A Sorocaba Das Batalhas - Ocupações Juvenis de Espaços Públicos Na Cidade
A Sorocaba Das Batalhas - Ocupações Juvenis de Espaços Públicos Na Cidade
A Sorocaba Das Batalhas - Ocupações Juvenis de Espaços Públicos Na Cidade
Sorocaba/SP
2020
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS – CAMPUS DE SOROCABA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
Sorocaba/SP
2020
França, Wellington dos Santos
Co-orientador:
_____________________________
Prof. Dr. Alexandre Barbosa Pereira
Universidade Federal de São Paulo
Examinador
_____________________________
Prof. Dr. Paulo Cesar Rodrigues Carrano
Universidade Federal Fluminense
Examinador
_____________________________
Prof. Dr. Giancarlo Marques Carraro Machado
Universidade Estadual de Montes Claros
5
Dedicatória
Ao senhor Elias...meu avô, que muito me
ensinou com suas histórias de vida que
foram, simplesmente, incríveis.
6
AGRADECIMENTOS
À minha bela flor, companheira, amiga, amante, meu amor, Fran, que esteve
ao meu lado antes mesmo do primeiro dia como mestrando, até o último dia desta
jornada me apoiando, incentivando e torcendo para tudo desse certo. Tenho certeza
de que sua presença em minha vida neste momento foi muito, mas muito importante.
Agradeço aos meus pais que sempre zelaram pelos meus estudos e que desde
o momento que ficaram sabendo do meu ingresso no programa de mestrado, torceram
e me acompanharam neste cominho.
Ao amigo, mestre e inspirador Adalberto Coutinho que tive a honra de ser aluno
durante os três anos do ensino médio e que hoje cultivamos uma amizade que perdura
por longos anos. Agradeço a sua prontidão em me ajudar revisando meu projeto de
pesquisa, assim como Fátima Faria que ao lado de Adalberto Coutinho também
ajudou na revisão.
Gostaria de agradecer aos professores e as professoras Hylio Laganá
Fernandes, Viviane Melo de Mendonça, Marcos Francisco Martins, Marcos Roberto
Vieira Garcia, Ivan Fortunato, Dulcineia de Fatima Ferreira, Kelen Christina Leite,
Teresa Mary Pires de Castro Melo e Rosalina Burgos que ao longo desta jornada tive
a oportunidade de frequentar suas respectivas aulas contribuindo para a ampliação
dos meus conhecimentos em torno da pesquisa sobre Educação, assim como de
diversas temáticas que contribuíram diretamente no desenvolvimento da minha
pesquisa.
Aos e as colegas do núcleo de estudos e pesquisas Geração, Percursos de
Vida e Processos Educativos pelos belos debates em nossos encontros periódicos.
Debates estes que colaboram de forma ímpar na compreensão de diversos temas da
Sociologia.
Aos amigos e companheiros Benedito Halter, Flederson Assis (Fred), Cido Lima
e Maurício Tajo que me acolheram em suas respectivas residências para uma bela e
produtiva conversa a respeito do crescimento da periferia sorocabana nos anos 1980,
1990 e 2000, fato que ampliou minha visão sobre a história recente da cidade.
Ao mc EWE que pacientemente me concedeu uma linda entrevista sobre o
surgimento das batalhas de rima em Sorocaba, e a suas respectivas lutas diárias para
se manterem vivas.
7
RESUMO
Abstract
This essay aims to analyse the processes of the suburb expanding and the unequal
urban development in Sorocaba city whithin its historical context, taking into account
industrial expansion happened in the city in 70’s and 80’s as well as the real state
speculation strenghtening in the 90’s. In addition, it aims to comprehend the youthful
culture practices of occupation and re-signification of the public space through hip-hop
culture. Based in an ethnografic method, the essay searched highlightening the rhyme
battles reality in Sorocaba, in order to comprehend the dynamics and the developed
relations by arising youths from suburb about to set a new way of moving around and
experiencing urban spaces, through the struggle for the right to the city.
Key words: Rhyme Battles;Youthful Culture; Hip-Hop; Youths; Right to the City.
10
LISTA DE IMAGENS
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 12
2 A PRODUÇÃO CAPITALISTA DOS ESPAÇOS URBANOS DE SOROCABA .... 19
2.1 Desenvolvimento urbano e formação periférica .................................................. 19
2.2 A dominação da especulação e o boom imobiliário ............................................ 22
2.3 A cidade como produto........................................................................................ 26
2.4 Ocupações juvenis .............................................................................................. 31
1 INTRODUÇÃO
1
Programa criado pelo governo federal, logo no início do primeiro mandato do governo Dilma, o programa CEU
tem como objetivo integrar “num mesmo espaço programas e ações culturais, práticas esportivas e de lazer,
formação e qualificação para o mercado de trabalho, serviços socioassistenciais, políticas de prevenção à
violência e de inclusão digital, para promover a cidadania em territórios de alta vulnerabilidade social das cidades
brasileiras. [...] A gestão dos CEUs é compartilhada entre as prefeituras e a comunidade, com a formação de um
Grupo Gestor, que fica encarregado de criar um Plano de Gestão, e também conceber o uso e programação dos
equipamentos (Secretaria Especial da Cultura)”.
14
2
Programa criado pelo governo federal, durante o segundo mandato do governo Lula, o programa tem como
objetivo “levar equipamento esportivo público e qualificado para a população que pudesse, a mesmo tempo,
tornar-se ponto de encontro e referência para a juventude. Mais do um espaço físico para a prática de esportes,
a Praça da Juventude é uma área de convivência comunitária onde são realizadas também atividades culturais,
de inclusão digital e de lazer para a população de todas as faixas etárias (Secretaria Especial do Esporte)”.
15
3
A descoberta do plano B não aconteceu em alguma entrevista, mas na prática, tomando muita chuva.
17
4
Ao todo, seis jovens foram entrevistas, sendo três da Batalha do Cianê (Gabriel Mesut, Wesley Cavalca e
Matheus MR2) e três do Beco das Mina (Leticia, Brandini e Jéssica).
18
5
“Segundo alguns autores, há no Brasil uma expansão ainda maior do setor têxtil (Prado Jr, 1976 entre outros),
que já havia começado com relativo sucesso desde o último decênio do Império (Neto, 2005, p. 109)”.
6
“[...] o processo de desconcentração industrial estava em expansão a partir da década de 1970, sendo marcado
pelo deslocamento de inúmeras indústrias da capital de São Paulo para novas áreas localizadas em outros
estados, como também em regiões do interior paulista. [...] as cidades necessitavam se adequar com
infraestrutura de qualidade nos setores de transporte, energia e comunicações, fatores estes que já estavam
presentes em Sorocaba facilitando então, seu crescimento industrial (Comitre e Andrade, 2011, p. 5)”.
20
7
De acordo com o levantamento de dados realizado no ano de 2019, a participação do setor de serviços
corresponde a 69% do PIB da cidade de Sorocaba.
8
Segundo Pochmann (2007), “a partir da segunda metade do século XX, a indústria começou a perder
importância relativa na geração do valor, da renda, influenciada, cada vez mais, pelo setor terciário, que envolve
um complexo de atividades muito heterogêneas, variando desde os chamados serviços, passando pelo comércio
até o próprio setor público. Mesmo com um rápido avanço industrial entre os anos de 1930 e 1980, esse avanço
industrial não se completou plenamente, uma vez que produtos de base industrial, tecnologicamente mais
avançado, e, sobretudo, os chamados setores de bens, de capital, que desenvolvem tecnologia e que são os
segmentos mais dinâmicos da atividade industrial, não foram plenamente internalizados no país”.
21
pessoas a se submeterem ás mais diversas situações uma vez que este fato se
desdobrou em um processo “denominado de “laissez-faire9” urbano, no sentido de
permitirem às volumosas e crescentes levas populacionais a se fixarem onde e como
pudessem (KOWARICK e BONDUKI, 1988, p. 133)”.
