., p. 4.
905
BOTELHO, Tarcísio. “A família escrava em Minas Gerais no século XVIII”. In: RESENDE, Maria
Efigênia Lage de (Org.). & VILLALTA, Luiz Carlos (Org.). História de Minas Gerais... Op. cit., p. 462.
256
TABELA 19
Número de escravos batizados por plantel
Número de escravos batizados Freqüência senhores % senhores
1 23 25,84%
2-5 36 40,44%
6-10 18 20,22%
+ de 10 12 13,48%
Total 89 100
Fonte: Livros de batismos de escravos de Mariana e seu termo e de Ouro Preto e seu termo. Arquivo
Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana e Arquivo da Casa dos Contos, período de 1711-1750.
levou 34 escravos a batizar entre os anos de 1732 a 1750, tendo aqui um retrato oposto
encontrado no plantel de Manuel Dias, visto que destes escravos 24 eram crianças910.
Além disso, a tabela é um indicativo da presença de famílias cativas estáveis nos
plantéis, ou seja, famílias com mais de um registro de filhos batizados. Temos por
exemplo o caso do casal cativo Vitória, crioula, e Inácio, também crioulo, escravos de
Bento Ferraz Lima, que, como visto anteriormente, levou a pia batismal 34 escravos
sendo que dentre estes 24 eram crianças. Destas crianças cativas 7 eram filhas de
Vitória e Inácio. Seu primeiro filho, José, foi batizado em 1734; a segunda filha,
Josepha, foi batizada em 1736, a terceira filha Apolônia foi batizada em 1739. Em 1741
foi a vez da filha Eufrazia; em 1744 batizaram os filhos gêmeos Cosme e Damião e por
fim, em 1749, batizaram o filho Sebastião911. Nota-se que se trata de uma família muito
estável, duradoura, com a união do casal sendo de pelo menos 15 anos, com uma prole
numerosa, onde os filhos conseguiram conviver com seus pais e irmãos por um período
relativamente longo. Temos ainda neste plantel um outro exemplo de família cativa,
também estável, isto é, com mais de um registro de filho batizado, só que desta vez
referente a filhos naturais, talvez de parceiros diferentes. Trata-se da crioula Joana, que
levou a pia batismal 3 filhos, dois com registro de pai incógnito e um sem menção
alguma sobre o pai. A primeira filha, Maria, foi batizada em 1744, o segundo filho,
Bernardo, foi batizado em 1747 e Rosa Purvula, a terceira filha, foi batizada em 1750912,
o que nos leva a crer, pela grande diferença nos intervalos intergenésicos, que as
crianças eram fruto de parceiros diferentes dessa mãe. Mesmo não se tratando de uma
família “completa”, temos aqui também um exemplo das possibilidades e da
diversidade de formas que as família escravas podiam assumir.
Cabe ainda sublinhar que dentre os 80 batizados legítimos em que foi possível
conhecer os dois pais, temos alguns registros de crianças cativas provenientes de
famílias escravas estáveis e de uniões de fora das senzalas, ou de uniões de escravas
com homens livres. Podemos citar, por exemplo, o caso da Antonia, escrava de
Francisco Ferreira Alaya, que em 1723 levou seu filho Antonio para receber o
sacramento do batismo na matriz de Antonio Dias. Antonio era filho de Antonia com
910
Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Registros Paroquiais de Batismos, livros G-02, p.
17, p. 21v, p. 22, p. 32v, p. 36v, p. 38v, p. 39v, p. 40, p. 41, p. 44, p. 46v, p. 55, p. 55v, p. 60, p. 63, p. 65,
p. 69v, p. 75v, p. 78v, p. 79v, p. 82v, p. 87v, p. 101v, p. 112v/G-03, p. 16v, p. 19, p. 41, p. 43, p. 58v, p.
59, p. 69v, p. 71v.
911
Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Registros Paroquiais de Batismos, livros G-02, p.
38v, p. 60, p. 87v, p. 112v/G-03, p. 19, p. 58v.
912
Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Registros Paroquiais de Batismos, livro G-03, p.
16v, p. 43, p. 69v.
258
Joseh, escravo do capitão Domingos Francisco de Oliveira 913. Parece que este potentado
não se importava que seus cativos circulassem e arranjassem parceiras fora dos limites
de sua propriedade, pois havia registro de um outro cativo seu, de nome Cristóvão, que
batizou um filho, chamado Valentim, em 1725 também na Matriz de Antonio Dias,
fruto de uma união dele com Thereza, escrava de Francisco Luiz 914. Em relação aos
casos de uniões de cativas com homens livres temos o exemplo da crioula Josefa,
escrava de Francisco Gomes da Cruz, que teve uma filha com o forro André, chamada
Maria, que foi batizada na Sé de Mariana em 1748915. Porém, ao que parece, Josefa
tinha um envolvimento mais antigo com este forro no tempo em que, possivelmente,
ainda era escravo de Francisco Gomes da Cruz, fato observado por um registro de um
filho que batizaram em 1744 chamado João916. Talvez este casal tenha começado seu
relacionamento ainda quando André era escravo de Francisco Gomes da Cruz e neste
intervalo de 4 anos do nascimento das crianças, André tenha conseguido sua alforria, o
que não foi impedimento para continuar tendo suas relações maritais com Josefa, tanto
que tiveram outra filha, Maria. Exemplos como os mencionados nos fazem rever a
imagem da escravidão essencialmente marcada por uniões cativas instáveis e por rígidas
fronteiras entre livres (ou libertos) e cativos.
Obviamente que tais políticas de alianças dos cativos não eram meros reflexos
dos pactos de seus donos. Os cativos tinham certa margem de autonomia 917. Percebe-se
que as relações de compadrio eram escolhas dos escravos, já que seria absurdo supor
senhores indicando como padrinhos de seus cativos escravos de outros donos918.
Por estes primeiros dados podemos argumentar que o compadrio era uma
instituição marcante no seio do grupo de senhores e escravos que estamos analisando,
constituindo-se importante mecanismo de interação entre eles. Para os escravos era
elemento importante da sociabilidade comunitária, criando e recriando-a pela
reciprocidade: visitas, convívio, festas, cuidados no momento de doença e também
apoio nas necessidades da vida colonial. O compadrio e apadrinhamento também
913
Arquivo da Casa dos Contos. Registros Paroquiais de Batismos, rolo 037, volume 456, p. 55.
914
Arquivo da Casa dos Contos. Registros Paroquiais de Batismos, rolo 037, volume 456, p. 62v.
915
Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Registros Paroquiais de Batismos, livro O-05, p.
110.
916
Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Registros Paroquiais de Batismos, livro T-01, p.
223v.
917
FRAGOSO, João. À Espera das frotas: micro-história tapuia e a nobreza principal da terra (Rio de
Janeiro, c.1600 – c.1750)... Op. cit., capítulo 2.
918
FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial ... Op. cit.,
p. 321-322.
259
TABELA 20
Origem dos pais, mães, padrinhos e madrinhas (para os quais encontramos
informações)
919
MAIA, Moacir de Castro. “As relações de parentesco ritual em uma sociedade escravista: compadres,
padrinhos e afilhados no cotidiano mineiro da primeira metade do século XVIII”. Anais do X Seminário
sobre Economia Mineira. Cedeplar - UFMG, Diamantina, 2008, p. 18.
260
daqueles com suas origens anotadas. Apesar disto, vamos tentar, mesmo que de maneira
superficial, tecer algumas considerações a respeito desses indivíduos.
Em relação às uniões entre os pais cativos, para aqueles casais que conseguimos
saber a origem dos dois cônjuges, os pais de origem africana estabeleceram relações
com mães de origem crioula em 3 casos e com de origem africana em 14 casos
respectivamente, e com os pais de origem crioula isso ocorreu em 4 e 5 casos. As
origens anotadas de pais, mães, padrinhos e madrinhas são em sua maioria de africanos.
Este fato pode ser mais um indício e reflexo da força do tráfico na constituição do
contingente escravo no seio do grupo que analisamos.
Acerca da questão dos padrinhos, para aqueles em que nos foi possível saber sua
origem temos que 47 eram africanos e 7 eram crioulos. Para as madrinhas escravas
verificamos que 33 eram africanas e 9 eram criolas. Mas há também os padrinhos e
madrinhas livres e forras que contabilizaram, para adultos e crianças, no caso dos
padrinhos 8 forros e 45 livres, e para as madrinhas 107 forras e 4 livres (ver tabelas 21,
22, 23 e 24).
A importância dos laços estabelecidos entre os escravos com os padrinhos, seja
de seus filhos seja deles mesmos, há muito vem sendo destacada por diversos trabalhos.
Em sua pesquisa sobre o recôncavo baiano, Gudeman e Schwartz concluíram que o
estabelecimento de relações de compadrio - tanto entre livres, quanto entre escravos -
tendeu a se dar dentro de um mesmo grupo social ou com outro em posição superior.
Neste sentido os escravos eram apadrinhados tanto por escravos como por livres, e os
nascidos livres eram quase sempre apadrinhados por livres920.
Já em um estudo sobre batismo em Curitiba entre 1685 a 1888 Schwartz
encontrou os seguintes padrões na formação das redes parentais fictícias: para filhos de
escravos era a escolha de um padrinho e uma madrinha livres, sendo que nenhum dos
dois era proprietário ou parente daquele escravo. O segundo modelo mais comum era a
escolha de dois escravos para padrinho. Quando o status dos padrinhos divergia, a
preferência era sempre padrinho livre e madrinha escrava. Talvez nisso houvesse o
reconhecimento da importância social do padrinho livre, que poderia fazer as vezes de
protetor e intercessor no futuro, bem como a estratégia paralela e prática de se levar em
conta a possibilidade de, em caso de morte da mãe, a madrinha escrava assumir a
920
GUDEMAN, Stephen & SCHWARTZ, Stuart B. “Purgando o pecado original: compadrio e batismo de
escravos na Bahia no século XVIII”. In: REIS, João José (Org.). Escravidão e invenção da liberdade.
Estudos sobre o negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988.
261
responsabilidade pela criação do afilhado. A mais rara dessas combinações era padrinho
escravo e madrinha livre921.
Analisando o compadrio em São João Del Rey nos séculos XVIII e XIX Silvia
Maria Jardim Brügger também destaca a importância do parentesco fictício naquela
sociedade. Em relação à formação das redes parentais a autora assinala que em quase
todos os casos por ela analisados, sejam entre livres, escravos, subalternos ou elite, o
compadrio estabelecia uma aliança para cima, isto é, tendia a ligar a família do
batizando a pessoas situadas num patamar equivalente ou superior da hierarquia social,
em termos de condição jurídica922.
Se o compadrio fosse um relacionamento restrito à igreja, a condição social do
padrinho seria pouco importante. Porém, precisamente porque tais laços estendiam-se
ao mundo secular, a consideração sobre a posição social assumia um significado
especial923. Neste sentido, para entendermos os significados sociais do compadrio nas
interações dos grupos ora focados, iremos analisar a partir de agora as condições
jurídicas dos padrinhos e madrinhas envolvidos. Vejamos separadamente esta variável
no que concerne aos batismos dos escravos adultos e inocentes. No caso dos batismos
dos inocentes na região e período enfocados, escravos, livres e forros apadrinharam em
30,76%, 17,94% e 3,41% dos casos respectivamente. Os padrinhos para os quais não foi
possível conhecer sua condição social totalizaram 104. Tivemos ainda 8 casos de
batismos em que não houve a presença do padrinho e de 6 batismos em que houve a
presença de dois padrinhos.
TABELA 21
Condição social do padrinho das crianças batizadas
Condição social Freqüência %
Escravo 76 32,47
Livre 42 17,94
Forro 8 3,41
Não consta 100 42,73
Sem padrinho 8 3,41
Total 234 100
Fonte: Livros de batismos de escravos de Mariana e seu termo e de Ouro Preto e seu termo. Arquivo
Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana e Arquivo da Casa dos Contos, período de 1711-1750.
921
SCHWARTZ, Stuart B. Escravos, roceiros e rebeldes... Op. cit., p. 283.
922
BRUGGER, Sílvia Maria Jardim. Minas Patriarcal. Família e Sociedade... Op. cit., passim.
923
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos... Op. cit., p. 332.
262
de uma rede social de solidariedade e proteção bem mais sólida931. Desta forma, a
escolha do padrinho parece se prender mais a motivos de ordem pragmática, tais como
interferências em possíveis contendas ou facilitação de alforria. Nestes casos, o
compadrio entre escravos estabelecia uma aliança para cima, o que requer que se
considere não só a condição jurídica dos padrinhos. Para isso um dado que pode ser
analisado é a presença ou não de termos/expressões indicativos de algum prestígio
social junto a seus nomes, tais como patentes militares, cargos políticos, sacerdócio932.
Em nossa amostragem, dos 42 padrinhos livres das crianças escravas, 15
aparecem como detentores de uma patente militar, 2 com título de sacerdócio e 1 com o
título de licenciado, somando assim 18 padrinhos com termos que revelam prestígio
social. Por exemplo, no plantel do capitão José da Costa de Oliveira, o casal cativo
Josefa mina e Antonio mina batizaram em 27 de novembro de 1744 sua filha Brígida
que teve como padrinhos a mulata Vitória Pereira, escrava do Reverendo João Machado
Falcão e como padrinho o sargento-mor Inácio Pereira933. Neste mesmo plantel havia
um outro casal que também escolhera como padrinho de seu filho um homem de
prestígio. Trata-se da crioula, mulata, Clara do Sacramento escrava de José da Costa de
Oliveira, e Jerônimo Botelho, cuja condição jurídica não foi possível conhecer. Em abril
de 1745 eles batizaram seu filho Alexandre que teve como padrinho o sargento-mor
Alexandre Pereira de Araújo e como madrinha Maria Pereira, que não teve sua condição
social descrita no registro934. Outro exemplo encontramos no plantel de Bartolomeu
Marques de Brito. Sua escrava Josefa escolheu para padrinho de seu filho Manuel
Púrpulo, de pai incógnito e batizado em outubro de 1714, o capitão Manuel Gomes da
Silva, não tendo madrinha registrada935. Com isso revela-se que o compadrio podia não
ser em alguns casos uma relação entre iguais. Sempre que possível, os pais procuravam
dar a seus filhos a apadrinhar por pessoas de algum modo situadas acima deles na
hierarquia social. Assim ainda que o compadrio gerasse uma relação de parentesco entre
as partes envolvidas, não rompia com a ordenação básica da sociedade936.
931
SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. “A produção da liberdade: padrões gerais das manumissões no
Rio de Janeiro colonial, 1650-1750”. In: FLORENTINO, Manolo (Org.). Tráfico, cativeiro e liberdade...
Op. cit., p. 323.
932
Ibidem, p. 287.
933
Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Registros Paroquiais de Batismos, livro I-10, p. 47v.
934
Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Registros Paroquiais de Batismos, livro I-10, p. 54v.
935
Arquivo da Casa dos Contos. Registros Paroquiais de Batismos, rolo 027, volume 490, p. 21.
936
BRUGGER, Sílvia Maria Jardim. Minas Patriarcal. Família e Sociedade... Op. cit., p. 321.
264
937
Idem, p. 294.
938
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos... Op. cit., p. 332.
939
Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Registros Paroquiais de Batismos, livro F-28, p. 59.
940
Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Registros Paroquiais de Batismos, livro F-28, p.
90v.
941
BOTELHO, Tarcísio. “Família e escravidão em uma perspectiva demográfica: Minas Gerais (Brasil),
século XVIII”... Op. cit., p. 214.
265
Leite Pereira cuja filha Tereza, batizada em 16 de junho de 1748 na Matriz de Nossa
Senhora de Nazaré, apadrinhada pelo capitão de Ordenanças Manuel de Medeiros Rosa,
homem importante da região, e por sua mulher Dona Faustina Rodrigues da Silva, foi
alforriada por seu senhor no ato do batismo942. Essas crianças nascidas livres ou filhas
de escravos libertos quase nunca tinham por padrinhos escravos, como pode ser
elucidado pelos exemplos que citamos onde os padrinhos eram livres também. Mas o
contrário acontecia regularmente, isto é, filhos de escravos com padrinhos livres,
libertos e escravos943.
Já em relação aos batismos de escravos adultos o quadro se diferencia
consideravelmente no que concerne a condição jurídica dos padrinhos, se comparado
com os batismos das crianças. Senão vejamos:
TABELA 22
Condição social do padrinho dos adultos batizados
Condição social Freqüência %
Escravo 271 88,85
Livre 3 0,98
Não consta 30 9,83
Sem padrinho 1 0,32
Total 305 100
Fonte: Livros de batismos de escravos de Mariana e seu termo e de Ouro Preto e seu termo. Arquivo
Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana e Arquivo da Casa dos Contos, período de 1711-1750.
Pela tabela acima constatamos que para os escravos adultos recém chegados era
bem mais provável que se tornassem afilhados de outros escravos e que só raramente
tinham padrinhos livres944, não existindo no grupo de escravos aqui analisado a presença
de padrinhos forros. Isso poder ser interpretado por dois ângulos. Os senhores podem ter
indicado mais escravos aculturados ou libertos para servirem de padrinhos a fim de
facilitar o ingresso dos africanos recém-chegados no novo contexto. Também pode ter
havido o reconhecimento do proprietário de que o boçal carecia de parentes e que tais
laços eram essenciais a seu bem estar. Esse mesmo motivo pode ter estado por trás do
desejo dos cativos de apadrinhar seus companheiros recém-chegados. Desta forma, o
942
Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Registros Paroquiais de Batismos, livro AA-27, p.
30.
943
SCHWARTZ, Stuart B. Escravos, roceiros e rebeldes... Op. cit., p. 272.
944
Idem, p. 272 e p. 281.
266
compadrio pode ter sido encarado por eles como uma forma de prover um parentesco
fictício a pessoas que necessitavam imensamente de algum tipo de família945.
Para tentarmos visualizar e melhor fundamentar esta idéia vejamos a trama
parental fictícia dos escravos adultos do plantel de Antônio Ramos dos Reis, que como
visto anteriormente era um dos maiores proprietários de escravos que trabalhamos.
Apesar de não termos certeza do tamanho de seu plantel, sem dúvida ele tinha um
número substancial de cativos, fato constado não só pelo registro de seu testamento no
qual declarava ter mais de 100 escravos, mas também, pela quantidade registros de
batismos e de casamentos que encontramos de escravos pertencentes a ele946. De 1734 a
1748 Antônio Ramos dos Reis casou 14 escravos seus, entre si e com forros, 947 e entre
1727 a 1748 levou a pia batismal nada menos que 58 cativos entre adultos e crianças948.
