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Ebook Cronotopo Generos e Discursos em Ficcoes Na TV e No Streaming

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CRONOTOPO, GÊNEROS E DISCURSOS EM

FICÇÕES NA TV E NO STREAMING
2
Maria Cristina Palma Mungioli
(Organizadora)

CRONOTOPO, GÊNEROS E DISCURSOS EM


FICÇÕES NA TV E NO STREAMING

3
Copyright © Autoras e autores

Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida,
transmitida ou arquivada desde que levados em conta os direitos das autoras e dos
autores.

Maria Cristina Palma Mungioli [Org.]

Cronotopo, gêneros e discursos em ficções na tv e no streaming. São Carlos:


Pedro & João Editores, 2023. 391p. 16 x 23 cm.

ISBN: 978-65-265-0472-7 [Impresso]


978-65-265-0473-4 [Digital]

1. Cronotopo. 2. Gêneros. 3. Discurso em ficções. 4. TV. 5. Streaming. I. Título.

CDD – 410/370

Capa: Petricor Design


Arte da capa: Tiago Lenartovicz
Ficha Catalográfica: Hélio Márcio Pajeú – CRB - 8-8828
Diagramação: Diany Akiko Lee
Editores: Pedro Amaro de Moura Brito & João Rodrigo de Moura Brito

Conselho Científico da Pedro & João Editores:


Augusto Ponzio (Bari/Itália); João Wanderley Geraldi (Unicamp/Brasil); Hélio
Márcio Pajeú (UFPE/Brasil); Maria Isabel de Moura (UFSCar/Brasil); Maria da
Piedade Resende da Costa (UFSCar/Brasil); Valdemir Miotello (UFSCar/Brasil);
Ana Cláudia Bortolozzi (UNESP/Bauru/Brasil); Mariangela Lima de Almeida
(UFES/Brasil); José Kuiava (UNIOESTE/Brasil); Marisol Barenco de Mello
(UFF/Brasil); Camila Caracelli Scherma (UFFS/Brasil); Luís Fernando Soares
Zuin (USP/Brasil).

Pedro & João Editores


www.pedroejoaoeditores.com.br
13568-878 – São Carlos – SP
2023

4
Sumário

Apresentação 9
Maria Cristina Palma Mungioli

PARTE 1 – CRONOTOPO, PERSONAGENS,


RECEPÇÃO E FICÇÃO TELEVISIVA

1. Temporalidade e cronotopo na minissérie televisiva 19


“Se eu fechar os olhos agora”
Maria Cristina Palma Mungioli

2. Cronotopo como categoria analítica em estudos de 39


personagens populares no audiovisual
Rosana Mauro

3. A caracterização das personagens masculinas na 63


minissérie Capitu
Rafaela Bernardazzi

4. O espaço-tempo das cidades distópicas da série 3% 85


Flavia Suzue de Mesquita Ikeda e Maria Cristina Palma
Mungioli

5. Cronotopo da Recepção: exploração teórica e 111


empírica do conceito enquanto categoria analítica no
estudo de recepção da série Game of Thrones
Lizbeth Kanyat

5
PARTE 2 – EXOTOPIA E GÊNEROS DO DISCURSO
NA FICÇÃO TELEVISIVA

6. Mikhail Bakhtin e a telenovela brasileira: exotopia, 145


autoria e gêneros discursivos em análise
Anderson Lopes da Silva

7. O “galã de novela” entre o machismo e o 177


feminismo: como as questões de gênero pressionam
as formas composicionais da ficção televisiva
Daniela Jakubaszko e João Nemi Neto

8. Gêneros e formatos televisivos na era do streaming: 203


uma análise das produções originais Netflix latino-
americanas
Tomaz Affonso Penner e Claudinei Lopes Junior

9. Gêneros do discurso e TV Social: a série Cidade 227


Invisível
Ligia Prezia Lemos e Analú Bernasconi Arab

PARTE 3 – NARRATIVAS, DISCURSOS,


ALTERIDADE E IDENTIDADES NA FICÇÃO
AUDIOVISUAL

10. Cinema e Educomunicação enquanto práxis 263


decoloniais: aproximações possíveis
Paola Diniz Prandini

11. Narrativas de Trajetórias Particulares 291


Helen Emy Nochi Suzuki e Maria Cristina Palma
Mungioli

6
12. Telenovela, imigração e alteridade: estratégias 309
discursivas do olhar sobre o estrangeiro
Luciano Teixeira

13. O cronotopo e o Homem na série Segunda 331


Chamada
Gabriela Torres

14. Um estudo do catálogo das séries originais 355


Globoplay no período de 2018 a 2022
Maria Cristina Palma Mungioli e Flavia Suzue de
Mesquita Ikeda

PARTE IV – O GRUPO GELIDIS

O Grupo de Pesquisa GELiDis - Linguagens e 375


Discursos nos Meios de Comunicação
Maria Cristina Palma Mungioli
Claudinei Lopes Junior

SOBRE AS AUTORAS E AUTORES 383

7
8
Apresentação

Cronotopo, gêneros e discursos em ficções na TV e no streaming é o


primeiro livro do Grupo de Pesquisa Linguagens e Discursos nos
Meios de Comunicação (GELiDis) e representa um estágio
importante do processo de amadurecimento do grupo que vem se
dedicando desde sua criação, em 2015, ao campo dos Estudos de
Televisão buscando intersecções com os estudos de linguagem
verbal e verbo-visual.
Mais do que apresentar um conjunto de textos que abordam
os diferentes aspectos das pesquisas realizadas, o livro se constitui
como um registro dos caminhos percorridos por seus membros em
diferentes estágios de suas trajetórias acadêmicas, sobretudo no
que diz respeito às perspectivas de estudo que vêm caracterizando
as teses e dissertações desenvolvidas no grupo. A primeira
perspectiva se configura por meio da utilização dos estudos de
linguagem de matriz bakhtiniana e a segunda se apoia nos estudos
de Análise do Discurso de linha francesa (A.D.). Longe de se
configurarem como divisões estanques nos trabalhos do grupo,
ambas as perspectivas podem se entrecruzar e se complementar
nas discussões e análises apresentadas neste livro face à
complexidade dos fenômenos estudados no campo da
Comunicação.
Tais perspectivas ganham relevo ao longo dos capítulos que
compõem o presente livro, destacando-se, entre as abordagens
propostas, a discussão e a aplicação do conceito de cronotopo
(Bakhtin, 2010, 2008) às análises de produtos audiovisuais. A
gênese do presente livro se encontra justamente nos estudos
efetuados pelo grupo desde 2019 em torno desse conceito durante
as reuniões de estudo e orientação. As questões referentes ao uso
sistemático de novas configurações espácio-temporais em ficções
televisivas da atualidade colocavam o problema de maneira
incontornável. A questão necessitava ser discutida não apenas em

9
sua dimensão intradiegética, mas implicava também a abertura de
análises que incorporassem a construção social dos gêneros e
formatos televisivos, bem como a produção de sentidos e a poética
que caracteriza as produções da atualidade. Para atender a essa
demanda, organizamos internamente ao grupo e também com a
ajuda de professoras e professores que participaram dos
Seminários GELiDis (que descrevemos com mais detalhe no último
capítulo deste livro) reuniões de discussão em que o tema
cronotopo se configurava como o principal eixo dos debates.
Ao mesmo tempo, e também estabelecendo correlações entre
gênero e cronotopo, o grupo ampliou seus estudos referentes aos
gêneros e formatos televisivos, bem como à pesquisa em relação às
representações de gênero e identidades e à recepção de produções
televisivas de ficção, sobretudo telenovelas e séries. As discussões
internas ao grupo e as ocorridas nos diversos eventos nacionais e
internacionais - dos quais participaram todas as pessoas que
integram o grupo - forneceram elementos relevantes para a
elaboração de vários capítulos deste livro e proporcionaram o
aprofundamento das análises apresentadas em teses defendidas
pelos membros do grupo desde 2016.
Buscando estabelecer a relação entre os textos de forma a
destacar suas abordagens e ênfases conforme a temática e a
problemática abordada, o livro se divide em quatro partes. São
partes dialogam entre si e compõem um todo em que se evidenciam
principalmente os dois eixos teóricos mencionados anteriormente:
os estudos de linguagem de matriz bakhtiniana e a Análise do
Discurso de linha francesa.
A primeira parte do livro, Cronotopo, Personagens,
Recepção e Ficção Televisiva, traz textos em que o conceito de
cronotopo é empregado como elemento fundador das análises. Os
textos aprofundam as discussões em relação ao conceito
considerando sua aplicação ao produto televisivo - telenovela ou
série. O capítulo que abre a primeira parte do livro “Temporalidade
e cronotopo na minissérie televisiva Se eu fechar os olhos agora”, de
Maria Cristina Palma Mungioli, discute e analisa elementos da

10
poética das séries de televisão com base na construção discursiva
de sua temporalidade. O segundo capítulo, “Cronotopo como
categoria analítica em estudos de personagens populares no
audiovisual”, de Rosana Mauro, estuda a pertinência do conceito
de cronotopo para a análise de personagens no audiovisual – em
especial, de personagens femininas -, sobretudo na teleficção.
Considerando que todo o signo é ideológico, o texto propõe uma
reflexão quanto à construção de um significado de classe popular
na expressão audiovisual em dialogia com os discursos sócio
históricos. Rafaela Bernardazzi apresenta, no terceiro capítulo, o
estudo denominado “A caracterização das personagens masculinas
na minissérie Capitu”. O texto se dedica a estudar o figurino das
personagens Bento e Escobar. A análise observa a construção da
narrativa e seus sentidos a partir da articulação das estratégias
narrativas constituídas tanto pelo figurino e suas cores quanto pelo
discurso verbal. O quarto capítulo, “O espaço-tempo das cidades
distópicas da série 3%”, Flavia Suzue de Mesquita Ikeda e Maria
Cristina Palma Mungioli, analisa as cidades ficcionais que
compõem a diegese da distopia 3%. A análise tem base a
centralidade da articulação espaço-tempo na composição da trama
da série, utilizando como ferramenta conceitual de análise o
conceito de cronotopo (BAKHTIN, 2010; 2018). O quinto capítulo,
“Cronotopo da Recepção: exploração teórica e empírica do conceito
enquanto categoria analítica no estudo de recepção da série Game
of Thrones”, de Lizbeth Kanyat, estabelece conceitualmente o termo
cronotopo da recepção e o utiliza para analisar a série a recepção
brasileira da série de sucesso mundial, estabelecendo um protocolo
metodológico que associa o conceito de cronotopo de recepção de
Mikhail Bakhtin à teoria do ator indissociavelmente
disposicionalista e contextualista de Bernard Lahire.
Os quatro capítulos da segunda parte do livro, Exotopia e
Gêneros do Discurso na Ficção Televisiva, abordam as questões
que lhe dão título a partir de várias perspectivas, que se constroem
em torno desses conceitos-chave do pensamento de Bakhtin. O
sexto capítulo do livro do livro, “Mikhail Bakhtin e a telenovela

11
brasileira: exotopia, autoria e gêneros discursivos”, de Anderson
Lopes da Silva, aborda os conceitos de exotopia, autoria e gêneros
discursivos no estudo da telenovela brasileira, dedicando o estudo
à telenovela Cordel Encantado (Globo, 2011), O autor tensiona os
conceitos de excedente de visão, autor-criador, autor-pessoa e
gêneros discursivos secundários dentro do escopo da ficção
televisiva, destacando as relações dialógicas presentes nessa
telenovela. No sétimo capítulo, “O “galã de novela” entre o
machismo e o feminismo: como as questões de gênero pressionam
as formas composicionais da ficção televisiva”, Daniela Jakubaszko
e João Nemi Neto se dedicam, com base em uma perspectiva
dialógica, ao estudo dos galãs na ficção televisiva da Rede Globo,
com o objetivo de refletir como o tempo histórico presente, que
problematiza o machismo, é capaz de pressionar o gênero
teledramatúrgico a transformar padrões composicionais
fundamentais.
O oitavo capítulo, “Gêneros e formatos televisivos na era do
streaming: uma análise das produções originais Netflix latino-
americanas”, de Tomaz Affonso Penner e Claudinei Lopes Junior,
dedica-se a investigar os gêneros e os formatos da produção
original Netflix produzida na América Latina até fevereiro de 2020
com o intuito de reconhecer as eventuais semelhanças os produtos
ficcionais disponibilizados por streaming têm com a programação
televisiva tradicional no sistema broadcast. Em seguida, no nono
capítulo, temos o estudo de Ligia Prezia Lemos e Analú Bernasconi
Arab “Gêneros do discurso e TV Social: a série Cidade Invisível”. As
autoras propõem a análise da série televisiva da Netflix sob a
perspectiva do fenômeno denominado TV Social e analisam as
interações sobre a série na rede social Twitter, buscando estabelecer
os sentidos produzidos não apenas por meio da série em si, mas
também por meio das próprias interações.
A terceira parte do livro, Narrativas, Discursos, Alteridade e
Identidades na Ficção Audiovisual, apresenta cinco capítulos que
buscam entender a produção de sentidos de alteridade e identidade
em ficções audiovisuais, bem como a produção brasileira do

12
serviço de streaming Globoplay. O décimo capítulo, de autoria de
Paola Diniz Prandini, “Cinema e Educomunicação enquanto práxis
decoloniais: aproximações possíveis”, busca estabelecer pontes
possíveis entre cinema e educomunicação, enquanto práxis que
contribuem para a compreensão e o convívio nas sociedades
contemporâneas. A análise dos discursos de narrativas
cinematográficas centra-se na questão da mediação enquanto
concepção que move a práxis educomunicativa. O décimo primeiro
capítulo, de Helen Emy Nochi Suzuki e Maria Cristina Palma
Mungioli, “Narrativas de Trajetórias Particulares”, discute a
produção de sentido em discursos de imigrantes brasileiros que
moram no Japão, partindo de suas lembranças e memórias. O
estudo de recepção colheu depoimentos durante pesquisa de
campo realizada no Japão entre setembro e dezembro de 2013. Por
meio da técnica de observação participante durante a assistência de
telenovelas brasileiras, com objetivo de coletar as histórias de vida
desses imigrantes brasileiros que moram no Japão, foi possível
analisar aspectos do papel social das narrativas orais na vida dos
sujeitos da pesquisa. Em “Telenovela, imigração e alteridade:
estratégias discursivas do olhar sobre o Estrangeiro”, Luciano
Teixeira dedica-se ao estudo da produção de sentidos dos discursos
da telenovela Órfãos da Terra (Globo, 2019) enfocando a imigração
e a alteridade. O ponto central sua discussão é a questão dos centros
de valores do “eu” e do “outro”, inserindo-a no quadro das
narrativas sobre imigrantes/culturas estrangeiras produzidas pela
televisão brasileira no século XXI.
No décimo-terceiro capítulo, “O cronotopo e o Homem na
série Segunda Chamada, Gabriela Torres reflete sobre as narrativas
presentes nas séries ficcionais seriadas produzidas para televisão
ou para streaming, tomando como objeto a série Segunda Chamada
(Globoplay, 2019). Suas discussões se dedicam, entre outras coisas,
a pensar a relação entre gênero e cronotopo em termos de série de
ficção. No capítulo, “Um estudo do catálogo das séries originais
Globoplay no período de 2018 a 2022”, Maria Cristina Palma
Mungioli e Flavia Suzue de Mesquita Ikeda constroem sua análise

13
considerando o formato série de televisão como seu objeto. O
capítulo se dedica a analisar a produção e a exibição de séries
originais Globoplay no contexto atual marcado pela produção e
consumo de ficção por meio de serviços de streaming, destacando
temas e estratégias de lançamento em cenário internacionalizado
de produção de conteúdos e formas de apropriação dos gêneros e
formatos globais. O capítulo apresenta os resultados de pesquisa
Séries brasileiras de televisão no cenário da internacionalização e da
transnacionalização: um estudo sobre a mediação local na constituição de
formatos e gêneros ficcionais na plataforma Globoplay no período de 2016
a 2020, apoiada pelo CNPq no âmbito de bolsa de produtividade
da líder do grupo de pesquisa.
A quarta e última parte, O Grupo de Pesquisa GELiDis -
Linguagens e Discursos nos Meios de Comunicação, de autoria
de Maria Cristina Palma Mungioli e Claudinei Lopes Júnior tem
como objetivo apresentar o grupo de maneira mais
contextualizada, indicando suas filiações teóricas e trabalhos
realizados desde sua criação, em 2015.
Por fim, destacamos que a linha que une os diversos capítulos
do livro pode ser encontrada na concepção dialógica preconizada
por Bakhtin (2017, p. 79) segundo a qual “não existe a primeira nem
a última palavra, e não há limites para o contexto dialógico (...).”
(Bakhtin 2017, p. 79). É por meio desse enquadramento que
compreendemos a concepção e o próprio funcionamento de nosso
grupo de pesquisa que reúne pesquisadoras/es experientes e jovens
em formação tanto na pós-graduação quanto na graduação em um
contexto de construção social do conhecimento na universidade
pública.
Ao final desta apresentação, gostaríamos de agradecer ao
CNPq e à Capes pela concessão de bolsas de mestrado e de
doutorado a diversos integrantes do grupo de pesquisa e,
principalmente, ao CNPq pela concessão de bolsa de
produtividade à líder do grupo de pesquisa. Sem esses apoios,
diversas pesquisas realizadas no âmbito do grupo GELiDis não
poderiam ter acontecido. Agradecemos ainda o apoio do Programa

14
de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação (PPGCom-USP) e
do Departamento de Comunicações e Artes da Escola de
Comunicações e Artes sem o qual não seria possível realizar
reuniões e eventos do GELiDis.
Boa leitura!

Maria Cristina Palma Mungioli


Líder do GELiDis - Grupo de Pesquisa Linguagens e
Discursos nos Meios de Comunicação (CNPq/ECA-USP)

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre literatura, cultura e ciências


humanas. São Paulo: Editora 34, 2017.

15
16
PARTE 1

CRONOTOPO, PERSONAGENS, RECEPÇÃO


E FICÇÃO TELEVISIVA

17
18
Temporalidade e cronotopo na minissérie televisiva
“Se eu fechar os olhos agora”1

Maria Cristina Palma Mungioli

Ao longo do capítulo, analisamos aspectos da construção


discursiva da temporalidade na minissérie “Se eu fechar os olhos
agora” (Estúdios Globo, 2018, 10 capítulos) como parte integrante
de uma poética da minissérie que articula a construção de
personagens e a própria constituição do enredo.2
Situamos nossa discussão no contexto atual da chamada
cultura de séries (Silva, 2014) considerada como um fenômeno
cultural não apenas relacionado à apropriação de ferramentas
tecnológicas por parte dos telespectadores e fãs que ampliariam as
práticas e dinâmicas de espectatorialidade (CASTELLANO;
MEIMARIDIS, 2016; SACCOMORI, 2016; COMBES, 2015), mas
também como tributário de propriedades intrínsecas ao gênero e
ao formato serial televisivo (MUNGIOLI, 2019).
Nesse sentido, consideramos como balizadores para a discussão
aspectos referentes aos gêneros e formatos seriados entendidos como
formas culturais (WILLIAMS, 2016), mediações culturais (MARTÍN-
BARBERO, 2001). Com base nessa perspectiva, entendemos o formato
televisivo não apenas como resultante de estratégias comerciais da
indústria televisiva, mas também como uma construção estético-
cultural. Martin-Barbero (2001) destaca a relevância de se analisarem

1O texto atual com pequenas alterações foi publicado originalmente na Revista Rumores,
edição jul/dez de 2020. DOI: 10.11606/issn.1982-677X.rum.2020.176429. Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/Rumores/article/view/176429. Acesso em: 29 jan. 2023. A
autora é bolsista Produtividade 2 do CNPq (Processo 314255/2020-6)
2 Com roteiro de Ricardo Linhares, a minissérie é uma adaptação do livro

homônimo de Edney Silvestre, lançado em 2010 pela Editora Record. A direção


geral foi de Carlos Manga Jr.. A série estreou no serviço de streaming Net Now
em 29 de agosto de 2018.

19
os gêneros e formatos dos produtos massivos como mediações por
meio das quais se articulam as lógicas dos sistemas produtivo e de
consumo e suas camadas culturais.
Em termos mais específicos, consideramos as séries e minisséries
televisivas como formas narrativas (MITTELL, 2006, 2015; JOST, 2011;
SEPULCHRE, 2011; MUNGIOLI; PELEGRINI, 2013; SILVA, 2014,
2015; ESQUINAZI, 2014) construídas sobre o eixo da serialidade e
“que se inscrevem (...) na linhagem da cultura popular apropriando-
se do legado dos grandes contadores de histórias, escritores de
romances e cineastas (...).” 3(ESQUINAZI, 2014, p. 161)4
Em uma perspectiva mais diretamente relacionada ao estudo da
temporalidade nas séries de televisão na atualidade, Ames (2012, p. 8-
9) destaca que o formato, a partir dos anos 2000, tem trabalhado a
temporalidade de forma bastante diferente da que era feita
anteriormente, pois tem utilizado processos “de retardamento e
compressão do tempo” de modo a “perturbar o próprio fluxo
cronológico” por meio do “uso extensivo de flashbacks e da insistência
para que os espectadores estejam aptos a se localizar eles próprios no
presente e no passado simultaneamente”. Embora os procedimentos
de construção temporal da história por meio do jogo entre passado,
presente e futuro diegéticos não sejam uma novidade nas produções
televisivas do século XXI, a autora enfatiza em sua argumentação
“que nunca antes o tempo narrativo jogou um papel tão importante
no mainstream televisivo.” (AMES, 2012, p. 9).5
Em termos de desenvolvimento do presente texto, situamos a
discussão em torno de uma poética das séries de televisão
(MITTELL, 2015) considerando a construção discursiva de sua
temporalidade. Após discussão baseada em aspectos da

3 Os textos estrangeiros em citações ou excertos foram traduzidos pela autora do


artigo.
4 No texto original: “elles s’inscrevent de ce point de vue dans la lignée de la

culture populaire et suivent l’heritage des grands conteurs romanciers ou


cinéastes [...].”
5 No original: “never before has narrative time played such an important role in

mainstream television.”

20
narratologia (RICOEUR, 1983; ECO, 1997; BARONI, 2016,
GENETTE, 2017), dos estudos de linguagem televisiva (MITTELL,
2015; JOST, 2016) e dos estudos de linguagem de Bakhtin (2010),
será realizada a análise de alguns pontos relativos à construção da
temporalidade no primeiro episódio da minissérie “Se eu fechar os
olhos agora”.
Resumidamente, a minissérie foi lançada pelo serviço de
SVOD (Subscription Video on Demand) Net Now, em 29 de agosto de
2018. Posteriormente, foi exibida na TV Globo, entre 15 e 30 abril
de 2019, no horário das 23 horas. Indicada ao prêmio Emmy
Internacional de 2019 na categoria de melhor minissérie, a
produção encontra-se atualmente no catálogo do serviço por
assinatura Globoplay.

1. Construção discursiva da temporalidade: elementos para


discussão e análise

A discussão proposta considera a temporalidade e a sua


construção discursiva em um produto ficcional televisivo como
elementos constituintes de uma poética de séries televisivas. Como
se sabe, tais elementos se inter-relacionam intrínseca e
complexamente tanto em termos estruturais quanto em termos de
produção de sentidos na composição da trama narrativa. No
entanto, devido às limitações e objetivos do presente trabalho, não
realizaremos um mapeamento exaustivo das diversas concepções
em torno da temporalidade narrativa. Traremos algumas
contribuições provenientes tanto dos estudos audiovisuais quanto
dos estudos de narratologia e dos estudos de linguagem efetuados
por Bakhtin (2003, 1993) com o objetivo de colher subsídios teóricos
e ferramentas de análise que se relacionam mais diretamente com
a nossa proposta de estudo.
Genette (2017, p. 89), ao estudar os tempos da narrativa, tendo
como objeto “as relações temporais entre narrativa e diegese”, ou
“a ordem”, apresenta como epígrafe a clássica definição de Metz
(2010, p. 31) acerca da construção temporal da narrativa: “um

21
início, um final: quer dizer que a narração é uma sequência temporal.
Sequência duas vezes temporal, devemos acrescentar logo: há o
tempo do narrado e o da narração (tempo do significado e tempo
do significante).” (grifos do autor). Genette (2017, p. 91) destaca que
não apenas a narrativa cinematográfica, mas também a oral,
apresenta a dualidade apontada por Metz, ou seja, a diferenciação
entre tempo da história (erzählte Zeit) e tempo da narrativa
(Erzählzeit); respectivamente, o tempo que decorre no interior da
história e o tempo que se leva para ler a história. Para Genette (2017,
p. 92), no caso do filme, em princípio, é possível modificar a ordem
de leitura alterando-se a sucessividade dos fatos narrados. No
entanto, o texto escrito possui uma construção mais “amarrada”
devido à própria “linearidade do significante linguístico”. Ainda,
de acordo com Genette (2017, p. 93), “estudar a ordem temporal de
uma narrativa é confrontar a ordem da disposição dos
acontecimentos ou segmentos temporais no discurso narrativo com
a ordem de sucessão desses mesmos acontecimentos ou segmentos
temporais na história (...).”
Ainda na linha dos estudos da narrativa, Ryan (2010, p. 20)
afirma que “como os narratologistas observaram há bastante
tempo, as narrativas obedecem a uma dupla ordem temporal: a
ordem dos acontecimentos no mundo narrativo e a ordem segundo
a qual esses acontecimentos são apresentados.”6
O aspecto referente à composição e à organização da narrativa
e sua correlação com as formas de temporalidade foi estudado pelos
chamados Formalistas Russos e pode ser pode ser observado na
clássica definição de Tomachevski ([1925] 1976, p. 173), segundo a
qual “a fábula é o que se passou; a trama é como o leitor toma
conhecimento dele.” Desenvolvendo essa definição, Eco (1986, p. 85)
afirma que “fábula é o esquema fundamental da narração, a lógica

6No texto original: “Comme les narratologues l’ont observé depuis longtemps, les
récits obéissent à un double ordre temporel: l’ordre des événements dans le
monde narratif et l’ordre dans lequel ces événements sont présentés par le
discours.”

22
das ações e a sintaxe das personagens, o curso dos eventos ordenado
temporalmente.” E acrescenta, “o enredo pelo contrário, é a história
como de fato é contada (...), com as deslocações temporais, saltos
para frente e para trás (ou seja, antecipações e flashback)”. Tal
definição se assemelha à de Forster ([1927] 1998) segundo a qual
história e enredo não são a mesma coisa. Para Forster (1998, p. 83), a
história “é uma narrativa de acontecimentos dispostos em sequência
no tempo. Um enredo é também uma narrativa de acontecimentos,
cuja ênfase recai sobre a causalidade.” Forster (1998, p. 84) adverte
que, na composição de um enredo, não basta criar ganchos que
prendam a atenção do leitor apenas pela curiosidade, mas um bom
enredo “também exige inteligência e memória.”
De uma forma bastante resumida, podemos dizer que a
construção da temporalidade nas narrativas não está apenas
relacionada a procedimentos mais comumente observados na
superfície da narrativa e que dizem respeito mais diretamente às
anacronias, ou seja, às “diferentes formas de discordância entre a
ordem da história e a da narrativa” (GENETTE, 2017, p. 89) como
elipses, analepses (flashbacks) e prolepses (flashforwards), mas está
implicada na própria constituição da trama sobre a qual se constrói
a intriga. Enfatizando essa questão, Ricoeur afirma que:

Seguir uma história é avançar entre contingências e peripécias sob a


conduta de uma espera que encontra sua realização na conclusão. (...)
Compreender a história é compreender como e por que os episódios
sucessivos conduziram a essa conclusão, a qual, longe de ser
previsível, deve ser finalmente aceitável, como congruente com os
episódios reunidos. (RICOEUR, 1983, p. 130)

A complexidade da construção da temporalidade pode ainda


ser observada na própria composição da narrativa que envolve,
segundo Baroni (2016, p. 1), além dos aspectos formais, emoções
como medo e esperança. Tais emoções também devem
consideradas para a análise das três partes que compõem a história
(início, meio e fim):

23
já que as ações dadas se desenrolam no tempo, o medo e a esperança
[emoções] orientam a atenção do público para uma resolução incerta,
e a unidade da representação é assegurada pela função catafórica
[organizadora na forma de pensar como coesão] do início e pela
função anafórica [repetição, reiteração do motivo desencadeador
mostrado no início] do fim. (BARONI, 2016, p. 1)7

Dessa forma, a construção discursiva da temporalidade não se


caracteriza apenas por uma mecânica que envolve flashbacks ou
flashforwards, mas embasa a construção da intensidade e densidade
dramáticas que atuam cumulativamente na construção da trama e
das personagens. Adicionam-se intensidade e densidade à trama e
às personagens por meio, principalmente, de flashbacks que
remetem a motivos e significados que se associam ao evento do
presente diegético e é nesse presente que a narrativa se
complexifica, exigindo do espectador o acompanhamento dos
acontecimentos para entendimento do mundo ficcional.
Em perspectiva mais diretamente relacionada a uma poética
das séries de televisão, Mittel (2006, 2015) considera a construção
da temporalidade como um dos fatores mais salientes daquilo que
ele denomina complexidade narrativa. Para o autor, a trama ganha
complexidade por meio do uso da temporalidade não apenas como
um elemento que situa um evento cronologicamente dentro da
história, mas também como uma forma de acrescentar camadas de
significação aos eventos e aprofundar nosso conhecimento acerca
das personagens e do mundo ficcional.
Resumidamente, considerando o tempo da narrativa, Eco
(1997) e Mittell (2015) afirmam que, de maneira geral, em toda
história há: “(1) tempo da história (da narrativa): o tempo que
decorre no interior da narrativa; (2) tempo do discurso: construído
pelo discurso, e pode conter elipses, flashforwards, flashbacks; (3)

7No texto original: “ [...] since actions told unfold in time, fear and hope orient the
attention of the audience toward an uncertain resolution, and the unity of
representation is assured by the cataphoric function of the beginning and the
anaphoric function of the ending.”

24
Tempo da narração: o tempo para contar a história (na televisão e
no cinema: screen time).” (MUNGIOLI, 2019, p. 163). É em relação
à segunda definição, referente ao tempo do discurso que
procederemos à análise no presente trabalho, pois pretendemos
observar como flashbacks e flashforwards atuam na composição do
jogo incessante entre passado e presente diegéticos por meio de
uma organização discursiva.
Tratando da temporalidade e de sua construção estética no
texto literário, Bakhtin (2010) propõe uma outra chave de
interpretação que se baseia na relação indissolúvel entre tempo e
espaço: o cronotopo.

No cronotopo artístico-literário ocorre a fusão dos indícios espaciais


e temporais num todo compreensivo e concreto. Aqui o tempo
condensa-se, comprime-se, torna-se artisticamente visível; o próprio
espaço intensifica-se, penetra no movimento do tempo, do enredo e
da história. Os índices do tempo transparecem no espaço, e o espaço
reveste-se de sentido e é medido com o tempo. Esse cruzamento de
séries e a fusão de sinais caracterizam o cronotopo artístico.
(BAKHTIN, 2010, p. 211)

Nessa perspectiva, a construção da temporalidade está


vinculada inexoravelmente ao espaço, entendido como espaço da
vida social. Nessa perspectiva, o tempo e o espaço só produzem
sentido quando compreendidos a partir dessa relação.

A relação tempo-espaço é dinâmica e organicamente construída de


maneira concomitante pelo autor, obra e leitor na medida em que
todos se inserem no quadro da comunicação dialógica. O cronotopo
assimilado na manifestação conteudístico-formal da obra (literária)
encerra em si uma imagem do herói, uma espécie de visão de mundo
(Weltanschauung) e é compreendida como tal pelo leitor. Assim, na
literatura, a característica cronotópica emergiria da maneira como as
pessoas são representadas e, por conseguinte, se concretizaria por
meio das expansões/contrações das dimensões espaciais e temporais
nas quais atuariam essas pessoas. Assim, o cronotopo da vida
cotidiana é caracterizado pelas relações sociais, enquanto o

25
cronotopo de aventuras é caracterizado pelas sucessões operadas no
espaço físico. (MUNGIOLI, 2013, p. 107)

Cabe enfatizar, portanto, que, na perspectiva da comunicação


dialógica que rege as análises de Bakhtin (2003, 2010), o leitor (em
nosso caso, o telespectador) assume papel preponderante na
própria configuração do cronotopo.
Todorov (1981, p. 129) afirma que a noção de cronotopo “não
se relaciona simplesmente à organização do tempo e do espaço,
mas também à organização do mundo (que pode legitimamente se
chamar cronotopo na medida em que o tempo e o espaço são as
categorias fundamentais de todo universo imaginável).”
(TODOROV, 1981, p. 129, grifo do autor).8
As relações entre tempo e espaço na obra artística constituem-
se, para Bakhtin, por meio do acabamento estético que permite a
apreensão do momento histórico e das eventuais mudanças
históricas por meio da maneira com que as pessoas são
representadas nas produções, conforme salientam Clark; Holquist
(1998, pp. 296-300). A perspectiva de análise por meio do conceito
de cronotopo insere trama, personagens e conflitos em situações
(do cotidiano) que desnudam os embates sociais e tensionam visões
de mundo e conflitos inerentes à vida social em sua perspectiva de
construção histórica. Dessa forma, o “universo imaginável”
(TODOROV, 1981, p. 129) torna-se apreensível com base em um
jogo constante entre a criação estética, apreensível por meio do
cronotopo criado, e suas relações com determinado momento
histórico e social no qual trama, personagens e leitores
(telespectadores, em nosso caso) estão dialogicamente imersos.
Para Bakhtin (2003, p. 246), o romance “deve apresentar um
quadro integral do mundo e da vida, deve refletir o mundo todo e
a vida toda. No romance, o mundo todo e a vida toda são

8No texto original: “[...] ne se rapporte pas simplement à l’organisation du temps


et de l’espace, mais aussi bien à l’organisation du monde (qui peut légitimement
s´appeler ‘chronotope’ dans la mesure où le temps et l’espace sont les catégories
fondamentales de tout univers imaginable).”

26
representados em um corte da totalidade da época. Os
acontecimentos representados devem abranger de certo modo toda
a vida de uma época.” (grifos do autor). Embora o cronotopo
artístico seja apreensível como tal a partir do acabamento temático
e estético, cabe enfatizar que não se trata de um mundo à parte do
mundo representado. Ao contrário, trata-se de um mundo
representado que se constrói dialogicamente e que, por isso,
guarda relações dinâmicas e orgânicas com o mundo que se
representa. São zonas fronteiriças. Clark; Holquist (1998, p. 297)
afirmam que “o cronotopo é uma ponte, não um muro, entre dois
mundos.” O entrelaçamento e o diálogo entre esses dois mundos (o
mundo ficcional e a realidade) é realizado dialogicamente pelo
autor, ouvinte, leitor (telespectador) da história.

2. Aspectos da construção da temporalidade e cronotopos na


minissérie: “Se eu fechar os olhos agora”

Devido aos limites do presente artigo, trataremos mais


incisivamente da construção temporal do primeiro capítulo já que é
nele que “todos os personagens principais do conjunto devem ser
apresentados” (PALLOTTINI, 1998, p. 80). Além disso, é no primeiro
capítulo que, em geral, conhecemos os conflitos básicos frente aos
quais as personagens devem agir. Ou seja, expõe as personagens em
ação no mundo, mostra-nos suas motivações, seus conflitos e indica-
nos, de maneira mais clara ou mais nebulosa, os possíveis
desdobramentos que esses conflitos poderão ter ao longo da série.
A minissérie tem como eixo central a investigação sobre o
assassinato de Anita (Thainá Duarte), cercado de mistério na
cidade fictícia de São Miguel no interior do estado do Rio de Janeiro
em abril de 1961. O cadáver da bela jovem humilde casada com
Francisco (Renato Borghi), o dentista da cidade, é encontrado por
dois adolescentes, Paulo Roberto (João Carlos D´Aleluia) e Paulo
(Xande Valois) à beira de um lago distante do centro da cidade.
Considerados suspeitos do crime, os dois garotos são presos e
soltos após o dentista confessar a autoria do assassinato. Pouco

27
tempo após a confissão, Francisco é encontrado morto em sua cela
na cadeia da cidade. Convencidos de que a polícia local não quer
elucidar os assassinatos, com a ajuda de Ubiratan (Antonio
Fagundes) - um morador do asilo da cidade -, os dois garotos
realizam investigações paralelas às da polícia local que não vê nada
de suspeito na morte do criminoso confesso. As investigações os
levam a encontrar pistas de que personalidades importantes da
cidade estão envolvidas nesse e em outros crimes. Por fim, os
garotos e Ubiratan conseguem encontrar o verdadeiro assassino de
Anita e outros criminosos.
A narrativa da minissérie tem início por meio do recurso de
abertura fria9, bastante usada em séries de televisão que, de
maneira geral, atende às necessidades do fluxo televisivo
(WILLIAMS, 2016) e pode servir para prender a atenção do
telespectador ao mostrar a situação de instabilidade que irá se
constituir como o conflito principal da narrativa. Tais
especificidades remetem ao formato seriado televisivo e suas
implicações em termos de estrutura de uma forma cultural
(WILLIAMS, 2016) e formas de recepção permeadas pelas
mediações (e espectatorialidade) (MARTIN-BARBERO, 2001).
A abertura do primeiro capítulo mostra Anita, de camisola,
correndo entre árvores e sendo perseguida por um homem
acompanhado de um cão feroz. Anita cai e, em seguida, o animal é
solto para atacá-la e a imagem congela: vemos o pavor estampado
em seu rosto.
Essa cena dura cerca de 40 segundos. Entram os créditos
iniciais e o título do primeiro episódio é mostrado: “A terra é azul”.
Na sequência seguinte (de mais ou menos 3 minutos), vemos um
homem com uma maleta médica sendo conduzido por outro
homem até um quarto onde está Anita deitada sobre uma cama. O

9Abertura fria (cold opening) é o trecho do programa mostrado antes mesmo da


vinheta de abertura. A abertura fria cumpre a função de núcleo do primeiro ato
aristotélico e prende o espectador ao programa que se iniciará e à trama que
começa a se mostrar ao espectador.

28
primeiro homem se apresenta como médico e examina Anita e diz
que ela não tem apenas os ferimentos das mordidas do cão. O outro
homem então diz para o médico se ocupar apenas dos ferimentos
da mordida do cão e sai da sala. Anita, que até então estava calada,
tenta se comunicar com o médico. O outro homem percebe isso e
volta para o quarto e dá um tiro na cabeça do médico. O sangue
dele espirra em Anita e ela grita apavorada.
Embora as situações apresentadas nas sequências iniciais não se
configurem como as causas diretas do assassinato da jovem, cabe
destacar o papel essencial delas para a elaboração de cronotopos -
mediados pela criação estética (e acabamento temático) - do
“universo imaginável” (TODOROV, 1981, p. 129) que compõe a
história. Ganham espaço nessa construção o cronotopo da violência
contra a mulher perpetrada por homens em lugares como bosques,
florestas e em espaços domésticos privados, sobretudo quartos. Ou
seja, cronotopos que se caracterizam por relações entre espaço-
tempo que localizam conflitos dessa natureza em espaços “fora da
visão” da sociedade, ou mais precisamente nos espaços comumente
denominados da vida privada. As situações apresentadas inserem-
se concretamente em uma relação tempo/espaço que se densifica e
dialoga não apenas com aquilo que vemos na tela, mas também
como nosso saber enciclopédico (ECO, 1997).
Cabe ressaltar, no entanto, que, embora o elemento de
violência contra a mulher na minissérie analisada se localize em
um passado recente, as situações de perseguição e violência
contra as mulheres nos espaços acima citados constituem-se como
topoi da literatura e das produções audiovisuais. Dessa forma, os
cronotopos construídos pela criação estética e acabamento
temático dessas cenas compõem o universo da história, dando-lhe
estrutura e configurando personagens e conflitos.
Simultaneamente, configuram expectativas e emoções (BARONI,
2016) que possibilitam ao espectador acompanhar o
desenvolvimento da trama.
Após as sequências acima descritas, temos o letreiro “Dois
anos depois. São Miguel, RJ”. A cidade e seus moradores nos são

29
apresentados ao som da música Mr. Sandman ( 1954) que se
contrapõe às cenas de violência que descrevemos acima. Um plano
geral mostra a cidade de São Miguel, a igreja da Matriz. A câmera
se aproxima e vemos carros circulando, pessoas bem arrumadas
entrando na igreja e crianças correndo para entrar no colégio.
Surge então o garoto Paulo Roberto, indo de bicicleta para a
escola, a câmera o acompanha e vemos crianças em fila entrando
nas salas do colégio. A música e o figurino transportam-nos para
a atmosfera dos anos 1950. Na sequência, surge Paulo Roberto
(Milton Gonçalves) já idoso escrevendo ao computador e nos
damos conta de que ele está escrevendo a história que nos será
mostrada. O narrador em primeira pessoa acrescenta à história o
ingrediente biográfico e testemunhal de que a narrativa se reveste.
Ao mesmo tempo, a ação do escritor, em andamento, produz
sentido de que assistimos a uma história que ainda se desenrola e
produz efeito de um presentificação dos fatos narrados. A
dualidade tempo da história, estudada por Genette (2017),
(erzählte Zeit) e tempo da narrativa (Erzählzeit) se misturam e
enredam o telespectador na história.
Na sequência seguinte, vemos os dois meninos na sala de aula
e o narrador informa que estamos em uma tarde quente de abril de
1961. Os meninos são expulsos pelo professor por estarem vendo
fotografias de mulheres, entre elas Brigitte Bardot. Após a expulsão
da sala de aula, aguardam na sala do diretor quando a música Mr.
Sandman, agora tocada no rádio da sala, é interrompida para as
notícias e o locutor informa que Yuri Gagarin retornou do espaço
em segurança e disse que a terra é azul.
Os dois meninos fogem da escola (e do castigo), mas antes de
irem nadar no lago – onde encontrarão o cadáver de Anita -,
passam pela igreja onde ocorre uma homenagem ao Senador
Marcos Torres, avô do atual prefeito Adriano (Murilo Benício). Em
seu discurso, ao lado do industrial da cidade e do delegado, o
prefeito lembra a tradição política da família e a importância do
avô: amigo de D. Pedro II, dos militares que o sucederam na
República e de Getúlio Vargas. Ao longo do discurso o prefeito

30
afirma que “como bom tradicionalista, sempre deu valor à família
e às instituições.” Sublinha ainda que a cidade deve muito a seu
avô senador: a estrada que leva ao Rio de Janeiro, a instalação da
indústria de tecidos “gerando renda e emprego”.
A realização da homenagem na igreja e a presença no altar do
industrial e do delegado mostram as instituições que dão suporte à
situação política. O discurso de exaltação ao político do passado
destacando sua atuação para a industrialização da cidade nos anos
1950, compõem um cronotopo do Brasil e da política brasileira da
época baseado na industrialização, na família e na tradição. O
discurso faz convergir diversas temporalidades que marcam a
história do Brasil, comprimindo-as no espaço-tempo da narrativa
da minissérie. Nesse sentido, cabe mencionar que Ianni constata as
diversas temporalidades e espaços envolvidos na constituição do
Brasil moderno:

O Brasil Moderno, ao mesmo tempo em que se desenvolve e


diversifica, preserva e recria traços e marcas do passado recente e
remoto, nesta e naquela região. O país parece um mapa
simultaneamente geográfico e histórico, contemporâneo e
escravista, republicano, monárquico e colonial, moderno e
arqueológico. Toda a sua história está contida no seu presente,
como se fosse um país que não abandona nem esquece o pretérito;
memorioso. (IANNI, 2004, p. 63)

Ainda no primeiro capítulo, observamos a construção do


cronotopo familiar, ou melhor dizendo da família exemplar. A
declaração do prefeito sobre suas filhas e esposa Isabel (Débora
Falabella) (1º. Capítulo, 12’32), também produz efeitos sobre a
temporalidade: “Eu tenho a convicção do quanto a mulher faz pela
casa. E, graças a Isabel, eu possuo essas duas pérolas: belas
recatadas e do lar.” Os sentidos produzidos pelo enunciado do
prefeito, transporta o telespectador para a atualidade e lembra
matéria publicada pela revista Veja sobre a esposa do então vice-

31
presidente Michel Temer e que gerou grande repercussão nos
meios de comunicação e nas redes sociais em 2016. (VEJA, 2016)10
Novamente, os sentidos ganham mais camadas e remetem a
usos e costumes em relação ao discurso sobre a mulher do vice-
presidente e sobre as mulheres em geral. O enunciado do político
da história ficcional plasma-se ao da revista e aos demais
enunciados que circularam nos meios de comunicação. Dessa
forma, as camadas de temporalidade do presente diegético
misturam-se ao presente do espectador, produzindo sentidos e
formas de reconhecimento entre o ficcional e o real.
Os cronotopos da escola do passado, da amizade entre os
meninos, da cidade do interior e o da família tradicional situam-
nos no espaço-tempo que predominará ao longo da minissérie.
Mas, concomitantemente, situam-nos em um tempo-espaço mais
amplo caracterizado pela modernidade do avanço tecnológico que
permitiu ao Homem circundar a Terra em uma nave espacial. A
chave de leitura introduzida pela romântica música Mr. Sandman
e pela notícia do feito do astronauta será logo invertida pelo
achamento do cadáver de Anita e pela série de assassinatos que se
seguirão. O mundo imaginável construído pela trama compõe-se
de personagens e conflitos que somente podem ser apreendidos a
partir das relações sociais e econômicas que se conjugam por meio
da relação tempo e do espaço, ou seja, do cronotopo.
Em termos da construção discursiva da temporalidade, a
partir desse momento, a trama, conforme mencionamos
anteriormente, contada em primeira pessoa pela voz em off do
idoso Paulo Roberto, adquire tom memorialístico e se desenvolve
por meio de flashbacks e flashforwards. À maneira de um puzzle, os
flashbacks narrativos apresentam-se aos telespectadores não apenas
como forma de recompor a motivação do(s) assassino(s) e a
dinâmica do crime, mas também como forma de dar força
dramática às situações de exploração sexual da jovem assassinada.

10Disponível em: https://veja.abril.com.br/brasil/marcela-temer-bela-recatada-e-


do-lar/. Acesso em: 15 out. 2020.

32
O recurso estilístico, marcado pela voz testemunhal mostra tanto
as relações escusas entre políticos e poderosos de São Miguel,
quanto remetem a práticas de exploração simbólicas e concretas
com relação às mulheres de uma maneira geral e às mulheres
pobres de uma maneira mais estrita, corroborando os cronotopos
que mencionamos no início de nossa análise.
Outro recurso temporal utilizado no primeiro capítulo são
flashforwards que inserem cenas que serão apresentadas nos
capítulos posteriores e surgem como elementos que sugerem
desdobramentos de conflitos e ações que acontecem com as
personagens que interagem no presente diegético. Nesse caso, esse
recurso se configura, em termos narratológicos, como uma
prolepse narratorial (Jost, 2016, p. 22). Um exemplo desse
procedimento pode ser observado na cena (aos 19´56) do primeiro
capítulo em que vemos Cecília (Marcela Fetter), a filha do prefeito,
aos beijos com Renato (Enzo Romani), um jovem negro jogador do
time de futebol da cidade, em um encontro furtivo. Misturados a
esse presente diegético vemos flashs de cenas que serão mostradas
no segundo capítulo. O jogo entre passado, presente e futuro
diegéticos solicita do telespectador atenção constante para que
possa se situar entre as diversas temporalidades e encontrar formas
de desvendar o mistério que cerca a morte de Anita.
Embora não faça parte do primeiro capítulo, cabe mencionar o
uso, no segundo capítulo, de um flashback cuja cena mostrada não
corresponde ao discurso da personagem sobre o acontecimento,
criando uma espécie de narrador desacreditado que se mostra por
meio de um lying flashback (JOST, 2016, p. 21) de modo que “se
semiologicamente o uso da imagem é incapaz de negar o que ela
mostra, ao contrário, seu uso no interior de um discurso (ou
narrativa) coloca em causa a verdade [das imagens] fora do
contexto. A visualização pode também desacreditar um discurso
verbal que nos coloca sobre uma falsa pista.”11 Na minissérie em

No texto original: “Si, sémiologiquement, l’image est incapable de nier ce qu’elle


11

montre, en revanche, son usage à l’intérieur d’un récit met en cause cette vérité

33
análise, encontramos essa última possibilidade de interpretação,
pois a cena a que nos referimos ocorre entre o prefeito Adriano
(Murilo Benício) e sua esposa Isabel (Débora Falabella) em um
momento em que ele lhe pergunta sobre uma grande quantia de
dinheiro encontrada no carro que ele lhe havia emprestado.
Tentando explicar a situação embaraçosa, Isabel narra uma história
cujos fatos não correspondem às imagens mostradas ao espectador.
Esse procedimento permite ao espectador uma posição de
cumplicidade em relação à personagem, ao mesmo tempo em que
aponta os conflitos de confiança existentes entre o poderoso casal
de São Miguel.

Considerações

Ao longo do texto, analisamos aspectos da construção


discursiva da temporalidade na minissérie Se eu fechar os olhos agora,
enfatizando sua importância para a composição da trama narrativa.
A história, narrada em primeira pessoa pela voz em off de um dos
protagonistas, desenvolve-se por meio de flashbacks e flashforwards.
O uso combinado de tais procedimentos na construção da
temporalidade na minissérie caracteriza uma arquitetura de puzzle
na qual as peças (personagens, conflitos, motivações) movem-se ao
longo do eixo temporal, mesclando passado, presente e futuro na
construção do cronotopo como um universo imaginável
(TODOROV, 1981, p. 129). Tal arquitetura se configura e se
reconfigura a partir da enunciação das personagens caracterizada
pelo jogo constante de enunciados (verbais e fílmicos) do passado,
do presente e do futuro que vão reconstituindo a história ao sabor
das descobertas das motivações dos supostos culpados pelo(s)
crime(s) calcadas principalmente sobre relações amorosas,
extraconjugais e de exploração sexual que marcam o universo da
história. Assim, o universo imaginável ganha corpo por meio das

hors contexte. La visualisation peut aussi bie infirmer un récit verbal que nous
mettre sur une fausse piste.“

34
relações tempo-espaço como configuradoras de cronotopos por
meio dos quais damos sentidos aos enunciados audiovisuais.
O tempo e o espaço tornam-se apreensíveis por meio do
acabamento temático e estético que caracterizam os cronotopos
analisados e que localizam as situações e os conflitos para além do
espaço da minissérie, mostrando-os a partir de uma perspectiva
sócio-histórica. Ao longo da análise, que se deteve no primeiro
capítulo da minissérie, observamos cronotopos, que se chocam, ou
melhor, se justapõem e mostram suas facetas: a violência contra a
mulher, o racismo, o desprezo pela vida humana e o uso de práticas
políticas que se alinham a um passado marcado pelo coronelismo
e pelo clientelismo. Características que adentram o mundo da
modernidade, representado pelo início da corrida espacial, e nos
permitem relacioná-las à noção de destempos discutida por
Martin-Barbero (1995, p. 46) e Ianni (2004). Dessa forma, as diversas
temporalidades e seus espaços sociais condensados nos cronotopos
mencionados denotam os destempos, ou seja, as diversas
temporalidades que não apenas se contrapõem, mas também se
superpõem, se justapõem, caracterizadas, por sua vez, pela
heterogeneidade que apresenta formações culturais arcaicas,
residuais e emergentes lado a lado na sociedade brasileira.

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37
38
Cronotopo como categoria analítica em estudos de
personagens populares no audiovisual

Rosana Mauro

O objetivo deste texto é demonstrar a pertinência do conceito


bakhtiniano de cronotopo para a análise de personagens no
audiovisual, sobretudo na teleficção. Para tanto, partilhamos da
posição de Stam (1989) sobre os conceitos de Bakhtin e sua viabilidade
na interpretação de produtos massificados. Pela perspectiva
bakhtiniana, sugere o autor, os meios de comunicação de massa são
uma rede complexa de signos ideológicos. Discursos centrípetos
dominantes e centrífugos de oposição, mesmo que de forma
camuflada, estão sempre em batalha, sobretudo nos enunciados
televisuais. Estes refletem e refratam múltiplas vozes e seus conflitos
presentes na sociedade. Por isso, pressupor que discursos midiáticos
são apenas manipuladores é uma visão simplista que contraria os
conceitos do filósofo da linguagem Bakhtin.
Considerando que todo o signo é ideológico (VOLÓCHINOV,
2017), propõe-se uma reflexão quanto à construção de um
significado de classe popular na expressão audiovisual televisiva
em dialogia com os discursos sócio-históricos. A temporalidade e a
espacialidade analisadas no aspecto conteudístico-formal
(BAKHTIN, 2010) em 28 personagens femininas de duas
telenovelas brasileiras – Avenida Brasil (2012) e a Regra do Jogo
(2015/2016), transmitidas na Globo no horário das 21 horas -
apontam para um sentido de classe popular relacionado à noção de
cotidiano e espaço público, corroborando o senso comum
historicamente construído sobre a mulher pobre brasileira
(SOIHET, 2015).1

1O presente capítulo apresenta algumas discussões realizadas ao longo da pesquisa


de doutorado. Disponível em: MAURO, Rosana. A construção discursiva televisual

39
Entre ética e estética

A separação entre forma e conteúdo é uma ilusão, ou seja, é


artificial, como demonstra Bakhtin (2010) ao defender que o campo
da estética deve entender a forma e o conteúdo inter-relacionados
- a forma como forma do conteúdo e este como conteúdo da forma.
Porém, em pesquisas científicas, por razões metodológicas, os dois
termos podem ser separados momentaneamente, como será feito
aqui. Tal divisão se faz oportuna também em vista da escassez de
estudos de televisão que levem em consideração a materialidade
estética de seus produtos (GOMES, 2011). Desse modo, pretende-
se refletir sobre a presença de discursos ideológicos, sócio-
históricos, na construção estética teleficcional.
O material, como momento técnico, é indispensável para a
construção do objeto estético e constituição da forma, defende
Bakhtin (2010). Mas, ao mesmo tempo, essa mesma forma nos guia
para fora dos limites materiais, que são superados no objeto estético.
“A superação imanente é a definição formal da relação com o
material não só na poesia, mas em todas as artes.”. (BAKHTIN, 2010,
p. 50). Se na literatura ou na poesia há a superação da palavra, no
audiovisual, há o apagamento do aparato técnico, da manipulação
da câmera, da montagem e de todo o trabalho de direção artística e
fotográfica, principalmente na linguagem audiovisual clássica
predominante (XAVIER, 2005).
Se, como afirma Eco (2007, p. 258), o discurso primeiro da arte
se faz no modo de formar - “O verdadeiro conteúdo da obra torna-
se seu modo de ver o mundo e de julgá-lo, traduzido em modo de
formar” –, faz-se pertinente voltar o olhar para a forma das
personagens no audiovisual e seus aspectos materiais com o

da mulher popular na telenovela: um estudo sobre as personagens de Avenida


Brasil e A Regra do Jogo. 2019. Tese (Doutorado em Teoria e Pesquisa em
Comunicação) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2019. doi:10.11606/T.27.2019.tde-11062019-170554. Acesso em: 2023-02-06. Ao
longo do doutorado, a autora foi bolsista do CNPq.

40
objetivo de mostrar as marcas discursivas no que se refere à classe
social e ao gênero feminino.
O conceito de cronotopo (tempo-espaço) nos possibilita essa
análise por realizar a mediação entre duas ordens discursivas, a
histórica e a artística, conforme expõe Stam (2013, p. 228), ao defender
a adequação do conceito de cronotopo aos estudos de cinema.

[...] parece em alguns aspectos ainda mais adequada ao cinema que à


própria literatura, uma vez que a literatura se desenvolve no interior
de um espaço léxico, virtual, ao passo que o cronotopo
cinematográfico é absolutamente literal, desenvolvendo-se
concretamente em um tempo literal (geralmente, 24 fotogramas por
segundo), bastante distinto do espaço-tempo fictício que os filmes
individuais possam construir. O cinema ilustra a ideia bakhtiniana
da relacionalidade inerente entre o tempo e o espaço, já que qualquer
modificação em um dos registros importa em mudanças no outro:
um plano mais fechado de um objeto em movimento aumenta a
velocidade aparente de tal objeto, a presença do meio temporal da
música altera a nossa impressão do espaço, e assim por diante.
(STAM, 2013, p. 229)

Bakhtin (2010) se baseou na teoria da relatividade do físico


Albert Einstein para tratar do cronotopo. Nesse conceito o tempo é
visto como a quarta dimensão do espaço. “Os índices do tempo
transparecem no espaço e o espaço reveste-se de sentido e é medido
com o tempo”. (BAKHTIN, 2010, p. 211). O cronotopo condensa
uma visão de mundo, tem caráter conteudístico-formal e apresenta
sentido figurativo ou temático, além de ser o centro organizador
dos principais acontecimentos da história.
Ao focarmos nas personagens, tratamos o cronotopo como o
centro organizador de sua história e expressão de um ponto de
vista ideológico no audiovisual.

41
Personagem Função e Estado

[...] a personagem, na sua diacronia, é ideologicamente um ser


utópico, embora sincronicamente não consiga esconder sua analogia
estrutural, quer com posturas ideológicas existentes, quer com
ideologias em formação, ainda não instauradas, mas passíveis de
existência futura. (SEGOLIN, 1978, p. 127).

De acordo com Segolin (1978), as personagens literárias


podem ser identificadas pelos seus diferentes graus de
funcionalidade dentro de uma narrativa, podendo, em seus
extremos, ser fortemente caracterizadas por suas funções ou por
seus atributos. Essas propriedades interferem na temporalidade
narrativa desses seres fictícios, proporcionando a sensação de um
tempo linear, sintagmático, ou simultâneo, paradigmático.
O autor compreende que há um percurso evolutivo histórico
da personagem literária, que se inicia com a personagem-função
dos contos analisados por Propp à anti-personagem (que revela a
ilusão de sua referencialidade em um processo metalinguístico)
presente na literatura moderna de língua portuguesa. Segolin
(1978) denomina como personagem-função aquela marcada pelo
desencadeamento de ações sucessivas, que culminam em uma
transformação de estado. O autor também identifica, em
contraposição, a personagem-estado, ser fictício desfuncionalizado
(em diferentes graus), cujos atributos se sobressaem às suas ações e
a intriga é gerada por alguma qualidade específica, sem
transformações de estado evidentes. Porém, não é sempre que há
uma divisão clara, pois, as personagens podem ser ambíguas.
Quanto mais desprovida de uma função, mais a personagem
aponta para o seu “fazer-se verbal”, à organização textual. Em um
aspecto mais desenvolvido, explica o autor, tem-se a personagem-
texto, que atende a um processo maior de desreferencialização e
anulação da intriga. Geralmente, o leitor é levado a ignorar o texto
e a guiar-se pelas ações da personagem, o que não ocorre com a
personagem-texto. Trata-se de um sincretismo actancial que visa a

42
“[...] submeter os vários atores da obra à funcionalidade básica de
um texto-actante, ocupado em compor a trama e a história de seu
fazer textual”. (SEGOLIN, 1978, p. 85). Os atores estão, desse modo,
funcionalmente descaracterizados na simultaneidade do texto,
mas, ainda pode haver referência ao ser humano.
Embora o autor trate a personagem-estado como um ser mais
complexo, que tenta subverter a ordem narrativa tradicional, é
possível nos apropriarmos da expressão com referência a
determinadas personagens na telenovela que não vivenciam
grandes acontecimentos na trama. São personagens que tendem à
não complexidade, que chamam mais a atenção por suas
características, e, em seu fazer-se audiovisual, apresentam menos
dinamicidade e mais simultaneidade, em cenas com a duração de
diálogos, assuntos cotidianos, falas mais espontâneas e naturais.
Essa temporalidade se assemelha ao cronotopo de costume e
cotidiano tratado por Bakhtin (2010).

Cronotopo das Personagens

Bakhtin (2010) retoma a história do romance para abordar o


cronotopo e possibilita a apreensão da construção do herói ficcional
de acordo com a noção de temporalidade e espacialidade. O autor
explica que na Antiguidade, no romance grego de aventuras e
provações, o homem era passivo e imutável. Geralmente, o herói e
a heroína passavam por diversas provações até se encontrarem
novamente no final. Entre um ponto de partida e um ponto de
chegada, tinha-se a sensação de que o tempo não havia passado. O
acaso e as forças não-humanas se faziam presentes em uma história
ambientada em diferentes espaços geográficos (espaço abstrato), na
qual o tempo biográfico não era referência. Bakhtin argumenta que
o homem nesse romance era solitário, não fazia parte de um todo
social. Trata-se de um cronotopo de aventura, “assim, o cronotopo
de aventuras caracteriza-se pela ligação técnica e abstrata do espaço
e do tempo, pela reversibilidade dos momentos da série temporal

43
e pela sua possibilidade de transferência no espaço”. (BAKHTIN,
2010, p. 225).
No romance antigo de aventuras e costumes, por sua vez,
havia a união entre o tempo de aventura e o de costumes. O herói
passava por transformações que lhe permitiam estar no cotidiano,
tido como inferior, como um observador, um terceiro. Em sua
forma normal, ou evoluída, o herói vivia acontecimentos
exclusivos, as aventuras fora do dia a dia comum. O teórico russo
menciona também as transformações de papéis, como do mendigo
ao rico. O trapaceiro e o aventureiro se enquadram nesse tipo de
herói, pois são aqueles, explica Bakhtin, que começam a vida por
baixo, em contato com os universos mais ordinários, até
conseguirem atingir o topo da vida privada. Também, o estudioso
reconhece os espectadores permanentes da vida privada nas obras
literárias dos realistas franceses. A saber: o criado, a prostituta, a
cortesã, a alcoviteira, os médicos e tabeliães. Na telenovela
brasileira, temos com frequência a empregada doméstica que
poderia se encaixar nessa categoria.
O terceiro gênero de romance antigo estudado por Bakhtin
(2010) é o biográfico e autobiográfico, que se divide em dois tipos:
o retórico e o platônico, no qual o tempo biográfico real dissolve-se
em um tempo ideal de transformação humana. Ambos eram
realizados em praça pública, conectados com os acontecimentos
políticos e submetidos ao controle público-estatal. Nesses
romances, uma transformação do espaço público ao privado tem
início quando as formas autobiográficas começam a manifestar
desagregação com o espaço exterior público e a exprimir certa
consciência privada. Porém, ainda não há o homem solitário, que
surgirá apenas na Idade Média.
Ao tratar da Idade Média, Bakhtin (2010) discute o romance de
cavalaria, o romance da Baixa Idade Média e as formas folclóricas
satírico-paródicas. Nesse período, ressalta a ocorrência de uma
inversão histórica do folclore antigo – marcado pela plenitude do
tempo - que já estava em desagregação nos romances antigos
devido à estratificação social. “Porém essas formas de plenitude

44
folclórica de tempo, apesar de tudo ainda atuavam no romance
antigo”. (BAKHTIN, 2010, p. 265). A inversão histórica se dá no
momento em que o pensamento mitológico é colocado no passado,
como uma idade de ouro localizada em algum ponto distante do
mundo, quando, na verdade, no folclore antigo se trata de um
tempo voltado para o futuro para o qual se planta e colhe. É um
tempo produtivo, fecundo, uno e cíclico, no qual a vida coletiva do
trabalho agrícola predomina. A vida humana e a natureza
apresentam aqui as mesmas categorias de percepção, pois o dia a
dia desse homem está ligado à terra e à natureza, seus objetivos são
práticos e o tempo é bastante espacial e concreto. Não havia
separação entre vida cotidiana e vida histórica do homem, tudo
estava relacionado ao trabalho social “[...] a comida, a bebida, a
copulação, o nascimento e a morte não eram momentos da vida
privada, mas um problema comum, eram “históricos” [...]”.
(BAKHTIN, 2010, p. 319).
Na Idade Média, por sua vez, o tempo folclórico antigo dá
lugar ao atemporal e ao eterno “[...] como se eles já existissem, como
se fossem contemporâneos. Cada uma dessas formas esvazia e
rarefaz o futuro a seu modo, deixa-o exangue.” (BAKHTIN, 2010,
p. 265). Outra forma de inversão do folclore popular é a escatologia.
Trata-se de uma relação mitológica e literária com o futuro que é
trazido para um presente bem material. Aqui, o homem do folclore
insere-se totalmente no espaço e no tempo. A grandeza e a força
aparecem relacionadas com as dimensões temporais e espaciais.
Por exemplo, um homem grandioso em sua personalidade o será
também em seu corpo e passos.
Voltando aos romances da Idade Média, nos romances de
cavalaria, Bakhtin (2010) destaca que o herói é individual e
representativo, ou seja, ele é único, diferente do romance grego no
qual os heróis se pareciam uns com os outros. Ao mesmo tempo,
cada herói de cavalaria rende vários romances. O cronotopo é de
um mundo maravilhoso em um tempo de aventuras. O tempo é
subjetivo e distorcido, como nos sonhos.

45
Nos romances antigos, a medida de tempo era clara, como um
dia ser um dia e uma hora ser uma hora. Na Baixa Idade Média,
Bakhtin distingue o romance marcado pela vertical medieval, no
qual todo mundo se une no mesmo espaço-tempo em uma
interpretação simbólica, de modo a destacar as contradições da
época. Pessoas de todas as classes sociais se misturam em um ato.
Apesar da atemporalidade e simultaneidade, a imagem das
pessoas que fazem parte desse mundo é histórica, há sinais do
tempo e traços de época. Porém, essas diferentes pessoas são
obrigadas a permanecer em um mesmo lugar eterno e imóvel da
vertical atemporal.
Já as formas folclóricas satírica-paródicas coexistiram com a
grande literatura da Baixa Idade Média. O autor destaca o romance
picaresco. Nessa literatura, são marcantes as figuras do bobo, bufão
e trapaceiro que, posteriormente, vão influenciar o romance
europeu. Essas personagens possuem um significado que não é
literal e sim figurativo, afirma Bakhtin (2010). São figuras
provenientes do teatro e da praça pública para o romance. Elas são
como estrangeiras nesse mundo, não se solidarizam a nenhuma
situação e apontam sempre o avesso e o falso de tudo. O estudioso
salienta que essas personagens podem ser uma espécie de máscara
do autor, que trazem a sua forma e posição de ver a vida. O
cronotopo é o da praça pública e dos palcos de teatro. Há nessas
três figuras uma denúncia dos convencionalismos feudais. O bufão
é inteligente e pode se apresentar como um vilão, um aprendiz, um
jovem clérigo ou um vagabundo. O bufão faz zombarias paródicas,
enquanto o bobo contraria as convenções feudais com sua
ingenuidade e incompreensão. Já o trapaceiro se assemelha ao
herói do romance antigo de aventura e costumes, diferentemente
dos dois primeiros, tem ligação com a realidade.
Posteriormente, no Renascimento, o autor afirma que:

[...] as formas de romance que mencionamos destruíram aquela


vertical do além, que tinha decomposto as formas do mundo
espaço-temporal e o seu conteúdo qualitativo e vivo. Elas

46
prepararam o restabelecimento da entidade material e espaço-
temporal do mundo num estágio novo de desenvolvimento, mais
aprofundado e complicado. Elas prepararam a assimilação pelo
romance de um mundo onde, na mesma época, descobria-se a
América, o caminho marítimo para as índias, um mundo que se
abria às novas ciências naturais e à nova matemática. Preparava-se
uma visão e uma representação do tempo totalmente nova do
romance. (BAKHTIN, 2010, p. 281).

Ao período renascentista pertence Gargântua e Pantagruel de


Rabelais, autor fundamental para o construto teórico de Bakhtin.
A escatologia está presente em Rabelais, com ampliações espaço-
temporais, por exemplo. Tudo o que é positivo qualitativamente
apresenta essa importância espaço-temporalmente. E o contrário
também, o negativo é comprimido, aniquilado. São imagens que
se opõem à visão da Igreja feudal, que enxergava a realidade
espaço-temporal como “[...] um princípio fútil, frágil, pecaminoso,
onde o grande é simbolizado pelo pequeno, o forte pelo fraco e
pelo impotente, o eterno pelo instante que passa.” (BAKHTIN,
2010, p. 283).
Rabelais, em oposição à visão do além da vertical medieval e
com base no folclore antigo, cria um novo espaço-tempo,
reconstituindo o mundo real para um homem novo e inteiro
(corporal e espiritual). Desse modo, por meio de um realismo
fantástico, Rabelais utiliza vizinhanças e ligações inesperadas, com
a destruição do velho e elaboração positiva do novo. O riso
rabelaisiano também é marcante e está relacionado aos gêneros
medievais, onde há o bufão, o bobo e o trapaceiro. “Mas o riso de
Rabelais não rompe apenas os laços tradicionais e elimina as
camadas intermediárias ideais, ele revela a proximidade rude e
direta daquilo que as pessoas separam por meio da mentira e do
farisaísmo”. (BAKHTIN, 2010, p. 284).
Bakhtin analisa as séries de Rabelais do corpo humano, da
indumentária, da nutrição, da bebida e as séries sexuais, da morte
e dos excrementos. O carnal do homem se opõe à visão ascética do

47
além, devolvendo ao corpo a sua materialidade. A série comida e
bebida, segundo Bakhtin, passa por quase todos os temas do
romance. A estrutura fisiológica é como uma personagem, afirma
Bakhtin (2010). O grotesco se encontra na precisão anatômica e
fisiológica e também há a abordagem bufa. O fantástico está
presente nas analogias. A morte também é retratada de forma bufa,
próxima ao nascimento e ao riso. Em outros momentos a morte é
exibida não grotescamente, mas como o fantástico heroificante.
Conforme a sociedade se divide em classes e as relações
monetárias avançam, a esfera do consumo se separa da vida social,
demonstra Bakhtin (2010). Comida, bebida, ato sexual e morte
acabam sendo incluídos na vida cotidiana, já individualizada e
isolada da história, como realidades vulgares do dia a dia. Também
há o desenvolvimento de uma sublimação das questões diárias, por
exemplo a bebida e a comida na poesia. O motivo básico da série
individual e privada passa a ser o amor – a sublimação do sexo e
da fecundação. A morte adquire o sentido de um fim absoluto do
ponto de vista individual e privado. A natureza se torna o lugar de
ação do homem, em paisagem e fragmenta-se em metáforas,
servindo para sublimar as questões individuais que não se
relacionam mais com a natureza. Surge também a série do tempo
histórico, com foco na vida de nação e do Estado. Tem-se a vida
individual em contraposição ao tempo histórico. (BAKHTIN, 2010).
Assim, forma-se o romance idílico (três formas: amoroso,
familiar e do trabalho agrícola ou regional), no qual a vida e os
acontecimentos estão atrelados a um lugar, como o país de origem
e sua natureza. Os limites do tempo são determinados por essa
unidade de lugar. Há um caráter rítmico cíclico e temáticas
circunscritas a motivos básicos da vida, como amor, nascimento,
morte, casamento, trabalho, comida, bebida e idades de forma
sublimada. A vida humana se funde com a vida da natureza no
cronotopo idílico. O tempo folclórico é apresentado pelo prisma da
evolução da consciência da sociedade, como condição ideal e
perdida da vida humana.

48
É pertinente ressaltar a oposição entre sublime e ordinário,
cotidiano e aventura na constituição do cronotopo no romance e de
seus heróis. Percebe-se na história do romance a tensão entre
espaço público e privado como reflexo social. O homem ordinário
tido como o “terceiro” da vida privada no romance de aventuras e
costumes - presente também nas figuras medievais do bufão,
trapaceiro e bobo, no Renascimento em Rabelais e posteriormente
nos romances realistas - é o contrário do herói clássico grego e do
sublime romântico. Seria um anti-herói. Há nessa relação a
oposição entre o culto e o popular. É possível transpor um pouco
dessa lógica ao melodrama e à telenovela, por conseguinte.

[...] os fragmentos temporais dos episódios da vida cotidiana estão


dispostos como que perpendicularmente à série principal que
sustenta o romance: culpa-castigo-redenção-purificação-beatitude
(precisamente, no momento do castigo e da redenção). O tempo da
vida corrente não é paralelo à série principal e não se entrelaça com
ela, entretanto, cada fragmento seu (nos quais esse tempo se
decompõe) é perpendicular à série principal, cruzando com ela em
ângulo reto. (BAKHTIN, 2010, p. 248).

Nesta citação, Bakhtin se refere ao romance antigo de


aventuras e de costumes, mas podemos considerá-la para o nosso
estudo em que heroínas melodramáticas se contrapõem a
personagens cujas narrativas são estáticas e baseadas em situações
triviais. Inclusive, ela convém para refletir sobre as representações
de classe social no caso da mulher.
A telenovela por si só está fundamentada no cotidiano
(MOTTER, 2003). O que diferencia as personagens nesse sentido é
a forma como esse cotidiano é tratado. Há gradações entre aventura
e cotidiano. O riso assume um papel importante nesse aspecto,
assim como o riso rabelaisiano. O cotidiano não é ruim a priori e não
significa um castigo como no caso do romance de aventuras e
costumes. Também nas telenovelas consideradas, o espaço

49
geográfico não é abstrato ou maravilhoso e sim concreto, a
representação do Rio de Janeiro, e o tempo é contemporâneo.
A permanência em um mesmo local (casa e bairro), o
deslocamento das personagens por diferentes espaços (externo,
interno, casa, trabalho, cadeia, viagens, entre outros), a temática
explorada, o tom, os acontecimentos e a construção estética
audiovisual – montagem, ritmo, música, por exemplo – são os
responsáveis por conferir a sensação de diferentes temporalidades,
de linearidade ou simultaneidade. Desse modo, mantemos a
nomenclatura cronotopo de aventuras para tratar das personagens
que vivem acontecimentos excepcionais. E, ao invés de costume ou
cotidiano, adotamos o termo cronotopo trivial, relacionado à
vivência de assuntos corriqueiros por meio do riso e da banalidade.
Neste cronotopo, encontram-se personagens que dialogam com o
grotesco e o realismo fantástico comentados por Bakhtin (2010),
mas com a conotação de vulgaridade e não sublimação reforçada
pela contraposição a outras personagens que apresentam a
sublimação do cronotopo idílico.
Em nossa pesquisa, foram selecionadas 28 personagens das
telenovelas A Regra do Jogo (2015-2016) e Avenida Brasil (2012) – ambas
escritas por João Emanuel Carneiro e dirigidas por Amora Mautner –
pelo critério de pertencerem às classes populares (foram incluídas as
novas ricas que mantinham os costumes da classe social de origem) e
serem do gênero feminino. Dessas, 15 apresentam o cronotopo que
denominamos como trivial, que se contrapõe às personagens que
identificamos como do cronotopo de aventura.
O riso é uma marca forte nas personagens do cronotopo trivial.
Ele se dá de diversas formas, por exemplo, por meio de um sentido
de inadequação na expressão de um gosto duvidoso em
vestimentas e decoração, mistura de muitos estilos, exagero de
cores e estampas, excesso de objetos (estética Kitsch)
(principalmente nas novas ricas), roupas muito curtas e justas;
inadequação também no modo de falar (muito alto e desvios da
norma culta da língua portuguesa); no momento da alimentação
(comer em demasia, ou falar com a boca cheia); e de

50
comportamento, no geral, perante personagens do núcleo rico, pela
demonstração de intimidade em excesso e falta de discrição.
As personagens que incorporam o estereótipo da periguete2 são
cômicas em sua busca por fama, aversão ao trabalho convencional
e pela maneira inusual e, por vezes, desonesta, de buscar o que
desejam. Além disso, suas relações amorosas são tratadas com
humor e certa dose de preconceito. Elas apresentam um grande
apetite sexual e usam o poder de sedução para enganar os homens.
Elas exibem traços de semelhança com o trapaceiro descrito por
Bakhtin (2010).
A religião evangélica é parodiada, tendo como centralidade a
sexualidade feminina. Há a personagem que faz resguardo sexual,
é traída pelo marido e no final se envolve em um quarteto amoroso;
a ex-atriz pornô que recorre à religião para mudar seu estilo de
vida, mas que, sem conseguir fugir de sua “natureza” por muito
tempo, volta ao antigo trabalho. Ademais, o riso está presente nos
momentos em que as personagens se envolvem em outras situações
mundanas como troca de casais, a recusa em se casar com o homem
“encostado” e o envolvimento da mocinha do interior com o velho
malandro. A trilha sonora das personagens dialoga com o tom de
humor, ela é composta por gêneros musicais brasileiros - como
forró, funk e samba - com letras divertidas e populares. 3
Os temas de humor citados se referem a situações banais, do
dia a dia, longe das aventuras das mocinhas e vilãs. Essas

2 “Periguete” ou “piriguete” é um neologismo que tem sido usado no Brasil para


classificar mulheres, principalmente jovens, independentes e liberais, em especial
no que se refere ao relacionamento sexual-afetivo.” (TONDATO; VILAÇA, 2017,
p. 96). O termo, presente no dicionário informal da internet, foi adicionado ao
dicionário Aurélio Junior recentemente, no qual periguete significa “[...] “moça ou
mulher que, não tendo namorado, demonstra interesse por qualquer um” [...]”
(MENEGHINI,2011).
3 Por exemplo as seguintes músicas e seus intérpretes: “Pura adrenalina”, Belo; “A

dona do barraco”, Calcinha Preta; “Humilde Residência”, Michel Teló; “Safadin”,


Aviões do Forró; “Tá me dando mole”, Sorriso Maroto; “Assim você mata o
papai”, Sorriso Maroto; “Só no Charminho”, Gang do Eletro; “Correndo atrás de
mim”, Aviões do Forró; “Tá Faltando Homem”, Banda Xeiro de Mel.

51
temáticas têm forte relação com o espaço da casa e do bairro,
localizado na temporalidade do cotidiano. Nesse sentido, é
importante ressaltar que as periguetes apresentam como
característica a falta de moradia. São personagens que não têm
casa e se hospedam em residências alheias, que moram de
aluguel, precisam dividir a moradia com alguém, moram com
uma amiga ou até mesmo chegam a dormir na rua.
Além disso, as personagens na categoria trivial têm seus
corpos destacados e sexualizados. Como os casos em que se usa
uma tomada vertical que mede o corpo de uma delas, o close nos
pés da mulher andando e o plano detalhe de um decote pelo olhar
da personagem do sexo masculino.
No que se refere ao espaço, as personagens que se enquadram
na categoria correspondente ao cronotopo de aventura percorrem
vários lugares durante a história da telenovela e mesmo dentro de
um único episódio, vivenciando acontecimentos inusitados. O foco
dessas personagens é voltado à ação melodramática e à mudança
de estado4, o que confere um sentido de linearidade em seu
percurso e um ritmo mais acelerado em suas cenas, com mais
elipses. Ao contrário, em relação às personagens triviais, os espaços
são sempre os mesmos, os acontecimentos são cotidianos e a
temporalidade é mais estática e circular. As primeiras podem ser
identificadas com a personagem funcional descrita por Segolin
(1978) e as segundas com a personagem-estado.
A pouca transformação no percurso da telenovela, a
permanência em um mesmo espaço, e o sentido de cotidiano
reforçado pelos temas mundanos não sublimados fazem parte do
cronotopo trivial. Ainda, destacam-se o sentido de simultaneidade e o
diálogo entre o espaço público e o privado na caracterização da

4 Embora a mudança de estado seja parte da definição de personagem, nem


sempre a transformação está presente. Este é o caso de certas personagens
secundárias de telenovela. Também, como comentando anteriormente, existe a
personagem-estado explicada por Segolin (1978).

52
mulher pobre, o que converge com um senso comum construído
sócio-historicamente sobre a mulher pobre brasileira (SOIHET, 2015).
As mulheres pobres do Rio de Janeiro e São Paulo de fins do
século XIX e começo do XX, sujeitos da pesquisa de Soihet – por
meio de documentos judiciários e policiais -, entre outras
profissões, trabalhavam de lavadeiras, engomadeiras, doceiras,
bordadeiras, floristas, cartomantes, ou se prostituíam e tinham a
rua e as praças como espaço de lazer, trânsito e comunicação para
o dia a dia de trabalho. Elas representavam o contrário do que
pregava a nova ordem a respeito do resguardo feminino.
Na teleficção, dois espaços fictícios analisados - o Bairro do
Divino, de Avenida Brasil e o Morro da Macaca, de A Regra do Jogo –
ilustram os aspectos específicos na caracterização do cronotopo
trivial e apontam para a dinâmica entre forma e conteúdo
comentada anteriormente. Na análise, foram considerados os
primeiros capítulos das telenovelas e as cenas de apresentação de
alguns personagens que se sobressaíram.