A década de 1990, no entanto, presenciou uma ruptura no processo de
urbanização impulsionado pela industrialização, uma vez que as imobiliárias
passaram a ganhar força durante o governo do então prefeito Renato Amary. O
protagonismo das imobiliárias frente ao processo de urbanização de Sorocaba teve
início a partir da expansão urbana em direção à zona norte da cidade com o projeto
higienista, dito de interesse social, de desfavelização que ocorrera durante o governo
do mencionado prefeito. Tal projeto visava a formação de um novo conjunto
habitacional na zona norte de Sorocaba que deveria acontecer em parceria entre a
Prefeitura Municipal e a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbana do
Estado de São Paulo (CDHU), mesmo diante do fato da CDHU não ter concordado
com a contrapartida da prefeitura que, naquele momento tratava-se de ceder a área
para que as casas fossem construídas pela companhia. O projeto de desfavelização
seguiu em frente, com a utilização de uma área municipal no extremo da zona norte,
e o que aconteceu na prática foi apenas “uma transferência de “barracos”, que outrora
se encontravam distribuídos pela cidade, para a periferia distante (ANDRADE e
COMITRE, 2016, p. 12)”. De acordo com Cido Lima10,
9
Termo cunhado pelo filósofo e economista Adam Smith, a expressão francesa significa literalmente “deixar
fazer”, é considerada um símbolo da economia liberal defendida pelo capitalismo.
10
Liderança do Movimento de Luta por Moradia na cidade de Sorocaba nas décadas de 1990 e 2000, foi
entrevistado como parte da pesquisa de campo.
22
Mesmo que tal ação não tenha resolvido o problema latente da moradia como
vimos através do relato anterior, contraditoriamente, do ponto de vista das imobiliárias,
o projeto de desfavelização, que deu origem ao conjunto habitacional Ana Paula
Eleutério, popularmente conhecido como “Habiteto”, inaugurado na cidade de
Sorocaba na segunda metade da década de 1990, foi exitoso, pois contribuiu para o
boom imobiliário na cidade.
11
Membro da Pastoral da Juventude do Meio Popular nas décadas de 1990 e 2000, contribuiu no processo de
organização da ocupação Santo André. Foi entrevistado como parte da pesquisa de campo.
23
12
Militante social, participou de ocupações na cidade de Sorocaba nas décadas de 1980 e 1990. Foi entrevistado
como parte da pesquisa de campo.
24
13
http://www.renatoamary.com.br/empreendimentos/areas_de_atuacao
25
Percebe-se uma ação conjunta entre poder público e iniciativa privada para o
processo de formação deste bairro, que se tornaria um dos bairros com maior
concentração de infraestrutura e serviços, contribuindo para a alteração do “mercado
de terras e valores imobiliários, provocando redistribuições demográficas e
deslocamentos populacionais, mas também redefinindo as dinâmicas locais (TELLES,
2006, p. 50)” o que resultou na transformação de um dos lugares com custo mais alto
para se morar na cidade de Sorocaba.
14
“[...]atividades protagonizadas por sujeitos considerados jovens ou que carregam fortemente uma marca
simbólica daquilo que as sociedades industrializadas e urbanas definem como juvenil (Pereira, 2017, p. 13)”
33
Tendo como ponto de partida a definição apresentada por David Harvey (2012),
o direito à cidade se apresenta como uma peça do cotidiano, ou seja, se estabelece
como algo corriqueiro onde “o conjunto de direitos – materiais e imateriais simbólicos
– que possam ser usufruídos de maneira equânime por todos os citadinos na
sociedade urbana, num enfrentamento a lógica da urbanização crítica, onde o urbano
não é para todos (DAMIANI, 2004 apud BURGOS, 2016, p. 02)”, assim como “o direito
à cidade não é igual para todos os seus habitantes (CARRANO, 2008, p. 64)”.
Desta forma, a materialização do direito à cidade se estabelece como um
grande desafio que perpassa por garantir “las funciones sociales de la tierra, la
propiedad y la ciudad; la lucha contra la discriminación socio-espacial; los espacios
públicos de calidad; y los vínculos sostenibles e inclusivos entre lo rural y lo urbano
(PLATAFORMA GLOBAL POR EL DERECHO A LA CIUDAD, s/d)”.
No entanto, a possibilidade de garantir a que tal direito se torne uma realidade
concreta só é possível a partir do momento que se compreende que se trata menos
de um direito jurídico, mas uma demanda, um apelo a necessidades básicas, de
acordo com Bianca Tavolari (2016) ao mencionar Peter Marcuse (2014). Logo,
percebe-se a necessidade de pensar o direito à cidade tendo como centralidade a
pessoa humana uma vez que a “cidade é um espaço apropriável para a realização da
vida, o que envolve o uso do espaço pelo corpo. Através do corpo, e de todos os
15
Por se tratar de um conceito contextual, o direito à cidade se torna um objeto de disputa, sendo muitas vezes
apropriado pelo capital o que resulta na desfiguração do poder revolucionário de tal conceito, cunhado por Henri
Lefebvre. Porém cabe ressaltar, que a inserção do termo na redação desta dissertação busca enaltecer seu
caráter libertário e transformador.
34
[...] a cidade é obra a ser associada mais como obra de arte do que
com o simples produto material. Se há uma produção da cidade, e das
relações sociais na cidade, é uma produção e reprodução dos seres
humanos, mais do que uma produção de objetos. A cidade tem uma
história; ela é a obra de uma história, isto é, de pessoas e de grupos
bem determinados que realizam essa obra nas condições históricas.
(Lefebvre, 2016, p. 52)
cultural invertem a lógica de um espaço que foi pensado e constituído para não ter
vida pulsante. Como afirma Carrano (2003), esta prática de subversão é capaz de
instaurar “novas significações para os espaços das cidades” (p. 23).
Neste sentido fica nítido o caráter político das ocupações urbanas dos coletivos
juvenis, conforme nos aponta Agier (2015), pois este tipo de ação “é um direito
humano e, ao mesmo tempo, um direito à cidade” (p. 492). No entanto, desde o
momento que tais espaços se tornam pontos de encontro entre aqueles que
compartilham estilos culturais, gosto musical, etc., os jovens ali presentes lhes dão
“novos sentidos a partir das experimentações e vivências em tal espaço” (MELO e
LEITE, 2013, p. 03).
16
Centre for Contemporary Cultural Studies (Centro de Estudos Culturais Contemporâneos).
39
17
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a década de 1970 marcou uma virada no
que se refere a concentração populacional brasileira, uma vez que neste período a maior parte da população
passa a habitar os centros urbanos. Nas décadas seguintes, ainda de acordo com o IBGE, esta realidade se
consolida, tornando o Brasil, um país majoritariamente urbano.
40
Mesmo com uma proximidade muito grande com a história dos descendentes
africanos escravizados18 no continente americano, foi através de um jovem jamaicano
que o movimento Hip-hop passa a ser gestado na periferia nova-iorquina,
especificamente no South Bronx. O jovem jamaicano Clive Campbell, mais conhecido
como DJ Koll Herc, chega ao South Bronx e passa a organizar festas nas ruas do
bairro com o auxílio do seu toca-discos, onde passou a desenvolver diversas técnicas
típicas utilizadas pelos DJ’s na atualidade. No decorrer de tais festas, os jovens
presentes tomavam o microfone nas mãos por diversas vezes com o intuito de se
manifestarem de forma improvisada conforme a batida do som seguia, dando origem
aos mestres de cerimônia, ou simplesmente MC. Assim, dois (DJ e MC) dos quatro
elementos que formam o movimento hip-hop se consolidam. Posteriormente, o grafite
passa a ser presença nos muros periféricos e não periféricos, graças à ação das
gangues envolvidas com as festas de rua que passaram a disputar quem conseguiria
deixar o maior número de inscrições artísticas em muros com os nomes das
respectivas gangues. Deixando de disputarem por meio da violência para disputarem
através da arte urbana. Por fim, o Break, tipo de dança atrelada intimamente com o
universo dos jovens participantes das festas periféricas, passa a tomar conta dos
salões de baile com suas acrobacias e formas de mexer com o corpo.
