Ebook Cronotopo Generos e Discursos em Ficcoes Na TV e No Streaming
Ebook Cronotopo Generos e Discursos em Ficcoes Na TV e No Streaming
Ebook Cronotopo Generos e Discursos em Ficcoes Na TV e No Streaming
FICÇÕES NA TV E NO STREAMING
2
Maria Cristina Palma Mungioli
(Organizadora)
3
Copyright © Autoras e autores
Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida,
transmitida ou arquivada desde que levados em conta os direitos das autoras e dos
autores.
CDD – 410/370
4
Sumário
Apresentação 9
Maria Cristina Palma Mungioli
5
PARTE 2 – EXOTOPIA E GÊNEROS DO DISCURSO
NA FICÇÃO TELEVISIVA
6
12. Telenovela, imigração e alteridade: estratégias 309
discursivas do olhar sobre o estrangeiro
Luciano Teixeira
7
8
Apresentação
9
sua dimensão intradiegética, mas implicava também a abertura de
análises que incorporassem a construção social dos gêneros e
formatos televisivos, bem como a produção de sentidos e a poética
que caracteriza as produções da atualidade. Para atender a essa
demanda, organizamos internamente ao grupo e também com a
ajuda de professoras e professores que participaram dos
Seminários GELiDis (que descrevemos com mais detalhe no último
capítulo deste livro) reuniões de discussão em que o tema
cronotopo se configurava como o principal eixo dos debates.
Ao mesmo tempo, e também estabelecendo correlações entre
gênero e cronotopo, o grupo ampliou seus estudos referentes aos
gêneros e formatos televisivos, bem como à pesquisa em relação às
representações de gênero e identidades e à recepção de produções
televisivas de ficção, sobretudo telenovelas e séries. As discussões
internas ao grupo e as ocorridas nos diversos eventos nacionais e
internacionais - dos quais participaram todas as pessoas que
integram o grupo - forneceram elementos relevantes para a
elaboração de vários capítulos deste livro e proporcionaram o
aprofundamento das análises apresentadas em teses defendidas
pelos membros do grupo desde 2016.
Buscando estabelecer a relação entre os textos de forma a
destacar suas abordagens e ênfases conforme a temática e a
problemática abordada, o livro se divide em quatro partes. São
partes dialogam entre si e compõem um todo em que se evidenciam
principalmente os dois eixos teóricos mencionados anteriormente:
os estudos de linguagem de matriz bakhtiniana e a Análise do
Discurso de linha francesa.
A primeira parte do livro, Cronotopo, Personagens,
Recepção e Ficção Televisiva, traz textos em que o conceito de
cronotopo é empregado como elemento fundador das análises. Os
textos aprofundam as discussões em relação ao conceito
considerando sua aplicação ao produto televisivo - telenovela ou
série. O capítulo que abre a primeira parte do livro “Temporalidade
e cronotopo na minissérie televisiva Se eu fechar os olhos agora”, de
Maria Cristina Palma Mungioli, discute e analisa elementos da
10
poética das séries de televisão com base na construção discursiva
de sua temporalidade. O segundo capítulo, “Cronotopo como
categoria analítica em estudos de personagens populares no
audiovisual”, de Rosana Mauro, estuda a pertinência do conceito
de cronotopo para a análise de personagens no audiovisual – em
especial, de personagens femininas -, sobretudo na teleficção.
Considerando que todo o signo é ideológico, o texto propõe uma
reflexão quanto à construção de um significado de classe popular
na expressão audiovisual em dialogia com os discursos sócio
históricos. Rafaela Bernardazzi apresenta, no terceiro capítulo, o
estudo denominado “A caracterização das personagens masculinas
na minissérie Capitu”. O texto se dedica a estudar o figurino das
personagens Bento e Escobar. A análise observa a construção da
narrativa e seus sentidos a partir da articulação das estratégias
narrativas constituídas tanto pelo figurino e suas cores quanto pelo
discurso verbal. O quarto capítulo, “O espaço-tempo das cidades
distópicas da série 3%”, Flavia Suzue de Mesquita Ikeda e Maria
Cristina Palma Mungioli, analisa as cidades ficcionais que
compõem a diegese da distopia 3%. A análise tem base a
centralidade da articulação espaço-tempo na composição da trama
da série, utilizando como ferramenta conceitual de análise o
conceito de cronotopo (BAKHTIN, 2010; 2018). O quinto capítulo,
“Cronotopo da Recepção: exploração teórica e empírica do conceito
enquanto categoria analítica no estudo de recepção da série Game
of Thrones”, de Lizbeth Kanyat, estabelece conceitualmente o termo
cronotopo da recepção e o utiliza para analisar a série a recepção
brasileira da série de sucesso mundial, estabelecendo um protocolo
metodológico que associa o conceito de cronotopo de recepção de
Mikhail Bakhtin à teoria do ator indissociavelmente
disposicionalista e contextualista de Bernard Lahire.
Os quatro capítulos da segunda parte do livro, Exotopia e
Gêneros do Discurso na Ficção Televisiva, abordam as questões
que lhe dão título a partir de várias perspectivas, que se constroem
em torno desses conceitos-chave do pensamento de Bakhtin. O
sexto capítulo do livro do livro, “Mikhail Bakhtin e a telenovela
11
brasileira: exotopia, autoria e gêneros discursivos”, de Anderson
Lopes da Silva, aborda os conceitos de exotopia, autoria e gêneros
discursivos no estudo da telenovela brasileira, dedicando o estudo
à telenovela Cordel Encantado (Globo, 2011), O autor tensiona os
conceitos de excedente de visão, autor-criador, autor-pessoa e
gêneros discursivos secundários dentro do escopo da ficção
televisiva, destacando as relações dialógicas presentes nessa
telenovela. No sétimo capítulo, “O “galã de novela” entre o
machismo e o feminismo: como as questões de gênero pressionam
as formas composicionais da ficção televisiva”, Daniela Jakubaszko
e João Nemi Neto se dedicam, com base em uma perspectiva
dialógica, ao estudo dos galãs na ficção televisiva da Rede Globo,
com o objetivo de refletir como o tempo histórico presente, que
problematiza o machismo, é capaz de pressionar o gênero
teledramatúrgico a transformar padrões composicionais
fundamentais.
O oitavo capítulo, “Gêneros e formatos televisivos na era do
streaming: uma análise das produções originais Netflix latino-
americanas”, de Tomaz Affonso Penner e Claudinei Lopes Junior,
dedica-se a investigar os gêneros e os formatos da produção
original Netflix produzida na América Latina até fevereiro de 2020
com o intuito de reconhecer as eventuais semelhanças os produtos
ficcionais disponibilizados por streaming têm com a programação
televisiva tradicional no sistema broadcast. Em seguida, no nono
capítulo, temos o estudo de Ligia Prezia Lemos e Analú Bernasconi
Arab “Gêneros do discurso e TV Social: a série Cidade Invisível”. As
autoras propõem a análise da série televisiva da Netflix sob a
perspectiva do fenômeno denominado TV Social e analisam as
interações sobre a série na rede social Twitter, buscando estabelecer
os sentidos produzidos não apenas por meio da série em si, mas
também por meio das próprias interações.
A terceira parte do livro, Narrativas, Discursos, Alteridade e
Identidades na Ficção Audiovisual, apresenta cinco capítulos que
buscam entender a produção de sentidos de alteridade e identidade
em ficções audiovisuais, bem como a produção brasileira do
12
serviço de streaming Globoplay. O décimo capítulo, de autoria de
Paola Diniz Prandini, “Cinema e Educomunicação enquanto práxis
decoloniais: aproximações possíveis”, busca estabelecer pontes
possíveis entre cinema e educomunicação, enquanto práxis que
contribuem para a compreensão e o convívio nas sociedades
contemporâneas. A análise dos discursos de narrativas
cinematográficas centra-se na questão da mediação enquanto
concepção que move a práxis educomunicativa. O décimo primeiro
capítulo, de Helen Emy Nochi Suzuki e Maria Cristina Palma
Mungioli, “Narrativas de Trajetórias Particulares”, discute a
produção de sentido em discursos de imigrantes brasileiros que
moram no Japão, partindo de suas lembranças e memórias. O
estudo de recepção colheu depoimentos durante pesquisa de
campo realizada no Japão entre setembro e dezembro de 2013. Por
meio da técnica de observação participante durante a assistência de
telenovelas brasileiras, com objetivo de coletar as histórias de vida
desses imigrantes brasileiros que moram no Japão, foi possível
analisar aspectos do papel social das narrativas orais na vida dos
sujeitos da pesquisa. Em “Telenovela, imigração e alteridade:
estratégias discursivas do olhar sobre o Estrangeiro”, Luciano
Teixeira dedica-se ao estudo da produção de sentidos dos discursos
da telenovela Órfãos da Terra (Globo, 2019) enfocando a imigração
e a alteridade. O ponto central sua discussão é a questão dos centros
de valores do “eu” e do “outro”, inserindo-a no quadro das
narrativas sobre imigrantes/culturas estrangeiras produzidas pela
televisão brasileira no século XXI.
No décimo-terceiro capítulo, “O cronotopo e o Homem na
série Segunda Chamada, Gabriela Torres reflete sobre as narrativas
presentes nas séries ficcionais seriadas produzidas para televisão
ou para streaming, tomando como objeto a série Segunda Chamada
(Globoplay, 2019). Suas discussões se dedicam, entre outras coisas,
a pensar a relação entre gênero e cronotopo em termos de série de
ficção. No capítulo, “Um estudo do catálogo das séries originais
Globoplay no período de 2018 a 2022”, Maria Cristina Palma
Mungioli e Flavia Suzue de Mesquita Ikeda constroem sua análise
13
considerando o formato série de televisão como seu objeto. O
capítulo se dedica a analisar a produção e a exibição de séries
originais Globoplay no contexto atual marcado pela produção e
consumo de ficção por meio de serviços de streaming, destacando
temas e estratégias de lançamento em cenário internacionalizado
de produção de conteúdos e formas de apropriação dos gêneros e
formatos globais. O capítulo apresenta os resultados de pesquisa
Séries brasileiras de televisão no cenário da internacionalização e da
transnacionalização: um estudo sobre a mediação local na constituição de
formatos e gêneros ficcionais na plataforma Globoplay no período de 2016
a 2020, apoiada pelo CNPq no âmbito de bolsa de produtividade
da líder do grupo de pesquisa.
A quarta e última parte, O Grupo de Pesquisa GELiDis -
Linguagens e Discursos nos Meios de Comunicação, de autoria
de Maria Cristina Palma Mungioli e Claudinei Lopes Júnior tem
como objetivo apresentar o grupo de maneira mais
contextualizada, indicando suas filiações teóricas e trabalhos
realizados desde sua criação, em 2015.
Por fim, destacamos que a linha que une os diversos capítulos
do livro pode ser encontrada na concepção dialógica preconizada
por Bakhtin (2017, p. 79) segundo a qual “não existe a primeira nem
a última palavra, e não há limites para o contexto dialógico (...).”
(Bakhtin 2017, p. 79). É por meio desse enquadramento que
compreendemos a concepção e o próprio funcionamento de nosso
grupo de pesquisa que reúne pesquisadoras/es experientes e jovens
em formação tanto na pós-graduação quanto na graduação em um
contexto de construção social do conhecimento na universidade
pública.
Ao final desta apresentação, gostaríamos de agradecer ao
CNPq e à Capes pela concessão de bolsas de mestrado e de
doutorado a diversos integrantes do grupo de pesquisa e,
principalmente, ao CNPq pela concessão de bolsa de
produtividade à líder do grupo de pesquisa. Sem esses apoios,
diversas pesquisas realizadas no âmbito do grupo GELiDis não
poderiam ter acontecido. Agradecemos ainda o apoio do Programa
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de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação (PPGCom-USP) e
do Departamento de Comunicações e Artes da Escola de
Comunicações e Artes sem o qual não seria possível realizar
reuniões e eventos do GELiDis.
Boa leitura!
Referências
15
16
PARTE 1
17
18
Temporalidade e cronotopo na minissérie televisiva
“Se eu fechar os olhos agora”1
1O texto atual com pequenas alterações foi publicado originalmente na Revista Rumores,
edição jul/dez de 2020. DOI: 10.11606/issn.1982-677X.rum.2020.176429. Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/Rumores/article/view/176429. Acesso em: 29 jan. 2023. A
autora é bolsista Produtividade 2 do CNPq (Processo 314255/2020-6)
2 Com roteiro de Ricardo Linhares, a minissérie é uma adaptação do livro
19
os gêneros e formatos dos produtos massivos como mediações por
meio das quais se articulam as lógicas dos sistemas produtivo e de
consumo e suas camadas culturais.
Em termos mais específicos, consideramos as séries e minisséries
televisivas como formas narrativas (MITTELL, 2006, 2015; JOST, 2011;
SEPULCHRE, 2011; MUNGIOLI; PELEGRINI, 2013; SILVA, 2014,
2015; ESQUINAZI, 2014) construídas sobre o eixo da serialidade e
“que se inscrevem (...) na linhagem da cultura popular apropriando-
se do legado dos grandes contadores de histórias, escritores de
romances e cineastas (...).” 3(ESQUINAZI, 2014, p. 161)4
Em uma perspectiva mais diretamente relacionada ao estudo da
temporalidade nas séries de televisão na atualidade, Ames (2012, p. 8-
9) destaca que o formato, a partir dos anos 2000, tem trabalhado a
temporalidade de forma bastante diferente da que era feita
anteriormente, pois tem utilizado processos “de retardamento e
compressão do tempo” de modo a “perturbar o próprio fluxo
cronológico” por meio do “uso extensivo de flashbacks e da insistência
para que os espectadores estejam aptos a se localizar eles próprios no
presente e no passado simultaneamente”. Embora os procedimentos
de construção temporal da história por meio do jogo entre passado,
presente e futuro diegéticos não sejam uma novidade nas produções
televisivas do século XXI, a autora enfatiza em sua argumentação
“que nunca antes o tempo narrativo jogou um papel tão importante
no mainstream televisivo.” (AMES, 2012, p. 9).5
Em termos de desenvolvimento do presente texto, situamos a
discussão em torno de uma poética das séries de televisão
(MITTELL, 2015) considerando a construção discursiva de sua
temporalidade. Após discussão baseada em aspectos da
mainstream television.”
20
narratologia (RICOEUR, 1983; ECO, 1997; BARONI, 2016,
GENETTE, 2017), dos estudos de linguagem televisiva (MITTELL,
2015; JOST, 2016) e dos estudos de linguagem de Bakhtin (2010),
será realizada a análise de alguns pontos relativos à construção da
temporalidade no primeiro episódio da minissérie “Se eu fechar os
olhos agora”.
Resumidamente, a minissérie foi lançada pelo serviço de
SVOD (Subscription Video on Demand) Net Now, em 29 de agosto de
2018. Posteriormente, foi exibida na TV Globo, entre 15 e 30 abril
de 2019, no horário das 23 horas. Indicada ao prêmio Emmy
Internacional de 2019 na categoria de melhor minissérie, a
produção encontra-se atualmente no catálogo do serviço por
assinatura Globoplay.
21
início, um final: quer dizer que a narração é uma sequência temporal.
Sequência duas vezes temporal, devemos acrescentar logo: há o
tempo do narrado e o da narração (tempo do significado e tempo
do significante).” (grifos do autor). Genette (2017, p. 91) destaca que
não apenas a narrativa cinematográfica, mas também a oral,
apresenta a dualidade apontada por Metz, ou seja, a diferenciação
entre tempo da história (erzählte Zeit) e tempo da narrativa
(Erzählzeit); respectivamente, o tempo que decorre no interior da
história e o tempo que se leva para ler a história. Para Genette (2017,
p. 92), no caso do filme, em princípio, é possível modificar a ordem
de leitura alterando-se a sucessividade dos fatos narrados. No
entanto, o texto escrito possui uma construção mais “amarrada”
devido à própria “linearidade do significante linguístico”. Ainda,
de acordo com Genette (2017, p. 93), “estudar a ordem temporal de
uma narrativa é confrontar a ordem da disposição dos
acontecimentos ou segmentos temporais no discurso narrativo com
a ordem de sucessão desses mesmos acontecimentos ou segmentos
temporais na história (...).”
Ainda na linha dos estudos da narrativa, Ryan (2010, p. 20)
afirma que “como os narratologistas observaram há bastante
tempo, as narrativas obedecem a uma dupla ordem temporal: a
ordem dos acontecimentos no mundo narrativo e a ordem segundo
a qual esses acontecimentos são apresentados.”6
O aspecto referente à composição e à organização da narrativa
e sua correlação com as formas de temporalidade foi estudado pelos
chamados Formalistas Russos e pode ser pode ser observado na
clássica definição de Tomachevski ([1925] 1976, p. 173), segundo a
qual “a fábula é o que se passou; a trama é como o leitor toma
conhecimento dele.” Desenvolvendo essa definição, Eco (1986, p. 85)
afirma que “fábula é o esquema fundamental da narração, a lógica
6No texto original: “Comme les narratologues l’ont observé depuis longtemps, les
récits obéissent à un double ordre temporel: l’ordre des événements dans le
monde narratif et l’ordre dans lequel ces événements sont présentés par le
discours.”
22
das ações e a sintaxe das personagens, o curso dos eventos ordenado
temporalmente.” E acrescenta, “o enredo pelo contrário, é a história
como de fato é contada (...), com as deslocações temporais, saltos
para frente e para trás (ou seja, antecipações e flashback)”. Tal
definição se assemelha à de Forster ([1927] 1998) segundo a qual
história e enredo não são a mesma coisa. Para Forster (1998, p. 83), a
história “é uma narrativa de acontecimentos dispostos em sequência
no tempo. Um enredo é também uma narrativa de acontecimentos,
cuja ênfase recai sobre a causalidade.” Forster (1998, p. 84) adverte
que, na composição de um enredo, não basta criar ganchos que
prendam a atenção do leitor apenas pela curiosidade, mas um bom
enredo “também exige inteligência e memória.”
De uma forma bastante resumida, podemos dizer que a
construção da temporalidade nas narrativas não está apenas
relacionada a procedimentos mais comumente observados na
superfície da narrativa e que dizem respeito mais diretamente às
anacronias, ou seja, às “diferentes formas de discordância entre a
ordem da história e a da narrativa” (GENETTE, 2017, p. 89) como
elipses, analepses (flashbacks) e prolepses (flashforwards), mas está
implicada na própria constituição da trama sobre a qual se constrói
a intriga. Enfatizando essa questão, Ricoeur afirma que:
23
já que as ações dadas se desenrolam no tempo, o medo e a esperança
[emoções] orientam a atenção do público para uma resolução incerta,
e a unidade da representação é assegurada pela função catafórica
[organizadora na forma de pensar como coesão] do início e pela
função anafórica [repetição, reiteração do motivo desencadeador
mostrado no início] do fim. (BARONI, 2016, p. 1)7
7No texto original: “ [...] since actions told unfold in time, fear and hope orient the
attention of the audience toward an uncertain resolution, and the unity of
representation is assured by the cataphoric function of the beginning and the
anaphoric function of the ending.”
24
Tempo da narração: o tempo para contar a história (na televisão e
no cinema: screen time).” (MUNGIOLI, 2019, p. 163). É em relação
à segunda definição, referente ao tempo do discurso que
procederemos à análise no presente trabalho, pois pretendemos
observar como flashbacks e flashforwards atuam na composição do
jogo incessante entre passado e presente diegéticos por meio de
uma organização discursiva.
Tratando da temporalidade e de sua construção estética no
texto literário, Bakhtin (2010) propõe uma outra chave de
interpretação que se baseia na relação indissolúvel entre tempo e
espaço: o cronotopo.
25
cronotopo de aventuras é caracterizado pelas sucessões operadas no
espaço físico. (MUNGIOLI, 2013, p. 107)
26
representados em um corte da totalidade da época. Os
acontecimentos representados devem abranger de certo modo toda
a vida de uma época.” (grifos do autor). Embora o cronotopo
artístico seja apreensível como tal a partir do acabamento temático
e estético, cabe enfatizar que não se trata de um mundo à parte do
mundo representado. Ao contrário, trata-se de um mundo
representado que se constrói dialogicamente e que, por isso,
guarda relações dinâmicas e orgânicas com o mundo que se
representa. São zonas fronteiriças. Clark; Holquist (1998, p. 297)
afirmam que “o cronotopo é uma ponte, não um muro, entre dois
mundos.” O entrelaçamento e o diálogo entre esses dois mundos (o
mundo ficcional e a realidade) é realizado dialogicamente pelo
autor, ouvinte, leitor (telespectador) da história.
27
tempo após a confissão, Francisco é encontrado morto em sua cela
na cadeia da cidade. Convencidos de que a polícia local não quer
elucidar os assassinatos, com a ajuda de Ubiratan (Antonio
Fagundes) - um morador do asilo da cidade -, os dois garotos
realizam investigações paralelas às da polícia local que não vê nada
de suspeito na morte do criminoso confesso. As investigações os
levam a encontrar pistas de que personalidades importantes da
cidade estão envolvidas nesse e em outros crimes. Por fim, os
garotos e Ubiratan conseguem encontrar o verdadeiro assassino de
Anita e outros criminosos.
A narrativa da minissérie tem início por meio do recurso de
abertura fria9, bastante usada em séries de televisão que, de
maneira geral, atende às necessidades do fluxo televisivo
(WILLIAMS, 2016) e pode servir para prender a atenção do
telespectador ao mostrar a situação de instabilidade que irá se
constituir como o conflito principal da narrativa. Tais
especificidades remetem ao formato seriado televisivo e suas
implicações em termos de estrutura de uma forma cultural
(WILLIAMS, 2016) e formas de recepção permeadas pelas
mediações (e espectatorialidade) (MARTIN-BARBERO, 2001).
A abertura do primeiro capítulo mostra Anita, de camisola,
correndo entre árvores e sendo perseguida por um homem
acompanhado de um cão feroz. Anita cai e, em seguida, o animal é
solto para atacá-la e a imagem congela: vemos o pavor estampado
em seu rosto.
Essa cena dura cerca de 40 segundos. Entram os créditos
iniciais e o título do primeiro episódio é mostrado: “A terra é azul”.
Na sequência seguinte (de mais ou menos 3 minutos), vemos um
homem com uma maleta médica sendo conduzido por outro
homem até um quarto onde está Anita deitada sobre uma cama. O
28
primeiro homem se apresenta como médico e examina Anita e diz
que ela não tem apenas os ferimentos das mordidas do cão. O outro
homem então diz para o médico se ocupar apenas dos ferimentos
da mordida do cão e sai da sala. Anita, que até então estava calada,
tenta se comunicar com o médico. O outro homem percebe isso e
volta para o quarto e dá um tiro na cabeça do médico. O sangue
dele espirra em Anita e ela grita apavorada.
Embora as situações apresentadas nas sequências iniciais não se
configurem como as causas diretas do assassinato da jovem, cabe
destacar o papel essencial delas para a elaboração de cronotopos -
mediados pela criação estética (e acabamento temático) - do
“universo imaginável” (TODOROV, 1981, p. 129) que compõe a
história. Ganham espaço nessa construção o cronotopo da violência
contra a mulher perpetrada por homens em lugares como bosques,
florestas e em espaços domésticos privados, sobretudo quartos. Ou
seja, cronotopos que se caracterizam por relações entre espaço-
tempo que localizam conflitos dessa natureza em espaços “fora da
visão” da sociedade, ou mais precisamente nos espaços comumente
denominados da vida privada. As situações apresentadas inserem-
se concretamente em uma relação tempo/espaço que se densifica e
dialoga não apenas com aquilo que vemos na tela, mas também
como nosso saber enciclopédico (ECO, 1997).
Cabe ressaltar, no entanto, que, embora o elemento de
violência contra a mulher na minissérie analisada se localize em
um passado recente, as situações de perseguição e violência
contra as mulheres nos espaços acima citados constituem-se como
topoi da literatura e das produções audiovisuais. Dessa forma, os
cronotopos construídos pela criação estética e acabamento
temático dessas cenas compõem o universo da história, dando-lhe
estrutura e configurando personagens e conflitos.
Simultaneamente, configuram expectativas e emoções (BARONI,
2016) que possibilitam ao espectador acompanhar o
desenvolvimento da trama.