Espaço Simultâneo e o Cotidiano entre o Público e o Privado

Na época da transmissão de Avenida Brasil o país vivenciava a


ascensão de uma nova classe consumidora, conhecida como “nova
classe C”5. De acordo com o projeto Vozes da Classe Média (2012),
do ano de 2002 a 2012, 37 milhões de pessoas entraram para a classe
média. Essa ascensão teve reflexo na mídia como um todo e nas
teleficções em especial, inclusive em Avenida Brasil.
Na trama, o Bairro do Divino faz referência clara ao bairro real
do subúrbio carioca chamado Madureira. A ligação é explícita por
meio da trilha sonora utilizada, uma adaptação da música de
Arlindo Cruz Meu Lugar, na qual há a substituição do nome

5De acordo com Souza (2012), não se tratava de uma nova classe média e sim de
uma nova classe trabalhadora. Pochmann (2012) concorda com Souza e argumenta
que a maior parte dessa população emergente se associou às características gerais
das classes populares, que ao elevar o rendimento ampliam imediatamente o
padrão de consumo.

53
Madureira por Divino. No local fictício, três ambientes
desempenham papel significativo no que diz respeito à
simultaneidade dos acontecimentos, são eles o bar do Silas (Ailton
Graça), o Clube do Divino e o salão de beleza de Monalisa (Heloisa
Périssé). Como o primeiro é frequentado apenas por personagens
masculinas, somente os dois últimos serão tratados.
No primeiro capítulo da trama, cenas do salão de beleza são
intercaladas com outras: do craque Tufão (Murilo Benício) com sua
família antes de um jogo de futebol e da vilã Carminha (Adriana
Esteves) na casa de Genésio (Tony Ramos); posteriormente, a cena
do jogo de futebol tem início e serve para conectar, por meio de
uma transmissão televisiva, as cenas do salão, de Carminha com
Genésio, do Clube do Divino e o escritório onde trabalha Cadinho
(Alexandre Borges). Todos assistem ao jogo.
No salão, a cabeleireira Monalisa, uma das personagens
principais, e sua melhor amiga e também ajudante, Olenka (Fabiula
Nascimento), trabalham enquanto assistem a uma entrevista de Tufão
na televisão. As cores do ambiente são vivas e alegres, em tons de cor
de rosa. Monalisa aparece dez vezes no capítulo. Na primeira vez,
enquanto a cabeleireira cuida de uma cliente, vemos, em um plano de
conjunto, Olenka entrando no estabelecimento com outra freguesa.
Duas grandes portas conectam o salão com o espaço externo, o que
remete ao espaço público, à comunidade e ao popular.
As cenas de Monalisa contrastam especificamente com os
trechos de Carminha. A primeira está integrada à estética popular
do Divino, enquanto a vilã se encontra em outra temporalidade que
se conecta com o bairro popular apenas pela televisão. As cores das
duas personagens se contrapõem, enquanto uma é colorida e
alegre, a outra apresenta o contraste da estética noir6.

6Dá-se o nome de cinema noir a um conjunto de filmes realizados a partir dos anos
1940 em Hollywood, que consistia no casamento entre o drama criminal, então em
voga, e a adoção do estilo visual que marcou o cinema expressionista dos anos 1920 na
Alemanha. (LIRA, 2015). A estética noir, segundo Lira (2015), relaciona-se aos motivos
noturnos e conotações culturais de mistério, suspense e medo.

54
Na segunda vez, na rua, um carro de som chama por Monalisa.
Trata-se de um pedido de casamento feito em público pelo jogador
Tufão. A moça vai para a rua e aceita o pedido do rapaz. O casal é
aplaudido por uma plateia de moradores do lugar. Mais uma vez
há o reforço do aspecto público e comunitário do bairro. Da terceira
aparição de Monalisa até a nona, os trechos giram em torno da
partida de futebol e seguem um ritmo acelerado pela quantidade
de cortes e pela música – um rock conota a tensão do jogo e mais
para o final um samba traz alegria e alívio quando o Flamengo,
time de Tufão, vence. O tempo inteiro a cabelereira está em seu
salão, no horário de trabalho, de dia à noite. A cena intercalada
reforça a sensação de simultaneidade - com as outras personagens
que assistem ao jogo em locais diferentes - e acentua a permanência
de Monalisa em um mesmo lugar.
Na décima vez, Monalisa aparece no Clube do Divino, onde as
pessoas do bairro comemoram a vitória do Flamengo. A cabelereira
entra falando no celular, no momento em que a mãe de Tufão,
Muricy (Eliane Giardini), concede uma entrevista a jornalistas. O
rosto da última em primeiro plano é desfocado para destacar
Monalisa ao fundo entrando no clube. Temos a sensação de
concomitância.
Além de Monalisa e Olenka, o salão de beleza reúne outras
personagens durante a trama: Beverly (Luana Martau), que é
funcionária; Tessália (Débora Nascimento) e Dolores (Paula
Burlamaqui). Tessália vem do interior para a capital e aparece pela
primeira vez na trama no estabelecimento, posteriormente ela
trabalhará no local; assim como Dolores que, vinda de outra cidade,
também começa a trabalhar no salão de Monalisa. Todas essas
personagens frequentam o Clube do Divino.
Suelen (Ísis Valverde) também se sobressai por meio do
cronotopo trivial no bairro do Divino. A cena em que ela aparece pela
primeira vez, no capítulo 8, é particularmente significativa por
trazer um plano-sequência que reforça o sentido do espaço
comunitário. Em um dia ensolarado, na porta da loja de roupas de
Diógenes (Otávio Augusto), Darkson (José Loreto) anuncia os

55
produtos em um microfone, a câmera faz um travelling para a
direita, passa por trás de pessoas que bebem cerveja e andam pelo
bairro. Darkson entra na loja por uma porta e sai por outra. Ágata
(Ana Karolina Lannes) e Janaina (Cláudia Missura) aparecem,
pronunciam algumas falas, a câmera acompanha as duas, vira e
enquadra Suelen de corpo inteiro, que anda entre algumas bancas
de produtos, na direção da câmera. Pessoas passam à sua frente. A
câmera acompanha a moça até a entrada da loja onde está Darkson.
No primeiro corte, há um plano detalhe nos pés de Suelen que sobe
as escadas da entrada da loja. Darkson a paquera por meio de sua
fala ao microfone. Primeiro plano dos dois. Suelen se posiciona
atrás do rapaz, diz para ele esperar sentado e o chama de “boboca
babão”, enquanto passa o dedo em seu queixo. Em seguida, há um
plano geral, em ângulo plongée, da loja e das barracas em volta. A
cena tem continuidade dentro do estabelecimento.
O plano sequência destaca o corpo de Suelen ao mesmo tempo
em que mostra o clima do bairro popular e apresenta algumas de
suas personagens. O sentido é de simultaneidade, de reforço do
acontecimento da rua, com personagens que dividem o mesmo
local sem interagir umas com as outras. O espaço público está
presente como parte da caracterização da mulher popular. A
imagem dos pés de Suelen, de salto alto, subindo as escadas da loja,
realça o poder sensual conferido à personagem. São passos firmes
próximos aos pés de Darkson a quem ela esnoba.
Na telenovela A Regra do Jogo, por sua vez, a diretora Amora
Mautner inovou com a proposta de caixa cênica, caracterizada pela
utilização de oito câmeras (as telenovelas comumente usam
quatro), algumas delas escondidas (atrás de espelhos e quadros),
reproduzindo o ambiente de reality show. A estratégia buscava dar
mais naturalidade às encenações, já que nem mesmo os atores
sabiam exatamente a localização das câmeras.
Nessa trama, o espaço do Morro da Macaca, onde se localiza
grande parte dos personagens, é o palco do cronotopo trivial.
Adisabeba (Suzana Vieira) é uma das personagens desse núcleo.
Ela é proprietária de um hostel e uma boate localizados no mesmo

56
perímetro de sua residência no morro. Chama a atenção no
percurso da novela que não há divisão clara entre o cenário do
espaço pessoal e de trabalho de Adisabeba. Verifica-se a mescla
entre o público e o privado.
No primeiro capítulo, há um trecho em que vemos Adisabeba
andando pelo bairro apressada, à procura de seu filho, um adulto
a quem ela trata como criança. A variação nos ângulos da câmera –
plongée e contra-plongée - simula a geografia do morro. Há
naturalidade na cena e o telespectador tem um olhar privilegiado
ao vê-la por frestas entre objetos e construções, conforme ela
caminha, como um observador dentro da cena. Adisabeba
cumprimenta alguns moradores (figurantes) pelo nome, fala alto e
parece descuidada no seu modo de andar, em seu vestido curto,
decotado e florido.
Quando Adisabeba chega à casa de Ninfa (Roberta
Rodrigues), uma jovem negra, vemos esta última de corpo inteiro,
parada próxima à porta de vidro na entrada do imóvel. A moça,
que usa um short curto e sutiã, é empurrada por Adisabeba que
entra na casa sem pedir licença. Por meio de algumas imagens,
captadas pelo lado de fora da janela, vemos uma garrafa de Coca-
Cola no balcão da cozinha e o reflexo no vidro da janela revela
cabides com calcinhas penduradas. Adisabeba encontra o filho
escondido no box do chuveiro. Em dado momento, os três vão para
o lado de fora da casa e um plano os enquadra a partir do interior
do ambiente. É clara na cena a interface com o público.
Em contraposição à personagem principal Tóia (Vanessa
Giácomo) e a Djanira (Cássia Kiss), que aparecem no mesmo
capítulo, Adisabeba passa por menos lugares. Ela permanece no
Morro da Macaca, na boate, e na casa de Ninfa. Os acontecimentos
que Adisabeba vivencia são corriqueiros e não têm a mesma carga
dramática das outras duas, por isso as cenas nas quais ela está
inserida remetem a momentos banais do cotidiano, em locais
próximos à comunidade onde mora, sem grandes acontecimentos.
Alisson (Letícia Lima) é caracterizada de modo semelhante.
No capítulo 5, no qual ela é apresentada de fato, usando apenas

57
calcinha e sutiã, beija e abraça Mc Merlô (Juliano Cazarré) - que está
sem camisa. Vemos os dois até um pouco abaixo da cintura, por
uma fresta da janela. Ela sobe na cama e começa a rebolar, diz que
vai fazer um show para ele e tira o sutiã. Outra câmera a capta entre
uma cortina, do lado esquerdo. Merlô derruba Alisson na cama. Em
certo momento, a câmera focaliza a porta da casa, que é de vidro,
Dênis (Amaurih Oliveira), marido de Alisson chega. Merlô pula
pela janela. Dênis entra na casa (a porta está destrancada). Alisson
vai até o chuveiro e finge que estava tomando banho. A câmera a
mostra em plongée. Merlô pega suas coisas pela janela aberta, o que
revela o fácil acesso à casa do lado de fora. O corpo da personagem
à mostra e todo o clima remetem ao sexo não sublimado e à
comédia. Temos a impressão de estar espiando.
Ademais, algumas personagens da trama aparecem no
primeiro capítulo quase como figurantes, quando as personagens
principais circulam pelas ruas do morro. É o caso de Indira (Cris
Viana), que é apresentada de fato no capítulo 3. Na ocasião, Indira
está em sua loja trabalhando quando ouve o marido, guia turístico
no morro, chegar com turistas ao estabelecimento. A interface com
o espaço externo é evidente. A loja está em um ponto de onde é
possível ver Djanira que chega de mototáxi à casa de Adisabeba.
Na cena, Indira e Oziel (Fábio Lago) são observadores de Djanira,
Destaca-se a referência ao espaço fora de campo, com o casal
olhando em direção a Djanira.
Percebe-se nesses exemplos a simulação de um espaço
integrado do morro, onde todos se observam e no qual aspectos
públicos e privados se mesclam. Há um sentido de simultaneidade
e de cotidianidade. Esses aspectos estão presentes na materialidade
audiovisual nos movimentos de câmera que acompanham as
personagens andando na rua, na câmera escondida que parece
invadir a privacidade das personagens, nas gravações através de
janelas, no plano-sequência que capta a simultaneidade do bairro,
nas referências ao espaço fora de campo, no cenário que destaca as
janelas abertas e portas de vidro, na localização das personagens
frequentemente do lado de fora da casa, no figurino que destaca o

58
corpo das mulheres, entre outros elementos. Tudo isso corrobora a
construção do popular em consonância com o mundano não
sublimado, com o vulgar, com a mulher pobre como mulher
pública (SOIHET, 2006). Ou seja, os componentes materiais que
fazem parte da forma audiovisual, juntamente dos temas
trabalhados, são signos ideológicos no contexto em que se
encontram, na construção de um tempo-espaço popular que é
simultâneo, cotidiano, público e privado ao mesmo tempo.

Considerações

Os seres ficcionais na telenovela estão implicados nas


categorias de tempo e espaço, concretamente e virtualmente, como
bem pontuou Stam (2006) a respeito do cronotopo no audiovisual.
As especificidades materiais audiovisuais fazem parte da forma
predominantemente clássica na telenovela, e por isso passam
despercebidos se não forem examinadas separadamente por
motivos metodológicos.
Obviamente existem muitos outros aspectos a serem
aprofundados na questão proposta, como a comparação entre
personagens em um mesmo capítulo, para averiguação do ritmo, por
exemplo, e a confrontação mais detida entre seres ficcionais dos
núcleos ricos e pobres. Mas, acredita-se que foi possível trazer uma
reflexão sobre a aplicabilidade do conceito de cronotopo visando aos
aspectos estéticos na construção de um sentido de mulher popular,
que, como demonstrado, apontam a tensão entre o público e o
privado, o cotidiano não sublimado, e a simultaneidade temporal.
O público aparece como o contrário da propriedade privada e
da individualidade, que mulheres pobres não usufruem. A figura
da periguete encarna, com teor humorístico, o estereótipo
preconceituoso da mulher pobre indiscreta, “barraqueira”, que
expõe o corpo de forma inapropriada e que usa de relacionamentos
e do próprio corpo para ter ascensão financeira. Essa representação
parte do prisma da inadequação por um ponto de vista masculino
e hegemônico.

59
Como demonstram Lippmann (1980) e Heller (2004), o ser
humano usa o estereótipo o tempo todo cotidianamente, pois é
impossível conhecer tudo intimamente. Assim, o estereótipo não é
negativo em si e tem sua utilidade.

Na maior parte das vezes não vemos primeiro para depois definir, mas
definimos e depois vemos. [...] colhemos o que nossa cultura já definiu
para nós, e tendemos a perceber o que colhemos na forma
estereotipada para nós, pela nossa cultura. (LIPPMANN, 1980, p. 151)

O problema aparece quando os estereótipos trabalham para a


manutenção das relações de poder dominantes, formando os
preconceitos que se arraigam socialmente e historicamente, como
os referentes a gênero, classe social e raça. Na teleficção, como
demonstrado pela noção de cronotopo, eles estão presentes
também (junto de outras vozes) no acabamento estético e temático
de tempo e espaço.

Referências

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romance. 6. ed. Trad. Aurora Fornoni Bernardini, José Pereira
Júnior, Augusto Góes Júnior, Helena Spryndis Nazário e Homero
Freitas de Andrade e Homero Freitas de Andrade. São Paulo:
Hucitec Editora, 2010.
ECO, U. Obra aberta: forma e indeterminações nas poéticas
contemporâneas. 9. ed. Trad. Giovanni Cutolo. São Paulo:
Perspectiva, 2007.
HELLER, A. Sobre preconceitos. In: O cotidiano e a história. Rio
de Janeiro, Paz e Terra, 2004.
LIPPMANN W. Estereótipos. In: STEIMBERG, Ch. (org.) – Meios
de Comunicação Massa. Rio de Janeiro: Cultrix. 1980.
LIRA, B. Cinema noir: a sombra como experiência estética e
narrativa. João Pessoa: Editora da UFPB, 2015.

60
MAURO, R. A construção discursiva televisual da mulher
popular na telenovela: um estudo sobre as personagens de
Avenida Brasil e A Regra do Jogo. Tese (Doutorado em Teoria e
Pesquisa em Comunicação) - Escola de Comunicações e Artes,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.
MOTTER, M. L. Ficção e Realidade: A construção do cotidiano na
telenovela. São Paulo: Alexa Cultural, Comunicação & Cultura -
Ficção Televisiva, 2003.
POCHMANN, M. Nova classe média? O trabalho na base da
pirâmide social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2012.
PROPP, V. Morfologia do Conto Maravilhoso. CopyMarket.com,
2001. Disponível em: [https://monoskop.org/images/3/3d/Propp_
Vladimir_Morfologia_do_conto_maravilhoso.pdf] Acesso em: 26
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SEGOLIN, F. Personagem e anti-personagem. 1. ed. São Paulo:
Olho d´Água, 1978.
SOIHET, R. Mulheres pobres e violência no Brasil Urbano. In: DEL
PRIORE, Mary (org.). História das mulheres no Brasil. 10. ed. São
Paulo: Contexto, 2015, p. 362-400.
SOUZA, J. Os Batalhadores Brasileiros: nova classe média ou nova
classe trabalhadora? 2. ed. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2012.
STAM, R. Subversive Pleasures: Bakhtin, Cultural Criticism and
Film. London: The John Hopkins Press, 1989.
STAM, R.; SHOHAT, E. Crítica da imagem eurocêntrica. 5. ed.
Trad. Fernando Mascarello. São Paulo: Cosac e Naify, 2006.
TONDATO, M. P.; VILAÇA, M. G. da C. Periguetes: novas
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do consumo. Lumina. Juiz de Fora. v. 11, n. 3, p. 95-116, 2017.
Disponível em: [https://periodicos.ufjf.br/index.php/lumina/
article/view/21370] Acesso em: 26 out. 2019
VOLÓCHINOV, V. Marxismo e Filosofia da Linguagem:
problemas fundamentais do método sociológico na ciência da
linguagem. São Paulo: Editora 34, 2017.

61
Vozes da classe média. Brasília: Marco Zero, 2012. Disponível
em:[http://www.epsjv.fiocruz.br/upload/doc/Cartilha-Vozes-Classe-
Media.pdf]. Acesso em: 26 out. 2019
XAVIER, I. O discurso cinematográfico: a opacidade e a
transparência. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005.

62
A caracterização das personagens masculinas na
minissérie Capitu

Rafaela Bernardazzi

Realizamos, no presente texto, um estudo sobre as relações


entre forma e conteúdo expressas tanto nos figurinos quanto nos
discursos das personagens Bento e Escobar com o intuito de
observar a produção de sentido propiciada pela minissérie Capitu
(Globo, 2008). O enfoque entende a linguagem e o discurso
televisual como um espaço privilegiado para a compreensão dos
processos de comunicação mediados pela televisão. Dessa forma, o
estudo pretende analisar a linguagem televisual e a construção da
narrativa da minissérie Capitu a partir da produção de sentido dos
elementos que compõem a cena e caracterizam os protagonistas
masculinos do produto audiovisual de ficção seriada, Bento e
Escobar, observando os cinco episódios da minissérie.
A partir da atribuição de novos significados por meio da
produção de sentido ampliada pela indústria audiovisual e
literária, Capitu apresenta uma integração entre diversas
linguagens e artes provenientes do cinema, televisão, teatro, dança
contemporânea, rádio e literatura. A minissérie é dirigida por Luiz
Fernando Carvalho e escrita por Euclydes Marinho, com
colaboração de Daniel Piza, Luís Alberto de Abrei e Edna Palatnik.
As últimas produções audiovisuais dirigidas por Luiz Fernando
Carvalho, têm chamado atenção pelo emprego de uma linguagem
audiovisual diferenciada de produção técnica e estética em
comparação com as demais produções veiculadas no Grupo Globo.
Alguns exemplos de trabalhos com características autorais de
Carvalho são: a minissérie Os Maias (2001), a minissérie Hoje é dia
de Maria (2005), A Pedra do Reino (2007), a minissérie Capitu (2008),
a minissérie Afinal o que querem as mulheres? (2010), o seriado

63
Suburbia (2012), a telenovela Meu Pedacinho de Chão (2014) e a
telenovela Velho Chico (2016). Capitu foi exibida de 09 a 13 de
dezembro de 2008, tendo sido veiculada no ano do centenário de
morte do escritor Machado de Assis como uma forma de
homenagear o escritor brasileiro.
Considerando a perspectiva diacrônica dos trabalhos
realizados por Carvalho na Globo, sobretudo no que se refere ao
formato minissérie, passamos a observar Capitu não como obra
isolada, mas como uma obra que integra a linha autoral do diretor,
e acima disso, uma obra televisual de criação coletiva. Apesar disso,
cabe ressaltar que, mesmo nessa perspectiva, consideramos
essencial que compreendamos Capitu, assim como os outros
produtos da indústria televisiva como resultante das injunções
oriundas da indústria cultural que opera “(...) entre dois pares
antitéticos: burocracia-invenção, padrão-individualidade"
(MORIN, 2005, p. 25-26). Trata-se de um trabalho que busca
suplantar o paradoxo padronização-inovação, discutido por Morin
(2005), inerente aos trabalhos na indústria cultural.

Tentando compreender esse paradoxo, consideramos que os trabalhos


de criação na indústria cultural envolvem o trabalho coletivo numa
perspectiva um pouco diferente daquela geralmente entendida como
industrial. O trabalho, de certa maneira, coletivo numa obra artística,
mesmo na indústria cultural, não pode basear-se na homogeneização;
ao contrário, sua marca identitária reside na diferenciação, uma vez
que se sustenta sobre os pilares da criatividade dos diversos
profissionais (figurinistas, cenógrafos, músicos, iluminadores,
maquiadores) envolvidos nas várias etapas de produção. Trata-se de
um trabalho que se caracteriza pela aglutinação, pela interação de
diversos artistas envolvidos na produção de um trabalho artístico
regido, como já se disse, pelas implacáveis leis da indústria cultural.
Leis que punem deslizes de diretores, atores e atrizes com o
esquecimento rápido e que fazem sucumbir, às vezes, também por
pequenos deslizes, mesmo aqueles que tenham sido alçados à
categoria de ídolos (MUNGIOLI, 2006, p. 148).

64
Nesse processo de produção, cada profissional traz seu
conhecimento e sua arte para um grande projeto feito a várias
mãos. “São notórios os benefícios que uma equipe bem afinada
pode trazer para a organização. Primeiro, porque uma equipe é
formada de pessoas, que trazem consigo histórias de vida e
competências diferentes, mas que se relacionam” (MARIANO;
ABREU, 2008, p. 6). A minissérie apresenta-se como uma
aproximação do texto original Dom Casmurro, escrito por Machado
de Assis em 1899 e ambientada no Rio de Janeiro durante o
Segundo Império no Brasil. Cabe ainda ressaltar que a minissérie
integrou o projeto Quadrante, um projeto idealizado por Luiz
Fernando Carvalho com o propósito de adaptar obras da literatura
brasileira para a televisão, cuja premissa era valorizar o imaginário
e a cultura como fatores imprescindíveis para o fortalecimento da
identidade brasileira.

Composição de personagem

A composição dos figurinos das personagens de obras


audiovisuais atua como instrumento da narrativa, sendo pensadas
desde a concepção do roteiro ou construção base das personagens,
refletindo como vão se comportar, suas nuances de personalidade,
suas evoluções ao longo da narrativa. A intenção é fazer com que o
espectador tenha informação mesmo quando não há diálogo
verbal, como afirma Newcomb (2010).

É verdade, obviamente, que a descrição e a narração na prosa trazem


consigo um peso ideológico similar. Mas a força das mídias visuais
está no fato de que num único quadro podemos encontrar camadas
de conteúdo ideológico apresentados instantaneamente com as
relações situadas, antes de que a ação ou o som comecem a sugerir as
respostas (NEWCOMB, 2010, p. 372).

O planejamento do uso das cores no figurino, por exemplo, se


concretiza estéticamente lançando mão de um repertório

65
ideológico e de um universo simbólico construído sócio-
historicamente. Nesse sentido, vale citar as palavras de Bakhtin, ao
discutir as relações imbricadas na composição do objeto estético:

Integram o objeto estético todos os valores do mundo, mas com um


determinado coeficiente estético; a posição do autor e seu desígnio
artístico devem ser compreendidos no mundo em relação a todos
esses valores. O que se conclui não são palavras, nem o material, mas
o conjunto amplamente vivenciado do existir; o desígnio artístico
constrói o mundo concreto (BAKHTIN, 2011, p. 176).

A linguagem empregada pelo diretor/autor integrou ao


discurso narrativo da minissérie uma linguagem híbrida na qual os
elementos se unem no âmbito da linguagem e trabalham ao longo
da trama como complementares. Sem esquecer que a polissemia do
signo na linguagem audiovisual torna quase impraticável o
controle da interpretação e significação “uma vez que as relações
entre signo e sociedade ocorrem entre interlocutores e não entre
emissor e receptor” (MOTTER; MUNGIOLI, 2007-2008, p. 163), a
partir do conceito bakhtiniano no qual interlocutor é constituído
nas relações de comunicação em que a significação se apresenta no
texto criado a partir da relação entre interlocutores (MOTTER;
MUNGIOLI, 2007-2008).
Os elementos que compõem o quadro fílmico, tais como
cenografia, iluminação, figurinos, fazem parte da construção de
uma narrativa visual. Cabe ressaltar que elementos como esses são
responsáveis também pela construção da personagem,
influenciando em como suas ações afetam diretamente a produção
sentido da trama e a construção dramática das personagens.

O figurino por sua vez deve ser considerado por uma variedade de
objetos cênicos. Pois se ele tem uma função específica, a de contribuir
para a elaboração do personagem pelo autor, constitui também um
conjunto de formas e cores que intervêm no espaço do espetáculo, e
devem, portanto, integrar-se a ele. (ROUBINE, 1998, p. 146).

66
O espaço cênico no qual a trama será retratada deve
contextualizar as personagens “delinear condições psicológicas e
existenciais dos personagens, esboçar caracteres de identificação
histórico-contextual, constituir uma atmosfera plástica de poder
sugestivo no interior de uma narrativa” (BULHÕES, 2009, p. 88-89).
As personagens ficcionais funcionam, em sua maioria, como a
forma mais comum para desenvolvimento do enredo. Sua
construção pode ser explanada na obra a partir de narração,
descrição de outros personagens, a partir de sua própria fala e
atuação, porém, em todos os casos, elementos como figurino,
cenário, maquiagem terão valor fundamental para a compreensão
da obra como um todo. “A atribuição de traços físicos, os do ator,
seu traje, sua maquiagem, seus traços psicológicos e morais
significados por seus atos e suas falas, seus gestos e seu
comportamento” (AUMONT; MARIE, 2003, p. 226) devem ser
levados em consideração no momento de construção de uma
personagem, pois estes irão auxiliar na formação, pois “sendo as
personagens seres ficcionais elas não são reais, todavia devem
ocasionar a sensação de realidade com porções de verossimilhança
e alguma veracidade”. (COMPARATO, 2009, p. 67). Dito de outra
forma, “cada personagem representa, então, uma linguagem e cada
linguagem representa uma inflexão ideológica relacionada à
contínua negociação social” (NEWCOMB, 2010, p. 372).

Cores

As formas de classificar as cores são diversas, mas, para iniciar


esse estudo, é preciso diferenciar as possíveis fontes de cor. As
cores-luz são formadas na natureza ou por fontes de luz artificiais.
São cores aditivas, ou seja, ao se encontrarem elas se mesclam e
adicionam uma à outra e ao misturar as cores primárias de síntese
aditiva a cor obtida é a luz branca. Suas cores primárias são:
vermelho, verde e azul (RGB). Já as cores pigmento são as
substâncias, a mistura de suas cores primárias (vermelho, amarelo
e azul) gera uma cor próxima ao cinza escuro, aproximando-se do

67
preto. Focamos nossos estudos na síntese aditiva, formada pelas
cores básicas vermelho, verde e azul, por serem cores-luz, as cores
do registro fílmico digital. Os três elementos identificados na
percepção das cores são: tom ou matiz, a luminosidade ou brilho e
a saturação ou pureza da cor. Em softwares de edição de imagem é
possível achar a sigla HSL (hue, saturation e lightness) para designar
esses três elementos. Tom ou matiz seriam as cores (vermelho,
laranja, amarelo, verde etc.), são definidas a partir do comprimento
de onda (AUMONT, 1993, p. 25) de cada uma. O brilho ou
luminosidade é medido pela presença de luz no matiz, ou seja,
quanto mais luz, mais próximo do branco estará a cor, quanto
menos presença de luz, mais próxima estará do preto. Saturação ou
chroma pode ser designada como a intensidade da cor ou sua
pureza. A intensidade da cor é maior quanto mais pura ela for.
“Quanto mais estreita a faixa dos comprimentos de onda, mais
pura a cor. Forte, cores vivas são referidas como cores saturadas.
[...] Quando diferentes comprimentos de onda estão presentes, diz-
se que a tonalidade é mais fraca, ou não saturada” (HIRSCH, 2011,
p. 8, tradução nossa1).
Conhecida também como densidade e concentração da cor, a
saturação está ligada com a pureza da cor. Os estudos de Farina,
Bastos e Perez (2011) apontam que a saturação ocorre “quando em
uma cor não se adiciona nem o branco, nem o preto, mas ela está
exatamente dentro do comprimento de onda que lhe corresponde
no espectro solar” (FARINA; BASTOS; PEREZ, 2011, p. 71). A partir
da variação da saturação na imagem haverá a alternância da
vivacidade e da pureza das cores. As imagens saturadas apontam
uma maior expressividade e criam uma sensação de maior
realidade. A partir dessa contextualização iniciamos o

1 Texto original: “The narrower the band of wavelengths, the purer the color.
Strong, vivid hues are referred to as saturated colors. […] When different
wavelengths are present, the hue is said to be weaker, or desaturated” (HIRSCH,
2011, p. 8).

68
desenvolvimento da análise das personagens Bento e Escobar ao
longo da narrativa da minissérie.

Signo cromático

Compartilhando com Bruner e Weisser (1995) a compreensão


de que a verossimilhança é o objetivo último de qualquer narrativa,
discutimos como as cores adquirem valor simbólico, portanto,
semiótico em uma produção audiovisual. Conforme afirmam
Bakhtin/Volochinov (2009) o ser humano se situa no mundo e nele
trabalha por meio de signos e, portanto, do simbólico, e que, por
conseguinte, sua aprendizagem sobre o mundo se dá a partir dessa
construção. Com isso, observamos como as cores, em sua função de
signos, constituem–se ao longo da minissérie Capitu.
Assim como aponta Gombrich (1999), não cabe aqui discorrer
sobre o símbolo visual de valor fixo, considerando que as cores têm
formação a partir de metáforas visuais, moldadas pela elasticidade
do imaginário humano.

A possibilidade da metáfora decorre da infinita elasticidade da


mente humana; atesta sua capacidade de perceber e assimilar que
experiências novas são modificações de outras mais antigas, a
aptidão de descobrir equivalências nos fenômenos mais disparatados
e de substituir um por outro qualquer. Sem esse processo constante
de substituição, não seriam possíveis a linguagem, nem a arte, nem
mesmo a vida civilizada (GOMBRICH, 1999, p. 14).

O produto audiovisual, então, exerce o papel de ponto de


partida do imaginário e do simbólico para elaborar valores para
seus elementos visuais, a partir do vocabulário estético do
espectador, mediado pelo tempo e espaço no qual o indivíduo vive.
Baxandall (1991), por exemplo, discorre sobre o estudo do código
teológico das cores no século XV, no qual o branco ora era
identificado como pureza, vermelho como caridade, amarelo como
dignidade e preto como humildade, ora também podendo ser o

69
vermelho identificado como fogo, azul como ar e verde como água,
mas essas relações eram formadas levando-se em consideração a
bagagem cultural (BAXANDALL, 1991, p. 78).
Aproximando essa perspectiva do objeto em estudo, podemos
pensar que a cor, associada a uma narrativa televisual através do
figurino e da cenografia, funciona como um signo ideológico, pois
seu entendimento depende de um horizonte social (BAKHTIN/
VOLOCHINOV, 2009), ou seja, da criação ideológica e da época em
que o indivíduo se encontra, propiciando uma interação entre
indivíduos e criando uma mediação. Seguindo a concepção de
Bakhtin/Volochinov (2009), o produto ideológico terá sempre seu
significado situado fora de si mesmo, ou seja, situado no contexto
sócio-cultural de um grupo social.
Compreende-se também que problemas com a comunicação
podem ocorrer e que esses geralmente se remetem a um processo
de refração, no qual uma mensagem é emitida, mas não é recebida
do modo que foi esperado pelo seu locutor. O signo ideológico está
aberto a tais situações por se tratar de uma construção social e estar
cercado de grupos sociais distintos com seus respectivos
repertórios. Como reforça Emerson (2010) em seus estudos sobre
Bakhtin, as experiências do homem não podem ser repetidas
igualmente de forma que dois seres tenham uma formação social
idêntica uma vez que “todo ato de compreender envolve também
um ato de traduzir, além de uma negociação de valores”
(EMERSON, 2010, p. 69).
Assim, podemos pensar as cores como signos e como
constituintes da narrativa audiovisual na qual adquirem funções
expressivas importantes tanto do ponto de vista estético quanto do
ponto de vista de compreensão da construção de personagens,
sendo única para cada indivíduo.

Cada signo ideológico é não apenas um reflexo, uma sombra da


realidade, mas também um fragmento material dessa realidade.
Todo fenômeno que funciona como signo ideológico tem uma
encarnação material, seja como som, massa física, como cor, como

70
movimento do corpo ou como outra coisa qualquer
(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2009, p. 33).

Dessa maneira, a cor constitui-se como elemento narrativo a


partir de sua concretude como signo ideológico construído por
meio das relações sociais que se caracterizam, pelo constante
movimento de reflexo e refração (BAKHTIN/VOLOCHINOV,
2009) que, por sua vez, caracteriza a construção ideológica e a
própria experiência estética do homem como ser social. E
exatamente por se tratar de uma construção ideológica, esse signo
relaciona-se intrinsecamente a “critérios de avaliação ideológica”
(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2009, p. 32) e por isso pode distorcer
a realidade, assim como refleti-la e refratá-la.
O significado das cores em meio à narrativa depende de seu
valor simbólico, ideológico. O vermelho só pode ser considerado
uma cor que remete ao amor, paixão, romance em razão de fazer
parte de uma construção ideológica da sociedade. Da mesma
forma, outro grupo social poderá considerá-lo uma cor que remete
à morte, ao sangue. Essa possibilidade de mutação do signo
ideológico o torna um “instrumento de refração e de deformação
do ser” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2009, p. 48).
Com tais variáveis, a composição da poética da minissérie leva
em conta o caráter ideológico das cores buscando estabelecer uma
comunicação baseada no horizonte social do interlocutor, ou seja, a
poética trazida pelas cores e pela exploração de seus sentidos
perpassa pela construção ideológica e temporal do interlocutor,
sendo assim alicerçada com base em seu repertório.
A polissemia do produto televisivo atua para que a construção
de sentidos feita pelo indivíduo no momento de sua fruição possa
aproximar o produto das práticas e crenças do telespectador a
partir da influência da cultura na qual está imerso. Trata-se de uma
relação construída por meio de signos que se inserem no horizonte
social de uma coletividade, pois, conforme lembra Bakhtin, “no
processo da relação social, todo signo ideológico, e portanto
também o signo linguístico, vê-se marcado pelo horizonte social de

71
uma época e de um grupo social determinados”
(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2009, p. 45).
Esse horizonte social citado está diretamente ligado aos
objetos particulares encontrados em cada segmento da sociedade,
tornando-se objetos com valores particulares. E para a relação
social com o signo ideológico são necessárias condições econômicas
que tornem o signo socialmente pertinente, criando uma
comunicação ideológica (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2009). É
dado, dessa forma, significação aos conteúdos produzidos e
consumidos pelos espectadores, formando-se através da
apreciação, a qual indica se o signo entrou no “horizonte social dos
interlocutores” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2009). Assim, “é à
apreciação que se deve o papel criativo nas mudanças de
significação. A mudança de significação é sempre, no final das
contas, uma reavaliação: o deslocamento de uma palavra
determinada de um contexto apreciativo para outro”
(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2009, p. 138–139).
Tal conjuntura de reavaliação está na reformulação do signo e,
portanto, nos processos de produção de sentido que se
desenvolvem com base nessa semiose. A percepção das cores do
figurino das personagens em análise encontra-se, dessa forma,
condicionada ao processo de compreensão relacionado ao
horizonte social e, portanto, ao signo ideológico explicitado por
Bakhtin/Volochinov (2009). A partir desse embasamento iniciamos
a análise da minissérie.

Breve contextualização histórica

Antes de iniciar a descrição do processo de análise, é preciso


situar o momento histórico no qual a trama está inserida. A história
narrada no livro se passa no século XIX, pelos dados fornecidos por
Machado de Assis entende-se que Bento teria nascido na década de
1840. Nesse momento o Brasil passava por conta das mudanças
iniciadas com a chegada de D. João V e de sua Corte ao Rio de
Janeiro. Com a chegada do imperador D. João há a abertura dos

72
portos brasileiros, “áreas – artística, cultura, científica, arquitetônica,
comercial e outras -, começam a ocorrer uma febre de novos projetos,
construções, inaugurações e importações das últimas novidades da
moda europeia” (CHATAIGNIER, 2010, p. 75).
Com as influências internacionais entrando no Brasil a “colônia
passiva, sem vida própria, inteiramente dependente da metrópole,
passa a ser o centro de decisão de todo o império português”
(CHATAIGNIER, 2010, p. 75-76). Nesse momento a moda francesa
era a principal fonte de tendências no vestuário. Em 1822 é decretada
a Independência do Brasil, dessa maneira o território possuía
emancipação política de Portugal. “A miscigenação cultural que
temperou o vestuário com influências mouras, portuguesas,
indígenas e africanas [...]. Pode-se dizer que houve um casamento
com a tradição, o exotismo e a sensualidade” (CHATAIGNIER, 2010,
p. 76). Nesse período há mudanças não somente no Brasil, mas como
também na Europa. Há a “centralização, internacionalização e,
paralelamente, democratização da moda” (LIPOVETSKY, 2009, p.
85). A partir desse panorama temos a produção da minissérie Capitu,
ambientada no Rio de Janeiro do século XIX. A análise dos figurinos
se dá a partir desse contexto histórico retratado na minissérie.

Bento

Cabe especificar que a personagem Bento que será analisada


no presente artigo não é o narrador da obra literária Bento Santiago,
também nomeado de Dom Casmurro, mas sim a personagem que
ganha vida na minissérie. Nossa análise o acompanha desde sua
fase adolescente, quando aparece como Bentinho, até a sua fase
adulta, quando se casa com Capitu e, posteriormente, torna-se pai.
Cronologicamente, a primeira aparição de Bento na
minissérie, como personagem e não como o narrador Dom
Casmurro, é uma lembrança do dia de seu casamento, ao lado de
sua recém-esposa, Capitu. Bentinho é apresentado pelo narrador
ainda na infância, com roupas claras e um sorriso inocente no rosto.
O primeiro episódio da minissérie é utilizado para apresentação da

73
situação e personagens. Assim, o principal foco é o início do
romance entre Capitu e Bentinho. Destaca-se nesse episódio a
promessa que sua mãe fizera para que ele se tornasse padre e, por
conseguinte, a não aceitação por parte da família do amor entre os
dois jovens. É a partir da primeira aparição da personagem que o
público começa a localizá-lo na narrativa e a construir sua
significação. Tanto a atuação quanto o cenário e a caracterização
fazem parte dessa construção inicial. Nesse quadro, "o figurino
caracteriza mais do que somente o visual, ajuda a construir o
caráter e a identidade dos personagens numa esfera muito mais
ampla em termos de localização do espaço e tempo” (WAJNMAN;
ARRUDA, 2008, p. 6). Entre os principais elementos da
caracterização da personagem nesse momento da história estão os
calções bege e os coletes com derivações do azul. A gravata também
varia entre cores claras como o bege e marrom claro. Os sapatos na
parte da infância são brancos e há uma medalhinha presa na gola
do colete. Observamos calções e meias até o joelho juntamente com
sapatos brancos, “os calções até os joelhos continuaram sendo
usados, conservando a mesma forma que haviam tido em 1790”
(KÖHLER, 2009, p. 482).
Esse primeiro episódio é marcado pela aproximação de Bento
e Capitu, há a confissão de amor entre os dois e também a obrigação
imposta pela mãe de Bentinho para o filho se tornar padre.
Observamos a presença marcante de vestimentas claras na paleta
de cores do figurino, por ser a fase de apresentação de uma
personagem jovem e inocente que começa a sentir as primeiras
manifestações do sentimento amoroso.
No início do segundo episódio, Bentinho já se encontra
envolvido afetivamente com Capitu, mas a iminência de ser
mandado para o seminário continua a ameaçar o amor entre
ambos. Em seguida dá-se início à sequência que mostrará o
primeiro beijo do jovem casal. Nela, os trajes de Bentinho
apresentam uma variação de cores maior. Seu calção é de pano e
cor marrom claro, assim como uma gravata de lenço que usa na

74
gola da camisa, seu colete tem um tom mais forte de azul e por
baixo veste uma camisa branca até os punhos.
A personagem ainda não aparenta mudança visual direta após
o acontecimento de “se tornar um homem”. Até o final do segundo
episódio Capitu e Bentinho vão aproveitar a descoberta do amor e
a aproximação amorosa. Contudo Bentinho, apesar de sua falta de
vocação para o celibato, não consegue escapar de estudar no
seminário e, ao final do episódio, a personagem introduz uma nova
vestimenta que estará presente, principalmente no terceiro
episódio: a batina do seminário e a roupa para entrar e sair do
seminário. Um figurino completamente preto – sapatos, calça,
terno, colete e gravata –, apenas com uma camisa branca por baixo
do colete. Com a despedida da família se encerra o momento de
despedida e Bentinho se encaminha para o seminário.
Assim, no segundo episódio há um Bentinho que vive o amor
pela primeira vez e se “torna homem”. A derivação do azul é muito
presente nos coletes, as calças derivam entre bege e branco, muitas
vezes as colorações entre esses matizes ocorrem por causa da
iluminação e tratamento das cenas. Há também a presença do
marrom e ao final o preto aparece pela primeira vez de maneira tão
intensa, marcado por uma exigência da vestimenta do seminário.
O terceiro episódio se inicia com a apresentação da
personagem Escobar, que no futuro irá se tornar confidente e
melhor amigo de Bentinho. O figurino, a partir desse momento da
história, terá a presença marcante do uso da batina no seminário de
São José, no qual Bentinho passa a estudar.
As vestes são formadas por uma peça única preta que cobre
seu corpo por inteiro, a batina, por baixo é possível ver uma blusa
branca de mangas longas. Cabe ressaltar que a batina é uma veste
religiosa e por si só já é um “figurino”, pois caracteriza uma pessoa
em meio a uma estrutura religiosa e hierárquica. “Nas cerimônias
religiosas ou místicas, a vestimenta dos participantes cumpre o
papel de fio condutor por onde passa o transcendente. O traje induz
à incorporação de “personagens” dentro do círculo ritual” (LEITE;
GUERRA, 2002, p. 62).

75
O episódio termina com Bentinho vestindo a batina iluminada
por uma luz vermelha. A presença da personagem no seminário faz
com que a paleta de cores desse episódio seja maior. A cor preta,
principalmente, aparece com maior frequência. Em casa, contudo,
Bentinho continua usando um traje com variações do bege e do azul.
No começo do quarto episódio, ainda em tons de bege e azul,
Bentinho escuta um pedido de desculpas de Capitu por causa de
seu ciúme. Os principais adereços em seu traje são a medalhinha
na lapela do colete e uma correntinha de prata que guarda no bolso.
Ao retornar ao seminário Bentinho veste novamente batina preta
com camisa branca. Nessa sequência Bentinho troca confidências
com Escobar e conta sobre seu romance com Capitu, assumindo
que não tem pretensão de se tornar padre.
Pouco tempo depois a personagem volta a visitar a família,
usando trajes da saída do seminário. Um terno e calças pretas, com
colete e gravata também pretos. Uma característica das mangas na
época é que “eram tão justas quanto possível, mas chegavam
somente aos punhos. A abertura das longas e estreitas abas
começava no meio do peito, de tal modo que o casaco não mais
podia ser abotoado” (KÖHLER, 2009, p. 502).
Graças às manobras da personagem José Dias, um agregado de
sua família, Bentinho não se ordena padre, saindo do seminário com
pouco mais de 17 anos de idade, quando a família decide que ele deve
estudar Direito, em São Paulo. Bentinho continua usando roupas
escuras. Na linha narrativa é sua última aparição como jovem. Aos 22
anos de idade se torna bacharel em Direito, e ficamos sabendo que
mesmo com o problema da distância entre Rio e São Paulo, ele não
deixou de se comunicar com Capitu por meio de cartas.
Ao retornar ao lar, Bentinho se apresenta com caracterização
diferente. Trajado com roupas escuras cobertas por uma capa
longa, pouco abaixo da cintura, e com cabelos mais curtos. Quando
pediu licença, a sua mãe, para casar com Capitu, Bentinho vestia
cinza e usava uma gravata com matiz azulado. Outro elemento que
se fará presente nessa nova fase de Bento é a cartola, na mesma cor
da capa que traz nos ombros. Em seguida a cartola volta a aparecer

76
nas vestimentas de Bento. Sua caracterização mostra elementos
mais escuros como o smoking, cartola e colete pretos. Na gola da
camisa branca, um lenço branco completa o figurino.
Observa-se que diferentemente de parte da infância, na qual
os ternos eram justos ao corpo, agora a costura da casaca aparece
mais reta, essa “chegou aos poucos a sua posição natural, e ainda
que por algum tempo o casaco se tenha conservado justo, as
concepções de conforto da classe média terminaram por triunfar”
(KÖHLER, 2009, p. 499). A última cena do quarto episódio mostra
Bento indo visitar José Dias acompanhado de Capitu. O colete
estampado ainda com a cor azul, o terno cinza apresenta uma
coloração marrom por causa da iluminação amarelada.
O quinto episódio começa com Bentinho e Capitu, já casados
há dois anos. Bentinho tem vestimentas cinza claro e a minissérie
constrói a narrativa que o casal aparenta felicidade na união. A cena
seguinte os mostra em um baile - para a ocasião Bento veste um
smoking preto com blusa, gravata, luvas e colete brancos. De acordo
com Köhler (2009, p. 512), “nos bailes e nas grandes ocasiões os
homens usavam gravatas de cetim branco. Para o dia-a-dia, eram
feitas de tecido mais escuro e barato e não tinham laço na frente”.
Diferente das roupas claras de infância que usava, Bento agora
se veste constantemente com terno e colete preto e seu sentimento
de ciúme e desconfiança aumenta. Na primeira cena em que
aparece com o filho, Bento volta a usar um traje mais claro. Trata-
se de um terno cinza com gravata em tons de azul e roxo. No
entanto, logo em seguida, a próxima cena já o traz novamente em
um terno preto com gravata cinza. Os cortes são rápidos, mas
percebe-se a troca de figurinos entre as cenas. Em seguida há a
cerimônia de batizado de Ezequiel, Bento e Escobar estão juntos na
cena. O terno de Bento é cinza e a gravata cinza.
Nesse momento da história há um salto de cinco anos na
narrativa. Ezequiel já está crescido e Bento brinca com o filho
usando trajes semelhantes aos vistos na sequência anterior: terno
preto com gravata cinza e sapatos e meias pretas. Na sequência,

77
observamos um Bento que volta a usar a cor azul, repetindo um
colete azul estampado usado em sua volta de São Paulo.
Pouco tempo depois da cena anterior, Bento recebe a notícia que
Escobar havia se afogado e falecera. No velório do amigo, Bento
aparece usando um colete com tons azulados e gravata cinza. Já na
sequência, ocorre o enterro de Escobar, no qual Bentinho veste preto,
com exceção da camisa, tem um colete preto estampado, gravata
larga preta, capa e cartola também pretas. Nessa cena, a tristeza de
Capitu à beira do caixão faz com que o ciúme de Bento aflore
novamente. Após a morte do amigo, Bento volta a alimentar a ideia
da semelhança entre Ezequiel e Escobar, e isso afeta sua relação tanto
com Capitu quanto com o filho, imaginando que o filho seja fruto da
traição de Capitu com seu melhor amigo. Bento passa a ser frio e mal
humorado a ponto de Capitu perguntar sobre seu comportamento
arisco. Nessa etapa do episódio, Bento usa tons escuros de azul e
cinza. Bento e Capitu acabam brigando e ela vai morar na Europa
com o filho. Esse fato seguido da morte de sua mãe faz com que a
personagem mantenha a paleta de cores nos tons escuros.
Próximo ao fim da história, Bento fica cada vez mais parecido
com o narrador, Dom Casmurro, mas apesar das desconfianças
continua usando como acessório a aliança de casamento na mão
esquerda. Desse momento até o final da narrativa Bento vai se
tornando Dom Casmurro, recolhido da vida social. Ezequiel, seu
filho com Capitu, retorna da Europa para visitar o pai, Bento está
caracterizado com roupas pretas e gravata com tons azulados e ao
final se transforma definitivamente no Dom Casmurro, o narrador.

Escobar

Escobar é uma personagem que não faz parte da narrativa


desde seu início. Ele entra na história a partir do momento que
Bentinho passa a estudar no seminário. Sua apresentação na trama
acontece na primeira cena do terceiro episódio da minissérie. Filho
de comerciante, Escobar é três anos mais velho que Bentinho.

78
Seu figurino é o mesmo do usado pelos colegas de seminário,
uma batina preta de mangas longas. A veste tem uma fileira de
botões, segundo a tradição católica 33 botões, e uma camisa branca
por baixo da peça única. O detalhe de sua caracterização é uma
pulseira no braço direito e o cabelo dividido para o lado. “A batina
de Escobar [...] tem uma saia com diâmetro propositalmente maior
- equivalente a uma saia feminina - para tornar os movimentos do
personagem mais sedutores na visão de Bentinho. Para fazer
prevalecer a unidade da obra, foi abolido o ângulo reto nas roupas”
(MEMÓRIA GLOBO).
Nas cenas seguintes Escobar visita Bentinho em sua casa e
aparece de terno e calça cinza claro, blusa branca e sapato e capa
preta. “A capa longa não era mais fechada na frente com uma ou
duas fileiras de botões e casas; em vez disso, largas faixas de tecido,
presas nas extremidades dianteiras da capa, traziam, de um lado,
os botões e, do outro, as casas” (KÖHLER, 2009, p. 514-515). O
detalhe de seu figurino é a gravata na cor vinho, elemento que irá
se repetir em diversos momentos da caracterização dessa
personagem. “Um simples acessório pode fazer muito por um
personagem e, sutilmente, pontuar momentos decisivos em sua
trajetória” (MEMÓRIA GLOBO, 2007, p. 23).
Escobar aparece novamente na minissérie no quarto episódio,
quando Bentinho retorna ao seminário. Durante uma breve
conversa, os dois trocam confidências e Escobar relata que também
não tem intenção de se tornar padre, sua verdadeira paixão seria o
comércio. A amizade dos dois se fortalece e Escobar volta a visitar
a casa de Bentinho. Novamente percebe-se a presença do elemento
em cor vinho na gravata, enquanto o restante do traje é uma
derivação do cinza. Enquanto Bentinho vai estudar Direito,
Escobar se torna negociante de café. Em uma visita a Dona Glória,
mãe de Bentinho, Escobar veste roupas escuras com uma gravata
vinho e capa preta.
O traje masculino segue influências da formação cultural e
econômica da época pós Revolução Industrial e formação da classe
média. Os trajes masculinos tornam-se discretos e neutros. “O traje

79
masculino neutro, escuro, austero, traduziu a consagração da
ideologia igualitária como ética conquistadora da poupança, do
mérito, do trabalho das classes burguesas” (LIPOVETSKY, 2009, p.
105). Ao final do quarto episódio observamos que mesmo com a
mudança de idade, a caracterização em figurinos escuros
escolhidos para Escobar se mantém.
Conforme a narrativa avança Escobar se casa e tem uma filha
com sua esposa, contudo havia a suspeita ter tido uma amante. No
batizado de Ezequiel, filho de Bento com Capitu, Escobar volta a
usar o colete vinho, com uma gravata larga preta e um terno preto
brilhoso. A cena seguinte faz referência à morte de Escobar, que se
afoga no mar no ano de 1871. No momento do afogamento, Escobar
estava caracterizado com um traje de natação listrado branco e
vermelho escuro. O comprimento do traje ia até a altura dos joelhos
e não cobria os braços. “O mar de ressaca em que Escobar se afoga
foi feito pelo movimento de um enorme plástico balançado pelos
próprios atores” (MEMÓRIA GLOBO). Seu enterro aparece na
sequência da cena. Assim como na maior parte das cenas
anteriores, o elemento vinho se apresenta na gravata.
Desde o enterro de Escobar, onde Capitu chorou por sua
morte, Bento havia voltado com as suspeitas de traição de sua
esposa com seu amigo. A convivência com seu filho Ezequiel o fez
questionar a paternidade, pois o achava cada dia mais parecido
com Escobar. Agora em seus pensamentos imaginava o falecido
amigo sempre que pensava na possibilidade de infidelidade.
Trajando as mesmas vestes de seu enterro, Escobar aparece nas
visões de Bento. Anos depois, quando Ezequiel vai visitar o pai,
Bento volta a ter visões do amigo falecido, sendo essa a última
aparição de Escobar.

Considerações

A partir da análise realizada, foi possível identificar o uso das


cores das vestimentas como elementos que se articulam na
construção de uma narrativa audiovisual complexa que alia

80
características de diversas linguagens para contar a história de um
dos maiores clássicos da literatura brasileira, o romance Dom
Casmurro. Observa-se que, ao longo da narrativa, a caracterização
das personagens se altera conforme a história se desenha, na
infância e na vida adulta as personalidades se modificam, assim
como o figurino.
Conforme a narrativa avança, há uma demonstração de
isolamento de Bento, assim como elementos que remetem a uma
personagem com personalidade de difícil convivência. Suas
vestimentas, quando ordenadas cronologicamente, do primeiro ao
quinto episódio, vão escurecendo e perdendo as cores claras.
Já a paleta de cores da caracterização de Escobar se mantém
praticamente estável, por sua personalidade misteriosa e o ponto de
vista do narrador de que Escobar teria sido amante de sua esposa. Um
ponto de destaque para essa personagem é o uso da cor vinho em
diversos elementos ao longo da narrativa. Uma cor associada à
sedução e ao mistério. Nos demais momentos para reforçar o mistério,
as vestimentas da personagem se mantém em tons escuros.
A análise realizada reforça a compreensão de que o produto
audiovisual é criado e desenvolvido com auxílio de áreas diversas que
convergem na produção de uma mesma peça audiovisual
possibilitando a produção de sentido por meio da relação que se
estabelece entre diversos elementos em sua materialidade e a sua
construção simbólica como signos ideológicos (BAKHTIN/
VOLOCHÍNOV, 2009). Profissionais com repertórios variados e
especialidades distintas traduzem palavras e motivações em imagens,
elas também prenhe de signos ideológicos. Convergindo áreas e
linguagens em uma obra audiovisual produtora de sentido complexo.

Referências

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de%20Moda%20-%202008/38610.pdf>. Acesso em: 02 abr. 2021.

83
84
O espaço-tempo das cidades distópicas da série 3%1

Flavia Suzue de Mesquita Ikeda


Maria Cristina Palma Mungioli

Em 2016, quando estreou sua primeira série original brasileira,


3%, a Netflix, já na condição de principal serviço de assinatura de
vídeo sob demanda – Subscription Video on Demand (SVoD) – em
nível mundial, dava continuidade à estratégia de produção de
conteúdo original, iniciada com House of Cards (2013-2017).
Estratégia que busca não apenas renovar/aumentar seu catálogo,
mas significa maior independência da empresa em relação a
produções oriundas da chamada televisão tradicional (broadcasting
e narrowcasting) e sujeitas a negociações cada vez mais difíceis
(LOTZ, 2018, p. 123) para renovação dos contratos de
licenciamento. A série 3%, criada por Pedro Morelli e que teve uma
primeira versão de episódio piloto veiculada no YouTube, em 2009,
apresentou ao público da Netflix uma versão local do fenômeno
das distopias seriais que já vinha se destacando com sucesso no
mercado editorial, no cinema, na televisão e nas webséries na
última década.
Considerando esse cenário, ao longo do capítulo analisamos
as cidades imaginadas (Continente, Maralto e Concha) na ficção
distópica 3%, com base no conceito de cronotopo. Definido por
Bakhtin (2010; 2018), o conceito se refere à relação indissociável
entre tempo e espaço como instância por meio da qual é possível

1 O presente texto possui algumas modificações em relação ao artigo publicado


com o mesmo título originalmente na Revista Líbero, disponível em O espaço-
tempo das cidades distópicas da série 3% | Ikeda | LÍBERO (casperlibero.edu.br),
acesso em 29 jan. 2023. No momento da escrita do artigo a primeira autora era
bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(Capes) – Código de Financiamento 001. A segunda autora é bolsista
Produtividade 2 do CNPq (Processo 314255/2020-6).

85
apreender a obra artística tensionada pela perspectiva de sua
construção histórico-social que se manifesta por meio do
acabamento estético e temático. No nível figurativo, as cidades
imaginadas não só ambientam as ações, mas concretizam ideais e
ideologias e são expressões de angústias, esperanças, receios,
medos e desejos presentes na sociedade (BARROS, 2011). A série se
organiza em torno de uma narrativa que especula sobre um Brasil
do futuro, no qual a divisão de classes não se manifesta apenas por
meio da desigualdade simbólica ou mesmo material, mas se mostra
espacialmente, com a separação geográfica entre o Continente,
paupérrimo, e a utópica ilha Maralto, onde não há pobreza, fome
ou doença.
Inicialmente, destacamos o cronotopo como conceito
fundamental para estudar as relações espaciais e temporais no
interior de obras de gêneros complexos como romance, filme e
ficção televisiva, e sua articulação com a realidade histórica e social
do ambiente em que a obra é concebida, materializando concepções
de mundo por meio do acabamento temático e estético. Bakhtin
(2010, p. 211) explica:

No cronotopo artístico-literário ocorre a fusão dos indícios espaciais


e temporais num todo compreensivo e concreto. Aqui o tempo
condensa-se, comprime-se, torna-se artisticamente visível; o próprio
espaço intensifica-se, penetra no movimento do tempo, do enredo e
da história.

Segundo Mungioli (2020, p. 253), “a perspectiva de análise por


meio do conceito de cronotopo insere trama, personagens e
conflitos em situações (do cotidiano) que desnudam os embates
sociais e tensionam visões de mundo e conflitos inerentes à vida
social em sua perspectiva de construção histórica”. O cronotopo
das cidades distópicas começa a ser investigado com base na
conceituação de distopia, no horizonte dos gêneros literários, como
negação da utopia, sendo esta o sonho do mundo ideal, que reflete
os anseios e as vozes sociais e históricas de uma época. “As

86
narrativas utópicas e depois as distópicas são narrativas de ideias
nas quais o espaço e a construção de mundo têm proeminente
função estrutural”2 (TERENTOWICZ-FOTYGA, 2018, p. 10,
tradução nossa). Elementos cronotópicos essenciais das distopias –
que Terentowics-Fotyga identifica no romance 1984 e que
contribuem para esta análise – são as oposições entre indivíduo e
poder do Estado, corpo e mente, alto e baixo, centro e periferia,
passado e presente, natural e urbano e, finalmente, entre sinais
verdadeiros e falsos (como a aparente perfeição ou o falso
equilíbrio social).
No lugar do simples deslocamento espacial que leva as
personagens das utopias clássicas a conhecer, em países e terras
distantes, outras possibilidades de sociedades onde problemas e
conflitos foram superados, as distopias implicam um deslocamento
temporal em direção ao futuro. Este, entretanto, não é um tempo-
espaço de superação, mas resultado do agravamento das mazelas
do mundo que habitamos.
O gênero distópico, cuja origem remonta ao século XIX, teve
grande penetração na literatura e no cinema ao longo de todo o
século XX. Nas duas primeiras décadas do século XXI, as
produções desse gênero passaram por ampla renovação e
reposicionamento, com a popularização de séries de romances
distópicos voltados ao público jovem – como a trilogia Jogos
Vorazes, de Suzanne Collins (2008) – e com o sucesso mundial de
séries de televisão, como Black Mirror (Channel 4, 2011-2014;
Netflix, 2011-presente) e Handmaid’s Tale (Hulu, 2017-presente). No
Brasil, em 2019, estrearam dois filmes distópicos nacionais: Divino
Amor, de Gabriel Mascaro, e Bacurau, de Kleber Mendonça Filho,
ambos premiados em festivais internacionais.
O modelo de negócios da Netflix passou por diversas
transformações desde sua fundação, em 1997 (quando surgiu como

2No original: “Utopian, and later on dystopian, narratives are narratives of ideas
in which space and world building is given a prominent structural function”
(TERENTOWICZ-FOTYGA, 2018, p. 10).

87
locadora de DVDs com entrega pelos correios), as quais
acompanharam o desenvolvimento da internet, a aceleração da
globalização e das possibilidades de expansão multinacional das
empresas e de distribuição de produtos culturais que já havia
impulsionado uma cultura de séries (SILVA, 2014) em diversas
partes do mundo. A expansão internacional da Netflix não foi
apenas em relação à oferta de serviços, mas também como
produtora de conteúdos próprios para suprir a demanda constante
de renovação e ampliação do catálogo (LEVINSON, 2019). Além da
produção de séries originais iniciada em 2012, nos Estados Unidos,
a Netflix começa a produzir séries originais em alguns países fora
do eixo Estados Unidos-Reino Unido, dando início a sua “global
library” (NETFLIX, 2017, p. 3). Essa estratégia resultou na primeira
produção brasileira em 2016, com a série 3%.
A seguir, analisamos os cronotopos das cidades da série 3%,
cada uma apresentada em uma temporada diferente, ampliando
possibilidades de desenvolvimento de motivos e enredos, que se
revelam como instâncias de enunciação por meio das quais a série
produz sentidos e se concretiza como exemplar do gênero distópico.

Cronotopo e enunciação em séries de televisão

Para Bakhtin (2010, p. 212), na produção artística e literária, as


definições de espaço e tempo são inseparáveis e recebem sempre
um “matiz emocional”. Dessa maneira, a obra está impregnada de
valores cronotópicos, que a determinam em torno da relação com a
realidade e que, ao adquirir certa regularidade interdiscursiva em
diferentes obras, determinam os gêneros na literatura. Bakhtin se
propõe a analisar cronotopos com características tipológicas
estáveis que determinam os gêneros mais característicos do
romance em dados momentos, pois lhe interessa contemplar os
significados dos diferentes cronotopos como motivadores de temas
e desenvolvimentos dos enredos, posto que toma a relação tempo-
espaço como “categoria conteudístico-formal” da literatura.

88
Ao tomar o emprego da linguagem como fenômeno social, que
não se materializa de forma autônoma, mas a partir da interação
dialógica, das trocas determinadas pelo contexto amplo dos
indivíduos envolvidos e pelo contexto imediato de cada
enunciação, o autor destaca como cada enunciado reflete o
ambiente, a situação e a finalidade na comunicação de cada grupo
ou campo de atividade humana por seu tema ou conteúdo, pelo
estilo e pelas características composicionais empregadas. “Os
enunciados e seus tipos, isto é, os gêneros discursivos, são correias
de transmissão entre a história da sociedade e a história da
linguagem” (BAKHTIN, 2018, p. 268). Nas situações de
comunicação imediata se manifestam os gêneros primários,
enquanto gêneros como o romance ou o drama são secundários,
complexos, que incorporam diferentes gêneros e discursos
primários nos seus diálogos internos, histórica e socialmente
localizados. A determinação do cronotopo parte, especialmente, da
essência temporal recorrente em determinadas obras de um
período (BAKHTIN, 2010, p. 212) conforme explica o autor:

Uma vez que todos os elementos se determinam mutuamente, um


determinado princípio de enformação da personagem está vinculado
a um determinado tipo de enredo, a uma concepção de mundo, a
uma determinada composição do romance (BAKHTIN, 2018, p. 205).

Bemong e Borghart (2015) resumem o cronotopo bakhtiniano


por meio da ideia de que, além dos eventos e das falas no interior
da diegese, em um texto narrativo há a construção de um mundo
ficcional particular. Embora reafirmem que Bakhtin nunca deu
uma conceituação definitiva sobre as camadas que compõem o
cronotopo, os autores identificam quatro níveis de significado: (1)
essência do enredo; (2) significado representacional, figurativo; (3)
distinção dos gêneros; (4) significado semântico.
Para análise dos enunciados artístico-literários, aqui
equiparados às séries televisuais, interessam os valores
cronotópicos, como organizadores de temas e eventos, e os valores

89
figurativos, quando o cronotopo é o palco no qual se materializam
em imagem e se desenrolam, em ações, as ideias, as reflexões e os
conceitos intencionados pelo autor.

Dessa forma, o cronotopo como materialização privilegiada do


tempo no espaço, é o centro da concretização figurativa, da
encarnação do romance inteiro. Todos os elementos abstratos do
romance – as generalizações filosóficas e sociais, as ideias, as análises
das causas e dos efeitos etc.- gravitam ao redor do cronotopo, graças
ao qual se enchem de carne e de sangue, se iniciam no caráter
imagístico da arte literária. Este é o significado figurativo do
cronotopo (BAKHTIN, 2010, p. 356).

Em uma mesma obra, encontram-se numerosos cronotopos, os


quais, por sua vez, podem incluir outros pequenos cronotopos e
inter-relações. Entre as inter-relações, encontra-se a posição sócio-
histórica do enunciador/autor e espectador/leitor, posto que “a
relação tempo-espaço é dinâmica e organicamente construída de
maneira concomitante pelo autor, obra e leitor na medida em que
todos se inserem no quadro da comunicação dialógica”
(MUNGIOLI, 2013, p. 107).
Bakhtin (2010; 2018) identifica particularidades referentes a
como o romance, no decorrer de diferentes fases, considera o
tempo e o espaço (o mundo); como considera o homem nos
contextos; e como se dá a construção da imagem da personagem
central. Porém, destaca que o cronotopo real nunca é assimilado
de forma homogênea e total, mas apenas em determinados
aspectos nas obras, que reorganizam elementos de formas
específicas em cada gênero, que pode ser identificado pela
predominância de um ou de outro cronotopo.
A importância do cronotopo para a teoria dos gêneros não
se limita às fórmulas de modelagem temática e narrativa ou à
imagem do homem no interior das narrativas, uma vez que por
meio desse conceito podemos observar também índices de
determinadas "visões de mundo" (BEMONG; BORGHART,

90
2015). É nesse sentido que Todorov (1981, p. 129, tradução nossa)
defende a ideia de que podemos considerar que a noção de
cronotopo “não se relaciona simplesmente à organização do
tempo e do espaço, mas também à organização do mundo (que
pode legitimamente se chamar cronotopo na medida em que o
tempo e o espaço são as categorias fundamentais de todo
universo imaginável)”3. A organização desse universo
imaginável se configura por meio da enunciação das instâncias
espaço-temporais permeadas pelas injunções sociais,
ideológicas e culturais consideradas em sua perspectiva
dialógica, ou seja, sócio-histórica.
Dessa maneira, consideramos que o conceito cronotopo se
presta à observação das narrativas audiovisuais, desde o cinema,
onde o tempo-espaço se fundem e se concretizam na construção da
narrativa. Nesse sentido, “do ponto de vista formal, um filme é
uma sucessão de pedaços de tempo e de pedaços de espaço […] é
através desta noção dialética que se pode definir (e, portanto,
analisar) a feitura própria de um filme, seu resultado essencial”
(BURCH, 1992, p. 24). É essa multiplicidade de possibilidade de
organização temporal e espacial que permite que, no cinema (e no
audiovisual narrativo de forma geral), uma mesma história possa
ser contada de diferentes maneiras (SPINELLI, 2005).
A materialização dos cenários, as relações espaciais entre as
cidades imaginadas e a forma estética de cada uma delas compõem
o extraverbal da enunciação da série. “O extraverbal não se define
de maneira mecânica, mas dentro de uma dialética que envolve o
percurso que ‘articularia o verbal e o não verbal, o dito e o não-dito,
o posto e o pressuposto, o entendido e o subentendido’”
(MUNGIOLI; JAKUBASZKO, 2009, p. 4). No caso das distopias,
independentemente da materialidade expressiva – se literatura,

3 No texto original: “la notion du chronotope] ne se rapporte pas simplement à l'


organisation du temps et de l´espace, mais aussi bien à l´organisation du monde
(qui peut légitimement s'appeler “chronotope” dans la mesure où le temps et
l'espace sont les catégories fondamentales de tout univers imaginable).
(TODOROV, 1981, p. 129).

91
filme ou série –, é fulcral observar a centralidade das relações
temporais e espaciais na sua constituição como gênero, conceitual
e figurativamente.

O tempo e o espaço das distopias

Uma distopia pode ser descrita, em termos simplificados,


como uma utopia negativa, o oposto da imagem construída, no
livro de Thomas More (1516), da morada de uma sociedade que
havia superado a maioria das deficiências e encontrado a felicidade
e o equilíbrio. Por saber da impossibilidade de tal situação, o autor
batizou essa cidade imaginária de “não lugar”, derivando do grego
“topos”, ou lugar, e “u”, redução de “ouk” – uma negação. Um lugar
de perfeição impossível de alcançar para a sociedade que More
criticava. No século XIX, o termo distopia surge em um discurso
parlamentar de John Stuart Mill para descrever um lugar
impossível, não pela sua perfeição, mas pelo extremo oposto de
absoluta imperfeição, sendo “dis” um prefixo grego que pode
significar disfunção, estranheza (BARROS, 2011).
Acompanhando as maravilhosas descobertas e invenções das
ciências, as tecnologias passam a integrar um imaginário social.
H.G. Wells se destaca lançando A máquina do tempo, primeira
aparição de uma viagem no tempo na literatura e um marco para o
surgimento do gênero ficção científica. No lugar do deslocamento
espacial que leva os personagens das utopias clássicas a conhecer,
em países e terras distantes, outras possibilidades de sociedades
onde problemas e conflitos foram superados, ocorre a viagem via
deslocamento temporal em direção ao futuro. O viajante do tempo
encontra uma sociedade idílica onde, entretanto, identifica a
perfeição e a desgraça em relação indissociável. Com produção
volumosa, H.G. Wells foi bastante adaptado para o cinema, em
diferentes momentos, como com A ilha do Dr. Monroe e O homem
invisível, ambos os livros sobre cientistas que se perdem,
encantados pelo poder que suas descobertas lhes proporcionam.
Esse espírito parece ressoar o cronotopo das transformações e das

92
frustrações sociais ante a modernidade. “De uma maneira geral, a
F.C. [ficção científica] é quase sempre distópica, e frequentemente
crítica em relação aos destinos tecnológicos da humanidade”
(LEMOS, 2018, p. 14).
O cinema – ele mesmo um exemplo das possibilidades da
evolução tecnológica na virada do século XX – ofereceu muitas
imagens especulativas sobre o futuro e as conquistas da
humanidade. Mestre da invenção do cinema narrativo, no clássico
Viagem à Lua (1902), Georges Meliès utilizou recursos da cenografia
e do ilusionismo do circo e do teatro, trucagens mecânicas e óticas
para levar homens vestidos de casaca e cartola da Terra à Lua, num
tempo em que a realização de viagens espaciais ainda era um sonho
distante. Na década seguinte, Fritz Lang apresentou sua versão de
futuro distópico em uma cidade que se projeta aos céus a partir da
exploração do trabalho maquinal de operários que não podem
desfrutar de toda a prosperidade conquistada e representada nos
altos arranha-céus de Metropolis (1927).
Metropolis descreve um futuro, em 2026, em que a divisão e a
desigualdade entre duas classes são representadas também
espacialmente, como um mundo dividido entre um ambiente rico,
superior e aéreo – repleto de arranha-céus, varandas suspensas,
viadutos e aviões que rodeiam o gigantesco edifício Nova Babel (de
onde a cidade é controlada) –, e um ambiente subterrâneo, onde
vivem os trabalhadores. O filme apresenta uma visão arquitetônica
sobre os conflitos de classes, a industrialização e a vida urbana.
Insere-se no cinema expressionista alemão, caracterizado pelas
representações plásticas das emoções e pelos nós dos enredos, por
meio de recursos estilísticos, com destaque para a cenografia e a
luz. Barros (2011, p. 165) usa o conceito de “cidade-cinema” (cidade
que, por suas singularidades, é fundamental ou estruturante para
a trama de um filme) para analisar a influência de Metropolis na
construção do imaginário das cidades futuristas:

A cidade-cinema trazida por Metropolis busca concretizar um modelo


futurista, com base no imaginário da época a respeito de como seria o

93
mundo dali a cem anos, e incorpora de maneira particularmente
intensa certa ordem de contradições que parecem desnudar os medos
de toda uma parcela da sociedade perante possibilidades que parecem
se anunciar no contexto da implantação do fordismo e da urbanização
desmedida. Entre esses “medos” tão típicos da primeira metade do
século, podemos citar os receios diante dos usos desumanos da
tecnologia, as angústias relacionadas a expectativas do desemprego
que poderia ser produzido através da substituição do trabalhador
humano pela máquina, a desumanização cotidiana promovida pela
rotina mecanizada, e o paradoxal isolamento do homem em um
mundo superpovoado, socialmente dividido e envolvido pelo
artificialismo e controle tecnológico. (BARROS (2011, p. 165)

Lançado em 1926, Metropolis antecipou abordagens que seriam


vistas não só na cinematografia de ficção científica, mas também
em obras distópicas tidas como basilares. Fromm (2009, p. 369)
destaca 1984 (publicado em 1949), de George Orwell, Admirável
mundo novo (1931), de Aldous Huxley, e Nós, de Evgéni Zamyatin
(1927), como uma trilogia das “utopias negativas de meados do
século XX”. Para Fromm ele, “as utopias negativas expressam o
sentimento de impotência e desesperança do homem moderno
assim como as utopias antigas expressavam o sentimento de
autoconfiança e esperança do homem pós-medieval”.
Francisco (2015, p. 158) afirma que, ao se colocar como contrária
à utopia, a distopia permite uma nova forma de “relacionamento
entre o tempo e o espaço, no qual o pensamento utópico não parece
estar ligado apenas ao futuro, mas sim à própria existência dos
homens em qualquer tempo”. Assim, se afasta do cronotopo
futurista, que representava um pensamento utópico desgastado
após a Segunda Guerra, que evidenciara como diferentes tentativas
de transformação de organização social ou dos Estados tendiam a
constituir regimes autoritários. Ao contrário de um “futuro em
aberto”, enredos distópicos, como o de 1984, reforçam a ideia da
inevitabilidade de que os cidadãos sejam subjugados por Estados
burocratizados, despersonalizados e totalitários.

94
Inspirada na proposta teórica de Bakhtin, Terentowicz-
Fotyga (2018) apresenta 1984 como exemplo canônico para
constituição de um cronotopo distópico, identificando o que
materializa a unidade da obra, a sua relação com a realidade e
como representa o ser humano. “Distopia, como uma novela das
ideias, sátira de uma ordem social particular, é um gênero
particularmente apto para se considerar a função estrutural do
cronotopo”4 (TERENTOWICZ-FOTYGA, 2018, p. 15, tradução
nossa). Pontua, ainda, que o cronotopo distópico, no nível do
enredo, se caracteriza por se estruturar com base no tema da
relação entre o indivíduo e o Estado opressor, contra o qual o
protagonista tenta se rebelar. O final, geralmente, é de frustração,
mas eventualmente há um sinal de esperança futura. Além disso,
como encarnação de ideias e visões de mundo específicas, uma
distopia precisa conter uma cena que apresente uma explanação
sobre as regras dessa realidade imaginada.
No plano da construção de espacialidade, emerge a questão dos
limites entre o que é público e o que é privado. Nas distopias, a
configuração dos espaços remete a situações sociais determinadas. O
motivo da destruição do lar, por exemplo, é recorrente como
significante da desintegração da vida privada, familiar e fora dos
domínios do Estado. Essa separação entre espaço interior e exterior
mostra-se na questão do controle sobre os corpos. “O Estado quer
manter o corpóreo sob controle, enquanto o indivíduo tenta proteger
isso e, a princípio, quanto mais íntima a experiência do corpo, mais
distópico é o efeito desse controle”5 (TERENTOWICZ-FOTYGA,
2018, p. 18, tradução nossa). Um exemplo radical desse tipo de
controle é o motivo essencial de Handmaid’s Tale, adaptação de

4 No texto original: “Dystopia, as a novel of ideas, a satire on a particular social


order, is a particularly apt genre to consider the structural function of the
chronotope” (TERENTOWICZ-FOTYGA, 2018, p. 15).
5 No texto original: “The state wants to bring the corporeal under control, while

the individual tries to protect it and in principle, the more intimate the experience
of the body, the more dystopian is the effect of its control” (TERENTOWICZ-
FOTYGA, 2018, p. 18).

95
sucesso de livro homônimo de Margaret Atwood (1985), produzida
no formato seriado para o serviço streaming Hulu, desde 2017.
Outras oposições características do cronotopo distópico, conforme
Terentowicz-Fotyga, são entre o alto e o baixo, o central e o
periférico, o passado e o presente, a cidade e o mundo natural e os
signos verdadeiros e os falsos.
Podemos relacionar o sucesso de histórias distópicas aos
contextos econômico, social e tecnológico do século XX. Apontado
por Hobsbawm (1995) como uma “era de extremos”, o século XX
foi marcado por violentos conflitos armados, revoluções políticas e
sociais, novas configurações econômicas, desenvolvimento
vertiginoso das tecnologias e diversas experiências de regimes
autoritários. A popularização de distopias na literatura, no cinema
e na televisão, bem como o sucesso de obras como as mencionadas
Handmaid’s Tale e Black Mirror, foram essenciais para a sedimentar
um certo entendimento das plataformas de streaming como espaços
para produção de séries de qualidade. Embora esse argumento não
se sustente diante de uma análise atenta (CASTELLANO;
MEIMARIDIS, 2021, p. 205), cabe destacar que as distopias jogaram
um papel importante para esse entendimento. Deve-se mencionar,
ainda, que o sucesso de séries distópicas de televisão mostra a
relevância que elas possuem no imaginário popular.