18
“As raízes do rap podem ser encontradas entre a população historicamente escravizada tanto do Brasil quanto
dos EUA. No Brasil, os ganhadores de pau, que vendiam água nas ruas de Salvador, utilizavam-se do canto-falado
em que o MC (mestre-de-cerimônia) conduzia o grupo. Nos EUA, houve escravos das fazendas de algodão no sul
do país, os griots, que também se utilizavam desse estilo de cantar. É um exemplo básico da transcendência
negra: não importa onde estejam seus descendentes, há referências a culturas de origem africana que
permanecem por gerações” (Andrade, 1999, p. 39 apud Raid, 2007, p. 47).
19
O freestyle consiste em improvisar, a partir de uma batida tocada pelo DJ, uma letra de rap. Pode ser feito em
dupla ou individualmente como forma de competição.
43
20
“É na cidade de São Paulo que o movimento se manifesta pela primeira vez em território brasileiro. E foi na
estação São Bento [...], entre a década de 1980 e 1990, que ocorreram os primeiros encontros de Rappers, B.
boys e Grafiteiros (Tejera, 2013, p. 31)”.
44
Setembro21 por meio dos bailes do DJ Nelson Maçã. Mais uma vez a música tem papel
fundamental no processo de disseminação da expressão desta arte. A influência do
hip-hop paulistano foi uma marca para a consolidação da cultura em Sorocaba, uma
vez que a conexão com São Paulo, era uma constante; para que jovens sorocabanos,
que se identificavam com tal cultura tivessem acesso principalmente aos discos. No
entanto, as constantes idas à São Paulo possibilitaram outros encontros e contatos,
resultando em novas experiências.
21
Clube fundado em Sorocaba com o objetivo de garantir à população negra e periférica da cidade um espaço
de cultura e lazer uma vez que os tradicionais clubes sorocabanos, Ipanema Clube, Sorocaba Clube e Clube União
Recreativo, não toleravam a presença de pessoas negras. Assim, o Clube 28 de Setembro foi o primeiro clube a
tocar música negra em Sorocaba.
45
Grupos e cantores como Rappin’ Hood, Sabotage, Doctor Mc’s, RPW, Sistema Negro,
Xis, RZO, Racionais Mc’s e tantos outros.
No entanto, mais do que vivenciar cada batalha, experimentei lembranças
muito agradáveis, também me percebi em situações um tanto quanto incomuns. Digo
isso, pois com exceção da Batalha do Cianê em que minha entrada foi mais tranquila
pelo fato de conhecer um dos organizadores, a chegada nas demais batalhas
aconteceu sem qualquer contato prévio seja com participantes ou organizadores. Os
olhares evidentes, atravessados e desconfiados com a minha presença, tanto que fui
questionado sobre quem eu era e, um dos momentos pensaram que eu era um policial
à paisana. O receio e a desconfiança são elementos completamente compreensíveis
diante do posicionamento da Mc Brandini22,
22
Participante do Beco das Mina desde o início, foi entrevistada como parte da pesquisa de campo em 28 de
janeiro de 2020.
23
Um dos fundadores da Batalha do Cianê, foi entrevistado como parte da pesquisa de campo em 15 de setembro
de 2019.
47
segregação, cabe ressaltar que a prática da circulação pela cidade provocada pelas
batalhas que acontecem no centro contribui para novas práticas societárias. Diante
deste cenário, a Batalha do Cianê e o Beco das Mina têm contribuído diretamente
para o desenvolvimento desta nova perspectiva de viver a cidade, pois “a mobilidade
é elemento crucial para os processos de interação social e abre campo de
possibilidades para a diversificação da experiência social”(ALMEIDA et al, 2012, p.
12).
24
Argumento utilizado pela jovem Letícia em entrevista realizada dia 03 de fevereiro de 2020, ao ser abordada
sobre suas motivações para ter chego às batalhas de rima.
49
em que jovens mulheres se fazem presentes na batalha com o intuito de fazer uma
intervenção ou até mesmo de batalhar. Tal presença se limita ao observar o que está
acontecendo dentro da roda ou em fazer companhia aos namorados ou ficantes que
irão apresentar algum poema, ou música.
Ainda com relação aos organizadores, são aqueles que agitam a roda com
frases de efeito, próprias do universo das batalhas de rima, tais como: Vem vê, vem
vê, vem vê a Batalha do Cianê, típica frase de abertura, dois mc’s vão cair no bangue,
bangue...O que cêis querem ver? Sangue!; Aqui cê mata ou morre, aqui cê mata ou
morre, 015 Sorocaba é o terror do microfone; Se tu ama essa cultura, como eu odeio
a ditadura, digam hip-hop. Hip-hop etc. Além das frases de efeito, os organizadores
também agitam a roda em diversos momentos para que todos os presentes agitem as
mãos para o alto embalados pelos gritos: Uôô, uôô, uôô!
A roda formada para que a Batalha do Cianê tenha início é composta por
aqueles que irão participar de alguma forma, seja na intervenção poética, na batalha
ou por aqueles que irão prestigiar o conjunto da obra proposto. Para quem for
participar das intervenções basta pedir para os organizadores incluírem o nome na
lista. Em diversos momentos é possível ver algumas pessoas que participam das
intervenções e posteriormente das batalhas. As intervenções que antecedem as
batalhas funcionam como uma espécie de aquecimento para o momento em que os
mc’s se enfrentam através das rimas de improviso. Não há uma competição entre
aqueles que se apresentam no momento da intervenção, diferente do momento da
batalha que acontece em melhor de três rounds, logo, quem vence dois segue
avançando a cada rodada.
Cabe ressaltar que muitas das intervenções se tornam espaços para
divulgação de trabalhos independentes da cena hip-hop de Sorocaba. Dentre os
trabalhos apresentados, vale destacar a presença do cantor solo Arjuna 21 e dos
grupos Preferencial Mc’s e Resultado de Revolta, pois já possuem certa organização,
vídeos gravados com certo grau de profissionalismo divulgados nas redes sociais.
Ao final das apresentações inscritas para a intervenção poética, as batalhas se
iniciam imediatamente. A pessoa que faz a apresentação da batalha passa a chamar
os mc’s que irão batalhar pedindo para que o público diga um número. Neste caso,
cada número corresponde a um mc que se inscreveu para a batalha e desta forma o
sorteio da primeira rodada acontece.
53
25
Na batalha de 30 segundos, cada mc tem este tempo para desenvolver sua rima sem que seja interrompido. A
pessoa que inicia o round rimando primeiro ataca e a que rima depois repode. No segundo round inverte-se a
ordem de quem ataca e quem responde e caso haja a necessidade de um terceiro round, os mcs tiram no par ou
ímpar para definir quem começa rimando.
54
26
No decorrer da pesquisa de campo, fui separando os temas que mais apareciam nas rimas dos mc’s durante
as batalhas da batalha do Cianê. Os temas que apareceram com mais frequência foram: tecnologia, futebol,
política, talaricagem (quando alguém se interessa por uma pessoa que já tem compromisso), RAP, consciência
social, filmes em geral, vídeo game, armas de fogo, operadoras de celular, redes sociais, Língua Portuguesa,
História, periferia, masculinidade, cinema, poesia/literatura, realidade periférica, séries.
55
27
Quem tem mais folhas como prémio, logo, foi mais vezes foi campeão.
57
Imagem 5: Foto do campeão (mc Baiano) e vice (mc Hayato) na Batalha do Cianê.