Dos cativos que encontramos registros de batismos, 32 eram adultos, batizados entre
1732 a 1747. Entre os padrinhos destes escravos recém-chegados a grande maioria era
também composta de escravos, uns pertencentes ao plantel de Antônio Ramos e outros
pertencentes a outros plantéis, havendo ainda indivíduos que não conseguimos
estabelecer sua condição jurídica. Dentre os padrinhos escravos pertencentes ao mesmo
plantel não houve grande variedade ou rotatividade na escolha deles, pois o escravo
Manoel apadrinhou 9 cativos recém-chegados, o escravo Bento apadrinhou 5 cativos
recém-chegados, o escravo Mathias apadrinhou 3, o escravo Antônio também
apadrinhou 3 e o escravo Francisco apadrinhou 2, havendo ainda batismos individuais
feitos pelos escravos Ventura, Ventura Ramos e Salvador949. Ou seja, dentre toda a
escravaria de Antônio Ramos apenas 8 de seus cativos apadrinharam escravos recém-
chegados. Em relação a padrinhos escravos de plantéis diferentes temos o escravo
Antônio, pertencente a Domingos Gonçalves, que apadrinhou duas vezes no plantel de
Antônio Ramos e o escravo João, pertencente a Fernando Gonçalves, que apadrinhou
uma vez no plantel deste potentado950. Dentre os demais padrinhos dos escravos adultos
945
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos... Op. cit., p. 334.
946
Arquivo Histórico do Museu da Inconfidência/ Casa do Pilar de Ouro Preto, 1º ofício - Testamento de
António Ramos dos Reis. Livro n.º20, folha 74, (1761).
947
Arquivo da Casa dos Contos. Livro de Casamento, rolo 029, volume 0506, 1711-1750.
948
Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Registros Paroquiais de Batismos, livros O-03, p.
11/T-01, p. 89v, p. 127, p. 127v Arquivo da Casa dos Contos. Registros Paroquiais de Batismos, rolo 027,
volume 491, p. 07, p. 18, p. 28, p. 29, p. 36, p. 77, p. 96, p. 104, p. 114, p. 115, p. 126, p. 128, p. 135, p.
139, p. 141, p. 146, p. 152, p. 154, p. 163, p. 166, p. 176, p. 190, p. 204, p. 223, p. 238/rolo 027, volume
493, p. 8v, p. 10, p. 11, p. 20v, p. 21, p. 22v, p. 23v, p. 28v, p. 37v, p. 40, p. 42v, p. 46v/rolo104, volume
492, p. 3.
949
Idem.
950
Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Registros Paroquiais de Batismos, livro T-01, p.
89v, p. 127v. Arquivo da Casa dos Contos. Registros Paroquiais de Batismos, rolo 027, volume 491, p.
267
que apareceram nos registros estão um certo Custodio Alvarez que apadrinhou duas
vezes os cativos de Antônio Ramos e um certo Manoel Lopes que também apadrinhou
duas vezes nesse plantel, mas cujas condições jurídicas não nos foi possível conhecer951.
Este caso evidencia como que a teia parental fictícia dos cativos, no caso de
adultos recém-chegados, podia servir, em meio a uma escravaria em permanente
processo de renovação, como um mecanismo de integração e sociabilidade. Não por
acaso os padrinhos eram repetidos na maior parte dos casos, fazendo com que não só o
padrinho, mas seus afilhados antigos incorporassem em suas teias os recém-chegados a
fim de lhes darem um mínimo de segurança e estabilidade, visto que seriam também
seus parentes e aliados. Como exemplo podemos citar o caso do escravo Manoel,
padrinho de nove escravos adultos do plantel de Antônio Ramos. Seus primeiros
afilhados, segundo consta nos registros, foram Luiza, Domingos, João Mina e João,
batizados coletivamente em 1737 na Matriz do Pilar. Depois apadrinhou
individualmente Miguel e Domingos em 1742 também na Matriz do Pilar, que
certamente encontraram não só em seu padrinho, mas em seus afilhados mais antigos
apoio para poderem melhor se integrar na nova realidade. O que também deve ter
ocorrido com os escravos Antônio Mina, João Mina e José Mina batizados
coletivamente em 1747 na Matriz do Pilar, para os quais o padrinho Manoel e seus
afilhados mais antigos, dos quais Miguel e Domingos agora faziam parte, foram
certamente uma boa fonte de consolo e apoio952.
O exemplo do plantel de Antônio Ramos dos Reis pode servir também para nos
alertar sobre um outro ponto que alguns autores já destacaram na historiografia 953, a
saber, a presença de escravos intermediários nos plantéis e, conseqüente, de níveis de
hierarquia entre eles. Um escravo recém-chegado era sempre um potencial integrante
para as “milícias particulares” desses senhores, mas antes precisavam socializar-se e
entrar nas redes de relações que supomos haver na escravaria para que assim os
potentados tivessem maiores chances de estabelecer ligações de “confiança” para
colocar armas nas mãos dos mesmos. E o compadrio podia ser um destes mecanismos
de socialização e integração dos novos cativos. Mesmo não tendo como afirmar devido
146.
951
Arquivo da Casa dos Contos. Registros Paroquiais de Batismos, rolo 027, volume 491, p. 115, p.
154/rolo 027, volume 493, p. 22v.
952
Arquivo da Casa dos Contos. Registros Paroquiais de Batismos, rolo 027, volume 491, p. 28, p. 36, p.
163, p. 176/ rolo 027, volume 493, p. 40/ rolo 104, volume 492, p. 3.
953
Cf. LARA, Sílvia Hunold. Campos da Violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro,
1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. LIMA, Carlos. “Escravos de Peleja: a instrumentalização
da violência escrava na América portuguesa (1580-1850)”... Op. cit., p. 145.
268
TABELA 23
Condição social da madrinha das crianças batizadas
Condição social Freqüência %
Escrava 75 32,05
Forra 64 27,35
Livre 4 1,70
Não consta 51 21,79
Sem madrinha 40 17,09
Total 234 100
Fonte: Livros de batismos de escravos de Mariana e seu termo e de Ouro Preto e seu termo. Arquivo
Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana e Arquivo da Casa dos Contos, período de 1711-1750
954
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos... Op. cit., p. 331.
270
TABELA 24
Condição social da madrinha dos adultos batizados
Condição social Freqüência %
Escrava 186 60,98
Forra 43 14,09
Não consta 14 4,59
Sem madrinha 62 20,32
Total 305 100
Fonte: Livros de batismos de escravos de Mariana e seu termo e de Ouro Preto e seu termo. Arquivo
Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana e Arquivo da Casa dos Contos, período de 1711-1750.
maioria ao plantel de Manuel Cardoso Cruz. A escrava Thereza, por exemplo, que
batizou 3 cativos deste potentado pertencia a Catarina Lima Correia. Havia ainda
cativas como madrinhas dos cativos adultos de Manuel Cruz pertencentes ao potentado
Manuel Pereira de Souza, a João Francisco de Oliveira, Jerônimo José e Francisco da
Cunha de Macedo955.
Outro exemplo encontramos no plantel de Manuel Dias que batizou 25 escravos
adultos entre 1714 a 1742, sendo 24 homens e 1 mulher e 24 africanos e 1 crioulo. Dos
padrinhos 23 eram escravos e 2 sem condição jurídica definida no registro. Mais uma
vez os cativos padrinhos não eram todos pertencentes ao plantel de Manuel Dias, na
verdade a grande maioria pertencia a outros senhores. Apenas 9 dos 23 padrinhos
escravos eram de Manuel Dias, os outros 12, tirando aqui os dois padrinhos que não
conseguimos saber sua condição jurídica, se dividam entre vários proprietários
diferentes que incluíam 1 sargento-mor e um Reverendo Padre. Já as madrinhas se
dividam entre 10 escravas, 7 forras, 1 para a qual não foi possível saber sua condição
jurídica e 7 casos onde não houve presença de madrinha. Entre as escravas mais uma
vez os proprietários eram diferentes, em apenas 3 casos ela era pertencente a Manuel
Dias, nos demais pertenciam a vários proprietários, inclusive a mulheres956. Nos dois
exemplos citados temos bem definidos como a trama parental destes cativos poderia ser
algo complexo e dinâmico na medida em que procuravam agregar indivíduos de
diferentes procedências e níveis sociais ligando não só os cativos, mas também seus
senhores com estes variados setores horizontais e verticais. O que trazia vantagens para
ambos os lados, como já mencionando, pois para escravos, sobretudo em se tratando de
estrangeiros, podia significar maiores chances de integração e sobrevivência num
mundo inicialmente hostil, bem como contato com o mundo dos livres. Já para senhores
era meio de estender seus laços sociais a diferentes segmentos e assim ampliar
possibilidades de alcançar aliados.
No caso das crianças podemos interpretar a escolha das madrinhas de duas
formas. Talvez a escolha de madrinhas cativas tivesse se pautado nos possíveis cuidados
e solidariedade cotidiana para criação dos filhos que uma madrinha escrava poderia
955
Ver: Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Registros Paroquiais de Batismos, livros O-05,
p. 98/O-03, p. 16v/O-04, p. 29, p. 40, p. 65v, p. 69, 79v, p. 83v, p. 90, p. 99, p. 104, p. 123v/O-05, p.28, p.
49, p. 115/T-01, p. 144.
956
Ver: Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Registros Paroquiais de Batismos, livros F-23,
p. 8, p. 44, p. 60v, p. 79/L-07, p. 7v/L-08, p. 54/O-04, p. 03v, p. 17, p. 31v, p. 100v/O-05, p. 51v/T-01, p.
78v, p. 89v, p. 93, p. 95, p. 137, p.156v, p. 199. Arquivo da Casa dos Contos. Registros Paroquiais de
Batismos, rolo 027, volume 490, p. 6, p. 12, p. 14, p. 15, p. 23, p. 77, p. 79/rolo 104, volume 492, p. 8.
272
957
BRUGGER, Sílvia Maria Jardim. Minas Patriarcal. Família e Sociedade... Op. cit., p. 294.
958
Idem, p. 299.
959
Escrituras de Alforria e Liberdade dos Livros de Notas do 1º ofício, CSM, Livro 22, data 1723-1724,
pág. 179v-180v.
960
Escrituras de Alforria e Liberdade dos Livros de Notas do 1º ofício, CSM, Livro 18, data 1722 , pág.
100-100v.
961
Ver: Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Registros Paroquiais de Batismos, livros AA-
07, p. 16, p. 16v, p. 29v, p. 30, p. 32v/AA-27, p. 30, p. 32v/F-23, p. 70v, p. 73, p. 101, p. 103, p. 107, p.
118v, p. 119, p. 142v, p. 144, 146v, p. 147v, p. 154/H-17, p. 75.
273
morte da mãe dos mesmos, bem como uma separação por venda, partilha, ou qualquer
meio que rompesse os laços entre mãe e filho.
Outro exemplo temos mais uma vez no plantel de Antônio Ramos dos Reis. A
rede parental construída pelos cativos acerca das madrinhas é muito interessante e
revela as estratégias que muitas vezes os pais ou as mães lançavam mão para
aumentarem as chances de seus filhos serem beneficiados por tais contatos. Antônio
Ramos batizou 27 crianças escravas entre 1729 e 1748 em Vila Rica. Destas crianças
apenas 3 eram fruto de uniões legítimas, as demais tinham pais incógnitos ou não
mencionados nos registros. Mais um motivo para que com a escolha dos padrinhos as
mães garantissem mais chances de seus filhos terem apoio e cuidados para melhor
sobreviverem. Não por acaso 13 das 27 madrinhas eram forras, sendo que a forra Joana
Marques amadrinhou nada menos que 6 crianças deste plantel e uma escrava sua
chamada Domingas Marques amadrinhou 2 crianças cativas de Antônio Ramos962. Ou
seja, ela tinha contato com 8 escravos deste plantel e seus filhos mediante o batismo dos
inocentes. Havia ainda uma madrinha escrava de nome Mariana que pertencia à forra
Micaela Ramos, que também amadrinhou uma criança do plantel de Antônio Ramos, ou
seja, mais um caso de forra que se ligou pelo compadrio aos escravos deste potentado
não só através de si mesma, mas de uma escava sua963. Além das forras e destas cativas
de Joana Marques e Micaela Ramos havia mais 4 escravas como madrinhas
pertencentes a Antônio Ramos e 3 madrinhas que não conseguimos saber sua condição
jurídica964. Portanto as madrinhas deste plantel, quando não eram forras, eram cativas
pertencentes ou a essas forras que também foram madrinhas ou ao próprio Antônio
Ramos dos Reis.
Joana Marques deve ter sido uma mulher com algum recurso, o prova a escrava
que possuía e que apareceu nos registros como madrinha, bem como o prestígio para ser
tantas vezes escolhida para amadrinhar filhos de escravas de Antônio Ramos, devendo
ter com este também uma boa relação. No caso da forra Micaela Ramos, sabemos, pelo
testamento deixado pelo potentado em questão, que ela havia sido escrava dele e
962
Ver Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Registros Paroquiais de Batismos, livros O-03,
p. 114. Arquivo da Casa dos Contos. Registros Paroquiais de Batismos, rolo 027, volume 491, p. 07, p.
18, p. 29, p. 36, p. 77, p. 96, p. 104, p. 114, p. 115, p. 126, p. 141, p. 152, p. 166, p. 190, p. 204, p.
238/rolo 027, volume 493, p. 8v, p. 10, p. 11, p. 20v, p. 21, p. 28v, p. 37v, p. 42v, p. 46v/rolo104, volume
492, p. 3.
963
Arquivo da Casa dos Contos. Registros Paroquiais de Batismos, rolo 027, volume 491, p. 204.
964
Ver nota 860.
274
965
Arquivo Histórico do Museu da Inconfidência/ Casa do Pilar de Ouro Preto, 1º ofício - Testamento de
António Ramos dos Reis. Livro n.º20, folha 74, (1761).
966
BRUGGER, Sílvia Maria Jardim. Minas Patriarcal. Família e Sociedade... Op. cit., p. 293.
967
Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Registros Paroquiais de Batismos, livro G-02, p.
79v.
968
Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Registros Paroquiais de Batismos, livro G-03, p. 59.
969
Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Registros Paroquiais de Batismos, livro O-05, p.
06v.
275
80
70
60
50 Mesmo plantel
40 Plantel diferente
Não consta
30
20
10
0
Padrinho Madrinha
Fonte: Livros de batismos de escravos de Mariana e seu termo e de Ouro Preto e seu termo. Arquivo
Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana e Arquivo da Casa dos Contos, período de 1711-1750.
O gráfico acima destaca que na maioria dos casos onde o padrinho ou a
madrinha eram escravos eles eram provenientes de outras escravarias, com uma
porcentagem significativa no caso das madrinhas (68,58%), o que indica a capacidade
dos escravos de formar laços além dos limites da propriedade. Sendo o compadrio uma
forma de firmar alianças de solidariedade, ou seja, de constituir uma parentela que não a
de sangue, tal constatação sugere que havia uma rede ampla de relações amistosas e de
parentesco forjadas entre as bênçãos que emanava da pia batismal970. Dito de outro
modo, a presença de padrinho de plantéis diferentes revela que os escravos tinham
possibilidade de circulação, mobilidade espacial para tecer seus laços de amizade e
solidariedade, sendo este mais um indício de relações travadas com seus senhores com
base em negociações e reciprocidades. Essas informações nos sugerem que tais
interações poderiam representar um grau de segurança tal que a circulação na
vizinhança poderia se tolerado971.
Para além disso, a presença destes vínculos de compadrio que extrapolavam os
limites do cativeiro, indica também uma participação considerável dos próprios
escravos na escolha dos padrinhos de batismo972, pois seria difícil para os senhores
indicar como padrinhos de seus escravos outros da mesma condição e que pertencessem
970
ENGEMANN, Carlos. “Da comunidade escrava: Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX...” Op. cit., p. 189.
971
Idem, p. 190-191.
972
SCHWARTZ, Stuart B. Escravos, roceiros e rebeldes... Op. cit., p. 283.
276
973
Idem, p. 294.
974
BENNETT, Herman L. Africans in Colonial México. Bloomington : Indiana University Press, 2003.
Herbert Klein e Francisco Vidal Luna também corroboram esta afirmativa ao argumentar que em São
Paulo a proporção de cativos casados aumentava quanto maiores fossem os plantéis, porque assim se
aumentava a possibilidade de encontrar parceiros o que indica, segundo os autores, que as cativas
escolhiam os cônjuges. Cf.: LUNA, Francisco Vidal e KLEIN, Herbert. Evolução da sociedade e
economia escravista de São Paulo, de 1750 a 1850. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
2005, p. 183 a 189.
975
Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Registros Paroquiais de Batismos, livros O-04, p.
27, p. 38v, p. 51, p. 58, p. 58v, p. 103v/T-01, p. 106, p. 154v, p. 160, p. 171v/G-02, p. 02, p. 18, p. 18v
976
Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Registros Paroquiais de Batismos, livros O-04, p.
51/R-20, p. 18. Arquivo da Casa dos Contos. Registros Paroquiais de Batismos, rolo 027, volume 491, p.
32,/rolo 037, volume 456, p. 08v, p. 14v, p. 55, p. 62v, p. 67.
277
padrinho. Os escravos, com exceção de dois, eram quase todos pertencente a Bento
Fernandes Furtado. Contudo as madrinhas escravas, que totalizavam 7, eram todas
pertencentes a outras escravarias, havendo 3 batismos com ausência delas977, indicando
que em alguns casos as ligações extra-plantéis podiam ser feitas via mulheres escravas.
Temos aqui, portanto, duas situações distintas que poderiam ocorrer na formação
da malha parental fictícia do grupo analisado. Por um lado, e em alguns casos, a
construção pelos escravos destas relações de compadrio que ultrapassavam os limites da
senzala, e aqui também podemos incluir o compadrio com forros e livres, demonstra a
necessidade de, num mundo hostil, de criar laços morais com pessoas de recursos, para
proteger a si e aos filhos. Por outro lado, a aproximação em relação ao universo da
liberdade e a dependência em relação a seus senhores ou outros homens livres, talvez,
gerassem uma posição desconfortável ao cativo, no interior da escravaria, na medida em
que ele poderia ser tido como um aliado do senhor em possíveis contendas com seus
companheiros de cativeiro. Por isso, era importante também se escolher padrinhos
cativos, mesmo que de outros plantéis, visto que isso era fundamental a suas pretensões
de alianças sociais no próprio cativeiro e fora dele978.