Netflix: tecnologia e transnacionalização

Desde quando surgiu como site de aluguel de DVDs pelos


correios, em 1997, na Califórnia, a Netflix adaptou e transformou o
modelo de negócios conforme se modificaram as possibilidades
tecnológicas da internet. Já em 1999, inovou ao oferecer uma
assinatura fixa para um número ilimitado de títulos por mês. Nessa
mesma época, montou um sistema com algoritmo de sugestão de
filmes a partir dos dados fornecidos pelo cliente no site. Em 2007,
quando plataformas como YouTube e Vimeo já aproveitavam a
velocidade alcançada pela internet para transmissão de vídeos via
streaming, a Netflix inovou com um plugin para o programa da

96
Microsoft Windows Media Player, que dava acesso aos vídeos do
catálogo da empresa sem a necessidade de baixá-los, e começou a
negociar a inclusão de um aplicativo próprio em aparelhos de
televisão, estratégia posteriormente ampliada para celulares,
tablets, consoles de games, etc. No princípio, a assinatura mensal
dava direito a um número contratado de horas de acesso, mas já se
diferenciava de outros serviços de home video que funcionavam pelo
sistema de locação por título, que ficava disponível por um período
de poucos dias. A Amazon Prime Video, uma das principais
concorrentes da Netflix no mundo, por exemplo, foi lançada como
serviço de locação de vídeo por título em 2006, com o nome
Amazon Unbox, passando a oferecer serviço por assinatura apenas
em 2011 (SILVA, 2018).
Outra novidade da Netflix foi que, a partir de acordos de
licenciamento firmados com emissoras, como a NBC, ainda em 2007,
começou a disponibilizar temporadas inteiras de séries televisivas e
veiculou cada episódio da série Heroes um dia antes da exibição no
canal de TV aberta NBC (SILVA, 2018; SACCOMORI, 2016). Lotz
(2018) destaca esse momento como crucial para o entendimento da
internet não apenas como uma ameaça à televisão, mas como uma
nova forma de distribuição de conteúdo televisivo, uma ampliação
das possibilidades de escolha e controle dos espectadores sobre o
que assistir. A autora considera a televisão como um meio,
independentemente de qual seja a tecnologia de distribuição, e
chama a atenção para o fato de que os vídeos mais assistidos na
internet são produções feitas originalmente para televisão. Dessa
maneira, a internet teria permitido o surgimento de novas formas de
assistir, e provocou mudanças em toda a estrutura do negócio de
televisão (LOTZ, 2017; 2018).
Levinson (2019) também situa o uso da internet para
conteúdos televisuais como uma nova etapa da televisão. Ele
divide a história da TV estadunidense em três eras, sendo a
primeira a das redes (broadcast), que se encerra em 1999, com a
exibição bem-sucedida de The Sopranos, na HBO. A mesma série é
o marco que inaugura a era do cabo (narrowcast). Finalmente, a

97
terceira era é a da internet, que trouxe a possibilidade de ver todos
os episódios de uma série de uma só vez, uma característica
essencial das transformações no consumo de produções televisivas.
De forma comparativa, Levinson (2019, p. 11) afirma que a televisão
a cabo transformou a televisão em filme, ao excluir os comerciais,
enquanto a internet transformou a televisão em um livro, com
todos os capítulos à disposição do leitor desde o começo.
Após três anos do lançamento de seu serviço SVoD nos
Estados Unidos, a Netflix começou sua expansão no mercado
internacional. Em 2010, chegou ao Canadá; em 2011, a 43 países
da América Latina e do Caribe; em 2012, ampliou as operações
para alguns países da Europa; e atualmente, seu serviço é
oferecido em mais de 190 países (SILVA, 2018; SACCOMORI,
2016; NETFLIX BEGINS..., 2011; ONDE A NETFLIX..., 2021).
Devido, entre outros fatores, a emissoras e estúdios lançarem
suas próprias plataformas streaming, limitando a possibilidade de
licenciamento de obras, e à constante demanda por novidades,
estimulada pelo próprio modelo da empresa, a Netflix dá início a
produções próprias em 2012, dividindo os custos de Lilyhammer
com a emissora norueguesa NRK1, que exibiu a série um mês antes
da plataforma. Já no ano seguinte, em 2013, a Netflix produziu uma
nova temporada da série Arrested Development, até então extinta, e
House of Cards, publicando as temporadas completas (binge
publishing). Outras plataformas seguiram caminho semelhante,
com investimento em produções próprias, como Hulu, em 2016;
Crackle, em 2015; e Amazon Prime Video, em 2014 (SACCOMORI,
2016). Em 2021, a Netflix anunciou um investimento de 17 bilhões
de dólares em conteúdo original para o ano (REIS, 2021). Nesse
cenário, além da competição com as plataformas estadunidenses, a
Netflix também tem que disputar espaço, em quase 200 diferentes
mercados de SVoD, com conteúdo local oferecido por serviços
regionais de streaming (SILVA, 2018, p. 38). No horizonte das
produções da plataforma, podemos destacar o local privilegiado de
que séries e filmes de fantasia e ficção científica gozam, tendo como
referência Black Mirror, que estreou na plataforma em 2015,

98
apresentando um futuro distópico no qual a tecnologia aparece
como personagem que, ao mesmo tempo, facilita e atrapalha a vida
e as relações sociais.
O cenário anteriormente discutido nos faz considerar os três
paradigmas da comunicação global discutidos por Sinclair (2014,
p. 64) como maneiras de entender os movimentos de
internacionalização e localização de conteúdos de streaming. Os
paradigmas propostos pelo autor são: internacionalização, ou
comunicação de nação a nação, que remete aos programas
transmitidos em país diferente ao de origem, os enlatados; a
globalização, que implica a capacidade de transmissão do mesmo
conteúdo para muitas nações, mesmo que sejam necessários
ajustes para o contexto de cada local; e a transnacionalização, no
âmbito da qual ocorre a glocalização ou “o empréstimo seletivo
daquilo que é local e a adaptação de ideias globais e formas
culturais, o que inclui a comercialização de roteiros e direitos para
produzir determinados formatos”. O atual cenário de produção
de originais fora do eixo Estados Unidos-Reino Unido mostra
movimentos de plataformas de streaming, sobretudo da Netflix,
que se encaixam nos três paradigmas, sendo a produção de séries
nos diferentes países, incluindo o Brasil, coerente à ideia de
transnacionalização/ glocalização.

Distopias brasileiras na Netflix

O Brasil foi o segundo país da América Latina onde a Netflix


produziu uma série original, um ano depois da série mexicana Club
de Cuervos (2015). A série 3% estreou em 25 de novembro de 2016,
nos 190 países em que a plataforma estava presente. Produzida pela
Boutique Filmes e dirigida por Pedro Charlone, 3% é uma distopia
sobre um futuro em que o mundo, devastado pela tragédia
climática, tornou-se um lugar dividido entre o Continente,
miserável e árido, e a ilha utópica de Maralto, onde todos são felizes
e nada falta, mas acessível apenas a 3% das pessoas, as quais são

99
selecionadas através de um processo anual, permitido apenas uma
vez a cada pessoa, ao completar 20 anos.
O anúncio de produção da série surpreendeu parte do público
brasileiro, pouco acostumado a ver exemplares nacionais desse
gênero na televisão ou mesmo no cinema. Porém, a série já havia
tido uma versão do episódio piloto, produzido de forma
independente (viabilizado pelo edital do Ministério da Cultura
FicTV/Mais Cultura, de 2009) pelo seu criador, Pedro Aguillera, e
veiculado no YouTube, em 2011. Juntas, as três partes do episódio
piloto, legendadas em cinco idiomas, obtiveram mais de um milhão
de visualizações (LEITÃO, 2016).
Apesar de ter recebido críticas desfavoráveis no Brasil, após a
estreia, 3% chegou a ser a série de língua não inglesa mais assistida
na Netflix no mundo (AMENDOLA, 2020), e a boa recepção
internacional garantiu outras três temporadas (em 2018, 2019 e 2020).
Cabe destacar que, até dezembro de 2020, a Netflix havia lançado
um total de 14 títulos brasileiros (somando 20 temporadas), entre os
quais Onisciente (2020), também criado por Pedro Aguillera, pode
igualmente ser classificado como uma distopia. Outras séries, como
Boca a Boca e Reality Z, ambas de 2020, também apresentam
elementos cronotópicos condizentes com distopias, mas com a
proeminência de valores ligados a outros gêneros.
Cabe dizer que a localização geográfica dos cenários de 3% e de
Onisciente é apenas sugerida. Em 3%, há a indicação de se tratar de um
ponto na Amazônia Subequatorial. Considerando as primeiras
temporadas de cada série, as ações se passam em cidades nomeadas
com substantivos comuns, como Continente, na primeira, e Cidade,
na segunda. Em ambas, adicionalmente, há a noção de uma distinção
social claramente marcada em termos espaciais. As fronteiras
territoriais dessas cidades marcam não apenas espaços físicos, mas
também espaços sociais e simbólicos que opõem, entre outras coisas,
opulência e pobreza; controle social e liberdade. Em Onisicente, sair da
Cidade é possível e significa perder o conforto e a segurança de viver
em uma civilização pacificada, porém sob vigilância constante. Em
3%, conquistar, por mérito, o direito de deixar o Continente significa

100
partir para a cidade utópica, mudar de classe e transformar totalmente
o modo de vida.
Interessa-nos, aqui, analisar como se articulam os elementos com
valores cronotópicos – de gênero – na representação das cidades
imaginadas na série 3%, tendo em vista que tais espaços configuram
não apenas o pano de fundo para as ações, mas são dotados de valor
figurativo e semântico, que dão unidade ao enredo e concretizam
ideias e visões de mundo implicadas no horizonte sócio-histórico em
que se constrói a série e que determinam as imagens e as trajetórias
das personagens a cada temporada.

As cidades distópicas de 3%

A cartela de abertura do episódio piloto de 3% informa que a


história se passa no ano 104 do Processo, sem fornecer qualquer
menção ao paralelo com nossa cronologia. A cena abre no rosto sujo
de Michele (Bianca Comparato) que, vestida com roupas rasgadas,
come algo indefinido enquanto olha para a parede forrada de lambe-
lambes sobre os quais há uma contagem de centenas de dias. O
ambiente é paupérrimo, decorado com elementos reaproveitados de
plástico e papéis, com uma janela de onde se tem a vista de uma rua
urbana, lembrando a composição de imagem de um edifício pobre,
uma ocupação ou uma favela no centro de uma grande cidade. Antes
de descer, brilha atrás da orelha da personagem o primeiro signo de
que se trata de um tempo diferente do nosso: um dispositivo
implantado avisa, com voz feminina e dirigindo-se nominalmente a
Michele, que os portões do Processo estão abertos e que ela
caminhará 45 minutos até lá. As cenas da cidade fictícia – que,
posteriormente, saberemos que está localizada no Continente –
foram gravadas no centro de São Paulo, com altos muros pichados e
uma grande quantidade de pessoas desfilando pobreza e loucura.
O caminho de Michele e dos outros candidatos tem uma
grande subida até o local do Processo, que fica em um plano muito
mais elevado. Por meio de um plano aéreo (construído por
computação gráfica), vê-se que os prédios estão no centro do que

101
parece uma grande favela localizada no fundo de uma cratera. Bem
acima desse paredão de pedras, surge o edifício do Processo, uma
construção de traços modernos, de concreto e vidro, toda branca,
que contrasta com os tons sombrios da cidade. É no prédio que se
passa a maior parte da ação da primeira temporada da série,
centrada na apresentação do mundo da série através do seu motivo
definidor: o próprio Processo. O interior do prédio foi gravado na
Arena Corinthians, também em São Paulo. O primeiro encontro
dos candidatos com Ezequiel (João Miguel), responsável pelo
Processo, que os olha a partir de um andar mais elevado do edifício,
é a cena em que a série faz a apresentação de seu universo diegético.
É o discurso de boas-vindas de Ezequiel que apresenta verbalmente
as regras, os valores e, também, as contradições do mundo
ficcional. Por meio dele, sabemos da existência de grupos que, “em
nome de uma falsa igualdade”, são contra os princípios de
distinção do Processo.
Maralto não aparece na primeira temporada, mas é sempre
mencionada e se configura como objetivo final da competição, que,
como no cronotopo do tempo de aventuras e provações descrito
por Bakhtin (2018), é o lugar dos eventos da história contada, mas
que não tem relevância na biografia das personagens. A ilha é
descrita no discurso de apresentação como o “mais perfeito dos
mundos”, criado pelo casal fundador e destinado aos 3% que, por
merecimento, são escolhidos: “Todos têm a mesma chance. E,
depois, o lugar que merece: o Maralto ou o Continente. Ou, como
vocês costumam falar, o lado de lá, ou o lado de cá. Esse processo
garante que só os melhores desfrutem do Maralto [...]. Você é o
criador do seu próprio mérito”, diz Ezequiel.
A distopia de 3% não é mais a do mundo burocratizado,
despersonalizado e estratificado de Metropolis e de outras utopias
negativas da cultura popular, mas é o pesadelo da meritocracia e
da crença de que cada um pode ser o que quiser, desde que dedique
esforço suficiente, independentemente de sua origem. Não à toa, o
elenco dos candidatos apresenta certa diversidade étnica,
evidenciando, no interior da diegese, que todas as desigualdades

102
foram suprimidas na sociedade calcada na competição entre
indivíduos. O Processo consiste em provas com o objetivo de
avaliar diferentes habilidades intelectuais, emocionais e físicas dos
participantes6.
Segundo Jotagá Crema, um dos roteiristas da primeira
temporada (e que participou da criação do projeto com Pedro
Aguillera, em 2009, quando eram colegas na Universidade de São
Paulo), a dinâmica do Processo proporciona a identificação do
público jovem com as situações de suas vidas, como o vestibular, a
passagem para a vida adulta e a entrada no mercado de trabalho
(OLIVEIRA, 2017).
Uma questão acompanha toda a primeira temporada: o
Processo tem realmente a capacidade de avaliar as melhores pessoas
para fazer parte dos 3%? Surge, então, o questionamento sobre o que
qualifica três pessoas, em um universo de 100, a viver bem, em
detrimento dos outros 97, condenados a viver miseravelmente toda
a vida, sem nenhuma perspectiva de mudança. Esse é o motivo que
mobiliza a “causa” da qual fazem parte Michele e Rafael, que
encerram a temporada a caminho de Maralto.
Maralto é apresentada no primeiro episódio da segunda
temporada, que começa por meio de um flashback que desenvolve
a ação até quatro anos antes de começar o Processo, 108 anos antes
da primeira temporada, quando o trio fundador está estudando a
ilha, até então virgem. Os ambientes idílicos, ensolarados e
cercados de natureza, calma e conforto, foram gravados no Museu
de Inhotim, na cidade de Brumadinho, Minas Gerais. A outra face
do mundo distópico de 3%, no qual se desfruta das benesses
daquele futuro imaginado, é um lugar onde a tecnologia está

6 O motivo da competição tem sido recorrente em distopias jovens, como Jogos


Vorazes, na qual dois jovens de cada um dos 12 distritos em que a América do
Norte é dividida, naquele futuro imaginado, são enviados para participar de uma
competição mortal na televisão. Não há exatamente uma motivação existencial,
apenas a reafirmação de seus papeis como objetos do controle da Capital. Ao final
da competição anual, apenas um dos 24 jovens deve sobreviver, e este
simplesmente é autorizado a voltar para seu distrito.

103
integrada a tudo e as pessoas comem e se exercitam ao ar livre,
aproveitando com outros escolhidos, aparentemente sem qualquer
sentimento de culpa, as maravilhas do lugar. O ambiente bucólico
para privilegiados lembra os jardins eternos onde os jovens
herdeiros de Metropolis podiam desfrutar uma vida tranquila de
prazeres sustentados pelos operários que habitavam as
catacumbas. Entretanto, diferentemente da cidade de Fritz Lang,
em Maralto não há herdeiros, pois só o “mérito” é considerado para
mensurar o valor das pessoas.
Separado do Continente por muitos quilômetros de mar,
Maralto só é acessível por meio de um submarino, que leva
Michele e Rafael, infiltrados da “causa” e que foram aprovados no
Processo. Ainda nos primeiros minutos do episódio, dois planos
aéreos produzem sentidos de comparação entre os ambientes do
Maralto e do Continente, ao exporem, pela topografia e pela
ocupação dos espaços físicos, os espaços sociais e simbólicos que
caracterizam as populações das cidades ficcionais. De um lado, a
natureza, a modernidade e a abundância; de outro, a desolação de
ruínas urbanas. Ao mesmo tempo, dessa forma, as imagens
configuram e delimitam não apenas os espaços físicos, mas
também uma certa cena discursiva, ao constituir situações para
uma cenografia da enunciação (MAINGUENEAU, 2013, p. 96-98).
É por meio dessa cenografia discursiva que entendemos e damos
sentido aos discursos de legitimação das diferenças e da
meritocracia dos dirigentes e dos habitantes de Maralto; e aos
discursos de busca por reparação e de melhores condições de vida
dos habitantes do Continente. Configura-se, assim, o cronotopo
da cidade distópica baseada na sociedade de classes, que se
reveste da roupagem da meritocracia.
Esse novo espaço permite concretizar as ideias a respeito do
“mundo perfeito” para aquela sociedade e o desenvolvimento de
novas tramas que colocam as personagens no conflito entre a boa vida
conquistada e a luta pela causa de acabar com a segregação do
Processo. Além disso, por meio de flashbacks, segue-se a história da
origem do Processo até, finalmente, a revelação de que o grande

104
blackout – que tornou o Continente o lugar inóspito apresentado na
série – foi causado pelos próprios fundadores para viabilizar seu
projeto utópico da sociedade perfeita que, como enuncia um deles,
“não pode ser pra todos”. Desde a origem, portanto, Maralto
implicava seu negativo, o sacrifício involuntário de muitos pelo bem
de uma elite de pessoas consideradas merecedoras. Esses
acontecimentos permitem novos momentos de explicação das visões
de mundo por trás da distopia criada pela série, a partir das discussões
éticas entre o trio fundador, repetindo o elemento com valor
cronotópico citado por Terentowicz-Fotyga (2018, p. 16, tradução
nossa): “Narrativas distópicas contém uma apresentação dos
princípios de organização do seu sistema, que podem ter a forma de
uma narrativa independente, uma discussão ou um monólogo”7.
Por outro lado, os espaços do Continente também são mais
explorados a partir da segunda temporada, ganhando contornos de
uma favela e uma mirada mais compreensiva em relação às
particularidades das personagens e dos grupos que lá habitam,
incluindo igrejas e os esconderijos dos integrantes da “causa”.
Espaços fora do interesse do projeto dominante, onde se destacam
elementos pessoais, característicos, constituem o que Terentowicz-
Fotyga menciona como “espaços apropriados”, em contraposição
aos que representam plenamente o desejo da classe dominante, em
3%, simbolizados pelo Maralto e pelo prédio do Processo.
A terceira cidade da série é apresentada como possibilidade no
final da segunda temporada. A Concha é o projeto de Michele para
ser uma terceira via, um lugar com potencial para prosperidade,
onde todos são bem-vindos. O material e a tecnologia necessários
para formar esse novo lugar foram conseguidas por chantagem, em
troca de permitir que o Processo continuasse. Essa alternativa à
dicotomia entre a utopia e a distopia do Maralto e do Continente
seria, então, conseguida através da conciliação de interesses, do

7 No original: “Dystopian narratives often contain a comprehensive presentation of the


principles of the organization of the system, which may take the form of a separate narrative, an
extended discussion or a monologue” (TERENTOWICZ-FOTYGA, 2018, p. 16).

105
apaziguamento dos conflitos e da ajuda da elite de selecionados ao
povo que fora excluído. Tal procedimento, cite-se, é semelhante ao
encontrado no final de Metropolis.
Na terceira temporada, após um ano, a Concha foi construída no
lado oposto ao prédio do Processo, também sobre o Continente.
Apesar das boas intenções, o novo lugar é palco e, também, motivo de
novos conflitos entre seus próprios habitantes, a despeito do discurso
de gestão coletiva dos interesses e da oportunidade igual para todos.
Além disso, a existência dessa nova cidade motiva uma nova tomada
de posição do Maralto, que assume contornos de uma governança
militar, usando a violência com a justificativa de manter vivo o sonho
da cidade sem defeitos. A quarta temporada tem seu clímax passado
no Continente, com uma disputa para decidir quem governará todas
as cidades. Ao final, prevalece um discurso que prega o
apaziguamento das tensões, a união e a negociação de interesses como
uma nova proposta de sociedade ideal.

Considerações

A relevância alcançada pelas distopias desde a virada do


século XX, na literatura, no cinema ou nos meios televisuais, parece
indicar a importância do gênero em suas dimensões estéticas e
discursivas, ao produzir sentidos por meio de mundos ficcionais
nos quais medos, aspirações e frustrações dos seres humanos e/ou
de parcelas da sociedade ganham corpo. Tais mundos se
constituem como lugares que levam ao tensionamento os limites
aceitos e/ou impostos pela ordem social contemporânea frente,
entre outras coisas, a situações de cerceamento ou de privação de
liberdades individuais e coletivas; degradação das condições de
vida, biológicas e sociais, causando situações indignas para o ser
humano. O futuro que vemos por meio das distopias não se
caracteriza como um tempo-espaço de superação de problemas
contemporâneos, mas sim de sua exacerbação, levando suas
consequências a situações extremas.

106
Como vimos, na narrativa distópica da série 3%, as dimensões
espaço-temporais ganham relevo na construção de um “universo
imaginável” (TODOROV, 1981), que se ancora em cronotopos que
sintetizam e projetam, em um futuro sombrio, as desigualdades
sociais e seus discursos de legitimação do presente. Essa projeção
se torna visível por meio dos cronotopos em que a topografia, a
arquitetura e as relações desiguais entre os diferentes espaços
expressam a estratificação social, a objetificação do indivíduo e a
opressão social, constituindo-se não apenas como temas, mas como
elementos articuladores do espaço-tempo na diegese. Elementos
que caracterizam o cronotopo distópico, em torno da oposição
elementar entre o individual e o poder de controle dos grupos
dominantes, comparecem em diferentes obras, com maior ou
menor proeminência. Com quatro temporadas (2016, 2018, 2019 e
2020), 3% inovou em cada uma com a inclusão de um novo cenário,
uma nova cidade que representava e exigia valores e visões de
mundo distintos das personagens.
Dessa forma, os cronotopos das cidades de 3% configuram e
delimitam os espaços físicos, inserindo-os em uma temporalidade
marcada não apenas pelo registro do calendário, mas também por
certa cena discursiva, quando constitui situações para uma
cenografia da enunciação (MAINGUENEAU, 2013) que evidencia
as relações sociais assimétricas que se manifestam nos discursos. O
jogo cronotópico que envolve as cidades e seus habitantes desvela
não apenas as distopias, mas também o caráter discursivo que
marca espaços geográficos, sociais e simbólicos em uma
perspectiva que opõe os discursos de (des)legitimação de dois
mundos que se contrapõem e, ao mesmo tempo, se complementam
na diegese da série.

107
Referências

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110
Cronotopo da Recepção: exploração teórica e empírica do
conceito enquanto categoria analítica no estudo de
recepção da série Game of Thrones

Lizbeth Kanyat

O presente texto apresenta a exploração de possíveis usos do


conceito de cronotopo em pesquisas que se filiam aos Estudos de
Recepção. As reflexões compartilhadas derivam da apropriação do
termo na pesquisa de doutoramento da autora, a qual se ocupa da
recepção da série Game of Thrones (HBO, 2011-2019) por jovens
residentes no estado de São Paulo.
O problema de pesquisa que orienta o trabalho mencionado é:
quais elementos narrativos sustentaram a predileção do
telespectador pela série Game of Thrones? O objetivo geral é
investigar a produção de sentidos sobre a série, bem como
elementos que indiquem os motivos de predileção da série e sua
assídua assistência por jovens residentes no Estado de São Paulo.
De abordagem qualitativa, a pesquisa se fundamenta, teórica e
metodologicamente, nos Estudos de Linguagem, Estudos de
Recepção, Estética da Recepção, Sociologia Disposicionalista e
Análise de Discurso. A coleta de dados se deu mediante a aplicação
de entrevistas semi-estruturadas, individuais e presenciais. As
entrevistas foram realizadas de outubro de 2019 até fevereiro de
2020, na capital e interior do estado de São Paulo, com
telespectadores de 18 a 30. Para examinar o corpus foram utilizadas
as ferramentas da análise de discurso (A.D.) que incluiu em seu
protocolo o conceito de cronotopo da recepção de Bakhtin e os
conceitos de pluralidade contextual e disposicional de Lahire,
conforme será apresentado mais adiante neste texto.
A seguir, realizamos uma exploração teórica dos possíveis
usos do conceito de cronotopo em pesquisas empíricas de recepção.

111
Apresentamos também a teoria do ator contextual e disposicional
de Bernard Lahire (2004) enquanto estrutura de análise empírica
que favorece o estudo da pluralidade de sentidos atribuídos pelos
sujeitos receptores considerando os diversos tempos e espaços em
que eles transitam (contexto diacrônico e contexto sincrônico). A
seção de metodologia apresenta o dispositivo analítico desenhado
para o estudo do corpus. A análise apresenta os resultados da
aplicação do dispositivo no exame de uma entrevista. Nas
considerações refletimos sobre as potencialidades do dispositivo,
suas limitações e possíveis desdobramentos.

Cronotopo da Recepção e Sociologia do Ator Disposicional e


Contextual

Para a definição do conceito de cronotopo partimos dos


trabalhos de Mikhail Bakhtin (2018a; 2018b). O pensador russo
analisa a obra de François Rabelais com destaque para aos
romances Pantagruel e Gargantua, que remetem aos “nomes de
personagens que se constituem pela dialogia intertextual paródica,
que critica, satiriza, ironiza a percepção do mundo pelo ponto de
vista das elites na perspectiva sagaz do homem popular francês nos
períodos Medieval e Renascentista” (TRINDADE e BARBOSA,
2007). Bakhtin desenvolve o conceito de cronotopo como a
configuração do espaço e do tempo na prosa literária. O seu
trabalho examina o cronotopo do universo e dos acontecimentos
representados no romance. Entretanto, defende a existência do
cronotopo do ouvinte ou leitor, os cronotopos dos acontecimentos
da representação e o cronotopo da audição-leitura:

Em nosso trabalho, falamos do cronotopo do universo representado


no romance, dos acontecimentos representados, mas ainda há o
cronotopo representador do autor, de dentro do qual o autor
contempla, e o cronotopo do ouvinte ou leitor, os cronotopos dos
acontecimentos da representação e da audição-leitura. Esses três
cronotopos são essencialmente distintos, mas também

112
essencialmente vinculados entre si e, às vezes, inter-condicionados
(sem se fundirem). (BAKHTIN, 2018a, p. 238, grifos do autor)

Mais adiante, detalha:

Além do cronotopo do universo representado, ainda há aquele


espaço-tempo real onde existe uma dada obra verbalizada e no qual
ela é objeto da recepção (de interpretadores, ou seja, cantores,
narradores, ouvintes e leitores). A obra é percebida como algo que
soa durante um determinado tempo num determinado espaço (ou
soa potencialmente numa leitura muda). (BAKHTIN, 2018a, p. 246)

Apesar de o pensador russo mencionar em outros trechos da sua


obra o cronotopo do ouvinte-leitor (BAKHTIN, 2018a), esta é uma
ideia pouco recorrente. Em Teoria do Romance II, Bakhtin assinala:

No presente trabalho não abordaremos o complexo problema do


ouvinte-leitor, sua posição cronotópica e seu papel renovador na obra
(no processo de existência da obra); indicaremos apenas que toda obra
literária está voltada para fora de si para o ouvinte-leitor e em certa
medida antecipa suas possíveis reações. (BAKHTIN, 2018a, p. 235)

Deixando-nos, portanto, o desafio de encontrar e manejar com


rigor teórico e metodológico as articulações espaço-temporais nas
diversas instâncias do processo de recepção.

Cronotopo e Recepção

Filiando-nos à tradição latinoamericana dos estudos de


recepção, consideramos que recepção é um processo de atribuição
de sentidos resultado do encontro entre o sujeito e a mensagem, o
qual ocorre de forma cultural e historicamente orientada. Não se
trata do momento último de um processo de comunicação linear e
mecânico, ao contrário, o estudo da recepção é abordagem
integralizadora do processo comunicacional por focalizar o encontro
entre o polo da produção e o do consumo em articulação com

113
relações de poder (MARTIN-BARBERO, 2009; LOPES, 2014; JACKS
e ESCOSTEGUY, 2005; FÍGARO e GROHMANN, 2017). Retomamos
também o legado da Escola de Constança que propõe para a
recepção o estudo do texto e da sua intencionalidade de sentido, bem
como da interpretação do receptor e dos usos dela na vida cotidiana
(SANDVOSS, 2011; JAUSS, 1982). O que interessa às pesquisas dos
estudos latino-americanos de recepção é compreender como os
sujeitos se relacionam com os meios de comunicação e como se
constroem os efeitos de sentidos por meio dessa inter-relação. As
perguntas que, de modo geral, orientam as pesquisas de recepção
incluem o que é recebido, quando, onde, como, quais sentidos são
atribuídos a essa mensagem e o que se faz com os sentidos
atribuídos. Em cada uma dessas instâncias analíticas podemos
encontrar possibilidades de aplicação de uma abordagem
cronotópica para estudar a recepção, posto que qualquer entrada no
campo dos sentidos só se concretiza pela porta dos cronotopos”
(BAKHTIN, 2018a, p. 236). O pensador ainda afirma:

Sejam esses sentidos, para que integrem a nossa experiência (e além


disso, a experiência social), eles devem ganhar alguma expressão
espaçotemporal, ou seja, uma forma sígnica que possamos ouvir e
ver (um hieróglifo, um desenho, etc.). Até mesmo o pensamento mais
abstrato é impossível sem essa expressão espaçotemporal.
Consequentemente, qualquer entrada no campo dos sentidos só se
concretiza pela porta dos cronotopos (BAKHTIN, 2018a, p. 236).

Desse modo, o nosso objeto teórico neste estudo é discutir a


aplicação do conceito de cronotopo enquanto categoria analítica
das articulações espaço-temporais nas diversas instâncias do
processo de construção de sentidos nos discursos dos sujeitos
receptores da série Game of Thrones – que denominamos cronotopo
da recepção. Logo, nas linhas a seguir compartilhamos um breve
ensaio teórico que busca tornar metodologicamente manejável o
conceito de cronotopo nas diversas instâncias do processo de
recepção que mencionamos anteriormente em forma de perguntas.

114
O que é recebido? Este momento de análise estuda quais são os
sentidos pretendidos pela obra enquanto discurso circulante no
mundo. Uma abordagem cronotópica desta pergunta nos permite
perceber, ao estudar a categoria tempo, as formações discursivas e
ideológicas circundantes no momento de exibição dessa
mensagem. A categoria analítica espaço é indissociável da anterior,
pois ela circunscreve geográfica e culturalmente a circulação dessa
mensagem para a análise dos sentidos pretendidos por ela.
Quando e onde é recebida a mensagem? Esta pergunta pode
provocar uma descrição detalhada dos momentos assistência à série.
A categoria tempo (quando) nos ajuda a observar em que horário é
recebida a mensagem, em qual momento da rotina do sujeito, em
que época de sua vida e em quais contextos sociais, econômicos,
políticos e culturais. A categoria espaço (onde) orienta a análise para
o dispositivo usado para o recebimento da mensagem, o lugar físico
em que o sujeito e seu dispositivo se encontram e as caraterísticas
mais relevantes do seu entorno imediato.
Como é recebida essa mensagem? O como está relacionado com as
práticas e rituais do consumo. Esta pergunta orienta o olhar para a
dimensão simbólica do consumo. A categoria tempo nos ajuda a
localizar a frequência do consumo, a duração da exposição para tal
mensagem, os hábitos ou costumes em torno dessa prática
comunicativa. No âmbito do espaço podemos explorar as rotinas
que tomam lugar antes, durante e após o consumo, bem como os
sentidos que aquele lugar atribui à prática comunicativa que nele
está ocorrendo.
Quais sentidos são atribuídos? Uma abordagem cronotópica
desta pergunta instiga uma análise que relacione os discursos dos
sujeitos com as caraterísticas do espaço e do tempo do momento de
enunciação, do suporte em que o enunciado é pronunciado, dos
enunciatários e suas respectivas filiações ideológicas e contextos
culturais, históricos e sociais.
O que se faz com os sentidos construídos no processo de recepção? A
utilização do cronotopo como categoria analítica para o exame
desta dimensão do processo de recepção pode tratar do estudo das

115
temporalidades que envolvem as ações do
enunciatário/enunciador. Estuda em quais momentos os sentidos
(re)construídos são manifestos, qual é frequência dessas ações
enunciativas, sua duração, se são fragmentados ou não, qual é o
espírito do tempo, quais são os discursos circulantes no tempo da
enunciação. O espaço nos leva a analisar os lugares, fragmentados
ou não, em que os discursos são enunciados, os suportes ou
dispositivos usados para comunicar e também em quais arenas
discursivas de disputa de poder os enunciados são inseridos.
Longe de ser um modelo último de análise, as ideias anteriores
são um exercício para tornar o conceito de cronotopo
metodologicamente manejável em pesquisas de recepção, aberto a
críticas e colaborações. Dito isso, as ideias apresentadas nos levam a
considerar que o conceito de cronotopo pode ser tornar uma
categoria analítica profícua não só para analisar a obra como
apresentado primorosamente por Bakhtin, mas também para
analisar as diversas instâncias do processo de recepção. Percebemos,
entretanto, que se impõe ao pesquisador a necessidade de fazer
escolhas que delimitam com precisão o uso e aplicação do conceito
nos procedimentos metodológicos de sua pesquisa. No trabalho de
doutoramento se articulou o conceito de cronotopo da recepção à
teoria do ator disposicional e contextual de Bernard Lahire (2004;
2008) por considerar que esta nos ajuda a sistematizar o uso do
referido conceito conforme apresentaremos a seguir.

Ator disposicional e contextual

Consideramos os discursos dos entrevistados sobre a


predileção pela série (corpus de análise) como enunciados
potencialmente plurais, pois a recepção é um processo individual e
social de atribuição de sentidos, resultado do encontro entre o
sujeito e a mensagem. Diante disso, a teoria do ator
indissociavelmente disposicional e contextual é uma proposta
teórico-empírica que nos permite apreender os múltiplos sentidos
construídos pelo grupo estudado e suas diversas posturas frente ao

116
programa televisivo em articulação aos tempos e espaços em que
constroem tais sentidos e mobilizam tais posturas.
Lahire (2004; 2008) critica o uso de conceitos de “classe” e
“públicos ou população” quando tratados como categorias
autoexplicativas, suficientes e inequívocas. O pesquisador
considera que eles apresentam uma concepção mutilada dos
sujeitos por dividi-los em polarizações como
dominantes/dominados e em hierarquias socioprofissionais ou
socioculturais. Em contrapartida, Lahire (2008) propõe trazer o
indivíduo para o centro da sociologia para assim fazer uma
“sociologia à escala individual”. Não se trata de negar a existência
de desigualdades sociais e o papel desempenhado pelo capital
cultural no acesso às formas eruditas de cultura. Porém, o autor
propõe uma mudança de escala de observação. Uma observação
que comece por considerar variações intra-individuais antes de
retomar as variações inter-classes (diferenças entre classes).
O sociólogo propõe uma teoria do ator indissociavelmente
disposicionalista e contextualista baseado em duas premissas:

a) os indivíduos são, nas nossas sociedades, submetidos a


experiências socializadoras heterogêneas e por vezes mesmo
contraditórias (o que não só é verdadeiro em matéria de cultura como
noutros domínios) e são, por essa razão, portadores de uma
pluralidade de disposições, de apetências e de competências; b) estes
mesmos indivíduos não são levados a agir sempre nas mesmas
condições ou nos mesmos contextos de ação e os seus patrimônios
individuais de disposições, de apetências e de competências são
portanto submetidos a solicitações variáveis (LAHIRE, 2008, p. 30)

A pluralidade disposicional é interna. São relações de força


entre disposição mais ou menos solidamente constituídas ao longo
da socialização passada. O conceito indica que cada indivíduo é
susceptível de participar sucessiva ou simultaneamente em vários
grupos ou instituições (dos maiores aos mais restritos; das mais
duradouras às mais efémeras) que compõem a formação social:

117
grupos de pares, meio familiar, meio profissional, comunidade
religiosa, fan club, rede de sociabilidade, instituição midiática, etc.
A isto o autor chama de variação intra-individual das práticas e
preferências culturais. A socialização passada é mais ou menos
heterogénea e dá lugar a disposições heterogêneas e por vezes
contraditórias.

[Ela] não é mais do que marca ou sintoma da pluralidade da oferta


cultural, por um lado, e, por outro, da pluralidade dos grupos sociais
(dos mais micro aos mais macro) susceptíveis de sustentar (suportar)
estas diferentes ofertas culturais e de difundir as hierarquias
culturais específicas que compõem as nossas formações sociais
fortemente diferenciadas. (LAHIRE, 2008, p. 14)

É pelo trânsito nessa pluralidade de grupos e instituições que


os sujeitos podem resistir à ordem cultural dominante, seja de
modo frágil ou forte, circunstancial ou permanente. Lahire (2008)
também reflete sobre a ambiguidade no comportamento dos
consumidores. Ao mesmo tempo o leitor têm comportamentos
atípicos ao grupo de pertença e ora condizentes. Isso revela que o
mais frequente no estudo do comportamento dos públicos são as
exceções. Simultaneamente típicos e marginais é como são
normalmente consideradas as práticas dos indivíduos em relação
ao seu grupo de pertencimento na longa série dos seus
comportamentos.

Se nos esforçarmos por manter em mente os resultados atingidos à


escala das variações intergrupos e à escala das variações intra-
individuais, podemos dizer que os indivíduos das sociedades
contemporâneas têm ao mesmo tempo uma probabilidade muito
forte de se comportarem como os outros membros do seu grupo
social de pertença e uma probabilidade muito grande de não ter
apenas comportamentos ligados ao seu grupo social de pertença e,
portanto, uma grande probabilidade de que uma parte dos seus
comportamentos sejam atípicos em relação ao seu grupo social de
pertença. (LAHIRE, 2008, p. 13)

118
Por outro lado, a pluralidade contextual é externa e social. São
as características objetivas da situação em que o ator se encontra e
inclui as relações de forças entre elementos do contexto que pesam
mais ou menos sobre o ator. Os contextos podem ser associados a
pessoas ou não. São as molas que projetarão o indivíduo a
determinada prática. O ator plural possui um patrimônio de
esquemas de ação (disposições) e estes são adquiridos nas
experiências dos indivíduos no interior de cada contexto social, e
que depois de incorporados passam a ser ativados em
situações/contextos não necessariamente análogos aos quais foram
adquiridos. “O ator individual não põe invariavelmente ou
transcontextualmente em prática o mesmo sistema de disposições
(ou habitus). Pelo contrário, podemos observar mecanismos mais
subtis de vigilância/acção ou inibição/activação de disposições”
(LAHIRE, 2008, p. 31)
A explicação para a variada experiência individual não está na
singularidade psicológica irredutível dos destinos individuais e
sim na pluralidade das influências socializadoras com as quais os
indivíduos tendem a se relacionar.

O estudo sistemático das variações intra-individuais dos


comportamentos culturais, que obriga a ver as deslocações que um
mesmo individuo efetua de um registo cultural a outro, põe a tônica
na pluralidade de “subsistemas” [...] com os quais os atores têm de
se relacionar (LAHIRE, 2008, p. 15).

Com esse aporte teórico-conceitual, o autor espera ampliar o


espaço para investigações que analisam a realidade social levando
em consideração a sua forma individualizada. Concordamos com
Lahire (2008) ao indicar que a amplitude dos fenômenos
midiáticos, que arregimentaram públicos de perfis culturais
dissonantes, obriga-nos a reconhecer a importância da interrogação
sobre as variações intra-individuais dos comportamentos no seio
social. Não defendemos que a leitura seja uma ação puramente
individual ou subjetiva. Reconhecemos as relações de poder dentro

119
e fora do texto e consideramos ambos lugares (o social e o textual)
arenas de disputa pelo sentido, tal como o indica Bakhtin:

A língua não é reflexo das hesitações subjetivo-psicológicas, mas das


relações sociais estáveis dos falantes. Conforme a língua, conforme a
época ou os grupos sociais, conforme o contexto apresente tal ou qual
objetivo específico, vê-se dominar ora uma forma ora outra, ora uma
variante ora outra. (BAKHTIN, 2014, p. 153)

Retomando o problema de pesquisa, que é: quais elementos


narrativos sustentaram a predileção do telespectador pela série
Game of Thrones?, buscamos analisar a pluralidade de disposições
de cada indivíduo (variações intra-individuais) considerando seus
contextos diacrônicos (fases do percurso biográfico) e seus
contextos sincrônicos (tempos e espaços imediatos da televidência).

Metodologia: coleta de dados, amostragem e dispositivo analítico

A coleta de dados foi realizada em duas fases: (1) questionário


on-line e (2) entrevistas em profundidade, presenciais e
individuais. A fase de questionário on-line teve por objetivo formar
uma base de dados da qual os participantes da segunda etapa
seriam selecionados. Através do questionário pudemos reconhecer
os respondentes que cumpriram os critérios a seguir: (a) ter
assistido à todos os episódios de Game of Thrones; (b) possuir entre
18 e 30 anos; (c) residir no estado de São Paulo; (d) ter assinalado
no formulário disposição de participar da etapa de entrevistas.
Dentro deste universo de pessoas, a estratégia para a escolha dos
participantes da segunda etapa (entrevistas) foi a amostragem por
casos múltiplos, implicando no uso do princípio de diversificação
interna (PIRES, 2018). Desse modo, incluímos telespectadores de
diferentes locais de residência dentro do estado de São Paulo
(interior, capital), como também pessoas de diferente estado civil,
identidade de gênero, escolarização e estrato socioeconômico.

120
Foram entrevistadas 14 pessoas individualmente. A duração
média de cada entrevista foi de 35 minutos. Na tese de doutorado
exploramos com amplitude e profundidade as diversas instâncias
do processo de recepção dos 14 entrevistados, entretanto, este texto
se concentra na apresentação dos elementos que sustentaram a
predileção pela série em seu contexto espaço-temporal encontrados
em uma entrevista. A entrevista escolhida para a exposição da
análise neste texto é representativa do conjunto de achados
empíricos nos outros corpora.

Figura 1 - Dispositivo analítico

Fonte: Elaborado pela autora

O dispositivo de análise é resultado da articulação da teoria do


ator disposicional e contextual (LAHIRE, 2004; 2008) e o conceito
de cronotopo (BAKHTIN, 2018a), buscando evidenciar a
pluralidade contextual e disposição de um sujeito em relação à sua
predileção por um produto midiático.

121
Análise

Paulo1, gênero masculino, solteiro, estudante de ensino superior,


assistente comercial, estrato sócio-econômico C1, reside com os pais na
cidade de São Paulo.

Contexto diacrônico e sincrônico

O roteiro semi-estruturado coletou informações sobre as


disposições de predileção da série no contexto diacrônico. Dito de
outra maneira, buscamos os elementos narrativos e discursivos que
foram responsáveis pela assistência assídua e engajada durante as
oito temporadas da série. Os contextos sincrônicos, isto é, as
diversas articulações espaço-temporais no consumo e recepção da
série, não se constituíram o foco da pesquisa, entretanto foram
mencionados pelo entrevistado.
Paulo decidiu assistir à série depois de receber várias
recomendações de amigos. Naquela época ele estava em momento
de transição, buscando qual seria a sua próxima paixão, a sua
próxima grande meta. Havia começado um curso de ensino
superior, mas não se identificou com ele e o abandonou. Arrumou
um emprego temporário, para ganhar algum dinheiro e ajudar nas
despesas domésticas. Morava com os pais. Resolveu, então, dar
uma chance à série que foi tão recomendada. Ele já havia
consumido outras obras do gênero fantasia. Quando mais novo
havia acompanhado a saga cinematográfica de Harry Potter, O
Senhor dos Anéis e O Hobbit. Na época em que começou GoT, Paulo
também assistia de modo esporádico ao drama histórico Vikings
(History, 2013-2020), que lhe despertava o interesse pelo retrato
ficcional da disputa de poder em uma época antiga.
Recebeu de um amigo os episódios das quatro primeiras
temporadas e “maratonou”. “Assisti, nossa, tudo, acho que... eu
acho que em dois finais de semana eu assisti tudo, da primeira até

1 O nome do entrevistado foi alterado para preservar o seu anonimato.

122
a quarta” (PAULO, p. 1, 2019). Depois, Paulo passou a assistir aos
episódios no dia do lançamento no canal por assinatura HBO.
Assistia geralmente na sua casa. As companhias mais frequentes
eram os amigos e o seu irmão. Entretanto, ele assistiu à última
temporada junto com a namorada. Parte do ritual era preparar
pipoca e refrigerante 10 minutos antes de o episódio começar. Os
temas que lhe interessaram na série eram aqueles voltados à
política, geopolítica, história e comportamento humano. Este
espectro temático era também explorado na sua vida pela
faculdade - Relações Internacionais - que decidiu cursar
posteriormente pouco tempo depois de ter começado a
acompanhar à série. Seus personagens preferidos foram Tyrion
Lannister, pela jornada de redenção moral passando de um sujeito
hedonista para um altruísta; Ned Stark, pela honra e a
incorruptibilidade do seu caráter; e Arya Stark, pela bravura e
coragem se seguir seus sonhos de independência. Apesar do
entrevistado ter enunciado vínculos de identificação e projeção em
relação à vida destes personagens, as disposições em torno da
predileção da série não dizem a respeito da afinidade com as
personagens e sim revelam uma pluralidade de engajamentos.
No fim da entrevista, quando convidado a escolher o fator
mais importante na predileção da série o entrevistado respondeu:

Acho que acaba sendo um conjunto, sabe!? Porque, assim, é uma


série que foi muito bem trabalhada [...]. Esse ponto de surpreender,
esse ponto de mostrar a realidade e a mitologia. Acho que são pontos
que realmente, que foram os meus favoritos assim, da série (PAULO,
p. 9 e 10, 2020).

Desse modo, as disposições que apresentamos a seguir não


seguem nenhuma ordem hierárquica ou de intensidade. No caso
aqui relatado as disposições têm incidência isonômica sobre a
predileção da série.

123
Disposição 1: o princípio do valor estético

A primeira disposição que evidenciamos em torno da


predileção pela série foi a do princípio do valor estético, conceito
trabalhado por Jaus (1982) e Iser (1971). Para os pesquisadores,
quanto mais um texto literário evade as expectativas e experiências
do receptor, e quanto mais ele requer engajamento reflexivo do
leitor com as suas próprias experiências, maior seu valor estético.
Iser (1978, p. 109) explica que um texto que favorece a construção
do valor estético é aquele que “retira certos objetos do seu contexto
paradigmático e por fazê-lo rompe seu marco original de
referências; como resultado, revela aspectos (exemplo: normais
sociais) que havia prevalecido escondidos enquanto o marco de
referências se mantinha intacto”2.
Paulo indica que a série o surpreendeu porque era diferente
daquilo que já tinha visto no gênero fantasia e do que esperava de
um programa televisivo de transmissão linear para o grande
público. E, quando a série passou a ser previsível, perdeu
qualidade, isto é, valor estético.

É uma série que foi muito bem trabalhada, e… assim, eu sei que o…
as últimas temporadas, eu acho que ela deixou um pouco a desejar,
ela… acho que eles tentaram fazer, muito querendo agradar aos fãs e
parece que eles fizeram, fizeram com pressa, não sei. Porque assim,
no começo, as coisas aconteciam, só que, tipo, tinha coisas, fatores
que surpreendiam você, né? Então, ia tudo acontecendo e ia te
surpreendendo. Isso que eu falei é surpresa, esse negócio de… igual
matar um personagem que é o princ… parece o principal, te
surpreende. Você fica, tipo, abismado, você gosta disso, porque é
algo diferente, né? É… algo que tipo assim, depois começou cair um
pouco, porque as coisas começaram a acontecer e todo mundo sabia,
sabe? Tipo, “ele vai fazer isso agora”. “Ah, ah, nossa ela fez’, uau!

2 “takes its selected objects out of the paradigmatic context and so shatters their
original frame of reference; the result is to reveal aspects (e.g. of social norms)
which had remained hidden as long as the frame of reference remained intact”
(ISER, 1978, p. 109).

124
Tipo, todo mundo sabe, né, porque caiu, não sei se na mesmice
(PAULO, 2020, p. 9 e 10).

Sobre o seu horizonte de experiência, o entrevistado comentou


que a série não é igual a nada daquilo que tinha assistido antes.

É diferente daquilo que a gente costuma assistir na televisão ou


também no próprio Hollywood, né? Os filmes, os lançamentos… É,
que nesses filmes, cê pode perceber que sempre tem lá… ah os
“Vingadores”, tem o herói, aí tem a… a… a garota do herói, né, que
é a, tipo se fosse a princesa, a mulher do herói. E aí, ah, ele ajuda ela
e aí tem um relacionamento, aí tem um vilão que ele quer acabar com
tudo. Então você assiste muitas sé… muitas coisas, elas são muito
iguais, né? Então, assim, no sentido de… é… não surpreende,
porque, assim, no final, cê sabe que no final o herói, ele vai… ah, ele
tá se dando mal, mas ele dá um jeito de levantar e ganhar, e aí é…
isso, sabe? (PAULO, 2020, p. 10).

Cê pega o próprio “Senhor dos Anéis” [...] O Frodo, nossa, o Frodo é


intocável, né? Não acontece… nunca ele morre, ele sempre foge, ele
se machuca, mas foge, e… aí no final ele consegue lá jogar o anel.
Então, tem muito essa pegada, também, sabe de você mostrar que ele
é um ser humano, né? O ator, né, o… o personagem, no caso
(PAULO, 2020, p. 5).

O mundo ficcional da série em estudo é considerado


surpreendente porque se contrapõe à expectativa do entrevistado
em relação a um drama televisivo voltado ao grande público que,
tradicionalmente, segue modelos planos de composição de
personagens. As obras do gênero fantasia que orbitavam no
horizonte de experiência do entrevistado e que o ajudaram na
mobilização do gênero enquanto chave de interpretação
constituíam uma expectativa da série ser fabular e platônica. O
telespectador esperava uma narrativa em que o bem prevalecesse
ao mal, o cavaleiro medieval, belo e justo vencesse o vilão
empedernido e a nobreza de caráter fosse recompensada:

125
Eu acho que a série, ela se trata de passar é… não, lógico, é assim é
uma versão um pouco mais fábula, né, do que antigamente, uma
época assim um pouco mais medieval. Mas, eu acho que se trata de
passar um pouco como tinha coisas, assim, um pouco mais reais,
acontecimentos reais e comportamentos, igual, bem políticos, né? [...]
O Senhor dos Anéis, que também é fabula, época assim meio medieval,
mas ele não mostra esse lado político. É lado muito mais assim, de
bem e mal, de enfrentar e Game of Thrones não. Se trata dos… das
pessoas, toda aquela coisa política, e aí tinha preconceito, ah você, pá,
é do norte, ou, pá, é do sul. Então, eu achei muito legal esse
tratamento, assim, desse… da versão… um pouco mais política das
coisas antigas, né? (PAULO, 2020, p. 2).

Em contrapartida, o entrevistado encontrou uma narrativa por


ele considerada visceral e inescrupulosamente realista. Isto é, pelo
distanciamento entre o horizonte de expectativa do sujeito e o texto
recebido na medida em que tal afastamento é responsável pelo
apreço do texto.

Disposição 2: o apreço pelo realismo do gênero fantástico

O sujeito indicou como responsáveis pela predileção da série


elementos narrativos e discursivos que são característicos dos
gêneros drama, tragédia e fantasia. Desse modo, percebemos que o
elemento central de certas disposições de apreço pela trama é
justamente o gênero.
Mungioli, Lemos e Karhawi indicam que o apelo da
teledramaturgia fantástica se dá pela profunda relação com a
realidade (2013, p. 236):

Sua força se encontra na construção de uma trama que,


concomitantemente, articula o ordinário (comum, cotidiano) ao
extraordinário, ou ainda, o temporal ao intemporal. Isso pois produz
sentido ao colocar em jogo as angústias, os medos, as dúvidas que se
articulam com o tempo da história, das personagens e com o tempo

126
e os temas da própria dimensão ontológica humana face à filogênese
e à sociogênese.

Apesar de ocorrer em um mundo habitado por dragões, lobos


gigantes, bruxas e mortos-vivos, a série Game of Thrones evoca
questões sobre elites políticas, lutas de poder, corrupção, violência
e desigualdade social e mudanças climáticas, como também
dramas de esfera privada, por exemplo conflitos familiares,
relações amorosas e todas suas nuanças. Desse modo, o gênero
fantasia atua como um modelo interpretativo de um mundo
construído à semelhança da realidade. Nessa perspectiva,
Timmerman (1983, p. 13) assinala:

[...] o leitor deseja ficar afastado por um tempo, não para escapar, mas
para se reunir à "floresta sem trilhas" da terra com um senso mais
claro de direção e propósito. A fantasia é essencialmente
rejuvenescedora. Permite-nos um certo distanciamento das questões
pragmáticas e oferece-nos uma visão muito mais clara sobre elas.
Esse fato pode ser responsável, em parte, pelo enorme apelo da
literatura de fantasia. Ele faz mais do que simplesmente reestruturar
uma realidade que já conhecemos - também oferece uma realidade
paralela que nos dá uma consciência renovada do que já conhecemos.

Partindo desta compreensão lato do gênero fantasia, os


elementos narrativos e discursivos mobilizados pelo entrevistado
para justificar a sua predileção pela série em torno das suas
características realistas foram: os temas mobilizados, os biotipos
representados, as jornadas de vida das personagens e a
complexidade da realidade social representada.

3[...] the reader longs to stand apart for a time, not to escape but to rejoin earth's
"pathless wood" with a clearer sense of direction and purpose. Fantasy is
essentially rejuvenative. It permits us a certain distance from pragmatic affairs and
offers us a far clearer insight into them. This fact may account, in part, for the
enormous appeal of fantasy literature. It does more than simply restructure a
reality which we already know-it also offers a parallel reality which gives us a
renewed awareness of what we already know. (TIMMERMAN, 1983, p. 1).

127
Temas: Em termos de ecoar a realidade, a série é percebida pelo
entrevistado como um documento histórico e como um tabloide
contemporâneo. Por gostar de História, Paulo afirmou apreciar as
cenas, eventos ou práticas culturais que foram inspiradas em
acontecimentos da vida real, pois lhe possibilitavam enriquecer o
seu imaginário.

O que eu acho que ele influencia bastante quando a gente estuda um


pouco de história, se você for ver na época medieval, cê vê que o
George Martin lá, ele pegou alguns aspectos que realmente
aconteciam naquela época. Tipo, igual, acontece lá com os Lannister,
que eles mantêm a família do mesmo sangue. Então, tipo, eles faziam
incesto para manter a família do mesmo sangue, e todo mundo ser
da coroa. Isso acontecia muito na época medieval [...]. Eles achavam
que o sangue dos nobres era diferente do sangue das outras pessoas,
então eles tinham que manter entre si. Eu acho que mostrar essa
pegada, tipo, numa série, foi muito forte, muito legal também.
Porque é algo que ninguém menciona, ninguém fala, mas existia, na
época, né? E também, essas questões de doenças, igual, tem
paraplégico no “Game of Thrones”, é… se pega lá, tem o… o Tyrion,
né, que tem, ele é anão, então assim, você vê que é algo que mostra
um pouco mais realidade. Porque não é assim: as pessoas, todo
mundo era forte, bonito, e um cavaleiro, né, da Idade Média, não é
assim (PEDRO, 2020, p. 4).

Além da prática do incesto, a sequência do casamento vermelho foi


inspirada no evento conhecido como o jantar negro na Escócia em 1440;
a rivalidade entre os Stark e os Lannisters teve inspiração na Guerra
das Rosas, conflito que pôs duas castas em disputa pelo trono inglês,
ao longo de boa parte do século XV; a Muralha para proteção contra
os white walkers inspirada na Muralha de Adriano erguida pelos
romanos para manter os bárbaros longe de suas terras na região da
atual Escócia; a ferocidade do povo Mongol represtada pelos também
nómades Dathraki; entre tantos outros exemplos que poderiam ser
mencionados como exemplos das refrações da história medieval
trazidas pela série. Como metáforas, os dragões de GoT foram

128
ressignificados pelo entrevistado como armas químicas usadas em
guerras, deixando os seus detentores em grande vantagem em relação
aos oponentes que não possuíam essa tecnologia.
Outro traço da realidade na série que foi mencionado pelo
entrevistado é a pluralidade de corpos e biotipos apresentados na
série. O telespectador nota a ausência da tradicional figura
medieval do cavaleiro, inteligente, nobre, branco e loiro. Em seu
lugar aparecem corpos menos hegemônicos e mais reais: o anão
(Tyrion Lannister), o paralítico (Bran Stark), o leproso (Jorah
Mormont), o homem gordo (Samwell Tarly), o incestuoso e
amputado (Jaime Lannister), o bastardo (Jon Snow). Além disso,
apesar da série apresentar identidades de gênero tradicionais,
encontramos também representações de feminilidades que não
entram em conformidade com os ideais cisnormativos (Arya Stark
e Brienne of Tarth).
A complexidade do comportamento humano, a fuga da
polaridade maniqueísta e as influências de interesses políticos para
a mudança de comportamentos foram também responsáveis pela
predileção da trama. Enquanto estudante da graduação de relações
internacionais, o entrevistado exercitava a identificação do uso de
teorias de negociação e dissuasão nos enredos das trama.

A gente até viu algumas aulas, uma professora minha, ela gosta, ela
mostrou algumas cenas, né? Pra falar disso, justamente esse
comportamento de… é… político de… ah você… “ah, por que que
ele fez aquilo? Por que que ele traiu a pessoa? Ah, por que que ele tá
fazendo aquilo? Pra sobreviver?” É um… é um, uma atitude de
dissuasão ou algo assim? Então, eu acho que isso leva muito também
assim pra área, né, que eu estudo, como eu estudei relações
internacionais, eu tô terminando, eu gosto também dessa parte
política, né? Hoje em dia, eu trabalho em marketing, mas eu gosto
bastante das partes de política, então é um interesse que eu tenho
bastante em comum. Até porque outras séries que eu gosto também,
é… igual, [ininteligível], “Breaking Bad”, também tem um pouco
desse aspecto de… cê vê que tem muita coisa que é politicagem. “Ah,
por que que o cara fez aquilo?” Ah… porque ele quer ganhar…

129
conquistar a amizade do outro, porque ele sabe que ele é poderoso,
ou algo assim, sabe? (PAULO, 2020, p. 2 e 3).

Por fim, ainda dentro do espectro dos traços realistas da trama,


o entrevistado trouxe à tona o apreço pela exposição da
vulnerabilidade da vida e a fragilidade do corpo.

Quando um diretor faz um filme, ele tem lá o herói que salva tudo e
aí, todo mundo quer que esse herói, ele ganhe e que ele consiga
sucesso e tudo mais. E, eu acho que tipo, você pegar e simplesmente
matar ele, porque você mostra que ele é humano, ele pode morrer.
Eu acho que isso, que isso que é legal, porque é algo assim, choca e é
a realidade, porque, tipo, se for pensar, a vida é assim, entendeu? Do
nada, as coisas acontecem e pum, “ah cadê a pessoa?” Não tá mais,
já foi, entendeu? E é [risos] assim… (PAULO, 2020, p. 4 e 5).

A série parece colaborar para a ressignificação do sentido da


morte, do morrer e dos mortos, temas que no Brasil são vistos como
estigma, tabu e misticismo, de acordo com Bernieri e Hirdes (2007).
Apesar do conteúdo tanatológico no entretenimento e no
jornalismo serem recorrentes na televisão brasileira (Kovács, 2008),
a pesquisa encomendada pelo Sindicato dos Cemitérios e
Crematórios Particulares do Brasil (Sincep) e realizado pelo Studio
Ideias4 identificou que falar sobre a morte é um tabu para mais de
73% dos brasileiros (COELHO, 2018). Baseada em uma
amostragem de mil pessoas representativa da população brasileira,
a pesquisa mostrou que, quanto mais se envelhece, mais o tema da
morte é presente no cotidiano. Este tipo de conversa está presente
para 21% dos jovens entre 18 e 24 anos; para aqueles com mais de
55 anos, o percentual salta para 33%. Segundo cobertura de Alvim
(2018) para a BBC News, entre os principais resultados da pesquisa
está a baixa presença do tema no cotidiano “74% afirmam não falar
sobre a morte no cotidiano. Os brasileiros associam também a

4 Agência de pesquisa de comportamento do consumidor e inovação em


conhecimento localizada na cidade de São Paulo. www.studioideias.com.br

130
morte a sentimentos difíceis, como tristeza (63%), dor (55%),
saudade (55%), sofrimento (51%), medo (44%)”. Apresenta-se,
portanto, um paradoxo em que conteúdos tanatológicos estão
presentes na mídia, entretanto as pessoas relatam sentir ansiedade
em relação a estes temas.
Em situação análoga ao Brasil, Durkin (2003) indica que, nos
Estados Unidos, o conteúdo tanatológico é presente na mídia, onde
certos nichos apresentam fascínio pela morte, o morrer e os mortos,
enquanto que outra parcela da população sente medo e ansiedade.
O paradoxo pode ser interpretado de três maneiras, segundo o
pesquisador. Primeiro, no contexto da cultura popular, a morte, o
morrer e os mortos são redefinidos em formas que estimulam
diversas reações que não são primordialmente o terror, entre elas
fascínio, humor, desfrute da desgraça alheia ou curiosidade
mórbida. Segundo, a apreciação de temas tanatológicos
encontrados na cultura popular requer algum desapego por parte
do indivíduo. Espectadores de luta livre profissional, filmes de
terror, jogadores de videogames violentos, são chamados a
suspender o medo, a insegurança e a ansiedade gerada pela
possibilidade de viver algo semelhante ao que se está assistindo,
objetivando a atenção a outros aspectos da narrativa. Finalmente, o
pesquisador apresenta o argumento de que a tremenda quantidade
de exposição à morte, o morrer e os mortos que as pessoas recebem
através da cultura popular pode tornar mais fácil a aceitação destes
fenômenos. A análise da entrevista nos leva a corroborar esta
última linha argumentativa.
Os escassos fóruns de discussão sobre a morte para o público
leigo brasileiro apontam para grandes lacunas no tema da
educação para morte (KOVÁCS, 2005). A teledramaturgia torna-se
um espaço de exposição dos temas tanatológicos que tão
limitadamente parecem ser tratados formalmente nas instituições
constitutivas dos sujeitos (família, escola, estado e religião). Não
neutralizando a sensibilidade, como sugerido anteriormente, mas
expandindo a experiência sensível.

131
Para Buonanno (2004, p. 343), "é por meio da ficção que
acontecem em grande parte os contatos mediados com as raras
experiências de que fala Giddens". A pesquisadora explica que para
Giddens os problemas existenciais e dilemas morais devem ser
deixados à parte, ou em certo sentido 'presos', da vida cotidiana
com a finalidade de preservar um sentimento de segurança
ontológica. A loucura, a doença e a morte ficam retidas em
instituições de controle como manicômios e hospitais, tornando-se
experiências raras. Porém, Buonanno assinala, a raridade de
vivenciar essas experiências diretamente é atenuada pela
frequência que a mídia as apresenta:

[...] a informação, o cinema, a televisão e todo tipo de narrativa nos


mantém em contato constante com as experiências raras e contribuem
para assegurar audiência, talvez até mesmo enriquecendo nossa
sensibilidade existencial para as áreas mais dramáticas da vida
humana. Especialmente em relação a doenças, crimes e morte, a função
mediada pela ficção televisiva aparece de forma relevante; é sobre
essas áreas de experiência que se baseiam alguns de seus maiores e
mais populares gêneros: policial, médico e de ação. O cálculo
minucioso das ações criminais ou as mortes violentas que se aplicam,
por exemplo, na programação diária ou semanal das séries e seriados
talvez não respondam aos propósitos para os quais geralmente são
praticados - medir a exposição à violência infligindo seus efeitos no
comportamento -, mas provam como os mundos da ficção são
largamente penetrados pelas experiências presas à realidade da vida
cotidiana (BUONANNO, 2004, p. 344).

Segundo a pesquisadora (BUONANNO, 2004), os contatos


com áreas básicas e ocultas da vida humana, ainda que mediados
pela televisão através da narrativização da sociedade, nos conduz
a uma vasta gama de experiências.
Assim, consideramos que experimentar imaginariamente a
perda da personagem ajuda a criar um plano de operação ou uma
rota de fuga caso uma fatalidade como a ficcional viesse acontecer.
Pela morte inesperada de personagens, é possível aceitar a

132
fragilidade, finitude e a vulnerabilidade humana. Observar o luto
no drama televisivo pode favorecer o entendimento e o
acolhimento dos fortes sentimentos presentes nessas situações.

Disposição 3: o apreço pelo trágico no gênero fantástico

De acordo com Santos (2005, p. 55) “o enredo do texto trágico


caracteriza-se pela mudança de sorte do herói que se realiza através
da peripécia, do reconhecimento e, algumas vezes, da catástrofe
configurada como espetáculo grotesco, seja pela maneira como se
efetiva a morte do herói, seja por sua mutilação”. Um traço
fundamental das produções artísticas trágicas é a inexorabilidade
do destino. É através do encadeamento de fatos fatídicos que o
herói dá-se conta de sua impotência e vulnerabilidade (SANTOS,
2005). “Os temas que parecem repetir-se na tragédia dizem respeito
à terrível precariedade da existência humana, quer o herói se
defronte com obstáculos esmagadores ou impossíveis opções”
(DANZIGER; JOHNSON, 1974, p.138 apud SANTOS, 2005).
Explicando a tragédia popular, Martin-Barbero (2009) aponta
para a mudança na concepção do heroísmo. No ethos romântico e
no ethos cristão o herói é caracterizado em termos de sofrimento,
resignação e paciência. O herói passa a ser vítima por ter a
identidade privada, condenado a sofrer injustiças por isso. “Para
Aristóteles a finalidade última da tragédia é a catarse” (SANTOS,
2005, p. 57). E, nesse sentido, Martin-Barbero explica que “o
dispositivo catártico funciona fazendo recair a desgraça sobre um
personagem cuja debilidade reclama o tempo todo proteção -
excitando o sentimento protetor no público -, mas cuja virtude é a
força que causa admiração e de certo modo tranquiliza” (MARTIN-
BARBERO, 2009, p. 169). Para o pesquisador (Ibid), o sentimento
básico mobilizado pelo texto trágico é a dor. Desse modo, a
purificação das emoções do público acontece como consequência
do sofrimento, como reitera Santos:

133
À medida que a peça caminha para o clímax, o espectador vai se
envolvendo com a trama e sentimentos de compaixão e temor fazem
com que sofra juntamente com o herói o seu destino. Desperta-se a
compaixão por sua desgraça imerecida e o temor pela possibilidade
de vivenciar o mesmo infortúnio (SANTOS, 2007, p. 57).

Evidenciamos a disposição de predileção em razão do seu


tratamento trágico quando solicitamos que seja indicado o episódio
que mais lhe chamou a atenção. O participante com convicção
escolheu O Casamento Vermelho (T03, E095).

O Casamento Vermelho, né? É o… [risos] Então, porque assim,


cara… ele basicamente, em um episódio ele matou quatro
personagens principais da série, eu achei isso, mano, um absurdo,
porque, tipo, não sei, assim, lógico que é meio óbvio que ia acontecer
algo assim, porque tinha umas tretas lá, se… né, cê assistiu a série
também, cê sabe disso, tava lá mó treta com, com o próprio pessoal
do norte, mas que era de outro reino ali, e aí quando, cara, cê vê
aquela cena dele matando os filhos que era do Ned Stark, que nessa
época todo mundo adorava desde a primeira temporada, que
também morreu. Então, acho que foi muito marcante, né? Foi bem
chocante, e aí acho que por isso que é legal, porque você vê que assim,
a… a série não tem um prediletismo, né? Não tem assim, ah, um
personagem favorito e ele é intocável. Se bem que, é… no final, né,
aconteceu um pouco disso, mas até a quarta temporada, acho que não
tinha isso ainda e acabou que ficou marcante por causa disso, porque
ele matou, basicamente, os personagens principais, ali, de uma vez,
vários. E eu achei isso chocante [risos] (PEDRO, 2020, p. 4).

5O Casamento Vermelho foi um massacre ocorrido durante a Guerra dos Cinco


Reis, em 299d.C, no qual Robb Stark, Rei do Norte e do Tridente, sua esposa, Talisa
Stark, sua mãe, Catelyn Stark, e cerca de três mil e quinhentos vassalos da Casa
Stark foram chacinados. O massacre foi arquitetado por Lorde Walder Frey junto
de Lorde Roose Bolton. Sinopse obtida em: https://gameofthrones.fandom.
com/pt-br/wiki/Casamento_Vermelho#:~:text=O%20Casamento%20Vermelho
%20foi%20um,da%20Casa%20Stark%20foram%20chacinados. .

134
O evento aparentava selar a desgraça da casa Stark, que na
série representava a honra. Após a morte de Ned, Robb, o seu
primogênito, assume a posição de Lord de Winterfell.
Acompanhado de sua esposa e mãe, sai de Winterfell para vingar
a morte de Ned. Todos foram brutalmente assassinados numa
emboscada e seus exército é também dizimado no mencionado
episódio. Theon Greyjoy invade Winterfell. Os caçulas da casa
Stark, Bran e Rickon, agora órfãos de pai e mãe, fogem para a
Muralha. Arya, que vê o irmão, a mãe e a cunhada serem mortos,
vaga com o Cão aprendendo a ser uma assassina para vingar a
morte da sua família. Sansa é controlada e violentada pelos
Lannister, depois pelo Mindinho e finalmente por Ramsay Bolton
até ser resgatada e voltar a Winterfell.
A tragédia parece despertar no telespectador uma vertigem,
isto é, uma sensação de ter sido surpreendido ou um pânico
momentâneo. Cenas em que estes elementos são explorados
infligem na consciência lúcida uma espécie de desordem
voluptuosa e destroem por um instante a estabilidade da
percepção. Assim, como nos parques de diversões, em que após
rodopiar abruptamente as pessoas retornam à fila para repetir a
atração, a vertigem do telespectador é renovada nos próximos
episódios com mais plot twists que exploram o trágico associado
ao realismo grotesco. Caillois (2017) indica que mesmo os jogos
que exploram estas sensações por procedimentos físicos (queda
ou projeção no espaço, rotação rápida, o escorrega, etc.),
provocam uma vertigem de ordem moral, um arrebatamento que
de repente toma o indivíduo. O antropólogo afirma que “essa
vertigem se casa facilmente com o gosto normalmente reprimido
da desordem e da destruição. Traduz formas grosseiras e brutais
da afirmação da personalidade” (CAILLOIS, 2017, p. 64). O
telespectador se sente como num boxe, assistindo a uma luta livre
ou a um combate de gladiadores.

As coisas aconteciam, só que, tipo, tinha coisas, fatores que


surpreendiam você, né? Então, ia tudo acontecendo e ia te

135
surpreendendo. Isso que eu falei é surpresa, esse negócio de… igual
matar um personagem que é o princ… parece o principal, te
surpreende. Você fica, tipo, abismado, você gosta disso, porque é
algo diferente, né? (PAULO, p. 9, 2020).

O trágico na série parece dar aos telespectadores a sensação de


estar participando de algo disruptivo, extraordinário e excepcional.
Isso é central, de acordo com o entrevistado, para a manutenção da
predileção pela série ao longo das suas temporadas. Apoiados no
referencial teórico, entendemos que a disposição de predileção em
torno da tragédia reside, mais do que em despertar o senso de
proteção como indicado por Martin-Barbero (2009), na busca pela
desordem específica desse pânico momentâneo.

Outras disposições

A entrevista em análise ainda nos indica outras disposições em


torno da predileção pela série que incidem de maneira consistente
na construção do sentido e valor, entretanto, o limite deste texto
nos impele a apresentá-las em outra oportunidade. Algumas delas
são o apreço pela complexidade do universo narrativo (MITTEL,
2012), pela espalhabilidade6 (JENKINS, 2009; JENKINS, FORD,
GREEN, 2015), pela geoficção (worldbuilding) e sua perfurabilidade
(MITTEL, 2009), pela complexidade das personagens (MITTEL,
2012; BAKHTIN, 2018b; LUKÁCS, 1965) e pelas suas jornadas de
reconhecimento (MARTIN-BARBERO, 2009).

Considerações

Ao longo do texto, discutimos possíveis usos do conceito de


cronotopo em pesquisas de recepção e particularmente na pesquisa
de recepção da série Game of Thrones aqui apresentada. Para isso,

6Prefere-se aqui o termo espalhabilidade para traduzir spreadability, ao invés de


propagabilidade, usado na tradução de Cultura da Conexão (1a edição, 2014), por
crermos que expressa melhor o conceito.

136
inicialmente refletimos sobre a aplicabilidade do cronotopo em
nível metodológico como dispositivo analítico fértil para estudar
questões espaço-temporais nas diversas instâncias do processo de
recepção. Concluímos que o conceito ajuda a sistematizar e
organizar a observação das mediações que agem na ressignificação
dos enunciados recebidos nas diversas articulações espaço-
temporais do processo de recepção.
Na pesquisa de recepção da série Game of Thrones buscamos
identificar os elementos narrativos e discursivos no texto midiático
incidentes na predileção da série sustentando uma assistência
engajada emocionalmente, assídua e íntima. Para dar suporte
teórico e metodológico a esta problemática, mobilizamos a teoria
do ator disposicional e contextual de Bernard Lahire (2004, 2008).
Percebemos que o conceito de contexto tinha por objetivo identificar
as conjunturas espaço-temporais no processo de construção de
sentidos, portanto, uma oportunidade de operacionalizar o
conceito de cronotopo da recepção em um dispositivo de análise
condizente com os objetivos da pesquisa.
A técnica de coleta de dados primários foi entrevista semi-
estruturada individual. Por seu caráter qualitativo, apresentamos
neste texto os resultados da análise de uma das 14 entrevistas feitas
para a tese de doutorado da autora. A entrevista teve por objetivo
reconhecer a pluralidade de disposições para o engajamento com o
referente televisivo no contexto diacrônico durante o tempo em que
a série foi assistida. Após a utilização do dispositivo analítico no
corpus constatamos a existência de um conjunto de disposições em
torno da predileção pela série que operam no mesmo contexto
diacrônico. Isto é, constatamos a pluralidade disposicional que
Lahire propõe. No caso da pesquisa aqui realizada, as disposições
são elementos narrativos e discursivos que, ressignificados, foram
responsáveis pelo apreço da série e sustentaram a televidência ao
longo das oito temporadas. As disposições discutidas acima foram:
disposição em torno do princípio do valor estético, disposição em
torno do apreço pelo realismo do gênero fantástico, disposição em
torno do apreço pelo trágico do gênero fantástico.

137
Lahire indica que no mesmo contexto, poderia haver relações
de hierarquia, contraste, oposição ou alternância entre as
disposições. Tais relações de oscilação não foram constatadas nesta
pesquisa. No seu lugar, o informante relatou ser um conjunto de
disposições as que juntas sustentaram o vínculo com a série.
Conforme afirmado pelo entrevistado e evidenciado na análise, o
engajamento com o referente televisivo é resultado do grupo de
elementos narrativos e discursivos que interpretados a partir do
seu horizonte de experiência são atribuídos de valor estético.
Nos termos da teoria de Lahire (2004, 2008), poderiam existir
variações disposicionais em torno do mesmo proponente em
decorrência de mudanças de contexto sincrônico (cronotopos de
recepção). Apesar de que o entrevistado relatou ter assistido à série
em diversos contextos (na casa dos pais com o irmão, no
apartamento da namorada, no bar com os amigos), não foram
enunciadas variações em torno da predileção pela série por causa
das mudanças no contexto sincrônico. Diante disto, encontramos
possibilidades para futuros desdobramentos da pesquisa.
Um instrumento de coleta de dados que seja desenhado
especificamente para detectar a construção de disposições nos seus
respectivos contextos sincrônicos pode examinar possíveis
alternâncias, flutuações e até mesmo relações de oposição dentre as
disposições em torno de um mesmo produto midiático. Técnicas de
coleta de dados como entrevistas seriadas, observação participante
e seções de discussão em grupo podem verificar o uso performático
de disposições nos diversos cronotopos do processo de recepção,
isto é, nos diversos contextos sincrônicos e diacrônicos.

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141
142
PARTE 2

EXOTOPIA E GÊNEROS DO DISCURSO NA


FICÇÃO TELEVISIVA

143
144
Mikhail Bakhtin e a telenovela brasileira:
exotopia, autoria e gêneros discursivos em análise1

Anderson Lopes da Silva

A telenovela brasileira é a materialização de um processo


comunicacional muito rico, complexo e representativo das matrizes
culturais que formam o tecido social nacional. Desde seu início na
década de 1950 (com a obra Sua Vida me Pertence, TV Tupi, 1951) e,
com mais força, a partir de Beto Rockfeller (TV Tupi, 1968), a
telenovela brasileira tem rendido inúmeras memórias afetivas e
simbólicas ao público que a acompanha por gerações seguidas.
Porém, é apenas por volta dos anos de 1980 que a materialidade da
telenovela ganha interesse de pesquisa e se torna um objeto de
estudo acadêmico extremamente pertinente à compreensão da
nação brasileira em suas contradições políticas, econômicas, sociais
e culturais (LEAL, 1983). Como recorda Motter (2001, p. 80),
inspirada pelas reflexões bakhtinianas sobre a ideologia, pensar a
telenovela brasileira como um documento histórico é algo que
necessariamente passa pela compreensão das formas como os
meios de comunicação e a memória estão interconectados direta e
profundamente:

A telenovela, assim como a definimos, independentemente das


possibilidades metodológicas de aferição e mensuração, permite-nos
afirmá-la como um centro de recuperação, reconstrução, produção,
atualização, irradiação e manutenção de memória. No jogo que se
estabelece entre esses diferentes aspectos, o presente com suas

1 O texto atual foi publicado originalmente em espanhol, com pequenas


modificações, sob o título La telenovela brasileña y Mijaíl Bajtín: extraposición, autoría
y géneros discursivos en análisis, na Contratexto – Revista de la Facultad de
Comunicación (Universidad de Lima, Perú), n. 35, edição jun./2021. Disponível
em: https://doi.org/10.26439/contratexto2021.n035.4972. Acesso em: 28 jan. 2023.

145
marcas de época tais como o cenário, os comportamentos e os
conflitos traz o passado com seus cenários, comportamentos e
conflitos, num diálogo em que se processam a rememoração e o
mapeamento do presente em construção apontando já para o futuro.

Junto ao reconhecido “modelo brasileiro” de produção,


discutido por autores como Motter (2004), Motter e Mungioli
(2008), Martín-Barbero (2009), Mazziotti (1993), Santa Cruz (2003) e
Borkosky (2016), o formato industrial adquirido pelo modus faciendi
de nossa teledramaturgia adentra cotidianamente as casas de
milhares de brasileiros. Uma telenovela que, ao lidar com a
projeção e a identificação daqueles que a consomem, é também
“amada e odiada” na mesma intensidade por acadêmicos e
estudiosos do assunto, isto é, provoca posicionamentos polarizados
numa clara acepção de como as diferenças entre os “apocalípticos
e integrados”, para fazer uso do vocabulário de Umberto Eco, ainda
é latente. Como afirma Maria Rita Kehl:

Cotidiana e doméstica, transformou-se nesse período [década de


1970] na principal forma de produção da imagem ideal do homem
brasileiro. Mais especificamente, as novelas das 20h da Globo, as
mais abrangentes e mais assistidas da televisão brasileira,
cumpriram nos anos 70 – quando começaram a se modernizar e a se
afirmar com uma estética realista – o papel de oferecer ao brasileiro
desenraizado que perdeu sua identidade cultural um espelho
glamurizado, mais próximo da realidade de seu desejo do que da
realidade de sua vida, e que por isso mesmo funcionou como
elemento conformador de uma nova identidade, identidade
brasileira, identidade-de-brasileiros, talvez o mais parecido com
uma identidade nacional que este país já teve. (KEHL, 1986, p. 289).