Após as sequências acima descritas, temos o letreiro “Dois
anos depois. São Miguel, RJ”. A cidade e seus moradores nos são
29
apresentados ao som da música Mr. Sandman ( 1954) que se
contrapõe às cenas de violência que descrevemos acima. Um plano
geral mostra a cidade de São Miguel, a igreja da Matriz. A câmera
se aproxima e vemos carros circulando, pessoas bem arrumadas
entrando na igreja e crianças correndo para entrar no colégio.
Surge então o garoto Paulo Roberto, indo de bicicleta para a
escola, a câmera o acompanha e vemos crianças em fila entrando
nas salas do colégio. A música e o figurino transportam-nos para
a atmosfera dos anos 1950. Na sequência, surge Paulo Roberto
(Milton Gonçalves) já idoso escrevendo ao computador e nos
damos conta de que ele está escrevendo a história que nos será
mostrada. O narrador em primeira pessoa acrescenta à história o
ingrediente biográfico e testemunhal de que a narrativa se reveste.
Ao mesmo tempo, a ação do escritor, em andamento, produz
sentido de que assistimos a uma história que ainda se desenrola e
produz efeito de um presentificação dos fatos narrados. A
dualidade tempo da história, estudada por Genette (2017),
(erzählte Zeit) e tempo da narrativa (Erzählzeit) se misturam e
enredam o telespectador na história.
Na sequência seguinte, vemos os dois meninos na sala de aula
e o narrador informa que estamos em uma tarde quente de abril de
1961. Os meninos são expulsos pelo professor por estarem vendo
fotografias de mulheres, entre elas Brigitte Bardot. Após a expulsão
da sala de aula, aguardam na sala do diretor quando a música Mr.
Sandman, agora tocada no rádio da sala, é interrompida para as
notícias e o locutor informa que Yuri Gagarin retornou do espaço
em segurança e disse que a terra é azul.
Os dois meninos fogem da escola (e do castigo), mas antes de
irem nadar no lago – onde encontrarão o cadáver de Anita -,
passam pela igreja onde ocorre uma homenagem ao Senador
Marcos Torres, avô do atual prefeito Adriano (Murilo Benício). Em
seu discurso, ao lado do industrial da cidade e do delegado, o
prefeito lembra a tradição política da família e a importância do
avô: amigo de D. Pedro II, dos militares que o sucederam na
República e de Getúlio Vargas. Ao longo do discurso o prefeito
30
afirma que “como bom tradicionalista, sempre deu valor à família
e às instituições.” Sublinha ainda que a cidade deve muito a seu
avô senador: a estrada que leva ao Rio de Janeiro, a instalação da
indústria de tecidos “gerando renda e emprego”.
A realização da homenagem na igreja e a presença no altar do
industrial e do delegado mostram as instituições que dão suporte à
situação política. O discurso de exaltação ao político do passado
destacando sua atuação para a industrialização da cidade nos anos
1950, compõem um cronotopo do Brasil e da política brasileira da
época baseado na industrialização, na família e na tradição. O
discurso faz convergir diversas temporalidades que marcam a
história do Brasil, comprimindo-as no espaço-tempo da narrativa
da minissérie. Nesse sentido, cabe mencionar que Ianni constata as
diversas temporalidades e espaços envolvidos na constituição do
Brasil moderno:
31
presidente Michel Temer e que gerou grande repercussão nos
meios de comunicação e nas redes sociais em 2016. (VEJA, 2016)10
Novamente, os sentidos ganham mais camadas e remetem a
usos e costumes em relação ao discurso sobre a mulher do vice-
presidente e sobre as mulheres em geral. O enunciado do político
da história ficcional plasma-se ao da revista e aos demais
enunciados que circularam nos meios de comunicação. Dessa
forma, as camadas de temporalidade do presente diegético
misturam-se ao presente do espectador, produzindo sentidos e
formas de reconhecimento entre o ficcional e o real.
Os cronotopos da escola do passado, da amizade entre os
meninos, da cidade do interior e o da família tradicional situam-
nos no espaço-tempo que predominará ao longo da minissérie.
Mas, concomitantemente, situam-nos em um tempo-espaço mais
amplo caracterizado pela modernidade do avanço tecnológico que
permitiu ao Homem circundar a Terra em uma nave espacial. A
chave de leitura introduzida pela romântica música Mr. Sandman
e pela notícia do feito do astronauta será logo invertida pelo
achamento do cadáver de Anita e pela série de assassinatos que se
seguirão. O mundo imaginável construído pela trama compõe-se
de personagens e conflitos que somente podem ser apreendidos a
partir das relações sociais e econômicas que se conjugam por meio
da relação tempo e do espaço, ou seja, do cronotopo.
Em termos da construção discursiva da temporalidade, a
partir desse momento, a trama, conforme mencionamos
anteriormente, contada em primeira pessoa pela voz em off do
idoso Paulo Roberto, adquire tom memorialístico e se desenvolve
por meio de flashbacks e flashforwards. À maneira de um puzzle, os
flashbacks narrativos apresentam-se aos telespectadores não apenas
como forma de recompor a motivação do(s) assassino(s) e a
dinâmica do crime, mas também como forma de dar força
dramática às situações de exploração sexual da jovem assassinada.
32
O recurso estilístico, marcado pela voz testemunhal mostra tanto
as relações escusas entre políticos e poderosos de São Miguel,
quanto remetem a práticas de exploração simbólicas e concretas
com relação às mulheres de uma maneira geral e às mulheres
pobres de uma maneira mais estrita, corroborando os cronotopos
que mencionamos no início de nossa análise.
Outro recurso temporal utilizado no primeiro capítulo são
flashforwards que inserem cenas que serão apresentadas nos
capítulos posteriores e surgem como elementos que sugerem
desdobramentos de conflitos e ações que acontecem com as
personagens que interagem no presente diegético. Nesse caso, esse
recurso se configura, em termos narratológicos, como uma
prolepse narratorial (Jost, 2016, p. 22). Um exemplo desse
procedimento pode ser observado na cena (aos 19´56) do primeiro
capítulo em que vemos Cecília (Marcela Fetter), a filha do prefeito,
aos beijos com Renato (Enzo Romani), um jovem negro jogador do
time de futebol da cidade, em um encontro furtivo. Misturados a
esse presente diegético vemos flashs de cenas que serão mostradas
no segundo capítulo. O jogo entre passado, presente e futuro
diegéticos solicita do telespectador atenção constante para que
possa se situar entre as diversas temporalidades e encontrar formas
de desvendar o mistério que cerca a morte de Anita.
Embora não faça parte do primeiro capítulo, cabe mencionar o
uso, no segundo capítulo, de um flashback cuja cena mostrada não
corresponde ao discurso da personagem sobre o acontecimento,
criando uma espécie de narrador desacreditado que se mostra por
meio de um lying flashback (JOST, 2016, p. 21) de modo que “se
semiologicamente o uso da imagem é incapaz de negar o que ela
mostra, ao contrário, seu uso no interior de um discurso (ou
narrativa) coloca em causa a verdade [das imagens] fora do
contexto. A visualização pode também desacreditar um discurso
verbal que nos coloca sobre uma falsa pista.”11 Na minissérie em
montre, en revanche, son usage à l’intérieur d’un récit met en cause cette vérité
33
análise, encontramos essa última possibilidade de interpretação,
pois a cena a que nos referimos ocorre entre o prefeito Adriano
(Murilo Benício) e sua esposa Isabel (Débora Falabella) em um
momento em que ele lhe pergunta sobre uma grande quantia de
dinheiro encontrada no carro que ele lhe havia emprestado.
Tentando explicar a situação embaraçosa, Isabel narra uma história
cujos fatos não correspondem às imagens mostradas ao espectador.
Esse procedimento permite ao espectador uma posição de
cumplicidade em relação à personagem, ao mesmo tempo em que
aponta os conflitos de confiança existentes entre o poderoso casal
de São Miguel.
Considerações
hors contexte. La visualisation peut aussi bie infirmer un récit verbal que nous
mettre sur une fausse piste.“
34
relações tempo-espaço como configuradoras de cronotopos por
meio dos quais damos sentidos aos enunciados audiovisuais.
O tempo e o espaço tornam-se apreensíveis por meio do
acabamento temático e estético que caracterizam os cronotopos
analisados e que localizam as situações e os conflitos para além do
espaço da minissérie, mostrando-os a partir de uma perspectiva
sócio-histórica. Ao longo da análise, que se deteve no primeiro
capítulo da minissérie, observamos cronotopos, que se chocam, ou
melhor, se justapõem e mostram suas facetas: a violência contra a
mulher, o racismo, o desprezo pela vida humana e o uso de práticas
políticas que se alinham a um passado marcado pelo coronelismo
e pelo clientelismo. Características que adentram o mundo da
modernidade, representado pelo início da corrida espacial, e nos
permitem relacioná-las à noção de destempos discutida por
Martin-Barbero (1995, p. 46) e Ianni (2004). Dessa forma, as diversas
temporalidades e seus espaços sociais condensados nos cronotopos
mencionados denotam os destempos, ou seja, as diversas
temporalidades que não apenas se contrapõem, mas também se
superpõem, se justapõem, caracterizadas, por sua vez, pela
heterogeneidade que apresenta formações culturais arcaicas,
residuais e emergentes lado a lado na sociedade brasileira.
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37
38
Cronotopo como categoria analítica em estudos de
personagens populares no audiovisual
Rosana Mauro
39
Entre ética e estética
40
objetivo de mostrar as marcas discursivas no que se refere à classe
social e ao gênero feminino.
O conceito de cronotopo (tempo-espaço) nos possibilita essa
análise por realizar a mediação entre duas ordens discursivas, a
histórica e a artística, conforme expõe Stam (2013, p. 228), ao defender
a adequação do conceito de cronotopo aos estudos de cinema.
41
Personagem Função e Estado
42
“[...] submeter os vários atores da obra à funcionalidade básica de
um texto-actante, ocupado em compor a trama e a história de seu
fazer textual”. (SEGOLIN, 1978, p. 85). Os atores estão, desse modo,
funcionalmente descaracterizados na simultaneidade do texto,
mas, ainda pode haver referência ao ser humano.
Embora o autor trate a personagem-estado como um ser mais
complexo, que tenta subverter a ordem narrativa tradicional, é
possível nos apropriarmos da expressão com referência a
determinadas personagens na telenovela que não vivenciam
grandes acontecimentos na trama. São personagens que tendem à
não complexidade, que chamam mais a atenção por suas
características, e, em seu fazer-se audiovisual, apresentam menos
dinamicidade e mais simultaneidade, em cenas com a duração de
diálogos, assuntos cotidianos, falas mais espontâneas e naturais.
Essa temporalidade se assemelha ao cronotopo de costume e
cotidiano tratado por Bakhtin (2010).
43
e pela sua possibilidade de transferência no espaço”. (BAKHTIN,
2010, p. 225).
No romance antigo de aventuras e costumes, por sua vez,
havia a união entre o tempo de aventura e o de costumes. O herói
passava por transformações que lhe permitiam estar no cotidiano,
tido como inferior, como um observador, um terceiro. Em sua
forma normal, ou evoluída, o herói vivia acontecimentos
exclusivos, as aventuras fora do dia a dia comum. O teórico russo
menciona também as transformações de papéis, como do mendigo
ao rico. O trapaceiro e o aventureiro se enquadram nesse tipo de
herói, pois são aqueles, explica Bakhtin, que começam a vida por
baixo, em contato com os universos mais ordinários, até
conseguirem atingir o topo da vida privada. Também, o estudioso
reconhece os espectadores permanentes da vida privada nas obras
literárias dos realistas franceses. A saber: o criado, a prostituta, a
cortesã, a alcoviteira, os médicos e tabeliães. Na telenovela
brasileira, temos com frequência a empregada doméstica que
poderia se encaixar nessa categoria.
O terceiro gênero de romance antigo estudado por Bakhtin
(2010) é o biográfico e autobiográfico, que se divide em dois tipos:
o retórico e o platônico, no qual o tempo biográfico real dissolve-se
em um tempo ideal de transformação humana. Ambos eram
realizados em praça pública, conectados com os acontecimentos
políticos e submetidos ao controle público-estatal. Nesses
romances, uma transformação do espaço público ao privado tem
início quando as formas autobiográficas começam a manifestar
desagregação com o espaço exterior público e a exprimir certa
consciência privada. Porém, ainda não há o homem solitário, que
surgirá apenas na Idade Média.
Ao tratar da Idade Média, Bakhtin (2010) discute o romance de
cavalaria, o romance da Baixa Idade Média e as formas folclóricas
satírico-paródicas. Nesse período, ressalta a ocorrência de uma
inversão histórica do folclore antigo – marcado pela plenitude do
tempo - que já estava em desagregação nos romances antigos
devido à estratificação social. “Porém essas formas de plenitude
44
folclórica de tempo, apesar de tudo ainda atuavam no romance
antigo”. (BAKHTIN, 2010, p. 265). A inversão histórica se dá no
momento em que o pensamento mitológico é colocado no passado,
como uma idade de ouro localizada em algum ponto distante do
mundo, quando, na verdade, no folclore antigo se trata de um
tempo voltado para o futuro para o qual se planta e colhe. É um
tempo produtivo, fecundo, uno e cíclico, no qual a vida coletiva do
trabalho agrícola predomina. A vida humana e a natureza
apresentam aqui as mesmas categorias de percepção, pois o dia a
dia desse homem está ligado à terra e à natureza, seus objetivos são
práticos e o tempo é bastante espacial e concreto. Não havia
separação entre vida cotidiana e vida histórica do homem, tudo
estava relacionado ao trabalho social “[...] a comida, a bebida, a
copulação, o nascimento e a morte não eram momentos da vida
privada, mas um problema comum, eram “históricos” [...]”.
(BAKHTIN, 2010, p. 319).
Na Idade Média, por sua vez, o tempo folclórico antigo dá
lugar ao atemporal e ao eterno “[...] como se eles já existissem, como
se fossem contemporâneos. Cada uma dessas formas esvazia e
rarefaz o futuro a seu modo, deixa-o exangue.” (BAKHTIN, 2010,
p. 265). Outra forma de inversão do folclore popular é a escatologia.
Trata-se de uma relação mitológica e literária com o futuro que é
trazido para um presente bem material. Aqui, o homem do folclore
insere-se totalmente no espaço e no tempo. A grandeza e a força
aparecem relacionadas com as dimensões temporais e espaciais.
Por exemplo, um homem grandioso em sua personalidade o será
também em seu corpo e passos.
Voltando aos romances da Idade Média, nos romances de
cavalaria, Bakhtin (2010) destaca que o herói é individual e
representativo, ou seja, ele é único, diferente do romance grego no
qual os heróis se pareciam uns com os outros. Ao mesmo tempo,
cada herói de cavalaria rende vários romances. O cronotopo é de
um mundo maravilhoso em um tempo de aventuras. O tempo é
subjetivo e distorcido, como nos sonhos.
45
Nos romances antigos, a medida de tempo era clara, como um
dia ser um dia e uma hora ser uma hora. Na Baixa Idade Média,
Bakhtin distingue o romance marcado pela vertical medieval, no
qual todo mundo se une no mesmo espaço-tempo em uma
interpretação simbólica, de modo a destacar as contradições da
época. Pessoas de todas as classes sociais se misturam em um ato.
Apesar da atemporalidade e simultaneidade, a imagem das
pessoas que fazem parte desse mundo é histórica, há sinais do
tempo e traços de época. Porém, essas diferentes pessoas são
obrigadas a permanecer em um mesmo lugar eterno e imóvel da
vertical atemporal.
Já as formas folclóricas satírica-paródicas coexistiram com a
grande literatura da Baixa Idade Média. O autor destaca o romance
picaresco. Nessa literatura, são marcantes as figuras do bobo, bufão
e trapaceiro que, posteriormente, vão influenciar o romance
europeu. Essas personagens possuem um significado que não é
literal e sim figurativo, afirma Bakhtin (2010). São figuras
provenientes do teatro e da praça pública para o romance. Elas são
como estrangeiras nesse mundo, não se solidarizam a nenhuma
situação e apontam sempre o avesso e o falso de tudo. O estudioso
salienta que essas personagens podem ser uma espécie de máscara
do autor, que trazem a sua forma e posição de ver a vida. O
cronotopo é o da praça pública e dos palcos de teatro. Há nessas
três figuras uma denúncia dos convencionalismos feudais. O bufão
é inteligente e pode se apresentar como um vilão, um aprendiz, um
jovem clérigo ou um vagabundo. O bufão faz zombarias paródicas,
enquanto o bobo contraria as convenções feudais com sua
ingenuidade e incompreensão. Já o trapaceiro se assemelha ao
herói do romance antigo de aventura e costumes, diferentemente
dos dois primeiros, tem ligação com a realidade.
Posteriormente, no Renascimento, o autor afirma que:
46
prepararam o restabelecimento da entidade material e espaço-
temporal do mundo num estágio novo de desenvolvimento, mais
aprofundado e complicado. Elas prepararam a assimilação pelo
romance de um mundo onde, na mesma época, descobria-se a
América, o caminho marítimo para as índias, um mundo que se
abria às novas ciências naturais e à nova matemática. Preparava-se
uma visão e uma representação do tempo totalmente nova do
romance. (BAKHTIN, 2010, p. 281).
47
além, devolvendo ao corpo a sua materialidade. A série comida e
bebida, segundo Bakhtin, passa por quase todos os temas do
romance. A estrutura fisiológica é como uma personagem, afirma
Bakhtin (2010). O grotesco se encontra na precisão anatômica e
fisiológica e também há a abordagem bufa. O fantástico está
presente nas analogias. A morte também é retratada de forma bufa,
próxima ao nascimento e ao riso. Em outros momentos a morte é
exibida não grotescamente, mas como o fantástico heroificante.
Conforme a sociedade se divide em classes e as relações
monetárias avançam, a esfera do consumo se separa da vida social,
demonstra Bakhtin (2010). Comida, bebida, ato sexual e morte
acabam sendo incluídos na vida cotidiana, já individualizada e
isolada da história, como realidades vulgares do dia a dia. Também
há o desenvolvimento de uma sublimação das questões diárias, por
exemplo a bebida e a comida na poesia. O motivo básico da série
individual e privada passa a ser o amor – a sublimação do sexo e
da fecundação. A morte adquire o sentido de um fim absoluto do
ponto de vista individual e privado. A natureza se torna o lugar de
ação do homem, em paisagem e fragmenta-se em metáforas,
servindo para sublimar as questões individuais que não se
relacionam mais com a natureza. Surge também a série do tempo
histórico, com foco na vida de nação e do Estado. Tem-se a vida
individual em contraposição ao tempo histórico. (BAKHTIN, 2010).
Assim, forma-se o romance idílico (três formas: amoroso,
familiar e do trabalho agrícola ou regional), no qual a vida e os
acontecimentos estão atrelados a um lugar, como o país de origem
e sua natureza. Os limites do tempo são determinados por essa
unidade de lugar. Há um caráter rítmico cíclico e temáticas
circunscritas a motivos básicos da vida, como amor, nascimento,
morte, casamento, trabalho, comida, bebida e idades de forma
sublimada. A vida humana se funde com a vida da natureza no
cronotopo idílico. O tempo folclórico é apresentado pelo prisma da
evolução da consciência da sociedade, como condição ideal e
perdida da vida humana.
48
É pertinente ressaltar a oposição entre sublime e ordinário,
cotidiano e aventura na constituição do cronotopo no romance e de
seus heróis. Percebe-se na história do romance a tensão entre
espaço público e privado como reflexo social. O homem ordinário
tido como o “terceiro” da vida privada no romance de aventuras e
costumes - presente também nas figuras medievais do bufão,
trapaceiro e bobo, no Renascimento em Rabelais e posteriormente
nos romances realistas - é o contrário do herói clássico grego e do
sublime romântico. Seria um anti-herói. Há nessa relação a
oposição entre o culto e o popular. É possível transpor um pouco
dessa lógica ao melodrama e à telenovela, por conseguinte.
49
geográfico não é abstrato ou maravilhoso e sim concreto, a
representação do Rio de Janeiro, e o tempo é contemporâneo.
A permanência em um mesmo local (casa e bairro), o
deslocamento das personagens por diferentes espaços (externo,
interno, casa, trabalho, cadeia, viagens, entre outros), a temática
explorada, o tom, os acontecimentos e a construção estética
audiovisual – montagem, ritmo, música, por exemplo – são os
responsáveis por conferir a sensação de diferentes temporalidades,
de linearidade ou simultaneidade. Desse modo, mantemos a
nomenclatura cronotopo de aventuras para tratar das personagens
que vivem acontecimentos excepcionais. E, ao invés de costume ou
cotidiano, adotamos o termo cronotopo trivial, relacionado à
vivência de assuntos corriqueiros por meio do riso e da banalidade.
Neste cronotopo, encontram-se personagens que dialogam com o
grotesco e o realismo fantástico comentados por Bakhtin (2010),
mas com a conotação de vulgaridade e não sublimação reforçada
pela contraposição a outras personagens que apresentam a
sublimação do cronotopo idílico.
Em nossa pesquisa, foram selecionadas 28 personagens das
telenovelas A Regra do Jogo (2015-2016) e Avenida Brasil (2012) – ambas
escritas por João Emanuel Carneiro e dirigidas por Amora Mautner –
pelo critério de pertencerem às classes populares (foram incluídas as
novas ricas que mantinham os costumes da classe social de origem) e
serem do gênero feminino. Dessas, 15 apresentam o cronotopo que
denominamos como trivial, que se contrapõe às personagens que
identificamos como do cronotopo de aventura.
O riso é uma marca forte nas personagens do cronotopo trivial.
Ele se dá de diversas formas, por exemplo, por meio de um sentido
de inadequação na expressão de um gosto duvidoso em
vestimentas e decoração, mistura de muitos estilos, exagero de
cores e estampas, excesso de objetos (estética Kitsch)
(principalmente nas novas ricas), roupas muito curtas e justas;
inadequação também no modo de falar (muito alto e desvios da
norma culta da língua portuguesa); no momento da alimentação
(comer em demasia, ou falar com a boca cheia); e de
50
comportamento, no geral, perante personagens do núcleo rico, pela
demonstração de intimidade em excesso e falta de discrição.
As personagens que incorporam o estereótipo da periguete2 são
cômicas em sua busca por fama, aversão ao trabalho convencional
e pela maneira inusual e, por vezes, desonesta, de buscar o que
desejam. Além disso, suas relações amorosas são tratadas com
humor e certa dose de preconceito. Elas apresentam um grande
apetite sexual e usam o poder de sedução para enganar os homens.
Elas exibem traços de semelhança com o trapaceiro descrito por
Bakhtin (2010).
A religião evangélica é parodiada, tendo como centralidade a
sexualidade feminina. Há a personagem que faz resguardo sexual,
é traída pelo marido e no final se envolve em um quarteto amoroso;
a ex-atriz pornô que recorre à religião para mudar seu estilo de
vida, mas que, sem conseguir fugir de sua “natureza” por muito
tempo, volta ao antigo trabalho. Ademais, o riso está presente nos
momentos em que as personagens se envolvem em outras situações
mundanas como troca de casais, a recusa em se casar com o homem
“encostado” e o envolvimento da mocinha do interior com o velho
malandro. A trilha sonora das personagens dialoga com o tom de
humor, ela é composta por gêneros musicais brasileiros - como
forró, funk e samba - com letras divertidas e populares. 3
Os temas de humor citados se referem a situações banais, do
dia a dia, longe das aventuras das mocinhas e vilãs. Essas
51
temáticas têm forte relação com o espaço da casa e do bairro,
localizado na temporalidade do cotidiano. Nesse sentido, é
importante ressaltar que as periguetes apresentam como
característica a falta de moradia. São personagens que não têm
casa e se hospedam em residências alheias, que moram de
aluguel, precisam dividir a moradia com alguém, moram com
uma amiga ou até mesmo chegam a dormir na rua.
Além disso, as personagens na categoria trivial têm seus
corpos destacados e sexualizados. Como os casos em que se usa
uma tomada vertical que mede o corpo de uma delas, o close nos
pés da mulher andando e o plano detalhe de um decote pelo olhar
da personagem do sexo masculino.