Além destas indicações de mobilidade dos cativos, autonomia em suas vidas e
estratégias de melhor sobrevivência na procura de aliados, a presença de padrinhos de
diferentes plantéis podia indicar também ligações de um determinado potentado com
outro, o que denota o grau de abertura da senzala de um senhor para escravos de
diferentes plantéis. Se os padrinhos são retirados de outros segmentos sociais tais como
forros ou pequenos senhores, conseguimos perceber a relação dos potentados com
outros estratos subalternos. Isto pode ser ilustrado através dos registros paroquiais de
batismos dos escravos de Pedro Teixeira Cerqueira, de 1725 a 1729. Este reinol foi um
conquistador nas Minas, mais especificamente do Ribeirão do Carmo, sendo um dos
primeiros a se estabelecer na região. Em 1711 foi citado como um dos principais da
localidade em uma lista feita pelo governador Antônio Albuquerque Coelho de
Carvalho para realização de “hua junta que o dito governador ordenou fazer se no dia
08 de abril de mil sette centos e onze com as pessoas e moradores principaes do
districto do Ribeirão do Carmo para levantar hua villa neste dito districto”979.
977
Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Registros Paroquiais de Batismos, livros R-20, p. 12,
p. 14v, p. 18v, p. 19v, p. 24v/R-22, p. 02/R-24, p. 01v, p. 03v, p. 06v.
978
BRUGGER, Sílvia Maria Jardim. Minas Patriarcal. Família e Sociedade... Op. cit., p. 291.
979
“Termo de hua junta que fez no arraial do Ribeirão do Carmo o senhor governador e capitam general
Antonio Albuquerque Coelho de Carvalho, para se haver de levantar no dito arraial hua das villas que S.
Mag. tem ordenado se erigião nestas Minas”. In: Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte,
278
que Pedro Cerqueira se ligava, através das relações de compadrio que partiam de suas
terras, a potentados da envergadura de Caetano Álvares Rodrigues, Francisco Ferreira
de Sá e Sebastião Fagundes Varella. Ou seja, os cativos de Pedro Cerqueira surgem
como afilhados de cativos de sete diferentes senzalas, entre grandes e pequenos
senhores, além dos forros. Portanto, além das alianças matrimoniais, políticas,
comerciais, os potentados dispunham ainda deste mecanismo vertical para reforçar
poder e autoridade entre si, bem como com os escravos e outros segmentos sociais tais
como forros e pequenos senhores. Em outras palavras, com tal malha parental fictícia
Pedro Cerqueira conseguia ter conectado a si escravarias de importantes nomes da
região, de pequenos senhores, bem como libertos. Considerando que os potentados
citados eram grandes proprietários escravistas e pertenciam à governança da terra, não
seria nada surpreendente seu escravos terem alguma ascendência sobre os demais, e
assim serem escolhidos pelos cativos de Pedro Cerqueira, homem também importante
da região, para desempenharem o papel de padrinhos de seus filhos. Porém, não
podemos esquecer que cativos de senhores de maior porte podiam escolher padrinhos e
madrinhas para seus filhos entre escravos de pequenos senhores e forros. Assim, as
alianças entre cativos não refletiam apenas os passos da hierarquia senhorial. De
qualquer forma, através de seus cativos os potentados conseguiam chegar a outras
senzalas e a seus donos, leia-se: ampliava a sua malha de legitimidade social para, com
isto, ir consolidando o mando nas Minas985.
Um outro exemplo de como estas relações parentais cativas poderiam não só
conformar sua sociabilidade, mas também conectar o senhor com vários segmentos
sociais e assim ampliar sua margem de legitimidade, surge quando analisamos os
registros de batismo de escravos de Antônio Dias de Oliveira. Este paulista, natural de
Taubaté, saiu de sua terra natal para sertanejar na região das Minas descobrindo Ouro
em Vila Rica em 1698. Em 1700 fundou o arraial de Antônio Dias, tornando-se por toda
esta fama guarda-mor na referida capitania986. Encontramos 8 registros de batismos
deste potentado abarcando o período de 1713 a 1728 que se referiam a duas crianças e 6
adultos, sendo as duas crianças provenientes de uniões ilegítimas. Dentre os padrinhos
destes cativos temos 6 escravos, um livre e um sem condição jurídica definida. Dos
padrinhos escravos dois eram de propriedade do capitão-mor Antônio Ramos dos Reis,
985
FRAGOSO, João. À Espera das frotas: micro-história tapuia e a nobreza principal da terra (Rio de
Janeiro, c.1600 – c.1750)... Op. cit. capítulo 3, item 3.2.
986
FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil... Op. cit.,
p. 274.
280
livres e pequenos donos de cativos. Afinal, tais experiências podiam gerar, para aqueles
senhores, relações clientelares988. Como bem nos lembra João Fragoso, obviamente que
a efetivação de tais estratégias pressupunha uma ressonância nas orientações valorativas
dos escravos e das demais camadas sociais. Pois tais mecanismos não se faziam levando
em conta somente os desejos dos senhores, elas também formavam recursos para os
cativos e estes instrumentos não eram totalmente comandados pelos potentados. Nas
palavras do referido autor:
Não custa lembrar que escravos como Joaquim mina ou Maria angola
vinham de sociedades acostumadas com guerras, razias e escravidão,
mas também parentelas, lavouras camponesas e comércio. Assim como
não é demais recordar que a travessia do Atlântico para a América não
ocasionara nenhuma amnésia irrecuperável para Joaquim e Maria e
seus parceiros de escravidão. Portanto, aqueles elementos faziam parte
das orientações valorativas dos cativos, os auxiliavam na sua tomada de
decisões989.
Ele teve 14 escravos seus sendo indicados para serem padrinhos ou madrinhas de outros
cativos dos 89 potentados mencionados nos registros de batismos992. Em seguida temos
os nomes de Francisco Ferreira de Sá e Bartolomeu Marques de Britto que tiveram 4
escravos seus sendo elegidos para apadrinharem cativos de outros potentados993.
Isto revela que por seus cativos os potentados conseguiam estabelecer ligações
estratégicas com outros potentados. Mais do que isso, o fato de um potentado ter
escravos seus com ampla rede de afilhados era talvez um indício tanto de seu poder e
influência quanto da importância e renome desse escravo na localidade, pois por se
tratar de uma sociedade profundamente marcada por uma identificação social
verticalizada, não era raro que um subalterno fizesse uso em benefício próprio do
prestígio social emanado do superior hierárquico a quem estivesse vinculado 994. Além
disso, as maiores possibilidades que os cativos de grandes plantéis tinham de criar laços
familiares, de ter acesso a terra, de ter melhores condições de vida os tornavam
potencialmente mais capazes de criar um cotidiano com maior autonomia se comparado
a escravos de plantéis pequenos ou médios, ou de senhores menos proeminentes.
Deveriam sentir-se privilegiados dentro do infortúnio comum995.
Ademais, para o potentado estar ligado pelo compadrio de seus escravos a um
grande número de famílias deve ter sido um recurso político importante, pois o
compadrio era um poderoso mecanismo de ampliação de redes clientelares996. Pois ele
vinculava não só o indivíduo, mas famílias, o que era válido para os dois pólos da
relação: tanto o potentado e o padrinho de seu plantel que passava a se relacionar com
os parentes dos afilhados, como estes se inseriam na parentela daquele 997. Em outros
termos os afilhados se constituíam em recursos de poder importante de que dispunham
os padrinhos, e também os potentados, laços que se estendiam não só ao afilhado, mas a
sua parentela. As expectativas que muitas vezes se tinham em torno do compadrio, da
992
Ver: Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Registros Paroquiais de Batismos, livros O-03,
p. 11/T-01, p. 89v, p. 127, p. 127v Arquivo da Casa dos Contos. Registros Paroquiais de Batismos, rolo
027, volume 491, p. 07, p. 18, p. 28, p. 29, p. 36, p. 77, p. 96, p. 104, p. 114, p. 115, p. 126, p. 128, p. 135,
p. 139, p. 141, p. 146, p. 152, p. 154, p. 163, p. 166, p. 176, p. 190, p. 204, p. 223, p. 238/rolo 027,
volume 493, p. 8v, p. 10, p. 11, p. 20v, p. 21, p. 22v, p. 23v, p. 28v, p. 37v, p. 40, p. 42v, p. 46v/rolo104,
volume 492, p. 3.
993
Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Registros Paroquiais de Batismos, livros O-03, p.
53, p. 54, p. 67, p. 83, p. 83v, p. 84v, p. 91v, p. 119/O-04, p. 17v, p. 18, p. 18v, p. 19, p. 20, p. 22, p. 22v,
p. 30, p. 63v/O-05, p. 27v. Arquivo da Casa dos Contos. Registros Paroquiais de Batismos, rolo 37,
volume 456, p. 03, p. 07v, p. 21
994
SOARES, Márcio de Sousa. A remissão do cativeiro. Alforrias e liberdades nos Campos dos
Goitacases, c. 1750 - c. 1830. Niterói, UFF: 2006. Tese de Doutorado, p. 214.
995
FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento... Op. cit., p. 335.
996
BRUGGER, Sílvia Maria Jardim. Minas Patriarcal. Família e Sociedade... Op. cit., p. 307.
997
Idem, p. 306.
283
proteção que poderia gerar para os envolvidos pode ser indicada pela escolha freqüente
de padrinhos mais bem situados na hierarquia social, ou pelo menos de escravos
pertencentes a tais senhores, e que portanto disporiam de mais recursos para dar aos
afilhados998.
Entretanto, para que se evite contradições é importante destacar que o compadrio
apresentava uma possibilidade de extensão dos laços sociais, pois uma pessoa poderia
apadrinhar um número infindo de afilhados, incorporando a sua parentela, e a de seu
senhor quando fosse o caso, inúmeras unidades familiares, e ao mesmo tempo permita
que se criassem sólidos vínculos entre pessoas das mais diferentes condições sociais,
que passavam a se reconhecer como parentes. Contudo, entre eles não haveria qualquer
implicação de ordem patrimonial. O afilhado embora pudesse esperar ser beneficiado
pelo padrinho, ou por seu senhor, não era seu herdeiro necessário. Por isso, a rigor,
ninguém em princípio teria motivos para recusar um apadrinhamento. Pelo contrário, ter
afilhados era um capital político importante999.
O quadro esboçado revela a importância das negociações e reciprocidades dos
senhores com seus cativos para construção da sua legitimidade social, já que com tais
mecanismos conseguiam ter recursos para negociar com a Coroa e seus representantes
interesses e privilégios, e assim tornarem-se e manterem-se como autoridade, se
estabelecendo no topo da hierarquia a fim de compartilhar o poder da Republica com a
monarquia. Ou seja, a conquista, a ocupação de cargos, as mercês, as relações
horizontais, eram certamente importantes elementos para a formação e permanência dos
indivíduos como poderosos, mas, em se tratando de uma sociedade escravista, outro
elemento crucial para o exercício do poder era o estabelecimento de interações com os
cativos com intuito de conhecer seus interesses1000.
998
Idem, p. 324-325.
999
Ibidem, p. 324-325
1000
FRAGOSO, João. À Espera das frotas: micro-história tapuia e a nobreza principal da terra (Rio de
Janeiro, c.1600 – c.1750)... Op. cit., p. 95.
284
Capítulo 5
A Alforria
1001
Neste sentido ver: CANO, Wilson. Ensaios sobre a Formação Econômica do Brasil. São Paulo,
UNICAMP, 2002, p. 22. SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do Ouro... Op. cit. SOUZA, Laura
de Mello e. Norma e Conflito... Op. cit., p.152-153 e 170. MATOSSO, Kátia Q. “A Propósito das Cartas
de Alforria, Bahia 1779-1850”. In: Anais de História. Assis, n. 04, 1972, p. 36. OLIVEIRA, Inês Côrtes
de Oliveira. O Liberto: seu mundo e os outros. Salvador, 1790-1890. SP, Corrupio, 1988, p. 26 e 42.
CUNHA, Manuela Carneiro da. Negros, Estrangeiros: os escravos libertos e sua volta à África. SP,
Brasiliense, 1985, p.49. SOARES, Márcio de Sousa. A remissão do cativeiro... Op. cit., p. 6.
1002
DAVIS, David B. O problema da escravidão na cultura ocidental. Rio de Janeiro : Civilização
Brasileira, 2001, p. 302.
1003
MONTI, Carlo Guimarães. “Por amor a Deus: o processo da alforria dos escravos de Mariana (1750-
1759)”. Revista do Centro Universitário Barão de Mauá. V.1, nº.1, jan/jun 2001, p. 3.
1004
SOARES, Márcio de Sousa. A remissão do cativeiro... Op. cit., p. 1.
1005
Neste sentido ver: FLORENTINO, Manolo (Org.). Tráfico, cativeiro e liberdade... Op. cit. Ver ainda:
DAVIS, David B. O problema da escravidão na cultura ocidental... Op. cit., sobretudo o cap. 9.
285
1009
Ver: GORENDER, Jacob. A Escravidão Reabilitada. SP, Ática, 1990, p. 91-96. SLENES, Robert. The
Demography and Economics of Brazilian Slavery: 1850-1888. Stanford, PhD. Thesis, Stanford
University, 1975, p. 484-573. Apud: SOARES, Márcio de Sousa. A remissão do cativeiro... Op. cit., p. 9.
1010
SOARES, Márcio de Sousa. A remissão do cativeiro... Op. cit., p. 9.
1011
Idem.
1012
MATHIAS, Carlos Leonardo Kelmer. “Notas iniciais acerca da prática da alforria no Termo de Vila do
Carmo, 1711-1720”. In: Locus. Revista de História. Juiz de Fora, v. 12, n. 2, p. 29-58, 2006, p. 34.
287
1013
Ver: RUSSEL-WOOD, A. J. R. Escravos e Libertos no Brasil Colonial... Op. cit., p. 59-66; LUNA,
Francisco Vidal & COSTA, Iraci del Nero. “A Presença do Elemento Forro no Conjunto dos
Proprietários de Escravos”. Ciência e Cultura, 32 (7), 1979, p. 836-837.
1014
PAIVA, Eduardo França. Escravos e Libertos nas Minas Gerais do Século XVIII... Op. cit., p. 83-84.
SOARES, Márcio de Sousa. A remissão do cativeiro... Op. cit., p. 7.
1015
MATHIAS, Carlos Leonardo Kelmer. “Notas iniciais acerca da prática da alforria no Termo de Vila
do Carmo, 1711-1720...” Op. cit., p. 34.
288
80
70
60
50
Masculino
40
Feminino
30
20
10
0
Gratuita Paga Condicional
Fontes: Escrituras de Alforria e Liberdade dos Livros de Notas do 1º e 2º Ofício do Arquivo Histórico
Casa Setecentista de Mariana e do Arquivo Histórico do Museu da Inconfidência. Testamentos do
Arquivo Histórico Casa Setecentista de Mariana e do Arquivo Histórico do Museu da Inconfidência.
Livros de Batismos de Escravos de Mariana e seu Termo e de Ouro Preto e seu Termo. Arquivo
Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana e Arquivo da Casa dos Contos, período de 1711-1750.
1016
Idem, p. 41. Ver também: SAMPAIO, António C. Jucá. “A produção da liberdade: padrões gerais das
manumissões no Rio de Janeiro colonial, 1650-1750...” Op. cit., p. 307.
289
1017
Ver: RUSSEL-WOOD, A. J. R. Escravos e Libertos no Brasil Colonial... Op. cit. SOARES, Márcio de
Sousa. A remissão do cativeiro... Op. cit. FLORENTINO, Manolo. “Sobre minas, crioulos e a liberdade
costumeira no Rio de Janeiro, 1789-1871”. In: FLORENTINO, Manolo (Org.). Tráfico, cativeiro e
liberdade... Op. cit.
1018
SOARES, Márcio de Sousa. A remissão do cativeiro... Op. cit., p. 144-145.
1019
Ver: ANTT. Familiatura do Santo Oficio de Manuel Ferreira de Sá. Incompleta, maço 97, doc. 4109.
Abril de 1720. AHU/MG/cx.: 29; doc.: 15.
290
Como se vê para este potentado montar “milícias escravas” era algo feito com
uma certa constância e para conseguir armar esse cativos que levou consigo nas
diligências citadas muito provavelmente lançou mão de elementos cobiçados por estes
mesmos escravos para negociar com eles. E certamente a alforria estava no horizonte de
interesses para os mesmos, sendo esta direcionada para eles próprios ou para filhos,
mulheres e outros parentes. Infelizmente, como já mencionado, nos relatos em que tais
potentados mencionavam o uso de escravos armados não vinha listado nenhuma
referência específica que nos auxiliasse na investigação do perfil destes mesmos cativos
tais com o seu nome, origem, idade, etc. A menção é sempre feita de forma genérica,
como indica o relato acima, e as reflexões que lançamos muitas vezes tem de ser feita
com base em indícios que encontramos. De qualquer forma conseguimos em vários
momentos montar, através das pistas encontradas, um quadro consistente o bastante
para defender e corroborar os objetivos, problemas e hipóteses levantados na pesquisa.
Neste caso, talvez possamos argumentar que se a possibilidade de alcance da
alforria existente no seio de uma escravaria ajudava a minorar o potencial conflito
inerente à relação senhor-escravo a ponto de não comprometer a reprodução da ordem
escravista, conforme destacamos mais acima, essa idéia possa ter ajudado a Antônio
Correia Sardinha em suas relações de cunho mais pessoal com os escravos que levou
como braço armado. Mesmo que não tenhamos como saber, pela ausência de fontes e
dados mais específicos sobre tais cativos, se algum deles conseguiu de fato alcançar sua
liberdade, sabemos que este potentado não se absteve de lançar mão deste recurso da
concessão da alforria para alguns cativos seus a fim de aliviar as tensões cotidianas. De
fato, em maio de 1714 alforriava gratuitamente os mulatinhos Antônio e Manoel, de 7 e
4 anos respectivamente, filhos de sua escrava Maria de nação Mina, alegando que
1027
ANTT. Habilitação da Ordem de Cristo de Antonio Correa Sardinha. Letra A, maço 48, doc. 25. Julho
de 1724. Grifos meus.
292
“tinha muito amor aos ditos mulatinhos e por os haver criado em sua casa lhes
passava carta de alforria”1028. O mesmo aconteceu em 22 de março de 1715 aos
mulatinhos Maria e Amaro, de 6 e 5 meses respectivamente, filhos de Suzana de nação
Angola e Josefa de nação Mina, mães de Maria e Amaro respectivamente e escravas do
dito potentado. Este alforriou às ditas crianças gratuitamente “por que as mães das
crianças lhes serviram com muito cuidado, zelo e lealdade e por que tinha muito amor
pelas crianças por as ter criado em sua casa e pellos bons serviços e pelo amor de
Deus lhes dá alforria”1029.
Nota-se assim que o estabelecimento de relacionamentos sociais proveitosos era
de grande utilidade na conquista da liberdade. Exemplos disso são as escrituras em que
a liberdade do filho é creditada aos bons serviços prestados pela mãe. Esta conseguia
beneficiar assim sua prole, ainda que não a ela pessoalmente. Neste sentido, cada
escritura pode ser vista como o resultado final de um longo processo de negociação,
nascido ao mesmo tempo da aceitação pelo cativo das regras da sociedade escravista e
da utilização por ele dessas mesmas regras em seu benefício1030.