Dessa forma, o capítulo propõe uma leitura da telenovela


brasileira a partir do pensamento dialógico de Mikhail Bakhtin
representado nas conceituações de exotopia, autoria e gêneros do
discurso. Tem-se em mente a dificuldade deste empreendimento,
em especial, pela desgastada ideia de que tais concepções poderiam

146
apenas ser tensionadas no campo da literatura e do estudo do
romance – um preconceito, como sempre, descabido (BRAIT, 2008,
p. 91). Não apenas é possível pensar o dialogismo bakhtiniano nos
meios de comunicação atuais, como o é necessário fazê-lo para a
compreensão de assuntos fundamentais como estética televisiva,
cultura televisiva, imaginação melodramática e hibridização
cultural nas investigações em telenovela (RIBEIRO; SILVA, 2014).
Intelectuais brasileiros e brasileiras como Maria de Lourdes Motter
(in memoriam), Maria Cristina Palma Mungioli, Daniela Jakubaszko
e Igor Sacramento, para ficar em alguns poucos nomes, são
exemplos de pesquisadores que se utilizam do arcabouço teórico-
metodológico bakhtiniano para pensar as materialidades empíricas
da telenovela brasileira, em específico, e da teledramaturgia (em
outros formatos como séries e minisséries), como um todo.
As discussões pautadas por estes autores são devedoras, em
grande medida, dos esforços de outros intelectuais que fizeram “a
ponte” entre os estudos bakhtinianos e a comunidade acadêmica à
parte da língua russa. Em outras palavras, os búlgaros Julia
Kristeva (1941-), com Bakhtine, le mot, le dialogique et le roman (1967),
e Tzvetan Todorov (1939-2017), com Mikhaïl Bakhtine: le principe
dialogique (1981), são os responsáveis por introduzirem e
traduzirem o pensamento de Bakhtin ao mundo ocidental. Por
dominarem as línguas russa e francesa, eles também foram
responsáveis por traduzir/criar neologismos a partir de termos
(correlatos ou não) do vocabulário bakhtiniano como: exotopia,
intertextualidade, translinguística etc. (traduções/neologismos que
nem sempre são consensuais ou bem aceitos no universo
acadêmico). Além deles, a pesquisadora Marina Yaguello (1944-),
francesa e russófona, com Le Marxisme et la philosophie du langage
(1978), é outra grande responsável por traduções da obra de
Bakhtin/Volóchinov para o meio intelectual do Ocidente (SOUZA,
2002, p. 51-53; ZBINDEN, 2006, p. 12; SÉRIOT, 2015, p. 22-23, SINI,
2016, p. 224). Mesmo no Brasil, a recepção dos escritos bakhtinianos
ocorreu, inicialmente, por meio das traduções francesas já que, no
contexto fortemente anticomunista do regime ditatorial vivido pelo

147
Brasil (1964-1985), muitas vezes, “um autor soviético só poderia ser
lido em tradução ocidental” (SCHNAIDERMAN, 1983, p. 9).
Por outro lado, é importante ressaltar, muito também tem se
discutido sobre como a recepção de Bakhtin nos círculos acadêmicos
brasileiros passou por um curioso processo de enviesamento teórico-
linguístico. Como explicam Grillo e Américo (2013), tal
enviesamento pode ser visto tanto em relação às perdas que
naturalmente decorrem da tradução de traduções (ou seja, verter ao
português os livros já traduzidos ao francês, por exemplo, e não
diretamente fazer a tradução via a língua original, o russo2) quanto
à associação indevida de Bakhtin erroneamente compreendido como
uma parte extensiva dos formalistas e estruturalistas (algo quase
irônico já que o autor justamente procurou se distanciar de tais
visões durante a criação de sua obra). À vista disso, segundo
Tul’činskij (2013, p. 80), pode-se dizer, então, que no Brasil (como em
algumas outras partes do Ocidente) a recepção de Bakhtin se deu por
uma “perspectiva invertida” não apenas no campo dos estudos
literários e filológicos, mas, como o autor especificamente pontua,
também na “teoria da comunicação”. Ainda assim, entre as
limitações e as potencialidades, reforça Sini (2016, p. 224), é
indiscutível a presença e a importância do Brasil na discussão da
“bakhtinística” ou da “bakhtinologia” (IVANOV, 1995; EMERSON,
2003) nas contemporâneas fortunas críticas feitas sobre o autor ao
redor do mundo.
Dessa maneira, com a intenção de dar prosseguimento a esta
tradição de estudo da telenovela brasileira a partir de Mikhail
Bakhtin, este capítulo propõe pensar o dialogismo bakhtiniano
como um posicionamento teórico que baliza as discussões no

2 Desde a chegada da obra bakhtiniana no Brasil, as traduções se deram no fim dos


anos de 1970 seguindo a ordem “russo-francês-português. Apenas na primeira metade
da década de 1980 é que teremos as primeiras traduções “russo-português” graças ao
pioneiro trabalho de Paulo Bezerra e, no fim da mesma década, de Aurora Bernardini.
Já em anos bem mais recentes, somam-se a eles as pesquisadoras e tradutoras Sheila
Vieira de Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo também com traduções diretas
do russo (GRILLO, AMÉRICO, 2013, p. 85).

148
campo dos Estudos Televisivos. Ilustrando empiricamente tal
tensionamento, opta-se por trazer a telenovela Cordel Encantado
como o objeto no qual tais leituras bakhtinianas podem ser
expressas (mas, vale ressaltar: a matriz analítica de Bakhtin é
adaptável a toda e qualquer narrativa ficcional seriada televisiva e
não apenas a obra aqui colocada em estudo). Esta telenovela, que
em 2021 completou 10 anos, foi um sucesso de audiência e crítica
especializada, além de ter fomentado pesquisas acadêmicas no
campo da Comunicação em nível de mestrado como demonstram
as análises de Aires (2013) e Silva (2015).
De igual importância, este capítulo toma o princípio
bakhtiniano de exotopia como o seu posicionamento metodológico
na relação entre o pesquisador e o seu objeto pesquisado. Logo, a
exotopia é pensada como o movimento de distanciamento-
aproximação do analista que detém, por um excedente de visão,
um campo de observação ampliado do objeto empírico ao qual se
dedica estudar (neste caso, a telenovela brasileira). Como
posicionamentos analíticos, por sua vez, as questões de autoria
(especificadas na distinção entre autor-pessoa e autor-criador) são
colocadas em cena para perceber as peculiaridades envoltas na
tessitura teledramatúrgica de Cordel Encantado. Por fim, em um
grau menor de importância analítica, os debates em torno dos
gêneros do discurso (com foco no entendimento dos gêneros
discursivos secundários) também são trazidos a este trabalho.

O dialogismo bakhtiniano nos meios de comunicação:


posicionamento teórico

Considerando o diálogo como um tecido organizado e


estruturado que faz parte da natureza histórica dos seres humanos,
somos levados a entendê-lo como o instrumento transformador da
realidade na leitura do mundo e da palavra. Nessa linha de
raciocínio, Mikhail Bakhtin apresenta o papel da linguagem como
primordialmente assentado sobre uma constituição dialógica. Suas
ideias sobre a humanidade e a vida são marcadas pelo princípio

149
dialógico, constituidor da existência humana, segundo o qual a
interação entre os sujeitos é o princípio fundador tanto da
linguagem como da consciência. Logo, o sentido e a significação
dos signos dependem da relação entre sujeitos e são construídos na
interpretação dos enunciados. Sujeitos esses constituídos pelas
injunções sócio-históricas da sociedade.
Para Volóchinov (2019, p. 219), o uso do termo diálogo não se
constitui em mera técnica conversacional ou de evolução temático-
discursiva capaz de revelar pontos de vista e visões de mundo, nem
mesmo em uma estratégia para encobrir o domínio através da
linguagem:

Obviamente, o diálogo, no sentido estrito da palavra, é somente uma


das formas da interação discursiva, apesar de ser a mais importante.
No entanto, o diálogo pode ser compreendido de modo mais amplo
não apenas como a comunicação direta em voz alta entre pessoas
face a face, mas como qualquer comunicação discursiva,
independentemente do tipo.

A concepção de dialogismo está, portanto, no espaço


interacional entre os sujeitos e, por isso, encontra-se o sentido
atribuído por Bakhtin (2003) ao papel do “outro” como
imprescindível na constituição do sentido e no fato de que
nenhuma palavra é nossa, mas traz em si a perspectiva de outra
voz. Dito de outro modo, ao entendermos os meios de comunicação
como gêneros discursivos secundários (conceito a ser explicado em
tópico específico), conseguimos enxergar que a construção das
narrativas televisivas, por exemplo, é entremeada pelas vozes
sociais, isto é, pelos princípios axiológicos presentes na sociedade.
E, para além dos meios, é através das mediações sociais neles
provocadas e reverberadas nas relações entre os receptores da obra
que a alteridade se torna ainda mais nítida.
Ou seja, a comunicação só pode existir a partir de relações
intersubjetivas e interindividuais de sujeitos socialmente
organizados (logo, sujeitos envoltos em uma unidade social).

150
Segundo Volóchinov (2017), a consciência individual não só nada
pode explicar, mas, ao contrário, deve ela própria ser explicada a
partir do meio ideológico e social. É só a partir da separação dos
fenômenos ideológicos da consciência individual que nós
conseguimos conectá-los às condições e às formas de comunicação
social para, a partir daí, compreender as materialidades dialógicas
da linguagem. “A consciência individual não é a arquitetura da
superestrutura ideológica, mas apenas sua inquilina alojada no
edifício social dos signos ideológicos. [...] Pois a existência de um
signo não é nada mais que a materialização dessa comunicação”
(VOLÓCHINOV, 2017, p. 98).
É precisamente na palavra que melhor se revelam as formas
básicas e ideológicas gerais da comunicação. A palavra acompanha
todo ato ideológico. Os processos de compreensão de todos os
fenômenos ideológicos (um quadro, uma telenovela, um ritual, um
comportamento humano) não podem operar sem a participação do
discurso interior3. Isso não significa, obviamente, que a palavra
possa suplantar qualquer outro signo ideológico (BAKHTIN, 2003,
VOLÓCHINOV, 2017). Desse modo, fica claro que mesmo com a
participação do discurso interior, o processo não pode acontecer
individualmente, mas na sua interlocução entre os membros de
uma sociedade. Assim, a linguagem nunca é utilizada de maneira
abstrata, mas sim em um contexto histórico e social onde se
interpenetram a enunciação, as condições de comunicação e as
estruturas sociais.

3 Segundo Hartmann (2007, p.81), o discurso interior é entendido por Bakhtin


como “[...] o autodialogismo ou ainda o discurso interior, nomes dados ao mesmo
fenômeno discursivo da fala interior, o falar consigo mesmo. Nenhum ser
humano, na sua relação com a linguagem, escapa a esse fenômeno, que, na
verdade, ao longo de uma vida, é muito mais frequente do que a fala exterior. O
problema é que se trata de um fenômeno com o qual estamos familiarizados, mas
que é impossível de ser analisado diretamente, em razão de ele não produzir um
material concreto no nível da língua. Tal fato não descarta a relação deste
fenômeno com a língua. Diante disso, o que nos é possível analisar é tão somente
a representação do discurso interior e não o discurso interior em si”.

151
É dizer que, ao analisarmos uma telenovela, como aqui
fazemos, jamais podemos descolar tal exercício do contexto de sua
produção, da construção de seu enunciado e, num viés mais
especulativo, das formas de recepção e circulação cultural deste
produto midiático. Como afirma Irene Machado, pensar o
dialogismo a partir dos meios de comunicação massivos não é
apenas transportar formulações de uma área (como o estudo do
romance) para outra. Pelo contrário, é redimensionar tais conceitos
pelos encontros e diálogos interculturais, isto é, reelaborar
dialogicamente o pensamento. No caso da televisão, a autora a
apresenta como um “enunciado concreto da comunicação mediada”
e, a partir de nossa leitura, analisar a telenovela neste viés é
compreendê-la na esfera comunicativa da cultura onde tudo
reverbera em tudo e onde as formas culturais vivem nas “fronteiras”
– gerando, assim, elementos híbridos (MACHADO, 2008, p. 162).

A telenovela brasileira Cordel Encantado: posicionamento do


objeto empírico

A telenovela Cordel Encantado foi exibida pela Rede Globo de


Televisão entre 11 de abril e 23 de setembro de 2011, no horário das
18h, com a autoria de Thelma Guedes e Duca Rachid, numa
totalidade de 143 capítulos. A história de tom de fábula se passa em
locais fictícios como Seráfia (um reino europeu distante) e Brogodó
(uma típica cidade do sertão nordestino brasileiro). Como afirma
Nilson Xavier (2011), a união de dois mundos imaginários tão
distantes entre si provou ser uma escolha mais do que acertada
pelas autoras, já que:

A união desses imaginários era representada pelo amor entre a


cabocla brejeira (Açucena/Aurora), criada por lavradores, sem saber
que é a princesa de uma casta real europeia, e um jovem sertanejo
(Jesuíno), que fica proscrito ao ser identificado como o filho legítimo
do cangaceiro mais temido e respeitado da região. Quando a família

152
real vem da Europa, em busca da herdeira do trono, o amor dos dois
fica ameaçado (XAVIER, 2011, s/n.).

No caso de Cordel Encantado, pensar a hibridização é pensar a


mistura e a mestiçagem como processos intrínsecos à cultura e à
comunicação. Entretanto, mais do que lidar com as fusões,
acomodações, crioulizações, sincretismos, traduções e adaptações,
pensar a hibridização é também pensar em seus resultados, suas
consequências e impactos (SILVA, 2015). Ao invés de entender a
hibridização apenas como a possibilidade da mestiçagem, pensar de
modo híbrido implica exigências maiores daquele que se propõe a
compreendê-la. Exige certo desconforto, pouca linearidade e o
abandono de conclusões que recaiam em meras relações de causa e
efeito. Uma destas exigências está justamente em reconhecer os
elementos que compõem a hibridização – isto é, elementos de sua
meta-construção e contexto – para daí, sim, elencar os elementos
frutos da mistura, ou seja, aquilo que resulta sui generis no processo.
Em termos mais gerais, é interessante observar que o estudo
da telenovela só começa a ser levado mais a sério dentro dos
espaços acadêmicos a partir do desenvolvimento gradual da Escola
Latino-Americana de Comunicação (especialmente pela presença
da Teoria das Mediações como um dos fios condutores dos Estudos
Culturais Latino-Americanos). Ou seja, é depois dessa renovação
epistemológica no continente que o olhar metodológico se
transferiu de um lugar onde a “manipulação, massa amorfa e
espectador acrítico” eram presentes, para outro lugar no qual as
possibilidades de “apropriação, de ressignificação e
ressemantização” por parte do espectador ganhavam importância
nas discussões entre a comunicação, a cultura e a política
(MARTÍN-BARBERO, 2009).
Lopes e Mungioli (2012, p. 158) explicam que, na tessitura
melodramática de Cordel Encantado, “[...] o discurso híbrido da cultura
oral sertaneja construiu uma trama envolvente baseada em duas
importantes matrizes narrativas da cultura brasileira: a literatura de
cordel e a telenovela”. E complementam dizendo que: “[...] ‘Cordel

153
Encantado’ enreda-nos pela polissemia e plasticidade semiótica do
texto audiovisual em um mundo ficcional com referências diretas e
indiretas” às várias hibridizações narrativas e culturais (LOPES;
MUNGIOLI, 2012, p. 158). E aqui se entende a hibridização cultural,
pela conceituação de García Canclini (2011, p. 283), como o “[...]
desmoronamento de categorias e pares fixos de oposição”, isto é, as
formas pelas quais os elementos culturais se fundem e produzem
“culturas híbridas” gerando “gêneros impuros”.
Nesta obra, há uma polissemia que se constrói com as matrizes
culturais e os formatos industriais da literatura de cordel e da
telenovela. Destacam-se nessa composição, como uma
possibilidade, que a formação dos personagens (arquétipos
modulares) e sua a interdependência (elementos internos à
produção de sentido) fizeram com que a narrativa seriada de Cordel
Encantado conseguisse demonstrar a hibridização cultural. Dito de
outro modo, nesta ficção seriada o processo de hibridização
cultural se deu a partir do uso de elementos da cultura popular
(literatura de cordel, imaginário popular sobre o cangaço, contos
de fada) e de uma leitura da cultura erudita (referências à literatura
francesa, elementos da corte, mundo medievo) numa produção da
cultura massiva (telenovela e suas lógicas narrativas), reelaborando
os processos de produção de sentido dentro de materialidades
dialógicas da linguagem (SILVA, 2015).
E é pelas tramas que constituem a narrativa de Cordel Encantado
que este capítulo procura compreender como as questões de autoria e
gêneros discursivos vão tomando corpo, vão produzindo
ressignificações analíticas na complexa tessitura melodramática da
telenovela brasileira. Desse modo, como posicionamento
metodológico, coloca-se em questão o conceito de exotopia como o
ponto de partida que estabelece as formas e as relações entre o
pesquisador e o objeto empírico pesquisado em termos de
aproximação, distanciamento e potencialidade do olhar analítico.

154
Exotopia: posicionamento metodológico

Ao entrar no terreno das reflexões de Mikhail Bakhtin sobre a


exotopia, antes de tudo, é fundamental estabelecer que as bases de
orientação sobre esse pensamento encontram guarida nas vias do
entrelaçamento do ético e do estético para o autor. Via essa que,
durante todo o percurso intelectual de Bakhtin, é expressa como
indissolúvel e presente tanto no processo de construção quanto na
leitura das formas que o acabamento estético toma em um objeto
empírico (BAKHTIN, 2012).
Desse modo, ao pensar na relação dialógica entre o eu e o outro
no mundo, Bakhtin (2003) chama a atenção para um elemento
muito peculiar na relação de captura do olhar desse outro por mim
e de mim por esse outro. Ele aponta que sempre vai haver um
excesso de visão do outro sobre mim e de mim sobre o outro de
forma que o eu nunca consegue globalmente e de maneira
totalizante produzir sentido sobre si sem a contrapartida do outro,
este outro que detém algo a mais, ou seja, uma visão sobressalente,
um excedente de visão.

Esse excedente da minha visão, do meu conhecimento, da minha


posse – excedente sempre presente em face de qualquer outro
indivíduo – é condicionado pela singularidade e pela
insubstituibilidade do meu lugar no mundo: porque nesse momento
e nesse lugar, em que sou o único a estar situado em dado conjunto
de circunstâncias, todos os outros estão fora de mim. (BAKHTIN,
2003, p. 21).

“Consequentemente, aquilo que pode ser visto por um, não é


acessível ao outro e vice-versa. O inacessível, não é, contudo,
inexistente, daí a compreensão de Bakhtin” sobre o excedente de
visão possibilitar, pela relação dialógica, algo que é capturado por
uma parte sobre outra em relação de coexistência (MACHADO,
2010, p. 277). Assim: “O outro que está fora de mim é quem pode
dar uma imagem acabada e o acabamento, para Bakhtin, é uma

155
espécie de dom do artista para seu retratado”, afirma Amorim
(2006, p. 97).
Por isso, o termo exotopia toma sentido neste trabalho a partir
da ideia de um posicionamento (espaço-temporal) do pesquisador
em relação ao objeto pesquisado. “A contemplação estética e ato
ético não podem abstrair o fato de que o sujeito desse ato e dessa
contemplação artística ocupa na existência um lugar concreto,
único”, afirma Bakhtin (2000, p. 44). Em outros termos, opera-se
aqui o excedente de visão como um gesto exotópico no qual o
pesquisador aproxima-se de sua obra, modelando-a,
fragmentando-o, analisando-a e reconstituindo-a por um modo de
vê-la além das ideias postas na superfície da cena e intencionadas
pelos roteiristas, produtores, diretores e todo o corpo produtivo da
telenovela Cordel Encantado.
Seguindo este raciocínio, o termo condensador das ideias de
excedente de visão é a palavra russa vnenakhodimost’ cunhada por
Bakhtin e que, de acordo com Todorov (1984, p. 99), significa
literalmente “encontrar-se a si mesmo do lado de fora” ou,
resumidamente, como pontua Bubnova (2000, p. 33), “encontrar-se
fora”. Como um dos primeiros a trazer as discussões bakhtinianas
ao Ocidente, Todorov traduz o termo para a palavra francesa
éxotopie, tradução muito valiosa, segundo Amorim (2006, p. 96), já
que, “do ponto de vista do enunciado e não da língua, a expressão
forjada por Todorov é feliz, pois sintetiza o sentido que se produz
na obra de Bakhtin e que é o de se situar em um lugar exterior”. Já
em traduções do inglês o termo torna-se outsideness, em italiano é
lido como extralocalità, em português como exotopia e em espanhol
como extraposición (BUBNOVA, 2000, p. 33).
De acordo Machado (2010, p. 277-278) a conceituação de
exotopia é controvertida, em grande medida, justamente pelas
variadas interpretações e traduções – tidas como exercícios
metalinguísticos - que se tem da palavra vnenakhodimost’. Todavia,
ela afirma que a despeito das possibilidades truncadas de aplicação
do termo a depender da variabilidade de traduções, o que não se
pode perder de vista no entendimento de exotopia é: “[...] a noção

156
de movimento, valor maior da categoria bakhtiniana que tanto une
quanto separa [...]”. Tal noção de movimento (no espaço-tempo) é
disposta da seguinte maneira por Bakhtin (2003, p. 23):

O excedente de minha visão em relação ao outro indivíduo


condiciona certa esfera do meu ativismo exclusivo, isto é, um
conjunto daquelas ações internas ou externas que só eu posso
praticar em relação ao outro, aquém elas são inacessíveis no lugar
que ele ocupa fora de mim; tais ações completam o outro justamente
naqueles elementos em que ele não pode completar-se.

Nesse sentido, Machado (2010, p. 277) relembra o


entrelaçamento ético-estético proposto por Bakhtin na feitura do
gesto exotópico como um princípio incorporado às suas
concepções das relações arquitetônicas: “[...] Estou me referindo às
formulações sobre o excedente de visão que Bakhtin situa no
processo de criação estética, particularmente do personagem”.
Particularidade essa, e não exclusividade, que não impede outras
acepções do termo a mundos tão complexos como os apresentados
por Zoppi-Fontana (2005, p. 110) ao falar que o conceito de
excedente de visão retorna insistentemente aos escritos
bakhtinianos e é utilizado “[...] para descrever a relação do autor
com as personagens do romance, do eu e do outro no
acontecimento de comunicação, do leitor atual em relação a obras
e culturas anteriores e do cientista (principalmente das ciências
formais e naturais) diante do objeto de conhecimento”. Mais além
da visão do cientista das ciências naturais e sua relação com a
exotopia, Silva (2013) aprofunda a ideia que o excedente de visão:

Trata-se então da diferença entre dois olhares, entre dois pontos de


vista. Tal movimento também pode ser observado no trabalho de
pesquisa (em ciências humanas) em que o pesquisador analisa o
trabalho de outrem acerca de determinado assunto e tenta perceber
o olhar de seu pesquisado sobre aquele objeto pesquisado, voltando
ao seu “lugar exterior” para elaborar o seu texto (criação estética)
sobre o que ele conseguiu captar em sua pesquisa. Nesse momento,

157
a fim de sintetizar o que vê, o pesquisador utiliza-se de seus valores,
suas perspectivas, suas impressões, sua formação, para discorrer
acerca do que viu (SILVA, 2013, p. 1-2).

É dizer que as vozes aqui encontradas levam em consideração


os modos pelos quais a obra o afeta, ou seja, o que e como a obra fala
e se dá a ver, ouvir e sentir ao pesquisador, sendo este último,
todavia, o detentor de um excesso de visão (analítica) que orquestra
essas vozes e possibilita que os processos de sentido sejam
inteligíveis para além do que aquele projetado apenas no processo
original de exibição, circulação e fruição da trama. Tal orquestração
estética e ética das vozes permitida pelo excesso de visão possibilita
ao pesquisador o duplo movimento de se aproximar e se distanciar
do objeto, sem, contudo, confundir as vozes ou mesmo imiscuir-se
tanto nesse processo de análise que a sua própria voz analítica seja
irreconhecível ou perca a autoridade organizativa que tem sobre o
texto em análise: “Importante ressaltar que esse diálogo não é
simétrico e aqui reaparece o conceito de exotopia. O pesquisador
[no contexto das Ciências Humanas] deve fazer intervir sua posição
exterior” (AMORIM, 2006, p. 100). Logo, a intervenção do
pesquisador e sua autoridade organizativa não pode ser perdida de
vista, justamente, porque deve-se ver o excesso constituinte do
excedente de visão como uma vantagem e não como desvantagem
analítica, lembra Hitchcock (1993, p. 205).
Por fim, entende-se aqui essa relação exotópica entre o
pesquisador e o objeto de análise como uma relação complexa e
cheia de fios dialógicos, isto é, uma legítima relação do “eu” e do
“outro”. Algo que, nas palavras de Bubnova (2000), é mais do que
caro ao pensamento bakhtiniano: “O mundo das relações entre eu
e o outro é gerador de valores inerentes a sua interação: princípio
interpessoal de uma futura noção de ideologia, que posteriormente
o filósofo colocaria levando a problemática da alteridade até a
dimensão social” (BUBNOVA, 2000, p. 18).

158
O autor-pessoa e o autor-criador: posicionamento analítico I

A concepção de autor e autoria em Mikhail Bakhtin é perpassada


sempre pelo dialogismo: pela visão marcante da alteridade nas
interações entre os indivíduos. O debate sobre a questão da autoria na
teoria bakhtiniana é dividido em autor-pessoa e autor-criador, uma
divisão que direciona a compreensão do objeto estético em análise.
Neste trabalho, as categorias de autor-pessoa e autor-criador são
pensadas por meio das materialidades enunciativas da telenovela
brasileira que, por sua vez, acabam sendo atravessadas por elementos
autorais que se distribuem da criação do roteiro aos elementos da
direção (levando em consideração, neste caso, a complexidade da
constituição narrativa, estética e estilística demonstrada por meio da
obra Cordel Encantado).
Sob a ótica bakhtiniana, o autor-pessoa é o ser físico, um
elemento do acontecimento ético e social da vida (FARACO, 2008).
É o autor conhecido, numa visão comum, como aquele que
“escreve” a obra. Ou, no caso de Cordel Encantado, estes sujeitos são
as autoras Thelma Guedes e Duca Rachid. Entretanto, na discussão
bakhtiniana o destaque recai não na figura do sujeito-escritor, mas
sim na figura etérea do autor-criador. É o autor-criador uma função
estético-formal da obra, ou seja, uma parte imanente do todo
artístico (o objeto estético). Uma parte que sustenta e, por
conseguinte, cria e dá forma à obra. Esta concepção de autoria não
se fulcra no indivíduo que escreve, mas sim no elemento externo
que permite que sejam criados os personagens, suas características
e o mundo no qual eles habitam.
Para tentar facilitar este entendimento do autor-criador é
preciso visualizar duas vias de reflexão apresentadas por Faraco
(2008, p. 141): 1ª) Bakhtin vê o autor-criador, num primeiro
momento, a partir de uma posição axiológica (valorativa) e que dá
unidade ao todo artístico; e, um pouco depois, 2ª) o autor-criador é
visto como a voz criativa (social) que também dá unidade ao todo
artístico, mas nesta visão, a partir das vozes sociais (heteroglossia)
escolhidas pelo autor-pessoa.

159
A primeira conceituação coloca o autor-criador como o
responsável por criar uma espécie de “confronto de mundos”, em
outras palavras, é dele a função de, no plano estético e no ato
criativo, confrontar o sistema de valores, normas, costumes e
tradições comungadas pela sociedade (o plano axiológico da
realidade vivida) com o sistema de valores proposto dentro da
narrativa (o plano axiológico da obra), isto é, os valores que
delineiam os personagens e o caráter de cada um deles, as situações
e as resoluções de problemas, e o desenrolar da história. Ainda
nesse confronto (num misto de reflexo, refração e reconstrução de
valores), e a partir do autor-criador, o leitor/espectador vivencia os
dois planos axiológicos no contato com a obra e reelabora,
consequentemente, novos mundos, novas axiologias.
Em Cordel Encantado é possível perceber isso quando vemos a
estrutura arquetípica do quadrilátero melodramático que a compõe,
isto é, na narrativa existe a presença do Justiceiro (herói), do Traidor
(vilão), da Vítima (mocinha) e do Bobo (bufão) (MARTÍN-
BARBERO, 2009, p. 168). Com base nessa construção, é possível
colocar Jesuíno na figura do Justiceiro, Timóteo como o Traidor,
Açucena/Aurora como a Vítima e, finalmente, Prefeito Patácio e
Primeira-Dama Ternurinha como representantes da figura dos
Bobos. Além destes dois últimos personagens citados (que têm
caráter protagonístico maior), muitos outros personagens podem ser
localizados nos papéis cômicos de Bobos como a Rainha-Mãe
Efigênia, Delegado Batoré, sua irmã Neusa e o cunhado Farid, os
amigos Quiquiqui e Setembrino etc. Partindo dos sentimentos
básicos de medo, entusiasmo, dor e riso, estes quatro personagens
(Justiceiro, Traidor, Vítima e Bobo) formam o quadrilátero
melodramático desta telenovela – produzindo, assim, um misto de
quatro gêneros que, segundo o Martin-Barbero (2009), podem ser
visualizados por meio do romance de ação, da epopeia, da tragédia
e da comédia. Exemplarmente, o Justiceiro mostra-se como o
personagem que, no último momento, salva a Vítima e castiga,
enfim, o Traidor. É dele a função de, no desenrolar da trama, mostrar

160
os enganos, entregar a todos a terrível face do vilão e permitir que a
“verdade resplandeça” (MARTÍN-BARBERO, 2009).
Essa visão do melodrama folhetinesco apresentada na
televisão possui uma vinculação muito forte com os valores e
papéis sociais cristalizados e dedicados ao homem e a mulher, por
exemplo. A axiologia da realidade vivida (de modo muito
discriminatório) pressupõe que, num embate de gêneros, cabe ao
homem de bem proteger, lutar contra o mal e terminar casando-se
com a mulher para formar uma família (talvez, na narrativa de
Cordel Encantado, uma exceção visível se localiza na personagem
Doralice que, em sua trajetória durante a trama, protagoniza
situações nas quais se assemelha, temporariamente, à figura de
uma Justiceira). E à mulher, essa figura sempre passiva, frágil e que
vive por osmose a partir de sua relação marital, cabe apenas o
espaço privado do lar. No plano da axiologia do objeto estético,
com ligeiros matizes, esta valoração é replicada ad infinitum e faz
parte de muitas das telenovelas.
Muniz Sodré (2010) apresenta informações que corroboram
este pensamento ao falar que na telenovela (tal qual no folhetim
oitocentista) ainda persiste numa construção arquetípica e
estrutural pensada na ideia da família tradicional, patriarcal, numa
ideologia de falsa modernização da vida pelo consumo de bens
comerciais, culturais e simbólicos. O que, por sua vez, aproxima e
muito a telenovela (“romance familiar”) da coletividade e das
massas. Uma narrativa que imbrica a “cena familiar” com a “cena
videográfica” e que liga o fluxo televisivo ao fluxo contínuo das
ações sociais, como ressalta Muniz Sodré (2010, p. 156).
Já a segunda conceituação de Bakhtin, por outro lado, vê o autor-
criador em duas posições: a de refratado e a de refratante
(FARACO, 2008). A primeira o apresenta como uma posição
valorativa que é recortada (refratada) pelo autor-pessoa, uma
posição na qual o autor-criador é uma projeção das escolhas e
valores do sujeito-escritor. Por sua vez, o autor-criador como
posição refratante é visto como aquele que é o responsável por
reorganizar (refratar) os eventos da vida (esta que é experienciada

161
tanto pelo autor-pessoa quanto pelo leitor/espectador) e também
dar forma ao conteúdo apresentado na obra. Ou seja, é a voz social
criativa que organiza, trabalha, lapida e insere as múltiplas vozes
sociais na narrativa dando uma unidade ao objeto estético e
coproduzindo sentido junto àqueles que o consomem.
Nesse confronto de mundos axiológicos, é possível perceber
que além de tratar de assuntos que fazem parte da vida dos
telespectadores ou que ao menos tenham verossimilhança
narrativa e contextual, a apropriação cultural também é explicada
pela troca e aceitação de valores dominantes comungados tanto
pela telenovela quanto pelo público. E este comungar passa
necessariamente pela figura do autor-criador posto que tal
configuração cultural criada e compartilhada pela sociedade diz
muito sobre o imaginário coletivo de um povo, a forma como as
classes sociais, as relações de gênero, o acesso ao capital cultural e
a convivência ao meio circundante são formadas neste processo de
produção e recepção. O discurso do autor-criador, por isso, é
sempre uma “voz segunda” em relação à voz primeira e direta do
escritor (FARACO, 2008, p. 40).
No caso específico das telenovelas brasileiras, Souza (2004, p.
14) destaca que as marcas autorais podem ser pensadas em duas
dimensões: a externa e a interna. Enquanto a dimensão externa lida
com a noção de autor enquanto realizador (discutindo status
autoral, cadeia de produção e instâncias de reconhecimento e
consagração), por sua vez, a dimensão interna é entendida como as
marcas autorais presentes na tessitura teledramatúrgica (em
termos de temas tratados, construção de personagens, tratamento
do espaço-tempo da narrativa etc.). Nesse sentido, como se percebe
pela fala da autora, a questão da autoria na telenovela deve ser
compreendida muito mais do que somente a presença do autor-
pessoa no processo de realização da obra:

Isto significa que examinar as trajetórias dos realizadores na história


de produção da telenovela permitirá localizar o efetivo papel que
eles têm cumprido nas interfaces entre as demandas da emissora e a

162
satisfação necessária dos telespectadores; entre o reconhecimento do
realizador-autor e as escolhas estéticas, operativas e técnico-
operativas que tenham configurado uma marca estilística peculiar
reconhecível [...]. (SOUZA, 2004, p. 19).

É o que vemos em Cordel Encantado que, mesmo sendo uma


narrativa com ares fantásticos e onde há o escape ao realismo do
cotidiano, ainda assim, as vozes sociais (heteroglossia) se fazem
presente por parte do autor-criador refratado e refratante. Logo, o
acordo ficcional, neste “mundo parasita” que é a ficção (ECO, 1994,
p. 91), vai a um nível no qual os espectadores comungam desses
fatos fantásticos, de reinos medievais, de um sertão retratado pelo
cordelistas e de um tempo tão mágico que é difícil localizar em que
período preciso passa-se a narrativa: Cordel Encantado mostra-se,
assim, uma perfeita narrativa atemporal.
Mesmo que para Bakhtin não seja necessário compreender os
processos psicológicos envolvidos na criação por parte do autor-
pessoa, faz-se importante observar para a fala das autoras quando
do comentário acerca desta atemporalidade da narrativa. Em
entrevista, elas falam de como foram pensando na criação de
nomes e personagens e, de repente, se deram conta de que a história
era realmente um cordel.

[Duca Rachid] É um cordel que ao mesmo tempo te possibilitava


usar todo um repertório de conto de fadas, de “capa e espada”, de
folhetim, de história de aventuras...
[Thelma Guedes] Até a história de São Francisco, que era medieval.
A gente pegou esse universo que é meio atemporal. O que a gente
percebeu — isso ficou claro para gente — que o sertão e o reino são
universos atemporais. Não mudam. [...]
[Duca Rachid] Como é com o rei europeu e o rei cangaceiro
(CORDEL ENCANTADO/DVD, 2013).

Bakhtin ainda afirma que o que faz uma obra ser esteticamente
criativa consiste não na transcrição literal das ideias do autor-pessoa
na voz social do autor-criador, como se ambos fossem um só. Pelo

163
contrário, “as ideias do autor-pessoa” (no deslocamento da
linguagem, isto é, no processo que leva as múltiplas vozes sociais à
unidade conferida/organizada pela voz social do autor-criador)
devem ser transformadas sempre, remodeladas e recriadas a partir
de “imagens artísticas das ideias” (FARACO, 2008, p 40). A fala da
diretora Amora Mautner, seguindo nessa linha de raciocínio, mostra
como é possível realizar algo parecido na esfera discursiva de Cordel
Encantado. Na mesma entrevista com as duas autoras, ela comenta:

[Amora Mautner] Quando li a sinopse o que mais achei difícil era


isso: era juntar... Como é que a gente ia conseguir unificar uma
novela que tinha ao mesmo tempo um universo do cangaço e um
universo da corte. Porque são duas coisas supostamente distintas,
né? Mas, é como vocês [Thelma e Duca] acabaram de falar, elas não
são (CORDEL ENCANTADO/DVD, 2013).

Ao passo que as autoras na entrevista falam sobre a dinâmica


de escrever em dupla, da troca de ideias e do jogo de negociação ao
consenso, Duca Rachid comenta a participação da diretora na
transformação das ideias do roteiro à tela: desde o tratamento da
imagem, a estética cinematográfica, a arte e o figurino à
representação de uma cena específica de batalha que foi
transformada pelo olhar de Amora Mautner. É sobre esta cena
épica da invasão feito pelo Rei Teobaldo (Seráfia do Sul) ao reino
do Rei Augusto (Seráfia do Norte) que Thelma Guedes fala:

[Thelma Guedes] Eu lembro perfeitamente que a gente tinha feito


estas primeiras cenas... E um personagem dizia que estavam sendo
atacado nas muralhas... Porque a gente – sem noção - achava que era
mais fácil uma luta nas muralhas e tal... [risos] Quando a gente viu a
sua “sacação” de como realizar aquilo: de colocar os dois exércitos se
aproximando [em plano geral], aquela imagem...
[Duca Rachid] Ficou grandiosa!
[Thelma Guedes] Mais cinematográfica que cinema! (CORDEL
ENCANTADO/DVD, 2013).

164
Isso coloca em questão a presença de um terceiro autor-pessoa
representado na atuação da diretora Amora Mautner, pois é a partir
das remodelações criadas pela diretora que as cenas e os sentidos
intra e inter-capitulares vão ganhando corpo. Conforme explicita
Souza (2004, p. 30), o papel do diretor nas telenovelas brasileiras
tem sido de extrema importância para a compreensão das marcas
autorais nas obras: “Associado ao crescimento do papel da direção
é observável a tendência dos escritores a escolherem a cada vez
mais uma parceria constante com aquele que vai se responsabilizar
pelo produto final [...]”. Algo também perceptível na parceria das
escritoras Thelma Guedes e Duca Rachid com o trabalho da
diretora Amora Mautner em outras telenovelas além de Cordel
Encantado, a saber: Cama de Gato (2009) e Joia Rara (2013) — ambas
produzidas e exibidas também na Rede Globo de Televisão. Dessa
forma, especialmente a partir dos anos de 1980 em diante, continua
a autora, a atuação da direção na telenovela brasileira começa a
colocar em pauta a preocupação em “definir uma linguagem
audiovisual própria e particular do gênero” (SOUZA, 2004, p. 30).
E é isso que nos leva para outra discussão (mais breve) localizada
agora no nível dos gêneros discursivos secundários que, por sua
vez, são lidos a partir da teledramaturgia brasileira.

Os gêneros secundários a partir da leitura televisiva:


posicionamento analítico II

Os gêneros discursivos são apresentados em Mikhail Bakhtin


como esferas/usos da linguagem, já que as interações dialógicas
pressupõem processos produtivos linguageiros. Divididos em
gêneros primários e gêneros secundários, estas esferas discursivas
são lidas por Bakhtin no romance, na prosa e, neste específico caso
abordado pelo capítulo, possivelmente também na comunicação
mediada da televisão. Os primários são vistos pela ótica da
comunicação cotidiana, conversas interpessoais e estão mais
diretamente ligados à prosificação da cultura (MORSON;
EMERSON, 2008). Já os secundários, de acordo com Machado

165
(2008, p. 155), são mais complexos e produzidos a partir de
elaborados códigos culturais como o romance, os gêneros
jornalísticos, o ensaio e, na leitura empreendida neste capítulo,
também se poderia acrescentar a telenovela brasileira.
Assim, afirmar a natureza dialógica da linguagem é entender
que existem variados tipos de signos e seus arranjos passam por
permanentes deslocamentos que se retroalimentam nas sequências
intertextuais/interdiscursivas. Estas sequências funcionam em seus
contextos histórico-sociais como fontes dialogicamente produtoras
de sentido, tais quais os meios de comunicação contextualizados a
seu tempo e espaço. Deve-se ainda esclarecer que, para Bakhtin, só
se pode entender o dialogismo interacional pelo deslocamento do
conceito de sujeito. O sujeito perde o papel de centro e é substituído
por diferentes vozes sociais, que fazem dele um sujeito histórico e
ideológico localizado em um determinado tempo e espaço concretos.
Bakhtin acredita que a palavra deve ser vista como signo e,
como tal, deve ser percebida como originária da relação social
presente ao ato de enunciação já que ela está em todos os atos de
compreensão e de interpretação. Dessa maneira, como os signos
medeiam a relação do homem com sua realidade, toda atividade
mental do sujeito só pode ocorrer e ser expressa sob a forma de
signos, exteriorizando-se por meio de linguagens verbais ou não-
verbais ou mesmo outro meio decorrente do discurso interior. No
caso da telenovela e de outras obras da ficção seriada na TV, é
preciso se considerar as especificidades dos contextos de produção,
circulação e distribuição das obras teledramatúrgicas: “O gênero
secundário, quando atua na produção de certos discursos leva em
consideração tanto o estilo das formações sociais com práticas
identitárias quanto o estilo das formas atuantes de economia, como
patrocinadores, emissora etc.”, afirma Pisa (2013, p. 22).
Cordel Encantado, ao trabalhar com inúmeras matrizes da
cultura popular, erudita e massiva, realiza processos de produção
de sentido que hibridizam tais matrizes e arquétipos. Logo, esta
telenovela brasileira pode ser lida como um gênero discursivo
secundário. Em outros termos, como coloca Machado (2008, p.154)

166
“todo enunciado é um elo na cadeia, muito complexamente
organizada, de outros enunciados” que, consequentemente,
permitem “o surgimento de híbridos”. De igual importância, a
prosificação, no entendimento bakhtiniano, estaria ligada ao
revigoramento da prosa na cultura da civilização ocidental,
trazendo as formas discursivas da comunicação interativa e
favorecendo a valorização das ações cotidianas de homens comuns
e suas enunciações banais – em contraposição ao papel privilegiado
que a Poética sempre ganhou nos estudos linguísticos desde
Aristóteles (MACHADO, 2008, p. 153-154).
Sob esta ótica, compreendendo a telenovela como uma forma
de “crônica diária” pautada primordialmente no diálogo dos
personagens e em cenas que localizam o cotidiano, é possível
visualizá-la como um gênero secundário no qual a prosificação
cultural também age nos processos de produção de sentido. Ou,
como ainda relembra a pesquisa trazida por Pisa (2013), é preciso
observar como a televisão e seus produtos necessitam ser
ressignificados à luz dos conceitos bakhtinianos, posto que:

Os gêneros secundários estão intercalados na produção dos gêneros


televisivos e os gêneros primários são assimilados pelos secundários,
pois os relatos da vida cotidiana, ao serem inseridos no gênero
secundário se desligam da esfera do cotidiano, perdem sua ligação
direta com a realidade, deixam de ser acontecimento da vida
cotidiana e passam a fazer parte de outra dimensão enunciativa e
ideológica (PISA, 2013, p. 25).

Dessa maneira, pensar a produção de sentido, como relembra


Volóchinov (2017), revela uma ótica interessada em desvendar de
que maneira a palavra pode ser significada em sua plenitude,
diferenciando, neste processo, as noções de tema e de significação.
Assim, teríamos a concepção de que um sentido definido e único
(uma significação unitária) é uma propriedade que está a cargo de
cada enunciação como um todo. Chega-se ao que podemos chamar
de sentido da enunciação completa como o seu tema: o tema deve

167
ser único, senão o for, não há meios de ocorrer a diferenciação da
enunciação. Posto isso, é possível notar que o tema da enunciação
é na verdade, assim como a própria enunciação, individual e não
reiterável, isto é, ele se apresenta como a expressão de uma situação
histórica concreta, contextual e não-universalizante que deu
origem à enunciação (VOLÓCHINOV, 2017). Enunciados e
enunciações que são envoltos por condições de linguagem
marcadamente diversas e imbuídos de vozes sociais (a
heteroglossia) que os conformam como são.
Entretanto, pensar a questão dos processos de produção de
sentido e os gêneros secundários do discurso sem se levar em
consideração a especificidade da cultura televisiva e da estética
televisiva, não dá a possibilidade de que um olhar comunicacional
pleno sobre Cordel Encantado seja explicitado em um trabalho como
este. E mesmo que a televisão raramente seja considerada
“relevante” quando o tema da discussão está voltado à estética ou
não seja vista como “séria” o bastante para que tal discussão possa
ser feita (FAHLE, 2006, p. 190), ainda assim, é preciso que a estética
televisiva seja analisada como um espaço de discussão
fundamental à comunicação e às gramáticas televisuais.
Por isso, como explica Omar Rincón (2007, p. 30), a televisão
“é uma cultura em si mesma, mais do que pelos próprios conteúdos
‘cultorosos’ que ela transmita”. É o que Colombo (1976, p. 96)
também já pontuava há quase 50 anos ao discutir o que ele chama
de uma cultura da comunicação visual da TV. E, finalmente,
entender os gêneros discursivos bakhtinianos como manifestações
da cultura, possibilita lê-los como “dispositivos de organização,
troca, divulgação, armazenamento, transmissão e, sobretudo, de
criação de mensagens em contextos culturais específicos” (BRAIT,
2008, p.88). Ou seja, tal qual como ocorre em Cordel Encantado e sua
reelaboração de outras histórias e narrativas, os gêneros do
discurso vivem também do presente, mas sempre recordam de seu
passado (MACHADO, 2008, p. 158).

168
Considerações finais

Este capítulo procurou discutir a materialidade enunciativa da


telenovela brasileira, tendo Cordel Encantado como um objeto
empírico possível, por meio de uma visão bakhtiniana repensada
sob o domínio da linguagem televisiva ficcional. Desse modo,
mobilizando conceitos caros à obra de Bakhtin (exotopia, autoria e
gêneros discursivos), o trabalho oportunizou quadros de leitura
que não necessariamente passam pela tradicional ortodoxia de
objetos estudados nos estudos filológicos ou vinculados às teorias
do romance, mas, por uma via comunicacional, intentou
demonstrar que a teledramaturgia brasileira também se dá a ver
como um locus enunciativo complexo e rico em termos analíticos.
Dessa forma, a análise da telenovela Cordel Encantado com base
nas concepções de autoria possibilita pelo menos três conclusões
deste capítulo: 1º) a distinção entre autor-pessoa e autor-criador é
mantida (e reforçada) nesta narrativa; 2º) a conformação de
arquétipos e matrizes culturais presentes na história (pelos processos
de hibridização) conflui para a unidade criativa das múltiplas vozes
sociais lidas em outros enunciados; e 3) a figura da diretora anexa-se
ao rol de sujeitos-escritores (autor-pessoa) por dar visualidade e
materialidade às ideias do roteiro das duas autoras.
Já no campo dos gêneros discursivos é possível afirmar que
analisar Cordel Encantado como um gênero secundário a partir de
códigos culturais complexos e elaborados, possibilita a
confirmação de que a telenovela é um elemento da prosificação da
cultura e, mais ainda, que, enquanto manifestação cultural
localizada em seu contexto produtivo/receptivo, ela perpassa as
relações de identificação e projeção. Ao fazer isso, a telenovela
brasileira produz papeis intercambiáveis entre aqueles que
consomem a narrativa em um deslocamento que denota o potencial
co-criativo do espectador em relação ao emissor. Esta última

169
característica é reforçada pelo acordo ficcional (ECO, 1994) em uma
narrativa possuidora de um tom de fábula4.
Metodologicamente, o conceito bakhtiniano de exotopia
mostrou-se como fundamental na relação entre o pesquisador e o
objeto pesquisado. É dizer que, no caso da telenovela, entendida
como um produto cultural complexo e de rico acabamento estético,
compreende-se que o excedente de visão é necessário no
distanciamento (e na devida reaproximação) entre o analista e a
obra em estudo. Por sua vez, vale ressaltar a posição de Amorim
(2006, p. 97), compartilhada neste trabalho, de que: “O acabamento
aqui não tem sentido de aprisionamento, ao contrário, é um ato
generoso de quem dá de si. Dar de sua posição, dar aquilo que
somente sua posição permite ver e entender”.
Com igual relevância, retoma-se, neste campo, o conceito de
dialogismo como o princípio teórico bakhtiniano que diz respeito
às relações que se estabelecem entre o eu e o outro nos processos
discursivos historicamente instaurados pelos sujeitos, que, por sua
vez, instauram-se e são instaurados por esses discursos. Sendo
assim opera-se a lógica na qual a fala de um sujeito só se realiza e
cria sentido se pensada em relação aos outros, e nessa interação o
ato comunicativo é tanto responder como dirigir perguntas.
Portanto, é nessa relação entre o eu e a voz do outro que surge a
dinâmica da interação e da interatividade, elementos fundamentais
do dialogismo vistos sob a luz do estudo dos meios de
comunicação.
Isso significa superar visões de um modelo redutor e
funcionalista que apresenta um caráter unidirecional e coloca o
papel da recepção como atividade passiva na ressignificação das

4 A leitura conceitual do autor continua por termos correlatos como a “suspensão


da descrença” em S. T. Coleridge (1782-1834) – especificamente naquilo que nos
faz compreender e aceitar como plausível o que é relatado em fábulas, por
exemplo – e a expressão de que o “autor simplesmente finge ao dizer a verdade”
em J. Searle (1932-) – a partir de uma visão individual deste autor que sempre
ficcionaliza o mundo ao seu modo, seu estilo e de acordo com os mecanismos
narrativos disponíveis (ECO, 1994, p. 81).

170
mensagens. Significa um redimensionamento do espaço
comunicativo readequando os papéis de emissores/receptores para
uma dinâmica relacional de coautores/cocriadores. Assim,
interagir se torna mais do que simplesmente enviar e responder
mensagens já que os sujeitos passam a fazer parte de um processo
de relações interligadas por fios dialógicos.
Entende-se com isso que o autor/emissor tem potencial de
criar espaços nos quais combina os signos de forma a oferecer um
conjunto de possibilidades de redes de articulação e conexões, e o
receptor pode neles interferir, modificando, associando ou
ressignificando, frente à polissemia e à ambiguidade, por
aproximações sucessivas, idas e vindas, já que os sentidos
atribuídos nem sempre são os que foram pretendidos pelo autor.
E, assim, o capítulo teve por objetivo realizar uma conexão
teórica e metodológica possível entre o pensamento de Mikhail
Bakhtin e o estudo da telenovela brasileira que, do ponto de vista
acadêmico, é considerada como um produto cultural dotado de
complexo acabamento estético. Mais estritamente, o que este
trabalho buscou demonstrar é que é preciso compreender a
telenovela brasileira enquanto um objeto midiático localizado
social e historicamente na esfera discursiva da comunicação
audiovisual e que, portanto, apenas uma leitura baseada em juízo
de valor ou nas já datadas discussões sobre “alta” e “baixa”
cultura tornam-se inviáveis dada a riqueza estilística e estética do
produto analisado.

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175
VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem:
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linguagem. São Paulo: Editora 34, 2017.

176
O ‘galã de novela’ entre o machismo e o feminismo: como
as questões de gênero pressionam as formas
composicionais da ficção televisiva1

Daniela Jakubaszko
João Nemi Neto

No ano em que a televisão brasileira completa 70 anos, a


telenovela brasileira, com seus personagens e conflitos, vem se
modificando junto com a linguagem televisiva e a vida social
brasileira. Há mais de vinte anos estudamos a telenovela como
lugar simbólico de construção de memória coletiva. A tradição das
telenovelas se mantém viva e atuante, segue entrelaçada às
memórias individuais e coletivas dos interlocutores, com a história
do país (MOTTER, 2000-2001; 2003; JAKUBASZKO, 2019).
Desde a década de 1970 as telenovelas abordam em seus
enredos temas e preocupações contemporâneas. Nas últimas
décadas, vimos crescer a presença de debates de temas de
importância social nas tramas principais e secundárias. Por mais
que se questione o vigor e a adequação do gênero teledramatúrgico
na atualidade, e que se verifiquem oscilações e quedas nos índices
de audiência, a ficção se reinventa enquanto gênero e formato
(LOPES e OROZCO, 2016), mantendo sua força enquanto discurso
capaz de captar e expressar uma extensa gama de temas e conflitos
socioculturais brasileiros em tempos de globalização. Durante a
pandemia de Covid-19, vimos o vigor da telenovela quando
reprises mantiveram o público fiel. A reprise de Fina Estampa, por
exemplo, apresentou uma audiência maior do que novelas inéditas.
Totalmente integrada à nossa cultura, a telenovela acumula e
produz memória, conhecimento, participa dos diálogos e debates

1Este capítulo é uma versão atualizada de artigo publicado anteriormente na


Revista Comunicação & Inovação v. 38. Ver NEMI e JAKUBASZKO, 2017.

177
sociais, contribuindo para a formulação de consensos. O estudo da
telenovela como gênero discursivo e das transformações em suas
formas composicionais (BAKHTIN, 2006) ao longo dos anos é
indispensável.
A telenovela foi se constituindo e fortalecendo como um gênero
do discurso (BAKHTIN, 2006) de grande importância na cultura
brasileira. Se “onde há estilo, há gênero” (BAKHTIN, 2006, p.268),
ela pode ser estudada como um gênero do discurso porque tem
formas típicas que governam a sua construção, porque segue e
reproduz padrões, fortalece um estilo próprio para a linguagem
televisiva, além das marcas de estilo autoral de cada roteirista, bem
como do diálogo que se forma entre as diferentes histórias e autores
ao longo do tempo (JAKUBASZKO, 2019). Enquanto gênero
também carrega memória, herda de suas referências literárias
inúmeras características e elementos que se combinam,
intercambiam e se transformam com o tempo (MOTTER, 2000-
2001; JAKUBASZKO, 2018). A telenovela brasileira que recebe
influências do circo, do rádio, do teatro, do cinema, a partir da
década de 1970, se distancia da fórmula melodramática que
polariza bem e mal absolutos ao construir personagens e conflitos
de maior densidade e proximidade com a realidade do espectador.
O gênero ganha continuamente novas feições para se adequar ao
presente histórico do interlocutor, como é típico da ficção
(BAKHTIN, 2018), atuando como importante mediador das
relações culturais (MARTÍN-BARBERO, 2015). É que a evolução de
um gênero acontece por meio do dialogismo, na permanente
interação da vida social:

A telenovela vem mostrando plasticidade para incorporar elementos


de outros gêneros ficcionais e não-ficcionais, além de incorporar
elementos da realidade que lhe garantem a manutenção de intenso
diálogo com o cotidiano social concreto do país. Situada no passado
ou no presente, tratando de temas históricos ou puramente ficcionais,
a telenovela incorpora em sua narrativa elementos de diversos
sistemas semióticos e fala do hoje, rearticulando dados da memória

178
coletiva na produção de sentidos renovados e se firma como
documento histórico, lugar de memória, refratando, pela ótica
ficcioautoral, um momento do processo de desenvolvimento da
sociedade brasileira. (MOTTER, 2004, p. 251-252)

As relações de gênero e as narrativas da emancipação


feminina, além de constantemente tematizadas, recebem espaço
privilegiado nas tramas. Mesmo assim emergem as contradições: a
cultura machista ainda impregna personagens, ações, conflitos e
soluções dos valores, práticas, critérios e julgamentos que
obedecem à lógica patriarcal. Herdeira do folhetim, a telenovela
formatou-se de modo a compor

(...) uma mistura folhetinesca temperada pelo imaginário da família


patriarcal em mutação – é tipicamente brasileira. A abertura do
folhetim para o real-histórico (para a ideologia) permite a
incorporação de informações sobre a dinâmica modernizadora da
sociedade urbana nacional e relança continuamente ao nível das
famílias (grupos receptores naturais da telenovela) doutrinas e ideias
correntes (liberação sexual, novas formas de relacionamento
amoroso, novos regimes de casamento), assim como “ensina” a
consumir. (SODRÉ apud CAVALCANTE, 2005, p. 72, grifos do autor)

Há uma explosão de textos na cultura que problematizam as


questões de gênero, a dominação masculina e as relações
assimétricas de poder entre os gêneros (JAKUBASZKO, 2017). Ela
pode exercer pressão sobre o gênero teledramatúrgico no sentido
de transformar seus padrões composicionais? O galã de novela está
moldado conforme a lógica patriarcal? Ele pode se tornar
“feminista”? O 'gaylã' seria um tipo viável? A busca pelo amor
romântico continuará sendo o fio condutor das narrativas? Se as
regras do folhetim são flexíveis para que ele possa expressar o
espírito de cada época e seu horizonte social, a ficção televisiva
transformaria seus padrões composicionais para se aproximar do
ponto de vista das lutas feministas e LGBTQIAP+?

179
As representações de histórias de mulheres, de processos
emancipatórios e de empoderamento feminino, de diferentes
vivências de gênero e de amor, de ruptura com a normatividade
heterossexual e com a prevalência do modelo hegemônico de
masculinidade vêm ganhando protagonismo nas tramas. Tais
narrativas tornaram-se marcas da telenovela brasileira atual.
A ficção televisiva é um gênero em transformação na zona de
fronteira entre o machismo e o feminismo? Na telenovela, a
trajetória do par amoroso que vence sucessivos obstáculos para
atingir a união no fim da história é o fio melodramático que conduz
a narrativa e ajuda a entrelaçar a estrutura de vários núcleos
dramáticos, apresentando as diversas ações e histórias que irão
preencher o hiato de tempo em que os heróis vivem
separadamente. Tais núcleos seguem tanto a fórmula do antigo
romance grego de aventuras (BAKHTIN, 2018) quanto a fórmula
melodramática que exige a presença do herói, da vítima, do vilão e
do bobo (MARTÍN-BARBERO, 2015). O final feliz se manifesta na
profusão de casamentos na última semana, principalmente no
último capítulo. É o ponto de chegada, a recompensa dos virtuosos
e a punição, ou regeneração, dos vilões. A união amorosa coroa o
ciclo da recompensa. A solidão costuma ser uma punição. Nesta
fórmula ainda vige o amor romântico.
O amor romântico a que nos referimos é aquele que aparece
no final do século XVIII com as novelas, romances e, logo, com o
cinema. "O início do amor romântico coincidiu mais ou menos com
a emergência da novela” (GIDDENS, 1993, p. 50), e estava
integrado com a criação do lar, com as modificações nas relações
pais e filhos e com a invenção da maternidade. Temos que lembrar
que a paixão (amour passion) não fazia parte dos casamentos, e a
emergência do amor romântico traz alento às mulheres e impulso
para as transformações da intimidade, e com certas contradições:

O amor romântico era essencialmente um amor feminilizado. (...) As


ideias sobre o amor romântico estavam claramente associadas à
subordinação da mulher ao lar e ao seu relativo isolamento do

180
mundo exterior. Mas o desenvolvimento de tais ideias foi também
uma expressão do poder das mulheres, uma asserção contraditória
da autonomia diante da privação. (GIDDENS, 1993, p. 54)

São características do amor romântico: a completude entre


parceiros; a história de vida que é compartilhada pelo casal; a
prioridade do relacionamento conjugal em relação a outros
aspectos da organização familiar. O amor romântico é mantido
“pela associação do amor com o casamento e com a maternidade; e
pela ideia de que o amor verdadeiro, uma vez encontrado, é para
sempre” (GIDDENS, 1993, p. 58). Desse modo, quer ser
indissolúvel. O amor idealizado é um “encontro de almas”: ele
preenche o vazio do indivíduo que, se antes estava fragmentado,
agora passa a se sentir inteiro. O processo tem fortes laços com a
autoidentidade: “No amor romântico, a absorção pelo outro, (...),
está integrada na orientação característica da ‘busca’. A busca é
uma odisseia em que a autoidentidade espera a sua validação a
partir da descoberta do outro” (GIDDENS, 1993, p. 57). O amor
romântico coloniza o futuro e ajuda a construir a autoidentidade.
Pretende-se investigar nesta pesquisa, a partir de uma
perspectiva dialógica (BAKHTIN, 2006; 2018; JAKUBASZKO e
NEMI, 2018; JAKUBASZKO, 2019), como o discurso que se forma
nas fronteiras entre ficção e realidade do tempo histórico presente
pressiona as formas estéticas e as práticas culturais a se
transformarem. Acreditamos que seja possível registrar mudanças
significativas na construção do ‘galã’, do amor romântico e das
formas composicionais para o happy end. Para tanto, foi realizado
um estudo de caso do galã José Mayer (NEMI e JAKUBASZKO,
2017) e recolhemos, para observação, diversas imagens dos galãs
em transformação nesta segunda década do século 21, observando
o diálogo entre personagens, conflitos, e outras manifestações
discursivas do ambiente sociocultural em relação à expressão da
masculinidade.

181
Os galãs: reflexos e refrações do machismo na telenovela
Existe exemplo de telenovela sem galã? Um tipo
indispensável: todos são galantes, charmosos, de porte elegante. As
mulheres suspiram por eles. Na faixa dos 30 aos 60 anos2, quando
heróis, também devem ser honrados e íntegros. Correspondem ao
tipo hegemônico, ao homem “ideal”: adulto branco cis
heterossexual. Tal padrão hegemônico aparece até no dicionário:

Galã. [do fr. Galant] S.m. 1. Teat. e Cin. Personagem ou ator que
representa o herói de boa aparência e atitudes, inteligente e corajoso,
e que exerce o papel decisivo nas intrigas de amor. 2. Homem belo e
elegante. 3. Fam. Namorador, galanteador. (Dic. Aurélio). (Grifos
nossos)

José Mayer é um dos galãs mais reconhecidos da TV brasileira.


Até hoje participou de 24 novelas, 4 minisséries e uma série.
Protagonista na maioria delas, já contracenou com as mais belas e
expressivas atrizes do casting da Rede Globo, sempre considerado
um grande conquistador. Uma reportagem da revista Conta Mais
(n.410 - 27.10.2008) rememora outros pares amorosos do ator e
conta “quase 3 mil beijos em cena”, são “Três décadas de grandes
conquistas”. Agora, quase quatro. A questão galã também é
abordada em entrevista concedida ao jornal Folha de S. Paulo:

FOLHA - O que te faz um galã?


MAYER - Bom, inicialmente, masculinidade, né? É preciso ser
masculino. É preciso exalar masculinidade à primeira vista. Talvez
tenham de mim essa primeira impressão. O meu movimento, meu jeito
de olhar, minha fala, meu tom de voz, talvez inspirem... é a atitude
masculina, basicamente. E o exercício da minha profissão, que me deu
uma certa experiência, um certo, digamos, charme, no sentido de
capacidade de tornar interessante um trabalho que estou apresentando.

2O site do GShow lembra alguns galãs da década de 80, José Mayer está entre eles.
A reportagem afirma que ele dominava a ala dos galãs. Outra postagem lembra
os galãs de novela e destaca os da nova geração. (NEMI e JAKUBASZKO, 2017)

182
Isso é domínio técnico. Talvez o charme venha do ator, não sei se vem
do homem. Será? Quem sabe... (FURLANETO, 2009, s/p)

José Mayer e os galãs em geral atraem por que “exalam


masculinidade à primeira vista”? Segundo entendemos, tanto os
galãs, quanto os atores que os representam, podem ser
considerados exemplos de masculinidade.
Notamos nos discursos que ser masculino é ser conquistador.
O galã é bonito, mas também precisa ter a cabeça feita; deve ser
desejado por mulheres de todas as idades; ser viril, romântico, mas
sem ser chorão ou meloso. Interessante notar que o galã é
“conquistador”, desejado por todas as mulheres, mas apenas uma
irá conquistar seu coração. Depois que um herói encontra sua
heroína, a tendência é que se dedique à fidelidade que o amor
romântico preconiza. A “fidelidade” associa-se à virtude
masculina, ao menos segundo o olhar da tradição romanesca. Na
construção da masculinidade do herói, estão as virtudes e atributos
que um homem deve ter, enquanto o vilão mostra as que ele não
deve ter. A narrativa pode trazer uma proposta de como regenerar
um homem, transformando defeitos em virtudes. É fundamental
na construção narrativa que a heroína respeite essa exclusividade
romântica e não se envolva com nenhum outro homem. A traição é
típica da vilã.
A característica do galã pode ficar tão colada à imagem do ator
que quando ele interpreta outros tipos provoca estranhamento na
audiência, fabulações na imprensa e redes sociais. As revistas
especializadas em telenovela, alguns programas de televisão e
diversos blogs comentaram sobre a proximidade do aniversário de
60 anos de José Mayer enquanto interpretava Augusto César em A
Favorita (João Emanuel Carneiro, TV Globo, 2008-2009, 21h00), um
“maluco beleza”, não muito identificado com o tipo galã. Surgem
comparações, diferenças e semelhanças entre ator e personagem, e
novas relações de sentido entre os cruzamentos do personagem de
então com os anteriores. A memória dos textos emerge para
acrescentar sentido ao personagem do momento. Assim, mesmo

183
quando o personagem quebra com o rótulo tradicional de galã, o
título, ou a expectativa, reaparece. Em Império (Aguinaldo Silva, TV
Globo, 2014-2015, 21h00), José Mayer interpretou Leandro, um
bissexual, e foi bastante elogiado pelo “jeito macho” de seu
personagem. Como provoca Thiago Araújo,

(...) diferentemente da atuação preguiçosa de Betti, Mayer e Toledo


não fazem nesta cena qualquer ação que faça o telespectador apitar
mentalmente o alerta "é bicha!". Pelo contrário, eles dão um show e
se seguirem por este caminho vão desafiar os babacas que perguntam
“onde foram parar os machos”. José Mayer está aí... (Grifos e
hiperlinks do autor). (Apud NEMI e JAKUBASZKO, 2017).

Vale ressaltar a expressão usada pelo crítico: “eles dão um


show”. A efeminofobia presente no texto é latente. José Mayer,
mesmo na relação homossexual, permanece o ‘macho’. A imagem
masculinizada de Mayer na novela responde a anseios comuns de
como um personagem gay deveria agir. Como ressalta Mott (apud
LIMA, 2014), "o gay é mostrado como afeminado, como Vera Verão,
Félix, Crô. E na vida real, essa figura é minoritária. Gays são
másculos na maioria”. Mott mostra que existe um anseio
masculinizante na imagem do gay. José Mayer responde a essa
expectativa como um personagem gay: mesmo gay, ele não perde
a pose de galã.
Há mais um exemplo em Fina Estampa (Aguinaldo Silva, TV
Globo, 2011-2012, 21h00 – reprisada no mesmo horário durante a
pandemia em 2020): o personagem Pereirinha é cômico: malandro
oportunista que conquista a bela e rica Tereza Cristina (Christiane
Torloni). O galã deveria ser o contrário do bobo, do ridículo da
comédia. Entretanto, a memória dos textos emerge novamente e o
ator-galã empresta ao personagem cômico o aspecto de virilidade.
Ao mesmo tempo, produz-se uma ironia de forma que o traço
“conquistador” parece estar caindo de moda como atributo de galã.
Se entre alguns grupos de homens ser “garanhão” é motivo de
admiração, a fabulação cotidiana começa a ver o machismo na

184
construção do tipo e sua narrativa. Começa a surgir a necessidade
de desvincular o “galã” do “pegador”, ou melhor, desvincular dos
galãs as condutas machistas, estas ficarão para o tipo de
masculinidade que a telenovela condena, a do machismo tóxico
que leva à dominação e violência.
Em Viver a Vida, Zé Mayer é Marcos. A paixão por Helena é
arrebatadora, à primeira vista, então o casamento e a lua de mel em
Paris acontecem nos primeiros capítulos. Mas o par amoroso de
Helena não será Marcos, e sim Bruno (Thiago Lacerda). Por que
Marcos e Helena não podem ter um final feliz? O que os impede?
Seus obstáculos não parecem ser a diferença de idade, raça ou classe
social. É a convivência que não dá certo, a relação conflituosa da filha
e ex-mulher com Helena, é, sobretudo, o machismo de Marcos.
Ele prefere e faz pressão para que a “mulher dele não
trabalhe”, uma modelo de sucesso internacional. Mas não é apenas
essa a característica machista do personagem. Outro personagem,
Gustavo (Marcello Airoldi), amigo e braço-direito do galã, nos ajuda
a observar a masculinidade de Marcos. Gustavo é o típico cafajeste,
é aquele cara que é casado, mas, sendo homem, “gosta de variar”.
Ele tem o hábito de passar cantadas em mulheres desconhecidas,
corteja a prima da própria esposa, assedia a secretária e a
empregada doméstica. Mas ele não é um galã. Ao contrário,
Gustavo é o toque de humor da narrativa, o bobo, um palhaço
trapalhão: todas as suas investidas dão em frustração. Marcos, que
teria ensinado a ele todos os truques da conquista, jura ter se
regenerado, mas o homem fiel e romântico durou apenas alguns
meses. Os personagens nos mostram como a prática do “pegador”
está em baixa na telenovela, sublinhando o lado ridículo do
conquistador e do homem infiel.
É importante observar a polêmica que se instaurou a partir da
denúncia de assédio feita por uma figurinista da Rede Globo3, que

3Su Tonani (Susllem Meneguzzi Tonani) publicou uma carta no blog “Agora é que
são elas”, (ESTADO de MINAS, 2017).

185
gerou muita fabulação na imprensa e nas redes sociais. Agora, não
será o personagem na berlinda, mas o ator.
Como se pode conferir nas matérias consultadas, a primeira
declaração de José Mayer após a denúncia foi a de que estariam
confundindo ficção e realidade. Em A Lei do Amor (Maria Adelaide
Amaral e Vincent Villari, TV Globo, 2016-17, 21h00), José Mayer
interpretou o seu primeiro vilão nas telenovelas, Tião, que segundo
registrou o blog de Patrícia Kogut hospedado n’O Globo
(13.11.2016), em entrevista com o ator:

Ainda que a trama resgate o galã pegador, que marcou sua trajetória,
Mayer acredita que o papel lhe dá a chance de seguir outros
caminhos:
- A primeira desconstrução foi com Pereirinha, de “Fina estampa”,
bem populacho. Repeti a surpresa com Cláudio, de “Império”, que
quebrou a imagem do macho (ele era gay). Poderia causar
estranheza, mas a admiração cresceu, me acharam corajoso. Agora
vivo meu primeiro homem mau no horário nobre. Nunca fui
maltratado na rua. Será que isso mudará com Tião? (ESTADO de
MINAS, 2017, s/p)

Vale ressaltar que não está em estudo a conduta do ator,


tampouco se pretende aqui expor, julgar ou avaliar “certos” e
“errados”; “bons” e “maus”, mas observar e perceber, pelas
fabulações cotidianas, que há diferentes narrativas que concorrem
à versão de verdade da história e que a lógica discursiva da
telenovela pode ter penetrado nos discursos do ambiente social e
ajudado a determinar uma sanção para o ator, que foi
imediatamente afastado da telenovela: “A TV Globo decidiu
suspender o ator José Mayer de qualquer produção dos Estúdios
Globo por tempo indeterminado” (G1, 2017). Funcionários,
colaboradores, artistas, atrizes e atores, criaram a campanha
“Mexeu com uma, mexeu com todas”. A emissora pediu desculpas
à figurinista assediada e a nota foi lida no Jornal Hoje. O Vídeo Show
recebeu atrizes para falar sobre a campanha. José Mayer escreveu
uma nota se desculpando.

186
Já registramos (JAKUBASZKO e NEMI NETO, 2018) certa
pluralidade, uma ampliação no espectro das representações das
masculinidades e podemos encontrar protagonistas menos
idealizados, que já apresentam rupturas com a representação da
masculinidade hegemônica. Ainda assim, a questão sobre o valor
da fidelidade de nossa cultura, confirmado por Goldenberg (2006),
se mantém inalterada. O herói pode ser conquistador até encontrar
a sua amada, depois do compromisso seria falha imperdoável. Há
muitas sanções à infidelidade nas telenovelas, e embora as
mulheres sejam punidas sempre com maior rigor, os homens
virtuosos também precisam se desculpar pelas traições. O macho
sedutor e infiel é normalmente vilão ou bufão. Desse modo, na
telenovela, o comportamento é ridicularizado, portanto, rejeitado
como traço de masculinidade a ser seguida.
Esta foi a lógica que se projetou na imagem do ator José Mayer,
casado, enquanto interpretava um vilão e descortinou-se a prática
de assediar mulheres. Talvez não tenham sido as maldades de Tião
que provocaram a agressividade da audiência, mas as declarações
e o machismo do próprio ator. A história seguiu repercutindo na
imprensa até que a figurinista retirou a acusação de assédio. José
Mayer foi muito criticado e cobrado pelas declarações ambíguas e
confusas, até finalmente publicar a carta em que pede desculpas. A
emissora se posicionou de forma congruente com o discurso que
veicula em suas telenovelas, recriminando o assédio e
desculpando-se com a funcionária. As ações institucionais
convergiram com o logos pedagógico da telenovela.
Em 2020, devido à pandemia que vivemos, a Globo teve que,
pela primeira vez na sua história, parar a produção de telenovelas
e recorrer a suas reprises para preencher sua grade. Amor de mãe foi
substituída, primeiramente por Fina Estampa de 2011. José Mayer,
portanto, voltou à tela da Globo depois de sua demissão em 2018.
Os excelentes índices de audiência da reprise fizeram com que o
público voltasse a falar do ator e dos casos de assédio que levaram
à sua demissão. Ricardo Feltrin (FELTRIN, 2020), crítico de
televisão para o site UOL, perguntou aos leitores se haveria um

187
possível “descancelamento” do ator após o sucesso da reprise de
Fina Estampa.
Nos últimos anos a emissora tem mostrado coerência e ensaia
pouca tolerância com casos de assédio. Em 2017 repercutiu nas
redes sociais que Otaviano Costa, apresentador do Vídeo Show, teria
sido suspenso após ter provocado reações negativas nas redes
sociais por um comentário machista. No mesmo ano, o cantor
Victor, da dupla sertaneja Victor & Léo também pediu afastamento
do programa dominical The Voice Kids após ser acusado de
violência pela mulher e a Globo se pronunciou oficialmente. Em
2020 o caso de assédio sofrido por Dani Calabresa e outras
profissionais da emissora pelo humorista Marcius Melhem ganhou
espaço na mídia e nas redes sociais.
Na ficção, localizamos duas telenovelas recentes que fizeram
inserções em que as mulheres mentiam ser vítimas de assédio: Rock
Story (Maria Helena Nascimento, TV Globo, 2016-2017, 19h00) e
Força do Querer (Glória Perez, TV Globo, 2017, 21h00). A esse
respeito, em seu blog, Nilson Xavier (XAVIER, 2017) sublinha a
autoria feminina das tramas. Em o Novo Mundo (Thereza Falcão e
Alessandro Marson, TV Globo, 18h00) o assédio realmente
aconteceu: o personagem histórico Dom Pedro (Caio Castro),
fazendo jus à sua fama de “conquistador”, assediou Anna Millman
(Isabelle Drummond), beijando-a a força, às 18h00.
O tema assédio está na pauta do dia e diversos casos
semelhantes ocorrem cotidianamente sem que os “machos”
envolvidos sofram qualquer sanção, a não ser comentários
indignados nas redes sociais. Outro caso de 2017 envolveu dois
apresentadores do SBT durante o programa Sílvio Santos, no
mesmo canal. Em um de seus quadros dominicais, Maísa foi
assediada por seu colega de televisão, Dudu Camargo. De acordo
com a mídia impressa, após as gravações Maísa deixou o palco,
uma produtora foi demitida e Dudu Camargo teve sua carreira
alavancada participando de vários programas de televisão.
Em outro caso, internacional, vale lembrar o Oscar de 2017
dado ao ator americano Casey Affleck pelo filme “Manchester by

188
the Sea”, dirigido por Kenneth Lonergan. Affleck foi acusado de
assédio sexual (em situação semelhante a do ator José Mayer) por
produtoras de um filme em que ele trabalhara anteriormente. Tudo
foi resolvido em segredo de justiça. Porém, durante a sua
premiação em 2017, a atriz Brie Larson que lhe entregou o Oscar
fez um protesto em silêncio: recusou-se a aplaudir a entrega do
prêmio. São apenas dois entre inúmeros exemplos que contradizem
cotidianamente as representações que as telenovelas vêm
construindo para narrar e propor possíveis soluções em direção à
equidade de gênero. A disputa está em processo e a figura do galã
aparece como modelo em vias de transformação.
Ao estudar como os romances assimilam o tempo-espaço
histórico e constroem a imagem do homem desse tempo
representado, Bakhtin (2006) discorre sobre o romance de formação
do tipo realista, que, acreditamos, aproxima-se em alguns aspectos
da telenovela brasileira. Diferente de outros tipos de romances de
formação que representam o tempo histórico apenas como um
pano de fundo, as narrativas dos romances realistas de formação
apresentam seus heróis e conflitos de modo indissolúvel com o
tempo histórico.

O homem se forma concomitantemente com o mundo, reflete em si


mesmo a formação histórica do mundo. O homem já não se situa no
interior de uma época, mas na fronteira de duas épocas, no ponto de
transição de uma época a outra. Essa transição se efetua nele e através
dele. Ele é obrigado a tornar-se um novo tipo de homem, ainda
inédito. Trata-se precisamente da formação do novo homem (...)
mudam os fundamentos do mundo, cabendo ao homem mudar com
eles. (BAKHTIN, 2006, p. 222)

O galã de novela ainda é um tipo indispensável à roteirização


do folhetim eletrônico e suas alterações composicionais ao longo do
tempo podem revelar muito sobre o desenvolvimento do próprio
gênero telenovela, assim como sobre o machismo e as
representações das masculinidades na cultura brasileira. Suas

189
imagens certamente terão que se adaptar às mudanças no contexto
sociocultural. Já temos algumas hipóteses e comprovações sobre
como a telenovela tem se aliado à luta pela equidade nas relações
de gênero (JAKUBASZKO e NEMI, 2018).
As telenovelas costumam narrar histórias feministas, num
esforço progressista e civilizador, para cumprir com o logos
pedagógico da novela, refratam na direção da verdade e da justiça,
mas também deixam escapar os reflexos de uma cultura machista.
Nem sempre a audiência capta esse reflexo e não se produz
qualquer fabulação no cotidiano. Como exemplo podemos citar o
episódio de 10 de abril de 2017 da telenovela Força do Querer (Glória
Perez, TV Globo, 21h00; também reprisada em 2020-2021): o
personagem Zeca (Marco Pigossi) retira Ritinha (Isis Valverde) à
força do aquário em que ela trabalhava por não concordar com seu
emprego de sereia. Em uma cena brutal, mas que se pretendia
cômica4, o galã carrega nos ombros a sua namorada enquanto ela
se debate pedindo para ficar em seu emprego5. Ainda em 2017 foi
possível ver a telenovela reproduzir a já tradicional cena – tão
comum em tantas telenovelas ao longo da história – do homem
infantilizando a mulher, retirando a agência da heroína em nome
do amor, ou da moral e dos bons costumes. Interessante lembrar,
ainda, que Pedro (José Mayer), em Laços de família (Manoel Carlos,
TV Globo, 2000-2001, 21h00), ao longo da novela, bateu na
personagem Íris (Deborah Secco). Também vale notar que os
registros de audiência marcam aumento nos capítulos em que
mulheres apanham, ou batem umas nas outras motivadas por

4 Vale relembrar um trecho da carta de José Mayer: “atitudes machistas, invasivas


e abusivas podem ser disfarçadas de brincadeiras ou piadas. Não Podem”. Ainda
pior, neste caso, é a “moral da piada”: o homem se coloca como superior à mulher
e deve repreendê-la toda vez que ela se desviar do que a cultura patriarcal julga
ser adequado para o comportamento feminino (G1, 2017).
5 Em nossas observações, em 14.07.2017, na telenovela Pega-pega (Claudia Souto

e colaboradores, TV Globo, 2017, 19h00), o galã Eric vivido por Mateus Solano usa
do mesmo recurso de Zeca quando a sua namorada, Luiza, interpretada por Camila
Queiróz, se recusa a falar com ele.