No que se refere ao espaço, as personagens que se enquadram
na categoria correspondente ao cronotopo de aventura percorrem
vários lugares durante a história da telenovela e mesmo dentro de
um único episódio, vivenciando acontecimentos inusitados. O foco
dessas personagens é voltado à ação melodramática e à mudança
de estado4, o que confere um sentido de linearidade em seu
percurso e um ritmo mais acelerado em suas cenas, com mais
elipses. Ao contrário, em relação às personagens triviais, os espaços
são sempre os mesmos, os acontecimentos são cotidianos e a
temporalidade é mais estática e circular. As primeiras podem ser
identificadas com a personagem funcional descrita por Segolin
(1978) e as segundas com a personagem-estado.
A pouca transformação no percurso da telenovela, a
permanência em um mesmo espaço, e o sentido de cotidiano
reforçado pelos temas mundanos não sublimados fazem parte do
cronotopo trivial. Ainda, destacam-se o sentido de simultaneidade e o
diálogo entre o espaço público e o privado na caracterização da
52
mulher pobre, o que converge com um senso comum construído
sócio-historicamente sobre a mulher pobre brasileira (SOIHET, 2015).
As mulheres pobres do Rio de Janeiro e São Paulo de fins do
século XIX e começo do XX, sujeitos da pesquisa de Soihet – por
meio de documentos judiciários e policiais -, entre outras
profissões, trabalhavam de lavadeiras, engomadeiras, doceiras,
bordadeiras, floristas, cartomantes, ou se prostituíam e tinham a
rua e as praças como espaço de lazer, trânsito e comunicação para
o dia a dia de trabalho. Elas representavam o contrário do que
pregava a nova ordem a respeito do resguardo feminino.
Na teleficção, dois espaços fictícios analisados - o Bairro do
Divino, de Avenida Brasil e o Morro da Macaca, de A Regra do Jogo –
ilustram os aspectos específicos na caracterização do cronotopo
trivial e apontam para a dinâmica entre forma e conteúdo
comentada anteriormente. Na análise, foram considerados os
primeiros capítulos das telenovelas e as cenas de apresentação de
alguns personagens que se sobressaíram.
5De acordo com Souza (2012), não se tratava de uma nova classe média e sim de
uma nova classe trabalhadora. Pochmann (2012) concorda com Souza e argumenta
que a maior parte dessa população emergente se associou às características gerais
das classes populares, que ao elevar o rendimento ampliam imediatamente o
padrão de consumo.
53
Madureira por Divino. No local fictício, três ambientes
desempenham papel significativo no que diz respeito à
simultaneidade dos acontecimentos, são eles o bar do Silas (Ailton
Graça), o Clube do Divino e o salão de beleza de Monalisa (Heloisa
Périssé). Como o primeiro é frequentado apenas por personagens
masculinas, somente os dois últimos serão tratados.
No primeiro capítulo da trama, cenas do salão de beleza são
intercaladas com outras: do craque Tufão (Murilo Benício) com sua
família antes de um jogo de futebol e da vilã Carminha (Adriana
Esteves) na casa de Genésio (Tony Ramos); posteriormente, a cena
do jogo de futebol tem início e serve para conectar, por meio de
uma transmissão televisiva, as cenas do salão, de Carminha com
Genésio, do Clube do Divino e o escritório onde trabalha Cadinho
(Alexandre Borges). Todos assistem ao jogo.
No salão, a cabeleireira Monalisa, uma das personagens
principais, e sua melhor amiga e também ajudante, Olenka (Fabiula
Nascimento), trabalham enquanto assistem a uma entrevista de Tufão
na televisão. As cores do ambiente são vivas e alegres, em tons de cor
de rosa. Monalisa aparece dez vezes no capítulo. Na primeira vez,
enquanto a cabeleireira cuida de uma cliente, vemos, em um plano de
conjunto, Olenka entrando no estabelecimento com outra freguesa.
Duas grandes portas conectam o salão com o espaço externo, o que
remete ao espaço público, à comunidade e ao popular.
As cenas de Monalisa contrastam especificamente com os
trechos de Carminha. A primeira está integrada à estética popular
do Divino, enquanto a vilã se encontra em outra temporalidade que
se conecta com o bairro popular apenas pela televisão. As cores das
duas personagens se contrapõem, enquanto uma é colorida e
alegre, a outra apresenta o contraste da estética noir6.
6Dá-se o nome de cinema noir a um conjunto de filmes realizados a partir dos anos
1940 em Hollywood, que consistia no casamento entre o drama criminal, então em
voga, e a adoção do estilo visual que marcou o cinema expressionista dos anos 1920 na
Alemanha. (LIRA, 2015). A estética noir, segundo Lira (2015), relaciona-se aos motivos
noturnos e conotações culturais de mistério, suspense e medo.
54
Na segunda vez, na rua, um carro de som chama por Monalisa.
Trata-se de um pedido de casamento feito em público pelo jogador
Tufão. A moça vai para a rua e aceita o pedido do rapaz. O casal é
aplaudido por uma plateia de moradores do lugar. Mais uma vez
há o reforço do aspecto público e comunitário do bairro. Da terceira
aparição de Monalisa até a nona, os trechos giram em torno da
partida de futebol e seguem um ritmo acelerado pela quantidade
de cortes e pela música – um rock conota a tensão do jogo e mais
para o final um samba traz alegria e alívio quando o Flamengo,
time de Tufão, vence. O tempo inteiro a cabelereira está em seu
salão, no horário de trabalho, de dia à noite. A cena intercalada
reforça a sensação de simultaneidade - com as outras personagens
que assistem ao jogo em locais diferentes - e acentua a permanência
de Monalisa em um mesmo lugar.
Na décima vez, Monalisa aparece no Clube do Divino, onde as
pessoas do bairro comemoram a vitória do Flamengo. A cabelereira
entra falando no celular, no momento em que a mãe de Tufão,
Muricy (Eliane Giardini), concede uma entrevista a jornalistas. O
rosto da última em primeiro plano é desfocado para destacar
Monalisa ao fundo entrando no clube. Temos a sensação de
concomitância.
Além de Monalisa e Olenka, o salão de beleza reúne outras
personagens durante a trama: Beverly (Luana Martau), que é
funcionária; Tessália (Débora Nascimento) e Dolores (Paula
Burlamaqui). Tessália vem do interior para a capital e aparece pela
primeira vez na trama no estabelecimento, posteriormente ela
trabalhará no local; assim como Dolores que, vinda de outra cidade,
também começa a trabalhar no salão de Monalisa. Todas essas
personagens frequentam o Clube do Divino.
Suelen (Ísis Valverde) também se sobressai por meio do
cronotopo trivial no bairro do Divino. A cena em que ela aparece pela
primeira vez, no capítulo 8, é particularmente significativa por
trazer um plano-sequência que reforça o sentido do espaço
comunitário. Em um dia ensolarado, na porta da loja de roupas de
Diógenes (Otávio Augusto), Darkson (José Loreto) anuncia os
55
produtos em um microfone, a câmera faz um travelling para a
direita, passa por trás de pessoas que bebem cerveja e andam pelo
bairro. Darkson entra na loja por uma porta e sai por outra. Ágata
(Ana Karolina Lannes) e Janaina (Cláudia Missura) aparecem,
pronunciam algumas falas, a câmera acompanha as duas, vira e
enquadra Suelen de corpo inteiro, que anda entre algumas bancas
de produtos, na direção da câmera. Pessoas passam à sua frente. A
câmera acompanha a moça até a entrada da loja onde está Darkson.
No primeiro corte, há um plano detalhe nos pés de Suelen que sobe
as escadas da entrada da loja. Darkson a paquera por meio de sua
fala ao microfone. Primeiro plano dos dois. Suelen se posiciona
atrás do rapaz, diz para ele esperar sentado e o chama de “boboca
babão”, enquanto passa o dedo em seu queixo. Em seguida, há um
plano geral, em ângulo plongée, da loja e das barracas em volta. A
cena tem continuidade dentro do estabelecimento.
O plano sequência destaca o corpo de Suelen ao mesmo tempo
em que mostra o clima do bairro popular e apresenta algumas de
suas personagens. O sentido é de simultaneidade, de reforço do
acontecimento da rua, com personagens que dividem o mesmo
local sem interagir umas com as outras. O espaço público está
presente como parte da caracterização da mulher popular. A
imagem dos pés de Suelen, de salto alto, subindo as escadas da loja,
realça o poder sensual conferido à personagem. São passos firmes
próximos aos pés de Darkson a quem ela esnoba.
Na telenovela A Regra do Jogo, por sua vez, a diretora Amora
Mautner inovou com a proposta de caixa cênica, caracterizada pela
utilização de oito câmeras (as telenovelas comumente usam
quatro), algumas delas escondidas (atrás de espelhos e quadros),
reproduzindo o ambiente de reality show. A estratégia buscava dar
mais naturalidade às encenações, já que nem mesmo os atores
sabiam exatamente a localização das câmeras.
Nessa trama, o espaço do Morro da Macaca, onde se localiza
grande parte dos personagens, é o palco do cronotopo trivial.
Adisabeba (Suzana Vieira) é uma das personagens desse núcleo.
Ela é proprietária de um hostel e uma boate localizados no mesmo
56
perímetro de sua residência no morro. Chama a atenção no
percurso da novela que não há divisão clara entre o cenário do
espaço pessoal e de trabalho de Adisabeba. Verifica-se a mescla
entre o público e o privado.
No primeiro capítulo, há um trecho em que vemos Adisabeba
andando pelo bairro apressada, à procura de seu filho, um adulto
a quem ela trata como criança. A variação nos ângulos da câmera –
plongée e contra-plongée - simula a geografia do morro. Há
naturalidade na cena e o telespectador tem um olhar privilegiado
ao vê-la por frestas entre objetos e construções, conforme ela
caminha, como um observador dentro da cena. Adisabeba
cumprimenta alguns moradores (figurantes) pelo nome, fala alto e
parece descuidada no seu modo de andar, em seu vestido curto,
decotado e florido.
Quando Adisabeba chega à casa de Ninfa (Roberta
Rodrigues), uma jovem negra, vemos esta última de corpo inteiro,
parada próxima à porta de vidro na entrada do imóvel. A moça,
que usa um short curto e sutiã, é empurrada por Adisabeba que
entra na casa sem pedir licença. Por meio de algumas imagens,
captadas pelo lado de fora da janela, vemos uma garrafa de Coca-
Cola no balcão da cozinha e o reflexo no vidro da janela revela
cabides com calcinhas penduradas. Adisabeba encontra o filho
escondido no box do chuveiro. Em dado momento, os três vão para
o lado de fora da casa e um plano os enquadra a partir do interior
do ambiente. É clara na cena a interface com o público.
Em contraposição à personagem principal Tóia (Vanessa
Giácomo) e a Djanira (Cássia Kiss), que aparecem no mesmo
capítulo, Adisabeba passa por menos lugares. Ela permanece no
Morro da Macaca, na boate, e na casa de Ninfa. Os acontecimentos
que Adisabeba vivencia são corriqueiros e não têm a mesma carga
dramática das outras duas, por isso as cenas nas quais ela está
inserida remetem a momentos banais do cotidiano, em locais
próximos à comunidade onde mora, sem grandes acontecimentos.
Alisson (Letícia Lima) é caracterizada de modo semelhante.
No capítulo 5, no qual ela é apresentada de fato, usando apenas
57
calcinha e sutiã, beija e abraça Mc Merlô (Juliano Cazarré) - que está
sem camisa. Vemos os dois até um pouco abaixo da cintura, por
uma fresta da janela. Ela sobe na cama e começa a rebolar, diz que
vai fazer um show para ele e tira o sutiã. Outra câmera a capta entre
uma cortina, do lado esquerdo. Merlô derruba Alisson na cama. Em
certo momento, a câmera focaliza a porta da casa, que é de vidro,
Dênis (Amaurih Oliveira), marido de Alisson chega. Merlô pula
pela janela. Dênis entra na casa (a porta está destrancada). Alisson
vai até o chuveiro e finge que estava tomando banho. A câmera a
mostra em plongée. Merlô pega suas coisas pela janela aberta, o que
revela o fácil acesso à casa do lado de fora. O corpo da personagem
à mostra e todo o clima remetem ao sexo não sublimado e à
comédia. Temos a impressão de estar espiando.
Ademais, algumas personagens da trama aparecem no
primeiro capítulo quase como figurantes, quando as personagens
principais circulam pelas ruas do morro. É o caso de Indira (Cris
Viana), que é apresentada de fato no capítulo 3. Na ocasião, Indira
está em sua loja trabalhando quando ouve o marido, guia turístico
no morro, chegar com turistas ao estabelecimento. A interface com
o espaço externo é evidente. A loja está em um ponto de onde é
possível ver Djanira que chega de mototáxi à casa de Adisabeba.
Na cena, Indira e Oziel (Fábio Lago) são observadores de Djanira,
Destaca-se a referência ao espaço fora de campo, com o casal
olhando em direção a Djanira.
Percebe-se nesses exemplos a simulação de um espaço
integrado do morro, onde todos se observam e no qual aspectos
públicos e privados se mesclam. Há um sentido de simultaneidade
e de cotidianidade. Esses aspectos estão presentes na materialidade
audiovisual nos movimentos de câmera que acompanham as
personagens andando na rua, na câmera escondida que parece
invadir a privacidade das personagens, nas gravações através de
janelas, no plano-sequência que capta a simultaneidade do bairro,
nas referências ao espaço fora de campo, no cenário que destaca as
janelas abertas e portas de vidro, na localização das personagens
frequentemente do lado de fora da casa, no figurino que destaca o
58
corpo das mulheres, entre outros elementos. Tudo isso corrobora a
construção do popular em consonância com o mundano não
sublimado, com o vulgar, com a mulher pobre como mulher
pública (SOIHET, 2006). Ou seja, os componentes materiais que
fazem parte da forma audiovisual, juntamente dos temas
trabalhados, são signos ideológicos no contexto em que se
encontram, na construção de um tempo-espaço popular que é
simultâneo, cotidiano, público e privado ao mesmo tempo.
Considerações
59
Como demonstram Lippmann (1980) e Heller (2004), o ser
humano usa o estereótipo o tempo todo cotidianamente, pois é
impossível conhecer tudo intimamente. Assim, o estereótipo não é
negativo em si e tem sua utilidade.
Na maior parte das vezes não vemos primeiro para depois definir, mas
definimos e depois vemos. [...] colhemos o que nossa cultura já definiu
para nós, e tendemos a perceber o que colhemos na forma
estereotipada para nós, pela nossa cultura. (LIPPMANN, 1980, p. 151)
Referências
60
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popular na telenovela: um estudo sobre as personagens de
Avenida Brasil e A Regra do Jogo. Tese (Doutorado em Teoria e
Pesquisa em Comunicação) - Escola de Comunicações e Artes,
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Ficção Televisiva, 2003.
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pirâmide social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2012.
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2001. Disponível em: [https://monoskop.org/images/3/3d/Propp_
Vladimir_Morfologia_do_conto_maravilhoso.pdf] Acesso em: 26
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SEGOLIN, F. Personagem e anti-personagem. 1. ed. São Paulo:
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PRIORE, Mary (org.). História das mulheres no Brasil. 10. ed. São
Paulo: Contexto, 2015, p. 362-400.
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classe trabalhadora? 2. ed. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2012.
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Trad. Fernando Mascarello. São Paulo: Cosac e Naify, 2006.
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Disponível em: [https://periodicos.ufjf.br/index.php/lumina/
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VOLÓCHINOV, V. Marxismo e Filosofia da Linguagem:
problemas fundamentais do método sociológico na ciência da
linguagem. São Paulo: Editora 34, 2017.
61
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em:[http://www.epsjv.fiocruz.br/upload/doc/Cartilha-Vozes-Classe-
Media.pdf]. Acesso em: 26 out. 2019
XAVIER, I. O discurso cinematográfico: a opacidade e a
transparência. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005.
62
A caracterização das personagens masculinas na
minissérie Capitu
Rafaela Bernardazzi
63
Suburbia (2012), a telenovela Meu Pedacinho de Chão (2014) e a
telenovela Velho Chico (2016). Capitu foi exibida de 09 a 13 de
dezembro de 2008, tendo sido veiculada no ano do centenário de
morte do escritor Machado de Assis como uma forma de
homenagear o escritor brasileiro.
Considerando a perspectiva diacrônica dos trabalhos
realizados por Carvalho na Globo, sobretudo no que se refere ao
formato minissérie, passamos a observar Capitu não como obra
isolada, mas como uma obra que integra a linha autoral do diretor,
e acima disso, uma obra televisual de criação coletiva. Apesar disso,
cabe ressaltar que, mesmo nessa perspectiva, consideramos
essencial que compreendamos Capitu, assim como os outros
produtos da indústria televisiva como resultante das injunções
oriundas da indústria cultural que opera “(...) entre dois pares
antitéticos: burocracia-invenção, padrão-individualidade"
(MORIN, 2005, p. 25-26). Trata-se de um trabalho que busca
suplantar o paradoxo padronização-inovação, discutido por Morin
(2005), inerente aos trabalhos na indústria cultural.
64
Nesse processo de produção, cada profissional traz seu
conhecimento e sua arte para um grande projeto feito a várias
mãos. “São notórios os benefícios que uma equipe bem afinada
pode trazer para a organização. Primeiro, porque uma equipe é
formada de pessoas, que trazem consigo histórias de vida e
competências diferentes, mas que se relacionam” (MARIANO;
ABREU, 2008, p. 6). A minissérie apresenta-se como uma
aproximação do texto original Dom Casmurro, escrito por Machado
de Assis em 1899 e ambientada no Rio de Janeiro durante o
Segundo Império no Brasil. Cabe ainda ressaltar que a minissérie
integrou o projeto Quadrante, um projeto idealizado por Luiz
Fernando Carvalho com o propósito de adaptar obras da literatura
brasileira para a televisão, cuja premissa era valorizar o imaginário
e a cultura como fatores imprescindíveis para o fortalecimento da
identidade brasileira.
Composição de personagem
65
ideológico e de um universo simbólico construído sócio-
historicamente. Nesse sentido, vale citar as palavras de Bakhtin, ao
discutir as relações imbricadas na composição do objeto estético:
O figurino por sua vez deve ser considerado por uma variedade de
objetos cênicos. Pois se ele tem uma função específica, a de contribuir
para a elaboração do personagem pelo autor, constitui também um
conjunto de formas e cores que intervêm no espaço do espetáculo, e
devem, portanto, integrar-se a ele. (ROUBINE, 1998, p. 146).
66
O espaço cênico no qual a trama será retratada deve
contextualizar as personagens “delinear condições psicológicas e
existenciais dos personagens, esboçar caracteres de identificação
histórico-contextual, constituir uma atmosfera plástica de poder
sugestivo no interior de uma narrativa” (BULHÕES, 2009, p. 88-89).
As personagens ficcionais funcionam, em sua maioria, como a
forma mais comum para desenvolvimento do enredo. Sua
construção pode ser explanada na obra a partir de narração,
descrição de outros personagens, a partir de sua própria fala e
atuação, porém, em todos os casos, elementos como figurino,
cenário, maquiagem terão valor fundamental para a compreensão
da obra como um todo. “A atribuição de traços físicos, os do ator,
seu traje, sua maquiagem, seus traços psicológicos e morais
significados por seus atos e suas falas, seus gestos e seu
comportamento” (AUMONT; MARIE, 2003, p. 226) devem ser
levados em consideração no momento de construção de uma
personagem, pois estes irão auxiliar na formação, pois “sendo as
personagens seres ficcionais elas não são reais, todavia devem
ocasionar a sensação de realidade com porções de verossimilhança
e alguma veracidade”. (COMPARATO, 2009, p. 67). Dito de outra
forma, “cada personagem representa, então, uma linguagem e cada
linguagem representa uma inflexão ideológica relacionada à
contínua negociação social” (NEWCOMB, 2010, p. 372).
Cores
67
preto. Focamos nossos estudos na síntese aditiva, formada pelas
cores básicas vermelho, verde e azul, por serem cores-luz, as cores
do registro fílmico digital. Os três elementos identificados na
percepção das cores são: tom ou matiz, a luminosidade ou brilho e
a saturação ou pureza da cor. Em softwares de edição de imagem é
possível achar a sigla HSL (hue, saturation e lightness) para designar
esses três elementos. Tom ou matiz seriam as cores (vermelho,
laranja, amarelo, verde etc.), são definidas a partir do comprimento
de onda (AUMONT, 1993, p. 25) de cada uma. O brilho ou
luminosidade é medido pela presença de luz no matiz, ou seja,
quanto mais luz, mais próximo do branco estará a cor, quanto
menos presença de luz, mais próxima estará do preto. Saturação ou
chroma pode ser designada como a intensidade da cor ou sua
pureza. A intensidade da cor é maior quanto mais pura ela for.
“Quanto mais estreita a faixa dos comprimentos de onda, mais
pura a cor. Forte, cores vivas são referidas como cores saturadas.
[...] Quando diferentes comprimentos de onda estão presentes, diz-
se que a tonalidade é mais fraca, ou não saturada” (HIRSCH, 2011,
p. 8, tradução nossa1).
Conhecida também como densidade e concentração da cor, a
saturação está ligada com a pureza da cor. Os estudos de Farina,
Bastos e Perez (2011) apontam que a saturação ocorre “quando em
uma cor não se adiciona nem o branco, nem o preto, mas ela está
exatamente dentro do comprimento de onda que lhe corresponde
no espectro solar” (FARINA; BASTOS; PEREZ, 2011, p. 71). A partir
da variação da saturação na imagem haverá a alternância da
vivacidade e da pureza das cores. As imagens saturadas apontam
uma maior expressividade e criam uma sensação de maior
realidade. A partir dessa contextualização iniciamos o
1 Texto original: “The narrower the band of wavelengths, the purer the color.
Strong, vivid hues are referred to as saturated colors. […] When different
wavelengths are present, the hue is said to be weaker, or desaturated” (HIRSCH,
2011, p. 8).
68
desenvolvimento da análise das personagens Bento e Escobar ao
longo da narrativa da minissérie.
Signo cromático
69
vermelho identificado como fogo, azul como ar e verde como água,
mas essas relações eram formadas levando-se em consideração a
bagagem cultural (BAXANDALL, 1991, p. 78).
Aproximando essa perspectiva do objeto em estudo, podemos
pensar que a cor, associada a uma narrativa televisual através do
figurino e da cenografia, funciona como um signo ideológico, pois
seu entendimento depende de um horizonte social (BAKHTIN/
VOLOCHINOV, 2009), ou seja, da criação ideológica e da época em
que o indivíduo se encontra, propiciando uma interação entre
indivíduos e criando uma mediação. Seguindo a concepção de
Bakhtin/Volochinov (2009), o produto ideológico terá sempre seu
significado situado fora de si mesmo, ou seja, situado no contexto
sócio-cultural de um grupo social.
Compreende-se também que problemas com a comunicação
podem ocorrer e que esses geralmente se remetem a um processo
de refração, no qual uma mensagem é emitida, mas não é recebida
do modo que foi esperado pelo seu locutor. O signo ideológico está
aberto a tais situações por se tratar de uma construção social e estar
cercado de grupos sociais distintos com seus respectivos
repertórios. Como reforça Emerson (2010) em seus estudos sobre
Bakhtin, as experiências do homem não podem ser repetidas
igualmente de forma que dois seres tenham uma formação social
idêntica uma vez que “todo ato de compreender envolve também
um ato de traduzir, além de uma negociação de valores”
(EMERSON, 2010, p. 69).
Assim, podemos pensar as cores como signos e como
constituintes da narrativa audiovisual na qual adquirem funções
expressivas importantes tanto do ponto de vista estético quanto do
ponto de vista de compreensão da construção de personagens,
sendo única para cada indivíduo.
70
movimento do corpo ou como outra coisa qualquer
(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2009, p. 33).
71
uma época e de um grupo social determinados”
(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2009, p. 45).
Esse horizonte social citado está diretamente ligado aos
objetos particulares encontrados em cada segmento da sociedade,
tornando-se objetos com valores particulares. E para a relação
social com o signo ideológico são necessárias condições econômicas
que tornem o signo socialmente pertinente, criando uma
comunicação ideológica (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2009). É
dado, dessa forma, significação aos conteúdos produzidos e
consumidos pelos espectadores, formando-se através da
apreciação, a qual indica se o signo entrou no “horizonte social dos
interlocutores” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2009). Assim, “é à
apreciação que se deve o papel criativo nas mudanças de
significação. A mudança de significação é sempre, no final das
contas, uma reavaliação: o deslocamento de uma palavra
determinada de um contexto apreciativo para outro”
(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2009, p. 138–139).