3.3 BATALHA BECO DAS MINA HIP-HOP SEM ENGANO, O QUE QUE
CÊS QUEREM VER? O TERROR DOS PASSA PANO
Protagonizada por jovens mulheres, a batalha do Beco das Mina 28 teve início
no ano de 2018 e tem como objetivo construir um “ambiente de resistência dentro da
cena do RAP, que é majoritariamente masculina e machista”, conforme aponta Letícia,
uma das fundadoras do Beco das Mina. Desde a primeira batalha, o Beco das Mina
acontece uma vez por mês, sempre aos domingos na praça Frei Baraúna, conhecida
como praça do Fórum Velho, localizada na região central da cidade de Sorocaba.
Cabe ressaltar que a praça Frei Baraúna sempre foi um espaço de atividades
culturais, logo, o fato da batalha o Beco das Mina acontecer no lugar onde acontece
pode ser compreendido como uma forma de manter viva a memória cultural que
envolve a famosa praça do Fórum Velho. A praça Frei Baraúna abriga um dos prédios
tombados como patrimônio histórico de Sorocaba onde já funcionou a Oficina Cultural
Grande Otelo. Além deste projeto do governo do estado de São Paulo que já não
existe mais; a praça Frei Baraúna já foi ocupada pelo Projeto Viva o Centro, pela
Ocupação Jovem, pelo CarnaRAP, é também onde acontece a dispersão do Bloco do
28
Em conversa informal com Leticia, uma das fundadoras do Beco das Mina, ela relatou a o nome atribuído a
batalha foi uma construção coletiva a partir de um grupo de whatsapp composto somente por Mc’s mulheres.
Depois de uma série de opções levantadas, o nome Beco das Mina foi o mais votado e assim a batalha foi
oficialmente batizada.
59
29
Toda a organização para a intervenção poética e para a batalha feita anteriormente fica registrado em um
caderno. Neste caderno se organiza a lista das pessoas que irão realizar as intervenções poéticas e que irão
batalhar. Para além de fazer uma relação das pessoas que irão batalhar, é organizada uma chave de confrontos
para que por meio de sorteio a chave possa ser preenchida e assim organizar os confrontos até a final.
62
é a forma encontrada para ver quem começa. Com o celular conectado a uma caixinha
de som através do bluetooth, o beat chega ao centro da roda para dar o ritmo às rimas
que serão apresentadas. A pessoa responsável por controlar o beat não é a mesma
em todas as batalhas, pois o pessoal da organização sempre pergunta quem tem
celular com beat, possibilitando uma maior integração no espaço da batalha.
A batalha desenvolvida no Beco das Mina não segue uma única modalidade,
sendo possível ter edições com batalha livre/batalha de sangue e batalha de
conhecimento. A batalha livre ou batalha de sangue, é uma modalidade onde as mc’s
podem utilizar diversos assuntos para a construção da sua rima, logo adotam
diferentes estratégias, desde que não ofenda sua adversária, ou seja, a batalha de
sangue tem como foco a desconstrução da pessoa com quem se está batalhando. Na
batalha de sangue, quem ganha o jogo do par ou ímpar como citado anteriormente
escolhe se quer atacar primeiro ou se defender. Essa escolha acontece somente no
início, pois no segundo round a ordem se inverte automaticamente.
A batalha de conhecimento por sua vez tem características particulares.
Diferentemente da batalha de sangue, a batalha de conhecimento tem como foco um
tema específico que pode ser estabelecido pela organização ou, para ser um pouco
mais complexo e aumentar o grau de dificuldade, a própria organização pode pedir
para que a plateia determine um tema a cada round ou a cada confronto, desde que
o tema seja capaz de colaborar com a formação do pensamento crítico das
participantes. Desta forma, a cada confronto as mc’s devem construir suas rimas com
base exclusivamente no tema proposto pela organização sem a necessidade de
atacar a outra pessoa do duelo, pois o que vale é o repertório sobre a temática. Fica
nítido que “o discurso contido nas rimas atrela um potencial crítico, que além de
manter vivas as resistências, também evidencia uma potencialidade (uma fé, um
projeto) de transformação social (WEIHMULLER et al, 2018, p. 225)”.
É evidente que ambas as modalidades trazem uma grande complexidade para
as mc’s, pois necessitam de um grande repertório para que sejam capazes de
construir rimas consistentes e com conteúdo afim de agradarem ao público, pois é
quem garante a passagem da mc para a próxima fase da batalha. As jovens
competidoras “[...] duelam na rima e na improvisação. A intimidade com as palavras,
a destreza do pensamento e a língua afiada são elementos valorizados nesses
embates (SOUZA, 2014)”.
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O desafio é grande haja visto que a batalha do Beco das Mina tem como
dinâmica a batalha de trinta segundos. Neste caso, no primeiro e segundo round cada
mc tem tempo determinado para desenvolver sua rima com o intuito de agradar ao
máximo possível o público que forma a roda, pois aquela que conseguir fazer com que
o público grite mais alto ao final do confronto será consagrada vencedora. Caso, ao
final do segundo round haja um empate, o terceiro round é acionado para que
aconteça o desempate. O acionamento do confronto de desempate pode acontecer
por meio de consulta ao público, ou, dependendo da intensidade da batalha do
segundo round, se o público entender que a mc que perdeu o primeiro for melhor no
segundo, ao concluir o tempo as pessoas que estão acompanhando já começam a
gritar com força: “terceiro, terceiro, terceiro”. Respeitando a orientação do público as
mc’s se preparam para o terceiro round que se diferencia dos dois primeiros, pois,
este assume uma outra dinâmica, o bate e volta.
Esta dinâmica se diferencia por ser mais acelerada, pois cada uma das mc’s se
revezam na construção da rima respeitando a sequência 4-2-2-2, ou seja, as rimas
devem ser construídas a partir dessa quantidade de versos e a pessoa que está
apresentando a batalha tem a responsabilidade de controlar a construção das rimas
para que não ultrapassem esse marcador.
rasteiras como essa, a batalha acontecia, na calçada do outro lado da rua, embaixo
do poste de luz que fica em frente à banca de flores Toyama.
Impressionou-me como as meninas se portam de forma propositiva e resistente
frente às dificuldades que encontram no decorrer dos acontecimentos referente ao
Beco das Mina. É como se as adversidades que as jovens mc’s encontram às
fortalecessem para continuarem construindo o espaço que lhes é de direito, como um
lugar de resistência contra o machismo, mas também a favor da valorização da cultura
de rua.
Voltando para dentro da roda, o evento se desenrola de batalha em batalha,
round a round, rima em rima até a grande final e aqueles que estão acompanhando
atentamente, se envolvem por inteiro. A cada rima bem construída e embalada pela
batida do beat o público reage de forma intensa e assim, a vibração de quem forma a
roda do lado de fora se mistura com a vibração de quem está dentro, colaborando
com o balanço do corpo e dos braços como em um balé, ou num duelo balizado por
movimentos de defesa e ataque. Todo esse movimento dos corpos, segue o balanço
das belas folhas das palmeiras, como se estivessem na mais fina sintonia entre o ser
humano e a natureza.
No trajeto entre a primeira e a última batalha da noite, toda a energia, vibração,
sintonia e envolvimento aumenta significativamente, fazendo da batalha final um
evento a parte. Tanto que, antes mesmo de soltarem o beat e as mc’s começarem a
rimar, diversos celulares surgem com seus flashs ligados a fim de registrar, seja por
vídeo ou foto, o grande embate que está por vir. Sem perderem um detalhe sequer,
os registros acontecem e logo começam a aparecer nas redes sociais daqueles que
prestigiam o belo momento ocorrido diante de seus olhos.
Sem qualquer alteração, a batalha final segue as mesmas regras e a mc que
quiser ser campeã, assim será se conseguir tirar mais barulho do público ali presente.