190
ciúme ou por reparação/vingança de infidelidade. É o homem
sempre no centro das atenções, no centro do sentido de vida das
mulheres. É da cultura patriarcal a mão que bate.
A supersérie Os Dias Eram Assim (Angela Chaves e Alessandra
Poggi, TV Globo, 2017, 23h00) parece cuidar atentamente das
contradições do tema. O capítulo de 21.07.2017, apresenta um
conflito de dois casais: Alice (Sophie Charlotte) e Renato (Renato
Góes) se apaixonaram, mas seus cônjuges não querem conceder a
separação. Ao mesmo tempo em que a trama resgata um contexto
histórico político brasileiro, da luta contra a repressão e a ditadura
militar, mostra as transformações na intimidade. Entrelaçando
tempo histórico e construção de personagem, a ficção mostra como
a democratização da vida privada está diretamente relacionada à
democratização da vida pública, conforme observa Giddens (1993).
Para o autor, a sexualidade está diretamente ligada à reelaboração
na narrativa do eu, da autoidentidade, da democratização da vida
cotidiana que anda em sintonia com a democratização da esfera
pública; as práticas democráticas na vida pessoal estimulam
práticas sociais igualmente democráticas: “Num plano mais amplo,
existe uma simetria entre a democratização da vida pessoal e as
possibilidades democráticas na ordem política global” (GIDDENS,
1993: 213). A super série dialoga com o presente histórico brasileiro
- de retrocessos ao passado narrado - e foi bastante elogiada por
não utilizar o contexto histórico apenas como pano de fundo.
Inclusive esteticamente, ao retomar fotos e vídeos da época. É a
ficção se entrelaçando ao histórico e aos tempos passado e presente,
com projeções para o futuro.
Em Os Dias Eram Assim, a temática dos estigmas da separação
e do desquite, já superados na atualidade, marca uma leitura do
passado que identifica o comportamento machista com a lógica
patriarcal e autoritária, apontando para as forças progressistas da
sociedade como as responsáveis pelo esforço em direção à
democratização das relações. Destacam-se as referências à Leila
Diniz e ao semanário O Pasquim. Sem cair no estereótipo, o
machismo também se pratica por meio da mulher, Rimena (Maria

191
Casadevall), esposa de Renato, que se recusa a dar a separação e
quer manter o casamento à força; ela ainda pretende engravidar de
outro homem para manter seu casamento. Do mesmo modo, o
marido de Alice, Vitor (Daniel de Oliveira), não quer aceitar o fim
do casamento apesar de ter, ele próprio, uma amante. É a
representação do “macho, adulto, branco, sempre no comando” e
pronto a tratar uma mulher como objeto. A minissérie também faz
referência às leis de honra ainda em vigor à época, marcando quão
machista era a visão de mundo em relação ao presente do
telespectador. Alice pode perder a guarda das crianças caso aja de
maneira “imoral”, como bem sublinhado por seu advogado. São os
homens que demarcam as fronteiras do permitido e do prescrito
para o comportamento das mulheres. Já seu marido, Vitor, mesmo
com amantes, sendo usuário de drogas, sabe que a lei está ao seu
lado em caso de separação e não hesita em exercer seu poder. Se os
dias eram assim antigamente, por que não perguntar: atualmente,
a masculinidade está mesmo mudando? E o amor romântico?
Nas telenovelas os casais se unem no êxtase de se completarem
um ao outro. Toda a história dos protagonistas se resume a uma
busca por aquele(a) que lhe proporcionará a plenitude, o sentido
mesmo da sua existência. A usual punição de deixar as mulheres
sem par amoroso no final da novela, por exemplo, é uma forma de
valorizar hierarquias entre as mulheres, cujo critério é ser a “posse”
de um macho, como se a mulher só tivesse valor se casada. As
narrativas que exaltam o amor romântico, monogâmico, podem
estimular uma visão de mundo de forte viés machista. “A solidão,
para algumas mulheres, está associada à vergonha, pois, no Brasil,
ser uma mulher sem homem é sinal de fracasso. Para outras, estar só
é estar desprotegida e insegura, sobretudo economicamente”
(GOLDENBERG, 2006, p. 30).
Neste ponto, a telenovela A Favorita (João Emanuel Carneiro,
21h, TV Globo, 2009) inovou e acertou no final de Catarina (Lilia
Cabral) que, cansada da violência doméstica, depois de tanto tentar
agradar ao marido, preferiu a separação e, no final, recusou o
pedido de casamento que recebera de um pretendente. Ela escolheu

192
viver sozinha. A solidão foi a sua recompensa já que só assim ela
poderia ser ela mesma.
Dois outros exemplos são importantes para a nossa análise.
Em 2011, na novela Fina Estampa, o personagem Baltazar
(Alexandre Nero) é apresentado como um marido violento. Ele
bate várias vezes na sua mulher, Celeste (Dira Paes). O personagem
é a clássica representação do marido abusivo. Ele bate e depois se
arrepende. Mesmo indo à polícia no decorrer da novela, no final,
Celeste perdoa o marido e eles terminam juntos, com direito à trilha
sonora de Jorge e Mateus romantizando relacionamentos abusivos
(“quando a gente fica junto, tem briga/ quando a gente fica longe,
dá saudade”). A ironia recai sobre o macho homofóbico ao insinuar
que Baltazar teria uma atração reprimida pelo mordomo Crô
(Marcelo Serrado).
Já em 2017 em O outro lado do paraíso (Walcyr Carrasco, TV
Globo, 21h, 2017-2018), a personagem Clara (Bianca Bin) passa por
situações semelhantes nas mãos de Gael (Sérgio Guizé), porém, os
seis anos de distância entre uma telenovela e outra não permitem o
mesmo final. Em O Outro lado do paraíso, Clara abandona Gael
ganhando um final feliz com um homem que a respeita.
Por muito tempo os protagonistas atuaram como
representantes do padrão hegemônico, as mudanças são muito
recentes. Namoros que seguem e acabam, divórcios, novos arranjos
familiares, histórias de amores puros e confluentes (GIDDENS, 1993),
heterossexuais e homossexuais, assim como formações
poliamorosas nas tramas secundárias. E as mudanças avançam
para as tramas principais, colocando em questão o machismo do
amor romântico.
Talvez o caso mais recente de mutação do amor romântico
heterossexual tenha sido o final de Félix (Mateus Solano) em Amor à
vida (Walcyr Carrasco, TV Globo, 2013/2014, 21h). Amparado pelo
público, o autor deu ao personagem um final feliz com Niko (Thiago
Fragoso). O protagonismo do par amoroso heterossexual foi apagado
pelo brilho da história de amor entre Félix e Niko, garantindo aos dois
homens a última união amorosa da trama a se consolidar – aquele

193
lugar de honra reservado aos personagens principais. A narrativa de
Félix exemplifica tanto a dificuldade de expor a diferença, quanto a
revolta com os padrões hegemônicos. Consumou-se o tão esperado
“beijo gay” na telenovela e uma explosão de comentários, a maioria
em tom de comemoração, explodiu na imprensa e nas redes sociais: o
casal gay se tornou o par romântico protagonista da história. A cena
final da telenovela mostrava o pai finalmente aceitando o filho
independentemente de sua orientação sexual e não um final feliz do
par amoroso convencional. Vale registrar que a cena do beijo entre
Félix e Niko foi censurada na exibição da telenovela no México. O
sucesso da personagem e sua narrativa mostram que a audiência
brasileira se identifica com representações que rompem com a
heteronormatividade e o machismo.
Como a própria telenovela, o galã está em constante mudança.
O caso do Félix que vai de vilão a mocinho/galã gay talvez
represente uma nova imagem do homem e da masculinidade na
televisão. Cenas como vimos em A força do querer não podem ser
mais justificadas na representação de um galã. Um verdadeiro galã
não pode cometer qualquer ato de violência contra a mulher, ainda
que seja por amor.
Nos últimos anos, as novelas têm apresentado galãs amorosos,
que respeitam as escolhas das mulheres e que as amam do jeito que
são. Caso mais recente, em Amor de mãe, o personagem de Murilo
Benício tenta se desconstruir ao longo da trama. Ele termina um
casamento de décadas com uma mulher da idade dele para assumir
um novo relacionamento com uma mulher mais pobre. Ela, por sua
vez, não aceita o conto de fadas tão facilmente. Ela já não é mais a
pobre mocinha que vai ser salva por se relacionar com um homem
rico e viver seu conto de fadas em um castelo (apartamento de luxo na
zona sul do Rio de Janeiro). Ela apresenta ao velho tipo galã uma nova
visão, por que não dizer mais feminista, da sociedade em que vivem.
O outro galã, na mesma novela, Danilo (Chay Suede), também
é um homem desconstruído conforme proposto nesta segunda
década do século XXI. Ele é um homem sensível que ama a sua

194
mulher e que tenta educar junto com a namorada (eles não se casam
oficialmente) o recém-nascido filho.
Apesar da mudança do galã, a violência contra a mulher ainda
persiste nas novelas. Porém, ela surge contra a mulher que trai, a
vilã. Tufão (Murilo Benício), em Avenida Brasil (João Emanuel
Carneiro, 2012), bate na cara de sua mulher, Carminha (Adriana
Esteves), duas vezes e a expulsa de casa quando descobre que ela e
seu cunhado eram amantes e tinham enganado toda a família
durante anos. Alguns anos atrás ele poderia matá-la. A violência é
justificada nos moldes dos crimes contra honra que persistiram no
Brasil até os anos 80, como explicou Chauí (1984, p.78), os crimes
de honra no Brasil não eram passíveis de punição.
O que dizer do final trágico da história de Dona Sinhazinha
(Maitê Proença) na adaptação de Gabriela, Cravo e Canela? E da
história real de Ângela Diniz, assassinada por Doca Street em 1976,
mas que foi preso apenas em 1981 depois de muita pressão dos
movimentos feministas? A honra ferida ainda é mote de várias
telenovelas, porém, podemos perceber uma certa mudança nos
últimos anos. Em Segundo Sol, do mesmo autor de Avenida Brasil,
João Emanuel Carneiro, constrói uma vilã que também trai o
marido. A diferença entre 2012 e 2017 é a reação do galã.
Diferentemente de Tufão em Avenida Brasil, Beto Falcão (Emílio
Dantas) se sente traído e briga com a mulher, mas ele não usa da
violência física e também não a expulsa de casa. Ela mantém a
mansão como moradia até o final da novela. As duas vilãs passam
por redenção. Em Avenida Brasil, Carminha volta a suas origens
morando no lixão e mostra-se arrependida dos problemas que
causou. E, em Segundo Sol, Karola (Deborah Secco) morre salvando
a vida do ex-marido.
Apesar dessas mudanças na construção do galã, a violência
física e moral contra a mulher, seja ela vilã ou heroína, ainda se
reproduz conforme o padrão composicional do gênero. O galã já
não bate mais na vilã, porém outras mulheres ao redor do
protagonista assumem essa posição. Em Segundo Sol, a mãe e a
cunhada do galã partem para a agressão física como parte do

195
processo de redenção da antagonista. Diferentemente de 2012, a
surra, em Segundo Sol, é substituída pela humilhação pública. Os
fãs do marido (cantor de sucesso) atiram copos de bebida no palco.
Em uma segunda cena, ela é verbalmente atacada por pessoas na
rua, afinal, ao que parece se confirmar com os picos de audiência
em cenas de agressão entre mulheres, a vilã ainda precisa sofrer
abuso físico e moral para se corrigir.
Em 2019, em A Dona do Pedaço, a vilã também sofre violência
física, confirmando a tendência apresentada em Segundo Sol, a
violência é entre mulheres. Nesta novela de Walcyr Carrasco, a
mãe, Maria da Paz (Juliana Paes), inconformada com a filha Josiane
(Agatha Moreira), que entre outras ações roubou a mãe e dormiu
com o namorado dela, se sente no direito de bater na moça durante
o confronto quando a verdade é revelada. Numa transição
pedagógica, as agressões físicas passam a ser características
exclusivas de personagens antagonistas.
Quando Gabeira (1980) escreveu O Crepúsculo do Macho
anunciava o final da hegemonia do macho que defendia sua honra
com sangue, que subjugava outras espécies e outros gêneros de sua
própria espécie. Contudo, nenhum império termina facilmente ou
de maneira abrupta. São necessários anos, às vezes décadas, para
que novas estruturas de poder se cristalizem. A derrocada do
macho vem sendo anunciada há décadas, porém, como todo
processo de transição, está composto por movimentos de retração
e expansão. Segundo Bourdieu (2007), somente uma ação política
que tenha em conta todos os efeitos da ordem masculina, mantida
tanto por homens quanto por mulheres, que mexa nas estruturas
das grandes instituições, nas quais a ordem social é principalmente
baseada na dominação masculina, a longo prazo, poderá
“contribuir para o desaparecimento progressivo da dominação
masculina” (BOURDIEU, 2007, p. 139). Quem sabe uma
transferência de poder esteja ocorrendo.
O império do macho, ainda que fragilizado, tem experiência
no exercício de dominação e subjugação em que minorias tentam
não tomar o poder, mas sim expandi-lo e dilui-lo em espaços mais

196
igualitários de representação, deixando espaço aberto para novas
possibilidades de ser e estar no mundo. Registramos num estudo
(JAKUBASZKO, 2017) sobre a minissérie Amores Roubados (George
Moura, TV Globo, 22h00, 2014) a morte do macho com a adaptação
livre do romance “A emparedada da rua nova” (Carneiro Vilela,
1909), pois permite recontar no presente uma história do passado
de forma a atualizar seus conflitos para se adequarem aos sentidos
dos novos interlocutores. Ainda que a obra original fizesse a crítica
da misoginia na sociedade brasileira na transição dos séculos 19 e
20, o final em que a heroína era emparedada viva pelo pai por ter
engravidado daquele que era também amante de sua mãe foi
alterado de forma que o macho - tanto o pegador quanto o opressor
- parece ter sido o elemento anacrônico eliminado. Ao invés do
emparedamento da mulher que se recusou à submissão, o pai
assassino do amante da filha e da esposa é que morre ouvindo sua
sentença de morte da boca da própria filha. Morrem o opressor e o
galã do tipo "Don Juan". Antônia (Ísis Valverde) recuperou para a
heroína um “final feliz”. Assim, nesta minissérie, o final da história
se inverte: não é o pai que mata o amante, enlouquece a mulher e
empareda a filha, mas é o macho todo poderoso que morre frente à
mulher, aquela que se empodera porque não se curva. E dela
nascerá um novo homem. Se Carneiro Vilela tinha como objetivo
denunciar a misoginia da sociedade recifense, Amores Roubados nos
mostra como o Brasil do século 21 vem operando a desconstrução
do machismo.

Considerações

Os gêneros, e seu sentido no jogo de significação social,


oferecem sentido estruturador para as identidades. A
masculinidade é uma construção histórica e social e em
permanente transformação. O machismo é a expressão da
dominação masculina, como um conjunto de valores, crenças e
práticas, cria hierarquias e alimenta a desigualdade entre os
gêneros. A dominação masculina afeta a todos. O sistema das

197
representações de masculinidade das telenovelas trabalha com a
expectativa da igualdade entre os gêneros, mas as contradições
também se pronunciam.
E assim, o gênero telenovela vai diluindo a trama principal,
trabalhando cada vez mais uma estrutura em múltiplos núcleos
dramáticos (multiplot) e troca de protagonismos, retirando os
holofotes das representações machistas e transformando os “galãs
pegadores” em anacrônicos modelos de masculinidade. O fio
condutor passa a ser o amor, não necessariamente naquele modelo
romântico ao gosto patriarcal. Os roteiristas da atualidade têm
desafios a superar: como desvincular as formas composicionais do
galã, da representação do amor romântico e das possibilidades de
happy end do machismo que está impregnado na cultura e nos
gêneros discursivos?
O galã muda, assim como a telenovela, porém a desconstrução
do galã precisa vir acompanhada da construção de novas
representações de gênero que combatam, especialmente a
misoginia, a homofobia e a transfobia. À medida que surgem novos
modelos de masculinidade, que as lutas feministas e LGBTQIAP+
avançam em suas conquistas, a teledramaturgia precisa se adaptar
para continuar a produzir sentidos que dialoguem com a sua
audiência. Agora é esperar pelos próximos capítulos para saber
como as formas poéticas vão corporificar um novo galã de novela, e
como a diversidade irá crescer e se fixar nas representações de
contextos históricos, pessoas, relações afetivas e amorosas.

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02.02.2023.

201
202
Gêneros e formatos televisivos na era do streaming: uma
análise das produções originais
Netflix latino-americanas

Tomaz Affonso Penner


Claudinei Lopes Junior1

O presente texto busca apresentar resultados de um estudo


que teve como objetivo verificar os gêneros e os formatos de toda
produção original da Netflix realizada na América Latina lançada
até 12 de fevereiro de 2020. Além disso, buscou-se compreender as
relações que a programação latino-americana original Netflix tem
com a tradição televisiva seriada do sistema broadcast da região,
especialmente levando em conta os hábitos locais de produção e
consumo do Brasil, muito ligados à ficção televisiva e
especialmente à serialidade por conta da forte influência da
telenovela. Como resultado, identificou-se uma “herança” da
televisão tradicional nos produtos culturais distribuídos por
streaming, especialmente em termos de gêneros e formatos.
Para embasar teoricamente as transformações percebidas a
partir da popularização da distribuição de conteúdos por streaming,
foram utilizados conceitos de Mikhail Bakhtin, teórico que conduz
o fio narrativo do presente livro; ademais, o pensamento
bakhtiniano orienta vários estudos do Grupo de Pesquisa
Linguagens e Discursos nos Meios de Comunicação, o GELiDis,
que organiza esta edição. Sendo assim, empreende-se a
aproximação de conceitos historicamente consolidados no âmbito
dos estudos literários e da filosofia da linguagem para os estudos
audiovisuais, em especial os de televisão cuja realidade
contemporânea contextualizada pela chamada televisão

1Ao longo da produção deste capítulo, o pesquisador foi bolsista do Conselho


Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

203
distribuída pela internet (LOTZ, 2018) retrata aspectos de
mudanças tão rápidas quanto drásticas. Apesar de todas essas
transformações conjunturais, acreditamos que a obra de Bakhtin
continua sendo uma ferramenta eficiente e, mais ainda,
fundamental para a compreensão do mundo e particularmente dos
processos comunicacionais que envolvem o audiovisual, a
televisão e a ficção seriada.
Ao longo do capítulo, em primeiro lugar, enfocamos um
conceito central do pensamento do Círculo de Bakhtin: o gênero do
discurso que subsidia nosso olhar para a produção televisiva. Em
seguida, discutimos sobre os conceitos de gêneros e formatos
televisivos deixando predominante seu caráter cultural para então
destacarmos a tradição da produção, distribuição e consumo da
ficção seriada latino-americana, dando destaque para o contexto
brasileiro, que envolve em sua trajetória a telenovela, até a
emergência do streaming. Por fim, traçamos um panorama
quantitativo dos gêneros e formatos de obras originais Netflix
latino-americanas, tendo como resultado um material eficiente
para subsidiar desdobramentos qualitativos da pesquisa
posteriormente.

Gênero do Discurso: explorando o conceito à luz do Círculo de


Bakhtin

Antes de se ater à discussão teórica-conceitual, é válido


pontuar algumas informações de modo a contextualizar a origem,
a autoria e o momento histórico que suplementam a emergência do
conceito explorado nesta seção do trabalho. Primeiramente, o
Círculo de Bakhtin faz referência a um grupo de intelectuais e de
profissionais das mais diversas áreas cujos interesses, perceptíveis
nas suas produções, convergiam inicialmente na filosofia e na
linguagem. Encontravam-se regularmente entre 1919 e 1929 e
promoviam uma profunda discussão multidisciplinar sobre
aspectos relacionados à linguagem a partir de filósofos do passado
e daqueles que eram contemporâneos a eles (FARACO, 2009, p. 13).

204
Dos entusiastas do Círculo, além do próprio autor que nomeia o
grupo, Mikhail Mikhailovich Bakhtin (1895-1975), merecem
destaque Valentin Nikolaevich Volóchinov (1895-1936) e Pavel
Nikoláievich Medviédev (1892-1940).
Bakhtin tem sua formação nos estudos literários. Foi professor,
atuando sem vínculos institucionais até depois da Segunda Guerra
Mundial, quando conseguiu um emprego fixo, aposentando-se em
1969 e falecendo em 1975 na cidade de Moscou. Pode-se considerar
que suas contribuições o posicionam como um dos filósofos mais
importantes do século XX, apesar de seu ostracismo ter feito com
que suas ideias e debates ganhassem destaque na Rússia somente
na década de 1960, chegando ao Ocidente a partir dos anos de 1970
(CLARK e HOLQUIST, 1998 [1984]).
No que se refere à preocupação dos pensadores do Círculo a
respeito do gênero, Faraco (2009, p. 130) destaca que, no capítulo 7
de O Método Formal nos Estudos Literários (2012 [1928]), Medviédev
já explicava pioneiramente, embora focando os gêneros literários, a
relação entre tal conceito com a vida social e a cognição o
estendendo para outros espectros da atividade humana.
Especificamente, a teoria dos gêneros de Bakhtin (2011, p. 261-262)
parte da premissa de que o uso da linguagem permeia todos os
campos da atividade humana e não se refuta tal abrangência de
aplicação mesmo tendo a língua como uma unidade coletiva. A
materialização da língua, por sua vez, se dá por meio de
enunciados, sejam orais ou escritos, concretos e únicos oriundos
dos integrantes de cada um desses campos de atividade humana
cujas propriedades e finalidades estão refletidas indissoluvelmente
no conteúdo temático, no estilo e na construção composicional
desses próprios enunciados. E, apesar de esses enunciados
concretos serem individuais e particulares, o que Bakhtin (2011, p.
262) propõe é que “[...] cada campo de utilização da língua elabora
seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais
denominamos gêneros do discurso” (grifos do autor).
Na tentativa de superar o reducionismo da função
comunicativa da linguagem na “nossa fala” dominante na

205
linguística do século XIX, que chegava a promover a formação do
pensamento e a necessidade expressiva dos homens como primeiro
plano na concepção da língua, Bakhtin (2011, p. 269), explorando a
natureza dos enunciados concretos e dos gêneros discursivos,
incita que, na verdade, o enunciado é a unidade da comunicação
discursiva e as palavras e as orações são as unidades da língua
enquanto sistema. Isso ocorre porque o sistema linguístico fornece
um repositório de recursos fonéticos, gramaticais e lexicais para
conceber as unidades da língua; porém essa só ganha vida quando
atinge a forma de enunciações, portanto, só se faz discurso na e pela
comunicação discursiva.
O funcionamento da comunicação discursiva, por
consequente da própria teoria dos gêneros do discurso, é regido
por um princípio de responsividade. No complexo e
completamente ativo processo de comunicação discursiva, “[...]
toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza
altamente responsiva; [...] toda compreensão é prenhe de resposta”
(BAKHTIN, 2011, p. 271). O próprio falante/escritor espera que seu
ouvinte/interlocutor não tenha um entendimento passivo já que
houve esforços em tornar sua fala/escrita inteligível pressupondo a
funcionalidade do sistema da língua, mas também da percepção da
realidade a partir de enunciados antecedentes (BAKHTIN, 2011, p.
273). Vale aqui ponderar, então, que a comunicação discursiva é
circundada pelo interdiscurso que é capaz de fornecer aos agentes
envolvidos no ato comunicacional uma gama de possibilidades de
interpretação da realidade a partir das palavras utilizadas nos
enunciados concretos levando em conta aquilo que já foi dito antes,
em outro local, de forma independente sinônimo daquilo “[...] que
chamamos de memória discursiva: o saber discursivo que torna
possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o
já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada de
palavra” (ORLANDI, 2009, p. 31).
Dessa maneira, negando uma unilateralidade de uma emissão
ativa e uma recepção passiva, pode-se afirmar que é imprescindível
que tanto o emissor como o receptor tenham entendimento das

206
significações dos enunciados proferidos na situação de
comunicação de modo que sejam estabelecidos os critérios que
gerenciam a noção de gênero do discurso. Portanto, a força matriz
conceitual dos gêneros discursivos, ou seja, o enunciado concreto,
está no cerne das interações comunicativas como um elo na cadeia
de comunicação que depende tanto do emissor e do receptor como
das engrenagens que precedem essa dada cadeia comunicativa.
Aos gêneros discursivos, não são atribuídas características
individuais nem dos falantes/escritores nem dos
ouvintes/interlocutores, nos gêneros apenas reverberam-se as
circunstâncias dos campos da comunicação cultural onde
acontecem as interações discursivas lembrando da existência
inevitável da linguagem nas atividades humanas ao longo do
tempo vivido.
Propõe-se ainda uma tipificação dos gêneros do discurso: os
primários e os secundários. A primeira categoria é caracterizada
por enunciados simples proferidos em circunstâncias de
comunicação imediata e espontânea, ou seja, que são facilmente
encontradas no cotidiano; já a segunda, abrange enunciados
complexos mediados predominantemente pela escrita e
emergentes a partir de condições de convívios culturais mais
desenvolvidas (BAKHTIN, 2011, p. 263). Contudo, essa divisão não
inviabiliza uma interpenetração dessas duas categorias, afinal

no processo de sua formação, eles [gêneros secundários] incorporam


e reelaboram diversos gêneros primários (simples), que se formaram
nas condições da comunicação discursiva imediata. Esses gêneros
primários, que integram os complexos, aí se transformam e adquirem
um caráter especial: perdem o vínculo imediato com a realidade
concreta e os enunciados reais alheios, por exemplo, a réplica do
diálogo cotidiano ou da carta no romance, ao manterem sua forma e
o significado cotidiano apenas no plano do conteúdo romanesco,
integram a realidade concreta apenas através do conjunto do
romance, ou seja, como acontecimento artístico-literário e não da
vida cotidiana (BAKHTIN, 2011, pp. 263-264).

207
Logo, os gêneros primários compõem os gêneros secundários,
sendo perceptível uma interrelação entre tais categorias. Há o
emprego de uma maior complexidade a qual causa um
restabelecimento de novas possibilidades de significados de
maneira que se podem modificar tanto os enunciados concretos de
gênero primário como alterar também a constituição daqueles que
são referentes ao gênero secundário ao passo que acontecem as
interações discursivas. Bakhtin (2011, p. 266) ainda pondera que:

a relação orgânica e indissolúvel do estilo com o gênero se revela


nitidamente também na questão dos estilos de linguagem ou
funcionais. No fundo, os estilos de linguagem ou funcionais não são
outra coisa senão estilos de gênero de determinadas esferas da
atividade e da comunicação.

Então, o estilo de linguagem pode ser considerado como uma


manifestação de um gênero considerando a situação de comunicação
onde os enunciados foram proferidos. Sendo assim, mudanças
históricas nesses estilos linguísticos ou funcionais acarretam
transformações nos gêneros discursivos por conta da ligação
indissolúvel que esses mantêm não só com o conteúdo temático e
com a construção composicional, mas também com o estilo.
Compreender os gêneros discursivos demanda uma explicação
dessas transformações históricas que acontecem nos estilos de
linguagem presentes nos enunciados concretos, utilizados nas
interações discursivas, capazes de refletir a vida social, afinal “como
a língua passa a integrar a vida através de enunciados concretos (que
a realizam); é igualmente através de enunciados concretos que a vida
entra na língua” (BAKHTIN, 2011, p. 265).
Concatenados a isso, os gêneros do discurso funcionam como
um fio condutor dentro de um complexo sistema de significação
relacionado à atividade humana mediado pela linguagem, oral e
escrita, no qual destacam-se condições e transformações sócio-
históricas dinâmicas e orgânicas que se concretizam ao longo do
tempo formando assim modelos de expressão a partir das

208
interações discursivas dos interlocutores de uma determinada
comunidade. Ademais, os gêneros do discurso servem como guias
nas escolhas dos sentidos dados as nossas palavras, pois organizam
o nosso discurso nessa malha de recursos linguísticos possíveis
para compor a comunicação discursiva dotados sócio-
historicamente de caráter ideológico.

Gêneros e Formatos Televisivos

Neste estudo cabe ainda discutir os gêneros televisivos.


Raymond Williams (2004) foi um dos primeiros teóricos, já na década
de 1970, a abordar os impactos que a televisão causava e as
possibilidades de seu desenvolvimento considerando o avanço
tecnológico. Para Williams (2004, p. 39), “a televisão é essencialmente
uma combinação de formas anteriores de desenvolvimento: o jornal,
o encontro público, a aula educacional, o teatro, o cinema, os esportes
de estádio e os anúncios publicitários”.
O que chama a atenção aqui é a complexidade da televisão, em
termos de linguagens e gêneros. Para a compreensão dessa
complexidade expressa nos produtos televisivos, cabe pontuar que
o estudo dos gêneros se salienta como uma ferramenta importante
nessa empreitada. As produções televisivas são derivadas de
matrizes culturais que orientam, individual e coletivamente, a
construção da realidade; por meio de conteúdos, formas e
estruturas de seus programas e produtos audiovisuais, a televisão
pode configurar sua linguagem a partir do que chamamos de
gêneros televisivos2, capazes de aglutinar e estabilizar dentro de
categorias sua expressividade.

2 Vale considerar aqui que a filosofia da linguagem proposta por Bakhtin vai além
da literatura e dos estudos linguísticos, sendo uma teoria do conhecimento.
Justificando essa abrangência, é importante relembrar a constate retomada da
conexão permanente que a linguagem mantém não só com a língua, mas com
diversos campos da atividade humana, ou seja, com a vida social de maneira crítica
e dialética. Crítica, porque não reduz a linguagem a questões que envolvem somente
a linguística; e dialética, por considerar a língua como um sistema vivo num contexto

209
Num panorama brasileiro e um pouco mais recente, referente ao
início dos anos 2000, tomando o conceito de gênero num viés
bakhtiniano, Machado (2014, p. 68), ao estudar a televisão, reitera que

o gênero é uma força aglutinadora e estabilizadora dentro de uma


determinada linguagem, um certo modo de organizar ideias, meios
e recursos expressivos, suficientemente estratificado numa cultura,
de modo a garantir a comunicabilidade dos produtos e a
continuidade dessa forma junto às comunidades futuras. Num certo
sentido, é o gênero que orienta todo o uso da linguagem no âmbito
de um determinado meio, pois é nele que se manifestam as
tendências expressivas mais estáveis e organizadas na evolução de
um meio, acumuladas ao longo de várias gerações de enunciadores.

Mais uma vez, pontua-se o caráter organizador atribuído ao


gênero; além disso, aqui, como estamos discutindo a linguagem
televisiva, destaca-se que as articulações do gênero extrapolam o
espectro da literatura. Como uma matriz cultural e cognitiva, o
gênero consegue, então, manter uma linha de percurso sócio-
histórica da interpretação dos sentidos dos recursos expressivos de
determinada linguagem, tal como acontece com a televisiva, a
partir das manifestações discursivas que a englobam promovendo
a interlocução de antigas e novas significações entre os sujeitos; no
caso, da televisão, estabelecendo ligação com outros meios de
comunicação precedentes a ela.
Ainda sobre os gêneros televisuais, especificamente, Jost (2004,
p. 27) afirma que funcionam como "moeda de troca que regula a
circulação dos textos ou dos programas audiovisuais no mundo
midiático”. Pode-se retomar aqui o princípio de responsividade do
emissor e do receptor, que é cerne da noção de gênero conforme as
proposições bakhtinianas. Tanto aqueles que produzem o conteúdo
televisivo, ou seja, as emissoras, quanto aqueles que o consomem, os
telespectadores, orientam suas escolhas e postulam condições

de comunicação discursiva ao longo do tempo prezando pela compreensão


dialógica e pela responsividade ao outro (PONZIO e PETRILLI, 2000).

210
interpretativas acerca de cada situação interacional presente nas
ações comunicativas que compõem o tal conteúdo a ser transmitido
pela televisão. Mittell (2004, p. 10) também observa a partir de uma
ótica cultural que “os gêneros cruzam as fronteiras entre texto e
contexto, pontuando produção, distribuição, promoção, exibição,
crítica e práticas de recepção, todas trabalhando para categorizar os
textos da mídia em gêneros”.
Em termos produtivos do conteúdo televisivo, enquanto
indústria cultural, emerge ainda o termo formato. Aronchi de
Souza (2004, p. 46) esclarece, numa perspectiva mais direcionada à
produção dos programas televisivos, que “o termo formato é
nomenclatura própria do meio para identificar a forma e o tipo de
produção de um gênero de programa de televisão. Formato está
sempre associado a um gênero [...]”. Sendo assim, o formato é
composto por um conjunto de ações técnicas, artísticas, econômicas
e empresariais, desenvolvidas pela televisão, enquanto meio de
comunicação, a fim de integrar uma intencionalidade plástica e
reproduzível a um gênero. Portanto, aqui se reconhece que o
formato não se limita à constituição de programas. Na verdade, ele
estabelece uma relação íntima com o gênero, fornecendo-lhe
algumas de suas características no campo da produção televisiva.
Ainda nessa dimensão cultural e comunicacional,
especificamente, sobre a ficção televisiva e seriada, Mungioli (2017,
2019) destaca a composição constitutiva constante e orgânica entre
gênero e formato: características genéricas dominam os formatos,
os quais, por sua vez, exercem influência sobre os gêneros; e reforça
a discussão da noção de gênero e de formato como instância de
mediação do local numa dupla articulação. Essa proposta prevê
que os gêneros e os formatos ficcionais, além de serem elementos
que quando articulados intrinsecamente mostram-se como uma
instância de mediação cultural a partir do local (MARTÍN-
BARBERO, 2001), também integram todas as etapas do circuito da
comunicação - produção, circulação, distribuição/consumo,
reprodução - o que lhes garante distinguir tais práticas como
práticas discursivas (HALL, 2003). Ou seja, as questões simbólicas

211
não podem ser desvinculadas das atividades realizadas em cada
etapa do circuito de comunicação que sofre com as modificações
oriundas das inovações tecnológicas.
Primeiramente, para Martín-Barbero (2001, p. 311) “os gêneros,
que articulam narrativamente as serialidades, constituem uma
mediação fundamental entre as lógicas do sistema produtivo e as do
sistema de consumo, entre a do formato e a dos modos de ler, dos
usos”. Dessa forma, os gêneros não são apenas categorias restritivas a
uma esfera da vida social, seja ela de cunho artístico ou econômico. Na
verdade, os gêneros estão presentes no tecido social.
Em suma, nessa dupla articulação gênero-formato ficcional,
constata-se que “o formato está intimamente ligado ao gênero
narrativo como instância de mediação entre o ser humano e o
mundo e não apenas a um modo de produção” (MUNGIOLI, 2019,
p. 162). Isto é, tanto o gênero como o formato ficcional, ao fazerem
parte do circuito comunicacional como um todo, em todas as etapas
e por conta da relação íntima, constante e orgânica que mantêm,
são elementos que articulam as matrizes culturais de um
determinado grupo social.
Finalizando, os gêneros são matrizes que dialogam
constitutivamente com os formatos industriais e com as lógicas da
produção, mas também com outras esferas culturais da sociedade,
configurando parâmetros de hábitos e de comportamentos
socioculturais que se instauram por meio da serialização. E a
serialização, de certa maneira, também é vista como mediadora do
cotidiano e do ritmo social (SEPULCHRE, 2011), no caso da
distribuição de fluxo experimentada pelo modelo broadcasting.
Deitar-se para dormir após a telenovela, marcar encontros
semanais com amigos para assistir ao programa favorito e correr
para chegar em casa a tempo de ver a season finale da série da qual
todos estão falando são hábitos comuns regidos pela mediação
entre os seres humanos e os gêneros e formatos, não ficcionais e
ficcionais, presentes não só na programação televisiva linear como
em muitos outros produtos da indústria cultural.

212
A tradição seriada latino-americana, em especial, a brasileira

Os últimos setenta anos da produção cultural brasileira são


marcados pela forte presença da televisão, cujo desenvolvimento
ocorreu de maneira paralela à inclusão da ficção seriada e
particularmente da telenovela nos hábitos de consumo midiático
nacionais. A primeira telenovela foi ao ar no país em 1951. Nos
primeiros tempos da televisão, toda a programação televisiva era
exibida ao vivo. As telenovelas então tinham capítulos exibidos
apenas duas ou três vezes por semana, devido às dificuldades
técnicas de produção. O público que tinha acesso a esses produtos
culturais era reduzido, principalmente por conta dos preços altos
dos televisores, que começaram a se popularizar no Brasil já
durante os anos 1960.
A telenovela diária como conhecemos hoje só começou a ser
produzida e exibida de 1963 em diante, com a introdução do
videoteipe no país. A tecnologia permitiu que o formato se tornasse
mais difundido, abrindo caminho para o primeiro grande sucesso de
público, O Direito de Nascer (1964), da TV Tupi. O título, além do êxito
de audiência no Rio de Janeiro e em São Paulo, inaugurou a exibição
de telenovelas em horário nobre e uma tradição que acompanhou a
emissora até sua extinção: a produção de ficção seriada.
Assim como a TV Tupi, a Globo, fundada em 1965, também
elegeu a telenovela como ponto central de sua programação. Era
uma estratégia de emissoras da América Latina já colocada em
prática pela Televisa no México e pela Radio Caracas Televisión na
Venezuela (LOPES, 2004). Pela fácil adaptação de criações artísticas
às necessidades da indústria televisiva, como preenchimento da
grade de programação, custos de produção relativamente baixos,
fidelização do público e pelo retorno financeiro potencial, a
serialização é a principal forma de apresentação de conteúdos na
televisão (MACHADO, 2014; BARTHES, 2011).
Tudo isso mostra a dimensão que a ficção seriada tem no
conjunto de produções televisivas brasileiras. Estudos anteriores
(MUNGIOLI, PENNER e IKEDA, 2019) apontam que no período

213
de janeiro de 2015 a agosto de 2018, foram veiculadas 36 séries e
minisséries em canais abertos de TV no país - destas, apenas duas
não foram exibidas na Globo. Em 2016, somente a Globo produziu
o formato, sete no total. Ainda durante este ano, a emissora exibiu
nove séries e o SBT, em parceria com a Fox, produziu A Garota da
Moto, veiculada pelos dois canais. Em 2017, a Record, em parceria
com o canal A&E, exibiu Sem Volta, enquanto a Globo apresentou
11 produções originais. Os estudos sobre gêneros e formatos,
apontando a ficção seriada de maneira geral e a telenovela em
particular como os produtos audiovisuais em canais abertos mais
vistos no Brasil e na América Latina (BURNAY et al., 2018, p. 57),
evidenciam que as mídias tradicionais, especialmente a televisão,
ainda possuem relevância no cenário cultural da região. No
entanto, cabe enfatizar que o contexto atual aponta para uma
multiplicidade de telas e dispositivos que amplia e, ao mesmo
tempo, segmenta a recepção de conteúdos.
No caso da Netflix, que não possui grade linear de
programação, torna-se possível ao espectador testar diversas
maneiras de experiências estéticas que variam conforme o
interesse, o tempo que ele pode dedicar à assistência dos episódios,
ou mesmo em função dos dispositivos e recursos tecnológicos de
que dispõe. Nesse contexto, o fenômeno do binge-watching, ou
“maratonar” - que consiste na assistência a diversos episódios, ou
temporadas inteiras, em sequência ininterrupta - é uma das formas
de fruição que têm chamado atenção de pesquisadores no campo
da Comunicação (JENNER, 2016, 2020; RUBENKING et al., 2018;
SILVA, 2015, 2020) e de profissionais da indústria de televisão
distribuída pela internet. Existem muitas outras formas de
experiências estéticas proporcionadas, por exemplo, por recursos
que podem acelerar a velocidade das cenas; ou, em uma
perspectiva mais artesanal, quando o próprio espectador seleciona
por meio da barra de frames as cenas que quer ver, ou ainda com o
uso de funcionalidades oferecidas pela Netflix, como a que permite
pular a abertura das séries. Além disso, o portal lançou produções
interativas, com opções de seguir a trama de maneiras diferentes

214
para cada espectador, como em Gato de Botas: preso num conto épico
(2017) e Black Mirror: Bandersnatch (2018).
Enfim, há uma grande ampliação de possibilidades e
modalidades de espectatorialidade originadas tanto pelo avanço
tecnológico de transmissão de dados e imagens pela internet,
quanto pela própria aquisição de habilidades cognitivas e
perceptivas derivadas de experiências estéticas do espectador face
a estes produtos culturais. Todas essas possibilidades que a
televisão distribuída pela internet potencialmente traz podem ser
analisadas por meio da exploração dos gêneros e formatos por ela
produzidos e distribuídos. Não é objetivo deste artigo fazer uma
análise sobre espectatorialidade ou aprofundar as diferentes
experiências estéticas que a TV distribuída pela internet permite
às suas audiências, mas apresentar dados que relacionem a
tradição brasileira e latino-americana de produção televisiva na
chave da ficção seriada e os formatos e gêneros dos originais
Netflix na região.

Efeito Netflix

Para alcançar a dimensão que o fenômeno de distribuição sob


demanda tomou na atualidade, é válido mencionar que, a Netflix
divulgou um relatório apontando que no último trimestre de 2019
o número de assinantes chegou a mais de 67 milhões nos Estados
Unidos e Canadá, 47,4 milhões na Europa, Oriente Médio e Ásia
e 29,4 milhões na América Latina (SOLSMAN, 2019). Dados
coletados em investigações preliminares para elaboração da
pesquisa de Penner (2021) apontam que o total de assinantes da
Netflix no mundo em março de 2020 chegou a mais de 167 milhões
(LEE, 2020). No Brasil, estima-se que os assinantes estivessem
entre oito e dez milhões no fim de 2018, apesar de a Netflix não
divulgar os números oficiais (LAVADO, 2020). Desse modo, a
corporação se tornou em pouco tempo uma das operadoras de
vídeos sob demanda mais populares e, investindo na

215
programação original, a maior produtora de séries do mundo
(PENNER; STRAUBHAAR, 2020).
Mesmo utilizando estratégias inovadoras, até 2010 a Netflix
atuava exclusivamente nos Estados Unidos. A partir daquele ano,
tem início um processo de expansão, que começa pelo Canadá. A
seguir, entraram no alcance da empresa países da América Latina,
Europa, Oceania e Ásia. A companhia começou a oferecer conteúdo
para o público brasileiro em 2011. De acordo com dados da Netflix
(2020), o alcance da empresa em 2020 era de mais de 190 países,
cujas ofertas de conteúdos variam de local para local e podem ser
diferentes (LOBATO, 2019). De acordo com Ladeira (2018, p. 8), é
“certo que a Netflix se constitui como uma plataforma de difusão
cujo principal objetivo reside em construir um território
audiovisual efetivamente global”.
A expansão mundial da Netflix e a evidente estratégia de
internacionalização não deixaram de fora a América Latina,
território sobre o qual se concentram as análises deste capítulo. No
continente, havia, no período de nossa coleta de dados (descrita no
próximo tópico), nove países produtores de conteúdos originais.
Apesar da quantidade relevante de países produtores, a realização
latino-americana de originais Netflix, então, representava apenas
4,6% do total de títulos próprios da corporação (PENNER, 2021).
É a partir dessa produção que são propostas as análises deste
capítulo. Considerando o território latino-americano, buscamos
compreender os gêneros e formatos dos títulos originais Netflix e
colocá-los em diálogo com uma tradição de realização e consumo
de ficção seriada na região, como debatido anteriormente. É de
fundamental importância, considerando a nossa percepção
cultural de gêneros e formatos televisivos, “geolocalizarmos” os
títulos produzidos, a fim de observar tendências e “vocações” de
certos espaços e suas relações com os conteúdos colocados em
circulação.

216
Gêneros e formatos da produção original Netflix na América
Latina3

Para as análises, são apresentados dados coletados em 12 de


fevereiro de 2020 na plataforma Netflix disponível em território
brasileiro. A partir da mineração de informações exclusivamente
referentes aos títulos originais (ou seja, produzidos pela
companhia), o volume de dados se tornou um desafio relevante,
pois foi necessário categorizar todos os 1.535 títulos originais e
exclusivos coletados sob os critérios de nacionalidade, gênero e
formato. Desse modo, foi possível filtrar de acordo com as
categorias que interessavam à pesquisa assim formatar uma visão
geral do catálogo de originais e exclusivos, além de construir o
corpus, composto apenas pela produção original latino-americana
para que seus gêneros e formatos fossem verificados. Para este fim,
foi criada uma tabela dinâmica no programa Microsoft Excel, que
facilitou o isolamento e contabilização de cada categoria. Esse
modelo de coleta e sistematização de dados se mostrou muito
eficiente para as análises, uma vez que ele permite manipular
individualmente cada uma das categorias, além de cruzá-las
quando necessário. Desse modo, é possível não apenas examinar os
títulos na coluna “formato” cruzados com a coluna “país de
origem”, mas também filtrar a partir de outras entradas, como
gênero, por exemplo.
Uma dificuldade adicional consiste no fato de que nem todas
as informações necessárias para a categorização dos títulos são
fornecidas pela Netflix. A empresa de streaming apresenta
quantidade de temporadas, gênero, formato e ano de lançamento,
mas mapear os países de origem das produções representou um
desafio extra. Para sistematizar esse dado, recorremos a sites

3Considerando, no âmbito desse estudo, que a composição da América Latina se


dá pelos países produtores de títulos originais Netflix no período da coleta de
dados: Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, México, Peru, Porto Rico e
Uruguai

217
especializados como Internet Movie Database (IMDb), Filmow,
AdoroCinema, entre outros. Em muitos casos, a informação não
constava em nenhuma dessas fontes, então foi necessário recorrer
aos créditos dos títulos para consolidá-la. É importante
mencionarmos ainda que usamos a classificação de gêneros e
formatos dada pela Netflix. Em alguns casos, no entanto,
confirmamos esta classificação nos referidos sites especializados
(quando a classificação era inconsistente ou muito abrangente).
Assim, foi possível isolar as obras originais Netflix latino-
americanas. Do total contabilizado de 1.535 títulos originais Netflix,
101 são oriundos da América Latina. A seguir, é apresentado um
gráfico com os formatos desse conjunto de obras.

Gráfico 1 - Formatos originais Netflix da América Latina

Fonte: Penner (2020).

Percebe-se a partir da sistematização dos dados que as séries


predominam entre os títulos originais mais produzidos na América
Latina. São 43 obras neste formato, somando 42,5% do total. Se
forem adicionadas as três séries de animação, chega-se a 45,5%.
Somando ainda as cinco séries documentais, chega-se a 51

218
produções originais latino-americanas da Netflix em formatos
seriados, correspondendo a mais da metade (51,4%) do total de
exclusivos disponíveis.
Logo depois das séries, desponta a categoria filme como a
segunda mais numerosa da lista (19 títulos), alcançando 18,8% do
total. Somados, séries e filmes chegam a 61,3% do catálogo original
Netflix produzido na América Latina. Se forem adicionadas ainda
séries de animação e unitários a este conjunto, chega-se a 66,3% de
todos os títulos originais Netflix latino-americanos realizados em
formatos ficcionais.
A terceira posição entre os formatos mais produzidos na
América Latina pela Netflix é interessante, por não contar com uma
história forte na região como os formatos seriados e/ou ligados a
narrativas ficcionais. Trata-se do Stand Up Comedy, que se
popularizou mundialmente nos últimos anos. Ao todo, são 17
títulos originais latino-americanos neste modelo, correspondendo
a 16,8% do total. É uma quantidade considerável, que aponta para
certo investimento da Netflix neste tipo de produção, o que
certamente está relacionado à boa aceitação das audiências locais,
além dos baixos custos que envolvem tais produções. Por fim,
merecem destaque os nove documentários (9% do total) e as cinco
séries documentais (4,9%), que somam 13,9% da produção original
Netflix proveniente da América Latina em formatos documentais.
É proposta agora uma breve discussão sobre a composição do
catálogo de originais Netflix latino-americanos em termos de
gêneros.
Um fator muito interessante perceptível por meio da
sistematização dos dados apresentada a seguir é a simetria perfeita
entre títulos originais Netflix provenientes da América Latina
produzidos nas chaves do humor e do crime. Com 27 títulos para
cada gênero, comédias e narrativas criminais detêm a mesma
proporção do total: 26,7%. Vale mencionar que tanto comédias
quanto criminais são gêneros presentes em formatos ficcionais e
não ficcionais, passando por séries, filmes, comédias stand up e

219
documentários, por exemplo. Os dramas, por sua vez, somam 14
títulos e representam 13,8% dos originais latino-americanos.

Gráfico 2 - Gêneros originais Netflix da América Latina

Fonte: Penner (2020).

Há ainda alguns gêneros que são ligados a certos formatos


específicos. Os “socioculturais”, por exemplo, aparecem
exclusivamente em formatos documentais, assim como “natureza”
e “biográfico”. O gênero “culinária”, no que lhe concerne, é típico
de reality shows e “infantojuvenil” e se apresenta apenas em
formatos ficcionais, como séries, filmes e séries de animação. São
vários atravessamentos possíveis na análise de gêneros e formatos,
mas vale destacar a previamente mencionada tendência da
América Latina à produção seriada, sendo mais da metade dos
títulos verificados enquadrados em formatos deste tipo. A ficção
também aparece como uma vocação da região, conforme
demonstrado pelos dados apresentados. Além disso, ficam
evidentes algumas inclinações de gênero latino-americanas, cujos
títulos são em sua maioria comédias ou narrativas criminais. Se
forem avaliados apenas os títulos ficcionais, as narrativas criminais
superam as comédias, já que grande parte destas está ligada à
programação de stand up comedy. Também é notável a

220
popularização das narco-séries, criações genuinamente latino-
americanas que retratam particularidades deste lugar. Há vários
títulos, como: Fronteira Verde (Colômbia), El Chapo (México,
Colômbia e Estados Unidos), A Rainha do Tráfico (México), A Lei
Secreta (Colômbia), Ingobernable (México), La Reina del Flow
(Colômbia).

Considerações

Os formatos seriados na chave da ficcionalidade cruzam as


décadas na tradição televisiva da América Latina. Não por acaso, os
maiores produtores de originais Netflix da região eram, em 2020,
México (43 títulos), Brasil (24 títulos), Argentina (17 títulos) e
Colômbia (17 títulos), países que historicamente têm suas realizações
audiovisuais marcadas pelas telenovelas e pelo cinema. Além disso,
percebe-se, com suporte na discussão sobre como os gêneros e os
formatos também são atravessados pela cultura, que as narrativas
criminais, por exemplo, se popularizaram mais aqui do que em
outras partes do mundo (LUSVARGHI, 2016). Nesse sentido, pode-
se notar a dupla articulação entre gêneros-formatos ficcionais como
mediadora da instância de produção local, uma vez que aspectos
temáticos, estilísticos e composicionais do gênero discursivo
constroem engrenagens para o funcionamento de tal mecânica.
A configuração de gêneros e formatos na produção original da
Netflix na América Latina certamente está em diálogo com os
hábitos de consumo cultural historicamente construídos nesse
amplo território. Ao percebermos a predominância da ficção
seriada e de dramas e comédias, estamos olhando para uma etapa
de um processo que se desenvolve na região desde os anos 1950.
Por outro lado, cabe destacar que o princípio da
interdiscursividade nos ajuda a compreender não apenas os
enunciados, mas também os produtos culturais audiovisuais de
maneira sistêmica e social. Desse modo, consideramos que o
conteúdo temático dos títulos distribuídos por streaming se

221
relaciona com outros anteriores a eles, caracterizando sua natureza
eminentemente dialógica.
Concordamos com Mungioli (2008), quando ela inter-relaciona
memórias e vivências individuais às memórias e às vivências
coletivas, colocando a constituição das identidades em
convergência com as mediações dos meios de comunicação de
massa. As experiências acumuladas pelo consumo midiático
constroem um passado comum que, por meio dos discursos postos
em circulação, forjam o “interdiscurso sobre o qual se assenta a
memória discursiva” (MUNGIOLI, 2008, p. 5), construindo
identidades em vários níveis, incluindo nacionais e regionais.
Há, portanto, um fio condutor das narrativas latino-
americanas que é orientado mais por gêneros e formatos televisuais
e menos pelos suportes nos quais os conteúdos são depositados ou
veiculados. Conclui-se, desse modo, a existência de uma ligação
profunda entre a produção televisiva e a cultura, que direciona
gêneros e formatos mais convenientes para cada conjuntura.
Assim, deve-se considerar a relevância das transformações trazidas
com a TV distribuída pela internet (LOTZ, 2018), mas sem deixar
de lado o caráter cultural que as define, seja na TV de fluxo, seja na
programação de portais e plataformas de streaming. Mesmo com
potencial global, a tecnologia é condicionada às realidades e às
histórias locais de maneira inevitável.

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226
Gêneros do discurso e TV Social: a série
Cidade Invisível 1

Ligia Prezia Lemos


Analú Bernasconi Arab2

Normalmente, quando se toca na palavra gênero, é muito


comum pensar-se nas categorias classificatórias, indicadas pelos
produtores de conteúdo, como uma forma de os consumidores
reconhecerem as narrativas que irão encontrar ali. Se pensarmos no
gênero inserido na conjuntura da indústria cultural, podemos
considerá-lo como uma diretriz estratégica de criação de conteúdo
nas esferas dos meios de comunicação de massa, ou seja, na
televisão, rádio, revista, internet e cinema. Nessa perspectiva, “ora
os gêneros servem para identificar objetos/produtos com
características semelhantes – textos, discursos, programas – ora
para dialogar mais especificamente com certas emoções, sendo
tratados assim como: drama, comédia, suspense” (MACEDO;
BACCEGA, 2010, p. 61). No contexto audiovisual televisivo, “o
gênero é visto como uma espécie de fórmula que deve ser seguida
para que um programa tenha sucesso” (MUNGIOLI, 2012, p. 100).
Inicialmente, as discussões acerca do gênero são encontradas
na teoria dos gêneros literários. Gregos, latinos e clássicos
modernos enxergavam nos gêneros literários perfeitas categorias
artísticas que norteavam a pureza das obras, tratavam-se de
categorias como o poema épico, o poema lírico, a tragédia e a
comédia (VICENTE, 2020, p. 218). Machado (2005, p. 68), ao tratar

1 Uma versão reduzida deste trabalho foi apresentada no GP Ficção Seriada, no


XXI Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento componente do
44º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, realizado de 4 a 9/10/2021,
em modalidade virtual, pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap).
2 Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

(Capes) – Código de Financiamento 001.

227
dos gêneros televisuais, destaca Bakhtin no sentido de ser o
pensador que melhor desenvolveu uma teoria de gênero que dá
conta dos trabalhos científicos da atualidade, mesmo tendo
restringido seu estudo aos fenômenos linguísticos e literários e não
englobando os produtos do audiovisual contemporâneo.

Para o pensador russo, gênero é uma força aglutinadora e


estabilizadora dentro de uma determinada linguagem, um certo
modo de organizar idéias, meios e recursos expressivos,
suficientemente estratificado numa cultura, de modo a garantir a
comunicabilidade dos produtos e a continuidade dessa forma junto
às comunidades futuras (MACHADO, 2005, p. 68).

Os conceitos advindos do pensamento bakhtiniano3 formam


um arcabouço teórico-reflexivo que confronta as questões
epistemológicas de estudos científicos que abrangem a linguagem
e a linguística. No entanto, as problematizações levantadas por
Bakhtin não se restringem apenas a essas áreas, como salientou
Machado (2005), elas reverberam na transdisciplinaridade e são
relacionadas aos mais diversos estudos contemporâneos
pertencentes a diferentes áreas do conhecimento, inclusive
audiovisual.
A chamada televisão transmídia (FECHINE et al, 2013;
MASSAROLO et al, 2013, 2015) abrange as mudanças e
transformações da fusão entre TV e internet no contexto da
convergência midiática (JENKINS, 2009), e os fenômenos
resultantes desse processo. Um deles é a TV Social (FECHINE,
2017), ou seja, o burburinho em torno de um conteúdo de mídia que
passa a ocorrer em diversos espaços de socialização em rede. O

3O denominado pensamento bakhtiniano não é apenas constituído pelos estudos


de Mikhail Mikhalovich Bakhtin (1985-1975), mas compreende também
produções de intelectuais de diversas áreas que com ele fizeram parte, no contexto
da episteme soviética no período de 1920 a 1970, de variados e riquíssimos Círculos
de discussão e edificação de um posicionamento distinto em relação à linguagem
e seus estudos (BRAIT, 2020, p. 9).

228
surgimento dos serviços de VOD, em streaming, sobretudo a partir
do início da década de 2010, também é consequência do contexto
da convergência midiática e redefiniu como as pessoas consomem
conteúdo, seja em áudio e/ou vídeo. Dentre os fatores que
viabilizaram e aceleraram esse processo, estão o barateamento da
internet banda larga e a popularização das tecnologias smart em
dispositivos eletrônicos, como televisores e celulares. Logo, o
streaming de vídeo por assinatura pago SVOD4 cresceu e o conteúdo
audiovisual como filmes, séries e documentários foi
disponibilizado nessas plataformas. No ano de 2011, a Netflix
chegou ao Brasil e ofereceu um extenso catálogo de filmes e séries
por 15 reais mensais (GARRETT, 2020).
Além de disponibilizarem diversos conteúdos audiovisuais,
os SVOD passaram a realizar produções próprias. A série
Lilyhammer, lançada em fevereiro de 2012, foi a primeira produção
original da Netflix (SILVA, 2021), porém é com o lançamento da
série House Of Cards no ano seguinte que a plataforma de streaming
atingiu seu primeiro grande sucesso mundial. No Brasil, a primeira
incursão nesse sentido se deu com a série 3%, lançada em 2016, com
boa repercussão mundial. Logo em seguida, houve outras
produções com ótima aceitação pelo público, como O Mecanismo
(2018), Samantha! (2018), Coisa mais linda (2019), Cidade Invisível
(2021). Realizada com a Prodigo Films, BottleCap Productions e
Boipeba Filmes, Cidade Invisível é uma ficção com sete episódios de
35 a 40 minutos de duração, também com boa repercussão
internacional (JOHNSTON, 2021). Embora a série não seja
produzida por uma empresa de televisão per se, e seja um produto

4Os serviços de VOD, vídeo on demand (ou vídeo sob demanda, em português),
classificam-se de acordo com a maneira que são comercializados. O SVOD refere-
se ao Subscription Video on Demand, ou seja, o vídeo sob demanda a partir de
assinatura; o AVOD, Video Advertising on Demand, é o vídeo sob demanda com
inserção publicitária; o TVOD, Transactional Video on Demand, é o vídeo sob
demanda com pagamento unitário; entre outros.

229
da plataforma Netflix, não deixa de se categorizar como um gênero
ficcional televisivo5.
Neste trabalho, de forma resumida, pretendemos refletir sobre
o conceito de gêneros do discurso, discutido por Bakhtin (2010),
com base na ficção televisiva seriada Cidade Invisível. Não temos a
finalidade de esgotar a análise perante o conceito, pois afinal o
pensador russo destaca o caráter heterogêneo e complexo dos
gêneros do discurso. O objetivo é, inicialmente, abordar a
concepção de gêneros do discurso de Bakhtin (2010) a fim de servir
de arcabouço teórico para olharmos nosso objeto sob duas
perspectivas: a primeira seria a de considerar e analisar a obra
audiovisual Cidade Invisível como gênero discursivo complexo; e a
segunda seria buscar compreender as características dos gêneros
da comunicação discursiva, para então podermos visualizá-las
inseridas no fenômeno da TV Social (FECHINE, 2017) por meio de
análise do perfil oficial da Netflix na rede social do Twitter.

Gênero discursivo ficcional e comunicação discursiva na TV


Social

Bakhtin (2010) considera os enunciados como correias de


transmissão entre a história da sociedade e a história da linguagem,
pois todo fenômeno novo (fonético, lexical, gramatical) precisa
percorrer “um complexo e longo caminho de experimentação e
elaboração de gêneros e estilos” (BAKHTIN, 2010, p. 268) para que,
a partir de então, possa integrar o sistema da língua. O autor afirma
que o emprego da língua ocorre por meio dos enunciados e que
cada enunciado particular é individual, mas “cada campo de

5 Utilizamos a expressão ficção televisiva para nos referir a telenovelas, séries,


minisséries, webseries e outros formatos semelhantes realizados em vídeo, neste
e em trabalhos anteriores, pois entendemos que a ficção televisiva tem origem
televisiva, na cultura da televisão, na “maneira de produzir televisual, seja qual
for o device em que é transmitida e consumida. Enfim, é aquela realizada em
formato de vídeo sendo que o vídeo tem a interessante propriedade de unir as
práticas artísticas às comunicacionais” (LEMOS, 2017, p. 49-50).

230
utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de
enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso”
(BAKHTIN, 2010, p. 262). Nessa perspectiva, Mungioli (2012, p.
104) acrescenta que a base dos gêneros do discurso “é a vida das
interações verbais, da interlocução entre as pessoas, enfim, da
língua viva” e eles funcionam como “uma espécie de guia de
produção e de interpretação de sentidos”.
O próprio Bakhtin (2010) admite a dificuldade de definir a
natureza geral do enunciado em razão da diversidade dos gêneros
discursivos, apesar de sua relativa estabilidade. Isso acontece
porque estão ligados ao passado, à memória e à história, repetindo
usos anteriores e fortalecendo-os de acordo com estilos, temas e
formas. Essa repetição mantém vivas as significações sociais.
Dentro dessa solidez estabelecida é que começam a brotar
mudanças, atualizações, e surgem instabilidades que buscam o
futuro em tentativas de unir o sólido com o instável, o novo. É um
movimento dialógico em relação ao que já existe e ao porvir, que
testa possibilidades, novos enunciados, procurando respostas. Esse
é o movimento orgânico que renova os gêneros, pois é o mesmo
movimento que renova as atividades humanas.
Ainda, Bakhtin (2010) postula que todos os campos da
atividade humana utilizam a linguagem e que os enunciados são
parte indissolúvel das relações e das atividades do ser humano. Por
sua vez, há uma infinidade de possibilidades para a atividade
humana, e esses campos de atividade indicam o conteúdo, o estilo,
e a construção composicional do que é dito. A riqueza e a
diversidade dos gêneros do discurso são infinitas justamente
porque são inesgotáveis as possibilidades da atividade humana.
Podemos assim dizer que tais experiências constituídas por meio
da linguagem e as camadas em que atuam são imensuráveis, “em
cada campo dessa atividade é integral o repertório de gêneros do
discurso, que cresce e se diferencia à medida que se desenvolve e
se complexifica um determinado campo” (BAKHTIN, 2010, p. 262).
Em função disso, a aplicação dos gêneros discursivos é
heterogênea e extensa, pois estes são regidos por todas as esferas

231
das relações humanas e apresentam arquétipos em cada uma.
Dessa forma, “os gêneros do discurso perpassam todas as áreas do
conhecimento humano e adquirem (...) uma certa tipificação
decorrente da atividade social da área. Assim, a cada atividade
humana correspondem alguns gêneros que lhe são típicos”
(MUNGIOLI, 2012, p. 104). Bakhtin (2010) salienta outro aspecto
fundamental: os gêneros do discurso podem ser diferenciados
entre gêneros do discurso primários, ou simples, e secundários, ou
complexos.

Os gêneros discursivos secundários (complexos – romances, dramas,


pesquisas científicas de toda espécie, os grandes gêneros
publicísticos, etc.) surgem nas condições de um convívio cultural
mais complexo e relativamente muito desenvolvido e organizado
(predominantemente o escrito) – artístico, científico, sociopolítico,
etc. No processo de sua formação eles incorporam e reelaboram
diversos gêneros primários (simples), que se formaram nas condições
da comunicação discursiva imediata (BAKHTIN, 2010, p. 263).

As classificações que se caracterizam pelo critério de


comunicação discursiva imediata e comunicação mediada pela
escrita – apesar da divisão proposta por Bakhtin – podem revelar a
inter-relação entre os gêneros primários e secundários, nos quais
“há um processo constante de interpenetração, o que leva a
reelaborações e a novas apropriações” (MUNGIOLI, 2012, p. 105).
Assim, “as mudanças históricas dos estilos de linguagem estão
indissoluvelmente ligadas às mudanças de gêneros de discurso”
(BAKHTIN, 2010, p. 267), isto é, para cada campo da atividade
humana e da comunicação, são cabíveis seus respectivos estilos de
linguagem e, consequentemente, em cada campo são empregados
determinados gêneros discursivos. Nesse sentido, ao nos
aproximarmos do campo audiovisual, passamos a lidar com os
gêneros discursivos desse campo – mesmo se tratando de uma
comunicação mediada audiovisual e não escrita – categorizados por
Bakhtin (2010) como gêneros do discurso secundários

232
(complexos). A partir da concepção bakhtiniana, portanto, podemos
entender Cidade Invisível como um gênero do discurso complexo.
Seguindo a mesma linha de raciocínio de Machado (2005), que
categorizou os gêneros dos conteúdos televisivos, Borelli (1996)
destaca o caráter multifacetário dos gêneros discursivos
abrangendo toda a esfera audiovisual ficcional – não excluímos a
existência de gêneros discursivos não ficcionais, porém nos
interessa aqui o gênero audiovisual ficcional:

Se originariamente a literatura fornece a matriz, hoje em dia os


gêneros encontram-se na televisão, cinema, publicidade (...). São
comédias, tragédias, melodramas; westerns, musicais, suspense e
terror que circulam, imageticamente, pelos campos audiovisuais.
Falar em gêneros, portanto, significa dialogar, aqui, com a literatura
e com outras manifestações da ficcionalidade contemporânea,
principalmente aquelas produzidas pelos meios audiovisuais
(BORELLI apud MACEDO; BACCEGA, 2010, p. 62).

A concepção de gênero discursivo ficcional reforça a ideia de


que gêneros e formatos audiovisuais articulam constantemente
todas as etapas do circuito da comunicação, ou seja, produção,
distribuição, circulação/consumo e reprodução. E ainda revelam
práticas socioculturais e econômicas, apresentando questões
simbólicas constantemente impulsionadas pelas inovações
tecnológicas e sociais (MUNGIOLI, 2019, p. 158). Essa reflexão nos
servirá adiante a fim de compreender como a narrativa policial,
algumas figuras do folclore brasileiro e questões sobre o fantástico
foram convocadas para a realização da ficção televisiva Cidade
Invisível e, ainda, como alguns aspectos da comunicação discursiva
bakhtiniana floresce na TV Social.
Segundo Bakhtin (2010, p. 266), “determinadas condições de
comunicação discursiva, específicas de cada campo, geram
determinados gêneros, isto é, determinados tipos de enunciados
estilísticos, temáticos e composicionais relativamente estáveis”.
Nesse contexto, também são determinados “tipos da relação do

233
falante com outros participantes da comunicação discursiva – com
os ouvintes, os leitores, os parceiros, o discurso do outro, etc.”
(BAKHTIN, 2010, p. 266). Logo, podemos falar em gêneros
discursivos ficcionais no campo audiovisual não apenas como
categorias classificatórias que orientam o mercado cultural, mas
também como partes integrantes e constituintes da comunicação
discursiva em uma perspectiva mais ampla.
Na comunicação discursiva, Bakhtin (2010) defende que o
ouvinte, ao perceber e compreender o significado do discurso,
sincronicamente em relação a ele, apropria-se de uma ativa posição
responsiva, ou seja:

Concorda ou discorda dele (total ou parcialmente), completa-o,


aplica-o, prepara-se para usá-lo, etc.; essa posição responsiva do
ouvinte se forma ao longo de todo o processo de audição e
compreensão desde o seu início (...). Toda compreensão da fala viva,
do enunciado vivo é de natureza ativa responsiva (embora o grau
desse ativismo seja bastante diverso); toda compreensão é prenhe de
resposta, e nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente: o
ouvinte se torna falante (BAKHTIN, 2010, p. 271).

Nessa perspectiva, Bakhtin (2010, p. 272) ainda acrescenta que


“o próprio falante está determinado precisamente a essa
compreensão ativamente responsiva”. Em outras palavras, o
falante não espera uma compreensão passiva, a qual apenas duble
seu pensamento, ele aguarda “uma resposta, uma concordância,
uma participação, uma objeção, uma execução, etc.”. É importante
destacar que o enunciado para Bakhtin (2012, p. 274) configura a
real unidade da comunicação discursiva, pois o “discurso só pode
existir de fato na forma de enunciações concretas de determinados
falantes, sujeitos do discurso”. No que lhe concerne, os limites de
cada enunciado são definidos pela alternância dos sujeitos do
discurso, essa alternância pode ser vista de forma mais simples e
evidente no diálogo real – entre os próprios interlocutores do
diálogo (BAKHTIN, 2010, p. 275). No entanto, em outros campos

234
da comunicação discursiva, inclusive no campo da comunicação
cultural, os gêneros científicos e artísticos também se integram
como unidades da comunicação discursiva (BAKHTIN, 2010, p.
279). A obra, desta forma, compreende um elo na cadeia da
comunicação discursiva. Ora, se a ficção televisiva Cidade Invisível
é definida como um enunciado complexo e integra-se ao conjunto
da comunicação discursiva, nos interessa agora assimilar como esse
processo ocorre na TV Social.
Convergência de mídias, telas múltiplas, redes sociais,
interatividade, suscitam conteúdos de mídia que expandem sua
complexidade via redes e criam novas sintaxes e renovam a prática
coletiva de assistir televisão (JENKINS, 2009). É nessa conjuntura
que o conceito de TV Social percorreu um caminho de discussões
em torno da convergência midiática (JENKINS, 2009) e da televisão
transmídia (FECHINE et al, 2013; MASSAROLO et al, 2013, 2015).
Massarolo et al (2013, p. 273) enfatizam que “a TV transmídia é
social” e pode ser entendida “como uma central de conteúdos
distribuídos por diferentes plataformas, conectando os usuários às
redes sociais, por meio de dispositivos móveis que permitem [uma
nova] experiência de ver televisão juntos”. A televisão mediada
pela internet (LOTZ, 2018) modificou a forma como os conteúdos
televisivos são produzidos, distribuídos, consumidos e,
principalmente, como nos relacionamos socialmente considerando
os avanços das tecnologias de comunicação. A prática coletiva de
assistir TV sofreu transformações e ganhou novas nuances por
meios da chamada cultura participativa (SHIRKY, 2011), o
relacionamento com outros fãs passou a ser abrigado em múltiplos
espaços virtuais de socialização, permitindo que a interação social
atravessasse diversas plataformas de mídia. É na confluência da
cultura participativa e da televisão transmídia que se configura a
comunicação discursiva dos fãs de uma determinada série, por
exemplo. O contexto em que essas práticas se situam é formado por
laços efêmeros e vínculos temporários, pluralidade de vozes e
discursos, espalhados em numerosos espaços sociais
(MASSAROLO et al., 2015, p. 155).

235
Em termos específicos e em relação à televisão, as discussões
acerca da TV social tiveram início nos anos 2000, com pesquisas que
norteavam a televisão interativa digital. Em seguida, o conceito
passou a designar a convergência entre a televisão e as mídias
sociais. Por sua vez, a conversação em rede, defendida por Recuero
(2014), é produto da comunicação mediada por computador,
caracteristicamente pública e coletiva, incentivada pelos sites de
redes sociais. De acordo com Recuero (2014, p. 19), ela “surge dos
milhares de atores interconectados que dividem, negociam e
constroem contextos coletivos de interação, trocam e difundem
informações, criam laços e estabelecem redes sociais”. De acordo
com Fechine (2017), podemos considerar como TV Social as
interações pessoais que envolvem produtos televisivos e são
mediadas por tecnologias interativas, seja no computador ou em
dispositivos móveis, por meio de plataformas que permitem
relacionamento e compartilhamento de conteúdo. Plataformas
como Twitter e Facebook, por exemplo, possuem milhões de
usuários que compartilham e comentam espontaneamente “em
seus perfis sobre conteúdos televisivos dos mais variados, dando
lugar a novos comentários sobre o que postaram e promovendo
uma espécie de conversa moldada pela lógica interacional das
redes sociais” (FECHINE, 2017, p. 88). Portanto, nessa conjuntura,
a TV Social se refere “ao compartilhamento de conteúdos
(comentários, memes, vídeos, montagens, fotos etc.) nas redes
sociais (Twitter, Facebook, Instagram etc.) e nos aplicativos de
segunda tela (TV Showtime, Telfie, Viggle etc.) de maneira síncrona
ao fluxo televisivo” (BORGES; SIGILIANO, 2019, p. 30).
Ainda, Borges e Sigiliano (2019) afirmam que a TV Social
reforça o conceito de laço social, discutido por Wolton (1996). Ou
seja, ao entrelaçar o fluxo televisivo com a temporalidade de mídias
sociais, como o Twitter, por exemplo, o fenômeno fortalece o laço
social e ao mesmo tempo ressignifica a experiência televisiva. “Ao

236
ser transposto para as redes multimodais, o watercooler6 reafirma
algumas de suas principais características e possibilita novas
formas de participação, colaboração e expansão do universo
ficcional” (BORGES; SIGILIANO, 2019, p. 31).
Em síntese, nos interessa compreender que dentro do campo
audiovisual estão localizados os gêneros discursivos ficcionais que,
sendo assim, possuem enunciados estilísticos, temáticos e
composicionais relativos à sua categoria. A obra audiovisual
representa uma unidade na comunicação discursiva e o autor da obra,
sujeito do discurso, também está disposto para a resposta do outro
(dos outros), para sua ativa compreensão responsiva, a qual pode
assumir diferentes formas: “(...) influência educativa sobre os leitores,
sobre suas convicções, respostas críticas, influência sobre seguidores e
continuadores; ela (a obra) determina as posições responsivas dos
outros nas complexas condições de comunicação discursiva de um
determinado campo da cultura” (BAKHTIN, 2010, p. 279).
Como constatamos, a própria obra ficcional televisiva é
considerada um gênero discursivo secundário e se configura como
um enunciado e, ao mesmo tempo, representa um elo na cadeia da
comunicação discursiva. Sobretudo na TV Social, ela irá gerar – nos
múltiplos espaços de socialização em rede, em plataformas como
Twitter e Facebook – uma determinada comunicação discursiva,
onde se concretizam as posições responsivas de outros
participantes, ou seja, dos produtores da obra ficcional, parceiros,
atores, consumidores desse conteúdo (dentre eles, os fãs), os
críticos, os atores, etc. Nesse sentido, a TV Social vem transitando
por este caminho de experimentação em que a ampliação de
perspectivas de interação em múltiplas telas narrativas dá suporte
para um novo ambiente fértil para a constituição de novas práticas

6O termo watercooler foi conceituado por Benton e Hills (2012) e se refere ao hábito
de socializar com os amigos, familiares e colegas de trabalho por meio da
discussão informal sobre a programação televisiva. Foi denominado assim em
alusão aos ambientes corporativos, nos quais o bebedouro era utilizado pelos
funcionários para comentar o que haviam assistido na TV, na noite anterior
(BORGES; SIGILIANO, 2019, p. 31).

237
discursivas. São tais práticas que ampliam as possibilidades de
gêneros do discurso. A comunicação discursiva na TV Social de
uma determinada ficção televisiva abriga múltiplos espaços de
socialização, permitindo que a interação social perpasse diversas
plataformas de mídia.

Cidade Invisível

A série foi criada por dois escritores de narrativa fantástica:


Carolina Munhoz e Raphael Draccon. Escrita por Mirna Nogueira e
equipe de roteiristas, foi dirigida por Júlia Pacheco Jordão e Luis
Carone; com produção executiva de Carlos Saldanha7. É uma
realização da Prodigo Films para a Netflix e estreou na plataforma
no dia 5 de fevereiro de 2021, segundo ano da pandemia de Covid-
19. É relevante destacar este fato, pois no período de distanciamento
social imposto pela doença registrou-se no mundo inteiro um
descompasso entre oferta e procura, pois, se de um lado, tínhamos
um importante crescimento do consumo de vídeo via streaming, do
outro, ocorria o fechamento dos grandes estúdios, interrupção das
gravações e paralisação de toda a cadeia produtiva da
teledramaturgia (BRAVI e ICAB, 2020). Com sete episódios, a
primeira temporada de Cidade Invisível foi bem recebida e chegou ao
primeiro lugar entre os programas da Netflix mais vistos no Brasil,
também figurando entre os Top 10 de 40 países (GOES, 2021). A
realização de uma segunda temporada da série foi confirmada pela
Netflix no início de março de 2021 (TELA VIVA, 2021).
A narrativa se passa no Rio de Janeiro e conta a história de Eric
Alves, detetive de uma delegacia de crimes ambientais, que é
surpreendido determinada noite pela notícia da morte inexplicável
de sua esposa Gabriela (Julia Konrad), numa vila de pescadores

7 Anteriormente Júlia Pacheco Jordão realizou a série O Negócio (HBO, 2013-2018);


Luis Carone esteve em Pico da Neblina (HBO, 2019); e Carlos Saldanha, entre outros
trabalhos, foi diretor das animações Rio (20th Century Fox, 2011) e A Era do Gelo
(20th Century Fox, 2002).

238
onde ela trabalhava. A morte ocorreu em um incêndio durante uma
festa na qual Gabriela estava acompanhada de sua filha Luna
(Manu Dieguez), em uma floresta na Vila Toré, localidade próxima
da cidade, cujas terras interessam a uma grande construtora que
investe ali em um empreendimento imobiliário de grande porte.
Ao iniciar a investigação policial, junto com sua parceira Carla
(Áurea Maranhão), Eric objetiva compreender a morte de Gabriela,
mas logo no início é surpreendido pelo surgimento de um boto-cor-
de-rosa morto na praia. A seguir, dentro de seu carro, o animal se
transforma em um homem quando é transportado para necropsia.
Eric passa a achar, então, que há algum tipo de conexão entre os dois
fatos de características enigmáticas. Na investigação, nota que estão
acontecendo – e passando despercebidos – alguns mistérios na região
central da cidade do Rio de Janeiro. Neste ponto da narrativa, Eric
penetra na cidade invisível que dá nome à série: um mundo liderado
pela Cuca (Alessandra Negrini), onde habitam seres fabulosos.
Grosso modo, pode-se dizer que, assim como grande parte das
obras de ficção seriada televisiva da atualidade, a série Cidade
Invisível hibridiza algumas categorias classificatórias de gêneros
ficcionais que orientam o mercado cultural. Assim, em primeiro
lugar, trata-se de uma narrativa policial tradicional, sendo que
“conta com um protagonista que é um investigador ao estilo noir –
quebrando as regras do jogo para chegar à verdade, doa a quem
doer, e borrando as linhas entre o bem e o mal” (LUSVARGHI,
2021). Temos, portanto, um policial e sua parceira, uma
investigação de assassinato e uma investigação de crime ambiental,
além de disputas de poder no ambiente da delegacia.
A seguir, com o aparecimento gradual de figuras do folclore
brasileiro observa-se que estamos diante de uma obra que se insere
no terreno da narrativa fantástica (TODOROV, 2008). A narrativa
fantástica faz parte da ficção televisiva brasileira desde os anos
1970, com obras representativas como, por exemplo, as telenovelas
da Globo O Bofe (1972), Saramandaia (1976) e Roque Santeiro (1985) e
as minisséries, também da emissora, O Sorriso do Lagarto (1991),
Incidente em Antares (1994) e Fim Do Mundo (Globo, 1996).

239
A narrativa fantástica exige do leitor – e do telespectador –
uma adaptação a um mundo ficcional em que as leis da natureza e
seu conhecimento do mundo estão desorganizados e expostos a
uma nova “multidimensionalidade espacial ou temporal”
(MUNGIOLI, LEMOS, KARHAWI, 2013, p. 221). Esse
conhecimento do mundo, tão necessário à nossa existência no dia a
dia quanto ao nosso acesso, compreensão e mergulho nas obras de
ficção é nomeado por Eco (1997) como enciclopédia. Na narrativa
fantástica o mundo dos personagens organiza explicações tanto
naturais quanto sobrenaturais para os fenômenos do mundo
ficcional, subvertendo tal enciclopédia, o que gera hesitação no
telespectador. E é essa hesitação que revela a oposição irredutível
entre o real e o irreal: “o fantástico é a hesitação experimentada por
um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento
aparentemente sobrenatural” (TODOROV, 2010, p. 176).
Ora, à luz de Todorov (2010, p. 39), para que uma narrativa
seja considerada fantástica, é necessário que preencha três
condições: a primeira é essa hesitação do telespectador; a segunda
é a hesitação do personagem (que espelha, ou que representa a
própria hesitação do telespectador, ou seja, o personagem não
entende os fatos e o telespectador também não); e a terceira
condição é que o telespectador adote uma atitude de recusa a
interpretações alegóricas ou poéticas. Em Cidade Invisível as três
condições se cumprem, salientando que apesar da aparência
alegórica, os personagens não a assumem de fato como função
narrativa; ou seja, o telespectador não é levado a ler os
acontecimentos estranhos como sendo poéticos, nem como
alegóricos, como preconiza Todorov (2008, p. 151).
A série Cidade Invisível também apresenta traços de suspense e
horror, fechando, assim, um complexo de gêneros ficcionais que
não se adapta às estritas classificações anteriores, revelando os já
mencionados hibridismos narrativos e discursivos presentes nas
séries televisivas da atualidade.
Por fim, vale pontuar que em termos de temática a série
aborda questões atuais e relevantes tanto sociais quanto políticas,

240
com uma abordagem que se dirige à ecologia, à ocupação de áreas
de floresta por grandes empreendimentos e à preservação
ambiental.

Cidade Invisível como enunciado

Cidade Invisível dialoga com a narrativa oral e o folclore


brasileiro – que compreendemos como gênero do discurso
primário – realizando uma releitura contemporânea dos seres
fantásticos que o integram, conformando-se como gênero do
discurso complexo, ou secundário.

O filósofo russo da linguagem Mikhail Bakhtin, apesar de não ter se


ocupado do folclore e da tradição oral, mas da literatura escrita
canônica, utiliza amplamente o vocabulário relacionado ao oral, à
voz, à audição, à escuta, ao tom, à tonalidade, à entonação, ao acento,
etc. Diferentemente de outros teóricos, como Walter Ong, Bakhtin
não trata a oralidade como um domínio à parte da escrita, e não faz
uma drástica divisão entre cultura oral e a cultura escrita como dois
âmbitos contrastantes. Ao contrário, o mundo pensado por ele, tanto
o da voz quanto o da letra, aparece unificado pela produção dinâmica
dos sentidos, gerados e transmitidos pelas vozes personalizadas, que
representam posições éticas e ideológicas diferenciadas em uma
união e intercâmbio contínuo com as demais vozes (BUBNOVA,
BARONAS, TONELLI, 2011, p. 269-270).