Tal conjuntura de reavaliação está na reformulação do signo e,
portanto, nos processos de produção de sentido que se
desenvolvem com base nessa semiose. A percepção das cores do
figurino das personagens em análise encontra-se, dessa forma,
condicionada ao processo de compreensão relacionado ao
horizonte social e, portanto, ao signo ideológico explicitado por
Bakhtin/Volochinov (2009). A partir desse embasamento iniciamos
a análise da minissérie.
72
portos brasileiros, “áreas – artística, cultura, científica, arquitetônica,
comercial e outras -, começam a ocorrer uma febre de novos projetos,
construções, inaugurações e importações das últimas novidades da
moda europeia” (CHATAIGNIER, 2010, p. 75).
Com as influências internacionais entrando no Brasil a “colônia
passiva, sem vida própria, inteiramente dependente da metrópole,
passa a ser o centro de decisão de todo o império português”
(CHATAIGNIER, 2010, p. 75-76). Nesse momento a moda francesa
era a principal fonte de tendências no vestuário. Em 1822 é decretada
a Independência do Brasil, dessa maneira o território possuía
emancipação política de Portugal. “A miscigenação cultural que
temperou o vestuário com influências mouras, portuguesas,
indígenas e africanas [...]. Pode-se dizer que houve um casamento
com a tradição, o exotismo e a sensualidade” (CHATAIGNIER, 2010,
p. 76). Nesse período há mudanças não somente no Brasil, mas como
também na Europa. Há a “centralização, internacionalização e,
paralelamente, democratização da moda” (LIPOVETSKY, 2009, p.
85). A partir desse panorama temos a produção da minissérie Capitu,
ambientada no Rio de Janeiro do século XIX. A análise dos figurinos
se dá a partir desse contexto histórico retratado na minissérie.
Bento
73
situação e personagens. Assim, o principal foco é o início do
romance entre Capitu e Bentinho. Destaca-se nesse episódio a
promessa que sua mãe fizera para que ele se tornasse padre e, por
conseguinte, a não aceitação por parte da família do amor entre os
dois jovens. É a partir da primeira aparição da personagem que o
público começa a localizá-lo na narrativa e a construir sua
significação. Tanto a atuação quanto o cenário e a caracterização
fazem parte dessa construção inicial. Nesse quadro, "o figurino
caracteriza mais do que somente o visual, ajuda a construir o
caráter e a identidade dos personagens numa esfera muito mais
ampla em termos de localização do espaço e tempo” (WAJNMAN;
ARRUDA, 2008, p. 6). Entre os principais elementos da
caracterização da personagem nesse momento da história estão os
calções bege e os coletes com derivações do azul. A gravata também
varia entre cores claras como o bege e marrom claro. Os sapatos na
parte da infância são brancos e há uma medalhinha presa na gola
do colete. Observamos calções e meias até o joelho juntamente com
sapatos brancos, “os calções até os joelhos continuaram sendo
usados, conservando a mesma forma que haviam tido em 1790”
(KÖHLER, 2009, p. 482).
Esse primeiro episódio é marcado pela aproximação de Bento
e Capitu, há a confissão de amor entre os dois e também a obrigação
imposta pela mãe de Bentinho para o filho se tornar padre.
Observamos a presença marcante de vestimentas claras na paleta
de cores do figurino, por ser a fase de apresentação de uma
personagem jovem e inocente que começa a sentir as primeiras
manifestações do sentimento amoroso.
No início do segundo episódio, Bentinho já se encontra
envolvido afetivamente com Capitu, mas a iminência de ser
mandado para o seminário continua a ameaçar o amor entre
ambos. Em seguida dá-se início à sequência que mostrará o
primeiro beijo do jovem casal. Nela, os trajes de Bentinho
apresentam uma variação de cores maior. Seu calção é de pano e
cor marrom claro, assim como uma gravata de lenço que usa na
74
gola da camisa, seu colete tem um tom mais forte de azul e por
baixo veste uma camisa branca até os punhos.
A personagem ainda não aparenta mudança visual direta após
o acontecimento de “se tornar um homem”. Até o final do segundo
episódio Capitu e Bentinho vão aproveitar a descoberta do amor e
a aproximação amorosa. Contudo Bentinho, apesar de sua falta de
vocação para o celibato, não consegue escapar de estudar no
seminário e, ao final do episódio, a personagem introduz uma nova
vestimenta que estará presente, principalmente no terceiro
episódio: a batina do seminário e a roupa para entrar e sair do
seminário. Um figurino completamente preto – sapatos, calça,
terno, colete e gravata –, apenas com uma camisa branca por baixo
do colete. Com a despedida da família se encerra o momento de
despedida e Bentinho se encaminha para o seminário.
Assim, no segundo episódio há um Bentinho que vive o amor
pela primeira vez e se “torna homem”. A derivação do azul é muito
presente nos coletes, as calças derivam entre bege e branco, muitas
vezes as colorações entre esses matizes ocorrem por causa da
iluminação e tratamento das cenas. Há também a presença do
marrom e ao final o preto aparece pela primeira vez de maneira tão
intensa, marcado por uma exigência da vestimenta do seminário.
O terceiro episódio se inicia com a apresentação da
personagem Escobar, que no futuro irá se tornar confidente e
melhor amigo de Bentinho. O figurino, a partir desse momento da
história, terá a presença marcante do uso da batina no seminário de
São José, no qual Bentinho passa a estudar.
As vestes são formadas por uma peça única preta que cobre
seu corpo por inteiro, a batina, por baixo é possível ver uma blusa
branca de mangas longas. Cabe ressaltar que a batina é uma veste
religiosa e por si só já é um “figurino”, pois caracteriza uma pessoa
em meio a uma estrutura religiosa e hierárquica. “Nas cerimônias
religiosas ou místicas, a vestimenta dos participantes cumpre o
papel de fio condutor por onde passa o transcendente. O traje induz
à incorporação de “personagens” dentro do círculo ritual” (LEITE;
GUERRA, 2002, p. 62).
75
O episódio termina com Bentinho vestindo a batina iluminada
por uma luz vermelha. A presença da personagem no seminário faz
com que a paleta de cores desse episódio seja maior. A cor preta,
principalmente, aparece com maior frequência. Em casa, contudo,
Bentinho continua usando um traje com variações do bege e do azul.
No começo do quarto episódio, ainda em tons de bege e azul,
Bentinho escuta um pedido de desculpas de Capitu por causa de
seu ciúme. Os principais adereços em seu traje são a medalhinha
na lapela do colete e uma correntinha de prata que guarda no bolso.
Ao retornar ao seminário Bentinho veste novamente batina preta
com camisa branca. Nessa sequência Bentinho troca confidências
com Escobar e conta sobre seu romance com Capitu, assumindo
que não tem pretensão de se tornar padre.
Pouco tempo depois a personagem volta a visitar a família,
usando trajes da saída do seminário. Um terno e calças pretas, com
colete e gravata também pretos. Uma característica das mangas na
época é que “eram tão justas quanto possível, mas chegavam
somente aos punhos. A abertura das longas e estreitas abas
começava no meio do peito, de tal modo que o casaco não mais
podia ser abotoado” (KÖHLER, 2009, p. 502).
Graças às manobras da personagem José Dias, um agregado de
sua família, Bentinho não se ordena padre, saindo do seminário com
pouco mais de 17 anos de idade, quando a família decide que ele deve
estudar Direito, em São Paulo. Bentinho continua usando roupas
escuras. Na linha narrativa é sua última aparição como jovem. Aos 22
anos de idade se torna bacharel em Direito, e ficamos sabendo que
mesmo com o problema da distância entre Rio e São Paulo, ele não
deixou de se comunicar com Capitu por meio de cartas.
Ao retornar ao lar, Bentinho se apresenta com caracterização
diferente. Trajado com roupas escuras cobertas por uma capa
longa, pouco abaixo da cintura, e com cabelos mais curtos. Quando
pediu licença, a sua mãe, para casar com Capitu, Bentinho vestia
cinza e usava uma gravata com matiz azulado. Outro elemento que
se fará presente nessa nova fase de Bento é a cartola, na mesma cor
da capa que traz nos ombros. Em seguida a cartola volta a aparecer
76
nas vestimentas de Bento. Sua caracterização mostra elementos
mais escuros como o smoking, cartola e colete pretos. Na gola da
camisa branca, um lenço branco completa o figurino.
Observa-se que diferentemente de parte da infância, na qual
os ternos eram justos ao corpo, agora a costura da casaca aparece
mais reta, essa “chegou aos poucos a sua posição natural, e ainda
que por algum tempo o casaco se tenha conservado justo, as
concepções de conforto da classe média terminaram por triunfar”
(KÖHLER, 2009, p. 499). A última cena do quarto episódio mostra
Bento indo visitar José Dias acompanhado de Capitu. O colete
estampado ainda com a cor azul, o terno cinza apresenta uma
coloração marrom por causa da iluminação amarelada.
O quinto episódio começa com Bentinho e Capitu, já casados
há dois anos. Bentinho tem vestimentas cinza claro e a minissérie
constrói a narrativa que o casal aparenta felicidade na união. A cena
seguinte os mostra em um baile - para a ocasião Bento veste um
smoking preto com blusa, gravata, luvas e colete brancos. De acordo
com Köhler (2009, p. 512), “nos bailes e nas grandes ocasiões os
homens usavam gravatas de cetim branco. Para o dia-a-dia, eram
feitas de tecido mais escuro e barato e não tinham laço na frente”.
Diferente das roupas claras de infância que usava, Bento agora
se veste constantemente com terno e colete preto e seu sentimento
de ciúme e desconfiança aumenta. Na primeira cena em que
aparece com o filho, Bento volta a usar um traje mais claro. Trata-
se de um terno cinza com gravata em tons de azul e roxo. No
entanto, logo em seguida, a próxima cena já o traz novamente em
um terno preto com gravata cinza. Os cortes são rápidos, mas
percebe-se a troca de figurinos entre as cenas. Em seguida há a
cerimônia de batizado de Ezequiel, Bento e Escobar estão juntos na
cena. O terno de Bento é cinza e a gravata cinza.
Nesse momento da história há um salto de cinco anos na
narrativa. Ezequiel já está crescido e Bento brinca com o filho
usando trajes semelhantes aos vistos na sequência anterior: terno
preto com gravata cinza e sapatos e meias pretas. Na sequência,
77
observamos um Bento que volta a usar a cor azul, repetindo um
colete azul estampado usado em sua volta de São Paulo.
Pouco tempo depois da cena anterior, Bento recebe a notícia que
Escobar havia se afogado e falecera. No velório do amigo, Bento
aparece usando um colete com tons azulados e gravata cinza. Já na
sequência, ocorre o enterro de Escobar, no qual Bentinho veste preto,
com exceção da camisa, tem um colete preto estampado, gravata
larga preta, capa e cartola também pretas. Nessa cena, a tristeza de
Capitu à beira do caixão faz com que o ciúme de Bento aflore
novamente. Após a morte do amigo, Bento volta a alimentar a ideia
da semelhança entre Ezequiel e Escobar, e isso afeta sua relação tanto
com Capitu quanto com o filho, imaginando que o filho seja fruto da
traição de Capitu com seu melhor amigo. Bento passa a ser frio e mal
humorado a ponto de Capitu perguntar sobre seu comportamento
arisco. Nessa etapa do episódio, Bento usa tons escuros de azul e
cinza. Bento e Capitu acabam brigando e ela vai morar na Europa
com o filho. Esse fato seguido da morte de sua mãe faz com que a
personagem mantenha a paleta de cores nos tons escuros.
Próximo ao fim da história, Bento fica cada vez mais parecido
com o narrador, Dom Casmurro, mas apesar das desconfianças
continua usando como acessório a aliança de casamento na mão
esquerda. Desse momento até o final da narrativa Bento vai se
tornando Dom Casmurro, recolhido da vida social. Ezequiel, seu
filho com Capitu, retorna da Europa para visitar o pai, Bento está
caracterizado com roupas pretas e gravata com tons azulados e ao
final se transforma definitivamente no Dom Casmurro, o narrador.
Escobar
78
Seu figurino é o mesmo do usado pelos colegas de seminário,
uma batina preta de mangas longas. A veste tem uma fileira de
botões, segundo a tradição católica 33 botões, e uma camisa branca
por baixo da peça única. O detalhe de sua caracterização é uma
pulseira no braço direito e o cabelo dividido para o lado. “A batina
de Escobar [...] tem uma saia com diâmetro propositalmente maior
- equivalente a uma saia feminina - para tornar os movimentos do
personagem mais sedutores na visão de Bentinho. Para fazer
prevalecer a unidade da obra, foi abolido o ângulo reto nas roupas”
(MEMÓRIA GLOBO).
Nas cenas seguintes Escobar visita Bentinho em sua casa e
aparece de terno e calça cinza claro, blusa branca e sapato e capa
preta. “A capa longa não era mais fechada na frente com uma ou
duas fileiras de botões e casas; em vez disso, largas faixas de tecido,
presas nas extremidades dianteiras da capa, traziam, de um lado,
os botões e, do outro, as casas” (KÖHLER, 2009, p. 514-515). O
detalhe de seu figurino é a gravata na cor vinho, elemento que irá
se repetir em diversos momentos da caracterização dessa
personagem. “Um simples acessório pode fazer muito por um
personagem e, sutilmente, pontuar momentos decisivos em sua
trajetória” (MEMÓRIA GLOBO, 2007, p. 23).
Escobar aparece novamente na minissérie no quarto episódio,
quando Bentinho retorna ao seminário. Durante uma breve
conversa, os dois trocam confidências e Escobar relata que também
não tem intenção de se tornar padre, sua verdadeira paixão seria o
comércio. A amizade dos dois se fortalece e Escobar volta a visitar
a casa de Bentinho. Novamente percebe-se a presença do elemento
em cor vinho na gravata, enquanto o restante do traje é uma
derivação do cinza. Enquanto Bentinho vai estudar Direito,
Escobar se torna negociante de café. Em uma visita a Dona Glória,
mãe de Bentinho, Escobar veste roupas escuras com uma gravata
vinho e capa preta.
O traje masculino segue influências da formação cultural e
econômica da época pós Revolução Industrial e formação da classe
média. Os trajes masculinos tornam-se discretos e neutros. “O traje
79
masculino neutro, escuro, austero, traduziu a consagração da
ideologia igualitária como ética conquistadora da poupança, do
mérito, do trabalho das classes burguesas” (LIPOVETSKY, 2009, p.
105). Ao final do quarto episódio observamos que mesmo com a
mudança de idade, a caracterização em figurinos escuros
escolhidos para Escobar se mantém.
Conforme a narrativa avança Escobar se casa e tem uma filha
com sua esposa, contudo havia a suspeita ter tido uma amante. No
batizado de Ezequiel, filho de Bento com Capitu, Escobar volta a
usar o colete vinho, com uma gravata larga preta e um terno preto
brilhoso. A cena seguinte faz referência à morte de Escobar, que se
afoga no mar no ano de 1871. No momento do afogamento, Escobar
estava caracterizado com um traje de natação listrado branco e
vermelho escuro. O comprimento do traje ia até a altura dos joelhos
e não cobria os braços. “O mar de ressaca em que Escobar se afoga
foi feito pelo movimento de um enorme plástico balançado pelos
próprios atores” (MEMÓRIA GLOBO). Seu enterro aparece na
sequência da cena. Assim como na maior parte das cenas
anteriores, o elemento vinho se apresenta na gravata.
Desde o enterro de Escobar, onde Capitu chorou por sua
morte, Bento havia voltado com as suspeitas de traição de sua
esposa com seu amigo. A convivência com seu filho Ezequiel o fez
questionar a paternidade, pois o achava cada dia mais parecido
com Escobar. Agora em seus pensamentos imaginava o falecido
amigo sempre que pensava na possibilidade de infidelidade.
Trajando as mesmas vestes de seu enterro, Escobar aparece nas
visões de Bento. Anos depois, quando Ezequiel vai visitar o pai,
Bento volta a ter visões do amigo falecido, sendo essa a última
aparição de Escobar.
Considerações
80
características de diversas linguagens para contar a história de um
dos maiores clássicos da literatura brasileira, o romance Dom
Casmurro. Observa-se que, ao longo da narrativa, a caracterização
das personagens se altera conforme a história se desenha, na
infância e na vida adulta as personalidades se modificam, assim
como o figurino.
Conforme a narrativa avança, há uma demonstração de
isolamento de Bento, assim como elementos que remetem a uma
personagem com personalidade de difícil convivência. Suas
vestimentas, quando ordenadas cronologicamente, do primeiro ao
quinto episódio, vão escurecendo e perdendo as cores claras.
Já a paleta de cores da caracterização de Escobar se mantém
praticamente estável, por sua personalidade misteriosa e o ponto de
vista do narrador de que Escobar teria sido amante de sua esposa. Um
ponto de destaque para essa personagem é o uso da cor vinho em
diversos elementos ao longo da narrativa. Uma cor associada à
sedução e ao mistério. Nos demais momentos para reforçar o mistério,
as vestimentas da personagem se mantém em tons escuros.
A análise realizada reforça a compreensão de que o produto
audiovisual é criado e desenvolvido com auxílio de áreas diversas que
convergem na produção de uma mesma peça audiovisual
possibilitando a produção de sentido por meio da relação que se
estabelece entre diversos elementos em sua materialidade e a sua
construção simbólica como signos ideológicos (BAKHTIN/
VOLOCHÍNOV, 2009). Profissionais com repertórios variados e
especialidades distintas traduzem palavras e motivações em imagens,
elas também prenhe de signos ideológicos. Convergindo áreas e
linguagens em uma obra audiovisual produtora de sentido complexo.
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83
84
O espaço-tempo das cidades distópicas da série 3%1
85
apreender a obra artística tensionada pela perspectiva de sua
construção histórico-social que se manifesta por meio do
acabamento estético e temático. No nível figurativo, as cidades
imaginadas não só ambientam as ações, mas concretizam ideais e
ideologias e são expressões de angústias, esperanças, receios,
medos e desejos presentes na sociedade (BARROS, 2011). A série se
organiza em torno de uma narrativa que especula sobre um Brasil
do futuro, no qual a divisão de classes não se manifesta apenas por
meio da desigualdade simbólica ou mesmo material, mas se mostra
espacialmente, com a separação geográfica entre o Continente,
paupérrimo, e a utópica ilha Maralto, onde não há pobreza, fome
ou doença.
Inicialmente, destacamos o cronotopo como conceito
fundamental para estudar as relações espaciais e temporais no
interior de obras de gêneros complexos como romance, filme e
ficção televisiva, e sua articulação com a realidade histórica e social
do ambiente em que a obra é concebida, materializando concepções
de mundo por meio do acabamento temático e estético. Bakhtin
(2010, p. 211) explica:
86
narrativas utópicas e depois as distópicas são narrativas de ideias
nas quais o espaço e a construção de mundo têm proeminente
função estrutural”2 (TERENTOWICZ-FOTYGA, 2018, p. 10,
tradução nossa). Elementos cronotópicos essenciais das distopias –
que Terentowics-Fotyga identifica no romance 1984 e que
contribuem para esta análise – são as oposições entre indivíduo e
poder do Estado, corpo e mente, alto e baixo, centro e periferia,
passado e presente, natural e urbano e, finalmente, entre sinais
verdadeiros e falsos (como a aparente perfeição ou o falso
equilíbrio social).
No lugar do simples deslocamento espacial que leva as
personagens das utopias clássicas a conhecer, em países e terras
distantes, outras possibilidades de sociedades onde problemas e
conflitos foram superados, as distopias implicam um deslocamento
temporal em direção ao futuro. Este, entretanto, não é um tempo-
espaço de superação, mas resultado do agravamento das mazelas
do mundo que habitamos.
O gênero distópico, cuja origem remonta ao século XIX, teve
grande penetração na literatura e no cinema ao longo de todo o
século XX. Nas duas primeiras décadas do século XXI, as
produções desse gênero passaram por ampla renovação e
reposicionamento, com a popularização de séries de romances
distópicos voltados ao público jovem – como a trilogia Jogos
Vorazes, de Suzanne Collins (2008) – e com o sucesso mundial de
séries de televisão, como Black Mirror (Channel 4, 2011-2014;
Netflix, 2011-presente) e Handmaid’s Tale (Hulu, 2017-presente). No
Brasil, em 2019, estrearam dois filmes distópicos nacionais: Divino
Amor, de Gabriel Mascaro, e Bacurau, de Kleber Mendonça Filho,
ambos premiados em festivais internacionais.
O modelo de negócios da Netflix passou por diversas
transformações desde sua fundação, em 1997 (quando surgiu como
2No original: “Utopian, and later on dystopian, narratives are narratives of ideas
in which space and world building is given a prominent structural function”
(TERENTOWICZ-FOTYGA, 2018, p. 10).
87
locadora de DVDs com entrega pelos correios), as quais
acompanharam o desenvolvimento da internet, a aceleração da
globalização e das possibilidades de expansão multinacional das
empresas e de distribuição de produtos culturais que já havia
impulsionado uma cultura de séries (SILVA, 2014) em diversas
partes do mundo. A expansão internacional da Netflix não foi
apenas em relação à oferta de serviços, mas também como
produtora de conteúdos próprios para suprir a demanda constante
de renovação e ampliação do catálogo (LEVINSON, 2019). Além da
produção de séries originais iniciada em 2012, nos Estados Unidos,
a Netflix começa a produzir séries originais em alguns países fora
do eixo Estados Unidos-Reino Unido, dando início a sua “global
library” (NETFLIX, 2017, p. 3). Essa estratégia resultou na primeira
produção brasileira em 2016, com a série 3%.
A seguir, analisamos os cronotopos das cidades da série 3%,
cada uma apresentada em uma temporada diferente, ampliando
possibilidades de desenvolvimento de motivos e enredos, que se
revelam como instâncias de enunciação por meio das quais a série
produz sentidos e se concretiza como exemplar do gênero distópico.
88
Ao tomar o emprego da linguagem como fenômeno social, que
não se materializa de forma autônoma, mas a partir da interação
dialógica, das trocas determinadas pelo contexto amplo dos
indivíduos envolvidos e pelo contexto imediato de cada
enunciação, o autor destaca como cada enunciado reflete o
ambiente, a situação e a finalidade na comunicação de cada grupo
ou campo de atividade humana por seu tema ou conteúdo, pelo
estilo e pelas características composicionais empregadas. “Os
enunciados e seus tipos, isto é, os gêneros discursivos, são correias
de transmissão entre a história da sociedade e a história da
linguagem” (BAKHTIN, 2018, p. 268). Nas situações de
comunicação imediata se manifestam os gêneros primários,
enquanto gêneros como o romance ou o drama são secundários,
complexos, que incorporam diferentes gêneros e discursos
primários nos seus diálogos internos, histórica e socialmente
localizados. A determinação do cronotopo parte, especialmente, da
essência temporal recorrente em determinadas obras de um
período (BAKHTIN, 2010, p. 212) conforme explica o autor:
89
figurativos, quando o cronotopo é o palco no qual se materializam
em imagem e se desenrolam, em ações, as ideias, as reflexões e os
conceitos intencionados pelo autor.
90
2015). É nesse sentido que Todorov (1981, p. 129, tradução nossa)
defende a ideia de que podemos considerar que a noção de
cronotopo “não se relaciona simplesmente à organização do
tempo e do espaço, mas também à organização do mundo (que
pode legitimamente se chamar cronotopo na medida em que o
tempo e o espaço são as categorias fundamentais de todo
universo imaginável)”3. A organização desse universo
imaginável se configura por meio da enunciação das instâncias
espaço-temporais permeadas pelas injunções sociais,
ideológicas e culturais consideradas em sua perspectiva
dialógica, ou seja, sócio-histórica.
Dessa maneira, consideramos que o conceito cronotopo se
presta à observação das narrativas audiovisuais, desde o cinema,
onde o tempo-espaço se fundem e se concretizam na construção da
narrativa. Nesse sentido, “do ponto de vista formal, um filme é
uma sucessão de pedaços de tempo e de pedaços de espaço […] é
através desta noção dialética que se pode definir (e, portanto,
analisar) a feitura própria de um filme, seu resultado essencial”
(BURCH, 1992, p. 24). É essa multiplicidade de possibilidade de
organização temporal e espacial que permite que, no cinema (e no
audiovisual narrativo de forma geral), uma mesma história possa
ser contada de diferentes maneiras (SPINELLI, 2005).