Portanto, os exemplos acima também nos revelam que a mulher era em muitos
casos o principal elemento responsável pela sua própria alforria, a do filho e, às vezes, a
do marido, argumento válido não só para as alforrias gratuitas, mas também para as
pagas. Isso talvez possa ter sido reforçado pelo fato de que em relação ao homem que
para acumular pecúlio e comprar sua alforria, ou a de parentes, podia atuar apenas na
mineração, em atividades agro-pastoris ou em ofícios tais como barbeiro, ferreiro,
carpinteiro; a mulher tinha opções mais rentáveis. Nas Minas setecentista a mulher
escrava gozava de meios mais diversificados para conseguir acumular pecúlio, como
por exemplo, atuar como negras de tabuleiro, quitandeiras, rendeiras, engomadeiras,
moças-damas, etc., atividades que lhes rendiam quantia substancial que em muitos
casos era direcionada para compra de sua alforria ou a de parentes1031. Além disso,
levando-se em conta o alto valor do escravo homem, devido sua importância na
produção do ouro e dos gêneros de abastecimento, assim como seu valor enquanto
braço armado do senhor, as mulheres parecem ter sido mais versadas nos trâmites da
1028
Escrituras de Alforria e Liberdade dos Livros de Notas do 1º ofício, CSM, Livro 3, data 1712-1715,
pág. 174v-175.
1029
Escrituras de Alforria e Liberdade dos Livros de Notas do 1º ofício, CSM, Livro 3, data 1712-1715,
pág. 76v-77.
1030
SAMPAIO, António C. Jucá. “A produção da liberdade: padrões gerais das manumissões no Rio de
Janeiro colonial, 1650-1750...” Op. cit., p. 309.
1031
MATHIAS, Carlos Leonardo Kelmer. “Notas iniciais acerca da prática da alforria no Termo de Vila do
Carmo, 1711-1720...” Op. cit., p. 45.
293
liberdade1032. Talvez por isso o capitão Manuel Antunes de Lemos, dos principais
moradores da Vila do Carmo, tenha optado por alforriar aos 29 dias do mês de
dezembro de 1712 sua escrava Antônia de nação Mina alegando que “ele comprou a
escrava por 300 oitavas de ouro e essa pelos bons serviços, pelo amor de Deus e
porque lhe deu 448 oitavas de ouro em pó lhe passou carta de alforria”1033.
Alguns dos escravos do capitão Antônio Pereira Machado, natural do Porto e
considerado um dos fundadores da região da Vila do Carmo 1034, também tiveram de
pagar para conseguir mudarem de estatuto jurídico. Este foi o caso de Florinda
Benguela que em 04 de maio de 1742 conseguiu obter sua carta de liberdade junto a seu
senhor “pelos bons serviços que a dita lhe prestou, por amor a Deus e por ela ter lhe
dado a quantia de 350 mil réis preço em que a coartou lhe passava carta de
alforria”1035. Uma de suas outras escravas chamada Escolástica, de nação Courana,
pagou também por sua manumissão em primeiro de abril de 1739, segundo Antônio
Pereira Machado “a negra lhe serviu com fidelidade e diligencia e pela qual razão lhe
coartou em duas libras e meia de ouro a qual quantia havia recebido das mãos da dita
negra e por isso lhe passava carta de alforria”1036. Este mesmo potentado alforriou
ainda em 07 de abril de 1714 um negrinho chamado Fernando de 4 meses de idade,
filho de uma escrava sua chamada Marcela, pela quantia de 32 oitavas de ouro1037.
Com o que foi argumentado e mostrado nos exemplos acima, podemos sugerir
que em variadas situações o escravo procurou seduzir, tornar-se cúmplice dos senhores,
aproveitando oportunidades e locomovendo-se taticamente no sentido de tornar a sua
vida a melhor possível. Na convivência cotidiana, na micropolítica da vida diária,
podemos observar o escravo e o senhor tendo freqüentemente que negociar entre si,
enfrentar-se, fazer acordos, enfim, criar espaços para que um e outro tivessem sua
chance de exercer influência e pequenos poderes. Porém, nunca é demais lembrar que
estas relações se davam em proporções desiguais nas quais, evidentemente, o escravo
1032
Idem, 46.
1033
Escrituras de Alforria e Liberdade dos Livros de Notas do 1º ofício, CSM, Livro 2, data 1711-1714,
pág. 133v.
1034
FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil... Op.,
cit., p. 232.
1035
Escrituras de Alforria e Liberdade dos Livros de Notas do 1º ofício, CSM, Livro 57, data 1741-1742,
pág. 56-56v.
1036
Escrituras de Alforria e Liberdade dos Livros de Notas do 1º ofício, CSM, Livro 47, data 1737-1739,
pág. 163v-164.
1037
Escrituras de Alforria e Liberdade dos Livros de Notas do 1º ofício, CSM, Livro 2, data 1711-1714,
pág. 258.
294
Gráfico 3: Distribuição (%) dos alforriados por faixas etárias e tipos de alforria
(para os quais temos informações), 1711-1750
100
90
80
70 Velho
60 Adulto
50
Criança
40
30 Não consta
20
10
0
Gratuita Paga Condicional Não consta
Fontes: Escrituras de Alforria e Liberdade dos Livros de Notas do 1º e 2º Ofício da CSM e da CPOP.
Testamentos da CSM e da CPOP. Livros de Batismos de Escravos de Mariana e seu Termo e de Ouro
Preto e seu Termo. Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana e Arquivo da Casa dos Contos,
período de 1711-1750.
1040
“Termo que se fes na junta, e rezoluçam que se tomou sobre o pagamento dos quinto de Sua
Magestade com os vereadores, procuradores, homens bons de Villa Rica, 6 de janeiro de 1714...” Op. cit.,
p. 26.
1041
AHU/MG/cx.:44; doc.:16.
1042
Acórdãos da Câmara Municipal de Mariana. APM. Seção Colonial – Cód. 02, 05 e 06.
1043
Lista de registro para cobrança dos quintos reais do Sumidouro, 1718. Arquivo Público Mineiro,
Coleção Casa dos Contos, códice 1029. Lista de registro para cobrança dos quintos reais de Mariana e seu
Termo, 1723. Arquivo da Câmara de Mariana, códice 166.
E lista da vila do Carmo do AHCM
1044
AHU/MG/Cx: 44; doc: 16. Grifo meu.
296
Anos depois de ter atuado na sublevação citada com seus escravos armados, este
potentado aparece alforriando alguns cativos seus adultos homens gratuitamente. Assim
que em 18 de março de 1738 Pedro Teixeira passava carta de alforria simultaneamente
para Joseh, Gracia, Joam, Francisco e Benedito, todos classificados como Gentio da
Guiné, “por terem prestado bons serviços e por esmola que lhes deu o seu patrão”1045.
Se foram exatamente estes mesmos escravos que acompanharam o dito potentado como
braço armado não temos como afirmar, apesar de isso não ser coisa impossível de ter
ocorrido. Mas, o mais importante de destacar aqui é a chance sempre presente dos
cativos desses potentados terem ao menos a esperança de um dia conseguirem sua
manumissão, de poderem esperar alcançar sua liberdade depois de anos de bons
serviços prestados, de “obediência” e fidelidade devotada em diferentes serviços, dentre
eles a atuação como parte das “milícias privadas de escravos” que estes senhores tanto
lançavam mão no intuito de se firmarem como poderosos locais.
Outro exemplo de alforria concedida entre os escravos adultos temos no caso do
coronel Antônio Francisco Silva, natural do reino e dos primeiros povoadores e
principal de Vila Rica1046. Dentre os escravos que possuía, optou por alforriar
gratuitamente a mulata Joana de Jesus em 08 de dezembro de 1718 pelos bons cuidados
que a mesma sempre teve para com ele “servindo-o com muito cuidado e zelo, sendo
lhe muito fiel e por lhe fazer essa graça e por amor de Deus dá a liberdade a dita”1047.
Por fim destaco o caso do guarda-mor Antonio Rodrigues de Sousa, um grande
proprietário de terras (era possuidor de 2 sesmarias1048) e de escravos. No ano de 1725,
por exemplo, era senhor de 39 escravos1049, dentre estes escolheu para passar carta de
liberdade no dia 23 de dezembro de 1726 o escravo Antônio de nação Cabo Verde, que
foi coartado pelo referido potentado, devido ao “cuidado, zelo e fidelidade que sempre
teve a sua casa”, no valor meia libra de ouro em pó1050.
Com relação às crianças, como já era de se esperar, a grande maioria, 44 delas
precisamente, obteve sua alforria de forma gratuita, sendo que dos 50 casos (39,37%) de
1045
Escrituras de Alforria e Liberdade dos Livros de Notas do 1º ofício, CSM, Livro 50, data 1739, pág.
104v-105.
1046
“Termo que se fes na junta, e rezoluçam que se tomou sobre o pagamento dos quinto de Sua
Magestade com os vereadores, procuradores, homens bons de Villa Rica, 6 de janeiro de 1714...” Op. cit.,
p. 26.
1047
Escrituras de Alforria e Liberdade dos Livros de Notas do 1º ofício, CSM, Livro 8, data 1718, pág.
270v-271.
1048
Catálogo de sesmarias. Revista do Arquivo Público Mineiro... Op. cit., p. 183.
1049
Lista de registro para cobrança dos quintos reais de 1725. Arquivo da Câmara de Mariana, códice 150.
1050
Escrituras de Alforria e Liberdade dos Livros de Notas do 1º ofício, CSM, Livro 26, sem data, pág.
291v-292
297
contrapartida, com a astúcia das escravas. Mesmo passada a chance de obter, na pia
batismal, a alforria de um filho, havido do intercurso sexual com seus senhores,
algumas escravas não abandonavam a esperança de alcançá-la. Certamente que elas
sabiam que o temor da danação eterna ou de uma estada muito longa no Purgatório, por
morrerem deixando filhos no cativeiro, rondava a consciência dos senhores nos
momentos derradeiros. Contar com esse medo, e tentar tirar proveito dele era, portanto,
mais um tortuoso e incerto atalho que poderia conduzir alguns escravos à liberdade1054.
A primeira chance de alforria para aqueles que já nasciam sob o jugo do
cativeiro aparecia, portanto, na hora do batismo. Possibilidade bastante restrita, por
sinal. Porém, é necessário frisar, que nenhuma modalidade de alforria era fácil. Embora
tenha sido bastante freqüente, a manumissão de escravos sempre foi uma prática
extremamente seletiva1055. De qualquer forma, incontestavelmente, todas essas escravas
que tiveram seus filhos alforriados na pia, fossem casadas ou solteiras, gozavam de
certo apreço de seus senhores. Um apreço provavelmente derivado da combinação entre
afeto senhorial e obediência escrava1056, apesar de haver razões bem diferenciadas para
senhores e senhoras libertarem os filhos de alguns escravos na pia batismal. Como
sugere Márcio Soares, as mulheres que assim procederam provavelmente eram mais
animadas pelo sentimento de piedade cristã e pelos vínculos afetivos que as ligavam às
escravas mais obedientes. Alguns senhores também agiram por motivos semelhantes,
mas, certamente, os laços de consangüinidade real ou presumida que os atavam aos
filhos de suas cativas falavam mais alto em seu íntimo, surdamente constrangidos pela
moral daquela sociedade e pelo medo das chamas eternas do inferno1057.
Ademais, é preciso levar em conta que o fato de ser a concubina do senhor
rendia vantagens e um tratamento diferenciado, o que se tornava um elemento de
distinção entre as cativas, e nunca é demais lembrar que os escravos viviam, em geral,
disputando entre si os parcos recursos disponíveis para minorar a rudeza do levar a vida
debaixo de cativeiro1058. Foi por tal motivo que a mulata Úrsula conseguiu alcançar sua
liberdade. Esta era concubina do sargento-mor José Furtado de Mendonça, natural da
freguesia de Sã Miguel no reino, casado com Rosa Maria de Araújo Coutinho e morador
1054
SOARES, Márcio de Sousa. A remissão do cativeiro... Op. cit., p. 98.
1055
Idem, p. 104.
1056
Idem, p. 112.
1057
Ibidem, p. 119.
1058
SOARES, Márcio de Sousa. A remissão do cativeiro... Op. cit., p. 103.
299
na Vila do Carmo, na qual era conhecido como dos principais moradores1059. Talvez,
pelo fato da dita mulata manter tratos ilícitos com seu senhor, ela foi capaz de traçar o
caminho para sua liberdade. Deste modo foi que em 17 de agosto de 1750 José Furtado
passava gratuitamente Escritura de Alforria e Liberdade para Úrsula com base no
argumento de que “ela era sua mulher e por isso lhe deixava forra”1060.
Foi também por ser concubina de seu senhor que Florência, escrava do capitão
Francisco da Costa Oliveira, com o qual teve inclusive um filho, conseguiu sua
manumissão. Esta foi concedida no dia do batismo do filho do casal aos 29 dias do mês
de março de 1717 ocasião na qual o dito potentado anunciava que “era o pai da criança
que estava sendo batizada e que alforriava a mãe do mesmo por bons serviços”1061.
Um último exemplo destaco com o caso do coronel Salvador Fernandes Furtado
de Mendonça. Este homem poderoso, considerado um dos fundadores da Vila do
Ribeirão do Carmo, como visto no capítulo 1, no momento de sua morte estabelecia em
seu testamento datado de 1725 que seus herdeiros deveriam alforriar, gratuitamente,
uma escava mulata chamada Josefa. Segundo ele esta escrava de seu plantel, ao que
parece, foi concubina de seu filho Antônio Fernandes, tendo com ele filhos. Por tal
motivo Salvador Fernandes pede como última vontade “que sua mulher a alforrie bem
como aos filhos dela”1062.
Outro fator explicativo da alta porcentagem de crianças alforriadas refere-se
igualmente à alta taxa de mortalidade das mesmas, ou seja, o senhor alforriava rebentos
tendo em conta o fato de que provavelmente a criança não atingiria a idade adulta. Não
obstante, esse predomínio das crianças pode ser igualmente atribuído a um interesse
senhorial em manter a família escrava, sobretudo as mães, devendo obrigações ao
doador. Outra razão que pode ter contribuído para engrossar esse volume era a questão
da paternidade da criança escrava – fosse o próprio senhor o pai ou avô, ou outro
homem livre que por vezes comprava a alforria do filho. Ou seja, um ingrediente moral,
o constrangimento em deixar filhos no cativeiro1063. Foi por tal motivo que o capitão
1059
“Termo que se fes na junta, e rezoluçam que se tomou sobre o pagamento dos quinto de Sua
Magestade com os vereadores, procuradores, homens bons de Villa Rica, 6 de janeiro de 1714...” Op. cit.,
p. 26.
1060
Escrituras de Alforria e Liberdade dos Livros de Notas do 1º ofício, CSM, Livro 69, sem data, pág.
83v-84.
1061
Arquivo da Casa dos Contos. Registros Paroquiais de Batismos, rolo 037, volume 456, p. 34
1062
CSM, 2º ofício – Inventário post-mortem de Salvador Fernandes Furtado de Mendonça. Códice 138,
auto 2800, (1725).
1063
MATHIAS, Carlos Leonardo Kelmer. “Notas iniciais acerca da prática da alforria no Termo de Vila do
Carmo, 1711-1720...” Op. cit., p. 53.
300
1064
“Termo que se fes na junta, e rezoluçam que se tomou sobre o pagamento dos quinto de Sua
Magestade com os vereadores, procuradores, homens bons de Villa Rica, 6 de janeiro de 1714...” Op. cit.,
p. 26.
1065
Escrituras de Alforria e Liberdade dos Livros de Notas do 1º ofício, CSM, Livro 20, data 1722-1723,
pág. 113v-114.
1066
FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil... Op.,
cit., p. 142.
1067
Escrituras de Alforria e Liberdade dos Livros de Notas do 1º ofício, CSM, Livro 2, data 1711-1714,
pág. 190-190v.
1068
RUSSELL-WOOD, A.J.R. Escravos e libertos no Brasil colonial... Op. cit., p. 69.
1069
SOARES, Márcio de Sousa. A remissão do cativeiro... Op. cit., p. 104.
301
Destaco também o caso do capitão-mor Antônio Ramos dos Reis, que como já
visto nos capítulos anteriores era um dos homens mais ricos e poderosos das Minas. Em
seu testamento datado de 1762 deixava alforriado vários escravos passando-lhes não só
a manumissão, como também legados que muito auxiliariam tais cativos em suas novas
vidas como forros. Vejamos tais exemplos com mais calma. Para uma de suas escravas
estipulou assim em seu testamento:
Com relação aos escravos classificados como velhos foram bem poucos os que
entraram na amostragem. Na análise de todas as alforrias levantadas apenas 5 cativos
foram designados por tal faixa etária, dentre os quais 4 alcançaram sua alforria de
forma gratuita e 1 teve de pagar por ela. Na historiografia há todo um debate acerca
desta questão das alforrias direcionadas aos escravos mais velhos. Argumenta-se que
em muitos casos estes escravos por estarem doentes e incapacitados eram considerados
um peso para seus senhores que para livrarem-se dos cuidados que acabariam por ter
com eles, bem como de eventuais despesas, os alforriavam lançando-os à sua própria
sorte1075. Todavia, pesquisas recentes relativizaram tal idéia ao constatarem que nem
sempre estes escravos eram descartados como “peças inúteis”, já que muitas vezes tais
cativos apareciam listados nos inventários de seus donos, mesmo que com baixos
preços, ou até mesmo sem valor algum. Como muito bem destacou Márcio Soares,
apesar de estarem achacados, quebrados, cegos, rendidos, aleijados, padecendo de
erisipela, mal-de-gota ou qualquer outra espécie de estupor mais grave, muitos daqueles
velhos tinham seus parentes nas escravarias, além de, não raro, exercerem uma
ascendência moral sobre seus companheiros de cativeiro. Os senhores certamente
sabiam muito bem disso e, em geral, não eram tão estúpidos a ponto de
inadvertidamente deitar por terra, o quase sempre precário, sossego das escravarias1076.
O guarda-mor Maximiniano de Oliveira Leite, por exemplo, foi um dos
potentados que encontramos alforriando escravos classificados como velhos, porém, há
de se destacar que quando em 30 de julho de 1724 se dirigiu ao cartório para passar
Escritura de Alforria e Liberdade ele o fez alforriando um casal cativo. No caso referia-
se a Francisco e sua mulher Maria, africanos da Guiné, que ganharam sua liberdade de
forma gratuita simultaneamente podendo assim continuar na companhia um do outro
sem receio de separação, pois continuavam a desfrutar do mesmo estatuto jurídico.