O folclore brasileiro engloba uma mitologia extensa e


hibridizada, fruto de nossa própria constituição, ou seja, seres e
crenças de diversos povos originários brasileiros, de diversos
povos originários africanos, e de diversos povos europeus. A
origem e características desses seres fantásticos integram culturas e
geografias diferentes, porém, como enfatiza Marco Haurélio (2021),
poeta popular e folclorista, é relevante evitar uma abordagem com
visão antropológico-racial da tradição oral brasileira, abandonada
desde o início do século XX, pois mais do que questões ligadas às

241
origens, importam são as transformações pelas quais passam tais
manifestações tradicionais.
Em vista disso, vale ressaltar que os livros de Monteiro Lobato,
e suas subsequentes adaptações principalmente para a TV,
acompanharam gerações de brasileiros, o que levou muitos a
pensarem que alguns de seus personagens, como a Cuca ou o Saci-
Pererê, por exemplo, são criações do autor e não parte do
imaginário coletivo. Aqui, a televisão, ato contínuo, entra nessa
circularidade da permanência e dinâmica do folclore, e é
acompanhada pela série que ora analisamos.
Estamos diante, portanto, do movimento dialógico em relação
ao que já existe e ao porvir, que mencionamos anteriormente,
experimentando novos enunciados. Nesse sentido, listamos a
seguir os seres que integram a mitologia da série e que, na diegese,
se misturam às pessoas comuns, habitando áreas degradadas da
cidade, articulando as tramas e interagindo com os demais
personagens8:
(1) O Boto-cor-de-rosa, animal dos rios amazônicos, pertence a
uma lenda da região norte do país. A tradição popular usa essa
lenda para explicar os filhos sem pai – muitas vezes frutos de
ataques sexuais às mulheres. Está relacionada ao lado
masculino da Mãe d’Água e à antiga tradição dos delfins
apaixonados do Mediterrâneo. Entre muitas versões, conta-se
que ele se transforma em um homem muito bonito, sempre
vestido de roupas brancas e chapéu (para esconder seu orifício
respiratório), que seduz e engravida as mulheres,
desaparecendo em seguida. Na série, ele aparece em flashbacks
com o nome de Manaus (Victor Sparapane), referência a sua
origem, e se revela como o verdadeiro pai de Eric.
(2) O Saci-Pererê é um ser pequeno, negro, sem uma das pernas,
que habita as florestas, fuma cachimbo e usa gorro vermelho. Não
é um, são muitos os sacis, travessos, endiabrados, que

8Utilizamos nesta lista algumas definições e análises de Câmara Cascudo (2012);


Haurélio (2021); Silva (s/d); Rosa (2021). Ver Referências.

242
incomodam os cavalos, os viajantes, invadem as casas, surgindo
sempre em um redemoinho de vento. Lenda originária do sul do
Brasil, do povo Guarani, na série ele tem o nome de Isac (Wesley
Guimarães), anagrama com seu nome, usa perna mecânica e é um
dos detonadores da trama.
(3) Tutu Marambá, nome de origem africana, é um bicho-
papão (ser imaginário das mitologias infantis de quase todos
os povos do mundo). Na série, Tutu (Jimmy London) trabalha
como porteiro de um bar e se transforma em porco-do-mato
(na Bahia, a lenda dá a Tutu a fama de brigão e forte, como o
caititu, o porco-do-mato).
(4)A Cuca é uma criatura velha, feia, desgrenhada, sem forma
definida, capaz de se transformar em diversos animais, e que
rapta as crianças. Está relacionada à bruxa europeia e à Lilith
hebraica. Porém, a Cuca é um dos seres cuja aparência ficou
gravada na audiência brasileira como um jacaré com garras de
gavião devido à personagem criada por Lobato no Sítio do Pica-
Pau Amarelo. Em Cidade Invisível, a Cuca é Inês (Alessandra
Negrini) e, assim como as bruxas do imaginário brasileiro,
pode se metamorfosear em borboleta. Ela enxerga os medos
profundos das pessoas e é capaz de hipnotizá-las. Dona de um
bar, o Cafofo, usa o estabelecimento como fachada para sua
principal tarefa: a de chefe e protetora dos seres que foram
banidos da mata e estão perdidos na cidade, sofrendo e sendo
assassinados.
(5) Iara, que na língua Tupi significa senhora das águas, é
conhecida no imaginário brasileiro também como Mãe
d’Água. Na série é Camila (Jéssica Córes), durante o dia
trabalha como cantora no Cafofo e à noite se transforma nessa
sereia, metade humana e metade peixe, que seduz homens com
seu canto e os mata por afogamento.
(6) Curupira é o deus que protege as florestas e possui uma
função reguladora da relação do homem com a mata,
castigando os excessos. Foi a primeira entidade a ser registrada
por um europeu, o padre José de Anchieta, ainda no ano de

243
1560. Sua representação física mostra os pés virados para trás
e os cabelos vermelhos. Em Cidade Invisível o Curupira é Iberê
(Fábio Lago), morador de rua que está sempre embriagado e é
o alvo principal do Corpo-Seco. Porém, quando Curupira se
mostra na mata, assume sua forma verdadeira com o corpo
queimado e chamas vivas no lugar dos cabelos.
(7) O Corpo-Seco, conhecido também como Unhudo, é uma
lenda das regiões Sudeste e Centro-Oeste do Brasil que conta a
história de um homem tão mau que, quando morreu, nem o
céu, nem o inferno, nem a própria terra o aceitaram. Em
decomposição, essa criatura morta-viva perambula pelas
estradas e quando encontra uma pessoa gruda nela, sugando
seu sangue e sua vida. Na série, primeiramente ele aparece
como o caçador, Sr. Antunes (Eduardo Chagas) e,
posteriormente, surge apenas encarnado, primeiro em Luna e,
depois, no próprio Eric.

Apesar de ter havido algumas críticas negativas na imprensa


do país se referindo à apropriação cultural9 e à falta de
profundidade quanto a aspectos relacionados aos universos
originais de cada um desses seres da mitologia brasileira, a simples
presença de uma releitura desses personagens já conhecidos por
muitos abriu a possibilidade de diálogos importantes sobre o
imaginário brasileiro. Isso ocorreu destacadamente nas redes
sociais, em atitudes responsivas das quais selecionamos alguns
exemplos que analisaremos a seguir.

TV Social e comunicação discursiva na série Cidade Invisível

Pudemos verificar a partir da discussão de gêneros do


discurso (BAKHTIN, 2010) que em cada campo da atividade
humana são gerados determinados gêneros, ou seja, determinados

9Algumas criaturas apresentadas na série possuem origem em crenças consideradas


divinas por diferentes povos originários brasileiros. Ver: MARTINS (2021).

244
tipos de enunciados estilísticos, temáticos e composicionais.
Conforme esse campo se desenvolve e se complexifica, o mesmo
ocorre com o repertório de gêneros discursivos. Ao adentrarmos o
campo audiovisual, podemos considerar a série Cidade Invisível
como um enunciado que pode ser classificado como sendo um
gênero discursivo complexo, portanto como um elo na cadeia da
comunicação discursiva.
Por sua vez, a TV Social permite a criação de um ambiente
pródigo para o estabelecimento de novas práticas discursivas. É
nesse cenário de cultura participativa que nos deparamos com a
comunicação discursiva de uma determinada ficção televisiva
localizada em diferentes ambientes de socialização.
Na web 2.0, múltiplos espaços de socialização são criados,
porém são nos canais oficiais da plataforma de streaming que
podemos avistar uma maior interlocução entre os produtores e os
consumidores/fãs da série; concomitantemente, maior interação
entre esses últimos. Assim, neste trabalho elegemos realizar a análise
com base no perfil oficial da Netflix na rede social do Twitter, pois
se trata de um lócus onde podemos encontrar as características da
comunicação discursiva gerada pela série Cidade Invisível.
Para a análise empírica do fenômeno da TV Social e da
comunicação discursiva na série Cidade Invisível, portanto,
delimitamos uma amostragem nacional10, não representativa e
aleatória, direcionando nosso olhar para algumas questões. São
elas: a) De que forma as características da comunicação discursiva
bakhtiniana floresce na TV Social? b) Como podemos identificar os
gêneros da comunicação discursiva da série? Para isso, elegemos
temáticas para identificar os gêneros; nos atendo àquelas
abordadas nos posts realizados pelos perfis oficiais da Netflix com
maior concretização de reações ativas responsivas dos
consumidores da série. c) Quanto às reações dos consumidores da
série, quais podemos destacar para visualizar as características da
comunicação discursiva e dos sujeitos do discurso?

10 A série Cidade Invisível foi lançada em mais de 40 países.

245
Limitamos o recorte do período da análise com base no Google
Trends11. Elegemos essa ferramenta, pois ela traz os assuntos e as
palavras-chaves mais pesquisadas pelos usuários. Além disso, as
informações disponíveis são geradas a partir da base de dados do
Google, ou seja, do site de busca que detém pelo menos 92,19% de
domínio do mercado mundial (CASTRO, 2019). Ao pesquisar pela
palavra-chave Cidade Invisível no Google Trends12, no Brasil, no
período de janeiro a maio de 2021, incluindo todas as categorias e
delimitando por pesquisas na Web, encontramos o seguinte gráfico:

11 O Google Trends é uma ferramenta gratuita que disponibiliza assuntos e


palavras-chaves mais pesquisados no navegador de buscas do Google e apresenta
em formato de gráfico a frequência em que um termo particular é procurado em
várias regiões do mundo, idiomas, em determinado período escolhido pelo
usuário. O eixo horizontal do gráfico reflete o tempo (a partir de 2004) e o eixo
vertical demonstra a frequência com que um termo é procurado. A ferramenta
também permite que o usuário possa comparar o índice de procuras entre dois ou
mais termos (FELIPINI, 2012).
12 Ao pesquisar um termo no Google Trends, é mostrado um gráfico em que é

possível observar o engajamento dos usuários e a variação das buscas sobre ele, o
que demonstra o interesse do público. Ademais, a ferramenta permite definir a
localização, o período a ser analisado, a categoria em que se insere o assunto e o
tipo de pesquisa — se foi na web, na busca de imagens, em notícias, no Google
Shopping ou no YouTube. Interesse ao longo do tempo: Os números representam o
interesse de pesquisa relativo ao ponto mais alto no gráfico de uma determinada
região em um dado período. Um valor de 100 representa o pico de popularidade
de um termo. Um valor de 50 significa que o termo teve metade da popularidade.
Uma pontuação de 0 significa que não havia dados suficientes sobre o termo.
Fonte: Google Trends. Disponível em: <https://trends.google.com.br/trends/
explore?date=2021-01-01%202021-12-31&geo=BR&q=Cidade%20Invis%C3%
ADvel>. Acesso em jan. 2023.

246
Figura 1 - Termo “Cidade Invisível”

Fonte: Google Trends

Com base no gráfico da Figura 1, observamos o primeiro


crescimento de pesquisas dos usuários pelo termo Cidade Invisível
entre os dias 24 de janeiro a 6 de fevereiro. Posteriormente, houve
um crescimento muito alto em um curto período, constatando-se o
maior engajamento dos consumidores/fãs da série, que
compreende de 31 janeiro a 13 de fevereiro, quando atinge o
número 75 de Interesse. Porém, é no período entre 7 e 20 de
fevereiro que o interesse atinge seu pico, registrando o número 100
de Interesse, em um espaço de tempo um pouco maior que o
anterior. O aumento significativo representado no gráfico,
portanto, corresponde à data do lançamento da série, 5 de
fevereiro. Dessa forma, nosso período de análise compreende do
dia 5 de fevereiro até o dia 2 de março, data em que foi confirmada
a renovação da série pela Netflix.

Twitter @NetflixBrasil e a série Cidade Invisível

No período de análise definido coletamos o total de oito tweets


do perfil da @NetflixBrasil sobre a série Cidade Invisível. Em todos
eles foram usados frames da série e, dentre eles, três se destacaram:

247
dois tweets que remetiam às personagens (o primeiro relacionado
ao Curupira e o segundo, à Cuca), e um terceiro, com o ator Marcos
Pigossi confirmando a 2ª temporada da série. No Twitter, uma
forma de medir a reverberação de uma publicação é pelo número
de respostas13, de retweets14 e de curtidas ao tweet em questão.
Esses três tweets da @NetflixBrasil se sobressaíram numericamente
em relação aos outros.

Figura 2 - Tweet de @NetflixBrasil no dia 8 de fevereiro

Fonte: Twitter @NetflixBrasil

O tweet da Figura 2 com a frase Não vou esquentar minha cabeça


com isso. 5 minutos depois: e logo em seguida o frame do Curupira
com fogo na cabeça, foi publicado no dia 8 de fevereiro e teve 1,3

13 Resposta: quando o usuário responde ao tweet de outra pessoa. Fonte: Twitter.


Disponível em: <https://help.twitter.com/pt/using-twitter/types-of-tweets>.
Acesso em jan. 2023.
14 Um tweet que o usuário compartilha publicamente com seus seguidores é

conhecido como retweet. Esta é uma ótima maneira de passar notícias e


descobertas interessantes no Twitter. O usuário tem a opção de adicionar seus
próprios comentários e/ou mídia antes de retuitar. Fonte: Twitter. Disponível em:
<https://help.twitter.com/en/using-twitter/how-to-retweet>. Acesso em jan. 2023.

248
mil respostas, 13,7 mil retweets e 72,7 mil curtidas. Como também
nos interessam os outros enunciadores, selecionamos a partir do
tweet original um exemplo de resposta e um exemplo de retweet.
Em relação ao tweet do Curupira, selecionamos a resposta
representada na Figura 3, onde temos um perfil dedicado à Cidade
Invisível que, ao compartilhar o gif da Cuca, pede a renovação da
série, ressaltando a importância de ser uma produção nacional, e
que reflete a cultura e o folclore brasileiro. Conforme observamos
anteriormente, essa abertura de diálogo revela o quanto o Sítio do
Pica-Pau Amarelo da TV, que fez parte da grade durante tantos
anos15 influenciou e marcou gerações inteiras que passaram a
compreender a imagem dessa criatura denominada Cuca como
uma forma caricata de jacaré. A partir da resposta ao post original,
houve mais duas reações de usuárias do Twitter, uma comentando
a demora para compreender que a personagem Inês se tratava da
Cuca, pois na série está relacionada com borboletas. A outra,
afirmou que passou a desconfiar que se tratava da Cuca ao ver Inês
cantando a popular canção de ninar, Nana Neném, para o guarda da
prisão. Na Figura 4, temos um retweet indicando a série e a
enaltecendo por ser baseada nas lendas folclóricas brasileiras.

15A primeira versão do Sítio do Pica-Pau Amarelo foi exibida pela TV Globo de
07/03/1977 a 31/01/1986. Já a segunda versão esteve no ar de 12/10/2001 a
07/12/2007, ambas diariamente. Em 2008, a emissora decidiu deixar o programa
fora da grade por uma temporada. “Em 2009, o programa ganhou uma versão
animada exibida na véspera do Natal; a nova versão ganhou duas temporadas em
2012 e 2013, quando saiu definitivamente da programação” (MEMÓRIA GLOBO).
Atualmente é possível acessar e assistir 14 temporadas completas do Sìtio do Pica-
Pau Amarelo, disponíveis no Globoplay. Disponível em: <https://globoplay.globo.
com/sitio-do-picapau-amarelo/t/rkBkNtCNxs/similares/>. Acesso em jan. 2023.

249
Figura 3 - Resposta ao tweet do dia 8 de fevereiro.

Fonte: Twitter @NetflixBrasil

Figura 4 - Retweet do dia 8 de fevereiro

Fonte: Twitter @NetflixBrasil

250
O segundo tweet selecionado no perfil @NetflixBrasil está
retratado na Figura 5 e foi publicado no dia 12 de fevereiro, obtendo
1,5 mil respostas, 11,5 mil retweets e 63,7 mil curtidas.
Compartilhando dois frames da Cuca de Cidade Invisível, o post –
de forma maliciosa – afirma Nunca pensei que diria isso, mas estou
implorando pra Cuca me pegar.

Figura 5 - Tweet de @NetflixBrasil no dia 12 de fevereiro

Fonte: Twitter @NetflixBrasil

Os exemplos de resposta e de retweet selecionados estão


representados na Figura 6 e 7, respectivamente. Enquanto na
resposta, uma mulher diz que queria que o Boto também a levasse
para o fundo do rio, no retweet um usuário afirma que Cidade
Invisível foi a primeira série brasileira que amou.

251
Figura 6 - Resposta ao tweet do dia 12 de fevereiro.

Fonte: Twitter @NetflixBrasil

Figura 7 - Retweet do dia 12 de fevereiro.

Fonte: Twitter @NetflixBrasil

252
O terceiro tweet destacado no período de análise está
reproduzido na Figura 8, e foi publicado no dia 2 de março, com
3,3 mil respostas, 18,7 mil retweets e 71,7 mil curtidas. Nele há um
vídeo com mais de 1,6 milhões visualizações, no qual aparece o ator
Marcos Pigossi lendo tweets pedindo a renovação da série e, por
fim, confirmando oficialmente a 2ª temporada.

Figura 8 - Tweet de @NetflixBrasil no dia 2 de março

Fonte: Twitter @NetflixBrasil

Destacamos na Figura 9 duas respostas ao tweet da


@NetflixBrasil, uma criticando a falta da representatividade
indígena na série; e a outra indo ao encontro da postagem original,
confirmando a dificuldade de prestar atenção na mensagem pois o
olhar o ator causava distração.

253
Figura 9 - Resposta ao tweet do dia 2 de março

Fonte: Twitter @NetflixBrasil

Quanto à crítica referente à representatividade, o mesmo


ocorre no retweet da Figura 10, no qual o usuário salienta a
importância de valorizar as produções nacionais, mas desaprova a
falta de indígenas no elenco da série.

Figura 10 - Retweet do dia 2 de março

Fonte: Twitter @NetflixBrasil

254
Tendo em vista a análise do perfil @NetflixBrasil no período
indicado, pudemos verificar um dos lugares, dentre os diversos
espaços de socialização em rede, onde a comunicação discursiva da
série Cidade Invisível ressoa (ou seja, temos outros lugares onde a
obra ficcional televisiva poderia gerar interações e comentários,
como em blogs, fóruns, Facebook etc.). Dentre os oito tweets
publicados no perfil oficial da Netflix no período indicado, três
foram destacados aqui, os que apresentavam maior número de
ativas posições responsivas (BAKHTIN, 2010) por parte dos
consumidores da série. Além disso, podemos ressaltar que com
exceção do último tweet destacado confirmando a 2ª temporada da
série, os outros dois enfocam as personagens do universo diegético.
Uma crítica direcionada ao perfil da @NetflixBrasil nesse
sentido é que houve poucas publicações de divulgação da série,
mesmo que tenha chegado ao primeiro lugar dentre os programas
mais assistidos da Netflix conforme citado anteriormente. De certa
forma, se perdeu uma oportunidade de promover maior
engajamento dos assinantes com a série. Considerando as análises
realizadas, não é possível afirmar com exatidão qual temática de
fato provocou maior engajamento em razão da amostragem.
Dentre as respostas e os retweets dos tweets analisados,
presentes na interface do Twitter, foi possível enxergar a
cristalização dos aspectos da comunicação discursiva ressaltados
por Bakhtin (2010) a partir do discurso construído pela
@NetflixBrasil, como por exemplo, a concordância ou discordância
de uma ativa posição responsiva, a complementação ou até mesmo
o uso do enunciado para realizar uma crítica à série. Outra
característica também averiguada em cada publicação foi a
existência da alternância dos sujeitos do discurso, o que confere o
limite de cada enunciado. Quanto aos temas presentes nas
respostas e retweets, ganharam destaque questões referentes não
apenas ao universo diegético, mas também aspectos que, mesmo
dialogando com esse último, apresentam características relativas
ao contexto social de recepção da série. Como exemplo disso,

255
podemos citar a reivindicação de maior participação de
representantes dos povos originários brasileiros.

Considerações

Neste artigo, constatamos que a série Cidade Invisível


representa um elo na cadeia da comunicação discursiva e
direcionamos o nosso olhar principalmente às condições nas quais
ela ocorre no fenômeno da TV Social. Diversos aspectos podem
influenciar as condições da comunicação discursiva, como a
própria interface das plataformas de mídias sociais, neste caso, a do
Twitter. Cada tweet publicado na página do perfil @NetflixBrasil a
respeito da série Cidade Invisível também representa uma unidade
na comunicação discursiva promovida pelo gênero ficcional. Por
fim, todas as interações permitidas pela plataforma do Twitter
interferem nas interações entre os sujeitos do discurso (produtores
da série, assinantes, fãs, atores, etc.). Vimos com o exemplo de
Cidade Invisível que a comunicação discursiva da ficção televisiva
seriada se insere na TV Social como um gênero discursivo - com
potencial de amplificar vozes, estimular novos enunciados e -,
fundamentalmente, estabelecer diálogos.

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260
PARTE 3

NARRATIVAS, DISCURSOS, ALTERIDADE


E IDENTIDADES NA FICÇÃO
AUDIOVISUAL

261
262
Cinema e Educomunicação enquanto práxis
decoloniais: aproximações possíveis

Paola Diniz Prandini1

O cinema é como um comício político contínuo com o


público. No cinema, você encontra Católicos,
Muçulmanos, Gauleses, Comunistas, se o filme for
bom. Cada um vê o que quer. Eu fui levado a filmar
por esta ser uma ferramenta mais eficaz para meu
ativismo. (...) Para resumir a história usando nossa
tradição oral, o cinema é uma importante ferramenta
para nós. De todas as artes, é a forma de expressão
mais acessível para o público em geral. Infelizmente,
requer um investimento alto tanto de dinheiro quanto
de esforço humano (SEMBÈNE, 2019)2.

Conforme afirma este intelectual senegalês, que é considerado


um dos principais cineastas africanos dos últimos tempos, as
narrativas presentes nos filmes ilustram períodos históricos,
ideologias sociais, construções identitárias de quem realiza, de
quem aparece e de quem assiste às películas. Por isso, o cinema é
compreendido neste artigo enquanto práxis, com potencial a ser

1 Durante a produção deste capítulo, a pesquisadora era bolsista de doutorado do


Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
2 Tradução livre realizada por uma das autoras deste artigo. A versão original, em

francês, foi gentilmente cedida pelo Dr. Emmanuel Mbégane Ndour e pode ser
lida a seguir: "Le cinéma c'est un meeting permanent avec le public. Dans une salle de
cinéma, vous avez des Catholiques, Musulmans, Gaullistes, Communistes et tout ça quand
le film est bon. Chacun perçoit et accepte ce qu'il veut. C'est ça qui m'a amené au cinéma
pour mieux poursuivre ma quête de militantisme. (...) Mais pour prendre le raccourci de
l'histoire avec la tradition de l'oralité, le cinéma devient pour nous un outil important. Et
il est de tous les arts, l'expression la plus facile et la plus agréable pour un grand public.
Malheureusement, le cinéma coûte cher, il demande beaucoup d'investissement tant
humain que financier".

263
realizado de modo decolonial, apesar de que também possa existir
apenas a serviço e nos moldes do capitalismo.
O longa-metragem inaugural deste realizador, intitulado
originalmente como "La noire de...", é tido como o primeiro filme de
um realizador da África subsaariana a ter atenção internacional. O
filme é baseado em um conto homônimo do autor, que, antes de se
tornar cineasta - o que se deu já à altura de seus 40 anos de idade -
atuava como escritor. O roteiro do filme - para ilustrar a importância
que o diretor dá à crítica colonial e, dessa forma, se apresenta
enquanto narrativa decolonial por excelência -, acompanha a ida de
Diouana, uma jovem senegalesa, que sai de Dakar para ir à Riviera
francesa, uma vez que foi contratada para trabalhar como babá por
um cosmopolita casal francês. Este é um trajeto de silenciosa
rebelião, na passagem dos sonhos ilusórios por uma vida melhor a
uma realidade de exploração de seu trabalho e existência.

O cinema, enquanto fenômeno produzido pela sociedade capitalista, é


complexo e contraditório. É capaz de manipular consciências,
legitimando a ideologia dominante e/ou desocultar suas contradições,
fornecendo recursos para a sua contestação. Carrega em si elementos
de dominação, mas também de resistência, constituindo-se como
objeto de disputas políticas (ALVES, 2019, p. 26).

Dentre essas perspectivas, múltiplas facetas podem ser


desveladas acerca não só de como as imagens, o texto e o som podem
ser compreendidos separadamente, mas também sobre como sua
articulação conjunta acontece, de modo literalmente espetacular, em
um jogo de posicionamentos de câmera, acompanhado de diálogos
de personagens, de composição das imagens e de seleção de músicas
que compõem a trilha sonora das obras cinematográficas. Tudo isso
realizado a partir de um viés político-ideológico que pode estar
explícito com maior ou menor intensidade.

Essas linguagens – que incluem, por exemplo, os enquadramentos de


câmera, os cortes, a trilha sonora, a linguagem oral e escrita, as
imagens, as cores, as expressões faciais e as gestualidades – atuam

264
quase sempre em convergência, realçando os discursos e produzindo
efeitos de sentido (CAMPOS JÚNIOR, 2013, p. 59).

Em uma perspectiva integral, há um ciclo dialógico completo


executado por uma produção audiovisual. Trata-se de um percurso
que inicia nas intenções, desejos e possibilidades de quem escreve
o roteiro, conjuntamente com quem o executa e o dirige, passando
por quem dá vida e personifica os diálogos ou as imagens
apresentadas e se encerra com as impressões e trocas estabelecidas
por quem a assiste.
Baseando-me nesse ciclo, compreendemos que, ao longo da
execução dessa trajetória, as narrativas cinematográficas podem ser
entendidas enquanto práxis, uma vez que há relações estabelecidas
entre teoria e prática, tanto por quem está atrás das câmeras como
por quem se situa à frente delas. Tanto teoria quanto prática, nesse
caso, "se alternam e se sobrepõem e se retroalimentam, levando
cada vez mais a ação a estar fundamentada, como também a teoria
mais aproximada à realidade que pretende sistematizar" (SILVA,
2016, p. 93). Uma relação sustentada em diálogos entre o que se
sabe, o que se quer dizer e como colocar em prática o que se acredita
ser necessário demonstrar, por meio de imagens e sons que
compõem teorias e práticas que entrecruzam os filmes.

Contudo, a contribuição da práxis cinematográfica para a disputa


ideológica se dá na articulação com as lutas sociais na prática política,
pois isoladamente não dispõe de mecanismos concretos, capazes de
promover uma mudança estrutural radical ou de recuo do
pensamento dominante. A arte cinematográfica é condicionada por
características subjetivas e pela visão de mundo de seus realizadores,
refletindo ainda, as determinações sócio-históricas de uma
determinada época em que foi produzida, bem como a de seus
receptores. (...) Embora cumpra diversas funções - ideológicas,
políticas, cognoscitivas, educativas e estéticas -, o cinema, enquanto
criação humana satisfaz a necessidade de o ser humano expressar-se
em um objeto concreto sensível, mas também de fruição, atendendo,
sobretudo, sua necessidade de humanização (ALVES, 2019, p. 27).

265
No contexto africano, como no caso ilustrado por Sembène,
anteriormente, esse ciclo dialógico ganha força pelo fato de estar
em conexão direta com um dos principais valores cosmogônicos e
tradicionais do continente-mãe: a oralidade. Ademais, é estratégia
essencial para atingir as diferentes camadas da sociedade,
incluindo as massas, por vezes, iletradas, e, dessa forma, poder
orientá-las conforme valores e crenças de quem assina as narrativas
cinematográficas, movidas, por exemplo, pelo ativismo e o
compromisso com a transformação social, como no caso das
películas assinadas pelo cineasta senegalês, em que a valorização
da negritude e das africanidades e o posicionamento crítico às
colonialidades e ao colonialismo são centrais (GOMES, 2020).
Com base nas potencialidades que a linguagem cinematográfica
apresenta para quem com ela se conecta - mesmo que de diferentes
modos e a partir de diferentes lugares de poder -, a partir desta
aproximação tanto estética quanto discursiva e ideológica, pode-se
identificar os signos, as representações, os discursos com base nos
quais se constrói a cultura de uma nação, de um grupo
populacional, de um indivíduo social, por exemplo. Como essa
imersão - também cosmogônica - define quem é quem e/ou como
cada parcela da sociedade age, reage e transforma e, por vezes, se
conforma à realidade.

Educomunicar é também mediar (na medida do possível)

A cultura não é estanque, está em constante movimento,


constituindo-se na compreensão de que, sendo dotada de significados
historicamente construídos, é perenemente alterada, assumida e
incorporada pelos indivíduos. "A cultura, segundo a definição
antropológica, é um fenômeno 'supra-individual'. Ela é aprendida,
partilhada e adquirida, tomando-se permanente através do tempo e
independente de seus portadores" (SCHELLING, 1991, p. 28).
Como definidora de especificidades de um grupo, a cultura se
torna uma forma de revelar a identidade de tal coletivo de pessoas,
respeitando as similaridades internas ao grupo e o diferenciando

266
dos demais grupos existentes em sociedade. A ideia, portanto, não
é criar uma espécie de divisão cultural, mas reforçar a unidade dos
grupos que, juntos, determinam uma nação. Desse modo, a cultura
é "uma dimensão penetrante do discurso humano que explora a
diferença para gerar diversas concepções da identidade de grupo"
(APPADURAI, 1996, p. 27).
Ao se referir à construção do conceito de povo, Bhabha (2013)
reitera a necessidade de se recontar a(s) história(s), de se criarem
por meio dos discursos as condições para que compreendamos o
passado e possamos nos situar, enquanto povo ou nação, no
presente. A condensação das temporalidades em busca da
construção de sentido produzida pelo interdiscurso - do qual
passamos a fazer parte na medida em que o constituímos e somos
por ele constituídos por meio da enunciação – que é possível por
meio da compreensão semiótica.

Os fragmentos, retalhos e restos da vida cotidiana devem ser


repetidamente transformados nos signos de uma cultura nacional
coerente, enquanto o próprio ato da performance narrativa interpela
um círculo crescente de sujeitos nacionais. Na produção da nação
como narração ocorre uma cisão entre a temporalidade continuísta,
cumulativa, do pedagógico e a estratégia repetitiva, recorrente, do
performativo. É através deste processo de cisão que a ambivalência
conceitual da sociedade moderna se torna o lugar de escrever a nação
(BHABHA, 2013, p. 237 - grifos do autor).

A ambivalência como lugar sobre o qual é possível “escrever a


nação” surge como resultado da cisão de sujeitos/as constituídos/as
por dois discursos, um de cunho nacionalista, pedagógico, de
origem histórica, e outro marcado pela contemporaneidade, pela
instauração de um processo de significação marcado pelos signos
contemporâneos. É o performativo, como marca do presente, que
permite a emergência da heterogeneidade, dos “discursos das
minorias” (BHABHA, 2013, p. 210).
Partindo desse princípio, defendo a noção de que nosso viver,
a partir da existência e, idealmente, da valorização das nossas

267
diferenças que - por sua vez, demarcam as construções de
identidades -, é cotidianamente mediado, seja pelas interações
interpessoais que travamos, pelas normas que seguimos, pelas
manifestações que celebramos, pelas mídias a que temos acesso ou
pelas maneiras como educamos ou somos educados e educadas em
sociedade.
A mediação (MARTÍN-BARBERO, 2001) é o que conduz as
relações que estabelecemos com o mundo que nos rodeia. É por
meio da mediação social que acedemos à noção de palavramundo
(FREIRE, 2008) e damos sentido aos seres e objetos do mundo.
Mundo composto por pessoas, por instituições, por sistemas
culturais, econômicos e políticos, enfim, por tudo aquilo que é vivo
e vive entre nós. Dessa forma, o cinema enquanto práxis se apoia
na mediação realizada por meio dos filmes e das narrativas por eles
representadas para afetar quem interage com as produções da
práxis cinematográfica. Nesse sentido, ressaltamos que
compreendemos o conceito de práxis, conforme definição a seguir:

(...) práxis na qual a ação e a reflexão, solidárias, se iluminam


constante e mutuamente. Na qual a prática, implicando na teoria da
qual não se separa, implica também numa postura de quem busca o
saber, e não de quem passivamente o recebe (FREIRE, 2010, p. 80).

Para haver a realização da práxis, portanto, é necessário que haja


um processo que alinhe teoria à prática, em que a ação esteja
amparada em uma condução epistemológica que embasa e dá base
conceitual para o que se coloca em prática. A partir de uma visão não-
hierárquica entre teoria e prática, ambas são essenciais e mutualmente
determinantes, portanto, não se trata de compor um ciclo linear e
sequencial, em que primeiro embasa-se teoricamente para, em
seguida, colocar algo em prática, mas, outrossim, espera-se que ambas
as conduções aconteçam em paralelo e se retroalimentem, de forma a
realizar práticas que estejam teoricamente fundamentadas, bem como
teorias que façam sentido na prática.

268
Para isso, a mediação, enquanto um processo ativo liderado por
diferentes grupos e organizações, em que contextos devem ser
levados em conta no processo mediado, bem como as especificidades
dos públicos que compõem a produção de sentidos, é vital.

O conceito de mediação baseia-se em descobertas de investigação


que reconhecem o papel dos produtores, dos textos, dos públicos e
de contextos na produção de sentido - mesmo que não igualmente a
cada um destes componentes (THUMIM, 2008, p. 86)3.

Como todo e qualquer processo construído em prol do


estabelecimento de trocas entre pessoas e/ou organizações, durante a
mediação, todas as informações e conhecimentos compartilhados são
demarcados pelas especificidades de quem participa do processo.
Sendo assim, tudo o que é 'trocado' pode ser lido enquanto um
produto ideológico, que configura a realidade com base em
conteúdos, contextos e formatos pelos quais essas trocas se dão.
Esse processo é dialógico (BAKHTIN, 2000), podendo ser mais
ou menos horizontal ou verticalizado, linear ou não-linear,
colaborativo ou individualizado, democrático ou autoritário,
diverso ou monológico, pois suas características serão baseadas em
quem compõe o processo de mediação que está em jogo. Da mesma
forma, a compreensão de como esse processo acontece se baseia nos
repertórios acumulados por quem protagoniza o processo.
Nas palavras de Bakhtin/Volóchinov (1988, p. 32): "conhecer
um signo consiste em aproximar o signo apreendido de outros
signos já conhecidos; em outros termos, a compreensão é uma
resposta a um signo por meio de signos”. Ressalta-se, que a
intenção do autor é ilustrar que todas as relações que estabelecemos
com o mundo são mediadas por signos e os mesmos são
considerados ideológicos, pois produzem sentidos que são

3Tradução livre realizada pela autora do artigo. A íntegra, em língua inglesa, pode
ser lida a seguir: "The concept of mediation is based on research findings that recognize
the role of producers, texts, audiences and contexts in the production of meaning - even if
not equally for each of these components".

269
interpretados diferentemente entre os/as sujeitos/as conforme suas
condições sociais. Dessa maneira, o signo estabelece a mediação
entre o/a sujeito/a e o mundo. Mediação semiótica que se configura
e se reconfigura continuamente com base nas situações concretas
da comunicação nas quais a significação se constitui. Segundo
VOLÓCHINOV (2017, p. 205), a construção da significação se
constrói em um movimento contínuo que envolve os
interlocutores. A significação não “pertence” a nenhum deles, mas
sim ao texto criado entre ambos. Dessa forma, a construção de
sentidos ocorre por meio de um processo caracterizado pela
alteridade. Em um processo de contínua interação com o outro e que
compreende o verbal, o não-verbal e o extraverbal. Cabe salientar
que o extraverbal não corresponde apenas ao contexto imediato
que envolve os interlocutores, mas também diz respeito à
constituição dos falantes como seres socialmente organizados (e,
portanto, ideologicamente constituídos).
Em relação aos sujeitos ou às sujeitas (KILOMBA, 2019) que
protagonizam tais processos de mediação, o intelectual russo
também compreende que esta perspectiva se dá em relação à
maneira com a qual respondem e são responsáveis (e
responsabilizados/as) pelas interações que realizam (BAKHTIN,
2012). Daí a valorização que essa relação dialógica deve prestar à
noção de alteridade, visto que é essencial demarcar a construção
das identidades destes/as sujeitos/as em relação a seus/suas
interlocutores/as e ao meio do qual fazem parte.

Analisar os sentidos a partir do discurso significa compreender quem


é o sujeito e seu lugar social. O centro da relação não está no eu nem
no tu, mas no espaço discursivo criado entre ambos. (...) Aqui
compreendemos as identidades como construções discursivas que
emergem da relação dialética entre sujeitos e o mundo. O indivíduo
é compreendido, portanto, como enunciador e enunciatário de
discursos identitários (NOVAES, 2019, p. 91).

270
Portanto, durante qualquer processo de mediação, há enunciados,
trocas e interações. Quem enuncia e quem é enunciatário/a das
informações e dos conhecimentos trocados na mediação estabelece
uma relação dupla, no sentido de que, ora cumpre o papel de
enunciador/a, ora o papel de enunciatário/a. A mediação acontece no
processo em si, ela não se finda e nem é estanque, muito menos quem
dela se utiliza para comunicar o que deseja.

Se a alguém ocorre que o homem ‘fotografa’ a realidade, é bom


lembrar que é ele quem escolhe o quê e em que perspectiva
fotografar. Também é ele quem vai revelar essas fotos, escurecendo
ou clareando este ou aquele ponto, inserindo figuras por inteiro, ou
recortando-as [...]. E tudo isso o indivíduo/sujeito faz porque é
possuidor de mediações que penetram nele através da linguagem
verbal, base de seu pensamento conceptual (BACCEGA, 2003, p. 12).

Por isso, é possível dizer que mais especificamente na interface


educação e comunicação, a partir do que nomeio como
educomunicação, considerando como um paradigma que se
inscreve nos entre-lugares (BHABHA, 2013) de uma sociedade, tal
práxis só se realiza quando executada por mediações, a fim de
estabelecer ecossistemas comunicativos, isto é, um “ideal de
relações, construído coletivamente em dado espaço, em
decorrência de uma decisão estratégica de favorecer o diálogo
social, levando em conta as potencialidades dos meios de
comunicação e suas tecnologias” (SOARES, 2011, p. 44).
Reconhecemos a educomunicação enquanto práxis - com total
potencial de se constituir como práxis decolonial per se -, visto que
não há educomunicação em processos de mediação que não
legitimam o conhecimento compartilhado, coletivo, horizontal,
democrático e que zela pela equidade. Enquanto uma práxis
decolonial, portanto, durante processos mediados pelos princípios
e valores da educomunicação, os conhecimentos são trocados a
todo o momento e as ferramentas da comunicação tornam-se

271
aliadas a quem delas faz uso político-ideológico em prol das
transformações sociais.

Compreende-se a educomunicação como um paradigma na interface


comunicação/educação que busca orientar e dar sustentação ao
conjunto das ações inerentes ao planejamento, implementação e
avaliação de processos, assim como programas e produtos de
comunicação destinados a:
i) debater as condições de relacionamento dos sujeitos sociais com o
sistema midiático, no contexto da sociedade da informação,
promovendo critérios de análise dos sistemas de meios de
informação, assim como metodologias de utilização dos recursos
tecnológicos em função da prática da educação para a cidadania;
ii) promover e fortalecer ecossistemas comunicativos de convivência
– abertos e participativos – nos espaços educativos garantidos pela
gestão democrática dos processos de comunicação; e
iii) ampliar o potencial comunicativo dos indivíduos e grupos
humanos. Nesta perspectiva, o conceito aplica-se tanto ao exercício
de uma observação atenta sobre a presença dos sistemas de meios de
comunicação em uma sociedade em mudanças, promovendo sua
leitura e uso (proximidade com o conceito de "educação para os
meios”), quanto ao pleno exercício da liberdade de expressão dos
sujeitos sociais em inter-relação nos diferentes espaços educativos
(proximidade com a prática da "gestão de processos comunicativos”)
(SOARES, 2012, p. 1).

Nesse sentido, uma das contribuições mais importantes da


práxis educomunicativa é a de possibilitar a entrada em um
universo que, muitas vezes, pode ser alheio a quem o adentra,
colaborando para uma eventual mudança de visão e,
pragmaticamente, construindo outros caminhos possíveis que só
acontecem quando há mediação enquanto troca, seja de saberes, de
culturas, de valores, de crenças, de informações, etc. Para tanto, é
necessário haver abertura, escuta ativa e sensível, bem como afeto
enquanto pacto concreto e utópico para o alcance dessas
transformações.

272
Uma vez que vivemos em uma sociedade capitalista, cada vez
mais binarizada, polarizada, com disputas sociais das mais
diferentes ordens, em que, ainda, quem acede aos postos de poder,
em geral, é pessoa cisgênera, autodeclarada branca, do sexo
masculino, declaradamente heterossexual e herdeira de finanças
que têm suas raízes nas relações originadas pelo colonialismo,
estabelecer processos educomunicativos mediados com base nos
valores da práxis educomunicativa não é tarefa fácil. Talvez por
isso seja comum identificar interpretações que restringem a
educomunicação apenas à sua dimensão tecnológica, sem levar em
conta todas as demais características e compromissos que
convocam educomunicadores/as a corazonar (ARIAS, 2012).

É um absurdo acreditar que as perspectivas da vida para a natureza


e tudo o que a habita e, sobretudo, que a construção de diferentes
'outros' horizontes de civilização e de existência, podem ser possíveis
dentro dos quadros epistêmicos de uma ciência carente de ternura,
que rompeu com o sentido espiritual, sagrado e feminino da vida,
para transformar a natureza, a cultura, o ser humano em simples
commodities para a acumulação de riqueza. A ironia é que a
esperança de tecer um sentido diferente de civilização e vida está nos
insurgentes ou nas sabedorias de coração às quais o poder negou sua
humanidade; É da força dessa sabedoria que brota do coração que
nossos povos hoje continuam a falar com suas próprias palavras e
estão aqui presentes, “sentindo, fazendo, sendo”, como dizem os
Kitu Kara (ARIAS, 2012, p. 201)4.

4Tradução livre realizada pela autora deste capítulo. A versão original, em língua
espanhola, pode ser lida a seguir: "Resulta absurdo creer que las perspectivas de vida
para la naturaleza y todo lo que en ella habita, y sobre todo, que la construcción de un
horizonte ‘otro’ diferente de civilización y de existencia, pueden ser posibles dentro de los
marcos epistémicos de una ciencia carente de ternura, que rompió con el sentido espiritual,
sagrado y femenino de la vida, a fin de transformar la naturaleza, la cultura, los seres
humanos en simples mercancías para la acumulación de riquezas. Lo irónico es que la
esperanza, para tejer un sentido civilizatorio y de vida diferente, está en las sabidurías
insurgentes o del corazón a las cuales el poder les negó su condición de humanidad; ha sido
desde la fuerza de esa sabiduría que emerge desde el corazón, como nuestros pueblos hoy

273
Neste texto, a educomunicação é compreendida como um
paradigma constituído por epistemologias e princípios teórico-
metodológicos que têm, como meta utópica e ideal, a condução de
transformações sociais com/nas comunidades que compõem a
sociedade em que vivemos e que se realiza a partir das
possibilidades e dos limites que esta mesma sociedade apresenta.
Portanto, a essencialidade de frisar, neste momento, a urgência da
compreensão do que se configurou nomear como sendo
"educomunicação possível" (SOARES, 2016).
A partir de reflexões teóricas, com base em práticas
educomunicativas, o conceito de educomunicação possível ainda é
pouco utilizado, no entanto, o mesmo autor que o cunhou é
também o responsável pelas primeiras discussões acerca deste
paradigma na academia brasileira. Desse modo, além da autoria do
conceito ser legítima, o mesmo está em sintonia com a realidade
que nos rodeia. Vê-se, aqui, a importância dada à vigilância
epistemológica em relação às discussões e práticas propostas
pela/na educomunicação.
Com base no chamado de uma educomunicação possível,
pode-se entender que, por não ser um convite natural em uma
sociedade com os valores acima apresentados, é necessário também
compreender que o processo de mediação que conduz a práxis
educomunicativa precisa ser realizado em uma situação real, em
um mundo real, com pessoas reais, a partir das cosmovisões e
cosmogonias que regem o viver em comunidades locais e não para
anunciar uma lógica que não faz sentido dentro da realidade em
que se vive. Ou seja, por meio de uma mediação que acontece a
partir de uma lógica decolonial, em modo de guerrilha, que, por
vezes, se concretiza quando se identificam as brechas (juntamente
com forças ancestrais, espirituais, ideológicas e revolucionárias) e
não se espera o formato ideal para sua realização.

siguen hablando con palabra propia y están aquí presentes, “sintiendo, haciendo, siendo”,
como dice el pueblo Kitu Kara".

274
Daí que a ideia de educomunicação possível ser qualificada como
uma situação intermediária, entre o ideal e o possível, o existente e o
desejado. E sua utilidade está exatamente em não se perder de vista
que a intervenção educomunicativa é construída aos poucos,
conforme a evolução da execução de suas propostas, ou seja, sua
práxis cotidiana, e que resulta da atuação direta dos sujeitos
participantes, co-autores do processo e não meramente reprodutores
de ações planejadas por outros e que deverão ser cumpridas. Ou
ainda, que é próprio da concepção referendada pela educomunicação
nortear-se por um plano aberto às interveniências do contexto e dos
sujeitos, e o acolhimento e aproveitamento das contribuições
diversas deles manifestadas, enfim, saber lidar com o imprevisível e
imponderável (VIANA, 2017, p. 928).

A defesa é a de que, para educomunicar, é preciso mediar, mas


isso tudo só ocorre quando levamos em conta que o planejamento
não é escrito em pedra, que as pessoas que se encontram no
processo mediado são humanas - com diferentes ideias, origens,
saberes, realidades e contextos geográficos, históricos e temporais
-, e que as tecnologias não as substituem, mas as apoiam e
acrescentam viabilidade e escala ao que produzem.
Inserir as mídias em processos mediados por e para uma
educomunicação possível assume papel importante nos processos
de produção de conhecimento. São ferramentas didático-
pedagógicas em potencial, que demandam uma interação contínua
que permite mais do que olhar imagens, ler textos ou ouvir sons,
mas interpretar o mundo visando à criação de novas mensagens e
conhecimentos. Portanto, o que pretendo incentivar são as
mudanças positivas que a educomunicação possível potencializa, a
fim de cumprir um processo mediado em que, por exemplo, a
educação bancária (FREIRE, 1987) possa ser substituída pela gestão
comunicativa (SOARES, 2002) e por práxis decoloniais como as que
se encontram em chamados universais em prol do corazonar, a
partir do sentipensar.

275
Sentipensar com o território implica pensar com o coração e a partir
da mente, ou corazonar, como bem afirmam os colegas de Chiapas
inspirados na experiência zapatista; é a maneira pela qual as
comunidades territorializadas aprenderam a arte de viver. Este é um
apelo, então, para que a leitora ou o leitor sentipense com os
territórios, culturas e conhecimentos de seus povos —com suas
ontologias—, mais do que com os conhecimentos des-
contextualizados que fundamentam as noções de
“desenvolvimento”, “crescimento” e, até mesmo, “economia”
(ESCOBAR, 2014, p. 16)5.

É essencial refletir sobre a práxis educomunicativa que


conduzimos, em quaisquer espaços que ocupamos e, inclusive,
dentro das salas de aula, seja por meio das trocas orais e
corporificadas dos nossos conhecimentos, ou pelas diferentes
linguagens midiáticas que utilizamos, enquanto estratégias para o
estabelecimento de um processo de formação coletiva e
permanente, tanto de estudantes quanto de quem educa, sem tirar
de vista que todos educamos o tempo todo, independentemente da
posição que ocupamos (FREIRE, 1997). Nossos discursos
colaboram para que ampliemos nosso próprio conhecimento, como
também o conhecimento de quem nos rodeia. Como aponta Freire
(1997, p. 46): "Uma das tarefas mais importantes da prática
educativa-crítica é propiciar as condições em que os educandos, em
suas relações uns com os outros e todos ensaiam a experiência
profunda de assumir-se".
Do mesmo modo que quem faz parte do processo de
mediação, realizado na práxis educomunicativa, tem a

5 Tradução realizada pela autora do capítulo. A versão original, em língua


espanhola, pode ser lida a seguir: "Sentipensar con el territorio implica pensar desde el
corazón y desde la mente, o co-razonar, como bien lo enuncian colegas de Chiapas
inspirados en la experiencia zapatista; es la forma en que las comunidades territorializadas
han aprendido el arte de vivir. Este es un llamado, pues, a que la lectora o el lector
sentipiense con los territorios, culturas y conocimientos de sus pueblos —con sus
ontologías—, más que con los conocimientos des-contextualizados que subyacen a las
nociones de “desarrollo”, “crecimiento” y, hasta, “economía”".

276
possibilidade de se assumir enquanto sujeito/a da realidade em que
vive, também a própria práxis educomunicativa se assume e meta-
reflete sobre si mesma neste mesmo processo. Inclusive, a
compreensão desta educomunicação possível enquanto práxis
decolonial se dá com base no entendimento de que se trata de um
paradigma em curso, em transformação perene e que é mutável
para poder fazer caber, para estabelecer trocas, diálogos em um
compasso que enaltece alteridade e dialogicidade.
Benveniste (2006) afirma que é por meio da enunciação que se
estabelecem ao mesmo tempo um eu e um tu, pois, ao apropriar-se
da língua, o eu “implanta o outro diante de si, qualquer que seja o
grau de presença que ele atribua a este outro” (BENVENISTE, 2006,
p. 84). Além da categoria pessoa (enunciador-enunciatário), o ato
de enunciação instaura as duas outras instâncias: a de espaço e a de
tempo. Dessa forma, ao se apropriar da palavra, o/a sujeito se
localiza tanto em termos de espaço (por meio de advérbios) quanto
em termos temporais (denotados pelos tempos verbais). É por meio
da apropriação da palavra e de sua constituição como enunciador-
enunciatário que o/a sujeito/a constrói o mundo em que vive.
Bakhtin (2000) define o processo de alteridade a partir da ideia
de que, quando o indivíduo protagoniza a mediação, em primeiro
lugar, compreende o/a enunciador/a e, posteriormente, responde
ativamente a ele/a, materializando seu discurso em uma resposta
(externa ou internamente). Dessa forma, o/a sujeito/a constitui-se
em relação às outras pessoas com quem interage, respondendo a
elas, em uma alternância constante de lugares. Nessa situação de
comunicação, não ocorre uma compreensão passiva por parte de
quem enuncia; resulta, ao contrário, uma resposta que se
materializa sob a forma de concordância, adesão, objeção,
execução, etc. A consciência, então, é engendrada pelas relações
que os/as sujeitos/as estabelecem entre si, no meio social. Relações,
por sua vez, constituídas sob a égide do signo ideológico. Há um
diálogo permanente, em que co-enunciadores/as e trocam de
papéis o tempo todo, colaborando mutuamente para a construção
de sentidos. É aqui que reside a natureza interdiscursiva da

277
linguagem, o que o autor denominou ‘dialogismo’, que, por sua
vez, compõe e complementa o conceito de alteridade.

Ser significa ser para um outro, e, por meio do outro, ser para si. Uma
pessoa não tem nenhum território interno soberano, ela está sempre
na fronteira; olhando para dentro de si, ele olha nos olhos de um outro
ou com os olhos de um outro (BAKHTIN, 1994, p. 287 - grifos do autor)6.

Exatamente pelo fato de que a humanidade está em construção


identitária constante, em diálogo com o mundo que a rodeia, que
nossa existência não é finita, seja enquanto seres viventes, em carne
e osso, seja - a depender do que se crê - enquanto seres que
transcendem esta etapa carnal que habitamos neste momento. Por
isso, somos seres incompletos e que buscam, nas relações com os
outros seres e com o ambiente, estabelecer conexões e dar
significado ao conviver.

Reconhecer e prever a incompletude é não se declarar culpado,


inadequado e desamparado perante as outras pessoas supostamente
completas. Em vez disso, a incompletude é uma disposição que nos
permite agir de maneiras específicas para atingir nossos objetivos em
um mundo ou universo de inúmeras interconexões de seres e atores/
atrizes incompletos/as sencientes, humanos/as e não-humanos/as,
naturais e sobrenaturais, receptivos/as e não-receptivos/as à percepção
por meio nossos sentidos (NYAMJOH, 2021, s/p.)7.

6 Tradução livre realizada pela autora do capítulo. A versão, em língua inglesa, pode
ser conferida a seguir: "To be means to be for another, and through the other, for oneself. A
person has no internal sovereign territory, he is wholly and always on the boundary; looking
inside himself, he looks into the eyes of another or with the eyes of another".
7 Tradução livre realizada pela autora do capítulo. A versão original, em língua

inglesa, pode ser lida a seguir: "To recognise and provide for incompleteness is not to
plead guilty, inadequate and helplessness vis-à-vis the supposedly complete others. Instead,
incompleteness is a disposition that enables us to act in particular ways to achieve our ends
in a world or universe of myriad interconnections of sentient incomplete beings and actors,
human and non-human, natural and supernatural, amenable and not amenable to
perception through our senses".

278
Refletir e agir em prol da práxis educomunicativa é considerar
esta incompletude como condição sine qua non da existência deste
paradigma. Pelo fato de a própria práxis não ser integralmente
definida, a fim de poder propiciar a possibilidade de ser construída no
coletivo, entre acertos e enganos, conjuntamente e encarando
educomunicadores/as enquanto co-responsáveis, tanto pelas
conquistas como pelos descompassos que existem e poderão estar
presentes em teorias e práticas educomunicativas em curso. "Alguém
é quem é por causa de outros. (...) Ao mesmo tempo, somos o produto
de várias redes de interconexões, para a produção e reprodução das
quais contribuímos ativamente" (NYAMJOH, 2021, s/p.)8.

Práxis decoloniais de pessoas para pessoas

Com base em referenciais presentes em metodologias com


foco no emprego de princípios e de valores da educomunicação,
não apenas no Brasil, com em outros países da América Latina,
foram sistematizadas algumas áreas de intervenção deste
paradigma, que nasceram, por sua vez, a fim de garantir que,
dentro da diversidade de abordagens e de olhares em torno da
educomunicação, algumas dessas práticas teórico-interventivas
pudessem ser compreendidas com uma maior coerência
epistemológica, organização estrutural e legitimidade enquanto
possibilidades de práxis no e com o mundo9.

8 Tradução livre realizada pela autora do capítulo. A versão original, em língua


inglesa, pode ser lida a seguir: "One is who one is because of others. (...) At the same
time, one is the product of various networks of interconnections, to the production and
reproduction of which one actively contributes".
9 Até o momento da escrita deste texto, com base em diferentes publicações

organizadas pela Associação Brasileira de Pesquisadores e Profissionais em


Educomunicação (ABPEducom), disponíveis em seu site (https://abpeducom.
org.br/), as áreas de intervenção disponíveis e sistematizadas são as seguintes,
concebidas sem haver qualquer hierarquia entre elas, portanto, dispostas em
ordem alfabética: 1. Educação para a comunicação, subdividida em quatro tópicos:
a) “Educação para a comunicação, na perspectiva da Educomunicação”; b)
“Educação para as competências midiáticas, na perspectiva da Mídia-Educação";

279
Segundo Soares (2018, p. 14), "a educomunicação se presta a este
serviço, dada a sua origem na luta dos movimentos sociais pela
conquista da liberdade de expressão, pela reafirmação do direito às
diferenças e pelo reconhecimento dos direitos humanos”. Isso
demonstra a importância que a condução deste paradigma dá à
valorização de percursos inerentemente inconclusos ou incompletos
(NYAMJOH, 2021) e, ao contrário do que prega as lógicas coloniais e
eurocêntricas tradicionais, está distante de possível fragilidade ou
descrédito junto às instituições em que circulam os saberes, desde na
academia até entre as comunidades originárias.
Tanto a práxis cinematográfica quanto a práxis
educomunicativa são protagonizadas por pessoas, estejam elas em
posição de enunciadoras ou enunciatárias, sejam elas cineastas ou
educadoras, ou espectadoras ou estudantes. As narrativas que
produzimos estão sempre conectadas por construções assentadas
nas noções de alteridade e de dialogismo/dialogicidade, se
quisermos fazer as devidas aproximações entre as teorias
Bakhtinianas e Freirianas.
Por esse motivo, defendemos a viabilidade e a urgência da
análise de discursos e estéticas presentes das narrativas
cinematográficas enquanto pertencentes e ilustradoras de, no
mínimo e idealmente, três áreas de intervenção da
educomunicação, sendo elas: "educação para a comunicação";
"expressão comunicativa por meio das artes" e "mediação

c) “Educação para a comunicação enquanto educação para a cidadania”; d)


“Educação para a comunicação: estudos de recepção e formação profissional"; 2.
Educomunicação socioambiental (ainda em estudo); 3. Expressão comunicativa
por meio das Artes; 4. Gestão da comunicação nos espaços educativos,
subdividida em dois tópicos: a) “Políticas e processos educomunicativos”; b)
“Gestão de pessoas e práticas socioculturais”; 5. Mediação tecnológica na
educação, subdividida em dois tópicos: a) “Mediação tecnológica como desafios
para a educação”; b) “Tecnologias de Informação e da Comunicação (TICs) nos
processos de aprendizagem”; 6. Pedagogia da comunicação, subdividida em dois
tópicos: a) “Educomunicação e práticas curriculares”; b) “Práticas na educação
não-formal”; 7. Reflexão epistemológica sobre a inter-relação Comunicação/
Educação.

280
tecnológica na educação'. Isso sem negar a possibilidade da a
'radiografia analítica' aqui apresentada poder ser alterada, a
qualquer momento, visto que discutimos um paradigma em
progresso.
Quando o cinema encontra a educomunicação, uma relação
afetuosa e sensorial acontece, pois gera uma miríade de olhares
possíveis, emergem olhares entremeados pelas histórias, pelas
bagagens culturais e pelas leituras de mundo (FREIRE, 1997) de
quem produz e de quem recebe os discursos produzidos. Ao
utilizar filmes como suporte para o ciclo de ensino-aprendizagem,
em um espaço educativo - seja ele formal, informal ou não-formal -
, há um despertar do senso crítico de educadores/as e estudantes
que participam deste processo. Com a instrumentalização e a
apropriação das ferramentas de construção do imagético,
desmistifica-se a linguagem e a produção cinematográfica,
potencializando a valorização da existência de seres críticos e
também (re)produtores da realidade.
O uso de filmes em processos de ensino-aprendizagem é
estratégico e salutar, uma vez que, enquanto prática ligada à área
de intervenção de "educação para a comunicação", possibilita,
ainda no primeiro tópico apresentado (educação para
comunicação, na perspectiva da educomunicação), que discussões
em torno dos discursos, formatos, das escolhas textuais e estéticas,
dos posicionamentos (tanto de câmeras quanto de estrutura
narrativo-ideológica), bem como de quem compõe a equipe que
está por detrás da tela, sejam priorizadas e atentamente pautadas,
a partir de diálogos que estejam em consonância com os princípios
da práxis educomunicativa. Dessa forma, busca-se diminuir um
possível olhar ingênuo ou acrítico - e por excelência jamais neutro
- em torno do que se produz ou se assiste.
Já em relação ao segundo tópico, intitulado "educação para as
competências midiáticas, na perspectiva da mídia-educação",
convoca-se o público, que está em processo alteritário e dialógico
com as narrativas presentes nos filmes, a desenvolver competências
de leitura crítica das mídias a que acessa. Por isso, a relevância em

281
dialogar desde sobre a história do cinema, por exemplo, passando
pelos recursos específicos desta práxis e suas linguagens. Esse
percurso didático-pedagógico é interessante para poder
desenvolver, junto à comunidade espectadora dos filmes, uma
cultura cinematográfica e uma ampliação da leitura crítica dos
meios de comunicação com os quais se conectam. No entanto,
salienta-se que nenhuma destas áreas de intervenção da
educomunicação está obrigatoriamente restrita ao uso do cinema
enquanto possibilidade de aplicação das concepções e valores
circunscritos nas respectivas áreas.
No que diz respeito à área de intervenção de “educação para a
comunicação enquanto educação para a cidadania”, talvez uma das
áreas que está mais intimamente relacionada ao 'coração' da práxis
educomunicativa, a utilização de filmografias para educar para
cidadania pode ser estratégia potente. Quando se entra em contato
consigo mesmo/a ou com outras culturas, por meio dos filmes que
assistimos, há uma série de outras perspectivas, de outros olhares
que poderão vir a contribuir à cidadania audiovisual de quem
estabelece diálogo com as narrativas cinematográficas em questão.
É um convite simbólico para humanizar o que já é teoricamente
humano, por meio dos discursos que se apresentam na tela.

(...) para além da recepção crítica da mídia - interessa especialmente


a própria gestão dos processos comunicativos, em propostas de
autogestão no emprego das tecnologias a serviço da construção do
aprendizado sobre práticas cidadãs (SOARES, 2018, p. 15).

O quarto e último tópico da área de intervenção "educação


para a comunicação" diz respeito à "educação para a comunicação:
estudos de recepção e formação profissional". Neste caso,
intimamente ligado ao campo europeu conhecido como Mídia-
Educação, ou ainda Media Literacy, a partir de sua ocorrência e
utilização na América do Norte, há proximidades com a práxis
educomunicativa, mas ao mesmo tempo, distanciamentos,
principalmente no que diz respeito aos fins pregados pela

282
educomunicação, sempre comprometida com as transformações
sociais das camadas subalternizadas e em diálogo com as
demandas e as utopias do chamado Sul Global, emergido de um
contexto histórico de reafirmação dos/as sujeitos/as sociais.

E mesmo num possível quadro adverso, no futuro, gerado por um


presumível monopólio da produção editorial de suporte à educação,
a prática mídia-educativa já demonstrou reunir condições de
garantir, por meio de seus projetos multidisciplinares, o exercício
indispensável da autonomia, da diversidade e do protagonismo dos
sujeitos sociais, aqui incluindo conjuntamente professores, alunos e
membros da comunidade escolar (SOARES, 2018, p. 15).

Por isso, como parte deste último tópico, é essencial ressaltar


a importância de não apenas estabelecer processos de recepção que
busquem favorecer a autonomia, mas também a diversidade e o
protagonismo de todas as pessoas envolvidas, mas também de
motivar a condução permanente de formação profissional,
principalmente a formação docente, quando utilizamos filmes nas
escolas, mediados por educadores/as. Trata-se de estratégia
essencial para que se sintam mais bem preparados/as e seguros/as
ao apresentar filmes (documentários ou obras ficcionais) e vídeos
como parte das aulas com estudantes ou, ainda, com as demais
pessoas que compõem a comunidade escolar ampliada, como as
pessoas responsáveis pelos/as estudantes, familiares,
funcionários/as das escolas e moradores/as do entorno.
Nesse sentido, o uso dos filmes nas escolas também pode ser
compreendido como condução prática de outra área de intervenção
da práxis educomunicativa: a área de "mediação tecnológica na
educação", em que se encontram os tópicos de "mediação
tecnológica como desafios para a educação” e de “tecnologias de
Informação e da Comunicação (TICs) nos processos de
aprendizagem”. Para a análise apresentada, definimos ambos os
tópicos enquanto interdependentes, uma vez que a mediação é
realizada por meio de linguagens tecnológicas - filmes - que, a

283
partir da compreensão do que é a práxis educomunicativa,
resumem-se em apontar caminhos para dirimir os desafios da
educação e de seus processos de aprendizagem.
Dessa forma, os filmes, quando utilizados em processos
educacionais, enaltecem a gênese da comunicação, uma vez que,
enquanto produtos comunicacionais, existem para "instaurar o
comum na comunidade, não como uma entidade agregada, mas
como uma vinculação, portanto, como um nada constitutivo, pois
o vínculo é sem substância física ou institucional, é pura abertura
na linguagem" (SODRÉ, 2014, p. 214).
Protagonizar - seja enquanto enunciador/a ou enunciatário/a
- uma mediação de filmes, por meio da promoção de um processo
educativo, é potencialmente estabelecer diálogos em torno do que
há em comum, mas também sobre o que se diferencia acerca
daquilo que é assistido em relação a quem produz as narrativas e
também em contraposição a quem assiste as produções
audiovisuais em questão. Este processo é carregado por crenças e
valores da práxis educomunicativa, que, por sua vez, se apoia no
coletivo - demarcadamente alteritário e dialógico - para colocar em
prática as demandas formais e formativas dos currículos, a fim de
que toda pessoa que tenha oportunidade de educar e de ser
educada - dentro e fora das escolas - possa fazê-lo por uma
perspectiva libertadora (FREIRE, 1967).
Entretanto, em qualquer processo mediado, sempre existe
uma certa tensão dialógica, advinda da convivência entre os
dizeres e os silêncios (ORLANDI, 2013), em que prevalece seu
caráter de inacabamento e destaca-se o movimento constitutivo do
dialogismo como anteposição de palavra e da contra-palavra
(VOLÓCHINOV, 2017) do enunciador. Tal configuração também é
vista na práxis educomunicativa.

Dessa forma, o agir educomunicativo envolve tanto uma


intencionalidade quanto uma metodologia de ação que se estrutura
com base no princípio dialógico que conduz a criação de ecossistemas

284
educomunicativos, estes, por sua vez, marcadamente inclusivos e
democráticos (MUNGIOLI; VIANA; RAMOS, 2017, p. 220).

Seguindo com a análise do uso de filmes como parte das


estratégias educomunicativas possíveis, a fim de estabelecer os
ecossistemas comunicativos inclusivos, abertos e democráticos
enquanto condição sui generis para a práxis educomunicativa, há
uma terceira área de intervenção que pode ser considerada
apropriada para a condução deste tipo de abordagem
metodológica. Trata-se da área de "expressão comunicativa por
meio da Arte". Sem qualquer intenção de aprofundar e sedimentar
as discussões que, historicamente, vêm sendo realizadas por uma
série de pesquisadores/as-educomunicadores/as, invoco e reafirmo
conhecimentos e narrativas que dão vida a meus pensamentos,
conforme destacamos:

O cinema pensado como aparato simbólico e material, pode ser um


produto cultural utilizado dentro da sala de aula como conteúdo para
problematizar (não necessariamente ilustrar). O diálogo do cinema
com o currículo escolar pode resvalar no criticado “uso ilustrativo” do
cinema, isto é, usar a obra de arte de forma didatizada ou como suporte
secundário do livro didático (MOGADOURO, 2013, p. 8).

Amparadas e impulsionadas pela possibilidade de


compreender o uso de filmes enquanto recursos e linguagens
didáticas em potencial, não podemos cometer o engano de reificar
ideias, infelizmente, ainda presentes em processos educativos, que
relegam a utilização de produções cinematográficas enquanto uma
espécie de alegoria ou ilustração de um determinado conteúdo
pedagógico, ou ainda, como substituição do que seria considerado
"aula de verdade". As aspas são propositalmente utilizadas para
apontar o quanto tal uso se dissocia e contradiz os princípios em
que se assenta a área de intervenção de "expressão comunicativa
por meio da Arte", que, por sua vez, se aproxima dos campos da
Arte e da Arte/Educação e está em diálogo estreito com as lógicas

285
educomunicativas, provocando, inclusive, reflexões etimológicas
no sentido de sugerir adaptação ou criação de uma nova área de
intervenção, que abrangesse ações 'arteducomunicativas' (SILVA e
VIANA, 2019).
Portanto, enquanto parte das estratégias de condução da
práxis educomunicativa, os filmes, utilizados em processos de
mediação por meio da arte, são encarados enquanto obras de arte
e, dessa maneira, "tem foco no termo ‘expressão' e considera a arte
como ferramenta do processo, não dando conta da profundidade
que a arte pode trazer em sua forma de experienciar o mundo"
(SILVA e VIANA, 2019, grifos dos autores). Desse modo, os
ecossistemas comunicativos são novamente potencializados, por
meio do cinema, uma vez que produtores/as e receptores/as dos
filmes estão, colaborativamente, construindo e reconstruindo a si
mesmos/as enquanto realizam leitura crítica ou até mesmo a
produção audiovisual de narrativas autorais, mesmo quando
estudantes.
Sendo assim, meu desejo e compromisso é para que o encontro
entre as práxis cinematográfica e educomunicativa propicie um
chamado coletivo a outros mundos possíveis, quiçá outras formas
de ser e estar neste atual mundo em que vivemos. Enquanto
sujeitos/as conscientes das relações das estruturas de poder -
interseccionalmente demarcadas por classe, gênero, raça, dentre
outros marcadores sociais de diferença -, possamos renovar nossas
forças, seguir em resistência e propiciar, a quem quer que seja,
trocas genuínas que tenham nos discursos (nas teorias e nas
práticas) aliados às revoluções mais emergentes e que, para isso,
tanto o cinema quanto a educomunicação possam servir de
esperançares-decoloniais-decolonizadores, amparados na
ideologia do adinkra ganês Sankofa, em que o passado é essencial
para compreender o presente e projetar o futuro.
Que nossos presentes e nossos futuros possam ser projetados
por meio de telas e de pessoas que mediam o mundo por, para e
com pessoas.

286
Referências

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cinematográfica contra-hegemônica. Tese (Doutorado em Serviço
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290
Narrativas de Trajetórias Particulares1

Helen Emy Nochi Suzuki


Maria Cristina Palma Mungioli

Em setembro de 2013, com a proposta de coletar dados para


minha dissertação de mestrado em Ciências da Comunicação,
realizei2 a pesquisa de campo no Japão durante três meses3. Nessa
época a proposta era no campo dos estudos de recepção, com intuito
de investigar a produção de sentidos de identidade brasileira a partir
dos discursos produzidos pelos brasileiros residentes no Japão4. A
técnica utilizada foi a observação participante por meio da qual
acompanhei famílias durante uma semana na assistência das
telenovelas brasileiras transmitidas no Japão pelo canal por
assinatura da IPCTV, afiliada da Globo no Japão. Um dos
procedimentos metodológicos previa a realização de entrevistas em

1 O trabalho de pesquisa foi originalmente apresentado no Simpósio Internacional


Comunicação e Cultura: Aproximações com Memória e História Oral, realizado na
Universidade São Caetano do Sul, São Caetano do Sul – São Paulo, de 27 a 30 de
abril de 2015. Esta versão contém alguns pequenos ajustes e adaptações para o
formato livro. Posteriormente, com algumas alterações, o artigo texto foi
apresentado no evento Jornada Internacional Geminis 2021 e foi publicado nos
anais do evento conforme SUZUKI, Helen Emy Nochi e MUNGIOLI, Maria
Cristina Palma. Narrativas de trajetórias particulares. 2022, Anais.. São Carlos:
Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, 2022. Disponível em:
https://www.eca.usp.br/acervo/producao-academica/003083601.pdf. Acesso em:
06 fev. 2023.
2 O capítulo apresenta parcialmente discussões efetuadas ao longo da pesquisa

realizada pela primeira autora sob orientação da segunda autora, incluindo


contribuições desta última.
3 A pesquisa recebeu apoio do Programa Santander de Bolsa de Mobilidade

Internacional e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e


Tecnológico (CNPq).
4 Dissertação de mestrado intitulada A telenovela e a produção de sentidos de identidade

brasileira no discurso de imigrantes brasileiros no Japão. (SUZUKI, 2014).

291
profundidade com o objetivo de conhecer a história de vida dos
sujeitos a fim de contextualizar e interpretar suas produções de
sentido sobre os temas da telenovela analisada. Cabe salientar, no
entanto, que apenas uma parte do material coletado foi
exaustivamente analisado na dissertação. Este capítulo trabalha com
parte do material coletado que não foi analisado em profundidade
na dissertação de mestrado, objetivando observar aspectos do papel
social das narrativas orais na vida dos sujeitos da pesquisa. Portanto,
o lugar de onde partimos para essa abordagem ancora-se na
proposta inicial de acompanhar os sujeitos da pesquisa no ato
cotidiano de assistir à telenovela brasileira5 no Japão. Essa
proximidade criada com a frequência dos encontros permitiu que os
laços entre a pesquisadora e os sujeitos da pesquisa fossem
construídos a partir da instância da cotidianidade na qual a
modalidade da comunicação oral ancora a história de vida. Dessa
forma, este trabalho de pesquisa possui como corpus a história de
vida contada pelos próprios sujeitos que viveram essas histórias
particulares. Certamente, apesar de se tratar de aspectos específicos
da vida de cada um dos sujeitos, o corpus aqui analisado descortina
elementos sobre a constituição desses sujeitos enquanto pessoas que
se constroem e se reconstroem por meio da linguagem oral que tanto
dá sentido às experiências de vida quanto à construção da memória
(BRUNER; WEISSER, 1995). A pesquisa baseou-se nos estudos de
linguagem de Bakhtin (2003, 2010), nas análises de Bruner e Weisser
(1995) e nos Estudos Culturais (Hall, 2006, 2009 e Bhabha, 1998).

Aspectos da Imigração de Brasileiros ao Japão

Em meados dos anos 1980, o Brasil vivia o processo de


redemocratização com o fim da ditadura militar e no plano econômico

5Na época da pesquisa de campo, a telenovela exibida pela IPCTV era Amor à Vida.
Telenovela que foi ao ar pela Rede Globo de Televisão de 20 de maio de 2013 até
31 de janeiro de 2014, escrita por Walcyr Carrasco e dirigida por Wolf Maya e
Mauro Mendonça Filho.

292
passava por uma grande crise marcada por recessão econômica,
inflação e desemprego. No cenário internacional, com o fim do
comunismo e a abertura de novos mercados, alguns países como o
Japão, cuja tecnologia avançada competia no mercado internacional,
necessitavam urgentemente de mão de obra para suprir as
necessidades da indústria. Esse conjunto de fatores culminou com a
criação, no Japão, de uma legislação regulamentando a contratação de
trabalhadores estrangeiros, o que levou ao aumento da população de
brasileiros no Japão. No final da década de 1980, o movimento
migratório de brasileiros para o Japão, conhecido naquele momento
como movimento dekassegui6, intensifica as relações já existentes
entre os dois países. Porém, em 2008, a grande crise econômica
registrada no Japão e no mundo levou à diminuição drástica do
número de brasileiros naquele país. Mesmo assim, de acordo com as
estimativas referentes a 2013 sobre a distribuição de brasileiros no
mundo, o Japão ficou em terceiro lugar. Em primeiro lugar ficou os
Estados Unidos (1.066.842), seguidos pelo Paraguai (459.760), Japão
(186.051), e Portugal (162.190)7.
Muitos imigrantes brasileiros que estão no Japão são
descendentes ou estão ligados a essa ascendência japonesa no
Brasil por parentesco ou casamento. Isso porque a legislação para
contratação de trabalhadores no Japão, promulgada em junho de
19908, buscava recrutar descendentes japoneses para trabalhar em

6 O termo “dekassegui” refere-se ao descendente de japonês, portanto, trabalhador


brasileiro que se dirige ao Japão com intuito de trabalhar buscando maiores
recompensas financeiras que aquelas encontradas no Brasil. Trata-se, portanto, de
um projeto de permanência temporária no Japão. O termo foi muito utilizado
desde o início do fenômeno das migrações de brasileiros ao Japão, mas tornou-se
datado. Com a permanência de brasileiros como residentes fixos no Japão, passou-
se a utilizar a denominação “imigrante”.
7 Fonte: Ministério das Relações Exteriores do Brasil, 2013.

8 Em junho de 1990 foi promulgada a Lei de Controle de Imigração do Japão que

concede visto de residência de longo prazo para os descendentes de japoneses (nikkeis)


sul-americanos até a terceira geração (sanseis). Fonte: Centro de Informação e Apoio do
Trabalhador no Exterior – CIATE. Disponível em: www.ciate.org.br/informacao-
geral-sobre-japao/a-comunidade-brasileira-no-japao/.

293
fábricas e principalmente nas médias e pequenas empresas do setor
eletrônico em expansão. Conforme explica Kawamura (2003), essa
resolução foi uma tentativa de amenizar as dificuldades e
diferenças culturais. Embora a integração dos descendentes nikkeys
parecesse menos problemática aos japoneses, ela também foi
marcada por um longo processo de estratégias de sobrevivência em
terras japonesas por parte desses imigrantes. Processo migratório
marcado por fases que vão desde a primeira ideia de permanência
temporária até o enraizamento e a aceitação da sua própria
condição como imigrante, implicando nessa trajetória muitas
adequações de experiência pessoal e coletiva e seus
desdobramentos em consequentes negociações de sentido de
identidade pessoal e coletiva. Conforme Bhabha (1998, p. 21), essa
situação acarreta na formação de uma arena de negociações em que
“os embates de fronteira acerca da diferença cultural têm tanta
possibilidade de serem consensuais quanto conflituosos”. Então,
para esses imigrantes brasileiros no Japão, a dificuldade da língua,
a saudade das práticas da vivência brasileira, sua cultura, comidas
e jeitos de ver o mundo, desde as pequenas coisas até as grandes
diferenças culturais tiveram que ser acomodadas numa situação
emergencial para que se tornasse possível a convivência nessa terra
estrangeira.

Identidades em Trânsito

Pensar a identidade e o lugar em que se está é uma forma de


articular algumas significações. O lugar ao qual pertencemos diz
muitas coisas sobre nossa identidade. Estar em algum lugar,
possuir uma infinidade de referências, que já preexistem a nós,
ajuda a construir e a solidificar dentro de nós, um lugar no espaço
geográfico e, mais importante ainda, um lugar no mundo do
pertencimento a uma cultura. “A identificação é sempre o retorno
de uma imagem de identidade que traz a marca da fissura no lugar
do Outro de onde ela vem” (BHABHA, 1998, p. 77). Quando não
pertencemos a um lugar, por quaisquer que sejam as razões, uma

294
parte da identidade também fica em suspenso, pois a identidade é
uma forma de ser, é uma forma de afirmação do que se é, e de
negação do que não se é. Bakhtin (2003) discute essa relação da
alteridade quando fala que o autor deve se colocar no lugar do
outro para entender a completude da situação e olhar para si com
os olhos do outro “com valores que a partir da própria vida são
transgredientes a ela e lhe dão acabamento; ele deve tornar-se outro
em relação a si mesmo.” (BAKTHIN, 2003, p. 13). Então, a
identidade cultural, assim construída, é corroborada pelo lugar ao
qual pertencemos e, esse lugar é o primeiro ponto de apoio para a
construção do sentido do mundo que nos rodeia. Hall (2006)
argumenta que:

Essencialmente, presume-se que a identidade cultural seja fixada no


nascimento, seja parte da natureza, impressa através do parentesco e da
linhagem dos genes, seja constitutiva de nosso eu mais interior. É
impermeável a algo tão “mundano”, secular e superficial quanto uma
mudança temporária de nosso local de residência. (HALL, 2006, p. 28).

Mas, nas situações em que esse lugar de permanência não


corresponde ao lugar de pertencimento, temos uma ruptura com as
certezas que pareciam inicialmente solidificadas, então, a
identidade não é mais a mesma. “Na situação da diáspora, as
identidades se tornam múltiplas.” (HALL, 2009, p. 26). Dentro
dessa realidade, e do estranhamento em relação à língua, aos
costumes, e às tradições tão diferentes entre Brasil e Japão, há uma
necessidade constante de identificação e diferenciação, ao mesmo
tempo em que surge a busca de adaptação e construção de uma
identidade que possa “atender”, mesmo que momentaneamente,
esses brasileiros. Então uma “dupla identidade” surge como uma
proposta de adequação para a situação em questão. Os brasileiros
em situação de estrangeiros no exterior “negociam e constroem”
sua identidade num jogo de “ganha e perde”, adaptando-se à
cultura local. A grande questão é que, não interessa o motivo desses
deslocamentos, cada vez mais facilitados pela globalização, o

295
vínculo entre a cultura e a geografia é mapeado de outra forma,
nem melhor, nem pior, mas diferente.

Memórias e Narrativas Biográficas

Segundo os estudos de Bruner e Weisser (1995) é através do


gênero textual que certas propriedades de forma e conteúdo são
utilizadas de modo a construir sentidos e significados. Os gêneros
textuais funcionam não somente como modos de escrever ou falar,
mas também como forma de ler e ouvir, como mapas de leitura de
mundo e de suas relações. Para os autores, “as ‘vidas’ são textos:
textos sujeitos a revisão, exegese, reinterpretação e assim por diante.
Ou seja, as vidas narradas são vistas pelos que as narram como textos
passíveis de interpretação alternativa”. (BRUNER; WEISSER, 1995,
p. 142). Especificamente abordando a questão da identidade e da
constituição do eu, os autores discutem a relação da autobiografia
como uma forma de “estratégia retórica” que significa a primeira
experiência entre um texto e a sua interpretação. “Não há maneira
pela qual se possa, assim dizer, cair em uma ‘forma autobiográfica
não interpretativa original’. A autobiografia força uma interpretação.
E a interpretação exige uma administração.” (BRUNER; WEISSER,
1995, p. 145). Para os autores, o ato do relato autobiográfico situa os
sujeitos culturalmente ao mesmo tempo em que os individualiza e,
a autobiografia é assim, uma representação da memória de si, do
“eu” contando sobre “mim” para os “outros”. Então, esse passado
humano pode ser transmitido pela memória, pelos genes ou pela
cultura, “com seu corpus de conhecimento simbólico e
procedimentos adotados depois que se consegue dominar o sistema
semiótico”. (BRUNER; WEISSER, 1995, p. 146). Os autores entendem
o sentido da narração como um construtor de conhecimento que, ao
narrar as histórias e dar voz eminente ao sujeito próprio que
vivenciou aquela situação, o contador organiza a sua experiência de
vida e utiliza a narração para construir a realidade como um
instrumento da mente em prol da criação do sentido. Para Bruner e
Weisser (1995, p. 147), “o processo de organização de uma

296
autobiografia é um hábil ato de se transferir uma amostragem de
memórias episódicas para uma densa matriz de memória semântica
organizada e culturalmente esquematizada”. Já Bakhtin (2003)
analisa o narrar biográfico como uma forma de se aceder à
conscientização por meio da enunciação, em um processo que
implica constantemente o "eu" e o "outro". Para Bakhtin (2003), o
relato, ou mais precisamente, o discurso autobiográfico implica, em
termos de enunciação, a construção de enunciados marcados pelas
palavras dos outros que ao mesmo tempo passam a ser minhas
quando as enuncio ao relatar minha vida.