A materialização dos cenários, as relações espaciais entre as
cidades imaginadas e a forma estética de cada uma delas compõem
o extraverbal da enunciação da série. “O extraverbal não se define
de maneira mecânica, mas dentro de uma dialética que envolve o
percurso que ‘articularia o verbal e o não verbal, o dito e o não-dito,
o posto e o pressuposto, o entendido e o subentendido’”
(MUNGIOLI; JAKUBASZKO, 2009, p. 4). No caso das distopias,
independentemente da materialidade expressiva – se literatura,
91
filme ou série –, é fulcral observar a centralidade das relações
temporais e espaciais na sua constituição como gênero, conceitual
e figurativamente.
92
frustrações sociais ante a modernidade. “De uma maneira geral, a
F.C. [ficção científica] é quase sempre distópica, e frequentemente
crítica em relação aos destinos tecnológicos da humanidade”
(LEMOS, 2018, p. 14).
O cinema – ele mesmo um exemplo das possibilidades da
evolução tecnológica na virada do século XX – ofereceu muitas
imagens especulativas sobre o futuro e as conquistas da
humanidade. Mestre da invenção do cinema narrativo, no clássico
Viagem à Lua (1902), Georges Meliès utilizou recursos da cenografia
e do ilusionismo do circo e do teatro, trucagens mecânicas e óticas
para levar homens vestidos de casaca e cartola da Terra à Lua, num
tempo em que a realização de viagens espaciais ainda era um sonho
distante. Na década seguinte, Fritz Lang apresentou sua versão de
futuro distópico em uma cidade que se projeta aos céus a partir da
exploração do trabalho maquinal de operários que não podem
desfrutar de toda a prosperidade conquistada e representada nos
altos arranha-céus de Metropolis (1927).
Metropolis descreve um futuro, em 2026, em que a divisão e a
desigualdade entre duas classes são representadas também
espacialmente, como um mundo dividido entre um ambiente rico,
superior e aéreo – repleto de arranha-céus, varandas suspensas,
viadutos e aviões que rodeiam o gigantesco edifício Nova Babel (de
onde a cidade é controlada) –, e um ambiente subterrâneo, onde
vivem os trabalhadores. O filme apresenta uma visão arquitetônica
sobre os conflitos de classes, a industrialização e a vida urbana.
Insere-se no cinema expressionista alemão, caracterizado pelas
representações plásticas das emoções e pelos nós dos enredos, por
meio de recursos estilísticos, com destaque para a cenografia e a
luz. Barros (2011, p. 165) usa o conceito de “cidade-cinema” (cidade
que, por suas singularidades, é fundamental ou estruturante para
a trama de um filme) para analisar a influência de Metropolis na
construção do imaginário das cidades futuristas:
93
mundo dali a cem anos, e incorpora de maneira particularmente
intensa certa ordem de contradições que parecem desnudar os medos
de toda uma parcela da sociedade perante possibilidades que parecem
se anunciar no contexto da implantação do fordismo e da urbanização
desmedida. Entre esses “medos” tão típicos da primeira metade do
século, podemos citar os receios diante dos usos desumanos da
tecnologia, as angústias relacionadas a expectativas do desemprego
que poderia ser produzido através da substituição do trabalhador
humano pela máquina, a desumanização cotidiana promovida pela
rotina mecanizada, e o paradoxal isolamento do homem em um
mundo superpovoado, socialmente dividido e envolvido pelo
artificialismo e controle tecnológico. (BARROS (2011, p. 165)
94
Inspirada na proposta teórica de Bakhtin, Terentowicz-
Fotyga (2018) apresenta 1984 como exemplo canônico para
constituição de um cronotopo distópico, identificando o que
materializa a unidade da obra, a sua relação com a realidade e
como representa o ser humano. “Distopia, como uma novela das
ideias, sátira de uma ordem social particular, é um gênero
particularmente apto para se considerar a função estrutural do
cronotopo”4 (TERENTOWICZ-FOTYGA, 2018, p. 15, tradução
nossa). Pontua, ainda, que o cronotopo distópico, no nível do
enredo, se caracteriza por se estruturar com base no tema da
relação entre o indivíduo e o Estado opressor, contra o qual o
protagonista tenta se rebelar. O final, geralmente, é de frustração,
mas eventualmente há um sinal de esperança futura. Além disso,
como encarnação de ideias e visões de mundo específicas, uma
distopia precisa conter uma cena que apresente uma explanação
sobre as regras dessa realidade imaginada.
No plano da construção de espacialidade, emerge a questão dos
limites entre o que é público e o que é privado. Nas distopias, a
configuração dos espaços remete a situações sociais determinadas. O
motivo da destruição do lar, por exemplo, é recorrente como
significante da desintegração da vida privada, familiar e fora dos
domínios do Estado. Essa separação entre espaço interior e exterior
mostra-se na questão do controle sobre os corpos. “O Estado quer
manter o corpóreo sob controle, enquanto o indivíduo tenta proteger
isso e, a princípio, quanto mais íntima a experiência do corpo, mais
distópico é o efeito desse controle”5 (TERENTOWICZ-FOTYGA,
2018, p. 18, tradução nossa). Um exemplo radical desse tipo de
controle é o motivo essencial de Handmaid’s Tale, adaptação de
the individual tries to protect it and in principle, the more intimate the experience
of the body, the more dystopian is the effect of its control” (TERENTOWICZ-
FOTYGA, 2018, p. 18).
95
sucesso de livro homônimo de Margaret Atwood (1985), produzida
no formato seriado para o serviço streaming Hulu, desde 2017.
Outras oposições características do cronotopo distópico, conforme
Terentowicz-Fotyga, são entre o alto e o baixo, o central e o
periférico, o passado e o presente, a cidade e o mundo natural e os
signos verdadeiros e os falsos.
Podemos relacionar o sucesso de histórias distópicas aos
contextos econômico, social e tecnológico do século XX. Apontado
por Hobsbawm (1995) como uma “era de extremos”, o século XX
foi marcado por violentos conflitos armados, revoluções políticas e
sociais, novas configurações econômicas, desenvolvimento
vertiginoso das tecnologias e diversas experiências de regimes
autoritários. A popularização de distopias na literatura, no cinema
e na televisão, bem como o sucesso de obras como as mencionadas
Handmaid’s Tale e Black Mirror, foram essenciais para a sedimentar
um certo entendimento das plataformas de streaming como espaços
para produção de séries de qualidade. Embora esse argumento não
se sustente diante de uma análise atenta (CASTELLANO;
MEIMARIDIS, 2021, p. 205), cabe destacar que as distopias jogaram
um papel importante para esse entendimento. Deve-se mencionar,
ainda, que o sucesso de séries distópicas de televisão mostra a
relevância que elas possuem no imaginário popular.
96
Microsoft Windows Media Player, que dava acesso aos vídeos do
catálogo da empresa sem a necessidade de baixá-los, e começou a
negociar a inclusão de um aplicativo próprio em aparelhos de
televisão, estratégia posteriormente ampliada para celulares,
tablets, consoles de games, etc. No princípio, a assinatura mensal
dava direito a um número contratado de horas de acesso, mas já se
diferenciava de outros serviços de home video que funcionavam pelo
sistema de locação por título, que ficava disponível por um período
de poucos dias. A Amazon Prime Video, uma das principais
concorrentes da Netflix no mundo, por exemplo, foi lançada como
serviço de locação de vídeo por título em 2006, com o nome
Amazon Unbox, passando a oferecer serviço por assinatura apenas
em 2011 (SILVA, 2018).
Outra novidade da Netflix foi que, a partir de acordos de
licenciamento firmados com emissoras, como a NBC, ainda em 2007,
começou a disponibilizar temporadas inteiras de séries televisivas e
veiculou cada episódio da série Heroes um dia antes da exibição no
canal de TV aberta NBC (SILVA, 2018; SACCOMORI, 2016). Lotz
(2018) destaca esse momento como crucial para o entendimento da
internet não apenas como uma ameaça à televisão, mas como uma
nova forma de distribuição de conteúdo televisivo, uma ampliação
das possibilidades de escolha e controle dos espectadores sobre o
que assistir. A autora considera a televisão como um meio,
independentemente de qual seja a tecnologia de distribuição, e
chama a atenção para o fato de que os vídeos mais assistidos na
internet são produções feitas originalmente para televisão. Dessa
maneira, a internet teria permitido o surgimento de novas formas de
assistir, e provocou mudanças em toda a estrutura do negócio de
televisão (LOTZ, 2017; 2018).
Levinson (2019) também situa o uso da internet para
conteúdos televisuais como uma nova etapa da televisão. Ele
divide a história da TV estadunidense em três eras, sendo a
primeira a das redes (broadcast), que se encerra em 1999, com a
exibição bem-sucedida de The Sopranos, na HBO. A mesma série é
o marco que inaugura a era do cabo (narrowcast). Finalmente, a
97
terceira era é a da internet, que trouxe a possibilidade de ver todos
os episódios de uma série de uma só vez, uma característica
essencial das transformações no consumo de produções televisivas.
De forma comparativa, Levinson (2019, p. 11) afirma que a televisão
a cabo transformou a televisão em filme, ao excluir os comerciais,
enquanto a internet transformou a televisão em um livro, com
todos os capítulos à disposição do leitor desde o começo.
Após três anos do lançamento de seu serviço SVoD nos
Estados Unidos, a Netflix começou sua expansão no mercado
internacional. Em 2010, chegou ao Canadá; em 2011, a 43 países
da América Latina e do Caribe; em 2012, ampliou as operações
para alguns países da Europa; e atualmente, seu serviço é
oferecido em mais de 190 países (SILVA, 2018; SACCOMORI,
2016; NETFLIX BEGINS..., 2011; ONDE A NETFLIX..., 2021).
Devido, entre outros fatores, a emissoras e estúdios lançarem
suas próprias plataformas streaming, limitando a possibilidade de
licenciamento de obras, e à constante demanda por novidades,
estimulada pelo próprio modelo da empresa, a Netflix dá início a
produções próprias em 2012, dividindo os custos de Lilyhammer
com a emissora norueguesa NRK1, que exibiu a série um mês antes
da plataforma. Já no ano seguinte, em 2013, a Netflix produziu uma
nova temporada da série Arrested Development, até então extinta, e
House of Cards, publicando as temporadas completas (binge
publishing). Outras plataformas seguiram caminho semelhante,
com investimento em produções próprias, como Hulu, em 2016;
Crackle, em 2015; e Amazon Prime Video, em 2014 (SACCOMORI,
2016). Em 2021, a Netflix anunciou um investimento de 17 bilhões
de dólares em conteúdo original para o ano (REIS, 2021). Nesse
cenário, além da competição com as plataformas estadunidenses, a
Netflix também tem que disputar espaço, em quase 200 diferentes
mercados de SVoD, com conteúdo local oferecido por serviços
regionais de streaming (SILVA, 2018, p. 38). No horizonte das
produções da plataforma, podemos destacar o local privilegiado de
que séries e filmes de fantasia e ficção científica gozam, tendo como
referência Black Mirror, que estreou na plataforma em 2015,
98
apresentando um futuro distópico no qual a tecnologia aparece
como personagem que, ao mesmo tempo, facilita e atrapalha a vida
e as relações sociais.
O cenário anteriormente discutido nos faz considerar os três
paradigmas da comunicação global discutidos por Sinclair (2014,
p. 64) como maneiras de entender os movimentos de
internacionalização e localização de conteúdos de streaming. Os
paradigmas propostos pelo autor são: internacionalização, ou
comunicação de nação a nação, que remete aos programas
transmitidos em país diferente ao de origem, os enlatados; a
globalização, que implica a capacidade de transmissão do mesmo
conteúdo para muitas nações, mesmo que sejam necessários
ajustes para o contexto de cada local; e a transnacionalização, no
âmbito da qual ocorre a glocalização ou “o empréstimo seletivo
daquilo que é local e a adaptação de ideias globais e formas
culturais, o que inclui a comercialização de roteiros e direitos para
produzir determinados formatos”. O atual cenário de produção
de originais fora do eixo Estados Unidos-Reino Unido mostra
movimentos de plataformas de streaming, sobretudo da Netflix,
que se encaixam nos três paradigmas, sendo a produção de séries
nos diferentes países, incluindo o Brasil, coerente à ideia de
transnacionalização/ glocalização.
99
selecionadas através de um processo anual, permitido apenas uma
vez a cada pessoa, ao completar 20 anos.
O anúncio de produção da série surpreendeu parte do público
brasileiro, pouco acostumado a ver exemplares nacionais desse
gênero na televisão ou mesmo no cinema. Porém, a série já havia
tido uma versão do episódio piloto, produzido de forma
independente (viabilizado pelo edital do Ministério da Cultura
FicTV/Mais Cultura, de 2009) pelo seu criador, Pedro Aguillera, e
veiculado no YouTube, em 2011. Juntas, as três partes do episódio
piloto, legendadas em cinco idiomas, obtiveram mais de um milhão
de visualizações (LEITÃO, 2016).
Apesar de ter recebido críticas desfavoráveis no Brasil, após a
estreia, 3% chegou a ser a série de língua não inglesa mais assistida
na Netflix no mundo (AMENDOLA, 2020), e a boa recepção
internacional garantiu outras três temporadas (em 2018, 2019 e 2020).
Cabe destacar que, até dezembro de 2020, a Netflix havia lançado
um total de 14 títulos brasileiros (somando 20 temporadas), entre os
quais Onisciente (2020), também criado por Pedro Aguillera, pode
igualmente ser classificado como uma distopia. Outras séries, como
Boca a Boca e Reality Z, ambas de 2020, também apresentam
elementos cronotópicos condizentes com distopias, mas com a
proeminência de valores ligados a outros gêneros.
Cabe dizer que a localização geográfica dos cenários de 3% e de
Onisciente é apenas sugerida. Em 3%, há a indicação de se tratar de um
ponto na Amazônia Subequatorial. Considerando as primeiras
temporadas de cada série, as ações se passam em cidades nomeadas
com substantivos comuns, como Continente, na primeira, e Cidade,
na segunda. Em ambas, adicionalmente, há a noção de uma distinção
social claramente marcada em termos espaciais. As fronteiras
territoriais dessas cidades marcam não apenas espaços físicos, mas
também espaços sociais e simbólicos que opõem, entre outras coisas,
opulência e pobreza; controle social e liberdade. Em Onisicente, sair da
Cidade é possível e significa perder o conforto e a segurança de viver
em uma civilização pacificada, porém sob vigilância constante. Em
3%, conquistar, por mérito, o direito de deixar o Continente significa
100
partir para a cidade utópica, mudar de classe e transformar totalmente
o modo de vida.
Interessa-nos, aqui, analisar como se articulam os elementos com
valores cronotópicos – de gênero – na representação das cidades
imaginadas na série 3%, tendo em vista que tais espaços configuram
não apenas o pano de fundo para as ações, mas são dotados de valor
figurativo e semântico, que dão unidade ao enredo e concretizam
ideias e visões de mundo implicadas no horizonte sócio-histórico em
que se constrói a série e que determinam as imagens e as trajetórias
das personagens a cada temporada.
As cidades distópicas de 3%
101
parece uma grande favela localizada no fundo de uma cratera. Bem
acima desse paredão de pedras, surge o edifício do Processo, uma
construção de traços modernos, de concreto e vidro, toda branca,
que contrasta com os tons sombrios da cidade. É no prédio que se
passa a maior parte da ação da primeira temporada da série,
centrada na apresentação do mundo da série através do seu motivo
definidor: o próprio Processo. O interior do prédio foi gravado na
Arena Corinthians, também em São Paulo. O primeiro encontro
dos candidatos com Ezequiel (João Miguel), responsável pelo
Processo, que os olha a partir de um andar mais elevado do edifício,
é a cena em que a série faz a apresentação de seu universo diegético.
É o discurso de boas-vindas de Ezequiel que apresenta verbalmente
as regras, os valores e, também, as contradições do mundo
ficcional. Por meio dele, sabemos da existência de grupos que, “em
nome de uma falsa igualdade”, são contra os princípios de
distinção do Processo.
Maralto não aparece na primeira temporada, mas é sempre
mencionada e se configura como objetivo final da competição, que,
como no cronotopo do tempo de aventuras e provações descrito
por Bakhtin (2018), é o lugar dos eventos da história contada, mas
que não tem relevância na biografia das personagens. A ilha é
descrita no discurso de apresentação como o “mais perfeito dos
mundos”, criado pelo casal fundador e destinado aos 3% que, por
merecimento, são escolhidos: “Todos têm a mesma chance. E,
depois, o lugar que merece: o Maralto ou o Continente. Ou, como
vocês costumam falar, o lado de lá, ou o lado de cá. Esse processo
garante que só os melhores desfrutem do Maralto [...]. Você é o
criador do seu próprio mérito”, diz Ezequiel.
A distopia de 3% não é mais a do mundo burocratizado,
despersonalizado e estratificado de Metropolis e de outras utopias
negativas da cultura popular, mas é o pesadelo da meritocracia e
da crença de que cada um pode ser o que quiser, desde que dedique
esforço suficiente, independentemente de sua origem. Não à toa, o
elenco dos candidatos apresenta certa diversidade étnica,
evidenciando, no interior da diegese, que todas as desigualdades
102
foram suprimidas na sociedade calcada na competição entre
indivíduos. O Processo consiste em provas com o objetivo de
avaliar diferentes habilidades intelectuais, emocionais e físicas dos
participantes6.
Segundo Jotagá Crema, um dos roteiristas da primeira
temporada (e que participou da criação do projeto com Pedro
Aguillera, em 2009, quando eram colegas na Universidade de São
Paulo), a dinâmica do Processo proporciona a identificação do
público jovem com as situações de suas vidas, como o vestibular, a
passagem para a vida adulta e a entrada no mercado de trabalho
(OLIVEIRA, 2017).
Uma questão acompanha toda a primeira temporada: o
Processo tem realmente a capacidade de avaliar as melhores pessoas
para fazer parte dos 3%? Surge, então, o questionamento sobre o que
qualifica três pessoas, em um universo de 100, a viver bem, em
detrimento dos outros 97, condenados a viver miseravelmente toda
a vida, sem nenhuma perspectiva de mudança. Esse é o motivo que
mobiliza a “causa” da qual fazem parte Michele e Rafael, que
encerram a temporada a caminho de Maralto.
Maralto é apresentada no primeiro episódio da segunda
temporada, que começa por meio de um flashback que desenvolve
a ação até quatro anos antes de começar o Processo, 108 anos antes
da primeira temporada, quando o trio fundador está estudando a
ilha, até então virgem. Os ambientes idílicos, ensolarados e
cercados de natureza, calma e conforto, foram gravados no Museu
de Inhotim, na cidade de Brumadinho, Minas Gerais. A outra face
do mundo distópico de 3%, no qual se desfruta das benesses
daquele futuro imaginado, é um lugar onde a tecnologia está
103
integrada a tudo e as pessoas comem e se exercitam ao ar livre,
aproveitando com outros escolhidos, aparentemente sem qualquer
sentimento de culpa, as maravilhas do lugar. O ambiente bucólico
para privilegiados lembra os jardins eternos onde os jovens
herdeiros de Metropolis podiam desfrutar uma vida tranquila de
prazeres sustentados pelos operários que habitavam as
catacumbas. Entretanto, diferentemente da cidade de Fritz Lang,
em Maralto não há herdeiros, pois só o “mérito” é considerado para
mensurar o valor das pessoas.
Separado do Continente por muitos quilômetros de mar,
Maralto só é acessível por meio de um submarino, que leva
Michele e Rafael, infiltrados da “causa” e que foram aprovados no
Processo. Ainda nos primeiros minutos do episódio, dois planos
aéreos produzem sentidos de comparação entre os ambientes do
Maralto e do Continente, ao exporem, pela topografia e pela
ocupação dos espaços físicos, os espaços sociais e simbólicos que
caracterizam as populações das cidades ficcionais. De um lado, a
natureza, a modernidade e a abundância; de outro, a desolação de
ruínas urbanas. Ao mesmo tempo, dessa forma, as imagens
configuram e delimitam não apenas os espaços físicos, mas
também uma certa cena discursiva, ao constituir situações para
uma cenografia da enunciação (MAINGUENEAU, 2013, p. 96-98).
É por meio dessa cenografia discursiva que entendemos e damos
sentido aos discursos de legitimação das diferenças e da
meritocracia dos dirigentes e dos habitantes de Maralto; e aos
discursos de busca por reparação e de melhores condições de vida
dos habitantes do Continente. Configura-se, assim, o cronotopo
da cidade distópica baseada na sociedade de classes, que se
reveste da roupagem da meritocracia.
Esse novo espaço permite concretizar as ideias a respeito do
“mundo perfeito” para aquela sociedade e o desenvolvimento de
novas tramas que colocam as personagens no conflito entre a boa vida
conquistada e a luta pela causa de acabar com a segregação do
Processo. Além disso, por meio de flashbacks, segue-se a história da
origem do Processo até, finalmente, a revelação de que o grande
104
blackout – que tornou o Continente o lugar inóspito apresentado na
série – foi causado pelos próprios fundadores para viabilizar seu
projeto utópico da sociedade perfeita que, como enuncia um deles,
“não pode ser pra todos”. Desde a origem, portanto, Maralto
implicava seu negativo, o sacrifício involuntário de muitos pelo bem
de uma elite de pessoas consideradas merecedoras. Esses
acontecimentos permitem novos momentos de explicação das visões
de mundo por trás da distopia criada pela série, a partir das discussões
éticas entre o trio fundador, repetindo o elemento com valor
cronotópico citado por Terentowicz-Fotyga (2018, p. 16, tradução
nossa): “Narrativas distópicas contém uma apresentação dos
princípios de organização do seu sistema, que podem ter a forma de
uma narrativa independente, uma discussão ou um monólogo”7.
Por outro lado, os espaços do Continente também são mais
explorados a partir da segunda temporada, ganhando contornos de
uma favela e uma mirada mais compreensiva em relação às
particularidades das personagens e dos grupos que lá habitam,
incluindo igrejas e os esconderijos dos integrantes da “causa”.
Espaços fora do interesse do projeto dominante, onde se destacam
elementos pessoais, característicos, constituem o que Terentowicz-
Fotyga menciona como “espaços apropriados”, em contraposição
aos que representam plenamente o desejo da classe dominante, em
3%, simbolizados pelo Maralto e pelo prédio do Processo.
A terceira cidade da série é apresentada como possibilidade no
final da segunda temporada. A Concha é o projeto de Michele para
ser uma terceira via, um lugar com potencial para prosperidade,
onde todos são bem-vindos. O material e a tecnologia necessários
para formar esse novo lugar foram conseguidas por chantagem, em
troca de permitir que o Processo continuasse. Essa alternativa à
dicotomia entre a utopia e a distopia do Maralto e do Continente
seria, então, conseguida através da conciliação de interesses, do
105
apaziguamento dos conflitos e da ajuda da elite de selecionados ao
povo que fora excluído. Tal procedimento, cite-se, é semelhante ao
encontrado no final de Metropolis.
Na terceira temporada, após um ano, a Concha foi construída no
lado oposto ao prédio do Processo, também sobre o Continente.
Apesar das boas intenções, o novo lugar é palco e, também, motivo de
novos conflitos entre seus próprios habitantes, a despeito do discurso
de gestão coletiva dos interesses e da oportunidade igual para todos.
Além disso, a existência dessa nova cidade motiva uma nova tomada
de posição do Maralto, que assume contornos de uma governança
militar, usando a violência com a justificativa de manter vivo o sonho
da cidade sem defeitos. A quarta temporada tem seu clímax passado
no Continente, com uma disputa para decidir quem governará todas
as cidades. Ao final, prevalece um discurso que prega o
apaziguamento das tensões, a união e a negociação de interesses como
uma nova proposta de sociedade ideal.