Maximiniano podia ter alforriado apenas um destes escravos, mas optou por libertá-los
juntos argumentando que “ambos sempre estiveram obrigados a andarem debaixo da
sua administração em todo o tempo e pelos serviços que lhe tinham feito e por estarem
já velhos lhes dava alforria”1077, indicando que a idéia de senhores cruéis que se
livravam de escravos velhos como “peças inúteis” pode ser matizada. Neste caso,
1075
Ver: GORENDER, Jacob. A Escravidão Reabilitada... Op. cit. Ver ainda: LUNA, Francisco Vidal &
COSTA, Iraci del Nero. “A Presença do Elemento Forro no Conjunto dos Proprietários de Escravos...”
Op. cit.
1076
SOARES, Márcio de Sousa. A remissão do cativeiro... Op. cit., p.171-172.
1077
Escrituras de Alforria e Liberdade dos Livros de Notas do 1º ofício, CSM, Livro 23, data 1724, pág.
61-61v
303
mesmo alforriando escravos desta faixa etária, o senhor o fez de uma forma que ficasse
menos penoso para o casal já que lhes dava a oportunidade de ainda ficarem juntos.
Destaco também, mais uma vez, o caso do capitão-mor Antônio Ramos dos
Reis. No seu já citado testamento, dos vários escravos que deixava alforriado temos
Antonio velho. Este era pagem de Antônio Ramos dos Reis e depois de uma vida de
fidelidade e bons serviços prestados, na qual muito provavelmente desfrutou de uma
grande proximidade com seu senhor, devido à função que desempenhava, não foi
esquecido pelo mesmo no momento de sua morte. Além de sua liberdade, Antônio
Ramos lhe deixava também:
“Para viver sem sua vida a morada de casa onde mora a preta Joana
Lopes e por sua morte lhe passarão a mesma morada de casa a
Irmandade do Santíssimo (...) deixo ainda para se reparti entre ele e
outras duas escravas a roupa branca que se me achar nesta villa e a ele
se lhe dara mais o meu capolé e dois do vestidos mais usados”1078.
1078
Arquivo Histórico do Museu da Inconfidência/ Casa do Pilar de Ouro Preto, 1º ofício - Testamento de
António Ramos dos Reis. Livro n.º20, folha 74, (1761).
1079
SOARES, Márcio de Sousa. A remissão do cativeiro... Op. cit., p. 171-172.
304
80
70
60
50
Crioulo
40 Africano
30 Não consta
20
10
0
Gratuita Paga Condicional Não consta
Fontes: Escrituras de Alforria e Liberdade dos Livros de Notas do 1º e 2º Ofício da CSM e da CPOP.
Testamentos da CSM e da CPOP. Livros de Batismos de Escravos de Mariana e seu Termo e de Ouro
Preto e seu Termo. Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana e Arquivo da Casa dos Contos,
período de 1711-1750.
A maior parte das alforrias passadas pelo grupo de potentados locais foram
concedidas a seus escravos crioulos. Em 76 casos (59,84%) verificamos que as alforrias
foram direcionadas para eles, em 30 casos (23,62%) para escravos africanos e em 21
casos (16,53%) não conseguimos estipular a naturalidade do cativo. O gráfico 4 nos
mostra que dentre os 76 crioulos que obtiveram sua liberdade, 55 (72,36%) a
conseguiram gratuitamente, 17 (22,36%) tiveram de pagar por ela e 4 (5,26%) a
alcançaram de forma condicional. Em relação aos africanos a divisão se estabelece da
seguinte forma: 13 destes cativos (43,33%) adquiriram sua manumissão sem nenhum
ônus, 12 (40%) a alcançam por meio de pagamento e 5 (16,66%) de forma condicional.
A historiografia há muito já ressalta que na corrida para obtenção da liberdade os
escravos nascidos no Brasil levavam mais vantagem sobre os africanos. Conforme
destacam alguns autores, o aprendizado precoce das manhas do cativeiro ampliava as
chances dos escravos nascidos no Brasil alcançarem uma inserção diferenciada no
interior das escravarias que os distanciava muito dos africanos. O tempo de convivência
entre senhores e escravos era exatamente o que quase sempre faltava a esses últimos1080.
Adultos, estranhos, boçais, com uma expectativa de vida muito baixa e ainda tendo que
ser submetidos a um processo de aprendizagem que transformasse cativos em escravos,
os nascidos na África possuíam mesmo muitas desvantagens. Já os crioulos, pardos,
1080
SOARES, Márcio de Sousa. A remissão do cativeiro... Op. cit., p. 149.
305
cabras e mulatos, ao contrário aprendiam desde cedo o que era ser escravo, isto é, eram
mais socializados na escravidão tendo, desta forma, maior identificação com o universo
da colônia, eram mais adaptados à língua e a outros valores culturais além de terem
melhores facilidades para constituir família1081. Assim, potencialmente em condições
mais favoráveis para estreitar os laços que os aproximasse de senhores, maiores eram as
suas chances de conseguir a alforria1082.
Talvez por isso a crioula Thereza de Jesus, natural da Bahia conseguiu que o
alferes Bento Vieira de Sousa, dos primeiros povoadores da Vila do Carmo e de seus
principais1083 moradores lhe passasse gratuitamente em 18 de fevereiro de 1714 sua
carta de alforria com base em “anos de bons serviços prestados e por todo cuidado,
zelo e lealdade com que sempre lhe servira”1084.
A parda Thimotea Ferreira conseguiu também que o mestre de campo Francisco
Ferreira de Sá alforriasse não só a si, mas também a seu filho chamado Calisto Ferreira.
Seu senhor, como mencionado anteriormente, era um dos homens mais ricos e
poderosos da região. Natural da Porto, foi para as Minas Gerais em seus primórdios
para ser minerador, atividade com a qual conseguiu tornar-se abastado, com uma
fortuna que no final de sua vida somava o monte-mor de 58:981$4871085. Além desta
considerável riqueza, conseguiu também na capitania adquiriu poder e prestígio
ganhado patentes militares como a de capitão de Ordenanças e de mestre de campo 1086,
bem como ocupar importantes cargos como o de vereador na Câmara da Vila do Carmo
e o de provedor dos quintos da freguesia de São Sebastião1087. Para reafirmar ainda mais
essa sua imagem de homem poderoso, Francisco Ferreira de Sá procurou sempre ajudar
a Coroa Portuguesa em todas as “revolucoens e motins das Minas onde se distinguio
por seguir partido de V. Mag. e estar sempre prompto para servir com sua pessoa e
com seos negros”1088. De fato, era um grande senhor de cativos. Encontramos o nome
dele em diferentes listas para cobrança de quintos reais através das quais podemos
1081
MATHIAS, Carlos Leonardo Kelmer. “Notas iniciais acerca da prática da alforria no Termo de Vila do
Carmo, 1711-1720...” Op. cit., p. 54.
1082
SOARES, Márcio de Sousa. A remissão do cativeiro... Op. cit., p. 161-162.
1083
“Termo que se fes na junta, e rezoluçam que se tomou sobre o pagamento dos quinto de Sua
Magestade com os vereadores, procuradores, homens bons de Villa Rica, 6 de janeiro de 1714...” Op. cit.,
p. 26.
1084
Escrituras de Alforria e Liberdade dos Livros de Notas do 1º ofício, CSM, Livro 3, data 1712-1715,
pág. 319v-320.
1085
Casa Setecentista de Mariana, 1º ofício – Inventário post-mortem de Francisco Ferreira de Sá. Códice
87, auto 1842, (1732).
1086
AHU/MG/cx.: 21; doc.: 09.
1087
Acórdãos da Câmara Municipal de Mariana. APM. Seção Colonial – Cód. 02, 05 e 06.
1088
AHU/MG/cx.: 21; doc.: 09. Grifo meu.
306
acompanhar a formação de seu plantel ao longo dos anos até chegar ao momento final
de sua vida dado por seu inventário. Na lista para cobrança de quintos reais de São
Sebastião datada de 1718 consta que possuía 78 escravos, em uma outra lista da
freguesia do Furquim datada de 1723 aparece como possuidor de 62 cativos 1089. Em
1725 na lista de quintos da Vila do Carmo declarava ter um plantel de 75 “peças”, e em
seu inventário foram contabilizados 108 cativos1090. Com um plantel tão grande as
tensões diárias deviam ser uma constante, a necessidade de “controlar” essa escravaria
uma realidade e, desta forma, estabelecer interações de cunho mais pessoal com alguns
desses escravos seria uma boa saída para tanto. Neste caso, colocar a alforria como uma
possibilidade, como algo que os seus escravos poderiam ter ao menos a esperança de
um dia alcançar, ajudaria muito no estabelecimento dessas interações onde deveriam
pairar as negociações e as reciprocidades. Isto seria fundamental não só para que este
potentado conseguisse apaziguar as tensões que poderiam surgir da convivência neste
numeroso plantel, mas também para conseguir montar suas “milícias particulares de
escravos”, que como visto utilizou em várias ocasiões. E levando em conta que este
potentado tinha entre seus escravos inclusive alguns com designações de cunho militar,
tais como Antonio, de nação Benguela, que na lista de quinto de São Sebastião aparecia
como alferes, ou Joseh que aparecia na lista de quinto do Furquim de 1723 com a
designação de capitão1091, podemos mesmo dizer que a prestação de serviços militares
por seus cativos era alo corriqueiro. Talvez por isso a prática da alforria no plantel de
Francisco Ferreira de Sá, fazia-se presente e necessária, e por isso optou por alforriar
em 10 de junho de 1719, dentre os escravos que possuía, a referida parda Thimotea a
seu filho Calisto argumentando que como deu a alforria gratuitamente “queria que a
escrava e o filho o servissem enquanto ele fosse vivo, e que depois de sua morte podiam
ficar livre de todo cativeiro”1092. Além desses dois escravos, alforriou ainda
gratuitamente em seu testamento, datado de 1732 e anexado a seu inventário, o negro
Ambrosio “atendendo aos bons serviços que lhe tinha prestado”, pedindo ainda que
1089
Lista de registro para cobrança dos quintos reais de São Sebastião, 1718. Arquivo Público Mineiro,
Coleção Casa dos Contos, códice 1024. Lista de registro para cobrança dos quintos reais de Mariana e seu
Termo, 1723. Arquivo da Câmara de Mariana, códice 166
1090
Lista de registro para cobrança dos quintos reais de 1725. Arquivo da Câmara de Mariana, códice 150.
1091
Lista de registro para cobrança dos quintos reais de São Sebastião, 1718. Arquivo Público Mineiro,
Coleção Casa dos Contos, códice 1024. Lista de registro para cobrança dos quintos reais de Mariana e seu
Termo, 1723. Arquivo da Câmara de Mariana, códice 166
1092
Escrituras de Alforria e Liberdade dos Livros de Notas do 1º ofício, CSM, Livro 9, data 1717-1719,
pág. 189v-190.
307
seus herdeiros o ajudassem “caso ele quisesse tomar estado de casado lhe deixando a
esmola de 32$000”1093.
Outro exemplo temos ao analisarmos o caso de Manuel Ferreira Villense, dos
primeiros povoadores da Vila do Ribeirão do Carmo, conhecido como dos principais da
localidade1094. Este potentado em 23 de maio de 1713 alforriava a escrava cabra
Manoela, crioula de Pernambuco, e sua filha mulata de 1 mês de idade chamada Maria
da Cruz. O motivo alegado para passar carta de liberdade de forma gratuita para as duas
escravas foi os bons serviços prestados por Manoela que segundo Manuel Villense,
“serviu com muito cuidado, zelo e diligência a sua casa e pellos bons serviços e pelo
amor de Deus alforria as duas escravas”1095.
Não obstante a alforria estar mais próxima do horizonte dos filhos das crioulas,
pardas e cabras, não se pode minimizar a habilidade das mães de origem africana em
conseguir a liberdade para seus filhos. Ao chegarem adultas às escravarias locais eram,
inicialmente, pessoas estranhas aos olhos senhoriais estando, sob esse aspecto, em
desvantagem com relação às escravas nascidas no Brasil. Contudo, como bem destacou
Márcio Soares, a habilidade dessas mulheres em aprender as manhas do cativeiro –
passando de boçais a ladinas – e com isso conquistar a confiança senhorial, a ponto de
verem seus filhos atravessar a porta estreita da alforria, deve ser valorizada1096. Fabiana
de nação Mina, por exemplo, escrava do capitão Torquato Teixeira de Carvalho, natural
de Guimarães, dos descobridores e fundadores da região da Zona do Carmo1097,
conseguiu, apesar de sua naturalidade africana, que dois filhos seus fossem alforriados
por seu senhor. Em 03 de julho de 1714 este potentado passava assim Escritura de
Alforria e Liberdade para a mulatinha Paula, de 5 anos de idade, argumentando que a
mãe da escravinha “sempre lhe serviu com muito cuidado, zelo e diligência e que tinha
muito amor a mulatinha por a haver criado em sua casa, assim pellos bons serviços e
pelo amor de Deus lhe passava alforria”1098. Dois anos depois, em 17 de janeiro de
1716 a mesma Francisca Mina conseguia que uma outra filha sua chamada Maria fosse
1093
Casa Setecentista de Mariana, 1º ofício – Inventário post-mortem de Francisco Ferreira de Sá. Códice
87, auto 1842, (1732).
1094
“Termo que se fes na junta, e rezoluçam que se tomou sobre o pagamento dos quinto de Sua
Magestade com os vereadores, procuradores, homens bons de Villa Rica, 6 de janeiro de 1714...” Op. cit.,
p. 26.
1095
Escrituras de Alforria e Liberdade dos Livros de Notas do 1º ofício, CSM, Livro 3, data 1712-1715,
pág. 69v.
1096
SOARES, Márcio de Sousa. A remissão do cativeiro... Op. cit., p. 111.
1097
FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil... Op. cit.,
p. 113.
1098
Escrituras de Alforria e Liberdade dos Livros de Notas do 1º ofício, CSM, Livro 3, data 1712-1715,
pág. 215-215v.
308
também libertada gratuitamente porque seu senhor porque este “tinha muito amor a
criançinha”1099.
Uma outra Francisca Mina, dessa vez escrava do plantel do capitão fluminense
Manoel Pereira Ramos, que se tornou um grande potentado nas Minas, ganhando em
1719 a patente de capitão-mor regente1100 conseguiu também que seu proprietário
alforriasse, gratuitamente, em 03 de agosto de 1716 seu filho Joseh, um mulatinho de 1
mês de idade, “pelos bons serviços que a dita escrava sempre lhe prestou, servindo
sempre com muito cuidado, zelo e lealdade e pelo fato de ter pelo mulatinho muito
amor por o ter criado em sua casa”1101.
Um outro exemplo em que podemos ver a habilidade das mães africanas em
conseguir a liberdade para seus filhos temos no caso do capitão-mor paulista João
Amaro Maciel Parente que, como visto no capítulo 1, foi um grande potentado na região
das Minas em suas primeiras décadas. Dos cativos que possuía optou por alforriar em
dezembro de 1718 sua escrava Benta de nação Mina e seus 4 filhos chamados
Domingos, Joanna, Lourenço e Joseh que tinham respectivamente 8, 6, 3 e 1 ano de
idade. Todos ganharam suas manumissões de forma gratuita porque sua mãe “serviu
sempre a seu senhor com muito cuidado e zelo sendo lhes fiel e por esse motivo e por
amor a Deus alforriava a ela e a seus respectivos filhos”1102.
Os exemplos revelam que para palmilhar o longo percurso que conduzia um
escravo à alforria era preciso um bom lapso de tempo. Tempo necessário à acumulação
de uma série de recursos por parte dos cativos: antiguidade no seio das escravarias;
estabelecimento de relações familiares; mobilidade ocupacional (própria ou de parentes)
que facultasse uma maior proximidade com os senhores e o acesso aos privilégios
decorrentes dessa aproximação e, é claro, correspondência às expectativas
comportamentais nutridas pelos proprietários1103. Mas, os exemplos também mostram
que em muitos casos potencializava-se a doação da liberdade o fato de se tratar da
segunda, terceira ou quarta geração de escravos que já haviam ganhado a confiança de
1099
Escrituras de Alforria e Liberdade dos Livros de Notas do 1º ofício, CSM, Livro 3, data 1712-1715,
pág. 304-304v.
1100
FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil... Op. cit.,
p. 332.
1101
Escrituras de Alforria e Liberdade dos Livros de Notas do 1º ofício, CSM, Livro 3, data 1712-1715,
pág. 553-553v.
1102
Escrituras de Alforria e Liberdade dos Livros de Notas do 1º ofício, CSM, Livro 10, data 1718-1719,
pág.41-42v.
1103
SOARES, Márcio de Sousa. A remissão do cativeiro... Op. cit., p. 149.
309
1109
SOARES, Márcio de Sousa. A remissão do cativeiro... Op. cit., p. 253. Tais formulações retirou de:
MARQUESE, Rafael de Bivar. A Dinâmica da Escravidão no Brasil: resistência escrava, tráfico
negreiro e alforrias, séculos XVII a XIX. Comunicação apresentada ao Primeiro Encontro entre
Historiadores Colombianos e Brasileiros promovido pelo IBRACO. Bogotá, agosto de 2005.
1110
SOARES, Márcio de Sousa. A remissão do cativeiro... Op. cit., p. 252. Ver ainda: FLORENTINO,
Manolo & GÓES, José Roberto. A Paz das Senzalas... Op. cit.
1111
Idem.
311
Neste último aspecto, como tem-se apontado ao longo do trabalho, juntamente com a
formação de famílias escravas nos plantéis, da constituição de redes de compadrio, a
alforria podia também ser utilizada como elemento de mediação para estabelecimento
de interações de cunho mais pessoal, de barganha para que os senhores conseguissem
obediência, lealdade e confiança da parte dos escravos para armá-los com temores
remotos de subversão dos mesmos.
Desta forma, a alforria seria também parte constitutiva das interdependências nas
quais as interações ora aqui enfocadas se baseariam. Entretanto, vimos também da
análise do perfil dos alforriados que nos exemplos assinalados não conseguimos
visualizar a liberdade sendo diretamente concedida para escravos que tivessem atuado
como braço armado, já que não vinha esmiuçado nos relatos sobre o uso de tais
“milícias” dados como nome, origem idade, etc. que nos possibilitariam certificar se os
escravos que conseguimos ver que eram libertados pelos potentados eram os mesmos
que eles levavam consigo como escravos armados. Contudo, mesmo trabalhando no
campo da hipótese, não descartamos a idéia do alcance da manumissão para os escravos
armados, se não para si, talvez para mulheres, filhos e outros parentes, possibilidade
bem real visto que, como os exemplos mostraram, tivemos bastantes casos de alforrias
sendo concedidas pelos potentados locais no seio de seus plantéis. Ademais, ajuda a
reforçar tal argumento o fato do serviço militar armado ter sido em muitas ocasiões uma
rota para a liberdade, como alertam alguns autores. Jane Landers, por exemplo, ressalta
que muitos escravos que foram utilizados como braço armado em defesa da Coroa
Espanhola conseguiram após um tempo de serviço sua liberdade1112.