Aquela que conseguir duas vitórias, em três rounds, irá se consagrar campeã da noite.
Assim, o troféu será levado para casa - a folhinha onde foi organizada a chave dos
confrontos das batalhas que aconteceram na noite; logo, quanto mais folhinhas, mais
vezes essa pessoa foi campeã.
66
Imagem 11: Foto da campeã (mc Jéssica Venenosa) e vice (mc Brandini) no Beco das Mina.
30
“A acumulação de capital cultural exige uma incorporação que, enquanto pressupõe um trabalho de inculcação
e de assimilação, custa tempo que deve ser investido pessoalmente pelo investidor [...]. Sendo pessoal, o
trabalho de aquisição é um trabalho do “sujeito” sobre si (fala-se em “cultivar-se”). O capital cultural é um ter
69
que se tornou ser, uma propriedade que se fez corpo e tornou-se parte integrante da “pessoa” [...]. Aquele que
o possui “pagou com sua própria pessoa” e com aquilo que tem de mais pessoal, seu tempo. Esse capital pessoal
não pode ser transferido instantaneamente (diferentemente do dinheiro, do título de propriedade ou mesmo
do título de nobreza) por doação ou transmissão hereditária, por compra ou troca. Pode ser adquirido, no
essencial, de maneira totalmente dissimulada e inconsciente, e permanece marcado por suas condições
primitivas de aquisição (Bourdieu, 2007, p. 74 e 75).
70
Além dos relatos apresentados por dois jovens que vivem a Batalha do Cianê
e o Beco das Mina intensamente, cabe destacar uma das ações de opressão e
truculência ocorrida no dia 31/10/2019. Depois de ficar mais de um mês tendo de se
reunir em outro lugar, pois devido a constante perseguição da Polícia Militar e da
Guarda Civil Metropolitana por conta de uma questão burocrática (pedido de
autorização) a Batalha do Cianê passou a acontecer na sede da torcida organizada
do Esporte Clube São Bento (tradicional time de futebol da cidade), a batalha voltou
para seu local de origem. Todas as semanas, depois desta volta, alguns agentes de
segurança pública, estadual ou municipal sempre passavam para “visitar” a batalha
de forma bastante truculenta. Dentre essas visitas, a que ocorreu no último dia do mês
de outubro de 2019 foi algo extremamente grotesco e desumano. Sem qualquer
possibilidade de diálogo, oficiais da Guarda Civil Metropolitana saíram de duas
viaturas com seus cassetetes, gás de pimenta e imediatamente começaram a disparar
contra aqueles que participavam da batalha naquele momento. Muitos jovens,
infelizmente, foram atingidos pelos cassetetes e pelo gás de pimenta, foi o maior corre,
corre para tentar se safar da violência policial naquele momento. Presenciar essa
ocorrência foi, sem dúvida, um dos piores momentos da minha vida.
Parece existir uma batalha que se dá dentro da roda formada pelo público onde
os competidores duelam com toda habilidade possível, na busca pela melhor
performance, e outra batalha pelo direito de ocupar e ressignificar o espaço público,
negligenciado pelo Estado, que envolve todos os participantes independentemente de
serem competidores ou não.
Imagem 12: Viatura da GCM estacionada onde a Batalha do Cianê acontece, impedindo a realização
da batalha.
A dimensão dos conflitos é uma constante na realidade das batalhas, pois tanto
nos processos de ocupação do espaço protagonizado pela Batalha do Cianê como
pelo Beco das Minas, são atos de transgressão da ordem estabelecida, transformando
o espaço público, segundo Lucio Kowarick (2007), em local de polarizações. Desta
forma os conflitos se estabelecem de forma concreta através de embates com agentes
da segurança pública como também através dos olhares que recriminam a ação de
jovens oriundos da periferia.
Cabe salientar que, a ação repressora dos agentes de segurança pública
simboliza a presença do Estado no dia a dia das batalhas de rima, pois, não há
nenhuma ação efetiva do governo municipal com o intuito de contribuir, por meio de
políticas públicas, com o fortalecimento das batalhas. Diferentemente de outras
cidades da região e até mesmo da capital paulista, não há qualquer tipo de oferta de
estrutura advinda de qualquer secretaria ou até mesmo editais que possam colaborar,
72
Diante deste contexto, podemos perceber que os espaços urbanos passam por
um movimento de construção/desconstrução, logo, tais espaços e a cidade se
constituem por intermédio da ação direta dos sujeitos. “Se a cidade é uma construção
social, se é primeiro o reflexo dos processos de (re)produção da sociedade, os
indivíduos que nela estão são agentes fundamentais desse processo construtivo
dialético e contínuo (MOREIRA, 2016, p. 05)”.
Diante da dinâmica citada anteriormente, a Batalha do Cianê e o Beco das Mina
articulam-se como forma de alterar as mais variadas tensões estabelecidas no
contexto urbano afim de se apropriar ainda mais dos espaços e da cidade como um
todo em um nítido processo de ação reivindicatória, pois, “na cidade [...] queremos o
73
Imagem 13: Reunião entre membros do Beco das Mina e Batalha do Cianê e secretário de cultura de
Sorocaba.
O segundo, dos três acontecimentos que vale ressaltar foi o árduo processo de
conscientização eleitoral que se estabeleceu durante o primeiro e o segundo turno da
eleição presidencial de 2018, em oposição ao então candidato Jair Bolsonaro. Tanto
a Batalha do Cianê quanto do Beco das Minas estabeleceu um posicionamento
contrário extremamente firme em relação à candidatura daquele que hoje ocupa a
presidência da república. Em todas as edições, as pessoas que formavam a
organização das referidas batalhas faziam questão de se colocarem, a partir de
argumentos concretos, para que houvesse um momento de conscientização afim de
demostrarem o quanto poderia ser prejudicial uma eventual eleição do atual
presidente. Infelizmente sabemos como se deu o desfecho da eleição presidencial de
2018.
75
Imagem 14: Dia da aprovação do Projeto de Lei que criou a Semana do Hip-Hop em Votorantim.
31
“Apesar da força que o Hip Hop vem fazendo para tornar visíveis os jovens negros das periferias, as mulheres
que compartilham desta mesma cultura parecem seguir invisíveis [...] (Souza, 2006, p. 10)”.
76
compreender que a ação política adentrou o cotidiano e, por outro lado, que a cultura
se faz presente neste cotidiano (p. 167)”. No entanto, a questão do cotidiano
relacionado as batalhas apresentam cenários de avanço como vimos anteriormente,
mas também de limites históricos.
A questão da limitação está intimamente ligada à lógica do machismo que ainda
se faz presente na cena da cultura hip-hop de forma ampla, uma vez que se trata de
um movimento que faz parte da dinâmica, estrutura e histórico-social da
dicotomização da atribuição dos lugares sociais de acordo com o gênero, gerando
assim uma “naturalização do machismo na sociedade brasileira e, por extensão, na
comunidade hip hop (PARDUE, 2008, p. 521)”. Maria Noemi de Castilho Brito em
artigo intitulado “Gênero e Cidadania: referenciais analíticos”, afirma que,
32
“Fundada em 2010, a Frente Nacional das Mulheres no Hip Hop surgiu dentro do I Fórum Nacional de Mulheres
no Hip Hop, que aconteceu em Carapicuiba e está representada em mais de 15 estados brasileiros. O projeto
tem como objetivo destacar a importância da participação feminina na sociedade, por meio de atividades
temáticas voltadas a cultura, política e cidadania. [...] Participam da FNMH2 simpatizantes do hip hop e mulheres
que o utilizam como ferramenta de mudanças (Dilon, 2014)”.