Considerações
106
Como vimos, na narrativa distópica da série 3%, as dimensões
espaço-temporais ganham relevo na construção de um “universo
imaginável” (TODOROV, 1981), que se ancora em cronotopos que
sintetizam e projetam, em um futuro sombrio, as desigualdades
sociais e seus discursos de legitimação do presente. Essa projeção
se torna visível por meio dos cronotopos em que a topografia, a
arquitetura e as relações desiguais entre os diferentes espaços
expressam a estratificação social, a objetificação do indivíduo e a
opressão social, constituindo-se não apenas como temas, mas como
elementos articuladores do espaço-tempo na diegese. Elementos
que caracterizam o cronotopo distópico, em torno da oposição
elementar entre o individual e o poder de controle dos grupos
dominantes, comparecem em diferentes obras, com maior ou
menor proeminência. Com quatro temporadas (2016, 2018, 2019 e
2020), 3% inovou em cada uma com a inclusão de um novo cenário,
uma nova cidade que representava e exigia valores e visões de
mundo distintos das personagens.
Dessa forma, os cronotopos das cidades de 3% configuram e
delimitam os espaços físicos, inserindo-os em uma temporalidade
marcada não apenas pelo registro do calendário, mas também por
certa cena discursiva, quando constitui situações para uma
cenografia da enunciação (MAINGUENEAU, 2013) que evidencia
as relações sociais assimétricas que se manifestam nos discursos. O
jogo cronotópico que envolve as cidades e seus habitantes desvela
não apenas as distopias, mas também o caráter discursivo que
marca espaços geográficos, sociais e simbólicos em uma
perspectiva que opõe os discursos de (des)legitimação de dois
mundos que se contrapõem e, ao mesmo tempo, se complementam
na diegese da série.
107
Referências
108
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109
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TODOROV, Tzvetan. Mikhail Bakhtine: le principe dialogique
suivi de écrits du cercle de Bakhtine. Paris: Seuil, 1981.
110
Cronotopo da Recepção: exploração teórica e empírica do
conceito enquanto categoria analítica no estudo de
recepção da série Game of Thrones
Lizbeth Kanyat
111
Apresentamos também a teoria do ator contextual e disposicional
de Bernard Lahire (2004) enquanto estrutura de análise empírica
que favorece o estudo da pluralidade de sentidos atribuídos pelos
sujeitos receptores considerando os diversos tempos e espaços em
que eles transitam (contexto diacrônico e contexto sincrônico). A
seção de metodologia apresenta o dispositivo analítico desenhado
para o estudo do corpus. A análise apresenta os resultados da
aplicação do dispositivo no exame de uma entrevista. Nas
considerações refletimos sobre as potencialidades do dispositivo,
suas limitações e possíveis desdobramentos.
112
essencialmente vinculados entre si e, às vezes, inter-condicionados
(sem se fundirem). (BAKHTIN, 2018a, p. 238, grifos do autor)
Cronotopo e Recepção
113
relações de poder (MARTIN-BARBERO, 2009; LOPES, 2014; JACKS
e ESCOSTEGUY, 2005; FÍGARO e GROHMANN, 2017). Retomamos
também o legado da Escola de Constança que propõe para a
recepção o estudo do texto e da sua intencionalidade de sentido, bem
como da interpretação do receptor e dos usos dela na vida cotidiana
(SANDVOSS, 2011; JAUSS, 1982). O que interessa às pesquisas dos
estudos latino-americanos de recepção é compreender como os
sujeitos se relacionam com os meios de comunicação e como se
constroem os efeitos de sentidos por meio dessa inter-relação. As
perguntas que, de modo geral, orientam as pesquisas de recepção
incluem o que é recebido, quando, onde, como, quais sentidos são
atribuídos a essa mensagem e o que se faz com os sentidos
atribuídos. Em cada uma dessas instâncias analíticas podemos
encontrar possibilidades de aplicação de uma abordagem
cronotópica para estudar a recepção, posto que qualquer entrada no
campo dos sentidos só se concretiza pela porta dos cronotopos”
(BAKHTIN, 2018a, p. 236). O pensador ainda afirma:
114
O que é recebido? Este momento de análise estuda quais são os
sentidos pretendidos pela obra enquanto discurso circulante no
mundo. Uma abordagem cronotópica desta pergunta nos permite
perceber, ao estudar a categoria tempo, as formações discursivas e
ideológicas circundantes no momento de exibição dessa
mensagem. A categoria analítica espaço é indissociável da anterior,
pois ela circunscreve geográfica e culturalmente a circulação dessa
mensagem para a análise dos sentidos pretendidos por ela.
Quando e onde é recebida a mensagem? Esta pergunta pode
provocar uma descrição detalhada dos momentos assistência à série.
A categoria tempo (quando) nos ajuda a observar em que horário é
recebida a mensagem, em qual momento da rotina do sujeito, em
que época de sua vida e em quais contextos sociais, econômicos,
políticos e culturais. A categoria espaço (onde) orienta a análise para
o dispositivo usado para o recebimento da mensagem, o lugar físico
em que o sujeito e seu dispositivo se encontram e as caraterísticas
mais relevantes do seu entorno imediato.
Como é recebida essa mensagem? O como está relacionado com as
práticas e rituais do consumo. Esta pergunta orienta o olhar para a
dimensão simbólica do consumo. A categoria tempo nos ajuda a
localizar a frequência do consumo, a duração da exposição para tal
mensagem, os hábitos ou costumes em torno dessa prática
comunicativa. No âmbito do espaço podemos explorar as rotinas
que tomam lugar antes, durante e após o consumo, bem como os
sentidos que aquele lugar atribui à prática comunicativa que nele
está ocorrendo.
Quais sentidos são atribuídos? Uma abordagem cronotópica
desta pergunta instiga uma análise que relacione os discursos dos
sujeitos com as caraterísticas do espaço e do tempo do momento de
enunciação, do suporte em que o enunciado é pronunciado, dos
enunciatários e suas respectivas filiações ideológicas e contextos
culturais, históricos e sociais.
O que se faz com os sentidos construídos no processo de recepção? A
utilização do cronotopo como categoria analítica para o exame
desta dimensão do processo de recepção pode tratar do estudo das
115
temporalidades que envolvem as ações do
enunciatário/enunciador. Estuda em quais momentos os sentidos
(re)construídos são manifestos, qual é frequência dessas ações
enunciativas, sua duração, se são fragmentados ou não, qual é o
espírito do tempo, quais são os discursos circulantes no tempo da
enunciação. O espaço nos leva a analisar os lugares, fragmentados
ou não, em que os discursos são enunciados, os suportes ou
dispositivos usados para comunicar e também em quais arenas
discursivas de disputa de poder os enunciados são inseridos.
Longe de ser um modelo último de análise, as ideias anteriores
são um exercício para tornar o conceito de cronotopo
metodologicamente manejável em pesquisas de recepção, aberto a
críticas e colaborações. Dito isso, as ideias apresentadas nos levam a
considerar que o conceito de cronotopo pode ser tornar uma
categoria analítica profícua não só para analisar a obra como
apresentado primorosamente por Bakhtin, mas também para
analisar as diversas instâncias do processo de recepção. Percebemos,
entretanto, que se impõe ao pesquisador a necessidade de fazer
escolhas que delimitam com precisão o uso e aplicação do conceito
nos procedimentos metodológicos de sua pesquisa. No trabalho de
doutoramento se articulou o conceito de cronotopo da recepção à
teoria do ator disposicional e contextual de Bernard Lahire (2004;
2008) por considerar que esta nos ajuda a sistematizar o uso do
referido conceito conforme apresentaremos a seguir.
116
programa televisivo em articulação aos tempos e espaços em que
constroem tais sentidos e mobilizam tais posturas.
Lahire (2004; 2008) critica o uso de conceitos de “classe” e
“públicos ou população” quando tratados como categorias
autoexplicativas, suficientes e inequívocas. O pesquisador
considera que eles apresentam uma concepção mutilada dos
sujeitos por dividi-los em polarizações como
dominantes/dominados e em hierarquias socioprofissionais ou
socioculturais. Em contrapartida, Lahire (2008) propõe trazer o
indivíduo para o centro da sociologia para assim fazer uma
“sociologia à escala individual”. Não se trata de negar a existência
de desigualdades sociais e o papel desempenhado pelo capital
cultural no acesso às formas eruditas de cultura. Porém, o autor
propõe uma mudança de escala de observação. Uma observação
que comece por considerar variações intra-individuais antes de
retomar as variações inter-classes (diferenças entre classes).
O sociólogo propõe uma teoria do ator indissociavelmente
disposicionalista e contextualista baseado em duas premissas:
117
grupos de pares, meio familiar, meio profissional, comunidade
religiosa, fan club, rede de sociabilidade, instituição midiática, etc.
A isto o autor chama de variação intra-individual das práticas e
preferências culturais. A socialização passada é mais ou menos
heterogénea e dá lugar a disposições heterogêneas e por vezes
contraditórias.
118
Por outro lado, a pluralidade contextual é externa e social. São
as características objetivas da situação em que o ator se encontra e
inclui as relações de forças entre elementos do contexto que pesam
mais ou menos sobre o ator. Os contextos podem ser associados a
pessoas ou não. São as molas que projetarão o indivíduo a
determinada prática. O ator plural possui um patrimônio de
esquemas de ação (disposições) e estes são adquiridos nas
experiências dos indivíduos no interior de cada contexto social, e
que depois de incorporados passam a ser ativados em
situações/contextos não necessariamente análogos aos quais foram
adquiridos. “O ator individual não põe invariavelmente ou
transcontextualmente em prática o mesmo sistema de disposições
(ou habitus). Pelo contrário, podemos observar mecanismos mais
subtis de vigilância/acção ou inibição/activação de disposições”
(LAHIRE, 2008, p. 31)
A explicação para a variada experiência individual não está na
singularidade psicológica irredutível dos destinos individuais e
sim na pluralidade das influências socializadoras com as quais os
indivíduos tendem a se relacionar.
119
e fora do texto e consideramos ambos lugares (o social e o textual)
arenas de disputa pelo sentido, tal como o indica Bakhtin:
120
Foram entrevistadas 14 pessoas individualmente. A duração
média de cada entrevista foi de 35 minutos. Na tese de doutorado
exploramos com amplitude e profundidade as diversas instâncias
do processo de recepção dos 14 entrevistados, entretanto, este texto
se concentra na apresentação dos elementos que sustentaram a
predileção pela série em seu contexto espaço-temporal encontrados
em uma entrevista. A entrevista escolhida para a exposição da
análise neste texto é representativa do conjunto de achados
empíricos nos outros corpora.
121
Análise
122
a quarta” (PAULO, p. 1, 2019). Depois, Paulo passou a assistir aos
episódios no dia do lançamento no canal por assinatura HBO.
Assistia geralmente na sua casa. As companhias mais frequentes
eram os amigos e o seu irmão. Entretanto, ele assistiu à última
temporada junto com a namorada. Parte do ritual era preparar
pipoca e refrigerante 10 minutos antes de o episódio começar. Os
temas que lhe interessaram na série eram aqueles voltados à
política, geopolítica, história e comportamento humano. Este
espectro temático era também explorado na sua vida pela
faculdade - Relações Internacionais - que decidiu cursar
posteriormente pouco tempo depois de ter começado a
acompanhar à série. Seus personagens preferidos foram Tyrion
Lannister, pela jornada de redenção moral passando de um sujeito
hedonista para um altruísta; Ned Stark, pela honra e a
incorruptibilidade do seu caráter; e Arya Stark, pela bravura e
coragem se seguir seus sonhos de independência. Apesar do
entrevistado ter enunciado vínculos de identificação e projeção em
relação à vida destes personagens, as disposições em torno da
predileção da série não dizem a respeito da afinidade com as
personagens e sim revelam uma pluralidade de engajamentos.
No fim da entrevista, quando convidado a escolher o fator
mais importante na predileção da série o entrevistado respondeu:
123
Disposição 1: o princípio do valor estético
É uma série que foi muito bem trabalhada, e… assim, eu sei que o…
as últimas temporadas, eu acho que ela deixou um pouco a desejar,
ela… acho que eles tentaram fazer, muito querendo agradar aos fãs e
parece que eles fizeram, fizeram com pressa, não sei. Porque assim,
no começo, as coisas aconteciam, só que, tipo, tinha coisas, fatores
que surpreendiam você, né? Então, ia tudo acontecendo e ia te
surpreendendo. Isso que eu falei é surpresa, esse negócio de… igual
matar um personagem que é o princ… parece o principal, te
surpreende. Você fica, tipo, abismado, você gosta disso, porque é
algo diferente, né? É… algo que tipo assim, depois começou cair um
pouco, porque as coisas começaram a acontecer e todo mundo sabia,
sabe? Tipo, “ele vai fazer isso agora”. “Ah, ah, nossa ela fez’, uau!
2 “takes its selected objects out of the paradigmatic context and so shatters their
original frame of reference; the result is to reveal aspects (e.g. of social norms)
which had remained hidden as long as the frame of reference remained intact”
(ISER, 1978, p. 109).
124
Tipo, todo mundo sabe, né, porque caiu, não sei se na mesmice
(PAULO, 2020, p. 9 e 10).
125
Eu acho que a série, ela se trata de passar é… não, lógico, é assim é
uma versão um pouco mais fábula, né, do que antigamente, uma
época assim um pouco mais medieval. Mas, eu acho que se trata de
passar um pouco como tinha coisas, assim, um pouco mais reais,
acontecimentos reais e comportamentos, igual, bem políticos, né? [...]
O Senhor dos Anéis, que também é fabula, época assim meio medieval,
mas ele não mostra esse lado político. É lado muito mais assim, de
bem e mal, de enfrentar e Game of Thrones não. Se trata dos… das
pessoas, toda aquela coisa política, e aí tinha preconceito, ah você, pá,
é do norte, ou, pá, é do sul. Então, eu achei muito legal esse
tratamento, assim, desse… da versão… um pouco mais política das
coisas antigas, né? (PAULO, 2020, p. 2).
126
e os temas da própria dimensão ontológica humana face à filogênese
e à sociogênese.
[...] o leitor deseja ficar afastado por um tempo, não para escapar, mas
para se reunir à "floresta sem trilhas" da terra com um senso mais
claro de direção e propósito. A fantasia é essencialmente
rejuvenescedora. Permite-nos um certo distanciamento das questões
pragmáticas e oferece-nos uma visão muito mais clara sobre elas.
Esse fato pode ser responsável, em parte, pelo enorme apelo da
literatura de fantasia. Ele faz mais do que simplesmente reestruturar
uma realidade que já conhecemos - também oferece uma realidade
paralela que nos dá uma consciência renovada do que já conhecemos.
3[...] the reader longs to stand apart for a time, not to escape but to rejoin earth's
"pathless wood" with a clearer sense of direction and purpose. Fantasy is
essentially rejuvenative. It permits us a certain distance from pragmatic affairs and
offers us a far clearer insight into them. This fact may account, in part, for the
enormous appeal of fantasy literature. It does more than simply restructure a
reality which we already know-it also offers a parallel reality which gives us a
renewed awareness of what we already know. (TIMMERMAN, 1983, p. 1).
127
Temas: Em termos de ecoar a realidade, a série é percebida pelo
entrevistado como um documento histórico e como um tabloide
contemporâneo. Por gostar de História, Paulo afirmou apreciar as
cenas, eventos ou práticas culturais que foram inspiradas em
acontecimentos da vida real, pois lhe possibilitavam enriquecer o
seu imaginário.
128
ressignificados pelo entrevistado como armas químicas usadas em
guerras, deixando os seus detentores em grande vantagem em relação
aos oponentes que não possuíam essa tecnologia.
Outro traço da realidade na série que foi mencionado pelo
entrevistado é a pluralidade de corpos e biotipos apresentados na
série. O telespectador nota a ausência da tradicional figura
medieval do cavaleiro, inteligente, nobre, branco e loiro. Em seu
lugar aparecem corpos menos hegemônicos e mais reais: o anão
(Tyrion Lannister), o paralítico (Bran Stark), o leproso (Jorah
Mormont), o homem gordo (Samwell Tarly), o incestuoso e
amputado (Jaime Lannister), o bastardo (Jon Snow). Além disso,
apesar da série apresentar identidades de gênero tradicionais,
encontramos também representações de feminilidades que não
entram em conformidade com os ideais cisnormativos (Arya Stark
e Brienne of Tarth).
A complexidade do comportamento humano, a fuga da
polaridade maniqueísta e as influências de interesses políticos para
a mudança de comportamentos foram também responsáveis pela
predileção da trama. Enquanto estudante da graduação de relações
internacionais, o entrevistado exercitava a identificação do uso de
teorias de negociação e dissuasão nos enredos das trama.
A gente até viu algumas aulas, uma professora minha, ela gosta, ela
mostrou algumas cenas, né? Pra falar disso, justamente esse
comportamento de… é… político de… ah você… “ah, por que que
ele fez aquilo? Por que que ele traiu a pessoa? Ah, por que que ele tá
fazendo aquilo? Pra sobreviver?” É um… é um, uma atitude de
dissuasão ou algo assim? Então, eu acho que isso leva muito também
assim pra área, né, que eu estudo, como eu estudei relações
internacionais, eu tô terminando, eu gosto também dessa parte
política, né? Hoje em dia, eu trabalho em marketing, mas eu gosto
bastante das partes de política, então é um interesse que eu tenho
bastante em comum. Até porque outras séries que eu gosto também,
é… igual, [ininteligível], “Breaking Bad”, também tem um pouco
desse aspecto de… cê vê que tem muita coisa que é politicagem. “Ah,
por que que o cara fez aquilo?” Ah… porque ele quer ganhar…
129
conquistar a amizade do outro, porque ele sabe que ele é poderoso,
ou algo assim, sabe? (PAULO, 2020, p. 2 e 3).
Quando um diretor faz um filme, ele tem lá o herói que salva tudo e
aí, todo mundo quer que esse herói, ele ganhe e que ele consiga
sucesso e tudo mais. E, eu acho que tipo, você pegar e simplesmente
matar ele, porque você mostra que ele é humano, ele pode morrer.
Eu acho que isso, que isso que é legal, porque é algo assim, choca e é
a realidade, porque, tipo, se for pensar, a vida é assim, entendeu? Do
nada, as coisas acontecem e pum, “ah cadê a pessoa?” Não tá mais,
já foi, entendeu? E é [risos] assim… (PAULO, 2020, p. 4 e 5).
130
morte a sentimentos difíceis, como tristeza (63%), dor (55%),
saudade (55%), sofrimento (51%), medo (44%)”. Apresenta-se,
portanto, um paradoxo em que conteúdos tanatológicos estão
presentes na mídia, entretanto as pessoas relatam sentir ansiedade
em relação a estes temas.
Em situação análoga ao Brasil, Durkin (2003) indica que, nos
Estados Unidos, o conteúdo tanatológico é presente na mídia, onde
certos nichos apresentam fascínio pela morte, o morrer e os mortos,
enquanto que outra parcela da população sente medo e ansiedade.
O paradoxo pode ser interpretado de três maneiras, segundo o
pesquisador. Primeiro, no contexto da cultura popular, a morte, o
morrer e os mortos são redefinidos em formas que estimulam
diversas reações que não são primordialmente o terror, entre elas
fascínio, humor, desfrute da desgraça alheia ou curiosidade
mórbida. Segundo, a apreciação de temas tanatológicos
encontrados na cultura popular requer algum desapego por parte
do indivíduo. Espectadores de luta livre profissional, filmes de
terror, jogadores de videogames violentos, são chamados a
suspender o medo, a insegurança e a ansiedade gerada pela
possibilidade de viver algo semelhante ao que se está assistindo,
objetivando a atenção a outros aspectos da narrativa. Finalmente, o
pesquisador apresenta o argumento de que a tremenda quantidade
de exposição à morte, o morrer e os mortos que as pessoas recebem
através da cultura popular pode tornar mais fácil a aceitação destes
fenômenos. A análise da entrevista nos leva a corroborar esta
última linha argumentativa.
Os escassos fóruns de discussão sobre a morte para o público
leigo brasileiro apontam para grandes lacunas no tema da
educação para morte (KOVÁCS, 2005). A teledramaturgia torna-se
um espaço de exposição dos temas tanatológicos que tão
limitadamente parecem ser tratados formalmente nas instituições
constitutivas dos sujeitos (família, escola, estado e religião). Não
neutralizando a sensibilidade, como sugerido anteriormente, mas
expandindo a experiência sensível.
131
Para Buonanno (2004, p. 343), "é por meio da ficção que
acontecem em grande parte os contatos mediados com as raras
experiências de que fala Giddens". A pesquisadora explica que para
Giddens os problemas existenciais e dilemas morais devem ser
deixados à parte, ou em certo sentido 'presos', da vida cotidiana
com a finalidade de preservar um sentimento de segurança
ontológica. A loucura, a doença e a morte ficam retidas em
instituições de controle como manicômios e hospitais, tornando-se
experiências raras. Porém, Buonanno assinala, a raridade de
vivenciar essas experiências diretamente é atenuada pela
frequência que a mídia as apresenta:
132
fragilidade, finitude e a vulnerabilidade humana. Observar o luto
no drama televisivo pode favorecer o entendimento e o
acolhimento dos fortes sentimentos presentes nessas situações.
133
À medida que a peça caminha para o clímax, o espectador vai se
envolvendo com a trama e sentimentos de compaixão e temor fazem
com que sofra juntamente com o herói o seu destino. Desperta-se a
compaixão por sua desgraça imerecida e o temor pela possibilidade
de vivenciar o mesmo infortúnio (SANTOS, 2007, p. 57).
134
O evento aparentava selar a desgraça da casa Stark, que na
série representava a honra. Após a morte de Ned, Robb, o seu
primogênito, assume a posição de Lord de Winterfell.
Acompanhado de sua esposa e mãe, sai de Winterfell para vingar
a morte de Ned. Todos foram brutalmente assassinados numa
emboscada e seus exército é também dizimado no mencionado
episódio. Theon Greyjoy invade Winterfell. Os caçulas da casa
Stark, Bran e Rickon, agora órfãos de pai e mãe, fogem para a
Muralha. Arya, que vê o irmão, a mãe e a cunhada serem mortos,
vaga com o Cão aprendendo a ser uma assassina para vingar a
morte da sua família. Sansa é controlada e violentada pelos
Lannister, depois pelo Mindinho e finalmente por Ramsay Bolton
até ser resgatada e voltar a Winterfell.
A tragédia parece despertar no telespectador uma vertigem,
isto é, uma sensação de ter sido surpreendido ou um pânico
momentâneo. Cenas em que estes elementos são explorados
infligem na consciência lúcida uma espécie de desordem
voluptuosa e destroem por um instante a estabilidade da
percepção. Assim, como nos parques de diversões, em que após
rodopiar abruptamente as pessoas retornam à fila para repetir a
atração, a vertigem do telespectador é renovada nos próximos
episódios com mais plot twists que exploram o trágico associado
ao realismo grotesco. Caillois (2017) indica que mesmo os jogos
que exploram estas sensações por procedimentos físicos (queda
ou projeção no espaço, rotação rápida, o escorrega, etc.),
provocam uma vertigem de ordem moral, um arrebatamento que
de repente toma o indivíduo. O antropólogo afirma que “essa
vertigem se casa facilmente com o gosto normalmente reprimido
da desordem e da destruição. Traduz formas grosseiras e brutais
da afirmação da personalidade” (CAILLOIS, 2017, p. 64). O
telespectador se sente como num boxe, assistindo a uma luta livre
ou a um combate de gladiadores.
135
surpreendendo. Isso que eu falei é surpresa, esse negócio de… igual
matar um personagem que é o princ… parece o principal, te
surpreende. Você fica, tipo, abismado, você gosta disso, porque é
algo diferente, né? (PAULO, p. 9, 2020).
Outras disposições
Considerações
136
inicialmente refletimos sobre a aplicabilidade do cronotopo em
nível metodológico como dispositivo analítico fértil para estudar
questões espaço-temporais nas diversas instâncias do processo de
recepção. Concluímos que o conceito ajuda a sistematizar e
organizar a observação das mediações que agem na ressignificação
dos enunciados recebidos nas diversas articulações espaço-
temporais do processo de recepção.
Na pesquisa de recepção da série Game of Thrones buscamos
identificar os elementos narrativos e discursivos no texto midiático
incidentes na predileção da série sustentando uma assistência
engajada emocionalmente, assídua e íntima. Para dar suporte
teórico e metodológico a esta problemática, mobilizamos a teoria
do ator disposicional e contextual de Bernard Lahire (2004, 2008).