Hendrik Kraay também assinala que a prestação de serviços militares na
sociedade mineira do século XVIII para a Coroa portuguesa, seja formal, isto é sendo
alistado como “soldados” ou informalmente, ou seja, como parte das milícias
particulares dos senhores, abria também para tais cativos amplas chances de
conseguirem suas liberdades. Segundo este autor, sobretudo nos casos dos escravos que
prestavam serviços “formalmente” para a Coroa, e baseado no princípio do direito
romano antigo segundo o qual os escravos que haviam realizado serviço notável para o
Estado deveriam ser recompensado com a liberdade, os Monarcas e autoridades no
Brasil tenderam a aderir a esta máxima. Contudo, no que se referia ao armamento de
escravos de forma privada a liberdade não era garantida, pois qualquer medida da Coroa
1112
LANDERS, Jane. “Transforming bondsmen into vassals: arming slaves in colonial Spanish America”.
In: BROWN, Christopher Leslie and MORGAN, Philip D. (Orgs.). Arming slaves: from classical times
to the modern age... Op. cit., p. 120.
312
1113
KRAAY, Hendrik. “Arming slaves in Brazil from the seventeenth century to the nineteenth century”.
In: BROWN, Christopher Leslie and MORGAN, Philip D. (Orgs.). Arming slaves: from classical times
to the modern age... Op. cit., p. 147.
1114
Idem, p. 147e 156.
1115
Ibidem, p. 149 e 171.
313
Gratuita
Paga
Condicional
Fontes: Escrituras de Alforria e Liberdade dos Livros de Notas do 1º e 2º Ofício da CSM e da CPOP.
Testamentos da CSM e da CPOP. Livros de Batismos de escravos de Mariana e seu Termo e de Ouro
Preto e seu Termo. Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana e Arquivo da Casa dos Contos,
período de 1711-1750.
O gráfico 5 nos revela que as alforrias gratuitas foram as mais concedidas pelos
potentados locais a seus cativos, somando a porcentagem de 66,14%, revelando assim o
êxito dos escravos após anos de obediência e bons serviços, que conseguiam ou alcançar
a liberdade para si ou para algum parente. A escrava Joana crioula, por exemplo,
pertencente ao capitão Sebastião Fagundes Varela, dos primeiros povoadores das Minas
e considerado um dos fundadores da freguesia de São Sebastião1117, conseguiu que sua
filha Ana, uma mulatinha de 1 mês de idade, fosse alforriada gratuitamente. Em
primeiro de julho de 1725 depois de anos de bons serviços prestados, de lhe ter servido
1116
FLORENTINO, Manolo. “Alforrias e etnicidade no Rio de Janeiro oitocentista: notas de pesquisa”.
Topoi. Revista de História, nº 5, Rio de Janeiro, set. 2002, p. 31.
1117
FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil... Op. cit.,
p. 422.
314
com todo cuidado e zelo e, talvez também por isso, pelo fato do senhor “ter pela
criança muito amor lhe mandou passar carta alforria”1118.
A mulata Inácia, natural de Portugal, também conseguiu sua liberdade depois de
ficar anos se esmerando para prestar bons serviços ao seu senhor, o capitão Francisco
Pais de Oliveira, homem que se tornou um grande potentado local. Este tinha um
elevado status político, social e econômico confirmado pela sua parentela – era filho do
poderoso guarda-mor Maximiniano de Oliveira Leite1119 –, pelos títulos que ostentava –
era cavaleiro professo da Ordem de Cristo, familiar do Santo Ofício e bacharel1120 –,
pelos cargos de vereador e desembargador que exerceu e pela sua riqueza alcançada
com a mineração1121. Dos escravos que este potentado possuía acabou alforriando em
07 de março de 1726 a referida mulata Inácia porque “ela sempre lhe serviu com
cuidado e zelo sendo fiel a sua casa e por lhe dar esmola e por amor a Deus lhe manda
dar alforria”1122.
Talvez possamos argumentar ao analisarmos os exemplos que muito além da
obediência e dos bons serviços prestados os alforriados investiram em habilidades, em
informações, em comportamentos, em práticas cotidianas, em sentimentos para tempos
mais tarde serem os escolhidos pelo proprietário entre os demais escravos para
ganharem suas cartas de liberdade. Alguns estudiosos defendem que, por tais motivos,
podemos mesmo dizer que as concessões senhoriais acabavam cedendo sua posição às
conquistas escravas. Em outras palavras, a perspectiva senhorial da doação é substituída
pela perspectiva dos submetidos, isto é, a alforria como resultado de um processo
repleto de investimentos individuais e coletivos1123. Porém, apesar da intensa
movimentação dos escravos para fazerem por merecer, arranjarem pecúlio e até mesmo
negociarem a liberdade com seus senhores, a prerrogativa moral de conceder ou não a
1118
Escrituras de Alforria e Liberdade dos Livros de Notas do 1º ofício, CSM, Livro 25, data 1725, pág.
84v-85.
1119
Ver: ANTT. Familiatura do Santo Oficio de Francisco Pais de Oliveira Leite. Completa, maço 77, doc.
1371, microfilme 542. Fevereiro de 1753.
1120
Ver: AHU/MG/cx.: 46; doc.: 28/cx.: 113; doc.: 37/cx.: 108; doc.:69. ANTT. Familiatura do Santo
Oficio de Francisco Pais de Oliveira Leite. Completa, maço 77, doc. 1371, microfilme 542. Fevereiro de
1753.
1121
Acórdãos da Câmara Municipal de Mariana. APM. Seção Colonial – Cód. 02, 05 e 06. Ver também:
ANTT. Familiatura do Santo Oficio de Francisco Pais de Oliveira Leite. Completa, maço 77, doc. 1371,
microfilme 542. Fevereiro de 1753.
1122
Escrituras de Alforria e Liberdade dos Livros de Notas do 1º ofício, CSM,, Livro 26, sem data, pág.
77-77v.
1123
PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural na colônia. Minas Gerais, 1716-1789. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 2006, p. 168. Ver também: GONÇALVES, Andréa Lisly. As Margens da
Liberdade: estudo sobre a prática de alforrias em Minas colonial e provincial. São Paulo: USP, 1999.
Tese de Doutorado.
315
liberdade estava reservada aos senhores1124. Afinal não podemos nos esquecer que a
alforria propiciava uma série de vantagens políticas aos mesmos, contribuindo para
manter a estabilidade e a reprodução da ordem escravista. Ademais, podemos mesmo
dizer que por ter um caráter “benevolente” a concessão da alforria podia elevar a
reputação do doador na medida em que expressava, reforçava e legitimava as
hierarquias sociais. Nesse sentido, sua prática e a conseqüente produção de dependentes
assumiam uma dimensão ainda mais ampla já que podiam fazer parte de uma estratégia
mais ampla de diferenciação social entre os próprios senhores, tornando uns mais
prestigiados do que outros. Tratava-se também, portanto, de um investimento de
poder1125.
Mas, de qualquer forma, embora todo e qualquer tipo de alforria fosse uma
concessão senhorial, talvez as gratuitas assumissem sua face mais visível e, por terem
aparecido em nossa amostragem como o tipo majoritário de manumissão concedida,
podemos indicar que os escravos dos potentados locais enfocados foram muito bem
sucedidos em suas ações, conseguindo alcançar e maximizar nesta interação com seu
senhor um ganho substancial para suas vidas e/ou para parentes e filhos.
Para complementarmos a análise dessa variável e tentarmos corroborar os
argumentos assinalados elaboramos a tabela abaixo na qual consta os motivos
mencionados quando da concessão da liberdade nas cartas de alforria, nos testamentos e
nos registros de batismos:
1124
SOARES, Márcio de Sousa. A remissão do cativeiro... Op. cit., p.196.
1125
Idem, p. 167 e 201-202.
316
TABELA 25
Motivos alegados para concessão das alforrias para escravos dos potentados
locais (para os quais temos informações), 1711-1750
Motivo N.º %
Bons serviços 42 33,07
Coartação 28 22,04
Cria da casa 13 10,23
Pia batismal 7 5,51
Filiação/parentesco 6 4,72
Compadrio 6 4,72
Esmola 5 3,93
Dinheiro 3 2,36
Não consta 17 13,38
Total 127 100
Fontes: Escrituras de Alforria e Liberdade dos Livros de Notas do 1º e 2º Ofício da CSM e da CPOP.
Testamentos da CSM e da CPOP. Livros de Batismos de Escravos de Mariana e seu Termo e de Ouro
Preto e seu Termo. Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana e Arquivo da Casa dos Contos,
período de 1711-1750.
Pela tabela 25 observamos que dentre os motivos que apareciam nas cartas de
alforrias, testamentos e registros de batismos para concessão da liberdade o argumento
dos “bons serviços” era o mais recorrente. Em 42 casos (33,07%) houve menção aos
bons e dedicados serviços prestados pelos escravos ou por seus pais (geralmente a mãe).
Como bem destacou Stuart Schwartz se os bons serviços não eram motivo muito
importante para a emancipação, eram uma espécie de pré-requisito ou exigência
mínima1126. E entre o grupo analisado ao que parece esse foi também uma condição
importante para aqueles cativos que quisessem obter sua alforria para si ou para algum
parente/filhos. Já vimos anteriormente vários casos onde tais argumentos podem ser
comprovados, apenas para citar mais um exemplo, dentre tantos outros, destaco Antônio
um escravinho cabra de 3 anos filho de Vitoria, escrava do capitão-mor Bento Ferraz
Lima homem muito poderoso nas Minas, como visto no capítulo 1. Este, aos 24 dias do
mês de abril de 1727 passava Escritura de Alforria e Liberdade ao referido escravo
argumentando que “pelos nos serviços da dita escrava e por ter muito amor a criança e
por o haver criado em sua casa lhes passava carta de alforria”1127.
Portanto, se os motivos pelos quais o senhor concedia a alforria a crianças eram
normalmente atrelados à submissão, amizade, amor, amor de cria, criado como filho,
pelo amor que lhe tem, por amor e afeição, por o ter criado, etc. O que estava por trás
1126
SCHWARTZ, Stuart B. Escravos, roceiros e rebeldes... Op. cit., p.196-197.
1127
Escrituras de Alforria e Liberdade dos Livros de Notas do 1º ofício, CSM, Livro 27, sem data, pág.
52-52v.
317
destas concessões na verdade, eram os bons laços que uniam os pais dessas crianças aos
senhores1128, podendo elas serem encaradas como uma forma de recompensa senhorial à
sua obediência. Isto é válido inclusive no caso das alforrias pagas, pois elas não se
reduziam tão somente a uma transação pecuniária. Mesmos nesses casos, os senhores
escolhiam os escravos merecedores de tal benefício1129.
Nas ocasiões em que o motivo mencionado foi o argumento “cria da casa”,
esmola, bem como na variável filiação/parentesco, compadrio e pia batismal também
podemos sugerir que tratava-se de interações pautadas nestas condições de confiança,
lealdade e “obediência” desempenhada, enfim, de condições onde pairava a boa vontade
senhorial para serem agraciados com a liberdade. Nestes casos era, portanto, preciso
dobrar a cerviz aos ditames da submissão, o que fazia com que o horizonte da alforria
desempenhasse, de fato, um papel decisivo para a manutenção da ordem escravista1130.
Os exemplos mostram também que havia toda uma movimentação dos parentes na
aquisição da alforria de seus familiares, comprovando a importância que os laços de
família assumiam na consecução da alforria, denotando assim que raramente a alforria
era uma aventura solitária1131. Senão vejamos.
O capitão Custódio Rebelo Vieira, um dos maiores comerciantes de gado e
escravos na região, possuidor grande prestígio e riqueza nas Minas 1132, em 11 de
novembro de 1723 alforriou gratuitamente a escrava Josefa e sua filha Custódia de 1
ano, ambas crioulas, porque a dita Josefa “sempre lhe serviu com muito cuidado e zelo
sendo fiel a sua casa e porque a criança é afilhada do dito capitão sendo nascida em
sua casa, por tais razões manda lhes dar a alforria”1133.
O coronel paulista João Lopes de Camargo, dos primeiros povoadores das
Minas, considerado um dos fundadores da freguesia de Camargos 1134, alforriou em 1740
3 crianças escravas filhas de escravas suas. A primeira criança se chamava Joaquim,
mulato, filho de uma escrava sua que havia falecido; a segunda era Clara, mulata, filha
1128
FLORENTINO, Manolo & MACHADO, Cacilda. “Migrantes portugueses, mestiçagem e alforrias no
Rio de Janeiro imperial”. In: FLORENTINO, Manolo (Org.). Tráfico, cativeiro e liberdade... Op. cit., p.
372.
1129
SOARES, Márcio de Sousa. A remissão do cativeiro... Op. cit., p. 118-119.
1130
Idem, p. 175.
1131
Ibidem, p. 129 e 164.
1132
Ver: Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana, 1º ofício - Testamento de Custódio Rebelo
Vieira, n.º 73, folha 63, (1734).
1133
Escrituras de Alforria e Liberdade dos Livros de Notas do 1º ofício, CSM, Livro 22, data 1723-1724,
pág. 179v-180v.
1134
FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil... Op. cit.,
p. 100.
318
de sua escrava Joana, e a terceira era Maria, mulata, com 6 anos de idade, filha também
de uma escrava de seu plantel. Nos três casos as alforrias foram gratuitas cujo motivo
alegado foi o fato de ter pelas crianças muito amor “por os haverem criados e que pelos
bons serviços que suas mães haviam lhe prestado e por amor a Deus lhe passava carta
de alforria”1135.
Outro exemplo destaco com o capitão-mor paulista Pedro Frazão de Brito, dos
maiores potentados da região das Minas, como já mencionado no capítulo 1. Este
deixava estipulado em seu testamento datado de 1722 e anexado a seu inventário que
“coartou hua rapariga de seu plantel porque essa era filha de Rosa mulata com seu
cunhado Simão Bueno”1136.
Por fim temos o caso do coronel Bento Fernandes Furtado que em seu
testamento datado de 1764 deixava descrito que “alforrio o pardo Caetano Pereira
escravo que arrematei em praça pública quando este era criança por ser meu afilhado
criando-o em minha casa por algum tempo”1137. Mas como Caetano “tomou estado de
casado com Tomasia Nunes” Bento Fernandes estipulava que lhe daria a liberdade com
a condição de acompanhar sempre sua mulher quando ele morrer em agradecimento de
sua liberdade1138.
Alguns autores ressaltam que, principalmente nos casos de alforrias gratuitas nas
quais apareciam motivos como os mencionados acima, todo o processo de alforria seja
para o escravo em si ou para parentes e filhos se desenrolava tendo por base uma
proximidade entre senhores e seus escravos. Não é de hoje que estudiosos do tema
chamam atenção para este fato da existência de proximidade entre senhores e seus
cativos. Gilberto Freyre foi um dos primeiros a alertar para esse tema, destacando que
isso ocorria, sobretudo, no caso dos escravos domésticos. No entanto, alguns autores
advertem que aquela noção de escravos domésticos na obra de Freyre, a rigor, refere-se
mais à proximidade com o senhor do que propriamente ao tipo de ocupação
desempenhada pelos cativos. Por certo, essa proximidade podia fazer com que alguns
escravos fossem escolhidos para os serviços da casa, mas não se resumia a isso 1139.
1135
Escrituras de Alforria e Liberdade dos Livros de Notas do 1º ofício, CSM, Livro 1, data 1736-1746,
pág.102v-103/pág.103-103v/pág. 103v-104, respectivamente.
1136
CSM, 2º ofício – Inventário post-mortem de Pedro Frazão de Brito. Códice 132, auto 2658, (1722).
1137
Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana, 1º ofício - Testamento de Bento Fernandes
Furtado, n.º 58, folha 27v, (1764).
1138
Idem.
1139
Ver: FLORENTINO, Manolo & GÓES, José Roberto. A Paz das Senzalas... Op. cit., e FERREIRA,
Roberto Guedes. Na Pia Batismal: família e compadrio entre escravos na freguesia de São José do Rio
de Janeiro (primeira metade do século XIX). Niterói: UFF, 2000. Dissertação de Mestrado, p. 124-125.
Apud: SOARES, Márcio de Sousa. A remissão do cativeiro... Op. cit., p. 147 e 207-208.
319
1140
SOARES, Márcio de Sousa. A remissão do cativeiro... Op. cit., p. 147.
1141
Idem, p. 207-208.
1142
Idem.
1143
CSM, 1º ofício – Inventário post-mortem de Antônio Gonçalves Torres. Códice 59, auto 1305, (1776).
320
1144
FLORENTINO, Manolo. “Sobre minas, crioulos e a liberdade costumeira no Rio de Janeiro, 1789-
1871”. In: FLORENTINO, Manolo (Org.). Tráfico, cativeiro e liberdade... Op. cit., p. 341-345. A
historiografia tem chamado atenção para o fato de que na América portuguesa, abriram-se muitas
oportunidades econômicas aos negros, forros e livres através do desempenho de diversas atividades no
comércio, agricultura e mineração. Nos perímetros urbanos, através do exercício de ocupações como
carpinteiros, ourives, sapateiros, alfaiates, pequeno comércio, etc. os cativos tinham oportunidade de
melhorarem suas condições de vida, além de acúmulo de pecúlio que podia ser empregado de formas
diversas: aquisição de escravos, terras, bens imóveis e da liberdade. Nas áreas rurais esta possibilidade de
acúmulo de pecúlio também existia, pois como alguns historiadores têm demonstrado muitos
proprietários permitiam que seus escravos cultivassem suas próprias roças em momentos de folga e o
excedente que eventualmente geravam podia ser vendido no mercado local. Estes são elementos que
denunciam a capacidade dos cativos de criar ou preservar espaços dentro do sistema. Para exemplos neste
sentido ver: SCHWARTZ, Stuart. Escravos, roceiros e rebeldes... Op. cit., REIS, João José & SILVA,
Eduardo. Negociação e conflito... Op. cit., FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento... Op. cit.,
KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro... Op. cit., RUSSELL-WOOD, A. J. R.
Escravos e libertos no Brasil colonial... Op. cit.
1145
Escrituras de Alforria e Liberdade dos Livros de Notas do 1º ofício, CSM, Livro 22, data 1723-1724,
pág. 135-135v.
321
por suas liberdades, o que numa sociedade como a mineira da primeira metade do
século XVIII podia ser feito de diversas formas, sobretudo pelos escravos que tinham
alguma qualificação. Vejamos mais um exemplo.