78
apresentadas a luta pelo direito à cidade deve ser uma luta que
contemple a diversidade de corpos, vivências e necessidades (Correia
et al, 2018)
4.1 OS E AS JOVENS
Matheus, também conhecido como mc MR2, tem vinte e dois anos e faz parte
da organização da Batalha do Cianê, sendo o mais antigo, pois está presente na vida
da batalha desde seu primeiro dia. Morador do bairro Vila Fiori, zona norte de
Sorocaba, Matheus sempre dependeu do transporte coletivo para chegar e ir embora
da batalha, no entanto, nos últimos tempos seu itinerário passou a depender de seus
afazeres após o término do expediente de trabalho. Caso precise resolver algum
assunto na região central da cidade, uma única condução é suficiente para chegar ao
centro, mas, caso não necessite ir até o centro após seu expediente, Matheus encara
duas conduções para chegar em sua casa e mais uma até o local da batalha.
Letícia, tem dezenove anos e além de fazer parte da organização do Beco das
Mina é uma das fundadoras da batalha. Incomodada com o ambiente majoritariamente
masculino e com práticas machistas, a jovem passou a mobilizar diversas meninas
hip-hoppers, que vivenciavam as batalhas e que não encontravam espaço e acolhida
para desenvolverem suas rimas. Moradora do extremo leste da cidade de Sorocaba,
Letícia tem sua residência no bairro Cajuru do Sul. Seu bairro está mais de vinte
quilômetros do centro da cidade, podendo levar mais de uma hora para chegar ao
82
local onde acontece a batalha do Beco das Mina. Dependente do transporte coletivo,
afirma utilizar dois trajetos para chegar à Praça Frei Baraúna:
quilômetros, praticamente toda quarta feira, para batalhar. São pelo menos 40 minutos
de ida e mais 40 minutos de volta utilizando transporte coletivo, fora os dias que acaba
se deslocando a pé, na ida ou na volta da batalha.
Jéssica Cristine, também conhecida como mc Jéssica Venenosa tem trinta
anos e participa do Beco das Mina, sendo uma das mais antigas participantes,
presente desde sua primeira edição. Moradora da cidade de Votorantim, vizinha a
Sorocaba, percorre um trajeto de aproximadamente cinco quilômetros para participar
da batalha. Por se tratar de uma distância consideravelmente curta, Jéssica não se
limita a apenas uma forma de locomoção até o local onde acontece o Beco das Mina.
“Normalmente vou de ônibus, carona ou aplicativo. Às vezes ia de a pé, saía de casa
pro ponto final do Campolim (linha de ônibus que corta a zona sul da cidade de
Sorocaba) e ia até um ponto da Barão de Tatuí e subia na caminhada. Como mc
Jéssica não se limita a participar somente do Beco das Mina, transitando por diversas
batalhas de Sorocaba, de algumas cidades da região e até mesmo de batalhas na
cidade de São Paulo.
Esta breve apresentação permite constatar que há uma mobilidade plural dos
e das jovens participantes, uma vez que, geograficamente, são oriundos de distintos
bairros e zonas da periferia de Sorocaba e até mesmo de outras cidades.
A questão da mobilidade se concretiza como uma característica bastante
marcante que envolve as batalhas de rima, fortalecendo ainda mais a ideia de circular
pela cidade como um direito independentemente de seu lugar de origem, pois,
segundo Cassab (2010), ao circularem pela cidade, os e as jovens colocam em
“evidência sua presença, criando e recriando espaços (p. 87)”.
Mesmo diante de uma realidade onde há uma mobilização dos e das jovens
em participar das batalhas de rima, mesmo acontecendo com uma certa distância de
seus bairros de origem, cabe a busca pela compreensão de onde emerge o interesse
desses e dessas jovens em participar das batalhas de rima.
O interesse pelas batalhas de rima não foi algo solto ou sem qualquer conexão
direta com o hip-hop, pois os e as jovens demonstram ter uma certa proximidade e,
84
até mesmo, intimidade com a cultura hip-hop antes de se tornarem parte do público
que constrói as batalhas no seu cotidiano.
Questionados sobre suas relações com o hip-hop anterior às batalhas de rima,
o rap se apresenta como um elemento de proximidade entre os e as jovens e a cultura
hip-hop. Mc MR2 relata que: “meu contato através do rap dos anos 90/2000 me levou
para o hip-hop”, reforçando a ideia da música como porta de entrada para um
movimento ainda maior.
Cabe ressaltar que o rap, em muitas ocasiões, não é visto como qualquer
gênero musical, mas aquele que habita as periferias. Eu já gostava de RAP tá ligado
mano? Tipo morar na periferia e se envolver com RAP é natural mano, tá ligado, se
tá passando na rua é RAP (mc Mesut). A colocação feita pelo mc Mesut demonstra a
força que o rap tem entre os e as jovens das camadas populares.
Para além de ser apenas um gênero musical com uma batida que embala o
movimento do corpo, mesmo que involuntariamente, uma série de letras de rap acaba
por cantar a realidade das periferias com muita criticidade, levando muitos/as jovens
a se identificarem, assim como aconteceu com o mc Cavalca: “me identificava muito
com as críticas abordadas nas letras de rap”.
O hip-hop como expressão cultural passou a se apresentar como possibilidade
de expressão para uma série de jovens, pois, se tornou lugar de garantia de voz e vez
da juventude das camadas populares. Assim, ao se deixar envolver, a possibilidade
do estabelecimento de uma relação intensa com o hip-hop é bastante presente.
A ideia de intensidade abordada pela mc Jéssica Venenosa fica evidente ao
relatar que antes de participar da batalha do Beco das Mina “já tinha pelo menos oito
anos de vivência no movimento”. No entanto, o pertencimento ao hip-hop anterior à
participação em batalhas de rima é também uma realidade da mc Brandini: “antes do
Beco eu já fazia parte do hip-hop”.
No entanto, a relação que estes e estas jovens desenvolvem com o hip-hop
também pode nascer justamente pelo envolvimento com a própria batalha, como é o
caso da mc Letícia. “Eu comecei no final de 2017, a participar de batalhas de rima e
também me interessar pela cultura do hip-hop”. A partir da fala da mc Letícia, percebe-
se a capacidade mobilizadora das batalhas de rima, como um espeço de propulsão
da cultura hip-hop.
Sendo assim, se há uma relação com o hip-hop antes mesmo de participarem
das batalhas de rima, logo, tal relação contribuiu diretamente para que os e as jovens
85
“Tive uma relação afetiva com uma mulher que era Mc então ela me
inspirava muito (mc Brandini)”.
“Acredito que a minha relação com as mulheres que iam nas batalhas
com a maioria presente sendo homens. Sempre quis me aproximar
das garotas que eu via indo, quase como uma relação de proteção e
se sentir segura em meio a tantos homens, e acabei criando um laço
com elas (mc Leticia)”.
“O samba, por ser de origem periférica e ter eventos que uniram o hip-
hop (mc MR2)”.
Eu sempre achei muito legal essa questão do RAP, do Hip Hop, mas
eu tinha um outro tipo de convívio. Eu fazia faculdade na UFSCar, fiz
universidade lá e...então eu tinha um outro tipo de vida, foi quando eu
cheguei na batalha rima, eu cheguei na poesia no momento onde eu
abandonei uma universidade de três anos porque o curso não me
contemplava mais e foi quando o RAP salvou minha vida, sabe? Num
momento onde eu estava totalmente perdida no que eu faria agora, foi
quando eu estava tendo um relacionamento com uma MC e ela era
ativamente aqui em Sorocaba (mc Bradini).
O doidão do meu grupo, o Dom, chamou eu, tá ligado (?). Ele já tinha
uma coleta com o MR2, “os cara”, ele já sabia que os cara fazia uma
batalha, o Lucan também estudava no Lauro Sanches, o Balta
também...os cara já tinha dado um salve ne mim (mc Mesut).
Interfere em tudo, nosso jeito de pensar, com quem você tá, o lugar
que você frequenta (mc Cavalca).