Percebemos que o conceito de contexto tinha por objetivo identificar
as conjunturas espaço-temporais no processo de construção de
sentidos, portanto, uma oportunidade de operacionalizar o
conceito de cronotopo da recepção em um dispositivo de análise
condizente com os objetivos da pesquisa.
A técnica de coleta de dados primários foi entrevista semi-
estruturada individual. Por seu caráter qualitativo, apresentamos
neste texto os resultados da análise de uma das 14 entrevistas feitas
para a tese de doutorado da autora. A entrevista teve por objetivo
reconhecer a pluralidade de disposições para o engajamento com o
referente televisivo no contexto diacrônico durante o tempo em que
a série foi assistida. Após a utilização do dispositivo analítico no
corpus constatamos a existência de um conjunto de disposições em
torno da predileção pela série que operam no mesmo contexto
diacrônico. Isto é, constatamos a pluralidade disposicional que
Lahire propõe. No caso da pesquisa aqui realizada, as disposições
são elementos narrativos e discursivos que, ressignificados, foram
responsáveis pelo apreço da série e sustentaram a televidência ao
longo das oito temporadas. As disposições discutidas acima foram:
disposição em torno do princípio do valor estético, disposição em
torno do apreço pelo realismo do gênero fantástico, disposição em
torno do apreço pelo trágico do gênero fantástico.
137
Lahire indica que no mesmo contexto, poderia haver relações
de hierarquia, contraste, oposição ou alternância entre as
disposições. Tais relações de oscilação não foram constatadas nesta
pesquisa. No seu lugar, o informante relatou ser um conjunto de
disposições as que juntas sustentaram o vínculo com a série.
Conforme afirmado pelo entrevistado e evidenciado na análise, o
engajamento com o referente televisivo é resultado do grupo de
elementos narrativos e discursivos que interpretados a partir do
seu horizonte de experiência são atribuídos de valor estético.
Nos termos da teoria de Lahire (2004, 2008), poderiam existir
variações disposicionais em torno do mesmo proponente em
decorrência de mudanças de contexto sincrônico (cronotopos de
recepção). Apesar de que o entrevistado relatou ter assistido à série
em diversos contextos (na casa dos pais com o irmão, no
apartamento da namorada, no bar com os amigos), não foram
enunciadas variações em torno da predileção pela série por causa
das mudanças no contexto sincrônico. Diante disto, encontramos
possibilidades para futuros desdobramentos da pesquisa.
Um instrumento de coleta de dados que seja desenhado
especificamente para detectar a construção de disposições nos seus
respectivos contextos sincrônicos pode examinar possíveis
alternâncias, flutuações e até mesmo relações de oposição dentre as
disposições em torno de um mesmo produto midiático. Técnicas de
coleta de dados como entrevistas seriadas, observação participante
e seções de discussão em grupo podem verificar o uso performático
de disposições nos diversos cronotopos do processo de recepção,
isto é, nos diversos contextos sincrônicos e diacrônicos.
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138
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141
142
PARTE 2
143
144
Mikhail Bakhtin e a telenovela brasileira:
exotopia, autoria e gêneros discursivos em análise1
145
marcas de época tais como o cenário, os comportamentos e os
conflitos traz o passado com seus cenários, comportamentos e
conflitos, num diálogo em que se processam a rememoração e o
mapeamento do presente em construção apontando já para o futuro.
146
apenas ser tensionadas no campo da literatura e do estudo do
romance – um preconceito, como sempre, descabido (BRAIT, 2008,
p. 91). Não apenas é possível pensar o dialogismo bakhtiniano nos
meios de comunicação atuais, como o é necessário fazê-lo para a
compreensão de assuntos fundamentais como estética televisiva,
cultura televisiva, imaginação melodramática e hibridização
cultural nas investigações em telenovela (RIBEIRO; SILVA, 2014).
Intelectuais brasileiros e brasileiras como Maria de Lourdes Motter
(in memoriam), Maria Cristina Palma Mungioli, Daniela Jakubaszko
e Igor Sacramento, para ficar em alguns poucos nomes, são
exemplos de pesquisadores que se utilizam do arcabouço teórico-
metodológico bakhtiniano para pensar as materialidades empíricas
da telenovela brasileira, em específico, e da teledramaturgia (em
outros formatos como séries e minisséries), como um todo.
As discussões pautadas por estes autores são devedoras, em
grande medida, dos esforços de outros intelectuais que fizeram “a
ponte” entre os estudos bakhtinianos e a comunidade acadêmica à
parte da língua russa. Em outras palavras, os búlgaros Julia
Kristeva (1941-), com Bakhtine, le mot, le dialogique et le roman (1967),
e Tzvetan Todorov (1939-2017), com Mikhaïl Bakhtine: le principe
dialogique (1981), são os responsáveis por introduzirem e
traduzirem o pensamento de Bakhtin ao mundo ocidental. Por
dominarem as línguas russa e francesa, eles também foram
responsáveis por traduzir/criar neologismos a partir de termos
(correlatos ou não) do vocabulário bakhtiniano como: exotopia,
intertextualidade, translinguística etc. (traduções/neologismos que
nem sempre são consensuais ou bem aceitos no universo
acadêmico). Além deles, a pesquisadora Marina Yaguello (1944-),
francesa e russófona, com Le Marxisme et la philosophie du langage
(1978), é outra grande responsável por traduções da obra de
Bakhtin/Volóchinov para o meio intelectual do Ocidente (SOUZA,
2002, p. 51-53; ZBINDEN, 2006, p. 12; SÉRIOT, 2015, p. 22-23, SINI,
2016, p. 224). Mesmo no Brasil, a recepção dos escritos bakhtinianos
ocorreu, inicialmente, por meio das traduções francesas já que, no
contexto fortemente anticomunista do regime ditatorial vivido pelo
147
Brasil (1964-1985), muitas vezes, “um autor soviético só poderia ser
lido em tradução ocidental” (SCHNAIDERMAN, 1983, p. 9).
Por outro lado, é importante ressaltar, muito também tem se
discutido sobre como a recepção de Bakhtin nos círculos acadêmicos
brasileiros passou por um curioso processo de enviesamento teórico-
linguístico. Como explicam Grillo e Américo (2013), tal
enviesamento pode ser visto tanto em relação às perdas que
naturalmente decorrem da tradução de traduções (ou seja, verter ao
português os livros já traduzidos ao francês, por exemplo, e não
diretamente fazer a tradução via a língua original, o russo2) quanto
à associação indevida de Bakhtin erroneamente compreendido como
uma parte extensiva dos formalistas e estruturalistas (algo quase
irônico já que o autor justamente procurou se distanciar de tais
visões durante a criação de sua obra). À vista disso, segundo
Tul’činskij (2013, p. 80), pode-se dizer, então, que no Brasil (como em
algumas outras partes do Ocidente) a recepção de Bakhtin se deu por
uma “perspectiva invertida” não apenas no campo dos estudos
literários e filológicos, mas, como o autor especificamente pontua,
também na “teoria da comunicação”. Ainda assim, entre as
limitações e as potencialidades, reforça Sini (2016, p. 224), é
indiscutível a presença e a importância do Brasil na discussão da
“bakhtinística” ou da “bakhtinologia” (IVANOV, 1995; EMERSON,
2003) nas contemporâneas fortunas críticas feitas sobre o autor ao
redor do mundo.
Dessa maneira, com a intenção de dar prosseguimento a esta
tradição de estudo da telenovela brasileira a partir de Mikhail
Bakhtin, este capítulo propõe pensar o dialogismo bakhtiniano
como um posicionamento teórico que baliza as discussões no
148
campo dos Estudos Televisivos. Ilustrando empiricamente tal
tensionamento, opta-se por trazer a telenovela Cordel Encantado
como o objeto no qual tais leituras bakhtinianas podem ser
expressas (mas, vale ressaltar: a matriz analítica de Bakhtin é
adaptável a toda e qualquer narrativa ficcional seriada televisiva e
não apenas a obra aqui colocada em estudo). Esta telenovela, que
em 2021 completou 10 anos, foi um sucesso de audiência e crítica
especializada, além de ter fomentado pesquisas acadêmicas no
campo da Comunicação em nível de mestrado como demonstram
as análises de Aires (2013) e Silva (2015).
De igual importância, este capítulo toma o princípio
bakhtiniano de exotopia como o seu posicionamento metodológico
na relação entre o pesquisador e o seu objeto pesquisado. Logo, a
exotopia é pensada como o movimento de distanciamento-
aproximação do analista que detém, por um excedente de visão,
um campo de observação ampliado do objeto empírico ao qual se
dedica estudar (neste caso, a telenovela brasileira). Como
posicionamentos analíticos, por sua vez, as questões de autoria
(especificadas na distinção entre autor-pessoa e autor-criador) são
colocadas em cena para perceber as peculiaridades envoltas na
tessitura teledramatúrgica de Cordel Encantado. Por fim, em um
grau menor de importância analítica, os debates em torno dos
gêneros do discurso (com foco no entendimento dos gêneros
discursivos secundários) também são trazidos a este trabalho.
149
dialógico, constituidor da existência humana, segundo o qual a
interação entre os sujeitos é o princípio fundador tanto da
linguagem como da consciência. Logo, o sentido e a significação
dos signos dependem da relação entre sujeitos e são construídos na
interpretação dos enunciados. Sujeitos esses constituídos pelas
injunções sócio-históricas da sociedade.
Para Volóchinov (2019, p. 219), o uso do termo diálogo não se
constitui em mera técnica conversacional ou de evolução temático-
discursiva capaz de revelar pontos de vista e visões de mundo, nem
mesmo em uma estratégia para encobrir o domínio através da
linguagem:
150
Segundo Volóchinov (2017), a consciência individual não só nada
pode explicar, mas, ao contrário, deve ela própria ser explicada a
partir do meio ideológico e social. É só a partir da separação dos
fenômenos ideológicos da consciência individual que nós
conseguimos conectá-los às condições e às formas de comunicação
social para, a partir daí, compreender as materialidades dialógicas
da linguagem. “A consciência individual não é a arquitetura da
superestrutura ideológica, mas apenas sua inquilina alojada no
edifício social dos signos ideológicos. [...] Pois a existência de um
signo não é nada mais que a materialização dessa comunicação”
(VOLÓCHINOV, 2017, p. 98).
É precisamente na palavra que melhor se revelam as formas
básicas e ideológicas gerais da comunicação. A palavra acompanha
todo ato ideológico. Os processos de compreensão de todos os
fenômenos ideológicos (um quadro, uma telenovela, um ritual, um
comportamento humano) não podem operar sem a participação do
discurso interior3. Isso não significa, obviamente, que a palavra
possa suplantar qualquer outro signo ideológico (BAKHTIN, 2003,
VOLÓCHINOV, 2017). Desse modo, fica claro que mesmo com a
participação do discurso interior, o processo não pode acontecer
individualmente, mas na sua interlocução entre os membros de
uma sociedade. Assim, a linguagem nunca é utilizada de maneira
abstrata, mas sim em um contexto histórico e social onde se
interpenetram a enunciação, as condições de comunicação e as
estruturas sociais.
151
É dizer que, ao analisarmos uma telenovela, como aqui
fazemos, jamais podemos descolar tal exercício do contexto de sua
produção, da construção de seu enunciado e, num viés mais
especulativo, das formas de recepção e circulação cultural deste
produto midiático. Como afirma Irene Machado, pensar o
dialogismo a partir dos meios de comunicação massivos não é
apenas transportar formulações de uma área (como o estudo do
romance) para outra. Pelo contrário, é redimensionar tais conceitos
pelos encontros e diálogos interculturais, isto é, reelaborar
dialogicamente o pensamento. No caso da televisão, a autora a
apresenta como um “enunciado concreto da comunicação mediada”
e, a partir de nossa leitura, analisar a telenovela neste viés é
compreendê-la na esfera comunicativa da cultura onde tudo
reverbera em tudo e onde as formas culturais vivem nas “fronteiras”
– gerando, assim, elementos híbridos (MACHADO, 2008, p. 162).
152
real vem da Europa, em busca da herdeira do trono, o amor dos dois
fica ameaçado (XAVIER, 2011, s/n.).
153
Encantado’ enreda-nos pela polissemia e plasticidade semiótica do
texto audiovisual em um mundo ficcional com referências diretas e
indiretas” às várias hibridizações narrativas e culturais (LOPES;
MUNGIOLI, 2012, p. 158). E aqui se entende a hibridização cultural,
pela conceituação de García Canclini (2011, p. 283), como o “[...]
desmoronamento de categorias e pares fixos de oposição”, isto é, as
formas pelas quais os elementos culturais se fundem e produzem
“culturas híbridas” gerando “gêneros impuros”.
Nesta obra, há uma polissemia que se constrói com as matrizes
culturais e os formatos industriais da literatura de cordel e da
telenovela. Destacam-se nessa composição, como uma
possibilidade, que a formação dos personagens (arquétipos
modulares) e sua a interdependência (elementos internos à
produção de sentido) fizeram com que a narrativa seriada de Cordel
Encantado conseguisse demonstrar a hibridização cultural. Dito de
outro modo, nesta ficção seriada o processo de hibridização
cultural se deu a partir do uso de elementos da cultura popular
(literatura de cordel, imaginário popular sobre o cangaço, contos
de fada) e de uma leitura da cultura erudita (referências à literatura
francesa, elementos da corte, mundo medievo) numa produção da
cultura massiva (telenovela e suas lógicas narrativas), reelaborando
os processos de produção de sentido dentro de materialidades
dialógicas da linguagem (SILVA, 2015).
E é pelas tramas que constituem a narrativa de Cordel Encantado
que este capítulo procura compreender como as questões de autoria e
gêneros discursivos vão tomando corpo, vão produzindo
ressignificações analíticas na complexa tessitura melodramática da
telenovela brasileira. Desse modo, como posicionamento
metodológico, coloca-se em questão o conceito de exotopia como o
ponto de partida que estabelece as formas e as relações entre o
pesquisador e o objeto empírico pesquisado em termos de
aproximação, distanciamento e potencialidade do olhar analítico.
154
Exotopia: posicionamento metodológico
155
espécie de dom do artista para seu retratado”, afirma Amorim
(2006, p. 97).
Por isso, o termo exotopia toma sentido neste trabalho a partir
da ideia de um posicionamento (espaço-temporal) do pesquisador
em relação ao objeto pesquisado. “A contemplação estética e ato
ético não podem abstrair o fato de que o sujeito desse ato e dessa
contemplação artística ocupa na existência um lugar concreto,
único”, afirma Bakhtin (2000, p. 44). Em outros termos, opera-se
aqui o excedente de visão como um gesto exotópico no qual o
pesquisador aproxima-se de sua obra, modelando-a,
fragmentando-o, analisando-a e reconstituindo-a por um modo de
vê-la além das ideias postas na superfície da cena e intencionadas
pelos roteiristas, produtores, diretores e todo o corpo produtivo da
telenovela Cordel Encantado.
Seguindo este raciocínio, o termo condensador das ideias de
excedente de visão é a palavra russa vnenakhodimost’ cunhada por
Bakhtin e que, de acordo com Todorov (1984, p. 99), significa
literalmente “encontrar-se a si mesmo do lado de fora” ou,
resumidamente, como pontua Bubnova (2000, p. 33), “encontrar-se
fora”. Como um dos primeiros a trazer as discussões bakhtinianas
ao Ocidente, Todorov traduz o termo para a palavra francesa
éxotopie, tradução muito valiosa, segundo Amorim (2006, p. 96), já
que, “do ponto de vista do enunciado e não da língua, a expressão
forjada por Todorov é feliz, pois sintetiza o sentido que se produz
na obra de Bakhtin e que é o de se situar em um lugar exterior”. Já
em traduções do inglês o termo torna-se outsideness, em italiano é
lido como extralocalità, em português como exotopia e em espanhol
como extraposición (BUBNOVA, 2000, p. 33).
De acordo Machado (2010, p. 277-278) a conceituação de
exotopia é controvertida, em grande medida, justamente pelas
variadas interpretações e traduções – tidas como exercícios
metalinguísticos - que se tem da palavra vnenakhodimost’. Todavia,
ela afirma que a despeito das possibilidades truncadas de aplicação
do termo a depender da variabilidade de traduções, o que não se
pode perder de vista no entendimento de exotopia é: “[...] a noção
156
de movimento, valor maior da categoria bakhtiniana que tanto une
quanto separa [...]”. Tal noção de movimento (no espaço-tempo) é
disposta da seguinte maneira por Bakhtin (2003, p. 23):
157
a fim de sintetizar o que vê, o pesquisador utiliza-se de seus valores,
suas perspectivas, suas impressões, sua formação, para discorrer
acerca do que viu (SILVA, 2013, p. 1-2).
158
O autor-pessoa e o autor-criador: posicionamento analítico I
159
A primeira conceituação coloca o autor-criador como o
responsável por criar uma espécie de “confronto de mundos”, em
outras palavras, é dele a função de, no plano estético e no ato
criativo, confrontar o sistema de valores, normas, costumes e
tradições comungadas pela sociedade (o plano axiológico da
realidade vivida) com o sistema de valores proposto dentro da
narrativa (o plano axiológico da obra), isto é, os valores que
delineiam os personagens e o caráter de cada um deles, as situações
e as resoluções de problemas, e o desenrolar da história. Ainda
nesse confronto (num misto de reflexo, refração e reconstrução de
valores), e a partir do autor-criador, o leitor/espectador vivencia os
dois planos axiológicos no contato com a obra e reelabora,
consequentemente, novos mundos, novas axiologias.
Em Cordel Encantado é possível perceber isso quando vemos a
estrutura arquetípica do quadrilátero melodramático que a compõe,
isto é, na narrativa existe a presença do Justiceiro (herói), do Traidor
(vilão), da Vítima (mocinha) e do Bobo (bufão) (MARTÍN-
BARBERO, 2009, p. 168). Com base nessa construção, é possível
colocar Jesuíno na figura do Justiceiro, Timóteo como o Traidor,
Açucena/Aurora como a Vítima e, finalmente, Prefeito Patácio e
Primeira-Dama Ternurinha como representantes da figura dos
Bobos. Além destes dois últimos personagens citados (que têm
caráter protagonístico maior), muitos outros personagens podem ser
localizados nos papéis cômicos de Bobos como a Rainha-Mãe
Efigênia, Delegado Batoré, sua irmã Neusa e o cunhado Farid, os
amigos Quiquiqui e Setembrino etc. Partindo dos sentimentos
básicos de medo, entusiasmo, dor e riso, estes quatro personagens
(Justiceiro, Traidor, Vítima e Bobo) formam o quadrilátero
melodramático desta telenovela – produzindo, assim, um misto de
quatro gêneros que, segundo o Martin-Barbero (2009), podem ser
visualizados por meio do romance de ação, da epopeia, da tragédia
e da comédia. Exemplarmente, o Justiceiro mostra-se como o
personagem que, no último momento, salva a Vítima e castiga,
enfim, o Traidor. É dele a função de, no desenrolar da trama, mostrar
160
os enganos, entregar a todos a terrível face do vilão e permitir que a
“verdade resplandeça” (MARTÍN-BARBERO, 2009).
Essa visão do melodrama folhetinesco apresentada na
televisão possui uma vinculação muito forte com os valores e
papéis sociais cristalizados e dedicados ao homem e a mulher, por
exemplo. A axiologia da realidade vivida (de modo muito
discriminatório) pressupõe que, num embate de gêneros, cabe ao
homem de bem proteger, lutar contra o mal e terminar casando-se
com a mulher para formar uma família (talvez, na narrativa de
Cordel Encantado, uma exceção visível se localiza na personagem
Doralice que, em sua trajetória durante a trama, protagoniza
situações nas quais se assemelha, temporariamente, à figura de
uma Justiceira). E à mulher, essa figura sempre passiva, frágil e que
vive por osmose a partir de sua relação marital, cabe apenas o
espaço privado do lar. No plano da axiologia do objeto estético,
com ligeiros matizes, esta valoração é replicada ad infinitum e faz
parte de muitas das telenovelas.
Muniz Sodré (2010) apresenta informações que corroboram
este pensamento ao falar que na telenovela (tal qual no folhetim
oitocentista) ainda persiste numa construção arquetípica e
estrutural pensada na ideia da família tradicional, patriarcal, numa
ideologia de falsa modernização da vida pelo consumo de bens
comerciais, culturais e simbólicos. O que, por sua vez, aproxima e
muito a telenovela (“romance familiar”) da coletividade e das
massas. Uma narrativa que imbrica a “cena familiar” com a “cena
videográfica” e que liga o fluxo televisivo ao fluxo contínuo das
ações sociais, como ressalta Muniz Sodré (2010, p. 156).
Já a segunda conceituação de Bakhtin, por outro lado, vê o autor-
criador em duas posições: a de refratado e a de refratante
(FARACO, 2008). A primeira o apresenta como uma posição
valorativa que é recortada (refratada) pelo autor-pessoa, uma
posição na qual o autor-criador é uma projeção das escolhas e
valores do sujeito-escritor. Por sua vez, o autor-criador como
posição refratante é visto como aquele que é o responsável por
reorganizar (refratar) os eventos da vida (esta que é experienciada
161
tanto pelo autor-pessoa quanto pelo leitor/espectador) e também
dar forma ao conteúdo apresentado na obra. Ou seja, é a voz social
criativa que organiza, trabalha, lapida e insere as múltiplas vozes
sociais na narrativa dando uma unidade ao objeto estético e
coproduzindo sentido junto àqueles que o consomem.
Nesse confronto de mundos axiológicos, é possível perceber
que além de tratar de assuntos que fazem parte da vida dos
telespectadores ou que ao menos tenham verossimilhança
narrativa e contextual, a apropriação cultural também é explicada
pela troca e aceitação de valores dominantes comungados tanto
pela telenovela quanto pelo público. E este comungar passa
necessariamente pela figura do autor-criador posto que tal
configuração cultural criada e compartilhada pela sociedade diz
muito sobre o imaginário coletivo de um povo, a forma como as
classes sociais, as relações de gênero, o acesso ao capital cultural e
a convivência ao meio circundante são formadas neste processo de
produção e recepção. O discurso do autor-criador, por isso, é
sempre uma “voz segunda” em relação à voz primeira e direta do
escritor (FARACO, 2008, p. 40).
No caso específico das telenovelas brasileiras, Souza (2004, p.
14) destaca que as marcas autorais podem ser pensadas em duas
dimensões: a externa e a interna. Enquanto a dimensão externa lida
com a noção de autor enquanto realizador (discutindo status
autoral, cadeia de produção e instâncias de reconhecimento e
consagração), por sua vez, a dimensão interna é entendida como as
marcas autorais presentes na tessitura teledramatúrgica (em
termos de temas tratados, construção de personagens, tratamento
do espaço-tempo da narrativa etc.). Nesse sentido, como se percebe
pela fala da autora, a questão da autoria na telenovela deve ser
compreendida muito mais do que somente a presença do autor-
pessoa no processo de realização da obra:
162
satisfação necessária dos telespectadores; entre o reconhecimento do
realizador-autor e as escolhas estéticas, operativas e técnico-
operativas que tenham configurado uma marca estilística peculiar
reconhecível [...]. (SOUZA, 2004, p. 19).
Bakhtin ainda afirma que o que faz uma obra ser esteticamente
criativa consiste não na transcrição literal das ideias do autor-pessoa
na voz social do autor-criador, como se ambos fossem um só. Pelo
163
contrário, “as ideias do autor-pessoa” (no deslocamento da
linguagem, isto é, no processo que leva as múltiplas vozes sociais à
unidade conferida/organizada pela voz social do autor-criador)
devem ser transformadas sempre, remodeladas e recriadas a partir
de “imagens artísticas das ideias” (FARACO, 2008, p 40). A fala da
diretora Amora Mautner, seguindo nessa linha de raciocínio, mostra
como é possível realizar algo parecido na esfera discursiva de Cordel
Encantado. Na mesma entrevista com as duas autoras, ela comenta:
164
Isso coloca em questão a presença de um terceiro autor-pessoa
representado na atuação da diretora Amora Mautner, pois é a partir
das remodelações criadas pela diretora que as cenas e os sentidos
intra e inter-capitulares vão ganhando corpo. Conforme explicita
Souza (2004, p. 30), o papel do diretor nas telenovelas brasileiras
tem sido de extrema importância para a compreensão das marcas
autorais nas obras: “Associado ao crescimento do papel da direção
é observável a tendência dos escritores a escolherem a cada vez
mais uma parceria constante com aquele que vai se responsabilizar
pelo produto final [...]”. Algo também perceptível na parceria das
escritoras Thelma Guedes e Duca Rachid com o trabalho da
diretora Amora Mautner em outras telenovelas além de Cordel
Encantado, a saber: Cama de Gato (2009) e Joia Rara (2013) — ambas
produzidas e exibidas também na Rede Globo de Televisão. Dessa
forma, especialmente a partir dos anos de 1980 em diante, continua
a autora, a atuação da direção na telenovela brasileira começa a
colocar em pauta a preocupação em “definir uma linguagem
audiovisual própria e particular do gênero” (SOUZA, 2004, p. 30).