O capitão Manoel Cardoso Cruz, natural de Lisboa, dos primeiros povoadores
das Minas, tinha status elevado na capitania por ser ocupante de cargos importantes na
Câmara da Vila do Carmo como o de vereador e juiz ordinário, possuindo também
considerável riqueza alcançada com a mineração. No exercício de tal atividade
econômica empregava boa parte de seus escravos e dentre eles escolheu João Cardoso
Cruz, um africano da Guiné, para lhe passar carta de alforria aos 18 dias do mês de
julho de 1725. Este escravo Manoel Cardoso Cruz coartou em 300 mil réis
argumentando que “depois de pagar tal quantia poderia ter sua liberdade com a
condição de que o dito negro continue lhe servindo no serviço de minerar”1146,
atividade da qual, provavelmente, João Cardoso tiraria também um pecúlio extra para
pagar por sua liberdade.
Ainda da análise do gráfico 5 destacamos, por fim, a contabilização das alforrias
condicionais que somaram 7,08% dos casos. A maior parte dos pesquisadores considera
as alforrias gratuitas condicionais como uma modalidade onerosa1147. De fato eram,
visto que exigiam dos escravos um tempo a mais de serviços prestados, geralmente ao
cônjuge ou a um parente do testador. Mas é importante ressalvar que, nesses casos, os
escravos não tinham que dispor do próprio pecúlio, se tivessem algum. Entre aquelas
pessoas que possuíam poucos escravos e que alforriavam condicionalmente, fica claro
que o que norteava o cálculo senhorial não era a vontade de dificultar o acesso dos
cativos à liberdade, mas não deixar cônjuges e parentes em maiores dificuldades após a
morte dos testadores1148.
O capitão José da Costa Oliveira, por exemplo, em 09 de setembro de 1726
passava Escritura de Alforria e Liberdade para seu escravo Damião de nação Mina por
que:
“Este sempre lhe serviu com cuidado e zelo sendo fiel a sua casa e por
lhe ter coartado em 3 libras e meia de ouro com condição de se casar
1146
Escrituras de Alforria e Liberdade dos Livros de Notas do 1º ofício, CSM, Livro 25, data 1725-1726,
pág. 112v-113.
1147
Ver: MATTOSO, Kátia Q. “A Propósito das Cartas de Alforria, Bahia 1779-1850...” Op. cit., p. 46 e
CUNHA, Manuela Carneiro da. Negros Estrangeiros: os escravos libertos e sua volta à África. São
Paulo: Brasiliense, 1985, p. 31. Apud: SOARES, Márcio de Sousa. A remissão do cativeiro... Op. cit., p.
151.
1148
Idem.
322
Claro está que, por mais que os escravos participassem ativamente dos processos
sociais, essa participação se dava, quase sempre, na condição de subjugados, sobretudo
em matéria de alforria. Ao admitirmos que a escravidão expressava uma relação de
dominação, então é forçoso reconhecer que os senhores tinham mais poder do que os
cativos. Porém, por outro lado, como se tentou mostrar ao longo de toda esta segunda
parte da tese, os escravos não ficavam inteiramente imparciais neste processo. Já
sugerimos anteriormente que mesmo em condições bem desiguais, os escravos
procuraram defender certas vontades e interesses, afinal se assim não o fosse não se
poderia falar em negociações e reciprocidades. Assim, na reprodução das relações
escravistas no contexto em questão senhores procuravam governar seus cativos
utilizando-se de meios que iam além da coerção, força e crueldade, apesar destes
elementos não estarem ausentes nas interações, oferecendo também a eles recompensas
materiais e certas oportunidades sociais a fim de estabelecer relações pessoais. E os
cativos, aproveitando-se da necessidade que senhores tinham de suas habilidades para
montarem “milícias privadas”, de amenizarem as tensões sempre possíveis de surgir em
meio a escravaria, principalmente numa sociedade em que e entrada de africanos
desenraizados era uma constante, procuraram também se beneficiar com o que os
senhores podiam lhe oferecer para terem melhores, embora limitadas, condições de
vida.
No caso, destaquei aqui a possibilidade de formarem suas famílias nos plantéis,
de estabelecerem vantajosas redes de compadrio e de terem ao menos a esperança de
alcançarem suas alforrias para si ou para mulheres e outros parentes. Obviamente que
nem sempre as tentativas de estabelecimento de relações mais pessoais e amistosas entre
senhores e escravos se efetivou. Sem dúvidas os escravos tinham para si, apesar das
limitações e desigualdades, um padrão comparativo do que seria ou não legítimo nestas
1162
FLORENTINO, Manolo. “Alforrias e etnicidade no Rio de Janeiro oitocentista: notas de
pesquisa...” Op. cit., p. 32-33.
326
interações e quando isto era ultrapassado de forma abusiva surgia o conflito. Este
também faz parte destas interações pessoais, já que, conforme nos alerta Barth, nem
sempre as coisas saíam como planejado, havia sempre a possibilidade da interação dar
errado, ou se ter um ganho mínimo dentro do que se almejava. No próximo capítulo
trataremos mais profundamente destas questões procurando entender o papel do conflito
e suas motivações utilizando-nos para tanto de processos-crime referentes a crimes
cometidos por escravos na região e período enfocados. Ao contrário da análise
funcionalista que enfatiza a ordem e a harmonia inerente ao convívio humano,
acreditamos que o conflito possui um papel fundamental na forma em que os seres
humanos interagem. Neste sentido, usaremos tal documentação como uma referência
para o estudo dos valores e normas sociais presentes na vida de senhores/potentados e
seus escravos.
327
PARTE 3
Tensões, conflitos e experiências cotidianas entre senhores e escravos: processos-
crime como fontes de análise para outras formas de interdependência
Capítulo 6
Crimes e violência no cotidiano senhorial e escravo
1169
FERREIRA, Ricardo Alexandre. Escravidão, criminalidade e cotidiano... Op. cit., p. 12.
1170
Idem, p. 55-56.
1171
LARA, Sílvia H. Campos da violência... Op. cit., p. 24.
330
1172
FERREIRA, Ricardo Alexandre. Escravidão, criminalidade e cotidiano... Op. cit., p. 84.
1173
LARA, Sílvia H. Campos da violência... Op. cit., p. 200.
1174
GRAF, Márcia Elisa de Campos. Imprensa periódica e escravidão no Paraná. São Paulo: USP, 1979.
Tese de Doutorado, p. 142. Apud: FERREIRA, Ricardo Alexandre. Escravidão, criminalidade e
cotidiano... Op. cit., p. 85.
331
TABELA 26
Distribuição (%) dos réus e vítimas conforme o estatuto jurídico, décadas de 1710-
1750 (para os quais temos informações)
Réus Vítimas
Estatuto Jurídico % Estatuto Jurídico %
Escravo 17,41 Escravo 45,71
Livre 34,28 Livre 17,14
Liberto 2,85 Liberto –
Sem Informação 45,71 Sem Informação 37,14
Fonte: Processos-crime do Arquivo da Casa Setecentista de Mariana e do Arquivo Histórico do Museu
da Inconfidência/ Casa do Pilar de Ouro Preto, 1º e 2º ofícios, décadas de 1710-1750.
1175
VELLASCO, Ivan de Andrade. “A cultura da violência: os crimes na Comarca do Rio das Mortes –
Minas Gerais Século XIX”. In: Tempo. Revista de História. Rio de Janeiro, nº 18, 2004, p. 174.
1176
ACSM. Processo-crime. Códice 233, auto 5824, 2º ofício (1753).
1177
VELLASCO, Ivan de Andrade. “A cultura da violência: os crimes na Comarca do Rio das Mortes –
Minas Gerais Século XIX...” Op. cit., p. 176.
1178
ACPOP. Processo-crime. Códice 450, auto 9482, 1º ofício (1741).
332
“Estando a sua porta ouvira gritar hua mulher em casa de seu vizinho
Francisco Gonçalves e perguntando depois ao seu escravo João
Barbeiro que grito fora aquele lhe repondera que indo a negra Ana
escrava de João Correia a casa do dito Francisco Gonçalves pedir lhe
uns brincos elle soltou nela as pancadas e lhe dera bastantes e neste
tempo fora elle testemunha para Vila Rica e lhe chegou noticia de que já
estava morta a dita negra”1179.
Uma outra testemunha, João Rocha, homem negro, 50 anos, que vivia de sua
roça, acrescentou que:
“A dita negra costumava hir a seu engenho torrar milho e com efeito ali
chegou de pe e muito direita e sem queixa e entrando a torrar milho dali
a pouco estando nessa diligencia caiu por terra doente e perguntando
lhe a testemunhao que tinha acontecido disse que era hua dor nas
entranhas(?) e disse elle testemunha que não viu ferida nenhuma em seu
corpo e disse que depois de expirar soltou muitas matérias com sangue
pela boca”1180.
Percebe-se pelos relatos acima que a violência, no universo dos homens livres e
pobres, escravos e também da elite, eclodia nas mais diversas situações de convivência,
aí incluídas as relações de trabalho e lazer, os vínculos de parentesco e vizinhança,
apresentando um caráter costumeiro suficientemente arraigado. A violência era assim
parte constitutiva e indissociável da forma como o mundo era percebido e aceito como
tal1181.
Infelizmente não conseguimos encontrar processos em que potentados locais
pesquisados ou algum de seus escravos figurassem como réus ou vítimas para que assim
conseguíssemos perceber diretamente valores, hábitos e as relações interpessoais dos
grupos sociais focados. Como dito na introdução deste trabalho no decorrer da pesquisa
nos deparamos com muitas lacunas, dificuldades e ausência de dados que nos
fornecessem um panorama mais concreto acerca do problema e hipóteses a serem
investigadas. Por isso, tivemos de coletar uma documentação ampla e variada e adotar
um método mais indiciário para analisá-la e assim construir nossa argumentação. Com
os processos-crimes não foi diferente. Analisamos tais fontes buscando sempre resgatar
alguns valores e normas sociais presentes na vida de senhores e escravos que viviam no
contexto abordado, para termos assim uma noção, mesmo que superficial, dos tipos de
1179
Idem.
1180
Ibidem
1181
VELLASCO, Ivan de Andrade. “A cultura da violência: os crimes na Comarca do Rio das Mortes –
Minas Gerais Século XIX...” Op. cit., p. 175.
333
problemas enfrentados por tais grupos e, principalmente, revelar como que o conflito se
fazia presente em suas relações. Temos a consciência de que não podemos generalizar e
associar diretamente as formas de agir e interagir, de pensar, e até mesmo o tipo de
problemas enfrentados dos atores presentes nos processos com os indivíduos que
analisamos em nossa pesquisa. Porém, como trabalhamos aqui com uma abordagem
interacionista, vale lembrar que as formas de agir, as estratégias e os recursos utilizados
para a maximização de ganhos por atores pertencentes a um mesmo grupo genérico
muitas vezes se repetem e permanecem dentro de um mesmo contexto. Em outras
palavras, podemos talvez ter uma idéia do tipo de problemas enfrentados por senhores e
escravos de uma forma geral, inclusive pelo grupo de potentados e seus cativos
analisados na pesquisa, das suas formas de interação se levarmos em conta que, como
sugere autores como Barth e Elias, aquelas estratégias e recursos adotados pelos atores
que acabaram sendo bem sucedidos em seus fins, se tornavam normas compartilhadas
pelos indivíduos para lidar com as situações por eles enfrentadas, inclusive as de
conflitos.
Não podemos nos esquecer, como bem nos lembra Norbert Elias380, que as
pessoas nascem em um contexto dado com normas e valores já sendo vivenciado pelas
pessoas com as quais convivem direta ou indiretamente. E com isso são influenciados,
em certas situações, a adotar recursos e valores ancestrais vivenciados e
institucionalizados por várias gerações, ajudando-nos na maximização de ganhos e na
diminuição das incertezas do cotidiano1182.
Por se tratar de uma sociedade escravista não há como negar, por exemplo, que
havia uma preocupação constante de se obter meios (sejam estes baseados na força ou
negociação) para submeter os negros ao cativeiro. Por seu turno, grande parte da
população escrava criou estratégias, de obediência ou acomodação, para melhor
sobreviver nesta condição, ou, para se rebelar contra ela, fugindo, resistindo e/ou
formando quilombos quando possibilitados. Desta forma, através de alguns crimes
praticados por escravos ou contra eles tentaremos visualizar alguns de seus
comportamentos, atitudes e estratégias em situações de conflito nas quais as normas de
convívio, as regras e os acordos mais corriqueiros estabelecidos entre senhores e
escravos na sociedade em questão possam ser enfatizados. Uma situação que nos revela
alguns elementos presentes nos acordos feitos entre senhores e escravos refere-se ao
1182
CARNEIRO, Deivy F. Conflitos verbais em uma cidade em transformação: justiça, cotidiano e os
usos sociais da linguagem em Juiz de Fora (1854-1941). UFRJ, Rio de Janeiro, 2008. Tese de Doutorado,
p. 143.
334
fato de, em alguns casos, existir, até mesmo por parte das autoridades, uma tentativa de
evitar e punir castigos abusivos ministrados aos escravos, mesmo quando se tratasse de
um crime relevante.
É o que podemos constatar no processo crime de Manoel da Costa Monis,
morador no Gualacho do Sul, termo da Vila de Nossa Senhora do Carmo, que
denunciou ao Juiz de Fora o seu sócio Guilherme Fixer. Ambos tinham sociedade em
um sítio no qual existiam várias lavras e nestas Manoel da Costa Monis empregava
alguns escravos que possuía, fora da sociedade com Guilherme Fixer, no serviço de
minerar e cultivar roça. Segundo o querelante, no dia 19 de maio de 1735, ao se
ausentar para fora da freguesia, um de seus escravos chamado Alexandre de nação Mina
fora faiscar “em um córrego da mesma fazenda lugar que já se havia lavrado e vendo o
querelado que aborrecia com grande ódio a elle querelante e as suas cousas sem
motivo algum fora ao dito negro e lhe dera varias pancadas com um bordão com os
quais lhe fizera ferida”1183. Segundo o negro, o réu o mataria, se ele não fugisse. Com o
depoimento de João Lopes Vitória, testemunha do crime, podemos ter a dimensão da
agressão feita contra Alexandre Mina. Esta provocou três feridas na vítima:
As pancadas foram assim tão violentas que o referido negro permaneceu 20 dias
sem trabalhar. Dessa forma, Manoel da Costa Monis exigia que o querelado fosse
castigado conforme merecia, pois o número de dias que seu escravo deixou de trabalhar,
constituía-se em grande prejuízo para ele. Ademais, na visão do querelante, o réu não
poderia ter aplicado um castigo em seu escravo que colocasse em risco a vida do cativo
ou que impedisse a execução das tarefas diárias, visto que ele era um bem material,
usado como força de trabalho.
Na pronúncia, o Juiz de Fora ordenou que Guilherme Fixer fosse preso e o
declarou culpado. Mas, na sentença do Ouvidor Geral, o réu foi considerado inocente,
por supostamente agir em legítima defesa. Durante sua defesa, o réu Guilherme Fixer
alegou o seguinte:
1183
ACSM. Processo-crime. Códice 205, auto 5134, 2º ofício (1735).
1184
Idem.
335
“Vindo ele da missa e hum seu feitor achou seu moinho parado e foi a
tapar umas sobras de água de Francisco Lobo da Gama que ajuntava
com a sua para o dito moinho e achou o dito negro Alexandre faiscando
e lhe perguntou para que abria a dita água lhe respondeu que estava
trabalhando com água de seu senhor”1185.
O réu não acreditou na palavra do escravo, visto que essas águas eram as sobras
de Francisco Lobo da Gama e, pelo fato de ser dia santo, em que não se deveria
trabalhar, afirmou que tinha a obrigação de sustentar 27 pessoas e que essa tarefa era
mais importante do que a faisqueira dos negros. Disse ainda:
“Que pela aspereza com que o negro lhe respondeu deu com hum
bordãozinho que levava na mão e logo puxou o dito negro por huma
faca [envistiou] ao Réu com animo deliberado a matá-lo e com efeito o
ferio em três partes em huma mão o que não conseguio o dito negro por
hir um seu feitor e em alguma forma desviou o dito negro a que o não
feriçe mais”1186.
1185
Idem.
1186
Ibidem.
336
Além disso, como é referendado pelos autos do processo, Manoel Monis tinha
fama de ser “um homem violento que ameaça com facadas e pancadas pessoas com
quem tem tido rincões e da armas aos seus negros e consentem a terem facas, pois
outros mais deles também as trazem”1187. Ou seja, para este senhor, e também para
muitos outros, não era nada incomum armar alguns de seus escravos e deixar que eles
circulassem pelas redondezas. Nesta sociedade onde a violência era algo corriqueiro, os
escravos constituíam-se no elemento de manutenção e defesa de seus proprietários, por
isso armá-los – mesmo sabendo que havia riscos deles agirem com desmandos e
praticarem crimes, e mesmo com a existência de uma legislação proibitiva – era muitas
vezes bem mais conveniente e proveitoso. Até porque, a julgar por todos os argumentos
até o momento defendidos neste trabalho acerca das possibilidades de negociações e
reciprocidades existentes entre senhores e escravos nestas situações de usá-los como
braço armado, podemos também sugerir que eram substanciais os artifícios que os
senhores podiam lançar mão para traçarem relações interpessoais com eles.
Os relatos também nos revelam que se o referido escravo realmente respondeu
de forma enviesada ao réu, ameaçando-o com o bordão e depois com a faca, revidar
tratou-se não só de defesa pessoal, mas também de uma questão de honra. Não podemos
nos esquecer que esta é uma sociedade hierárquica e escravista na qual os cativos
ocupavam o patamar mais baixo da escala social. Com as poucas informações que
temos sobre o réu, não sabemos exatamente qual status de Guilherme Fixer, mas
certamente era um homem com algum recurso, pois era minerador, possuía algumas
lavras e tinha escravos, como consta dos autos. Desta forma, não podia permitir que um
escravo o afrontasse, que ameaçasse sua reputação. Na vida comunitária uma pessoa
dependia de sua reputação para realizar inúmeras tarefas e manter inúmeras relações.
Provavelmente a honra era um valor e um recurso relevante para a criação e manutenção
de distinção social e funcionava como forma de maximização de ganhos, na medida em
que permitia ao indivíduo ampliar suas redes de interdependência e reciprocidade1188.
Daí a importância e necessidade de defendê-la sempre que algo ou alguém a colocasse
em questionamento.
Não por acaso Severino Rodrigues Lima, morador no Inficcionado, deu umas
cutiladas em Manoel Rodrigues Coelho, morador no mesmo arraial, ferido gravemente.
Segundo os autos do processo:
1187
Ibidem.