90
do nada começo a fazer uma rima, zuando alguém, tal (risos). Como
eu tenho outros amigos que rimam, isso é normal acontecer. Mas
nesse sentido sabe, sempre...eu busco me preparar no dia que eu vou
rimar mesmo, e isso interfere bastante no meu dia porque eu me
concentro, meu foco vai sendo aquilo, só tento controlar a ansiedade
pra não me atrapalhar (mc MR2).
33
“Suporte é a maneira pela qual o indivíduo estabelece sua relação com seus apoios no mundo, considerando
que todos os indivíduos são dotados de suporte graças aos quais podem se construir e se manter socialmente
eles seriam o conjunto de sustentação que mantém o indivíduo face ao mundo (Tarábola, 2015, p. 166)”.
Ainda sobre o conceito de suporte, Danilo Martuccelli, sociólogo franco-peruano, aponta que os suportes podem
ser “materiales y simbólicos, próximos o lejanos, conscientes o inconscientes, activamente estructurados o
pasivamente padecidos, siempre reales en sus efectos y sin los cuales, propiamente hablando, el actor no
subsistiria (Martuccelli, 2007, p. 77)”.
92
A gente sempre busca trazer isso pra que elas consigam se sentir
bem, se sentir acolhidas e sentir que estão colocando uma
representatividade, de ter importância, sabe?
E como pessoa assim, eu sempre fui muito tímido, so até hoje, mas
por exemplo, hoje eu já consigo troca uma ideia tá ligado (?), falando,
tento falar o que eu quero falar. Antes mano, vixe...até hoje eu tenho
complicação pra falar o que eu penso mesmo, não consigo expressar
em palavras tá ligado (?), e a batalha ajudou nisso também mano,
porque você tem que responde ali o baguio, se têm que pensa rápido
tá ligado (?), e na batalha o baguio flui mais tá ligado? (mc Cavalca).
racial e origem étnica do povo brasileiro) são aprendidos por meio das
vivências dos participantes e a produção artística e cultural do hip hop
é sistematizada (Magro, 2003, p. 193)
34
Questões relacionadas à saúde mental é algo novo no que se refere aos estudos sobre juventude, porém,
mesmo tendo clareza da importância deste tema, não será um debate a ser aprofundado nesta pesquisa.
96
elementos que se apresenta como uma realidade. Tanto no que se refere à busca por
um posicionamento frente a realidade de extremas desigualdades, como também de
compreensão dos processos históricos construídos dessas desigualdades.
A partir do momento que participar das batalhas de rima se torna uma realidade
concreta para os e as jovens, ao passo que fazem a migração da plateia para o centro
da roda com o objetivo de construir rimas de improviso para atacar ou se defender,
uma série de questões que atravessam os corpos dos e das jovens, pretos e brancos,
passam a se materializar em palavras.
Logo, as relações e as vivências com a cultura, família, trabalho, estudos, etc.,
acaba por influenciar diretamente na construção das rimas que são ditas no interior
das rodas, durante as batalhas, seja pelos jovens participantes da Batalha do Cianê,
ou pelas jovens do Beco das Mina.
O baguiu que você faz antes da batalha influencia cem por cento
mano. O dia influencia o que você é mano, tipo...mano você se
expressa, sua boca expressa seu corpo, tá ligado? Se você tá tendo
um dia ruim parça, você vai rima no breu ou você nem vai quere rima,
tá ligado? (mc Mesut)
Batalha do Cianê
1º round
Kill: Cê tá ligado meu parceiro, aqui cê não se mete, aqui você é 155 eu
sou 157.
Agora você se fodeu, o baguiu aqui é louco e você não fecha com os
meu.
Falo de 121, aqui você se ilude. Aprendeu essa rima com o Dudu lá no
Youtube.
Jhow: Eu não aprendi com o Dudu, você é um moleque. Não é 157, tira
o 5, e você vota é 17.
Mas tá tranquilo não aprendi no Youtube, esse é argumento de Mc que
não ganha e não tem atitude.
Jhow: Pra você é bailão, mas com você eu não topo, cê acha que as
conquistas acontecem pela cor do que tá no seu copo.
99
Jhow: Não falei que não é mérito seu porque na batalha mano você é
vacilão.
Eu critiquei a sua postura porque você se acha melhor que os outros
pelo que você tem na sua mão.
Kill: Então senta, ajoelha, faz uma prece, qué falá da minha postura mas
você nem me conhece.
Então segura, agora você já era, o baguiu aqui é loco e vou jogar sua
cabeça pra galera.
Kill: Ah Jhow, mano vai se lasca, eu ataco memo. Não aguentou, vai
embora pra lá.
Se tá ligado, então para de chorá, o baguiu aqui é loco, sei que você
não vai aguentá.
2º round
Kill: Aí firmeza, o bagulho aqui é sem crise, cê vem de Porto Feliz e hoje
vai voltá triste.
Então, segura Jhown é push na sua cara, o baguiu aqui é loco e as
minha rima é cara.
Cê vem fala que é so clichê, se foda eu ataco, solta qualquer beat que
hoje eu te mato.
Então, nessa fita mano você vai pro além, cê que cita todo mundo, vai
morrer como ninguém.
Jhow: Mas fala quem que eu citei mano e que cê da falha, porto triste,
rima que escuto em todas as batalha.
Porque cê sabe que cê ta panguano, e nem falei que era clichê, você
admitiu, você que tá falando.
Porque cê sabe, quero ver aqui, por que infelizmente mano você não
faz um free.
Sabe porquê? Você não é da rua, porque você é o Kill, quem nasceu
pra ser Kill na treta nunca vai ser Killer Bee.
Jhow: Mas, assumir o próprio erro pra ser homem não é lógica. Você
fala uma coisa e se contradiz, você é um homem hipócrita.
100
Porque cê sabe assim, seu verso não é notório, não assume o próprio
erro, você é o Mc contraditório.
Kill: Tá ligado parça, contradição é uma fita, o baguiu aqui é loco e sei
que meus verso te irrita.
Você não ataca, não responde e não faz nada, olhando pra minha cara
eu só vejo é um babaca.
Kill: Tá ligado parça, não preciso do seu mérito, o baguiu aqui é loco eu
vo rimando e já tô cerito.
Cê ta ligado parça, ó agora o que eu vou falar, seu mérito que se foda
o meu eu vou conquistar.
Kill: Cê tá ligado isso aqui, porque aqui é sem massage, porque Charlie
Brown falo, mano só os loucos sabem.
Então, essa é a palavra e eu não digo nada, então cê morreu cuzão,
toma essa pedrada.
Jhow: Só os loucos sabem, mas cê num é da massa, não fala isso como
desculpa para o seu analfabetismo em massa.
Porque ele falou isso pra galera na quebrada, ele falou de atitude e não
de rima improvisada.
3º round
Kill: Mano você falou que eu sou analfabeto, agora eu vou ter que ti
matar. Mano eu não podia estar na escola, eu tinha que trabalhá.
Pra sustentá minha família e seguir a minha trilha, tá ligado cê é fraco
e eu sou chefe de quadrilha.
Te afundo no trap, você é fraco, no fundo do poço, lá no buraco.
No fundo do poço, é lá que eu te mato, você é fraco. Tá ligado, igual
penara, hoje você sai cheio de buraco.
Jhow: Ei, você diz que to no buraco, mas com você eu não topo, mas
se eu tô no buraco vou usar de base pra um dia estar no topo.
Sabe que é assim parcero, sabe que não faço free, pra alguém tá no
topo como um Mc teve que ser a própria raiz.
Mano escuta, agora parcero já te falei, ser chefe de quadrilha, não fale
isso como se fosse orgulho pra alguém.
Você sabia agora parcero, que você mano é vacilão, vários menor
vendendo a vida por droga com um fuzil na mão.