Tomo conhecimento de uma parte considerável da minha biografia


através das palavras alheias das pessoas íntimas e em sua tonalidade
emocional: meu nascimento, minha origem, os acontecimentos da
vida familiar e nacional na minha tenra infância (tudo o que não
podia ser compreendido ou simplesmente percebido por uma
criança). [...] Sem essas narrações dos outros, minha vida não seria só
desprovida de plenitude de conteúdo e de clareza como ainda ficaria
interiormente dispersa, sem unidade biográfica axiológica. (BAKHTIN,
2003, p. 1401-142).

Trata-se de uma narrativa na qual estão implicados valores e


subjetividades passíveis de análise em termos de compreensão da
construção da memória e da identidade. Nesse sentido, o relato dos
entrevistados possibilita-lhes aceder a algo que se busca entender
no presente, que a lembrança e o testemunho do passado ajudam a
esclarecer. Segundo Halbwachs (2003), o presente se completa com
a memória e o testemunho do passado, e as lacunas são
reconstituídas a partir de um conjunto de lembranças que torne
visível o essencial.
Ampliando a questão do relato-autobiográfico para pensar sua
influência na constituição do ser, Bruner e Weisser (1995) veem o
processo de construção constante das narrativas biográficas como
parte integrante do complexo processo de formação social da mente.

297
A mente é formada, numa incrível proporção, pelo ato da invenção
do ser, pois por meio de prolongados e repetitivos atos de auto-
invenção definimos o mundo, o alcance de nossa atuação nele e a
natureza da epistemologia que governa o modo como o ser
conhecerá o mundo e, na verdade, a si mesmo. A auto-invenção,
devido à sua própria natureza, cria disjunções entre um ser que conta
no momento do discurso e os seres esquematizados na memória.
(BRUNER; WEISSER, 1995, p. 158).

É claro que a memória e a narrativa biográfica entendidas a


partir do quadro complexo delineado podem ser observadas, no
presente trabalho, apenas por meio de alguns elementos já que se
trata de um corpus cujos recortes procuram atender aos objetivos da
pesquisa. Apesar disso, gostaríamos de ressaltar que, embora sejam
recortes de relatos particulares, é possível considerá-los como um
fato social ou coletivo, pelo menos em termos de formação do
imaginário dessas pessoas que comungam da mesma situação
descrita nas entrevistas.
Bosi (1993) explica que o ambiente familiar frequentemente é
a estrutura de apoio para as lembranças que são também
construídas a partir do olhar do que a pessoa quer ou não lembrar.
“O conjunto das lembranças é também uma construção social do
grupo em que a pessoa vive e onde coexistem elementos de escolha
e rejeição em relação ao que será lembrado.” (BOSI, 1993, p. 281).
Ainda segundo Bosi (1993), a memória individual é como algo que
a pessoa vai lembrando dentro da imensidão do seu contexto social,
vai construindo uma memória representativa de um grupo ou de
um tempo, e suas escolhas de recuperação, dessa memória,
retratam mapas de significação da experiência do seu viver, ou “a
evolução da pessoa no tempo” (BOSI, 1993, p. 283).
Bakhtin (2003) discute o processo em que personagem e
narrador trocam de posição, então, ao falar sobre o que aconteceu
no passado, o olhar do narrador que comunga com o contexto de
seus personagens, também se torna um olhar compartilhado. Dessa
forma, ao selecionar o que se está contando também ocorre uma

298
redistribuição por assuntos ou temas, o que já demonstra certas
preferências do narrador em relação ao que contar e ao que não
contar. Para Bakhtin-Volochínov (2010) o tema da enunciação é um
elemento único, individual, não reiterável e concreto “tão concreto
como o instante histórico ao qual ela pertence” (p. 134), e somente
assim, pode-se apresentar como base para a enunciação, pois o
tema apresenta a expressão de uma situação histórica concreta que
origina o enunciado. Então, o tema é responsável pela compreensão
do significado.

Narrativas Particulares: construções e desconstruções das


relações familiares

D. Telma tem 72 anos, é descendente de japoneses nascida no


Brasil e estudou a língua japonesa quando criança, mas não possui
fluência. Ela mora com a filha casada, Mariana, o genro e as duas
netas, em Hamamatsu, no Japão. D. Telma narra parte da sua
trajetória particular no Japão a partir da história do próprio pai.
Ele nasceu no Japão, mas aos 14 anos emigrou para o Brasil junto
com outra família, deixando duas irmãs no Japão. D. Telma relata
que, apesar de seu pai ser o único filho homem, em uma época em
que a primogenitura era muito importante, ele migrou para o
Brasil quase fugido em razão do envolvimento de seu avô com a
Yakuza (máfia japonesa). Seu pai teve um começo duro no Brasil
e, como tantos outros imigrantes, trabalhou na lavoura. Outro fato
doloroso na história de vida dele foi o fato de que sua mãe veio
doente visitá-lo no Brasil e não resistiu à viagem de volta ao Japão,
falecendo no navio.

- Essa história ele (pai de D. Telma) contava... O pai dele era da Yakuza (máfia
Japonesa) e a mãe, minha avó, sofria muito por causa disso. Inclusive esse meu
avô morreu assassinado. Ele morreu e os outros do grupo começaram a ameaçar
que iam matar o meu pai, isso era ele quem nos contava depois. A mãe, minha
avó, já estava doente, eu nem a conheci, e ela pediu para essa família amiga,

299
que levasse o filho junto com eles, ao Brasil. Porque ela tinha medo. E, por isso
que ele foi, meio que fugido!!

D. Telma nasceu no Brasil e se casou tarde porque seu pai dizia


que, enquanto a filha mais velha não se casasse, as outras também
não se casariam. Na família, eram cinco irmãos, a mais velha tinha
uma deficiência auditiva e não falava direito, vindo a falecer de
câncer aos 53 anos.

- Depois, muito depois, ela já tinha uns 12 ou 13 anos, na época os aparelhos


auditivos eram uma espécie de óculos com fios, e meu pai achava muito
“Kawaisou” (coitada, judiação) porque ela era jovem e ficaria com um fio
pendurado. Aí, mandou vir da Alemanha um aparelho da cor da pele que ficava
dentro do ouvido, então, ela começou a se desenvolver na escola. Mas ela sofreu
muito porque a gente entendia o que ela dizia, mas os outros não entendiam
nada, porque não conviviam com o jeito dela de falar. Então, eu entrei na
mesma escola com seis anos para fazer companhia a ela. Porque ele (pai) tinha
medo pela filha. Mas ela repetia de ano, coitada!! Mesmo assim, ela chegou a
fazer o primário. Ela nunca namorou, acabou casando de miai9.

O primeiro namorado de D. Telma foi um japonês que viera


ao Brasil para fazer um estágio. D. Telma tinha 18 anos e ainda não
pensava em casamento. Só mais tarde, quando conheceu o rapaz
que viria a ser seu esposo, quis casar. Mas descobriu que seu pai
não permitiria, pois sua irmã mais velha ainda não se casara.

- Eu casei com 29 anos, ele teve que esperar minha irmã mais velha se casar.
Mas, depois de mim, logo as minhas irmãs casaram uma atrás da outra. A mais
nova se casou com um japonês, e hoje mora em Tokyo. Eu casei com um
brasileiro (não descendente). Nossa! Ele (pai) foi contra!! Nossa! Brigamos, ele
me deserdou, disse que eu não era mais sua filha e, nem foi ao meu casamento,

9Miai é o termo utilizado para denominar o casamento arranjado, uma prática


muito utilizada no Japão. “Os casamentos em todos os estratos sociais
continuavam a não ser frutos de escolha pessoal, mas intermediada por alguém
que, primeiro, sugeria os nomes dos noivos aos pais e, depois, formalizava a
apresentação dos pretendentes.” (SAKURAI, 2008, p. 308).

300
nem nada. Eu sofri bastante porque no dia do casamento, tão importante, a
gente quer os pais lá, né!? Só depois que fiquei grávida e ganhei minha filha,
que era a primeira neta, e ele adorava criança, ele queria conhecer, mas era
orgulhoso também, não queria dar o braço a torcer!! Aí, um dia o meu irmão
trouxe um presente dele, um carrinho, tipo berço, muito caro, então, eu pensei,
vou deixar o orgulho de lado e levar ela para o avô conhecer e, depois disso a
gente se entendeu.

D. Telma conta emocionada sobre esse tempo de luta e aceitação.


Na época, muitas famílias japonesas no Brasil não aceitavam que seus
filhos se casassem com pessoas não descendentes de japoneses. Diante
da lembrança dessas adversidades de sua própria trajetória, D. Telma
cita uma lembrança sobre seu pai, que diz respeito à relação do avô
com a neta.

- A minha filha mais velha era xodó, até outro dia, ela estava escrevendo no
facebook uma brincadeira com números, por exemplo, se a pessoa dava o
número dezessete, ela tinha que contar dezessete vezes algo sobre ela. A
primeira coisa que ela escreveu foi que quando ela tinha sete anos ela perdeu a
pessoa que mais amava, que era o avô!!

Essa história é contada com muita emoção, nesse momento da


entrevista D. Telma chega a chorar, um choro silencioso e
sufocado10. Isso demonstra que ao narrar essas experiências, as
lembranças fazem com que a pessoa reviva certas emoções que
ficaram guardadas nas memórias. Então, a recuperação dessa
lembrança pessoal funciona como um ativador que faz com que a
memória ative no presente a lembrança de pertencimento e de uma
identidade - a de pertencer a uma família -, com tudo que ela
carrega em si de contradições, lutas e dificuldades.

A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse


sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da
lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações

10 Nesse momento, tive que esperar alguns minutos até que D. Telma,
silenciosamente, se recompusesse e, assim, continuássemos a entrevista.

301
sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, susceptível de
longas latências e de repetidas revitalizações. (NORA, 1993, p. 9).

Nesse sentido, cabe destacar a questão do tema abordado no


trecho do relato de D. Telma. Sua relação com o pai e o próprio
reconhecimento em termos de raízes identitárias. Bruner e Weisser
(1995) destacam que nos relatos de vida, os temas são discerníveis
por meio "da justaposição de mundos possíveis idealizados,
embora contrastantes, em termos do qual se pode orientar um
relato sobre si mesmo". (BRUNER; WEISSER, 1995, p. 155). Pode-se
dizer que, para D. Telma, os temas casamento e família passam
necessariamente pela necessidade de aprovação do pai. Aprovação
que se dará pelo nascimento da filha mais velha, revelando a
superação de um "impedimento" cultural e étnico (já que ela não
havia se casado com um descendente de japoneses) pela condição
sanguínea de descendência. Mais do que as palavras mencionadas,
podemos perceber a importância dos relacionamentos familiares
na vida e na trajetória da entrevistada. Os vínculos que se
constroem, destroem e se reconfiguram conforme as injunções da
vida social e familiar. Consideramos com González (1991) que a
família ao ser estudada não pode ser analisada como uma estrutura
em separado, já que os indivíduos que a compõem não são
elementos isolados, mas fazem parte de uma engrenagem que
define espaços de ideologia, poder e sociedade, ou seja, o status que
a pessoa ocupa dentro da família e que reverbera no seu espaço
social, ocupa um lugar determinado.
Outro tema presente no relato de D. Telma refere-se ao retorno
ao Brasil, pois como tantos outros imigrantes, o projeto inicial de D.
Telma no Japão era passar um ou dois anos trabalhando no Japão
juntando dinheiro para voltar ao Brasil em melhores condições
financeiras. D. Telma foi para o Japão em 1991 pela primeira vez, há
22 anos, acompanhada dos filhos e já separada do esposo.

- Separei e depois de 4 anos vim para cá (Japão). Ele não queria dar o divórcio.
Depois de 2 anos, eu voltei ao Brasil muitas vezes, mas ele não queria assinar.

302
Eu tinha 50 anos quando vim para cá, então eu queria viver a vida. Aí, meu
filho e as meninas falaram que se ele não desse o divórcio eles ficariam bravos,
que esquecesse que eram filhos dele. Aí, eu fui para o Brasil com meu filho,
mesmo assim, um pouco antes de entrar na audiência, ele falou que não ia
assinar. Meu filho ficou bravo, falou que ele não podia fazer isso comigo, os
advogados também falaram com ele. Bom, ele ficou calado na frente do juiz,
mas assinou!! Nossa, parece que eu tinha tirado um peso das costas.

D. Telma teve cinco filhos: quatro filhas e um filho. Apesar de


tudo, ela acha que foi mais fácil criar os filhos no Japão do que no
Brasil. Ao longo dos vinte e dois anos em que mora no Japão
retornou apenas três vezes ao Brasil. A partir do pequeno recorte,
aqui realizado, é possível observar, no relato de D. Telma, que as
relações familiares e afetivas construídas por meio dos temas por
ela abordados e pela própria enunciação discursiva que
contextualiza, articula e produz sentidos sobre pessoas e fatos que
marcaram sua infância, juventude e vida adulta. Evidenciam-se por
meio de sua enunciação os sentidos de identidade familiar, de filha,
mãe e esposa. Enfim, é por meio da construção discursiva de sua
história de vida que a entrevistada se situa "no mundo simbólico
da cultura". (BRUNER; WEISSER, 1995, p. 145).

Narrativas Particulares: sexualidade, escolhas e descobertas

Xande nasceu no Brasil, em São Paulo, no ano de 1971 e, no


momento da entrevista, estava com 42 anos. Estudou até o Ensino
Médio no Brasil e, em 1990, com 18 anos, foi para o Japão pela
primeira vez. Ele é descendente de japoneses e trabalha como
cuidador de idosos ou de pessoas com necessidades especiais. Está
se aperfeiçoando para conseguir subir na carreira e, por isso,
participa de vários cursos, inclusive fez um curso de treinamento
com foco em psicologia que acabou de concluir. Entre os temas que
mais abordou em nossas conversas estão sua própria sexualidade,
suas escolhas e descobertas.

303
- Eu lia muito também. Eu percebi (minha homossexualidade) bem cedo, com
sete anos. Aí com 14, eu já sabia: É isso que eu vou ser, é isso que eu quero.
- Antes de você perceber que você é diferente, você precisa primeiro trabalhar o
seu lado interior. Não adianta eu falar, se por dentro eu não estou resolvido.
Eu trabalhei bem o lado interior. Eu era criança, mas eu lia muita revista de
adulto. Desde pequeno, eu já tinha, assim, interesse pela leitura. Só que a
criança não vê diferença entre revista de adulto ou de criança, qualquer coisa
que eu pegava, eu lia. E, uma revista que me ajudou muito nessa questão foi a
revista Nova (Ed. Abril). Eu tinha uma tia, irmã do meu pai, que assinava essa
revista e, toda vez que eu ia lá, eu ficava lendo. Só que na idade que eu tinha,
lembro que minha mãe falava para mim: Essa revista não é para você, não! Essa
revista não é para a sua idade!

O entrevistado parece explicitar a sua diferenciação numa


categoria já bem resolvida para ele. No caso de Xande, ao se
posicionar como homossexual e, ao mesmo, relatar a visão dos
outros sobre sua orientação, seu discurso manifesta a questão do
preconceito como um dos elementos importantes que perpassam
sua vida.

- Bom, a gente não sofre tanto (no Japão), mas quando você vê que a pessoa tem
preconceito e, você percebe que você é diferente... Eu não tenho essa coisa de se
esconder, não. Já falo: O que foi? Te incomoda? Eu não me irrito, ao contrário,
eu devolvo a pergunta.

Conversávamos sobre os assuntos nos intervalos comerciais


entre um bloco e outro da telenovela Amor à vida (Globo, 2013/2014)
à qual ele assistia no Japão. O entrevistado contou que sua vida
também daria um bom enredo de telenovela. No decorrer da
conversa foi contando sobre as várias brigas que presenciou entre
os pais e do episódio em que ficou sabendo da traição da mãe. Ele
relata os acontecimentos em pequenos trechos que vão se
agrupando e demonstrando indícios de que a vivência familiar
influenciou muito nas suas escolhas de vida. Por fim, Xande relata
o encontro com o pai da sua meia-irmã. Nesse encontro, o pai da
sua meia-irmã percebe Xande como sendo diferente dos demais

304
irmãos: mais maduro para sua idade, mais vivido e, talvez por isso
mais aberto a coisas novas. Enquanto ele relembra essa conversa,
vai concluindo fatos a partir do discurso do outro: “se ele me
comparou com meus irmãos, é porque já os conhecia antes de mim”.

- A minha mãe fez questão de me apresentar o pai da minha meia-irmã. A gente


foi ao cinema com o filho dele. Ele já tinha outro filho. Sempre íamos um irmão
de cada vez. Ele (pai da sua meia-irmã) contou a história do nascimento do
filho, que foi um parto de risco e a esposa tinha morrido. Eu lembro que ele me
falou: Você é diferente dos seus irmãos. Então eu acho que fui o último a
conhecê-lo. Ele falou: Você tem quase a mesma idade do meu filho, mas você
tem interesses diferentes, sua mentalidade é diferente. Você está amadurecendo
antes do tempo. Em vez de brincar com carrinho, você prefere falar com os
adultos, você é mais aberto, tem uma mente mais aberta, é mais extrovertido
que os outros.

Xande utilizava a telenovela nas nossas conversas sobre sua


vida, os temas apresentados na telenovela suscitam nele reflexões
acerca do seu próprio mundo; como se os personagens ficcionais e
a própria telenovela fizessem parte da sua história particular.
Então, o entrevistado utiliza a narração para dar sentido ao mundo.
A família, para Xande, não é algo que traga boas recordações, pois
traz lembranças dolorosas vividas no passado. E, a ativação da
memória do entrevistado mediado pela telenovela explicita não
somente sua experiência de vida, mas também os
entrecruzamentos que esses temas trazem de significado em sua
vida. É no ato de (re)contar sua trajetória que Xande relembra e
reconstrói seu passado, interpretando e textualizando sua vida.

O ato da elaboração da autobiografia, longe de ser a “vida” como


está armazenada nas trevas da memória, constrói o relato de uma
vida. A autobiografia, em poucas palavras, transforma a vida em
texto, por mais implícito ou explicito que seja. É só pela textualização
que podemos “conhecer” a vida de alguém. O processo da
textualização é complexo, uma interminável interpretação e
reinterpretação. (BRUNER; WEISSER, 1995, p. 149).

305
Considerações

A discussão e a análise propostas neste trabalho buscou


relacionar a elaboração dos relatos orais, ou as histórias de vida, de
nossos entrevistados a complexos processos de enunciação e de
discursivização por meio dos quais é possível observar os
mecanismos de produção de sentido de identidade social e de
construção de memória. Dessa forma, os entrevistados foram eles
próprios personagens, autores e narradores de suas histórias.
Autores porque o ponto de partida foram as conversas espontâneas
que surgiram durante a convivência diária no ato de assistir à
telenovela brasileira e, narradores porque os entrevistados são
sujeitos e contadores da sua própria história focando o ponto de
vista segundo sua visão de mundo. Personagens porque, ao se
distanciarem da história, colocam suas ações em perspectiva, vistas
de fora, como se fossem um texto (BRUNER; WEISSER, 1995).
D. Telma nos conta a aventura de estar no Japão a partir das
lembranças que possui do seu pai. Instituindo a família como o
começo da narrativa, ressaltando a família e o convívio com eles
para chegar até o ponto em que narra sua situação de imigrante
brasileira no Japão. Enquanto para Xande, o ponto de partida é sua
própria história de descoberta e aceitação. Ele também utiliza a
família como parte importante da sua vivência, relacionando partes
da sua vida com os dramas e descobertas da sua individualidade.
Mas, enquanto D. Telma foca os acontecimentos no exterior dela,
ou seja, no que acontecia com seu pai e seu casamento, Xande foca
na parte interior, na sua aceitação e no seu lugar no mundo.
Esses relatos são valiosos para se observar a partir de quais
situações essas lembranças eram recuperadas, e também,
indicavam alguns percursos de pensamento dos entrevistados. De
certa forma, tudo isso foi um relato biográfico da vida dos
entrevistados, que, nessas condições, também estavam relatando
uma história de vida a posteriori, ou seja, a sua própria história
contada por eles mesmos depois dela já ter acontecido. Isso nos leva
a duas reflexões: (1) existe um distanciamento tal que isenta, de

306
certa forma, a força real dos acontecimentos descritos e, isso
proporciona um olhar deles próprios como narradores de suas
histórias, portanto, seus relatos estão imbuídos de certo sentimento
de juízo de valor que só é possível de acontecer porque o fato em si
já está no passado; (2) na condição de serem, como se pode dizer,
uma terceira pessoa narrando sobre fatos e comportamentos que
eles próprios vivenciaram na primeira pessoa, muitas das
descobertas, sensações ou percepções, podem ser acometidas no
aqui/agora da narração, e também isso pode ser surpreendente
para quem conta a sua própria história.

Referências

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Fontes, 2003.
BAKHTIN-VOLOCHÍNOV, Mikhail. Marxismo e filosofia da
linguagem. 14. ed. São Paulo: Hucitec, 2010.
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BOSI, Ecléa. A pesquisa em memória social. Psicologia USP, São
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autobiografia e suas formas. In: OLSON, David R.; TORRANCE,
Nancy. Cultura escrita e oralidade. São Paulo: Ática, 1995.
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www.ciate.org.br/informacao-geral-sobre-japao/a-comunidade-
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busca de horizonte. Estudios sobre las culturas contemporáneas,
marzo, año/vol. IV, n. 011. Universidad de Colima, Colima, México,
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KAWAMURA, Lili. Para onde vão os brasileiros? – imigrantes
brasileiros no Japão. São Paulo: Editora Unicamp, 2003.

307
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo:
Centauro, 2003.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de
Janeiro: DP&A, 2006.
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais.
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MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES DO BRASIL.
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mundo 2013. Disponível em: www.brasileirosnomundo.
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NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos
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SAKURAI, Célia. Os Japoneses. São Paulo: Contexto, 2008.
SUZUKI, Helen E. N. A telenovela e a produção de sentidos de
identidade brasileira no discurso de imigrantes brasileiros no
Japão. Dissertação (Mestrado em Ciências da Comunicação)
ECA/USP. São Paulo, 2014.

308
Telenovela, imigração e alteridade:
estratégias discursivas do olhar sobre o estrangeiro

Luciano Teixeira

A telenovela Órfãos da Terra1, inspirada em fatos da vida real


amplamente mostrados na imprensa de maneira geral, abordou a
situação dos refugiados sírios que fogem da guerra civil em seu
país e buscam abrigo na Europa e em outros países do Ocidente. A
trama deu voz e abordou ficcionalmente o drama de pessoas que
vêm para o Brasil na condição de refugiadas. A obra, com 154
capítulos, escrita por Thelma Guedes e Duca Rachid, discutiu
questões que tratam da cultura estrangeira e imigração e teve forte
apelo ao gênero melodramático.
Ao longo deste capítulo vamos discutir o encontro entre a
cultura brasileira e a estrangeira mostrado na telenovela sob a
perspectiva do conceito de alteridade de Bakhtin (2010 e 2003) e
Vigotsky (1998, 2014), entre outros.
Para estes autores, a discussão da alteridade é elaborada sob a
perspectiva do eu e do outro e de seus valores de três formas: eu
para mim, eu para o outro e o outro para mim (BAKHTIN, 2010).
Assim, toda construção linguística e de valores presentes nas
sociedades são produto de relações e de interações da atividade
humana, da diferenciação do discurso para si e para os outros
(VIGOSTKY, 1998), de discursos anteriormente estabelecidos e que
se solidificam ou se transformam com base em sistemas complexos
do mundo da cultura e na arquitetura do mundo da vida. Questões
que permitem um olhar sobre o outro com base em discursos

1Exibida pela Rede Globo de 2 de abril a 28 de setembro de 2019 no horário das


18 horas, com direção geral de André Câmara e direção artística de Gustavo
Fernandez.

309
previamente estabelecidos, buscando traços dentro de uma
identidade cultural sob uma determinada representação.
Entre os elementos do gênero melodramático (MARTIN-
BARBERO, 1997) presentes na telenovela, destacamos a
prevalência da busca pelo amor romântico (GIDDENS, 1993) e plots
marcados por tramas e situações de forte apelo emocional (famílias
desfeitas por contingências sócio históricas, ação de vilões e
também histórias de superação), além da construção de vilões e
mocinhos sem ambivalências. Esses elementos melodramáticos
constroem-se discursivamente não apenas por meio da longa
serialidade característica da telenovela, mas também por meio de
tramas e discussões fortemente marcadas por sua proximidade
com o cotidiano (MOTTER, 2000-2001) conforme discutiremos ao
longo desse trabalho.
Interessa-nos analisar, para além do fio melodramático que
tece a trama ficcional, a construção do discurso sobre o imigrante e
a relação com o povo brasileiro no gênero teledramatúrgico como
lugar de memória (MOTTER, 2000-2001) e espaço de construção de
significação e sentidos de nacionalidades (LOPES, 2009).
Ao focarmos a telenovela Órfãos da Terra, procuramos analisá-
la com base nas mediações discutidas por Martín-Barbero (1997, p.
304), como “lugares dos quais provêm as construções que
delimitam e configuram a materialidade social e a expressividade
cultural da televisão”.
A questão da imigração ou de apelo à temática de culturas
estrangeiras está presente na ficção televisiva brasileira desde a
década de 1960 nas telenovelas da Rede Globo e tem papel
importante dentro de um estilo de narração e estética que marca a
telenovela no Brasil.
Ao abordarmos Órfãos da Terra, queremos contextualizá-la no
quadro comparativo de outras obras ficcionais brasileiras
produzidas pela TV Globo. Nossa opção pela emissora carioca tem
relação com a regularidade das telenovelas inseridas em uma grade
de programação estruturada a partir da década de 1970, com três

310
produções constantes no chamado horário nobre da TV brasileira,
algo que persiste até hoje.
Nos primeiros 20 anos do século XXI tivemos 7 produções que
trataram da questão do imigrante e/ou culturas estrangeiras, a
maior parte no horário das 21 horas (Esperança - de Benedito Ruy
Barbosa e Walcyr Carrasco - O Clone, América, Caminho das Índias e
Salve Jorge – de Glória Perez) e duas no horário das 18 horas (Sol
Nascente – de Walther Negrão, Júlio Fischer e Suzana Pires - e Órfãos
da Terra – de Thelma Guedes e Duca Rachid).

A telenovela brasileira e aspectos da narrativa do imigrante no


século XXI

De acordo com Xavier (2005), as telenovelas centram o


telespectador no drama, na narrativa e nos personagens e criam
identificação do público com a história e personagens. Para Jost
(2007) a ficção televisiva se molda pela atualidade (como a
reconstrução do “real”), universalidade (como a própria questão da
imigração, algo que acontece em todo mundo, de diversas formas)
e enunciação televisual (o discurso é construído pelo conjunto da
técnica televisiva: roteiro, montagem, ângulos e enquadramentos,
entre outras formas).
Ao analisarmos a representação da imigração e dos fluxos
migratórios presentes nas telenovelas no século XXI, notadamente
em nosso objeto de análise - Órfãos da Terra, devemos considerar
que o formato ainda é o principal produto de ficção televisiva no
Brasil. De acordo com o Anuário Obitel 2022, dos dez programas
de ficção mais vistos no país, dez foram telenovelas. (LOPES;
ABRÃO, 2022). Sabemos que a telenovela brasileira se constituiu
como um espaço social, cultural e de apropriação dos saberes
conforme destaca Motter (2004):

A telenovela se firma como um referente universal por ultrapassar


largamente sua audiência, já suficientemente expressiva por si
mesma, e alcançar todo o conjunto social. Em torno ou a partir desse

311
referencial se desenvolvem desde as mais comezinhas conversas
cotidianas até as grandes discussões, nas relações face a face, nas que
envolvem grandes interesses nacionais, campos especializados e
sujeitos a diferentes mediações (MOTTER, 2004, p.264).

Segundo Lopes (2009), a telenovela se constitui como recurso


comunicativo ao se configurar como espaço de problematização
das questões sociais de nosso país por sintetizar em sua trama “o
público e o privado, o político e o doméstico, a notícia e a ficção, o
masculino e o feminino” inscritos “na narrativa das novelas que
combina convenções formais do documentário e do melodrama
televisivo”. (LOPES, 2009, p. 26). Para a autora, é possível entender
a telenovela como recurso comunicativo, pois é possível:

identificá-la como narrativa na qual se conjugam ações pedagógicas


tanto implícitas quanto deliberadas que passam a institucionalizar-
se em políticas de comunicação e cultura no país. Em outros termos,
é reconhecer a telenovela como componente de políticas de
comunicação/cultura que perseguem o desenvolvimento da
cidadania e dos direitos humanos na sociedade. (LOPES, 2009, p. 32).

Tais dimensões, elencadas por Lopes (2009), podem ser


encontradas em Órfãos da Terra que retratou ficcionalmente por
meio do drama das personagens as injunções sociais, econômicas e
culturais vivenciadas por pessoas na condição de refugiados.
A situação dos refugiados da Guerra Síria e sua presença
constante nos jornais despertaram em Rachid e Guedes o interesse
em escrever sobre o assunto, conforme afirma Guedes:

Todos os dias nós víamos nos jornais, nos emocionávamos, havia


uma comoção geral a respeito do tema. Começamos a pesquisar
sobre isso e a pensar em como abordar esse tema dentro de uma
novela. Era um desafio. E vermos essas pessoas de um outro ponto
de vista, não só como imagens de uma tragédia. (GUEDES apud
JEBAILI, p. 90).

312
Órfãos da Terra traz para a ficção em suas tramas e subtramas
diversos acontecimentos divulgados pela imprensa. Esses fatos
foram incorporados e reconstruídos no roteiro do ambiente
ficcional. São temas atuais e importantes como a compra de
mulheres refugiadas por homens mais velhos; os grandes
contingentes de pessoas caminhando em busca de um país que as
acolhesse; a tentativa de ultrapassar a fronteira e a busca por um
destino definitivo depois de chegarem ao campo de refugiados.
Muitas referências (reportagens jornalísticas relatando fatos
da vida real que inspiraram as autoras) se fizeram presentes em
Órfãos da Terra desde a concepção da sinopse à construção
discursiva de cenas. Um exemplo dessa construção pode ser visto
no primeiro capítulo, quando Elias e sua família deixam a cidade
fictícia de Fardús a caminho de Beirute, no Líbano, e em novo
deslocamento da família rumo à Grécia. Essa travessia foi e ainda é
amplamente divulgada em coberturas da imprensa nacional e
internacional como uma das consequências nefastas da guerra no
país do Oriente Médio.
Essa perspectiva interdiscursiva também pode ser observada
em entrevistas das autoras da telenovela que mencionam que, ao
verem uma reportagem na televisão, identificaram o fio narrativo
que daria início à trama e se configuraria como o principal
empecilho à realização do amor entre Laila e Jamil, os personagens
principais e que conduzem a trama. Rachid (2019) afirma: “a
grande inspiração veio quando assistimos a uma matéria sobre
meninas que viviam em campos de refugiados e que eram
compradas por homens mais velhos para se casarem. Identificamos
aí uma história, um potencial de narrativa folhetinesca” (RACHID
apud JEBAILI, 2019, p. 90).
Nesse sentido, cabe enfatizar, juntamente com Motter (2004, p.
251), que a telenovela brasileira apresenta “plasticidade para
incorporar elementos de outros gêneros ficcionais e não-ficcionais,
além de incorporar elementos da realidade que lhe garantem
manutenção de intenso diálogo com o cotidiano concreto do país”.
Incorpora “elementos de diversos sistemas semióticos (...) e se

313
firma como documento histórico, lugar de memória (...)”
(MOTTER, 2004, p. 252).
No caso de Órfãos da Terra, podemos reconhecer referências
muito próximas da realidade concreta e que vão além do
cumprimento da premissa da verossimilhança (MOTTER, 2003;
MUNGIOLI, 2012) constituinte dos gêneros ficcionais. Motter
(2003, p. 74) reconhece na telenovela o “nutriente de maior potência
do imaginário nacional”, algo que nos possibilita entender a
“construção da realidade, num processo permanente em que ficção
e realidade se nutrem uma da outra, ambas se modificam, dando
origem a novas realidades, que alimentarão outras ficções, que
produzirão novas realidades”. Assim, são dois mundos que
estabelecem entre si um diálogo: um dito “real” e o outro
“ficcional”, algo que é visto no caso da novela Órfãos da Terra.
Na trama da telenovela temos a presença de elementos do
melodrama: a questão familiar e o amor romântico configuram-se,
a partir de sua centralidade, como condutores da ação e motivação
dos conflitos que movimentam as trajetórias dos protagonistas
frente às ações de vilões que tentam impedir a todo custo a
realização desse amor.
Embora a condução do plot com base nos elementos
melodramáticos se configure como uma das principais
características dessa telenovela, optamos por abordar a questão da
alteridade - inserindo a trama no quadro das narrativas sobre
imigrantes/culturas estrangeiras produzidas pela televisão
brasileira no século XXI.
No levantamento das outras temáticas presentes nas
telenovelas que abordaram imigração e diferentes culturas (Tabela
1) verificamos a discussão de questões ligadas à cultura árabe em
mais de uma telenovela, além de temas como clonagem,
dependência química, movimento operário, América Latina,
cultura indiana, tráfico de mulheres e situação de guerra e refúgio,
entre outros.

314
Quadro 1 - Temáticas de telenovelas sobre imigração no século XXI
TÍTULO EXIBIÇÃO/ QUESTÕES TEMÁTICAS DA
CAPÍTULO SOBRE TELENOVELA
ALTERIDADE
O Clone2 1/10/2001 a Brasil vs. Marrocos Clonagem humana
14/06/2002 Diferenças entre a Dependência química
cultura árabe/
221 cap. muçulmana e a
brasileira
Poligamia
Esperan- 17/06/2002 Brasil/Itália/Europa São Paulo dos anos
ça3 a Imigração de 1930
15/02/2003 italianos, judeus, Industrialização
espanhóis e Formação do
209 cap. portugueses movimento operário
Revolução de 32
Discussões políticas e
trabalhistas
Mão de obra feminina
Luta pela terra
Alfabetização
América4 14/03/2005 Brasil/EUA/Améric Imigração de
a a Latina brasileiros para os
05/11/2005 Diferenças entre EUA.
brasileiros, Homossexualidade
203 cap. americanos e outros Infidelidade
povos Convenções sociais
latinoamericanos. Religiosidade
Diversidade/pessoas
com deficiência
(cegueira)

2 Ver: https://memoriaglobo.globo.com/entretenimento/novelas/o-clone/ Acesso


em 01/08/2022.
3 Ver: https://memoriaglobo.globo.com/entretenimento/novelas/esperanca Acesso

em 01/08/2022.
4 Ver: https://memoriaglobo.globo.com/entretenimento/novelas/america/ Acesso

em 01/08/2022.

315
Caminho 19/01/2009 Brasil vs. Índia Desobediência às
das a Cultura indiana em tradições
Índias5 11/09/2009 contraponto com Sociedade de castas
costumes brasileiros Esquizofrenia
203 cap. Infidelidade
Futilidade
Educação dos filhos
Salve 22/10/2012 Brasil/Turquia/Euro Pacificação das
Jorge6 a pa comunidades cariocas
17/05/2013 Imigração de Papel da mulher na
brasileiros e tráfico sociedade
179 cap. de mulheres Homossexualidade
Rio de Janeiro: feminina
favela x asfalto Roubo de crianças
Sol 29/08/2016 Brasil/Japão/Itália História de dois
Nascente7 a Diferenças entre a amigos vindos de
21/03/2017 cultura origens diferentes
japonesa/brasileira/
175 cap. europeia

Órfãos da 02/04/2019 Brasil/Síria/África Papel da mulher na


Terra8 a Imigração de sociedade
28/09/2019 refugiados sírios Feminismo
para o Brasil Acolhimento
154 cap. Diferenças culturais Laços familiares
Palestinos vs. Tecnologia/internet
judeus
Fonte: Próprio autor com dados de Memória Globo/GShow

5 Ver: https://memoriaglobo.globo.com/entretenimento/novelas/caminho-das-
indias/ Acesso em 01/08/2022.
6 Ver: https://memoriaglobo.globo.com/entretenimento/novelas/salve-jorge/
Acesso em 01/08/2022.
7 Ver: http://gshow.globo.com/novelas/sol-nascente/ Acesso em 01/08/2020.

8 Ver: https://memoriaglobo.globo.com/entretenimento/novelas/orfaos-da-terra/

Acesso em 01/08/2022.

316
Ao analisarmos as temáticas presentes nas telenovelas
observamos que a discussão de questões sobre alteridade fica por
conta, na maior parte, das diferenças culturais e do papel do
homem e da mulher nas diferentes sociedades retratadas. Há o “lá
e o aqui”, o que também reforça essa diferenciação entre quem é o
outro e o que somos. Acreditamos que esse recurso de reforçar
diferenças é uma tentativa de tornar o entendimento sobre outra
cultura palatável para o telespectador brasileiro. Essa forma de
construção da trama e do enredo é algo já recorrente e perpassa as
obras ficcionais de diferentes autores, como uma espécie de
“manual do como fazer”: um contrato firmado, uma relação com o
telespectador que já viu outras telenovelas sobre imigração e possui
um repertório esperado de entendimento deste tipo de telenovela
que aborda o estrangeiro.
Ao mesmo tempo, a telenovela brasileira abre espaço para a
discussão de outros temas de atualidade, uma forma de
engajamento do público e de reforço da verossimilhança
(MUNGIOLI, 2012) na história. Assim, temos inúmeros assuntos
abordados que são de interesse de discussão com o público, como
dependência química, esquizofrenia, roubo de crianças, feminismo,
laços familiares, homossexualidade, internet, dentre tantos outros
que estão presentes na sociedade e que alavancam o público para a
telenovela, gerando engajamento à trama. São questões e temáticas
que marcam o jeito de fazer a telenovela brasileira.

Alteridade em Órfãos da Terra: o eu, o outro e o discurso na


ficção televisiva

De acordo com Mauro (2019) a telenovela “é uma obra


localizada social e historicamente e por isso dialoga com o seu
tempo, assim faz-se pertinente tratar suas representações em
dialogia com o que se considera real”, algo que reflete, por
exemplo, a história dos imigrantes no Brasil. Elementos que,
segundo a autora, também estão presentes na construção dos
personagens e “nas diferentes instâncias que formam o seu

317
discurso – percurso narrativo, estética e expressão no geral”
(MAURO, 2019, p.30).
Hall (2016) fala em dois tipos de representações: (1) como o ato
de retratar algo por descrição ou imaginação (algo importante no
processo de construção das personagens) e outro (2) como simbologia,
amostra ou substituto. A imposição de um poder na sociedade,
segundo o autor, tem estreita relação com essas representações sociais,
algo simbólico que envolve dominadores e dominados.
Segundo Campos (2007), no drama esses personagens são
definidos “principalmente através dos seus jogos de ações” (p.112).
Ao escolher um personagem principal, o autor pode estabelecer
“uma referência a partir da qual a narrativa será composta e, mais
tarde, recebida pelo espectador - e, assim, dar unidade e facilitar
composição e recepção” (p. 116).
Consideramos estes conceitos para analisarmos o discurso da
telenovela de construção de uma alteridade e sua relação dialógica
com as representações sociais e a midiatização, algo que para
Charaudeau (2012, p. 25) é realizado também a partir das
“condições semiológicas da produção - aquelas que presidem à
própria realização do produto midiático (...)” e que abrangem a
relação entre o externo-interno, ou seja, o discurso encontra-se, ele
próprio, “pensado e justificado por discursos de representação
sobre o como fazer e em função de qual visada (...)”.
Para analisarmos a questão da alteridade na ficção seriada e a
construção do discurso de um eu e de um outro nos processos
comunicacionais, gostaríamos de fazer uma breve análise das
origens recentes da questão da alteridade no campo da filosofia,
história, da relação entre pensamento, linguagem e ciências sociais.
A palavra alteridade tem origem do latim alter – o outro – e é
exatamente essa análise que nos interessa: a condição do
estrangeiro, do diferente ou do considerado pela sociedade como
exótico. A discussão da questão do eu e do outro remonta aos
estudos de Martin Buber e Emmanuel Levinas, que criaram a
filosofia da alteridade, buscando a questão da intersubjetividade
em seus estudos.

318
Todorov contribui com a discussão da alteridade no campo da
história, ao analisar em “A Conquista da América: a questão do
outro” a intersubjetividade dos colonizadores espanhóis em seu
momento de conquista de territórios, em que milhões de indígenas
foram subjugados e mortos. Para Todorov (1993, p.154) “a pedra de
toque da alteridade não é o tu presente e próximo, mas o ele ausente
ou afastado”.
Duschatzky e Skliar (2001) analisam a alteridade, entre outros
pontos de vista e discussões, como fonte de todo mal, de
demonização do outro que pensa diferente e por isso precisa ser
eliminado, “ausentado”, numa estratégia de (in) visibilidade social,
de inclusão ou exclusão do lugar de fala. Assim, dentro desse
contexto de análise, o diferente só pode ocupar um lugar marginal.

A Modernidade construiu, neste sentido, várias estratégias de


regulação e de controle da alteridade que, só em princípio, podem
parecer sutis variações dentro de uma mesma narrativa. Entre elas a
demonização do outro: sua transformação em sujeito ausente, quer
dizer, a ausência das diferenças ao pensar a cultura; a delimitação e
limitação de suas perturbações; sua invenção, para que dependa das
traduções oficiais; sua permanente e perversa localização do lado
externo e do lado interno dos discursos e práticas institucionais
estabelecidas, vigiando permanentemente as fronteiras - isto é,
a ética perversa da relação inclusão / exclusão -; sua oposição a
totalidades de normalidade através de uma lógica binária; sua
imersão e sujeição aos estereótipos; sua fabricação e sua utilização,
para assegurar e garantir as identidades fixas, centradas,
homogêneas, estáveis etc (DUSCHATZKY, S.; SKLIAR, 2001, p. 120).

Vigostsky (1998, 2014), ao falar da inter-relação entre o


pensamento e a linguagem e da construção dos processos
cognitivos, explica que “o discurso de si para si tem origem na
diferenciação do discurso para os outros” (1998, p.132-133). Para
ele, os processos cognitivos superiores são desenvolvidos a partir
das relações interpessoais e da interação com esses outros, sejam
eles signos, outros seres humanos ou objetos. Essa construção está

319
dentro do mundo da cultura, provoca mudanças e contribui para a
formação do “eu”. Assim, a linguagem acaba funcionando como
um veículo, um sistema de mediação que vai modular essa relação
de alteridade. “A partir das generalizações primitivas, o
pensamento verbal eleva-se ao nível dos conceitos mais abstratos.
Não é simplesmente o conteúdo de uma palavra que se altera, mas
o modo pelo qual a realidade é generalizada e refletida em uma
palavra” (p. 105).
A discussão da alteridade é uma questão basilar para os
autores do Círculo de Bakhtin e está presente em vários momentos.
Destacamos aqui o exemplo presente na “arquitetônica do mundo
da vida”. Bakhtin (2010) defende que o eu, traduzido como um ser
ativo e participante, dialoga com o outro de maneira responsável,
ativa e criativa e essa relação se insere na vida e na cultura.

Para minha consciência ativa e participante, esse mundo, como um


todo arquitetônico, é disposto em torno de mim como único centro
de realização do meu ato; [...] me realizo em minha ação visão, ação
pensamento, ação-fazer prático. Em correlação com o meu lugar
particular que é o lugar do qual parte a minha atividade no mundo,
todas as relações espaciais-temporais pensáveis adquirem um
centro de valores em volta do qual compõem num determinado
conjunto arquitetônico concreto estável e a unidade possível se
torna singularidade real. [...] No interior do sistema, cada
componente desta unidade é logicamente necessário, mas o sistema
em si no seu todo é apenas algo relativamente possível; é somente
em correlação comigo, enquanto penso ativamente, somente em
correlação com o ato do meu pensamento responsável que tal
sistema se incorpora na real arquitetônica do mundo vivido, como
seu momento, se enraíza na sua real singularidade, significativa
como valor (BAKHTIN, 2010, p. 118-120).

A arquitetônica do mundo da vida, para o autor, só pode


acontecer dentro da relação com os outros, no universo do concreto
e do real, dos atos comunicativos, seus valores, da “historicidade
real do existir-evento”, esse acontecimento que é existir e ser dentro

320
do mundo concreto, estabelecido e vivido dentro do mundo de
valores desse eu e desse outro em três dimensões: eu para mim, eu
para o outro e o outro para mim (BAKHTIN, 2010).
Outro debate que traz luz à questão da alteridade em Bakhtin
é a sua análise em “Reformulação do livro sobre Dostoievski", onde
ele analisa (2003) a tomada de consciência desse eu com a revelação
para o outro, através e com o auxílio desse outro.

Todo interior não se basta a si mesmo, está voltado para fora,


dialogado, cada vivência interior está na fronteira, encontra-se com
outra, e nesse encontro tenso está toda a sua essência [...] Ser significa
ser para outro e, através dele, para si. O homem não tem um território
interior soberano, está todo e sempre na fronteira, olhando para
dentro de si ele olha para o outro nos olhos ou com os olhos do outro
[...] Eu não posso passar sem o outro, não posso me tornar eu mesmo
sem o outro; eu devo encontrar a mim mesmo no outro, encontrar o
outro em mim (no reflexo recíproco, na percepção recíproca)
(BAKHTIN 2003, p. 341 e 342).

Dentro do nosso recorte de análise, Lobato (2017) delimita dois


conceitos importantes para discussão: o de alteridade social e o de
alteridade geográfica. Ao falar da alteridade sociocultural, o autor
analisa a diferença como algo que:

(…) reside, acima de tudo, nas práticas, nos costumes e hábitos


culturais; é o famoso estrangeiro que está ao lado, gerado e identificável
a partir de processos contra-narrativos, que pode ser identificado das
mais diversas maneiras no campo das representações – em matérias
de telejornal que mostram a vida no sertão brasileiro e no bioma
amazônico, comumente associados ao exótico nacional, por exemplo;
em documentários sobre o cotidiano de comunidades periféricas de
grandes cidades; em obras de ficção que abordam os costumes
religiosos de determinados grupos sociais do próprio país; em obras
literárias que versam sobre subculturas urbanas e populações
tradicionais; entre outros (LOBATO, 2017. p. 69).

321
O autor também busca definir a questão da alteridade
geográfica, aquela que é:

comumente associada aos enunciados que tratam de países exóticos


e locais pretensamente misteriosos para o homem ocidental, diz
respeito à diferença produzida discursivamente para dar conta de
comunidades espacialmente distantes daquelas a que a narrativa se
destina; é o caso, por exemplo, de uma reportagem jornalística que
aborda os modos de vida e costumes de um país no Oriente Médio –
ou de uma telenovela parcialmente ambientada na Europa Central
ou na África (LOBATO, 2017. p. 69).

Partindo destes princípios, temos em Órfãos da Terra a família


síria que é obrigada a sair da sua casa na fictícia cidade de Fardús
depois de um bombardeio, marcando um dos momentos de
produção de sentido de alteridade da trama.
Eles fogem para o campo de refugiados no Líbano, lugar onde
a personagem Laila (Júlia Dalavia) se apaixona por Jamil (Renato
Góes). O sentimento é recíproco, mas eles enfrentam obstáculos
para viver esse amor. O maior deles é o sheik Aziz Abdallah
(Herson Capri), que nutre por ela uma verdadeira obsessão e
oferece dinheiro à família para casar-se com ela. O antagonista
representa um tipo de alteridade sociocultural, do machismo, do
poder do homem sobre a mulher numa sociedade patriarcal, do
poder econômico e da opressão em relação ao papel do feminino.
Mas Laila é uma heroína, uma mulher de ação, de iniciativa, que
toma as rédeas do próprio destino e vive um amor romântico, enfrenta
o conflito com o sheik que tentou forçar um casamento e realiza um
amor que de início era considerado impossível com Jamil.
A vinda da família para o Brasil representa outro momento de
alteridade: é o local da libertação, de viver plenamente o que se é,
de construir um “eu” entre duas culturas, entre dois mundos
possíveis.
Abordando a questão dos mundos possíveis - termo usado por
ECO (1994) para se referir ao mundo criado pelo escritor que à

322
semelhança do mundo real é reproduzido na obra literária - e da
relação com o real, Mungioli (2012) afirma que a ficção não está
baseada ou fundada na imitação da realidade, mas sobre o
princípio da verossimilhança, de uma realidade possível, da
criação de um mundo ficcional que se molda sobre as relações
simbólicas construídas socialmente.
A narrativa de Órfãos da Terra trabalha essa construção social e
ressalta ainda a construção da diferença e a questão identitária,
questões analisadas por Kathryn Woodward (2000), Hall (2006) e
Bhabha (1998). Woodward defende que o jogo de oposições -
baseado na interação social que demarca o próximo e o distante,
suas fronteiras e oposições, molda a identidade “ao dar sentido à
experiência e ao tornar possível optar, entre as várias identidades
possíveis, por um modo específico de subjetividade”
(WOODWARD, 2000, p.18-19). Segundo a autora, essa demarcação
da diferença é construída com a determinação de juízos de valor,
disputas de poder e inserção de polos opostos.

As formas pelas quais a cultura estabelece fronteiras e distingue a


diferença são cruciais para compreender a identidade. A diferença é
aquilo que separa uma identidade da outra, estabelecendo distinções,
frequentemente na forma de oposições (...) as identidades são
construídas por meio de uma clara oposição entre “nós” e “eles”
(WOODWARD, 2000, p.41).

Hall (2006) afirma que “as identidades nacionais estão em


declínio, mas novas identidades – híbridas – estão tomando seu
lugar” (HALL, 2006, p. 69), o que para Bhabha (1998) abre brechas
ou fissuras – por meio das quais os conflitos identitários ganham
vozes e visibilidades.

A fronteira que assinala a individualidade da nação interrompe o


tempo autogerador da produção nacional e desestabiliza o
significado do povo como homogêneo. O problema não é
simplesmente a ‘individualidade’ da nação em oposição à alteridade
de outras nações. Estamos diante da nação dividida no interior dela

323
própria, articulando a heterogeneidade de sua população (BHABHA,
1998, p.209).

Um dos fios principais da trama de Órfãos da Terra é o


posicionamento da mulher frente a uma cultura outra, que se
configura pela busca de Laila pela realização do amor romântico e
tentativa de se libertar do papel de submissão feminina de sua
cultura de origem.
A personagem volta a esse outro lugar, que ressalta a
alteridade e a diferença, ao aceitar se casar com o sheik para pagar
o tratamento do irmão, que ficou gravemente ferido. Porém,
quando o irmãozinho morre, foge para o Brasil com seus pais,
irritando o futuro marido, que envia atrás dela Jamil, seu braço-
direito e noivo de sua filha, Dalila, para que traga ela à força. Jamil
e Laila, apaixonados, se tornam fugitivos de Aziz.
Na ficção seriada e na televisão há uma combinação de
linguagens e códigos verbais, sonoros e visuais. Assim, em muitos
contextos, há uma hibridização dos gêneros ficcional, jornalístico e
documental, onde o real e o ficcional se intercalam conforme
argumenta Motter (2003):

O estrato realista, essa base que sustenta a vida cotidiana da


personagem, constitui-se numa, pois, potente fonte de identificação,
num elo entre personagem-telespectador, entre ficção e realidade.
Boa parte desse trabalho está a cargo da cenografia (com seu entorno,
produção, etc.) de televisão, de teledramaturgia, ou melhor, de
telenovela. Quando a esse estrato realista se junta uma produção que
também persegue o real, tematiza questões sociais candentes obtém
a integração que facilita sua inserção na realidade concreta e tende a
ganhar total adesão do público, não só telespectador, mas envolve
também os que não fazem parte da audiência medida e, mesmo
assim, participam indiretamente e acabam formando opinião
(MOTTER, 2003, p. 169).

Órfãos da Terra une histórias de quem se dedica a ajudar


refugiados a reconstruírem suas vidas e relatos de pessoas que

324
tiveram que abandonar seus países, que entendem o que é deixar
sua nação para reconstruir a vida em outro lugar, num outro
modelo cultural, com novos e velhos valores. Como já dissemos
anteriormente, muitas das cenas da trama reproduzem, direta ou
indiretamente, fatos vividos por refugiados, mostrados e relatados
pelo jornalismo diário e reconstruídos em ambiente ficcional.

Considerações

A telenovela Órfãos da Terra empregou na composição do


discurso verbo-visual cenas que reproduzem a brutalidade de
situações que inúmeros imigrantes e refugiados estão sujeitos em
seus processos de deslocamento em busca de melhores condições
de vida, como, por exemplo, a travessia a pé da Síria rumo ao
Líbano, o naufrágio no Mar Mediterrâneo e o posterior resgate da
família Faiek, e a vida no campo de refugiados - que foi
reconstruído com barracas originais doadas pela Organização das
Nações Unidas para compor a ambientação. Além disso, abordou e
reconstruiu fatos trazidos pela imprensa diária, como a morte do
menino sírio Aylan Kurdi, de três anos, encontrado morto em uma
praia da Turquia em 2015 depois de uma travessia mal sucedida,
com naufrágio do barco.
Ao mesmo tempo, a telenovela recorreu a elementos tradicionais
do melodrama, como problemas familiares, amor romântico e
conflitos que movem a ação dos protagonistas em contraposição aos
vilões, que buscam impedir a realização desse amor.
A obra de ficção também se utilizou ao longo de toda a trama
de elementos de alteridade: a guerra na Síria e o campo de
refugiados no Líbano em oposição à vida no Brasil; o papel da
mulher na cultura árabe e a luta pela afirmação da personagem
principal, o restabelecimento de uma vida longe da guerra civil na
Síria e o debate sobre a situação de milhares de pessoas que se
deslocam pelo mundo em busca de uma vida melhor.
Assim, a questão da alteridade inseriu a trama no quadro das
narrativas sobre imigrantes/culturas estrangeiras produzidos pela

325
televisão brasileira no século XXI, contrapôs Brasil e Síria, mostrou
diferenças culturais e semelhanças entre os dois países.
Conforme nossa análise, a telenovela ampliou a visibilidade de
imagens e histórias de imigrantes e refugiados amplamente
divulgadas na imprensa de maneira geral, na medida em que,
como enfatiza Motter (2003, p. 260), situa e contextualiza a trama e
os personagens “no espaço da individualidade, da afetividade, das
inter-relações sociais, do político, do ético e, enfim, do humano”.
Uma história contada na televisão que ajudou a mudar a
percepção de muitos brasileiros sobre os sírios e a cultura árabe.
Tais evidências concretizam-se tanto na fala das autoras como nos
dados disponibilizados pelo Caderno Globo9, segundo os quais, 57%
das pessoas que assistem à telenovela declararam ter mudado de
opinião em relação aos refugiados (JEBAILI, 2019). Pode-se dizer
que, por meio da teledramaturgia, ocorreu produção de sentidos
acerca de refugiados em razão do tratamento dispensado pela
trama. Desse total, 92% dos entrevistados consideraram o assunto
extremamente relevante, 76% passaram a se interessar mais pela
questão, 88% se sensibilizaram com o drama dos refugiados e 41%
ampliaram o conhecimento sobre o tema.
De acordo com os resultados dessa mesma pesquisa, muitas
pessoas revelaram que, anteriormente à telenovela, tinham medo
de quem usava lenço na cabeça e que passaram a olhar para essas
pessoas de uma outra forma. Outras se interessaram em dar aula
para refugiados, contrapondo a visão vigente não só no Brasil, mas
em boa parte do mundo - de que os refugiados vieram para
“ocupar” o lugar de brasileiros no mercado de trabalho.
Concluímos que o gênero melodramático confere à história
não apenas o caráter emocional necessário a uma telenovela, mas
também a densidade das relações humanas, além de redimensionar
as perdas e os ganhos de pessoas em situações extremas. Tal
construção denota a intencionalidade de misturar o factual e o real

9 http://estatico.redeglobo.globo.com/2019/08/26/caderno_globo_deslocamentos
_e_refgios.pdf

326
ao ficcional e diferentes tipos de alteridade, produzindo sentidos e
ampliando possibilidades de compreensão de outras realidades.

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329
330
O Cronotopo e o Homem na série Segunda Chamada

Gabriela Torres1

Com base nas discussões e análises realizadas por Mikhail


Bakhtin em Teoria do romance II: As formas do tempo e do cronotopo, o
presente texto se presta a refletir sobre possíveis leituras acerca das
narrativas presentes nas séries ficcionais seriadas produzidas pela
televisão ou para plataforma streaming, tomando como objeto a
série Segunda Chamada, da Globo em parceira com a produtora O2
Filmes. Para tanto, temos como base a noção de cronotopo
desenvolvida por Bakhtin que diz respeito ao processo de
assimilação do tempo (cronos) e do espaço (topos) históricos reais,
assim como do homem histórico e real pela literatura. O autor russo
entende cronotopo como “interligação essencial das relações de
espaço e tempo artisticamente assimiladas pela literatura” (2018, p.
11). Bakhtin analisa a construção histórica e estilística do romance
partindo do romance grego e indo ao romance do francês François
Rabelais (1483 – 1553) buscando encontrar, com base no estudo do
gênero e de suas modalidades, a imagem mesma do homem na
literatura. Para Bakhtin a importância da relação espaço-tempo é
tamanha que molda a própria narrativa, pois “o cronotopo é o lugar
onde os nós da narrativa são atados e desatados. Pode-se dizer sem
restrição que a eles [os cronótopos] pertence o significado que
molda a narrativa” (BAKHTIN, 1988 apud MORSON, 2008, p. 386).
Como é possível enxergar o “gênero” da narrativa ficcional
seriada a partir do cronotopo bakhtiniano? E de que forma essa
compreensão construída por Bakhtin pode contribuir para leitura
das peças audiovisuais? São as perguntas que movem este artigo.
Antes, porém, faz-se necessário discutir a possibilidade de
compreendermos a narrativa ficcional seriada como gênero.
Pelegrini e Mungioli (2013) discutem a necessidade de se pensar o

1 Doutoranda em Ciências da Comunicação pela ECA-USP, bolsista CAPES.

331
formato/gênero seriado com parâmetros próprios e “dentro de um
quadro complexo de interpretação do texto televisual, ou seja,
dentro de um quadro que levasse em conta a materialidade do texto
(histórica, social, composicional), as condições de produção, o
sujeito do discurso” (p. 23). Mittell (2012) destaca a complexidade
narrativa, surgida nas últimas décadas, pela hibridização das
formas clássicas seriadas (a episódica e a contínua2) dando lugar a
uma linguagem própria desse produto audiovisual. De acordo com
Malcher (2001, p. 4) a narrativa ficcional “se configura em um
modelo de significação que trabalha constantemente no sentido de
produzir coerência no assunto, a partir da heterogeneidade de
efeitos que são mobilizados e estruturados” . Para além de se
conformar em produto a ser consumido, a narrativa ficcional
seriada promove uma significação própria, daí a importância
crescente de seu estudo e compreensão.
Embora ainda não exista uma posição conclusiva no campo
Comunicacional no que diz respeito ao gênero da narrativa
ficcional, talvez por sua recente existência e por apresentar
mudanças em sua produção e consumo. Produtos audiovisuais
seriados ainda se utilizam do formato episódicos convencionais e
de arcos narrativos episódicos, porém experimentações não
convencionais vêm se construindo no intuito de cativar um público
cada vez mais participativo e fiel e se fazer competitivo nos
mercados locais e internacionais. Mittell afirma que “(...) as
discussões ressaltam a complexidade narrativa crescente e o
experimento de novos parâmetros, acredito que a televisão dos
últimos 20 anos será lembrada como uma era de experimentação e
inovação narrativa, desafiando as regras do que pode ser feito
nesse meio” (2012, p. 31).

2 Na narrativa episódica a trama tem início, meio e fim em um mesmo episódio,


trata-se de uma história pontual; enquanto que na contínua, o arco dramático
atravessa vários episódios, muitas vezes sobrepondo-se concomitantemente a
narrativas outras.

332
Segundo Machado (1995), ao lançar luzes sobre elementos do
romance, generalidades filosóficas e sociais, racionalidades,
relações de causa e efeito que gravitam em torno das apreensões do
tempo e do espaço, e sobre o momento histórico no qual a narrativa
está inserida, o cronotopo torna perceptíveis especificidades das
condições reais e históricas e também individuais e sociais da obra.
Dessa forma, gêneros narrativos como romance de aventura,
biografia, epopeia, romance rabelaisiano representam para Bakhtin
formas de assimilação do tempo e de espaços históricos numa
particular dinâmica social. Em que pese as séries audiovisuais
serem construídas a partir de uma narrativa, acreditamos ser
possível realizar leitura dessas obras a partir dessa perspectiva
bakhtiniana, “A linguagem é essencialmente cronotópica como um
acervo de imagens” (BAKHTIN, 2018, p. 227). Compreender a
narrativa ficcional seriada sob a égide do cronotopo pode
contribuir para o amadurecimento do olhar sobre esse objeto.
No presente artigo partiremos das análises bakhtinianas do
cronotopo nos romances grego, aventuresco de costumes e de
cavalaria. Deixaremos de lado o romance antigo autobiográfico e o
romance rabelaisiano por compreendermos que o primeiro por sua
natureza foge em demasia do formato do romance ficcional seriado
analisado na atualidade e o segundo parte de uma proposta
fantástico realista que também se distancia do tipo de narrativa que
pretendemos estudar, mais próxima de uma proposta realista, de
verossimilhança, como é o caso de Segunda Chamada. A série, que
possui duas temporadas, fala sobre a rotina noturna de uma escola
voltada à educação de jovens e adultos de uma cidade grande, suas
dificuldades e vicissitudes. O tom realista da obra beira muitas
vezes a denúncia de uma realidade dura tanto educacional quanto
social, na qual pessoas que se encontram à margem da sociedade
lutam para sobreviver e enfrentam os mais variados desafios. Antes
de falarmos desta série lançada em 2019, contudo, é preciso lançar
um olhar sobre as concepções bakhtinianas de tempo e espaço nas
narrativas ficcionais.

333
O cronotopo no romance grego

A estrutura romanesca grega é vista por Bakhtin como


referência para a literatura que se segue, principalmente o romance
europeu, ainda que levemos em conta o fato de a assimilação do
cronotopo real e histórico na literatura ter se dado de forma
complexa e descontínua.
Por pretender olhar para o homem real histórico e sua imagem
na literatura, Bakhtin lança luzes sobre a figura do herói dos
romances gregos, por entender que este encarna a representação do
homem real histórico da época. Trata-se de um homem repleto de
virtudes físicas e de caráter inabalável que se submete às mais
variadas aventuras por força das contingências e não por vontade
própria. Esse herói, de acordo com Bakhtin, não planeja nem procura
os acontecimentos, antes é atingido pelos reveses, pelos desejos dos
deuses ou por seu próprio destino contra os quais precisa lutar. Até
mesmo as previsões futurísticas, tão características dos oráculos
gregos, servem apenas para preparar os heróis para os sofrimentos e
as adversidades que estão por vir – a eles não cabe subverter o que
pelo destino ou pelos deuses foi traçado.
Ao final das aventuras, os heróis gregos, praticamente ilesos,
retornam às suas vidas como se nada lhes houvesse acontecido e
tempo algum tivesse transcorrido. As vicissitudes enfrentadas
servem-lhes apenas para enaltecer seus atributos heróicos
(bravura, beleza, força, velocidade, resistência, determinação,
fidelidade). O tempo, assim como as inúmeras peripécias, não
afetam o herói. Pode-se dizer que o infortúnio é o fator
desencadeador da trajetória do herói grego e o destino, o
determinante.
O tempo não deixa marcas nem mesmo pelos cenários e
lugares por onde passa o herói, os quais se apresentam abstratos,
imprecisos e generalistas: países são aproximados em casos de
fugas; caminhos, encurtados nos momentos de urgência;
paisagens, alternadas ao bel-prazer, das aventuras a serem
vivenciadas. “O cronotopo aventuresco se caracteriza justamente

334
pelo abstrato vínculo técnico do espaço e do tempo, pela
reversibilidade dos elementos da série temporal e por sua
mobilidade no espaço” (BAKHTIN, 2018, p. 32). O espaço da ação
do herói (floresta, deserto, montanha, mar) é, então, desvinculado
de qualquer contexto histórico ou cultural, sem conexão de forma
substancial a especificidades de uma região ou de determinada
cultura. Os lugares aparecem no enredo da aventura “como uma
extensividade vazia e abstrata” (idem, p. 32), pois qualquer
concretização limitaria o poder do acaso, restringindo as
possibilidades da aventura. É, pois, a junção dessa abstração do
tempo e do espaço - ausência de caracterização das peculiaridades
de determinado lugar ou região – que tornam possíveis as várias
aventuras intempestivas e sem vínculos.

O universo dos romances gregos é um universo abstrato-alheio e,


ademais, é alheio do início ao fim, uma vez que em nenhuma parte
dele aparece a imagem do universo pátrio de onde veio e de onde
observa o autor. É por isso que nada nele limita o poder absoluto do
acaso, e que todos esses raptos, fugas, prisões, libertações, mortes
fictícias, ressurreições e outras aventuras se sucedem com tão
surpreendentes facilidade e velocidade (BAKHTIN, 2018, p. 34,
grifos do autor).

Ainda dentro do espectro de abstração do espaço, chama a


atenção de Bakhtin a forma de descrição (lugares, vestimentas,
objetos, animais ou até de pessoas) que, embora muitas vezes rica
em detalhes, dá-se de forma descontextualizada, isolada. Como
não há um universo comum, um universo habitual narrado no qual
se inserem as descrições realizadas, elas ganham um efeito de
curiosidades, de peculiaridades apartadas, como se objetos e
paisagens fossem exclusivos, exóticos. Consequência do cronotopo
do romance grego, que difere do cronotopo do romance idílico e do
cronotopo do romance mitológico3, é a estruturação de uma lógica

3Importante esta ressalva do autor para que não confundamos o romance grego
com o da mitologia grega, uma vez que esta última possui densidade cronotópica,

335
interna que transforma os motivos do romance grego removendo
densidade e profundidade, desvinculando o contexto, a paisagem,
a cultura em prol do enredo da aventura.

Assim, é com essas curiosidades, raridades isoladas e desconexas que


são preenchidos os espaços do universo alheio no romance grego.
Essas curiosidades e raridades autossuficientes são tão casuais e
inesperadas como as próprias aventuras: são feitas do mesmo
material – os mesmos “súbitos” congelados, que se tornaram objetos
aventurescos, frutos do mesmo acaso (idem, p.35).

Nesta literatura de tempo abstrato e de universo alheio, o herói


apresenta-se despido de iniciativa e de transformações. Carente de
iniciativas, apenas executa fisicamente ações a fim de transpor as suas
provações e reafirmar a sua identidade, são suas motivações
particulares que lhe movem – o reencontro com sua amada - o que faz
com que o homem do romance grego, mesmo quando ocupa um lugar
público, seja um homem privado. Possíveis fatos históricos ou
acontecimentos políticos só ganham significado se estiveram
atrelados de alguma forma a aspectos privados da saga do herói.

O homem é tomado como uma entidade particular e privada, não


tem nenhuma ligação social substancial: com o país, a cidade, a
linhagem, a família. É um herói solitário, mas sem missão. Não é o
homem público da pólis. As ações, por seu turno, não têm nenhum
caráter sociopolítico. Esse romance trata do amor e das provações a
que esse ser humano é submetido. Os fatos sociais (por exemplo, uma
guerra) só adquirem sentido por sua relação com os acontecimentos
da vida particular (FIORIN, 2011 p. 160).

Ainda, de acordo com Bakhtin, o cronotopo do romance grego


é o mais abstrato de todos os cronotopos romanescos analisados e
o tempo e o homem são os mais estáticos, “Nele o mundo e homem
estão absolutamente acabados e imóveis. Aí não há qualquer

ou seja, uma representação do tempo e do espaço definida e profunda, assim como


de homem que se transforma.

336
potencialidades de formação, crescimento e mudança” (BAKHTIN,
2018, p. 44 – 45).

O cronotopo no romance aventuresco de costumes

O tempo no romance aventuresco de costumes é bem diferente


do tempo do romance grego, de acordo com Bakhtin, a começar
pela trajetória do herói, fortemente marcada por mudanças
pessoais. Diferentemente do herói grego que pouco ou nada muda,
o herói aventuresco muda em sua essência ao longo da trama, ou
melhor, a trama é centrada na mudança mesma do herói. Essa
transformação tangencia a imagem do ser humano que “se constrói
com base nos motivos da metamorfose e da identidade (...). A partir
do homem, os motivos de metamorfose/identidade migram para
todo o universo humano – para a natureza e os objetos criados pelo
próprio homem” (BAKHTIN, 2018, p. 48 – 49). Imagens das
estações de ano ou das etapas de crescimento de plantas são bem
distintas entre si, possuem características próprias, e numa camada
mais profunda identificam-se à unidade dos processos históricos,
agrícolas, naturais presente em todas elas.
Da mesma forma, as transformações vivenciadas pelo herói
podem ser lidas em várias camadas. Na obra analisada por Bakhtin,
Apuleio, a metamorfose por que passa o protagonista de nome
Lúcio assume um caráter mágico extraordinário, privado e isolado,
pois apenas ele, de maneira mágica e acidental se transforma em
quadrúpede e passa a viver entre os humanos como tal. “Mas
mesmo assim, sobretudo, graças à influência direta da tradição
direta folclórica, a ideia de metamorfose ainda mantém bastante
energia para abranger o conjunto do destino vital do homem em seus
momentos críticos fundamentais. Nisso reside sua importância para
o gênero romanesco” (BAKHTIN, 2018, p. 2018, grifos do autor).
O processo da metáfora de Lúcio, ainda que iniciado por um
incidente, pelo acaso, move o romance ao instaurar o momento de
crise, quando o protagonista inocente e imaturo se transforma em
burro; apresenta diferentes momentos e fases deste “ser” nas

337
diversas situações por que passa; e, por fim, atinge o renascimento
ou restabelecimento, quando o protagonista volta à forma humana,
porém um humano bem diferente do que antes fora. Segundo
Bakhtin, o tempo aventuresco também se caracteriza por ser o
tempo dos acontecimentos excepcionais e o tempo da
simultaneidade casual e da simultaneidade de tempos.
Os acontecimentos não são de cunho externo, antes definem a
vida do herói, fazem parte de sua transformação enquanto ser;
logo, diferentemente do tempo no romance grego, esse tempo deixa
profundas impressões no protagonista e em toda a sua vida. Apesar
da forte influência mitológica ou teológica, o homem
representando no romance aventuresco de costumes revela um
caráter privado e isolado, pois sua transformação parte do caráter
individual e permanece nele. A responsabilidade pelo processo de
transformação, ainda que não desejado, é sua, assim como a
redenção ao final do romance4. O cenário externo e demais
personagens permanecem estáticos, sem alteração. “O homem
muda, sofre uma metamorfose de modo absolutamente
independente do mundo; o próprio mundo permanece imutável.
Por essa razão, a metamorfose é de caráter privado e não criador”
(BAKHTIN, 2018, p. 57 – 58).
Já o espaço é concreto e substancial, pois seu sentido é
completado pelo sentido da relação do herói com o seu destino.
Durante o encontro, o embate, a separação, a fuga, o protagonista
luta com ele mesmo e atravessa a estrada da vida rumo ao seu
amadurecimento e ao seu destino final. “O deslocamento do
homem no espaço e suas errâncias perdem aqui aquele caráter
técnico-abstrato da combinação das determinações de espaço e
tempo (proximidade – distância, simultaneidade –
heterotemporalidade) que observamos no romance grego” (idem,

4 A causalidade dá vazão a fatos no romance aventuresco, a causalidade do tempo


permite situações ou impede outras, e ainda assim ao herói também cabe um papel
de responsabilidade sobre o desencadeamento dos fatos e de sua própria
transformação.

338
p. 59). Por fim, Bakhtin destaca o aspecto cotidiano, da vida privada
relatado no romance aventuresco de costumes. O protagonista é
testemunha das agruras e dos segredos alheios, ele mesmo, porém,
relaciona-se de forma distante e inadaptada com esse dia-a-dia.

(...) a personagem central no fundo não comunga nesse ambiente; ela


passa pela esfera dos costumes como um homem de outro mundo.
Mais amiúde ele é um pícaro, que alterna entre as diferentes linhas
dos costumes e não ocupa no cotidiano nenhum espaço definido, que
joga com o cotidiano, não o leva a sério; ou é um ator ambulante,
travestido de aristocrata, ou alguém que nasceu nobre mas
desconhece sua origem (um “enjeitado”). O cotidiano é a baixa esfera
do cotidiano, da qual o herói procura se libertar, e com a qual ele
nunca se funde interiormente” (BAKHTIN, 2018, p. 60)

O herói do romance aventuresco vive o cotidiano e percebe os


embates e os defeitos humanos nos demais entes, mas ele mesmo não
se envolve, não se mescla a essa vida mediana, pois é um inadaptado
e tem seus próprios dramas internos para lidar. Perfaz uma trajetória
quase alheia à vida comum, embora esteja inserido nela.

O cronotopo no romance de cavalaria

No romance de cavalaria, segundo Bakhtin (2018), o herói é


uma pessoa desinteressada que busca as aventuras, geralmente
prazerosas e interessantes, coloca-se propenso, provoca-as e, até,
anseia por elas, sendo responsável, portanto, por desencadear o
acaso e enfrentá-lo. Desenvolve uma postura ativa e criadora e
revela defeitos e virtudes as quais vão se transformando no
decorrer dos acontecimentos em um processo muitas vezes
metafórico. Apenas o herói se modifica, o mundo permanece
imutável, de forma que o caráter da passagem do tempo é privado,
fechado e isolado, a parte do tempo histórico. “A série de aventuras
vividas pelo herói não o leva a uma simples confirmação da sua
identidade, mas à construção de uma nova imagem de herói
purificado e renascido. Por isso até o próprio acaso, guiado no

339
âmbito de certas aventuras, é assimilado de modo diferente”
(BAKHTIN, 2018, p. 55).
Enquanto no romance grego o tempo aventuresco é
tecnicamente verossímil, um dia é igual a um dia, uma hora
transcorre em 60 minutos; no romance de cavalaria tem lugar a
subjetividade do tempo na qual minutos se alongam ou dias que se
reduzem a instantes. Fazem-se presentes a noção de
simultaneidade e as distorções temporais a partir da perspectiva do
sonho, de visões ou de algum encantamento. “De modo geral,
surge no romance de cavalaria um jogo subjetivo com o tempo, seus
alongamentos e encolhimentos lírico-emocionais (além das
referidas deformações fabulares e oníricas), o desaparecimento de
episódios inteiros como se não tivessem existido (BAKHTIN, 2018,
p. 103–104). O interesse pelo cotidiano, pela vida privada e por
questões de ordem íntima ganha relevo. Entretanto, a concepção de
tempo associado a essa vida privada que se aproxima do cotidiano
no romance de cavalaria não segue a compreensão cíclica do tempo
agrário - entrelaçado ao ritmo da natureza e dos mitos.
Já no romance de cavalaria esse tempo cíclico não se repete,
está deslocado da natureza e fracionado em segmentos que
abrangem episódios da vida cotidiana. Esses episódios são
perpendiculares à narrativa basilar e apresentam vestígios do
tempo histórico. O deslocamento do herói no espaço perde o
caráter técnico-abstrato e se torna concreto e pleno de um tempo
vital, não só vive acontecimentos excepcionais, mas também
adentra no cotidiano, na vida pública e privada. “O espaço é
completado por um sentido vital real e ganha uma relação
substancial com o herói e seu destino. Esse cronotopo é tão
saturado que elementos como o encontro, a separação, o choque, a
fuga, etc. ganham nele uma importância cronotópica bem mais
concreta” (idem, p. 59).
Com essa breve explanação sobre os três tipos de romances
examinados por Bakhtin e a visão cronotópica de construção da
trama e do herói, acreditamos que podemos pensar a estrutura
narrativa da ficção seriada audiovisual, respeitando as

340
especificidades dos meios e os formatos analisados. Assim,
debruçamo-nos sobre a questão de como seria possível enxergar a
narrativa ficcional seriada a partir do cronotopo bakhtiniano tendo
como objeto empírico a série Segunda Chamada.

A série Segunda Chamada

Segunda Chamada, veiculada em 2019 pelo Globoplay e pela TV


Globo5, costura um enredo no qual as personagens (alunos e
professores da fictícia escola estadual Carolina Maria de Jesus)
lidam com dificuldades as mais diversas, oriundas de suas vidas
precarizadas, desprovidas de estrutura familiar e social, e que, em
comum, têm a escola como um espaço de apoio, de reconhecimento
e de projeção de futuro. Um espaço onde se consegue respirar. Para
o telespectador, Segunda Chamada revela, entre paredes pichadas e
janelas partidas, um compêndio de dramas humanos que, para
além de uma realidade crítica de classe social, avançam por
questões da própria existência humana e vão sendo revelados e
desenvolvidos no espaço da escola, palco e também personagem na
redenção ou dissolução dessas tragédias.
A narrativa, ambientada numa grande cidade com seus
prédios decadentes, avenidas movimentadas, ruas mal iluminadas
e casebres, gira em torno de personagens “permanentes”, que são
os quatro professores e pelo diretor da escola6 e de personagens

5 A veiculação da primeira temporada, em 11 episódios, pelo canal aberto pela TV


Globo se deu entre 8 outubro e 17 dezembro de 2019. Na Globoplay a série ficou
disponível desde agosto do mesmo ano. A segunda temporada, inicialmente
prevista para setembro de 2020, teve sua produção e seu lançamento adiados pela
Pandemia da Covid 19, entrando na Globoplay apenas em setembro de 2021, com
apenas seis episódios. Baseada na peça teatral Conselho de Classe, de Jô Bilac, a
série, criada por Carla Faour e Julia Spadaccini, tem como roteiristas Maíra Motta,
Giovana Moraes, Marcos Borges e Victor Atherino, além das próprias
idealizadoras; a direção de arte é assinada por Joana Jabace.
6 Jaci Queiroz Araújo, diretor da escola (Paulo Gorgulho); Lúcia Marques Rocha,

professora de português (Débora Bloch); Sônia Carrasco, professora de história e


geografia (Hermila Guedes); Eliete Sabá, professora de matemática (Thalita

341
“móveis” que ganham mais ou menos força na trama, os alunos e
às vezes familiares. Chama a atenção perfil o multifacetado do
universo discente (motoboy, ex-presidiária, prostituta, playboy,
evangélico, imigrante venezuelano, indígena, dona de casa
católica, travesti, traficante, sem teto etc.), constituindo uma espécie
de painel social de pessoas que muitas vezes vivem à margem da
sociedade e de suas instituições. Todos convivendo ou aprendendo
a conviver no mesmo espaço educacional, no período noturno do
Ensino de Jovens e Adultos (EJA).
O caráter contraditório, demasiado humano e, por vezes,
ambíguo dos personagens em Segunda Chamada não permite uma
definição de herói isento de defeitos e dificuldades internas. Os
professores, mesmo desempenhando papel de liderança e erigindo
soluções para eventuais adversidades, revelam dificuldades e
dramas internos7 que os colocam em contradição. São personagens
redondas cujas camadas se mostram à medida que a história
avança. Apesar das falhas e limitações que apresentam, podem ser
caracterizados como envolvidos e compromissados com a escola e
empenhados a ajudar o próximo e são essas as características que
mobilizam a essência da série, criando um ambiente propício para
resolução de conflitos, aceitação e acolhimento.
Ocorre em um único episódio o desenrolar de mais de uma
história que tem seu desfecho no próprio episódio. Essa
simultaneidade entre dois ou mais enredos narrativos é garantido
pelos cortes de cenas e retomadas às situações, numa costura entre
as diferentes temáticas. A série também traz arcos narrativos que

Carauta); Marco André da Silva, professor de artes (Silvio Guindane). A partir do


oitavo episódio da primeira temporada, o professor de português Paulo Moreira
(Caio Blat) passa a dar aula também no ensino noturno da EJA.
7 Como o professor de Artes, Marcos André que resolve ministrar aulas na região

onde sua mãe biológica nasceu e mora, talvez numa tentativa de conhecê-la; ou
como a professora de História, Sônia, que tenta colocar fim ao casamento abusivo
e ao mesmo tempo lidar com sua própria dependência química; há também a
professora de Português, Lúcia, que busca entender as circunstâncias que
envolvem a morte do seu filho. Estes são alguns exemplos dos dramas pessoais
que afetam esses personagens e põem movimento às tramas narrativas.