1188
CARNEIRO, Deivy F. Conflitos verbais em uma cidade em transformação... Op. cit., p. 278.
337
Na verdade, parece que Manoel Coelho era mercador e foi cobrar uma quantia
referente a uma dívida que o réu tinha com ele. Porém, ao fazer tal cobrança:
TABELA 27
Tipologia dos delitos cometidos nos processos-criminais coletados, décadas de
1710- 1750
Delito Décadas %
1710 1720 1730 1740 1750
Agressão – – 3 3 5 31,42
Apropriação indevida – – 1 1 – 5,71
Homicídio – – 6 1 2 25,71
Roubos e Furtos 1 1 1 3 3 25,71
Fuga – – – 1 – 2,85
Perturbação da Ordem – – 1 – – 2,85
Seqüestro – – – 1 – 2,85
Tentativa de homicídio – – – 1 – 2,85
Total 1 1 12 11 10 100
Fonte: Processos-crime do ACSM e do ACPOP, 1º e 2º ofícios, décadas de 1710-1750.
Por fim destaco a devassa que tirou o juiz ordinário Manoel de Freitas Ferreira
pela morte da negra Maria de nação angola escrava de André de Barros. De acordo com
as testemunhas, a morte da dita negra foi acidental ocorrida aos 04 dias do mês de abril
de 1732, em Vila Rica, quando,
1194
Idem.
1195
CPOP. Processo-crime. Volume 1409, rolo 5124, 1º ofício (1732).
340
pelos caminhos1196. Entretanto, como mostram os dados acima, tais assertivas tem de ser
sempre relativizadas conforme a situação, necessidade e contexto. Desta forma, se a
escravidão foi reinterpretada como um sistema socialmente coercitivo foi também
passível de adequações, resistências, acomodações, negociações e pactos sociais1197.
Assim, tais fenômenos nos sugerem que apesar dos riscos, temores e conflitos
surgidos, senhores interagiam não só de forma coercitiva, punitiva e violenta com os
escravos, pois lhes davam a possibilidade de ampliar a margem de manobra para ter
espaços autônomos e possibilidades de negociação. Para alguns autores isso é mesmo
apontado como fulcral para explicar a estabilidade do próprio sistema escravista. Afinal,
se os escravos podem ser vistos como agentes históricos que possuíam família, vida
cultural e comunitária, que negociavam e atuavam no mercado produzindo e vendendo
bens próprios; suas atitudes também devem ser analisadas como iniciativas que
respondiam a projetos próprios, que interferiam no processo de reconfiguração de
relações sociais e de poder na sociedade em que se inseriam1198.
Neste sentido, podemos argumentar, conforme nos indica Ira Berlin, que os
escravos conseguiam ter uma compreensão da hierarquia local e da complexa dinâmica
das relações de poder. Embora como escravos, conseguiam ter habilidades, conexões
pessoais e famílias. Mais ainda, encontravam protetores entre os abastados e a elite, se
identificavam com as mais importante instituições da colônia, registrando seus
casamentos, batismos e apadrinhamento de filhos na igreja. Entravam com processos e
eram processados nos tribunais locais. Desta forma, conseguiam burlar ou reformular a
idéia que se tinha da servidão, pois conseguiam trabalhar por conta própria, viver a
parte de seus proprietários, controlar sua vida familiar e usar armas1199. Este última
aspecto, que nos interessa mais de perto, pode ser também ratificado pelo próprio fato
de ser comum os escravos usarem facas, foices, machados e porretes em seu trabalho
diário, apetrechos que facilmente podiam ser utilizados como armas tanto em roubos,
assassinatos e desavenças entre os habitantes de inúmeros arraiais e vilas das Minas,
quanto em conflitos armados que poderiam se envolver com seus senhores.
A todo o momento neste trabalho procuramos ressaltar que os cativos ocuparam
um lugar central na composição das forças utilizadas por alguns senhores para o
1196
Cf.: ANASTASIA. Carla Maria Junho. Vassalos Rebeldes... Op. cit., p. 127.
1197
OLIVEIRA, Patrícia Porto de. “Desfazendo a maldição de Cam por meio dos assentos de batismos de
escravos adultos da Matriz do Pila de Ouro Preto (1712-1750)...” Op. cit., p. 5.
1198
Neste sentido ver: RIOS, Ana Maria Lugão e MATTOS, Hebe Maria. Memórias do Cativeiro... Op.
cit.
1199
BERLIN, Ira. Gerações de Cativeiro.... Op. cit., p. 53 e 99.
341
1200
Idem, p. 113.
342
TABELA 28
Instrumentos de agressão mencionados nos processos-criminais coletados, décadas
de 1710- 1750 (para os quais temos informações)
Porrete 3
Bordão 1
Navalha 1
Faca 3
Espada 2
Arma de fogo 2
Foice 1
Pedra 1
Sem informação 21
Total 35
Fonte: Processos-crime do ACSM e do ACPOP, 1º e 2º ofícios, décadas de 1710-1750.
A arma era um elemento da vida cotidiana nessa sociedade. Ela podia ser
utilizada com vários propósitos, tais como, para defesa pessoal; para serem colocadas
nas mãos dos escravos usados nas “milícias particulares” feitas por senhores a fim de
atuarem como grupos de poder – tanto quando agiam desmandos, quanto para prestarem
serviços a Coroa –; para defenderem as lavras e o patrimônio dos mineiros; para
externalizarem distinção social; para prática de crimes. Neste sentido, devemos
sublinhar que o conceito de arma tem de ser entendido amplamente, pois qualquer coisa
poderia servir como armamento. Paus, pedras, instrumentos de trabalhos (tais como
machados, facões, foices, etc.) eram utensílios de fácil acesso e presença constante no
dia-a-dia dos colonos, como nos dá uma pequena dimensão a tabela 29. Daí ser mais
difícil ainda para a Coroa e para as autoridades conseguirem ter um controle eficiente
sobre o armamento dos habitantes da colônia.
343
TABELA 29
Tipos de armas presentes nos inventários dos potentados locais, 1711-1750
(para os quais temos informações)
Número de Armas
Tipo de arma
Freqüência %
Espingardas
43 26,87
Espadas
26 16,25
Pistolas
17 10,62
Catanas
12 7,5
Clavinas
4 2,5
Bacamarte
6 3,75
Espadim
7 4,37
Facão
2 1,25
Bastão
4 2,5
Carabina
1 0,62
Lança
3 1,87
Sem especificação
35 21,87
barganha”. Por outro lado, o cativo que aparentava comportamentos acomodados e até
submissos em um dia podia tornar-se o rebelde do momento seguinte, permanecendo
numa zona de indefinição de acordo com as circunstâncias de suas vivências cotidianas.
Em meio à tensão da sociedade escravista, negociação e conflito configurariam-se como
os limites entre os quais senhores e escravos se relacionavam1207.
Nesta discussão um conceito chave que muito ajudou a reformular visões
clássicas acerca da escravidão é o de paternalismo. Na formulação e uso deste conceito
destaca-se o nome de Eugene Genovese que argumenta que o paternalismo não era um
traço único da escravidão ibérica, antes cumpria um papel específico em todos os
sistemas escravistas. O autor define tal conceito então como uma ideologia e um padrão
de relacionamento entre senhores e escravos capaz de mediar conflitos irreconciliáveis
de classe e de raça, apontando para a participação do próprio escravo no compromisso
paternalista ainda que com conteúdos e objetivos diferentes dos senhoriais1208. Outros
autores também lançaram mão deste conceito, mas reformulando-o em alguns aspectos,
como foi o caso de Robert Slenes e Pedro Carvalho de Mello. Para estes paternalismo
seria uma forma especial de clientelismo, ou seja, uma relação do tipo patrão-cliente
(um relacionamento entre desiguais, baseado em mútuos entendimentos de obrigações
recíprocas)1209.
Muitas contribuições podem ser retiradas dessas afirmações, que em muito
enriquecem este trabalho, tais como a idéia de que a violência nua e crua não era
suficiente para a obtenção de obediência dos cativos, considerando que eles tinham
humanidade e vontade. No entanto, conforme nos mostra Manolo Florentino e José
Roberto Góes, a violência sob uma forma paternalista também não era suficiente, pois
não devia ser fácil fingir-se pater em meio a uma escravaria em permanente processo de
renovação, de estrangeirização. Como submeter pela artimanha a quem se desconhece?
A verdade é que não estava à disposição do senhor a prerrogativa de, exclusivamente,
regrar a vida dos escravos. O senhor não podia prescindir da engenhosidade do cativo
no esforço de fazer da escravaria um plantel razoavelmente ordenado, em vez de uma
horda de indomesticados1210.
1207
REIS, João José & SILVA, Eduardo. Negociação e conflito... Op. cit., p. 9. Apud: FERREIRA,
Ricardo Alexandre. Escravidão, criminalidade e cotidiano... Op. cit., p. 8.
1208
GENOVESE, Eugene. A terra prometida... Op. cit.
1209
LARA, Sílvia H. Campos da violência... Op. cit., p. 109.
1210
FLORENTINO, Manolo & GÓES, José Roberto. A paz das senzalas... Op.c it., p. 172-173.
347
1211
ENGEMANN, Carlos. “Da comunidade escrava...” Op. cit., p. 174.
1212
GONTIJO, Rebeca. “Identidade Nacional e ensino de história: a diversidade como ‘patrimônio
cultural’”. In: ABREU, Martha & SOIHET, Raquel (Orgs.). Ensino de história: conceito, temáticas e
metodologia. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003, p. 72.
1213
LARA, Sílvia H. Campos da violência... Op. cit., p. 165.
348
processo, a suplicante tentou justificar a propriedade da dita escrava, bem como tentar
retirar dela a culpa do assassinato do feitor, que inclusive era também empregado de
João Vieira. As testemunhas que depuseram no processo confirmaram que Ignácia da
Conceição era proprietária de Maria Mina. Luiz Barbosa Brandão, por exemplo, 40
anos, morador na Passagem e agricultor disse que:
“Lhe fugiu dellas com bastante fazenda, como foi um vistido de Camelão
hu chapéu fino, hua corrente de ouro, hua memória e Baetas Camizas,
sapatos e meas, couzas de carregação e lhe furtou mais duzentos e
quarenta e sete oitavas de ouro em pó e sento e setenta mil reis em
1214
ACSM. Processo-crime. Códice 232, auto 5807, 2º oficio (1724).
1215
Idem.
1216
Ibidem.
349
O dito senhor mandou que Thomé Roiz Pinto recapturasse os escravos fugidos,
juntamente com os pertences roubados. Quando chegou ao Rio de Janeiro, Thomé Roiz
prendeu o mulato Luis com alguns dos bens nomeados no processo, e o deixou na
cadeia da dita cidade, por ordem de seu proprietário. Na inquirição, quatro testemunhas
confirmaram que o suplicante era dono do escravo e que ele havia sido comprado no
Rio de Janeiro. Confirmaram ainda que o dito escravo havia fugido e que induziu mais
dois negros a ir com ele, e que roubou dinheiro, ouro e fazendas de seu senhor.
Antônio Lopes, 20 anos, morador em Mato Dentro, termo da Vila do Carmo,
acompanhou Thomé Roiz Pinto ao Rio de Janeiro para tentar prender os escravos e foi
também testemunha no processo. Segundo ele “é público e notório nestas minas que o
justificante comprou o mulato Luis e que se servia delle nestas minas e ouvira dizer que
o justificante o comprara no rio de janeiro vindo de Pernambuco e que lhe fugira o dito
destas minas quando lhe furtou dinheiro, ouro e fazenda”. Contudo, esta testemunha
também acrescentou que no Rio de Janeiro o dito escravo se passou por forro, alegando
ter sido vendido por engano e acusou Thomé Roiz Pinto de lhe ter roubado coisas
(“roupa e algum dinheiro que se lhe achou”, referentes ao furto que tinha feito de seu
senhor nas Minas) requerendo sua prisão e que ele lhe devolvesse as coisas que havia
roubado1218.
Infelizmente não conseguimos saber o desfecho deste processo, mas o que é
importante destacar aqui, mais uma vez, é a associação do nome do proprietário com
seu escavo. Os conflitos, crimes, fugas, e também as negociações e reciprocidades até
aqui apontados nos mostram que os escravos aprendiam que a dominação a que estavam
submetidos era pessoal. Não eram escravos apenas, eram escravos de um determinado
senhor. Esta particularidade era acionada por ambas as partes envolvidas na relação e
sancionada socialmente. Não por acaso a identificação de um escravo era feita por 3
características básicas: seu nome cristão, sua origem e seu senhor1219.
Ademais, os exemplos nos mostram também que havia no caráter de dominação
senhorial sobre os escravos algo que ultrapassava a relação pessoal propriamente dita e que
mantinha o escravo submetido, mesmo quando ele se encontrava longe da presença direta
1217
ACSM. Processo-crime. Códice 225, auto 5593, 2º ofício (1714).
1218
Idem.
1219
LARA, Sílvia H. Campos da violência... Op. cit., p. 204.
350
de seu senhor. De acordo com Sílvia Lara a mediação efetivada por feitores e agregados era
bastante importante para isso. Mas não era suficiente. Todo um universo de relações
pessoais encarregava-se de identificar os cativos e reafirmar sua condição, lembrando-lhes
quem era seu dono e controlando-lhes as atividades. Portanto, o poder senhorial sobre os
escravos se afirmava não só no exercício cotidiano, direto e pessoal do senhor sobre seus
escravos, como também era reforçado por uma rede de relações pessoais que reconheciam e
reafirmavam esse domínio1220.
Procuramos neste capítulo expor algumas formas de tensão e conflito entre
senhores e escravos na sociedade focada e, desta maneira, outras formas de
interdependência que não aquelas baseadas apenas em concessões, negociações e
reciprocidades, não obstante ser também possível encontrar tais elementos nestas
relações conflituosas. Os crimes citados nos processos nos mostraram que os escravos
da localidade estudada andavam armados em seu dia-a-dia, que podiam circular e ter
certa autonomia mesmo com os temores e riscos que advinham desta situação, pois em
alguns momentos resultavam em crimes e violências, como mostraram os processos,
algo bem corriqueiro no contexto em questão. Vimos também que a arma era algo
comum para os colonos, de todos os estratos sociais, e que devido a seu fácil acesso
(sobretudo no que se refere aquelas com características mais rudimentares, tais como os
instrumentos utilizados para o trabalho nas minas e roças) era difícil para as autoridades
controlar sua posse, contribuindo ainda mais para o clima de instabilidade que podia
surgir nas relações sociais estabelecidas neste contexto.
No entanto, estes mesmos elementos (a violência latente, a facilidade de
conseguir armas, a ineficiência da fiscalização do uso destas) acabavam também por dar
à escravidão um lado consensual, pois do contrário seria muito difícil sua manutenção
sem eclosões de fugas, revoltas e motins a todo o momento. Vale lembrar que esta era
uma sociedade em que o tráfico africano de escravos se fez muito marcante e, neste
sentido, despejava constantemente levas e levas de estrangeiros (outsiders) sociais que,
na América portuguesa, se transformavam em indivíduos despidos de sua identidade
social prévia, colocados à margem de um novo grupo social que lhe deveriam dar uma
nova identidade social. Assim, para que o escravo se tornasse um membro (insider) da
localidade tinha de passar por todo um processo de inserção, no qual, sem dúvida, este
1220
Idem, p. 236 e 246.
351
1221
MARQUESE, Rafael de Bivar. “A Dinâmica da Escravidão no Brasil: resistência escrava, tráfico
negreiro e alforrias, séculos XVII a XIX”. In: Novos Estudos CEBRAP. São Paulo, nº. 74, março de 2006,
p. 4.
1222
MARQUESE, Rafael de Bivar. “A Dinâmica da Escravidão no Brasil: resistência escrava, tráfico
negreiro e alforrias, séculos XVII a XIX...” Op. cit., p. 11. Ver também: FERREIRA, Ricardo Alexandre.
Escravidão, criminalidade e cotidiano... Op. cit., p. 253.
1223
BERLIN, Ira. Gerações de Cativeiro.... Op. cit., p. 14-15.
352
Considerações finais
assim não o fosse não se poderia falar em negociações e reciprocidades. Desta forma, na
reprodução das relações escravistas no contexto em questão os senhores procuravam
governar seus cativos oferecendo a eles recompensas materiais e certas oportunidades
sociais a fim de estabelecer relações pessoais. E os cativos, aproveitando-se da
necessidade que senhores tinham de suas habilidades para montarem “milícias
privadas”, de amenizarem as tensões sempre possíveis de surgir em meio a escravaria,
principalmente numa sociedade em que e entrada de africanos desenraizados era uma
constante, procuraram também se beneficiar com o que os senhores podiam lhes
oferecer para terem melhores, embora limitadas, condições de vida.
No caso, destaquei nos capítulos 3, 4 e 5 a possibilidade de formarem suas
famílias nos plantéis, de estabelecerem vantajosas redes de compadrio e de terem ao
menos a esperança de alcançarem suas alforrias para si ou para mulheres e outros
parentes. Obviamente que nem sempre as tentativas de estabelecimento de relações mais
pessoais e amistosas entre senhores e escravos se efetivou. Sem dúvidas os escravos
tinham para si, apesar das limitações e desigualdades, um padrão comparativo do que
seria ou não legítimo nestas interações e quando isto era ultrapassado de forma abusiva
surgia o conflito. Este também fazia parte destas interações pessoais.
Por isso mesmo, optamos também no último capítulo da tese analisar o papel do
conflito e suas motivações entre senhores e escravos utilizando-nos para tanto de
processos-crime referentes a crimes cometidos por escravos na região e período
enfocados. Estes nos revelaram que os escravos da localidade estudada andavam
armados em seu dia-a-dia, que podiam circular e ter certa autonomia mesmo com os
temores e riscos que advinham desta situação, pois em alguns momentos resultavam em
crimes e violências, como mostraram os processos, algo bem corriqueiro no contexto
em questão.
Vimos também que a arma era algo comum para os colonos, de todos os estratos
sociais, e que devido a seu fácil acesso (sobretudo no que se refere aquelas com
características mais rudimentares, tais como os instrumentos utilizados para o trabalho
nas minas e roças) era difícil para as autoridades controlar sua posse, contribuindo ainda
mais para o clima de instabilidade que podia surgir nas relações sociais estabelecidas
neste contexto. No entanto, estes mesmos elementos (a violência latente, a facilidade de
conseguir armas, a ineficiência da fiscalização do uso destas) acabavam também por dar
à escravidão um lado consensual, pois do contrário seria muito difícil sua manutenção
sem eclosões de fugas, revoltas e motins a todo o momento. São estes pressupostos que
354
nos ajudam a fixar a idéia de que havia, para além da violência e brutalidade, outros
mecanismos de interação entre senhores e escravos.
355
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