Kill: Tá ligado cê é fraco, hoje aqui eu te mato. Você vem falá de raiz e
eu chego com meu machado.
101
Eu te mato no trap, você não aguenta cuzão, você tá no alto é mais fácil
de acertar o cuzão.
Kill: Conteúdo cê não tem, nesse trap eu mando bem. Pode, pode ir
embora, o Jhowzinho foi pro além.
Agora eu te mato nessa fita, tá ligado mano você não está aguentando
essa bica.
Jhow: Jhowzin vou pro além sim, depois que bateu te bateu aqui no
free. Eu fui pro além fala pro meu ancestral que matei o Kill, aquele falso
Mc.
Mas você sabe agora parcero, na rima agora meu parça, matei um falso
Mc e voltei do além com a vitória pra casa.
Kill: Ah! Hip-hop vem do gueto, isso vai bem adiante, tá ligado meu
parcero, eu quero é diamante.
Tá ligado agora eu chego, tirando aqui seu sossego, se liga aqui seu
falso, mano cê que não é preto.
Jhow: Fa, fa, fa, falso...cê ta gaguejando no rap, é sério? Quer diamante
pra você pra quê? Qué diamante pra levantá seu próprio ego.
Sabe parcero, você é lok, tá se embebedando com o próprio ego, vai
morrer engasgado com seu próprio ibope.
1º round
Versa: É tipo assim, é tipo assim mano, o que é que eu vou fala. Se
não fosse a Venenosa eu nem tava lá. E nem aqui mandando uns
verso pra você. Isso aqui que é correria e também procede.
É união, sempre se ligando, tá ligado. Vou colar na sua área, cê
descola um trocado e um show. É sempre assim, sempre se
fortalecendo. Quem não sabe o que é isso, na moral ta perdendo.
Porque confio muito, sei que sempre tem uma parcera do lado na
retaguarda também, pra proteger das biquera, dos bico que sempre
breca.
Memo assim, cê ta ligada, nóis é boa de mira e nóis não erra.
102
2º round
3º round
Versa: Dupla jornada, sabe como é que é? Eles não sabem por que
quem carrega a culpa no final de tudo vai ser sempre a mulher.
Eu nem preciso falar mais nada, já vestiram a carapuça. Já devem tá
pegando o caminho de casa.
Venenosa: Tchau e beijo, vai com Deus, sai daqui parasita. As mina
vão se unir, por isso machista desista.
Vamos assumir nossas cria e criar uma bela comunidade ai as
crianças vão saber que mãe é pai de verdade.
Versa: Não consigo ouvir o beat, nem vou encaixar, porque sempre foi
nóis por nóis. Eles sabem que nóis é independente por isso que eles
se esforçam pra calar nossa voz.
E é sempre assim, o mesmo papo. Já to cansada de ser chamada de
loca, por isso que eu entrei na batalha e agora para esses cara é
poucas.
Venenosa: Pocas e eu fiquei bem loca, bem mais loca que os cara pra
mostrar que droguinha não é desculpa de proceder de canalha.
To muito loca, to muito loca de faze improvisado. E ainda levo rap no
peito e quero respeito desses idiota.
Através das batalhas de rima “os jovens edificam experiências sociais coletivas
que são expostas através de estilos de vida específicos e distintos (DAL PRÁ; NUNES;
SANTOLIN, 2018, p, 02)” contribuindo para a construção da sua identidade, pois, “o
desenvolvimento da identidade é causado pelas relações sociais do sujeito, elaborado
a partir daquilo que ele vive e do meio no qual está inserido (DUBET, 1994 apud DAL
PRÁ; NUNES; SANTOLIN, 2018, p. 09)”.
É bom que quem tá passando vai olhar mano, se é lugar fechado ali,
tem porta, se tive que paga já não é todo mundo que tem como paga,
tá ligado (?). Então se o baguiu tá rua mano...acho que tá lugar público
mano, as pessoas pode ver e pensar que pode tá junto, tá lá, é só
chega, olha e rima mano (mc Cavalca).
O poder público tem muito medo de investir na gente, sabe, eles têm
receio, até porque a verba pública no Brasil é muito disputada e aqui
em Sorocaba principalmente tem uma grande limitação com a verba
destinada a cultura. As pessoas têm a falsa sensação de que a, por
exemplo...tem que cortar o carnaval para que o dinheiro do carnaval
vá pra saúde. Isso é mentira. Tem que ter verba destinada pra a saúde,
tem que ter verba destinada pra educação tem que ter verba destinada
pra lazer, cultura (mc MR2).
O não apoio por parte do poder público, conforme aponta os relatos anteriores,
revela a falta de empenho para o desenvolvimento da cultura na cidade de Sorocaba,
pois, dificilmente se vê qualquer ação relacionada à cultura promovida pelo poder
público, colaborando para que os jovens se tornem “invisíveis no espaço e na política
(CASSAB, 2010, p. 37)”. No entanto, será que poderia ser diferente?
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
ganham centralidade nos relatos evidenciados por aqueles e aquelas que vivenciam
as batalhas na cotidianidade.
Tais questões se tornam evidentes nas falas dos e das jovens durante o
processo de entrevista, ao serem questionados sobre a importância das batalhas para
os e as jovens, o que as batalhas tem provocado em cada um e cada uma, o que se
aprende nas batalhas, entre outras indagações. No entanto, um aspecto
surpreendente e inusitado foi a ausência de posicionamentos mais contundentes
referente às questões étnico-raciais no discurso dos e das jovens, seja nas rimas ou
nas entrevistas.
Torna-se surpreendente tal ausência, justamente pelo histórico de relação
bastante estreito entre o movimento hip-hop e as lutas contra o racismo estrutural
existente na sociedade brasileira. Desde sua chegada ao Brasil, o hip-hop se tornou
morada de jovens negros que passaram a utilizar o RAP como instrumento de
denúncia e resistência contra as desigualdades raciais. Tal ausência pode ser
decorrida dos limites da pesquisa de campo aqui realizada e da própria inserção do
pesquisador, revelando a importância da realização de trabalhos futuros na temática.
No entanto, uma das questões que aparece de forma recorrente entre os e as
jovens é a dimensão da sociabilidade. De fato, as batalhas de rima contribuem de
forma contundente com os processos de urbanidade do segmento juvenil que participa
das batalhas. Porém, os processos de sociabilidade não se restringem apenas aos e
as jovens que se identificam e/ou pertencem ao movimento hip-hop. As batalhas de
rima se tornam meios de sociabilidade autônomas mesmo para quem não é mc ou
adepto de algum elemento da cultura hip-hop.
Trata-se, sobretudo, de um espaço legitimamente juvenil. As batalhas de rima
são construídas cotidianamente por jovens oriundos da periferia sorocabana que
encontraram nos espaços das batalhas lugar de aconchego, desenvolvimento,
experiências das mais diversas, lugar de pluralidade, assim como a própria juventude.
Dado a intensidade da relação dos e das jovens com as batalhas de rima, cabe
destacar a satisfação que demostraram por serem procurados para participarem da
rodada de entrevistas para essa pesquisa. Destaco a fala da mc Leticia, “você fala de
te ajudar, mas eu adoro falar sobre o Beco”, assim como a fala da mc MR2 ao
iniciarmos a entrevista, “desse jeito vou ficar me achando importante (risos)”.
Por fim, percebe-se as batalhas de rima envolvidas em uma dinâmica que
extrapola os limites da cidade de Sorocaba em média e larga escala. O Circuito
112
6 REFERÊNCIA
ABRAMO, Helena Wendel. Cenas juvenis: punks e darks no espetáculo urbano. São
Paulo, Scritta/ANPOCS, 1994.
ALMEIDA, Elmir de. Os estudos sobre grupos juvenis: presenças e ausências. In.:
SPOSITO, Marília Pontes (Coord.). O estado da arte sobre juventude na pós-
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