342
perpassam vários episódios, como na primeira temporada o
mistério acerca da morte de Marcelo (Artur Volpi), filho da
professora Lúcia (Débora Bloch), que se estende ao longo dos dez
episódios da primeira temporada, com a inserção de inúmeros
flashbacks e a interferências nas narrativas do presente diegético,
imbricam-se a outros enredos entrelaçando toda a trama. O
desenvolvimento desse arco narrativo implica outros arcos da
trama construindo uma narrativa complexa que se desdobra e se
aprofunda a cada episódio, promovendo intersecções e motivações
que movem a narrativa adiante. Uma dessas intersecções é o
relacionamento extraconjugal entre Lúcia e Jaci (Paulo Gorgulho),
diretor da escola, que avança por vários episódios com
repercussões, porém com um fio narrativo linear.
Na segunda temporada, lançada em setembro de 2021 com
apenas seis episódios por conta da Pandemia da Covid 19, a
ampliação do arco narrativo ganha relevo. A inserção de discentes
sem teto na escola, as adaptações e os conflitos que permeiam esse
processo e a vida amorosa e pessoal dos professores dão a tônica a
arcos narrativos que atravessam os episódios e mesmo as
temporadas, geram suspense e curiosidade no telespectador, ao
mesmo tempo em que ajudam a costurar os episódios entre as duas
temporadas. Como mencionamos acima, essas histórias que vão
sendo destrinchadas capítulo a capítulo, perpassando os arcos
episódicos, contribuem para a construção cumulativa8 de mais de
uma camada narrativa, gerando uma narrativa complexa, a qual
Mittell resume da seguinte forma:

8 “As narrativas passam a ser cumulativas na medida em que fatos ocorridos em


episódios precedentes não são esquecidos e podem ser retomados com a
finalidade de dar uma nova luz sobre um tema ou assunto. Assim, personagens
passam a ter memória e se ressentem de fatos ocorridos no passado ao mesmo
tempo em que temem pelo seu futuro diante de uma determinada situação
dramática que se relacione ao que viveram” (MUNGIOLI; PELEGRINI, 2013, p.
31, negrito nosso).

343
é uma redefinição de formas episódicas sob a influência da narração
em série – não é necessariamente uma fusão completa dos formatos
episódicos e seriados, mas um equilíbrio volátil. Recusando a
necessidade de fechamento da trama em cada episódio, que
caracteriza o formato episódico convencional, a complexidade
narrativa privilegia estórias com continuidade e passando por
diversos gêneros (2012, p. 36).

Segundo Mittell (2012), nas séries caracterizadas pela narrativa


complexa o desenvolvimento do enredo tende a ser central e as
tramas vão sendo construídas a partir do seu desenvolvimento.
Pode-se dizer que Segunda Chamada, com tramas centrais e arcos
narrativos interconectados, estrutura-se a partir desses paradigmas
mais recentes da ficção seriada.

Análise de Segunda Chamada com base no cronotopo


bakhtiniano

O enredo de Segunda Chamada fixa âncora numa grande


metrópole brasileira e, pelas características das ruas
movimentadas, do clima, do contraste entre prédios e bairros e da
diversidade dos personagens é possível identificar a cidade de São
Paulo embora a narrativa em si não especifique localidades e não
se atenha a peculiaridades regionais. A maior parte das cenas na
série se passa na escola e foi gravada na, já desativada, escola
estadual do Jockey Club de São Paulo, na zona oeste9 da capital
paulista. A produção realizou adequações à sede desta antiga
escola, mas grosso modo as gravações captam a escola como existia
na realidade, ponto importante na proposta da série que adota um
tom realista na estética e na trama narrativa.

9 Ver matéria da Folha de São Paulo, “Débora Bloch visita escolas e ouve
professores para série da Globo” https://f5.folha.uol.com.br/cinema-e-
series/2019/09/debora-bloch-visita-escolas-e-ouve-
professores-para-serie-da-globo-nao-ha-pais-sem-educacao.shtml). Acessado em
30 de outubro de 2021.

344
A equipe da Globo teve de fazer uma série de reparos na estrutura
do edifício. Mas o aspecto geral de abandono, com infiltrações, vidros
estilhaçados e pichações nas paredes, foi mantido.
“Para mim, foi muito importante deixar a obra o mais próximo possível
da realidade, o que uma locação como esta nos garantiu. Apesar do
abandono, a construção é linda e quisemos aproveitá-la”, afirmou Joana
Jabace, diretora artística da série (Revista Veja, 16/08/19).

Pode-se definir, portanto, dentro da noção de cronotopo já


discutida, que o espaço da narrativa acontece na escola estadual
Carolina Maria de Jesus, localizada numa grande cidade brasileira.
Além de as gravações serem realizadas em locação (transportes
públicos, viadutos e comunidades10), parte das histórias contadas
nas tramas são inspiradas em depoimentos de docentes e
discentes11 ou em fatos noticiados pela grande mídia, como, por
exemplo, o episódio em que excessivas goteiras durante chuva
torrencial levam os alunos a usarem guarda-chuvas dentro da sala
de aula enquanto assistem a aula. Trata-se, pois, de uma realidade
revelada, quase testemunhal12, por meio de uma narrativa ficcional.
Essa aproximação da realidade com o ficcional compõe o cronotopo
de Segunda Chamada, uma vez que a série se utiliza de fatos e
espaços reais (espaços da cidade e da escola) aproximando a
narrativa ficcional do palpável e do concreto, num movimento

10 Ver matéria da Folha de São Paulo “Débora Bloch diz ser revoltante como os que
vivem na rua são ignorados” https://f5.folha.uol.com.br/cinema-e-
series/2021/09/debora-bloch-diz-ser-revoltante-como-os
-que-vivem-na-rua-sao-ignorados.shtml). Acessada em 30 de outubro de 2021.
11 Ver plataforma da Globo REP, Repercutindo Histórias, com mais de 100

depoimentos de diferentes pessoas de várias áreas a fim de “dar mais visibilidade


a assuntos socialmente relevantes por meio de histórias inspiradoras”
(https://redeglobo.globo.com/Responsabilidade-Social/novidades/noticia/serie-
segunda-chamada-inspira-rep-repercutindo-historias-sobre-o-ensino-noturno-
para-jovens-e-adultos.ghtml). Acessada em 4 de novembro de 2021.
12 Apesar de os personagens desvelarem parte de suas vidas, num tom que às

vezes se aproxima ao testemunhal ou ao de denúncia, não é possível caracterizar


a narrativa como testemunhal por não se estruturar em testemunhos.

345
oposto ao cronotopo do romance grego que se constrói num espaço
abstrato, impreciso e generalista.
O meio, que se constitui no espaço físico e social de onde a
personagem veio e onde se encontra no presente, possui bastante
influência na caracterização dessas personagens e dos dilemas que
enfrentam. Embora marcante, o meio social não se coloca como
fator determinante da conduta do sujeito, visto que a própria série
se estrutura numa proposta de superação ou possibilidade de
mudança das condições apresentadas, ao mesmo tempo em que
constrói uma certa quebra de expectativa em relação ao que se pode
esperar de determinado personagem, numa espécie de crítica a
possíveis estigmas que determinadas categorias sociais ou
situações podem trazer. O meio constitui-se como principal
referência na construção de personagens e no desenvolvimento dos
enredos, porém ao mesmo tempo em que o meio oprime e sufoca,
cabe ao sujeito a decisão sobre seus atos e a responsabilização
acerca de suas decisões e disso também depende a superação da
própria condição desse sujeito. O sujeito, muitas vezes vítima de
um meio injusto, abusivo, excludente encontra na escola
possibilidades de formação, reconhecimento, pertencimento, uma
espécie de tábua de salvação para impulsionamento de sua vida.

Heróis e heroínas realistas escolhem uma coisa, quando poderiam ter


optado por outra. Caso escolham erradamente, podem experimentar
arrependimento, e o arrependimento pressupõe que algo mais
poderia ter sido feito. Pela mesma lógica, o leitor pode censurar o
personagem e, então, essa reação também significa que o herói ou
heroína poderiam ter agido diversamente. Para ter certeza de algo,
as escolhas no romance são ainda drasticamente limitadas. Os
personagens têm uma margem de liberdade, mas essa margem tem
limites definidos pelas circunstâncias sociais. Essas circunstâncias
não apenas reduzem as opções, como moldam a própria pessoa que
faz as escolhas. A sociedade modela a personalidade (BEMONG ET
AL, 2015, p. 129, grifos nossos).

346
Intempéries ocorrem na trama, o “acaso” apontado por
Bakhtin como força motriz dos romances grego, aventuresco e de
cavalaria, e em Segunda Chamada servem de mote para superação
ou, a depender do desfecho, podem agravar ou melhorar as
condições dos personagens. Na construção dessa narrativa há uma
busca por determinado rumo, que pode ou não ser atingido e a
escola pública é vista como uma âncora neste processo de
construção de um presente e de um futuro mais satisfatórios. O
meio (o espaço social de origem), em Segunda Chamada, portanto,
não é fator determinante do caráter do personagem nem do seu
futuro, mas o é de sua condição de vida, da falta de formação, da
falta de oportunidade de crescimento, da falta de condição para
disputar em igualdade as perspectivas profissionais, de falta de
amparo social, da falta de estrutura para uma vida decente. É
contra esse cenário que os personagens se debatem num amálgama
entre a tentativa de melhorar de qualidade de vida e de adaptação
a essa realidade que lhes é imposta.
O tempo da narrativa na série, apesar de ser atual, dinâmico e
efêmero, revelador de uma época e de uma sociedade ao mostrar
as cenas do cotidiano de pessoas em sua maioria à margem da
sociedade, apresenta uma perspectiva de futuro na narrativa que
se estrutura no que se espera que essas pessoas se tornem ou no
que se espera que essas pessoas farão a fim de minimizar ou
resolver seus dramas pessoais. Há uma expectativa do que está por
acontecer, uma certa tensão que prende o interesse do espectador,
assim como também uma certa atenção em relação a como
determinado personagem vai se comportar diante de determinada
situação, quais respostas serão dadas, quais escolhas serão
realizadas. Essa projeção do futuro norteia tanto a expectativa do
telespectador, quanto as ações dos personagens que tentam chegar
a um outro lugar – uma mudança de vida, uma ascensão social. É
a projeção desse iminente futuro que constrói o presente em
Segunda Chamada.
Ao mesmo tempo, o passado aparece atrelado à carga
dramática das personagens. Seus erros, sofrimentos, traumas estão

347
no passado, mas devem ser trabalhados no presente para que haja
possibilidade de uma vida melhor no futuro. O homem
representado na narrativa ficcional seriada é contemporâneo ao seu
tempo e carrega um passado o qual, ao mesmo tempo em que pesa,
pode impulsionar uma mudança necessária para um futuro
projetado. Em outra camada de análise é possível entrever que esse
mesmo homem encontra-se em um universo imediatista13 ao se
situar desvinculado do espaço público, pela lacuna de
questionamentos voltados ao social e ao próprio sistema
educacional e à instituição escolar. A narrativa expõe problemas e
dificuldades a serem superadas pelos personagens envolvidos; as
respostas dadas pelos sujeitos, porém, são na grande maioria das
vezes soluções pontuais e restritas ao âmbito do indivíduo afetado
pelo problema. Essa invisibilidade de uma esfera social mais
ampla, de uma esfera pública e de ações coletivas organizadas e
planejadas restringe o sujeito em Segunda Chamada às esferas
íntimas e privadas e a um tempo imediato – o tempo em que os
problemas surgem intempestivamente e os indivíduos precisam
dar conta dessas situações atípicas e conflitantes. Os personagens
se vêem obrigados a buscar soluções, numa espécie de corrida
contra o tempo. Corrida contra um problema que lhes é imposto de
forma inequívoca e diante do qual ocupam posição de
desvantagem, de atraso em relação ao que poderiam ter feito no
sentido de evitar ou de superar esse mesmo problema antes que
houvesse “estourado”. Muito da carga dramática em Segunda
Chamada é decorrente da perspectiva de que o problema enfrentado

13 Esse sentido de imediatismo no tempo pode ser melhor compreendido em


contraposição ao tempo cíclico descrito por Bakhtin ao falar do folclore, “Esse
tempo [o cíclico] é profundamente espacial e concreto. Ele não está separado da
terra e da natureza. É exteriorizado de ponta a ponta, como toda a vida do homem.
A vida agrícola dos homens e a vida da natureza (da Terra) são medidas pelas
mesmas escalas, pelos mesmos acontecimentos, têm os mesmos intervalos,
inseparáveis uns dos outros, são dadas num único (indivisível) ato do trabalho e
da consciência. A vida humana e a natureza são percebidas nas mesmas
categorias” (2018, p. 171). Esse é o tempo do trabalho coletivo medido pelos ciclos
da natureza (estações do ano, dia e noite, período chuvoso, frio, seco).

348
no momento presente da trama, poderia ter sido evitado ou
superado, se esse mesmo sujeito tivesse tido, no passado, condições
minimamente adequadas.
Essas intempéries correspondem, em certa medida, ao acaso
dos romances grego e de cavalaria e têm início com infortúnios
externos ou com decisões equivocadas tomadas pelos personagens
que os conduzem a situações dramáticas. Como, por exemplo, (no
terceiro capítulo da primeira temporada) quando a gestante vai
para a escola mesmo numa noite de bastante chuva e se envolve
numa discussão religiosa sem prestar atenção a possíveis sinais que
seu corpo estaria dando de entrar em trabalho de parto; ou a
decisão de realizar um aborto a fim de evitar gravidez indesejada
(quinto capítulo da primeira temporada); ou ainda a iniciativa de
tomar drogas estimulantes para realizar uma prova (primeiro
capítulo da primeira temporada). A partir desses acasos ou de
decisões equivocadas têm lugar situações difíceis, por vezes
dramáticas, por que passam os sujeitos (parturiente que dá à luz na
escola por estar ilhada em decorrência dos alagamentos; moça que
passa mal na escola depois de realizar aborto clandestino; aluno
que sofre overdose depois de ingerir drogas para não dormir
durante prova). Essas más escolhas ou situações problemas
correspondem à força motriz do acaso ou das provações por
aventuras que movem romances gregos e medievais. Na série
analisada há ainda situações que mesclam escolhas equivocadas
com fatores externos, extrapolando completamente ao controle do
sujeito, como o caso de ex-presidiária (episódio sete da primeira
temporada) que tenta se inserir na sociedade e na escola, sofrendo
preconceito por parte de possíveis empregadores e de colegas da
escola. Ela errou ao cometer delitos que a levaram à prisão, porém
a dificuldade que enfrenta no momento presente diz respeito a um
forte preconceito social que extrapola o seu controle e vontade.
Na narrativa ficcional seriada as intempéries ocorrem a cada
episódio a fim de acionar os enredos, ou seja, a cada momento um
personagem é colocado em foco e tem seu drama pessoal posto à
tona. Outros sujeitos, geralmente um ou mais docentes, auxiliam e

349
amparam a personagem a lidar com o seu problema, seriam os
heróis modernos com seus inúmeros defeitos e contradições. A
depender do desfecho, esses acasos podem agravar ou melhorar as
condições dos personagens envolvidos. Pode-se afirmar, portanto,
que a série traz um conjunto de personagens que entram e saem
dos holofotes a depender do enredo, assim como um conjunto de
“heróis” e “heroínas” que se envolvem mais ou menos
intensamente em determinadas situações. Entretanto,
diferentemente dos heróis do romance grego passivos e
conformados ao destino, ou dos romances de cavalaria nos quais
os próprios heróis provocavam a aventura pondo-se à prova; os da
nossa época lutam contra as adversidades e tentam construir a vida
num determinado sentido - que parece ser o destino contrário do
determinado pela sociedade (e não mais pelos deuses) dada a sua
condição social e o suporte social que recebem (ou a falta dele). Na
ordenação da narrativa, por conseguinte, há uma busca por
determinado rumo, que pode ou não ser atingido, e a escola pública
é uma espécie de plataforma neste processo de construção de um
presente e de um futuro mais satisfatórios. A escola Carolina Maria
de Jesus caracteriza-se, portanto, como o epicentro do tempo e do
espaço na narrativa.

Considerações

Dentre as possíveis contribuições deste artigo, destaca-se a


tentativa de analisar a ficção televisiva atual à luz do cronotopo
bakhtiniano. Ao tentar fazê-lo saltam-nos aos olhos não só aspectos
da estrutura ficcional, como também da construção da imagem do
próprio homem na narrativa seriada moderna. Nunca é demais
lembrar que uma das centralidades no pensamento de Bakhtin
consiste na percepção da imagem do homem na literatura. De forma
que, ao analisarmos Segunda Chamada sob a égide do cronotopo
bakhtiniano, ainda que guardadas as diferentes dimensões de um
pensamento fundado a partir de literaturas seculares e uma análise
direcionada a um produto televisivo moderno, tornam-se evidentes

350
aspectos intrínsecos deste ser que vive e atua nas referidas
dimensões do tempo e do espaço ficcionais.
Se no cronotopo do romance grego o tempo nada transforma
e os lugares são abstratos e impessoais e no cronotopo da literatura
aventuresca de cavalaria o tempo constrói-se subjetivamente e o
espaço em nada afeta a subjetividade do herói; nesta série do século
XXI o tempo agrilhoa o sujeito num presentismo que comprime
passado e futuro, levando-o ao imediatismo do aqui e do agora14, e
o espaço social, se não determina por completo sua condição,
desempenha o papel dos deuses ou do acaso lançando sobre o
sujeito os árduos obstáculos do dia a dia sobre com os quais deve
lidar no limite da sobrevivência. O Homem em Segunda Chamada,
talvez na maior parte das ficções seriadas do século XXI, é
destituído de noções de um tempo encadeado e integrado15. O
tempo, contudo, o atinge na tensão entre passado e futuro – o
momento presente no qual tenta ter controle sob sua vida e agir o
mais rápido possível na busca por superar as vicissitudes que se
abatem sobre ele. O tempo que inexoravelmente transcorre marca
os personagens (envelhecem, morrem, perdem a perna, saem da
escola, formam-se concluindo os estudos) e a escola (com seus
problemas de estrutura física e de ordem burocrática). A disposição
da própria narrativa cumulativa traz uma ampliação na trama e,
por vezes, da carga dramática refletindo as marcas desse tempo.
Ao aproximar-se de uma realidade desconhecida do grande
público, do subúrbio da civilidade urbana, da periferia do sistema
capitalista e à margem das estruturas sociais, a narrativa ficcional
busca a familiaridade com sujeitos invisibilizados, evidenciando

14 Para situar a ideia de presentismo: “Não apenas o passado e o futuro do


trabalhador se estilhaçam: o passado e o futuro de todos se dissolvem. Citando
Paulo Valéry, que no início do século XX, admitia que “perdemos nossos meios
tradicionais de pensar e prever”, o filósofo brasileiro Adauto Novaes escreve que
“o futuro é como todo o resto: não é mais o que era”. E não é mesmo. Só o que há
é o presente instantâneo, ao vivo na virtualidade, um presente tirânico: o presente
do capital” (BUCCI, 2021, p. 186).
15 Para maior contextualização do tempo cíclico e integrado ver nota de rodapé 12.

351
uma dura realidade e a constituição desequilibrada de nossa
sociedade. Circunscrito à esfera privada e a um tempo imediatista,
ao homem deste milênio cabe o papel de vítima do meio (enquanto
espaço social), perdido na sua solidão, numa solidão a qual este
homem realiza no estar e no agir individualmente. A este homem,
desguarnecido de esfera pública, restam ações descoordenadas,
isoladas e iminentes, sem qualquer integração ou continuidade.
Segunda Chamada reflete este ser humano privado do social, da
coletividade e imerso no imediatismo ao construir sua narrativa
amparada em diferentes situações dramáticas que só se interligam
umas às outras pelo lugar comum a todas que é a escola.

Referências

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perspectivas. São Paulo: Parábola Editorial, 2015.
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética: a teoria do
romance. São Paulo: Editora Hucitec, 2010.
BAKHTIN, Mikhail. Teoria do romance II: As formas do tempo e
do cronotopo. São Paulo: Editora 34, 2018.
BUCCI, Eugênio. A superindústria do imaginário: como o capital
transformou o olhar em trabalho e se apropriou de tudo o que é
visível. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.
FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São
Paulo: Ática, 2011.
MACHADO, Irene. O romance e a voz: a prosaica dialógica de
Mikhail Bakhtin. Rio de Janeiro: Imago, 1995.
MACHADO, Irene. Gêneros discursivos. In: BRAIT, Beth (Org.)
Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005.
MALCHER, Maria Ataide Malcher. Gênero Ficcional Televisivo:
instância mediadora da comunicação massiva. In: Intercom,
Campo Grande, set. 2001.

352
MITTELL, Jason. Narrative Complexity in Contemporary
American Television. In: The velvet light trap. University of Texas
Press, n. 58, 2006.
MITTELL, Jason. Complexidade narrativa na televisão americana
contemporânea. In: Matrizes, ano 5, n. 2, p. 29-52, jan. - jun. 2012.
MORSON, Gary Saul; MORSON, Gary Emerson. Mikhail Bakhtin:
criação de uma prosaística. São Paulo: Edusp, 2008.
MUNGIOLI, Maria Cristina Palma. Temporalidade e cronotopo na
minissérie televisivaSe eu fechar os olhos agora. In: Revista
RuMoRes - Online de Comunicação, Linguagem e Mídias, n. 28,
v. 14, p. 245 - 266, jul. – dez. 2020.
MUNGIOLI, M. C. P.; PELEGRINI, C. Narrativas complexas na
ficção televisiva. In: Revista Contracampo, v. 26, 2013.
OLIVEIRA, Maria Eveuma de. O cronotopo narrativo: uma análise
do romance Dôra, Doralina. In: Anais do SILEL, Uberlândia:
EDUFU, v. 2, n. 2, 2011.

Endereços eletrônicos

Matéria da Revista Veja, Rede Globo arca com reforma da Escola


do Jockey Club para gravar série (https://vejasp.abril.com.br/
blog/terraco-paulistano/escola-jockey-club-globo/). Acessada em
27 de outubro de 2021.
Matéria da Folha de São Paulo, Débora Bloch visita escolas e ouve
professores para série da Globo (https://f5.folha.uol.com.br/
cinema-e-series/2019/09/debora-bloch-visita-escolas-e-ouve-
professores-para-serie-da-globo-nao-ha-pais-sem-educacao.
shtml). Acessado em 30 de outubro de 2021.
Matéria da Folha de São Paulo, Débora Bloch diz ser revoltante
como os que vivem na rua são ignorados (https://f5.folha.uol.
com.br/cinema-e-series/2021/09/debora-bloch-diz-ser-revoltante-
como-os-que-vivem-na-rua-sao-ignorados.shtml). Acessada em 30
de outubro de 2021.
Site da Plataforma da Globo REP, Repercutindo Histórias
(https://redeglobo.globo.com/Responsabilidade-Social/novidades/

353
noticia/serie-segunda-chamada-inspira-rep-repercutindo-
historias-sobre-o-ensino-noturno-para-jovens-e-adultos.ghtml).
Acessada em 4 de novembro de 2021.

354
Um estudo do catálogo das séries originais Globoplay no
período de 2018 a 20221

Maria Cristina Palma Mungioli


Flavia Suzue de Mesquita Ikeda

A produção, circulação e consumo de produtos audiovisuais


passam por grandes transformações influenciadas pelo
desenvolvimento da internet e pelos contextos econômicos e
geopolíticos que propiciaram, sobretudo ao longo da última
década, a intensificação das trocas internacionais de produtos
culturais. Em termos de produções televisivas, tais transformações
têm provocado reconfigurações dos sistemas de televisão
tradicional (aberta e por assinatura) frente ao crescimento dos
serviços de vídeo sob demanda popularmente conhecidos como
streaming. Lotz (2018) afirma que os processos de
internacionalização e transnacionalização de conteúdos televisivos
ganharam força e foram “revolucionados” com a chegada das
plataformas de streaming com alcance mundial e que a Netflix se
tornou “algo semelhante à primeira rede global de televisão”
(LOTZ, 2018, p. 117)2. Para fazer frente ao enorme sucesso das
plataformas internacionais de streaming e à queda de audiência nos

1 O artigo foi publicado originalmente na Revista Latinoamericana de Ciencias de


la Comunicación: MUNGIOLI, M. C. P.; IKEDA, F. S. de M. Um Estudo do
catálogo das séries originais Globoplay no período de 2018 a 2022. Revista
Latinoamericana de Ciencias de la Comunicación, [S. l.], v. 21, n. 41, p. 112–123,
2022. Disponível em: http://revista.pubalaic.org/index.php/alaic/article/view/948.
Acesso em: 29 jan. 2023. O artigo utiliza dados colhidos ao longo do projeto Séries
brasileiras de televisão no cenário da internacionalização e da transnacionalização: um
estudo sobre a mediação local na constituição de formatos e gêneros ficcionais na plataforma
Globoplay no período de 2016 a 2020, apoiado pelo CNPq no âmbito da bolsa
produtividade da primeira autora.
2 No texto original: “[…] and then becoming something akin to the first global television

network […]” (LOTZ, 2018, p. 117)

355
sistemas tradicionais de televisão, grupos de comunicação,
incluindo os canais de televisão tradicionais, em diferentes países
passaram a investir em suas próprias plataformas de streaming.
No Brasil, a TV Globo, principal produtora de teleficção e
canal de maior audiência da televisão aberta e TV cabo, lançou, em
2015, o Globoplay, um serviço de vídeo sob demanda por
assinatura. Em janeiro de 2021, o Globoplay contabilizava trinta
milhões de usuários considerando os assinantes da plataforma e os
que tinham acesso ao conteúdo que estava sendo transmitido ao
vivo pela TV Globo (GRATER, 2021). Desde sua criação, o
Globoplay tem investido fortemente tanto em tecnologia quanto na
construção de um catálogo competitivo de programas
(MUNGIOLI; IKEDA; PENNER, 2018).
O conjunto dessas transformações, incluindo os movimentos
de adaptação da televisão tradicional ao contexto da televisão
distribuída pela internet (LOTZ, 2018), incide, como dissemos
anteriormente, em todos os segmentos da cadeia de produção,
distribuição e consumo de televisão e mais amplamente do
audiovisual). Em termos de gêneros e formatos ficcionais, no polo
da produção, as séries despontam como o carro-chefe da ficção em
termos de quantidade em escala internacional, mas sobretudo no
maior produtor de ficção e sede dos mais populares serviços de
streaming: os Estados Unidos. John Landgraf, CEO do canal
estadunidense FX, previa, em agosto de 2022, que o fenômeno por
ele nomeado como Peak TV ocorreria novamente nesse ano quando
se contabilizaria uma produção de 559 séries em língua inglesa
(GOLDBERG, 2022, s/p).
Embora não seja nosso objetivo discutir tal fenômeno,
consideramos importante assinalar que ele proporciona várias
leituras em termos de suas implicações tanto em relação a
estratégias de produção quanto em relação à distribuição de
conteúdos pelas produtoras e emissoras de TV. Além disso, ele nos
ajuda a pensar o contexto internacional da produção de séries. Lotz
(2018, p. 106) destaca que o cenário atual – caracterizado pela
chegada das plataformas de streaming e a abundância de conteúdos

356
- desafia os modelos de televisão até agora conhecidos e demanda
dos canais a cabo e broadcast novas estratégias de produção e
distribuição. Ao mesmo tempo, as plataformas de streaming
necessitam dos conteúdos produzidos pela televisão tradicional
não só para montar seus portfólios, mas também para atrair um
público cativo das séries já apresentadas na televisão e, assim,
aumentar sua base de assinantes. Situação também apontada por
Meimaridis e Quinan (2022). Para alguns críticos, as consequências
da abundância de conteúdos trazem ganhos para os espectadores,
uma vez que o leque de produções se amplia possibilitando o
surgimento de histórias com temas e personagens muito diversos,
que teriam pouca chance de ser produzidas e exibidas na TV em
um cenário com menor concorrência entre os sistemas broadcast,
TV a cabo e plataformas de streaming (FRAMKE, 2019).
O presente artigo utiliza dados colhidos nos projetos Séries
brasileiras de televisão no cenário da internacionalização e da
transnacionalização: um estudo sobre a mediação local na constituição de
formatos e gêneros ficcionais na plataforma Globoplay no período de 2016
a 2020, realizado com apoio do CNPq, e do projeto Um estudo da
plataforma Globoplay no cenário de internacionalização de
gêneros/formatos e de distribuição no período de 2015-2022, e da tese
Séries brasileiras na TV paga e nas plataformas streaming: gêneros,
formatos e temas em um circuito em transformação (IKEDA, 2022)3. No
desenvolvimento do artigo, apresentamos um recorte dessas
pesquisas para análise das séries produzidas e exibidas pela
plataforma Globoplay considerando o atual cenário
internacionalizado de produção de conteúdos e formas de
apropriação dos gêneros e formatos globais. Nesse contexto,
destacamos o processo de cosmopolitização (CHALABY 2005, p.
32). O objetivo é analisar o catálogo de séries originais dessa
plataforma, destacando seus gêneros, formatos e temas. Esses

3 Ao longo do doutorado a pesquisadora foi bolsista da Coordenação de


Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior-Brasil (CAPES) - Código de
Financiamento 001.

357
elementos são essenciais para pensar as operações de adaptação e
transformação dos formatos industriais em relação às matrizes das
culturas locais (MARTÍN-BARBERO, 2015), e, ao mesmo tempo,
fornecem pistas para se analisarem as estratégias da plataforma
para dialogar com séries internacionais que compõem os catálogos
de plataformas de streaming globais e que disputam o mercado
interno brasileiro. Com base nos resultados colhidos na análise,
discutimos como o Globoplay tem conseguido aliar a tradição e a
expertise da TV Globo em ficção televisiva para dialogar com um
público não só acostumado a assistir a séries internacionais, mas
com novos hábitos de formas de consumo televisual.

Gêneros e formatos em contexto de internacionalização e


transnacionalização de séries

Bielby; Harrington (2008, p. 49-55) afirmam que os gêneros são


um dos fatores que podem impulsionar ou não a venda de um
programa para determinado país ou região. Os autores destacam a
boa aceitação das séries no mercado internacional enfatizando sua
dimensão cultural. Em nossas pesquisas, temos discutido a noção de
gênero como instância de mediação (MUNGIOLI, 2019). Martín-
Barbero (2001, p. 211) afirma que “(...) o gênero não é somente
qualidade da narrativa, e sim o mecanismo a partir do qual se obtém
o reconhecimento – enquanto chave de leitura, de decifração do
sentido, e enquanto reencontro com um ‘mundo’ (...).” (aspas do
autor). Martín-Barbero (2001, p. 312-314) analisa o gênero
considerando suas dimensões culturais e comunicacionais,
classificando-o como matriz cultural que possibilita a análise de textos
massivos, sobretudo os televisivos. Enfatiza, assim, a centralidade da
dimensão cultural dos gêneros nos produtos massivos como instância
mediadora em torno da qual se articulam as lógicas dos sistemas
produtivo e de consumo e suas camadas culturais.
Mittel (2004) também articula sua discussão em torno dos
gêneros defendendo uma abordagem cultural que os considere
como práticas discursivas. Segundo o autor, observando o gênero

358
como uma propriedade ou função do discurso, é possível examinar
os modos nos quais várias formas de comunicação funcionam para
constituir definições genéricas, significados, e valores dentro de um
contexto histórico particular (MITTELL, 2004, p. 12).
Em nossa pesquisa a questão da internacionalização e
transnacionalização de conteúdos surge como uma vertente para
estudarmos as especificidades das produções brasileiras na
plataforma Globoplay inseridas em um contexto cada vez mais
intenso de globalização de conteúdos com a chegada e
consolidação de serviços de streaming internacionais ao Brasil,
como Netflix, Disney+, Prime Video e HBOMax, apenas para citar
os mais populares em nosso país. Conforme destaca Lotz (2018), os
processos de internacionalização e transnacionalização de
conteúdos televisivos ganharam força e foram “revolucionados”
(LOTZ, 2018) com a chegada das plataformas de streaming com
alcance mundial.
Referindo-se a um contexto mais amplo e não apenas às
plataformas de streaming, Sinclair (2014, p. 63) resume os três
paradigmas propostos por Chalaby (2005) relacionados à
comunicação global: (1) "a internacionalização, ou a comunicação
de nação a nação, como na era dos programas enlatados."; (2) a
globalização que tem início com o uso de tecnologias “capazes de
atravessar fronteiras e distribuir o mesmo conteúdo
eletronicamente para muitas nações, mais ou menos ao mesmo
tempo (...). Esse conteúdo global deve certamente ter a forma
modificada para atender às demandas de diferentes regiões
geolinguísticas” (Sinclair, 2014, p. 63); (3) a transnacionalização,
"um novo estágio em que ocorre um maior ou menor grau de
glocalização: o empréstimo seletivo daquilo que é local e a
adaptação de ideias globais e formas culturais, o que inclui a
comercialização de roteiros e direitos para produzir determinados
formatos." (SINCLAIR, 2014, p. 63).
Chalaby (2005) acrescenta ainda à sua argumentação que o
atual contexto social apresenta um processo de cosmopolitização
que se desenrola no interior da globalização e que envolve a

359
comunicação em seus quatro níveis - o local, o nacional, regional e
o global. Segundo ele, é nesse contexto emergente que a mídia
transnacional se insere,

(...) desafiando fronteiras, questionando o princípio da


territorialidade e abrindo "de dentro" a mídia nacional. Novas
práticas de mídia e fluxos estão moldando espaços de mídia
interligados com conectividade transnacional, criando culturas
contemporâneas prenhes de novos significados e experiências.
(CHALABY, 2005, p. 32).4

Por sua vez, Canclini (2008) argumenta que experiências


culturais gestadas no processo de consumo (cultural) não
necessariamente entram em choque com o que é estrangeiro, mas
se hibridizam e adquirem novos significados e provocam "a
reelaboração do ‘próprio’, devido ao predomínio dos bens e
mensagens provenientes de uma economia e uma cultura
globalizadas sobre aqueles gerados na cidade e na nação a que se
pertence" (CANCLINI, 2008, p. 40). É nesse contexto que ocorre o
consumo transnacional de bens culturais que segmentam os grupos
sociais não mais em termos de oposição entre o nacional e o
importado, mas em termos de segmentos de produtos culturais e
marcas. (CANCLINI, 2008, p. 68).
Outro ponto a ser destacado, em nossa perspectiva de análise,
que se alinha com a de Esquenazi (2010) quando este afirma que
uma série é uma construção original da relação entre sua história
de produção com a história dos gêneros narrativos; que estabelece
uma ligação específica com a realidade; e que pode ser apropriada
de diferentes maneiras por parte do público.

4No texto original: “The transnational media order belongs to this emerging context,
challenging boundaries, questioning the principles of territoriality and opening up
from within the national media. New media practices and flows are shaping media
spaces with built-in transnational connectivity creating contemporary cultures
pregnant with meanings and experiences." (Chalaby, 2005, p. 32)

360
Em relação à questão da história de produção, destacamos que
o conglomerado Globo tem buscado identificar o portfólio do
Globoplay com toda a história de criação e produção da
teledramaturgia da emissora. Um exemplo dessa estratégia pode
ser observado quando, no catálogo Globoplay, produções próprias
e da TV Globo eram apresentadas sob a rubrica “Do Brasil para
brasileiros”, buscando incorporar à plataforma o capital simbólico
das produções da Globo.
Em termos de pesquisa, o estudo que fundamenta nossas
discussões se caracteriza como uma pesquisa qualitativa do
catálogo das séries originais Globoplay que objetiva identificar
tendências ou recorrências em termos de gêneros, formatos e
temas. O estudo dá sequência aos estudos realizados por Mungioli,
Ikeda e Penner (2018) e Mungioli e Ikeda (2020). Considerando a
tradição da Globo como a maior produtora de ficção para televisão
aberta e paga no país, refletimos sobre eventuais diálogos entre tal
histórico e as séries originais Globoplay. Na análise, observamos a
interdiscursividade que se constrói entre gêneros e formatos
nacionais e internacionais e o diálogo das séries do recorte com as
realidades cotidiana e histórica dos espectadores por meio do
tratamento temático.

Globo em todas as telas

No decorrer de sua longa história no país, a TV Globo foi


reconhecida pela crítica acadêmica e da imprensa por seus esforços
em produzir imagens do Brasil e do povo brasileiro que repercutem
profundamente nas ideias de identidade nacional compartilhadas
de Norte a Sul (MOTTER, 2003; LOPES, 2011; MUNGIOLI, 2013).
Criada em 1965, como um braço televisivo do conglomerado de
comunicação Globo, que já contava com jornais, revistas e emissora
de rádio, a TV Globo, assim como outras redes de televisão, foi
beneficiada pelas políticas de expansão das telecomunicações
durante a vigência do governo militar implantado no país entre
1964 e 1985. As ações governamentais voltadas para a construção

361
de infraestrutura de comunicação e incentivo à indústria de
aparelhos de televisão foram decisivas para que a televisão se
tornasse o principal meio de acesso a informações e entretenimento
audiovisual no país, denotando uma política deliberada dos
governos autoritários daquele período.
Em 2011, mesmo ano da chegada da Netflix ao Brasil, a
distribuidora de canais a cabo NET (que tinha a participação do
grupo Globo) e a Globosat lançaram plataformas de vídeo sob
demanda (catch up TV), respectivamente, NOW e Muu
(posteriormente Globosatplay). Em 2012, foi lançado o Globo TV+
(com programação do canal aberto e conteúdos de acervo), extinto
em 2015, com o lançamento do Globo Play (como era grafado o
nome da plataforma), que podia ser acessado pelo computador ou
aplicativo. Inicialmente, abrigava programas já exibidos na Globo
(catch-up TV), incluindo telenovelas e séries, com a possibilidade de
não assinantes assistirem à programação exibida ao vivo na TV
Globo (simulcasting) e a trechos dos programas.
A plataforma passou a antecipar a exibição de programas da
TV Globo em 2016, quando quatro das nove séries do canal
estrearam no Globoplay. Nos anos seguintes, houve diferentes
experiências relativas ao número de episódios disponibilizados e
ao tempo de antecedência em relação às estreias no canal aberto. O
Globoplay também exibiu spin-offs de telenovelas de sucesso
naquele momento (Totalmente Demais, 2015; Haja Coração, 2016;
Liberdade, Liberdade, 2016). Eram webséries disponibilizadas
simultaneamente no portal GShow (gratuito). Em 26 de dezembro
de 2016, os quatro episódios da minissérie Aldo-mais forte que o
mundo foram incluídos na plataforma, nove dias antes da estreia na
televisão (janeiro de 2017) (Pires, 2016). Entre janeiro de 2016 e abril
de 2020, 30 das 41 séries veiculadas na TV Globo foram lançadas
antes no Globoplay (MUNGIOLI, IKEDA; PENNER, 2018;
MUNGIOLI; IKEDA, 2020).
Em 2018, o Globoplay passa por uma transformação mais
profunda em sua proposta e começa construir um portfólio não
apenas com programas da Globo, mas também produções

362
licenciadas, inclusive internacionais. Nesse ano, o Grupo Globo
anunciou uma nova forma de gestão que denominou “Uma Só
Globo”, com a proposta de ser uma mediatech, unindo TV Globo,
Globosat, DGCorp (Diretoria de Gestão Corporativa), Globo.com
e Som Livre (2018-LANÇAMENTO DO PROGRAMA, 2021;
ROSA, 2019).
Além disso, em setembro de 2018 estreou na plataforma Além
da Ilha, primeira das três séries denominadas “Originais
Globoplay” naquele ano como veremos mais adiante.

Séries originais Globoplay

Em nossa pesquisa, consideramos Originais Globoplay as


produções feitas especialmente para estrear na plataforma e sem
previsão inicial de serem transmitidas na televisão aberta. Em
alguns casos, porém, o selo é dado a produções que, por diferentes
razões comerciais, foram exibidas posteriormente na TV Globo ou
em outro canal Globo, como será explicitado.
Considerando a importância da Globo na formação da cultura
de ficção televisual no país, na televisão aberta e nos canais pagos
do grupo, o investimento em conteúdos originais Globoplay e a
ampliação do catálogo para produções licenciadas, nacionais e
internacionais, desde 2018, explicitam estratégias para garantir
uma presença forte, também, no mercado altamente competitivo
dos serviços de streaming por assinatura disponíveis no Brasil.
Entre 2018 e maio de 2022, foram contabilizadas 19 temporadas
inéditas e 14 títulos de séries originais (incluindo a quarta
temporada de Sessão de Terapia e a segunda temporada de Segunda
Chamada, respectivamente, séries que estrearam as primeiras
temporadas no GNT e na TV Globo), conforme mostrado no
quadro 1. Em relação aos gêneros e formatos, foram 10 títulos de
drama e quatro de comédias.

363
Quadro 1 – Séries originais Globoplay de 2018 a maio de 2022.
Ano Título Episódios Gênero
2018 Além da Ilha 10 Comédia
2018 Assédio 10 Drama
2018 Ilha de Ferro 12 Drama
2019 Shippados 12 Comédia
2019 Aruanas 10 Drama
2019 A Divisão 5 Crime/Drama
Sessão de Terapia (4ª
2019 35 Drama
temporada)
Ilha de Ferro (2ª
2019 10 Drama
temporada)
2019 Eu, a Vó e a Boi 6 Comédia
2020 Arcanjo Renegado 10 Drama/Crime
Todas as Mulheres do
2020 12 Comédia romântica
Mundo
2020 A Divisão (2ª temporada) 5 Crime/Drama
2020 Desalma 10 Drama /Fantasia
2020 As Five 10 Drama
2021 Onde está meu coração 10 Drama
Segunda Chamada (2ª
2021 6 Drama
temporada)
2021 Aruanas 10 Drama
Sessão de terapia (5ª
2021 35 Drama
temporada)
2022 Desalma (2a. temporada) 10 Drama/Sobrenatural
Fonte: as próprias autoras.

Em setembro de 2018, o Globoplay lançou a série Além da Ilha


(coprodução com Multishow e Floresta Filmes) com elenco já
conhecido de programas de humor do Multishow. Protagonizada
por Paulo Gustavo, a série conta a história de um grupo de turismo
de mistério preso em uma ilha. No mesmo mês, foi incluída a série
Assédio (Globo/O2 Filmes), que trata de um caso real de crimes de

364
natureza sexual cometidos contra mulheres pelo médico Roger
Abdelmassih, ocorrido no Brasil entre 1990 e 2000. Em novembro,
estreou Ilha de Ferro (Estúdios Globo), ficção que retrata a vida
profissional e amorosa de trabalhadoras/es de uma plataforma
marítima de petróleo. Em uma estratégia de potencializar um
possível aumento de audiência do Globoplay por meio da televisão
aberta, Assédio e Ilha de Ferro tiveram seus episódios pilotos
exibidos na televisão aberta.
O ano de 2019 teve o dobro de temporadas inéditas de séries
originais em relação ao ano anterior (seis temporadas e cinco títulos
novos): Ilha de Ferro (segunda temporada); as comédias Shippados
(Estúdios Globo); Eu, a Vó e a Boi (Estúdios Globo); e os dramas
Aruanas (Estúdios Globo e Maria Farinha Filmes); A Divisão
(Afroreggae Audiovisual e Hungry Man); e a quarta temporada de
Sessão de Terapia (Moonshot Pictures), cujas três primeiras
temporadas foram exibidas pelo GNT, coprodutor da continuação.
Em 2020 estrearam quatro novos títulos e uma continuação:
Arcanjo Renegado (coprodução Multishow e Afroreggae
Audiovisual), sobre policial justiceiro que age contra o sistema;
Todas as Mulheres do Mundo (Estúdios Globo), adaptação do filme
de 1966, de Domingo de Oliveira; Desalma (Estúdios Globo), trama
sobrenatural; As Five (Estúdios Globo), spin-off da novela Malhação;
e A Divisão (segunda temporada).
Ressalte-se que 2020 foi o primeiro ano da pandemia Covid-
19, que impôs a paralização das produções audiovisuais no Brasil,
com impactos especialmente nas telenovelas, tradicionalmente
gravadas concomitantemente à exibição. A manutenção das
estreias do Globoplay nesse período pode ser justificada pelo fato
de que os programas haviam sido gravados e finalizados.
Em 2021, estrearam as séries: Onde Está Meu Coração (Estúdios
Globo); Segunda Chamada (O2), cuja primeira temporada foi
produzida para a TV Globo, mas que foi lançada com o selo de
“original Globoplay” pela primeira vez; Aruanas (segunda
temporada); e Sessão de Terapia (quinta temporada). Finalmente, em
2022, até maio, quando foi finalizada a coleta para este artigo, o

365
Globoplay havia lançado apenas a segunda temporada de Desalma.
Novamente, podem ser vistos nessa diminuição de produção os
efeitos da pandemia de Covid-19.
A estratégia de Assédio e Ilha de Ferro, que estrearam o episódio
piloto na TV Globo, se repetiu nos anos seguintes em títulos como
Shippados, Aruanas, Arcanjo Renegado, Todas as Mulheres do Mundo e
As Five. Esses títulos foram posteriormente veiculados
integralmente na televisão. Na TV Globo: Assédio, em 2019;
Aruanas, em 2020; Ilha de Ferro, Todas as Mulheres do Mundo; As Five;
e Desalma, em 2021. A última foi exibida na semana do Dia das
Bruxas, embora nessa data não haja uma comemoração tipicamente
brasileira. Em canais pagos do Grupo Globo, em 2020, estrearam
três obras: A Divisão e Além da Ilha, no Multishow, e a quarta
temporada de Sessão de Terapia no GNT. Em 2021, foi a vez de Eu a
Vó e a Boi, estrear no GNT.

Considerações

É possível observar que, entre os dramas, há a forte presença


de temas policiais e de crimes, possível reflexo do sucesso desse
filão em séries internacionais. Podemos citar, entre outros, A
Divisão, Arcanjo Renegado, Aruanas e Assédio. Desses, há dois títulos
inspirados em situações reais ocorridas na década de 1990. Um
francamente baseado em fato real, Assédio, sobre um médico preso
por estuprar pacientes, como já mencionado, e um inspirado em
uma onda de sequestros que ocorreu no Rio de Janeiro, o drama
policial A Divisão. Esta última, original Globoplay, em coprodução
com Multishow. No que concerne à sua construção, é um exemplo
de série de protagonismo coletivo, centrada na ação de grupos de
investigação, e em dramas individuais das personagens, que são
marcas das séries policiais estadunidenses desde A balada de Hill
Street (ESQUENAZI, 2011).
Outro elemento encontrado em A Divisão, e que é recorrente
em séries de crime na América Latina (LUSVARGHI, 2019), são
personagens que retratam agentes do Estado em crise com as

366
instituições. Esse é tema em Arcanjo Renegado, cujo tratamento
estético e temático pode ser relacionado a dois filmes brasileiros
sobre crimes que alcançaram grande reconhecimento
internacional, Cidade de Deus (O2 Filmes; Globo Filmes, 2002) e
Tropa de Elite (Zazen Produções; The Weinstein Company, 2007).
O primeiro realiza uma observação da violência urbana pela
perspectiva dos criminosos, está em segundo lugar no ranking do
IMDb dos filmes não estadunidenses mais vistos no mundo e foi
indicado ao Oscar e ao Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro
(2004). Já Tropa de Elite, que ganhou o Urso de Ouro (2008), tem o
foco na figura do policial em crise com as corporações
(CARNEIRO, 2020; IKEDA, 2022).
Essas experiências refletem a criação de uma cultura televisual
contemporânea, gerada de contatos culturais transnacionais, da
hibridização do local com o proveniente do cenário globalizado do
consumo cultural mediado pela tecnologia (CHALABY, 2005,
CANCLINI, 2008). Ainda em relação aos dramas, citamos Desalma,
que mistura elementos sobrenaturais e de mistério, gêneros pouco
explorados na tradição televisiva brasileira e da Globo. O cenário
de Desalma é a cidade ficcional de Brígida, no interior de Santa
Catarina, reduto de descendentes de imigrantes ucranianos.
Brígida foi inspirada em Prudentópolis, no Paraná, mas filmada na
Serra Gaúcha, em Antônio Prado e São Francisco de Paula.
Em relação às comédias, foram quatro títulos lançados até
maio de 2022: Além da Ilha (2018); Eu, a Vó e a Boi (2019); Shippados
(2019); e Todas as Mulheres do Mundo (2020). As duas últimas podem
ser classificadas como comédias românticas, pois suas tramas
giram em torno da relação de um casal.
No recorte das comédias, reitera-se o que ocorre no conjunto
das séries originais Globoplay em termos de mediação entre
formatos industriais (globais) e matrizes culturais locais (MARTÍN-
BARBERO, 2015). Por um lado, experimentações em termos de
gêneros e formatos espelham a emergência de uma cultura de
séries internacionais e o intento de concorrer com as produções
brasileiras ofertadas em plataformas internacionais. Exemplos,

367
além das séries de crimes, são séries com elementos de thriller (Ilha
de Ferro e Aruanas) e a aproximação com o terror (Desalma). Por
outro lado, a incorporação de temáticas e ambientação ligadas à
realidade e ao imaginário brasileiros é notável em todos os títulos,
mesmo em Desalma -que agrega um fato demográfico e a cultura
híbrida de uma comunidade no interior do Brasil - ou na quarta
temporada de Sessão de Terapia, cujo original israelense Betipul, teve
apenas duas temporadas e, desde a terceira, conta com episódios
com texto totalmente nacional.
Mas esse diálogo entre o global e o local ocorre em diferentes
níveis, como observado pela referência a fatos da realidade (Assédio
e A Divisão), por temas relacionados a inquietações e interesses
atuais da sociedade, como os crimes ambientais na Amazônia
(Aruanas), violência e corrupção (Arcanjo Renegado e A Divisão), a
disseminação das drogas ilícitas entre a classe média (Onde Está
Meu Coração), e até os bastidores da exploração de petróleo, foco de
escândalos reais recentes no país, para citar alguns exemplos.
A série Todas as Mulheres do Mundo foi apresentada como uma
homenagem ao dramaturgo e diretor Domingos Oliveira, falecido
em 2019. Trata-se de uma versão seriada do filme homônimo,
lançado em 1966 (mesmo ano em que o diretor deixou a TV Globo
para se dedicar ao cinema). Pode-se pensar ainda que, através dessa
série, o Globoplay reforça um diálogo com a cultura audiovisual
brasileira, especificamente, com uma cinematografia urbana
moderna e carioca, de que Domingos Oliveira é um expoente.
A aproximação e referência (explícitas ou não) das séries
originais Globoplay ao imaginário construído pela própria Globo
ao longo do tempo também é percebida na escolha de elencos,
roteiristas e diretores reconhecidos da emissora. Eu, Avó e a Boi é
uma criação de Miguel Falabella, diretor cujo estilo, construído em
diferentes séries da TV Globo e no teatro, explicita, esteticamente,
a familiaridade da plataforma com a tradição teleficcional da
Globo. Outro elemento que se liga à interdiscursividade pode ser
encontrado em As Five, spin off da novela juvenil Malhação, título
de ficção que está há mais tempo no ar na TV Globo (desde 1995).

368
Outro tipo ocorre com a segunda temporada de Segunda Chamada,
que teve a primeira temporada lançada pela TV aberta, além da
continuação da série Sessão de Terapia.
Os levantamentos e análises realizados apontam para uma
produção constante de séries brasileiras pelo Globoplay e adoção
de estratégias de lançamento que procuram levar o telespectador
da TV aberta para a plataforma Globoplay. Destaca-se ainda o
tratamento temático de séries policiais que as aproxima de formas
narrativas e discursivas empregadas em séries policiais
estadunidenses, bem como a produção de histórias de apelo
internacional com temáticas como a questão ambiental e narrativas
com elementos do universo fantástico.

Referências

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2018 - Lançamento do programa Uma Só Globo. (2021, 26
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2018-lancamento-de-uma-so-globo.ghtml. Acesso em 10 nov. 2022.

372
PARTE IV

O GRUPO GELIDIS

373
374
O Grupo de Pesquisa GELiDis
Linguagens e Discursos nos Meios de Comunicação

Maria Cristina Palma Mungioli


Claudinei Lopes Junior

Criado como grupo de estudos em 2015, o GELiDis - Grupo de


Pesquisa Linguagens e Discursos nos Meios de Comunicação -,
reúne pesquisadoras e pesquisadores (docentes, estudantes de pós-
graduação e de graduação e especialistas) dedicadas/os aos estudos
de linguagem e discursos em diferentes suportes e modalidades em
relação direta com as atividades acadêmicas e científicas
desenvolvidas por sua coordenadora no Departamento de
Comunicações e Artes da Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo e no Programa de Pós-Graduação em
Ciências da Comunicação na mesma Universidade. Cabe salientar
que os estudos referentes às linguagens verbal e verbo-visual,
notadamente os relativos à ficção televisiva caracterizam as
pesquisas realizadas pela coordenadora do grupo desde seu
doutorado e se configuraram também como eixo central de sua
pesquisa de pós-doutorado - realizada no primeiro semestre de 2016
na Université Sorbonne Nouvelle – e de seu projeto atual de pesquisa
vinculado ao CNPq por meio de bolsa produtividade nível 2.
De caráter interdisciplinar, o grupo possui como objetivo
principal o estudo sistemático das linguagens verbal e visual e das
narrativas ficcionais nos diferentes meios de comunicação e
suportes como televisão, serviços de streaming e internet de
maneira geral. O grupo se dedica ao estudo dos discursos, suas
formas de estruturação, estilos e estéticas, bem como sua
distribuição em diferentes plataformas e sua recepção em
diferentes modalidades e suportes. Mais especificamente
destacam-se, entre seus focos de estudo: a produção de sentido por
meio dos discursos veiculados nos meios de comunicação com

375
especial interesse nos diferentes gêneros de ficção televisiva e suas
especificidades de formato e estilo; os processos enunciativos
considerados a partir da perspectiva verbal e verbo-visual. As
origens históricas e a construção cultural da ficção nos meios de
comunicação também integram o escopo de estudos do grupo.
O grupo é certificado pela Universidade de São Paulo e está
registrado no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq
(dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/237881). É vinculado ao
Departamento de Comunicações e Artes da Escola de
Comunicações e Artes (ECA/USP) e ao Programa de Pós-
Graduação em Ciências da Comunicação (PPGCom/USP) por meio
da linha de pesquisa 1 - Comunicação, redes e linguagens: objetos
teóricos e empíricos.
Entre os principais objetivos do grupo de pesquisa, destaca-se
ainda a formação de pesquisadoras/es nos diversos níveis da vida
acadêmica e profissional no âmbito da Escola de Comunicações e
Artes da Universidade de São Paulo. Desde o início das atividades
do grupo de pesquisa, foram orientados dois mestrados e oito
doutorados. Entre as dez pesquisas realizadas, em nível de
Doutorado e Mestrado, nove delas contaram com apoio de agências
de fomento como Capes e CNPq. Destaca-se ainda que, até 2015,
ano de início das atividades do grupo, sua coordenadora havia
orientado seis pesquisas de Mestrado e supervisionado uma
pesquisa de pós-doutorado (com Bolsa PNPD Capes). Em 2023,
encontram-se em andamento no grupo de pesquisa, cinco
pesquisas de doutorado e duas de mestrado. A grande maioria
delas recebe apoio por meio de bolsas da Capes e do CNPq.
Gostaríamos ainda de destacar a presença de integrantes do
grupo GELiDis em grupos de trabalho de associações da área de
comunicação como Intercom e ALAIC, bem como a apresentação
de trabalhos em eventos nacionais e internacionais como Congresso
da Intercom, Congresso da ALAIC – Associação Latino-Americana de
Investigadores de Ciências da Comunicação, Congressos TeleVisões
(Universidade Federal Fluminense), Jornada Internacional Geminis
(UFSCar), evento Conexões e Isolamentos, promovido, em 2021, pelo

376
Grupo Entelas da Universidade Federal de Juiz de Fora e as
Jornadas de Cinema e Ficção Audiovisual, organizadas pela
Universidade Tuiuti do Paraná, das quais temos participado desde
2017. Além disso, membros do grupo têm participado ativamente
de atividades junto aos cursos de graduação da ECA, fortalecendo
os aspectos formativos e integrativos entre os diversos níveis de
ensino, pesquisa e extensão.
Nos dias 29 e 30 de agosto de 2022, como parte das
comemorações dos 50 anos do PPGCom-USP, o grupo GELiDis
organizou, juntamente com o Programa de Pós-Graduação em
Ciências da Comunicação da USP e com o Departamento de
Comunicações e Artes da ECA, o Seminário François Jost no
PPGCom-USP na modalidade presencial. Ao longo da primeira
palestra intitulada “Os memes: da paródia à pandemia digital”, o
professor apresentou resultados de sua pesquisa sobre os memes
enfocando tanto a sua construção como fenômeno de comunicação
quanto as especificidades de sua construção como discurso do nosso
tempo. No segundo dia do seminário, sob o tema Metamorfoses da
maldade nas séries norte-americanas, François Jost se dedicou a analisar
a questão da construção da maldade nas séries de televisão da
atualidade estabelecendo categorias e comparações entre os vilões das
produções atuais e os das produções mais antigas.
Por fim, destacamos os seminários organizados pelo Grupo de
Pesquisa GELiDis que tem como objetivo desenvolver ações e
atividades que se possibilitem o desenvolvimento acadêmico e de
pesquisa de suas/seus pesquisadoras/es privilegiando o
aprofundamento de discussões teóricas e metodológicas em torno
dos temas e objetos afeitos aos estudos de televisão.

I Seminário do Grupo GeLiDis - Linguagens e Discursos


Ficcionais: perspectivas a partir da obra de Bakhtin

O primeiro seminário organizado pelo Grupo GELiDis


aconteceu em 25 de abril de 2019 de forma presencial na ECA. O
objetivo do encontro foi apresentar e discutir metodologias e

377
procedimentos metodológicos para análise de obras ficcionais com
base nos estudos de Mikhail Bakhtin, enfocando-as sob a
perspectiva dos estudos de Comunicação. O evento contou com a
presença de dois estudiosos da obra bakhtiniana: Geraldo Tadeu
Souza (UFSCar) e Igor Sacramento (PPGICS/Icict/Fiocruz e UFRJ).
Em sua palestra, o Professor Geraldo Tadeu Souza analisou o
conto Orientação, de Guimarães Rosa, detendo-se no estudo das
metamorfoses da heroína e do herói - Rita Rola e Yao Tsing Lao –
por meio do cronotopo. O Professor Igor Sacramento proferiu sua
palestra sobre os temas autoria, estilo e exotopia em Bakhtin
discutindo-os como possibilidades para a análise da ficção
televisiva.

II Seminário do Grupo GELiDis - Linguagens e Discursos


Ficcionais de Televisão

O II Seminário do Grupo GELiDis ocorreu nos dias 02 e 09 de


junho de 2020 de forma remota, devido ao distanciamento social
imposto pela situação de pandemia de Covid-19. O objetivo do
evento foi discutir abordagens de análise de obras de ficção
audiovisuais com base em diferentes temas e perspectivas. O
evento contou com a participação da Profa. Giuliana Cassano,
(PUC-Peru), no primeiro dia de encontro; e do Prof. Christian
Pelegrini (UFJF), no segundo dia.
Na palestra Amor romântico e melodrama: um olhar para e da
novela, a Profa. Giuliana Cassano destacou o amor romântico como
um campo cultural e discutiu o melodrama como uma encenação
da experiência e representação feminina. Já o Prof. Christian
Pelegrini, em sua palestra intitulada Desenvolvimento de personagens
em audiovisual: uma perspectiva narratológica transmidiática, dedicou-
se a discutir as contingências da criação e do desenvolvimento de
personagens assumindo a perspectiva de uma narratologia
transmidiática conforme Jan Nöel Thon.

378
III Seminário do grupo GeLiDis - Linguagens e Discursos
Ficcionais de Televisão

A terceira edição do seminário do grupo GeLiDis ocorreu em


2021, nos dias, 26 de outubro e 09 de novembro, via Zoom e ainda
contou com transmissão pelo YouTube. As convidadas que
compuseram o programa, respectivamente, foram a Profa. Jasmine
Mitchell (State University of New York – SUNNY) e a Profa.
Simone Maria Rocha (UFMG).
No dia 26 de outubro de 2021, Jasmine Mitchell apresentou sua
palestra intitulada Medo e desejo de mulheres afrodescendentes:
representando mestiçagem na tela. Durante a apresentação, a
pesquisadora destacou que os Estados Unidos e o Brasil enfrentam
a devastação do racismo sistêmico, e que é possível discutir como
a anti-negritude origina-se das contradições do progresso racial
ilusório, dos mitos de democracia racial e mestiçagem, da negação
do racismo e dos legados duradouros da escravidão e da
colonização.
No segundo encontro do evento, a Profa. Simone Maria Rocha
proferiu palestra intitulada Ficção seriada televisiva brasileira no
contexto da nova televisão: expansão das normas de storytelling e efeito
Netflix. Em sua exposição, a pesquisadora abordou achados da
pesquisa Selo América Latina de produção da ficção televisual: mercado,
comunicação e experiência na era do streaming, da qual é coordenadora
geral. Com essa pesquisa, buscou-se evidenciar e identificar as
mudanças estilísticas e dramatúrgicas que vêm sendo observadas
nas produções latino-americanas da Netflix desde 2016.

IV Seminário do grupo GELiDis - Métodos e Técnicas aplicados


à pesquisa em Linguagens e Discursos nos Meios de
Comunicação

Em 2022, a programação do IV Seminário do Grupo GELiDis


dedicou-se a discutir e apresentar os métodos e técnicas de
pesquisa e análise de linguagens e discursos nos meios de

379
comunicação que têm sido adotados nas pesquisas realizadas no
grupo de pesquisa para o estudo das linguagens verbais e verbo-
visuais nos meios de comunicação, principalmente em ficção
televisiva. O evento teve lugar, de forma híbrida, ao longo de três
dias: 18 de novembro e 02 de dezembro (em ambos os dias, o evento
foi realizado via internet); no dia 16 de dezembro, o evento foi
realizado na modalidade presencial na ECA.
O primeiro dia de evento teve como tema Recepção e
Discursos. A primeira apresentação foi realizada pela Profa. Dra.
Helen Suzuki: A telenovela brasileira na relação intergeracional de
imigrantes brasileiros no Japão: mediação, discursos e produção de
sentido e teve como foco sua pesquisa de doutorado. A segunda
apresentação foi conduzida pela Profa. Dra. Paola Prandini que
discutiu aspectos de sua pesquisa de doutorado intitulada: Conexão
Atlândica: branquitude, decolonialitude e educomunicação em discursos
de docentes de Joanesburgo, de Maputo e de São Paulo. A Profa. Dra.
Lizbeth Kanyat destacou em sua apresentação os instrumentos
metodológicos utilizados em sua tese de doutorado intitulada A
produção de sentidos na recepção da série Game of Thrones: um estudo de
recepção sobre a construção de vínculos entre sujeitos locais e o produto
televisivo global.
Em 02 de dezembro, segundo dia do seminário, as
apresentações foram agrupadas sob o título Poéticas da Ficção
Seriada: formato, personagens e melodrama que contou com as
apresentações da Profa. Dra. Rosana Mauro sobre A construção
discursiva televisual da mulher popular na telenovela: um estudo sobre as
personagens de Avenida Brasil e A Regra do Jogo, na qual a autora
destacou procedimentos para análise de personagens de ficção. O
Prof. Dr. Anderson Lopes da Silva destacou o quadro teórico e os
procedimentos analíticos empregados em sua tese de doutorado
sob o título “O excesso como simbiose entre melodrama, carnavalização
e fantástico: análise das produções de sentido na minissérie Amorteamo".
Ainda no mesmo dia, a Profa. Dra. Daniela Jakubaszko discutiu o
conceito de dialogia bakhtiniano por meio da apresentação
Construção de uma perspectiva dialógica para a ficção audiovisual.

380
O terceiro dia do seminário ocorreu em 16 de dezembro e foi
realizado presencialmente na ECA e teve como tema Produções de
TV Paga e Streaming: formatos, gêneros, representações e temas.
As apresentações sobre a construção metodológica de suas
pesquisas ficaram por conta do Prof. Dr. Tomaz Penner, com a
apresentação Bandeiras da Netflix: produção global e representações
discursivas da diversidade LGBT+ nas séries brasileiras. Na sequência,
a Profa. Dra. Flavia Suzue de Mesquita Ikeda apresentou a
fundamentação teórica e os procedimentos de análise que
empregou em sua pesquisa de doutorado intitulada Séries
brasileiras na TV paga e nas plataformas streaming: gêneros, formatos e
temas em um circuito em transformação.
Finalmente, gostaríamos de indicar o site do grupo GELiDis
como fonte atualizada de suas atividades: https://sites.usp.br/
gelidis/

381
382
Sobre as autoras e autores

Analú Bernasconi Arab


Doutoranda em Ciências da Comunicação pelo PPGCOM da USP,
desenvolve atualmente sua pesquisa a respeito da Social TV na
Telenovela Pantanal: um estudo sobre as comunidades de fãs no
Facebook. Integrante do GELiDis liderado pela Prof.ª Dra. Maria
Cristina Palma Mungioli, da ECA/USP. Mestra em Imagem e Som
pela UFSCar/SP. Possui graduação em Comunicação Social com
Habilitação em Relações Públicas pela Unesp/Bauru. Tem experiência
na área de Comunicação, com ênfase em Relações Públicas e
Propaganda, atuando principalmente nos seguintes temas: relações
públicas, storytelling empresarial, organizações, memória
organizacional e cultura organizacional. Na área de audiovisual,
detém conhecimento nas áreas de cinema, roteiro, produção de
conteúdo para multiplataformas, narrativa transmídia, cultura de fãs,
fã-ativismo, produtos de ficção seriada e Social TV.
E-mail: analuarab@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8549-7906
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/0904805718133708

Anderson Lopes da Silva


Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São
Paulo e Mestre em Comunicação pela Universidade Federal do
Paraná. Professor (Lecturer) na Chulalongkorn University (Bangkok,
Tailândia), instituição na qual também realizou seu estágio pós-
doutoral atuando no Center of Latin American Studies (Spanish and
Portuguese Sections). Formado em Jornalismo (FACNOPAR), com
especialização em Comunicação, Cultura e Arte (PUCPR), se
dedica ao estudo das narrativas audiovisuais (televisão, cinema,
streaming e fandom), estudos da linguagem (excesso e dialogismo)
e estudos latino-americanos (cultura pop, comunicação
intercultural com Ásia, PLE e interseccionalidade). É vice-

383
coordenador da equipe paranaense na Rede Obitel Brasil e membro
da Comissão Editorial e Executiva da Revista Latinoamericana de
Ciencias de la Comunicación - ALAIC. Pesquisador do GELiDis
(CNPq/ECA-USP) e do NEFICS (CNPq/UFPR).
E-mail: anderson.l@chula.ac.th
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4865-4201
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5928025738021730

Claudinei Lopes Junior


Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Comunicação da Universidade de São Paulo (USP). Mestre em
Média e Sociedade pelo Instituto Politécnico de Portalegre (IPP) e
graduado em Comunicação Organizacional pela Universidade
Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Tem experiência como
professor de língua estrangeira. Dedica-se a pesquisas na área de
Comunicação, com ênfase nos assuntos referentes à imagem e
narrativas (fotografia, cinema, televisão, streaming e animação)
buscando conexões com os estudos de gênero, estudos feministas,
estudos interseccionais, estudos queer e estudos decoloniais. É
membro-pesquisador do GELiDis - Grupo de Pesquisa Linguagens
e Discursos nos Meios de Comunicação (CNPq/ECA-USP).
E-mail: claudine.i.lopes@hotmail.com/junior.lopes@usp.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5091-9037
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7345784328951440

Daniela Jakubaszko
Doutorado e Mestrado em Ciências da Comunicação pela Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Especialização
em Psicologia (2019). Possui graduação em Linguística e Português
pela Universidade de São Paulo (1998). Tem experiência nas áreas de
Linguagem e Comunicação, com ênfase em ciências da comunicação,
atua principalmente com os seguintes temas: telenovela brasileira,
cotidiano, memória e ficção televisiva, masculinidade e gênero.
Docente nos cursos de Comunicação da Escola da Indústria Criativa
da USCS - Universidade Municipal de São Caetano do Sul, é membro

384
do GELiDis - Linguagens e Discursos nos Meios de Comunicação
(ECA-USP). Autora do livro A Representação de temas de interesse
público na telenovela brasileira: uma perspectiva dialógica para o
estudo da ficção audiovisual. Membro do Comitê de Ética da USCS
(CEP-USCS) desde 2020.
E-mail: daniela.jakubaszko@online.uscs.edu.br
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8655301957304815

Flavia Suzue de Mesquita Ikeda


Doutora em Ciências da Comunicação (Escola de Comunicações e
Artes da Universidade de São Paulo) e mestra em Comunicação e
Semiótica (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo).
Graduada em Comunicação Social, Jornalismo (Universidade
Católica de Pernambuco) e especialista em Roteiro para Cinema e
Televisão (Universidade Estácio de Sá). Experiência de vinte anos
em projetos audiovisuais, como roteirista, pesquisadora ou
produtora de arte para televisão, cinema, publicidade, institucionais
e educativos. Ministra cursos de comunicação e audiovisual e
desenvolve design instrucional e conteúdo para EAD. É
pesquisadora do GELiDis (CNPq/ECA-USP) e se dedica aos estudos
de narrativas, discursos e linguagens, com especial interesse em
ficção seriada para televisão (broadcast, TV paga e streaming), além
de regulação e mercado da produção audiovisual independente.
E-mail: flaviasuzue@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2597-7673
Currículo Lattes: https://lattes.cnpq.br/2861048113705358

Gabriela Torres
Doutoranda em Ciências da Comunicação pela Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, mestre em
Comunicação Social e graduada em Comunicação Social pelo
Centro de Artes e Comunicação da Universidade Federal de
Pernambuco. É pesquisadora membro do Grupo de Estudos
Linguagens e Discursos nos Meios de Comunicação - GELiDis
(CNPq/ECA-USP) e tem se dedicado a pesquisas na área de

385
Comunicação, em especial narrativas ficcionais, produtos
audiovisuais e plataformas streamings.
E-mail:gabitorres.professora@gmail.com
Currículo Lattes: https://lattes.cnpq.br/1200460090369251

Helen Emy Nochi Suzuki


Doutora em Ciências da Comunicação (ECA-USP), com Bolsa Capes
Doutorado Sanduíche na Universidade de Shizuoka (Japão). Mestre
pela USP, com pesquisa vinculada na pós-graduação da
Universidade de Estudos Estrangeiros de Kyoto (Japão). Docente na
Universidade Anhembi Morumbi (UAM-SP) e especialista em
Inteligência de Mercado no IEMI. Possui especialização em Pesquisa
de Mercado em Comunicações (ECA-USP) e, em Arquitetura da
Informação (FIT-SP). Desenvolveu projetos de TV Interativa na SKY
do Brasil, projetos de Educação Corporativa para Petrobrás (PUC-
SP) e projetos na área de Game Based Learning. Foi coordenadora na
Fapcom, e docente na pós-graduação do Senac. É pesquisadora do
grupo GELiDis (CNPq/ECA-USP) e atua nos temas: ficção seriada,
discursos e linguagens, narrativas e identidades, relação
intergeracional e imigrantes brasileiros no Japão.
E-mail: helenochis@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8689-5591
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5161989992049196

João Nemi Neto


João Nemi Neto, Ph.D. (ele) é professor – senior lecturer – do
Departamento de Latin American and Iberian Cultures da Columbia
University em Nova York onde ensina cursos de língua portuguesa,
culturas brasileiras, teorias queer e identidades de gênero. Sua
pesquisa envolve questões de efeminofobia e representação
LGBTQAI+ na televisão, pedagogia queer, linguagem e identidades
de gêneros no ensino de língua estrangeira. Seu último livro é
“Cannibalizing Queer: Brazilian Cinema between 1970 and 2015”
publicado em 2022 pela Wayne State University Press. Também é
co-autor com Daniela Jakubaszko de uma série de artigos sobre

386
masculinidades e telenovela no Brasil. João também é tradutor e
escritor. Sua mais recente tradução é “In the name of desire” de
João Silvério Trevisan (Sundial, 2023).
E-mail: jn2395@columbia.edu
https://columbia.academia.edu/JoaoNemi

Ligia Prezia Lemos


Doutora e Mestre em Ciências da Comunicação pela Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, ECA-USP,
com Pós-Doutorado sobre expansão da ficção televisiva brasileira
na TV Paga e em VoD, pela mesma instituição. Especialista em
Gestão da Comunicação, atualmente é vice-coordenadora do GP
Ficção Seriada da Intercom. Possui ampla experiência nas áreas de
Artes e Comunicação, como Roteirista, Atriz e Produtora de
Conteúdo. Formada pela Escola de Arte Dramática da ECA-USP, é
graduada em Arte Educação pelo Centro Universitário Belas Artes
de São Paulo. Pesquisadora independente, atua principalmente
com as temáticas: séries televisivas, streaming, ficção televisiva
brasileira, ficção televisiva na Ásia, estudos de Fãs, narrativas
transmídia, roteiro audiovisual, TV paga e VoD no Brasil,
epistemologia e metodologia da pesquisa em Comunicação.
E-mail: ligia.lemos@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6977-2752
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/4176930105973896

Lizbeth Kanyat
Doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Mestre em
Comunicação e Práticas de Consumo pela Escola Superior de
Propaganda e Marketing - ESPM (2014), com estágio de pesquisa
no Centro Internacional de Estudios Superiores de Comunicación
para América Latina (CIESPAL), em Quito - Equador. Possui
graduação em Publicidade e Propaganda e especialização em
Docência Universitária pelo Centro Universitário Adventista de
São Paulo - UNASP (2009 e 2011). Também atua como professora

387
dos cursos de Publicidade, Jornalismo e Rádio e Televisão no
UNASP. É pesquisadora do Grupo de Estudos Linguagens e
Discursos nos Meios de Comunicação - GELiDis (CNPq/ECA-USP)
e coordenadora do grupo do Coletivo de Investigação em
Narrativas e Estéticas - CINE (CNPq/UNASP). Principais interesses
de estudo: comunicação e consumo; processos de recepção e
atribuição de sentidos; e narrativas televisivas.
E-mail: lizbeth.kanyat@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0757-9380
Currículo Lattes: https://lattes.cnpq.br/4498277879097885

Luciano Teixeira
Doutorando em Ciências da Comunicação pela Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP).
Mestre em Comunicação e Identidades pela Universidade Federal
de Juiz de Fora - UFJF (2013). Especialista em Comunicação de
Conflitos pela Universidade Autônoma de Barcelona - UAB
(Espanha, 2009). Jornalista com estudos voltados a temas como
refúgio, imigração, construção do real na telenovela, alteridades,
comunicação de conflitos, mediação da paz, (in)visibilidades na
ficção seriada e representação da violência no telejornalismo. Foi
repórter da TV Globo e da Folha de S. Paulo. Atualmente é repórter
do SBT Brasil e colabora com portais estrangeiros em reportagens
sobre Brasil e América Latina.
E-mail: luciano.teixeira@usp.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3548-8611
Currículo Lattes: https://lattes.cnpq.br/6615188571004332

Maria Cristina Palma Mungioli (Org.)


Professora Livre-Docente do Departamento de Comunicações e
Artes da Escola de Comunicações e Artes da USP. Professora do
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da
ECA-USP. Bolsista Produtividade em Pesquisa 2 do CNPq. Líder
do grupo de pesquisa GELiDis - Linguagens e Discursos nos Meios
de Comunicação - CNPq/ECA-USP. Coordenadora

388
do GT22: Estudos de Televisão e Streaming, da Associação Latino-
Americana de Investigadores de Ciências da Comunicação -
ALAIC. Editora adjunta da Revista Latino-Americana de Ciências
da Comunicação. Autora de diversos artigos e capítulos de livros
sobre ficção televisiva, em especial sobre séries, minisséries e
telenovelas brasileiras. Dedica-se ainda à pesquisa das relações
entre comunicação e educação sob a vertente da Educomunicação.
E-mail: crismungioli@usp.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5553-6107
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7264758788782605

Paola Prandini
Doutora e Mestra em Ciências da Comunicação, pela Escola de
Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo e Jornalista, pela
Faculdade Cásper Líbero. Foi pesquisadora-visitante da Universidade
Eduardo Mondlane, em Moçambique, e da University of the
Witwatersrand, na África do Sul. Co-fundadora da empresa social
AfroeducAÇÃO. Sócia-fundadora e Diretora Cultural da Associação
Brasileira de Pesquisadores e Profissionais em Educomunicação e
pesquisadora do Núcleo de Comunicação e Educação e do Grupo de
Pesquisa GELiDis - Linguagens e Discursos nos Meios de
Comunicação, ambos da USP. Autora dos livros “Cruz e Sousa”,
“Carolinas” e “A cor na voz: identidade étnico-racial,
educomunicação e histórias de vida” e cotradutora de “Batidas, rimas
e vida escolar: Pedagogia Hip-Hop e as políticas de identidade”.
E-mail: paprandini@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2852-4917
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3865493755212307

Rafaela Bernardazzi
Professora em Produção Audiovisual do Ensino Básico, Técnico e
Tecnológico no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
do Rio Grande do Norte (IFRN). Doutora em Estudos da Mídia, na
área de Práticas Sociais, na Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (UFRN). Mestre em Ciências da Comunicação pela Escola de

389
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP),
na área de concentração de Teoria e Pesquisa em Comunicação, na
linha de pesquisa Linguagens e Estéticas da Comunicação.
Especialista em Cinema e Linguagem Audiovisual pela
Universidade Estácio de Sá. Bacharel em Comunicação Social -
Radialismo pela UFRN. Líder do Grupo de Pesquisa COMINICAL.
Pesquisadora do Grupo de Pesquisa GELiDis - Linguagens e
Discursos nos Meios de Comunicação.
E-mail: rafaelaleite@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0153-017X
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/1288784072022919

Rosana Mauro
Professora substituta na Universidade Federal do Espírito Santo
(UFES), com pós-doutorado em andamento na mesma instituição.
Pesquisa sobre a união entre os conceitos de cronotopo e
terriorialidades para a análise de produções audiovisuais. Doutora
e mestre em Ciências da Comunicação pela ECA-USP. Integrante
do grupo de estudos GELiDis - Linguagens e Discursos nos Meios
de Comunicação e do CAT - Grupo de Estudos Cultura
Audiovisual e Tecnologia
E-mail: mauro.rosana@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1731-202X
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7559974135922950

Tomaz Penner
Doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações
e Artes da Universidade de São Paulo. Mestre pela mesma
instituição. Pesquisador dedicado aos temas digitais,
especificamente sobre redes sociais, consumo cultural, televisão e
audiovisual. Atualmente, trabalha com a Netflix e seus fluxos
globais, observando a configuração dos catálogos (especialmente
os títulos originais) ao redor do mundo e o comportamento da
marca em diferentes mercados. Foi pesquisador visitante na
Universidade do Texas em Austin (Estados Unidos), onde

390
desenvolveu a pesquisa "Títulos originais e licenciados com
exclusividade no catálogo brasileiro Netflix: um mapeamento dos
países produtores". É professor no Centro de Ciências Sociais e
Aplicadas da Universidade Presbiteriana Mackenzie e vice-
coordenador do Grupo de Estudos Linguagens e Discursos nos
Meios de Comunicação - GELiDis (CNPq/ECA-USP).
E-mail: tomaz.penner@mackenzie.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2690-5599
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3169767015889824

391

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