E é isso que nos leva para outra discussão (mais breve) localizada
agora no nível dos gêneros discursivos secundários que, por sua
vez, são lidos a partir da teledramaturgia brasileira.
165
(2008, p. 155), são mais complexos e produzidos a partir de
elaborados códigos culturais como o romance, os gêneros
jornalísticos, o ensaio e, na leitura empreendida neste capítulo,
também se poderia acrescentar a telenovela brasileira.
Assim, afirmar a natureza dialógica da linguagem é entender
que existem variados tipos de signos e seus arranjos passam por
permanentes deslocamentos que se retroalimentam nas sequências
intertextuais/interdiscursivas. Estas sequências funcionam em seus
contextos histórico-sociais como fontes dialogicamente produtoras
de sentido, tais quais os meios de comunicação contextualizados a
seu tempo e espaço. Deve-se ainda esclarecer que, para Bakhtin, só
se pode entender o dialogismo interacional pelo deslocamento do
conceito de sujeito. O sujeito perde o papel de centro e é substituído
por diferentes vozes sociais, que fazem dele um sujeito histórico e
ideológico localizado em um determinado tempo e espaço concretos.
Bakhtin acredita que a palavra deve ser vista como signo e,
como tal, deve ser percebida como originária da relação social
presente ao ato de enunciação já que ela está em todos os atos de
compreensão e de interpretação. Dessa maneira, como os signos
medeiam a relação do homem com sua realidade, toda atividade
mental do sujeito só pode ocorrer e ser expressa sob a forma de
signos, exteriorizando-se por meio de linguagens verbais ou não-
verbais ou mesmo outro meio decorrente do discurso interior. No
caso da telenovela e de outras obras da ficção seriada na TV, é
preciso se considerar as especificidades dos contextos de produção,
circulação e distribuição das obras teledramatúrgicas: “O gênero
secundário, quando atua na produção de certos discursos leva em
consideração tanto o estilo das formações sociais com práticas
identitárias quanto o estilo das formas atuantes de economia, como
patrocinadores, emissora etc.”, afirma Pisa (2013, p. 22).
Cordel Encantado, ao trabalhar com inúmeras matrizes da
cultura popular, erudita e massiva, realiza processos de produção
de sentido que hibridizam tais matrizes e arquétipos. Logo, esta
telenovela brasileira pode ser lida como um gênero discursivo
secundário. Em outros termos, como coloca Machado (2008, p.154)
166
“todo enunciado é um elo na cadeia, muito complexamente
organizada, de outros enunciados” que, consequentemente,
permitem “o surgimento de híbridos”. De igual importância, a
prosificação, no entendimento bakhtiniano, estaria ligada ao
revigoramento da prosa na cultura da civilização ocidental,
trazendo as formas discursivas da comunicação interativa e
favorecendo a valorização das ações cotidianas de homens comuns
e suas enunciações banais – em contraposição ao papel privilegiado
que a Poética sempre ganhou nos estudos linguísticos desde
Aristóteles (MACHADO, 2008, p. 153-154).
Sob esta ótica, compreendendo a telenovela como uma forma
de “crônica diária” pautada primordialmente no diálogo dos
personagens e em cenas que localizam o cotidiano, é possível
visualizá-la como um gênero secundário no qual a prosificação
cultural também age nos processos de produção de sentido. Ou,
como ainda relembra a pesquisa trazida por Pisa (2013), é preciso
observar como a televisão e seus produtos necessitam ser
ressignificados à luz dos conceitos bakhtinianos, posto que:
167
ser único, senão o for, não há meios de ocorrer a diferenciação da
enunciação. Posto isso, é possível notar que o tema da enunciação
é na verdade, assim como a própria enunciação, individual e não
reiterável, isto é, ele se apresenta como a expressão de uma situação
histórica concreta, contextual e não-universalizante que deu
origem à enunciação (VOLÓCHINOV, 2017). Enunciados e
enunciações que são envoltos por condições de linguagem
marcadamente diversas e imbuídos de vozes sociais (a
heteroglossia) que os conformam como são.
Entretanto, pensar a questão dos processos de produção de
sentido e os gêneros secundários do discurso sem se levar em
consideração a especificidade da cultura televisiva e da estética
televisiva, não dá a possibilidade de que um olhar comunicacional
pleno sobre Cordel Encantado seja explicitado em um trabalho como
este. E mesmo que a televisão raramente seja considerada
“relevante” quando o tema da discussão está voltado à estética ou
não seja vista como “séria” o bastante para que tal discussão possa
ser feita (FAHLE, 2006, p. 190), ainda assim, é preciso que a estética
televisiva seja analisada como um espaço de discussão
fundamental à comunicação e às gramáticas televisuais.
Por isso, como explica Omar Rincón (2007, p. 30), a televisão
“é uma cultura em si mesma, mais do que pelos próprios conteúdos
‘cultorosos’ que ela transmita”. É o que Colombo (1976, p. 96)
também já pontuava há quase 50 anos ao discutir o que ele chama
de uma cultura da comunicação visual da TV. E, finalmente,
entender os gêneros discursivos bakhtinianos como manifestações
da cultura, possibilita lê-los como “dispositivos de organização,
troca, divulgação, armazenamento, transmissão e, sobretudo, de
criação de mensagens em contextos culturais específicos” (BRAIT,
2008, p.88). Ou seja, tal qual como ocorre em Cordel Encantado e sua
reelaboração de outras histórias e narrativas, os gêneros do
discurso vivem também do presente, mas sempre recordam de seu
passado (MACHADO, 2008, p. 158).
168
Considerações finais
169
característica é reforçada pelo acordo ficcional (ECO, 1994) em uma
narrativa possuidora de um tom de fábula4.
Metodologicamente, o conceito bakhtiniano de exotopia
mostrou-se como fundamental na relação entre o pesquisador e o
objeto pesquisado. É dizer que, no caso da telenovela, entendida
como um produto cultural complexo e de rico acabamento estético,
compreende-se que o excedente de visão é necessário no
distanciamento (e na devida reaproximação) entre o analista e a
obra em estudo. Por sua vez, vale ressaltar a posição de Amorim
(2006, p. 97), compartilhada neste trabalho, de que: “O acabamento
aqui não tem sentido de aprisionamento, ao contrário, é um ato
generoso de quem dá de si. Dar de sua posição, dar aquilo que
somente sua posição permite ver e entender”.
Com igual relevância, retoma-se, neste campo, o conceito de
dialogismo como o princípio teórico bakhtiniano que diz respeito
às relações que se estabelecem entre o eu e o outro nos processos
discursivos historicamente instaurados pelos sujeitos, que, por sua
vez, instauram-se e são instaurados por esses discursos. Sendo
assim opera-se a lógica na qual a fala de um sujeito só se realiza e
cria sentido se pensada em relação aos outros, e nessa interação o
ato comunicativo é tanto responder como dirigir perguntas.
Portanto, é nessa relação entre o eu e a voz do outro que surge a
dinâmica da interação e da interatividade, elementos fundamentais
do dialogismo vistos sob a luz do estudo dos meios de
comunicação.
Isso significa superar visões de um modelo redutor e
funcionalista que apresenta um caráter unidirecional e coloca o
papel da recepção como atividade passiva na ressignificação das
170
mensagens. Significa um redimensionamento do espaço
comunicativo readequando os papéis de emissores/receptores para
uma dinâmica relacional de coautores/cocriadores. Assim,
interagir se torna mais do que simplesmente enviar e responder
mensagens já que os sujeitos passam a fazer parte de um processo
de relações interligadas por fios dialógicos.
Entende-se com isso que o autor/emissor tem potencial de
criar espaços nos quais combina os signos de forma a oferecer um
conjunto de possibilidades de redes de articulação e conexões, e o
receptor pode neles interferir, modificando, associando ou
ressignificando, frente à polissemia e à ambiguidade, por
aproximações sucessivas, idas e vindas, já que os sentidos
atribuídos nem sempre são os que foram pretendidos pelo autor.
E, assim, o capítulo teve por objetivo realizar uma conexão
teórica e metodológica possível entre o pensamento de Mikhail
Bakhtin e o estudo da telenovela brasileira que, do ponto de vista
acadêmico, é considerada como um produto cultural dotado de
complexo acabamento estético. Mais estritamente, o que este
trabalho buscou demonstrar é que é preciso compreender a
telenovela brasileira enquanto um objeto midiático localizado
social e historicamente na esfera discursiva da comunicação
audiovisual e que, portanto, apenas uma leitura baseada em juízo
de valor ou nas já datadas discussões sobre “alta” e “baixa”
cultura tornam-se inviáveis dada a riqueza estilística e estética do
produto analisado.
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176
O ‘galã de novela’ entre o machismo e o feminismo: como
as questões de gênero pressionam as formas
composicionais da ficção televisiva1
Daniela Jakubaszko
João Nemi Neto
177
sociais, contribuindo para a formulação de consensos. O estudo da
telenovela como gênero discursivo e das transformações em suas
formas composicionais (BAKHTIN, 2006) ao longo dos anos é
indispensável.
A telenovela foi se constituindo e fortalecendo como um gênero
do discurso (BAKHTIN, 2006) de grande importância na cultura
brasileira. Se “onde há estilo, há gênero” (BAKHTIN, 2006, p.268),
ela pode ser estudada como um gênero do discurso porque tem
formas típicas que governam a sua construção, porque segue e
reproduz padrões, fortalece um estilo próprio para a linguagem
televisiva, além das marcas de estilo autoral de cada roteirista, bem
como do diálogo que se forma entre as diferentes histórias e autores
ao longo do tempo (JAKUBASZKO, 2019). Enquanto gênero
também carrega memória, herda de suas referências literárias
inúmeras características e elementos que se combinam,
intercambiam e se transformam com o tempo (MOTTER, 2000-
2001; JAKUBASZKO, 2018). A telenovela brasileira que recebe
influências do circo, do rádio, do teatro, do cinema, a partir da
década de 1970, se distancia da fórmula melodramática que
polariza bem e mal absolutos ao construir personagens e conflitos
de maior densidade e proximidade com a realidade do espectador.
O gênero ganha continuamente novas feições para se adequar ao
presente histórico do interlocutor, como é típico da ficção
(BAKHTIN, 2018), atuando como importante mediador das
relações culturais (MARTÍN-BARBERO, 2015). É que a evolução de
um gênero acontece por meio do dialogismo, na permanente
interação da vida social:
178
coletiva na produção de sentidos renovados e se firma como
documento histórico, lugar de memória, refratando, pela ótica
ficcioautoral, um momento do processo de desenvolvimento da
sociedade brasileira. (MOTTER, 2004, p. 251-252)
179
As representações de histórias de mulheres, de processos
emancipatórios e de empoderamento feminino, de diferentes
vivências de gênero e de amor, de ruptura com a normatividade
heterossexual e com a prevalência do modelo hegemônico de
masculinidade vêm ganhando protagonismo nas tramas. Tais
narrativas tornaram-se marcas da telenovela brasileira atual.
A ficção televisiva é um gênero em transformação na zona de
fronteira entre o machismo e o feminismo? Na telenovela, a
trajetória do par amoroso que vence sucessivos obstáculos para
atingir a união no fim da história é o fio melodramático que conduz
a narrativa e ajuda a entrelaçar a estrutura de vários núcleos
dramáticos, apresentando as diversas ações e histórias que irão
preencher o hiato de tempo em que os heróis vivem
separadamente. Tais núcleos seguem tanto a fórmula do antigo
romance grego de aventuras (BAKHTIN, 2018) quanto a fórmula
melodramática que exige a presença do herói, da vítima, do vilão e
do bobo (MARTÍN-BARBERO, 2015). O final feliz se manifesta na
profusão de casamentos na última semana, principalmente no
último capítulo. É o ponto de chegada, a recompensa dos virtuosos
e a punição, ou regeneração, dos vilões. A união amorosa coroa o
ciclo da recompensa. A solidão costuma ser uma punição. Nesta
fórmula ainda vige o amor romântico.
O amor romântico a que nos referimos é aquele que aparece
no final do século XVIII com as novelas, romances e, logo, com o
cinema. "O início do amor romântico coincidiu mais ou menos com
a emergência da novela” (GIDDENS, 1993, p. 50), e estava
integrado com a criação do lar, com as modificações nas relações
pais e filhos e com a invenção da maternidade. Temos que lembrar
que a paixão (amour passion) não fazia parte dos casamentos, e a
emergência do amor romântico traz alento às mulheres e impulso
para as transformações da intimidade, e com certas contradições:
180
mundo exterior. Mas o desenvolvimento de tais ideias foi também
uma expressão do poder das mulheres, uma asserção contraditória
da autonomia diante da privação. (GIDDENS, 1993, p. 54)
181
Os galãs: reflexos e refrações do machismo na telenovela
Existe exemplo de telenovela sem galã? Um tipo
indispensável: todos são galantes, charmosos, de porte elegante. As
mulheres suspiram por eles. Na faixa dos 30 aos 60 anos2, quando
heróis, também devem ser honrados e íntegros. Correspondem ao
tipo hegemônico, ao homem “ideal”: adulto branco cis
heterossexual. Tal padrão hegemônico aparece até no dicionário:
Galã. [do fr. Galant] S.m. 1. Teat. e Cin. Personagem ou ator que
representa o herói de boa aparência e atitudes, inteligente e corajoso,
e que exerce o papel decisivo nas intrigas de amor. 2. Homem belo e
elegante. 3. Fam. Namorador, galanteador. (Dic. Aurélio). (Grifos
nossos)
2O site do GShow lembra alguns galãs da década de 80, José Mayer está entre eles.
A reportagem afirma que ele dominava a ala dos galãs. Outra postagem lembra
os galãs de novela e destaca os da nova geração. (NEMI e JAKUBASZKO, 2017)
182
Isso é domínio técnico. Talvez o charme venha do ator, não sei se vem
do homem. Será? Quem sabe... (FURLANETO, 2009, s/p)
183
quando o personagem quebra com o rótulo tradicional de galã, o
título, ou a expectativa, reaparece. Em Império (Aguinaldo Silva, TV
Globo, 2014-2015, 21h00), José Mayer interpretou Leandro, um
bissexual, e foi bastante elogiado pelo “jeito macho” de seu
personagem. Como provoca Thiago Araújo,
184
construção do tipo e sua narrativa. Começa a surgir a necessidade
de desvincular o “galã” do “pegador”, ou melhor, desvincular dos
galãs as condutas machistas, estas ficarão para o tipo de
masculinidade que a telenovela condena, a do machismo tóxico
que leva à dominação e violência.
Em Viver a Vida, Zé Mayer é Marcos. A paixão por Helena é
arrebatadora, à primeira vista, então o casamento e a lua de mel em
Paris acontecem nos primeiros capítulos. Mas o par amoroso de
Helena não será Marcos, e sim Bruno (Thiago Lacerda). Por que
Marcos e Helena não podem ter um final feliz? O que os impede?
Seus obstáculos não parecem ser a diferença de idade, raça ou classe
social. É a convivência que não dá certo, a relação conflituosa da filha
e ex-mulher com Helena, é, sobretudo, o machismo de Marcos.
Ele prefere e faz pressão para que a “mulher dele não
trabalhe”, uma modelo de sucesso internacional. Mas não é apenas
essa a característica machista do personagem. Outro personagem,
Gustavo (Marcello Airoldi), amigo e braço-direito do galã, nos ajuda
a observar a masculinidade de Marcos. Gustavo é o típico cafajeste,
é aquele cara que é casado, mas, sendo homem, “gosta de variar”.
Ele tem o hábito de passar cantadas em mulheres desconhecidas,
corteja a prima da própria esposa, assedia a secretária e a
empregada doméstica. Mas ele não é um galã. Ao contrário,
Gustavo é o toque de humor da narrativa, o bobo, um palhaço
trapalhão: todas as suas investidas dão em frustração. Marcos, que
teria ensinado a ele todos os truques da conquista, jura ter se
regenerado, mas o homem fiel e romântico durou apenas alguns
meses. Os personagens nos mostram como a prática do “pegador”
está em baixa na telenovela, sublinhando o lado ridículo do
conquistador e do homem infiel.
É importante observar a polêmica que se instaurou a partir da
denúncia de assédio feita por uma figurinista da Rede Globo3, que
3Su Tonani (Susllem Meneguzzi Tonani) publicou uma carta no blog “Agora é que
são elas”, (ESTADO de MINAS, 2017).
185
gerou muita fabulação na imprensa e nas redes sociais. Agora, não
será o personagem na berlinda, mas o ator.
Como se pode conferir nas matérias consultadas, a primeira
declaração de José Mayer após a denúncia foi a de que estariam
confundindo ficção e realidade. Em A Lei do Amor (Maria Adelaide
Amaral e Vincent Villari, TV Globo, 2016-17, 21h00), José Mayer
interpretou o seu primeiro vilão nas telenovelas, Tião, que segundo
registrou o blog de Patrícia Kogut hospedado n’O Globo
(13.11.2016), em entrevista com o ator:
Ainda que a trama resgate o galã pegador, que marcou sua trajetória,
Mayer acredita que o papel lhe dá a chance de seguir outros
caminhos:
- A primeira desconstrução foi com Pereirinha, de “Fina estampa”,
bem populacho. Repeti a surpresa com Cláudio, de “Império”, que
quebrou a imagem do macho (ele era gay). Poderia causar
estranheza, mas a admiração cresceu, me acharam corajoso. Agora
vivo meu primeiro homem mau no horário nobre. Nunca fui
maltratado na rua. Será que isso mudará com Tião? (ESTADO de
MINAS, 2017, s/p)
186
Já registramos (JAKUBASZKO e NEMI NETO, 2018) certa
pluralidade, uma ampliação no espectro das representações das
masculinidades e podemos encontrar protagonistas menos
idealizados, que já apresentam rupturas com a representação da
masculinidade hegemônica. Ainda assim, a questão sobre o valor
da fidelidade de nossa cultura, confirmado por Goldenberg (2006),
se mantém inalterada. O herói pode ser conquistador até encontrar
a sua amada, depois do compromisso seria falha imperdoável. Há
muitas sanções à infidelidade nas telenovelas, e embora as
mulheres sejam punidas sempre com maior rigor, os homens
virtuosos também precisam se desculpar pelas traições. O macho
sedutor e infiel é normalmente vilão ou bufão. Desse modo, na
telenovela, o comportamento é ridicularizado, portanto, rejeitado
como traço de masculinidade a ser seguida.
Esta foi a lógica que se projetou na imagem do ator José Mayer,
casado, enquanto interpretava um vilão e descortinou-se a prática
de assediar mulheres. Talvez não tenham sido as maldades de Tião
que provocaram a agressividade da audiência, mas as declarações
e o machismo do próprio ator. A história seguiu repercutindo na
imprensa até que a figurinista retirou a acusação de assédio. José
Mayer foi muito criticado e cobrado pelas declarações ambíguas e
confusas, até finalmente publicar a carta em que pede desculpas. A
emissora se posicionou de forma congruente com o discurso que
veicula em suas telenovelas, recriminando o assédio e
desculpando-se com a funcionária. As ações institucionais
convergiram com o logos pedagógico da telenovela.
Em 2020, devido à pandemia que vivemos, a Globo teve que,
pela primeira vez na sua história, parar a produção de telenovelas
e recorrer a suas reprises para preencher sua grade. Amor de mãe foi
substituída, primeiramente por Fina Estampa de 2011. José Mayer,
portanto, voltou à tela da Globo depois de sua demissão em 2018.
Os excelentes índices de audiência da reprise fizeram com que o
público voltasse a falar do ator e dos casos de assédio que levaram
à sua demissão. Ricardo Feltrin (FELTRIN, 2020), crítico de
televisão para o site UOL, perguntou aos leitores se haveria um
187
possível “descancelamento” do ator após o sucesso da reprise de
Fina Estampa.
Nos últimos anos a emissora tem mostrado coerência e ensaia
pouca tolerância com casos de assédio. Em 2017 repercutiu nas
redes sociais que Otaviano Costa, apresentador do Vídeo Show, teria
sido suspenso após ter provocado reações negativas nas redes
sociais por um comentário machista. No mesmo ano, o cantor
Victor, da dupla sertaneja Victor & Léo também pediu afastamento
do programa dominical The Voice Kids após ser acusado de
violência pela mulher e a Globo se pronunciou oficialmente. Em
2020 o caso de assédio sofrido por Dani Calabresa e outras
profissionais da emissora pelo humorista Marcius Melhem ganhou
espaço na mídia e nas redes sociais.
Na ficção, localizamos duas telenovelas recentes que fizeram
inserções em que as mulheres mentiam ser vítimas de assédio: Rock
Story (Maria Helena Nascimento, TV Globo, 2016-2017, 19h00) e
Força do Querer (Glória Perez, TV Globo, 2017, 21h00). A esse
respeito, em seu blog, Nilson Xavier (XAVIER, 2017) sublinha a
autoria feminina das tramas. Em o Novo Mundo (Thereza Falcão e
Alessandro Marson, TV Globo, 18h00) o assédio realmente
aconteceu: o personagem histórico Dom Pedro (Caio Castro),
fazendo jus à sua fama de “conquistador”, assediou Anna Millman
(Isabelle Drummond), beijando-a a força, às 18h00.
O tema assédio está na pauta do dia e diversos casos
semelhantes ocorrem cotidianamente sem que os “machos”
envolvidos sofram qualquer sanção, a não ser comentários
indignados nas redes sociais. Outro caso de 2017 envolveu dois
apresentadores do SBT durante o programa Sílvio Santos, no
mesmo canal. Em um de seus quadros dominicais, Maísa foi
assediada por seu colega de televisão, Dudu Camargo. De acordo
com a mídia impressa, após as gravações Maísa deixou o palco,
uma produtora foi demitida e Dudu Camargo teve sua carreira
alavancada participando de vários programas de televisão.
Em outro caso, internacional, vale lembrar o Oscar de 2017
dado ao ator americano Casey Affleck pelo filme “Manchester by
188
the Sea”, dirigido por Kenneth Lonergan. Affleck foi acusado de
assédio sexual (em situação semelhante a do ator José Mayer) por
produtoras de um filme em que ele trabalhara anteriormente. Tudo
foi resolvido em segredo de justiça. Porém, durante a sua
premiação em 2017, a atriz Brie Larson que lhe entregou o Oscar
fez um protesto em silêncio: recusou-se a aplaudir a entrega do
prêmio. São apenas dois entre inúmeros exemplos que contradizem
cotidianamente as representações que as telenovelas vêm
construindo para narrar e propor possíveis soluções em direção à
equidade de gênero. A disputa está em processo e a figura do galã
aparece como modelo em vias de transformação.
Ao estudar como os romances assimilam o tempo-espaço
histórico e constroem a imagem do homem desse tempo
representado, Bakhtin (2006) discorre sobre o romance de formação
do tipo realista, que, acreditamos, aproxima-se em alguns aspectos
da telenovela brasileira. Diferente de outros tipos de romances de
formação que representam o tempo histórico apenas como um
pano de fundo, as narrativas dos romances realistas de formação
apresentam seus heróis e conflitos de modo indissolúvel com o
tempo histórico.
189
imagens certamente terão que se adaptar às mudanças no contexto
sociocultural. Já temos algumas hipóteses e comprovações sobre
como a telenovela tem se aliado à luta pela equidade nas relações
de gênero (JAKUBASZKO e NEMI, 2018).
As telenovelas costumam narrar histórias feministas, num
esforço progressista e civilizador, para cumprir com o logos
pedagógico da novela, refratam na direção da verdade e da justiça,
mas também deixam escapar os reflexos de uma cultura machista.
Nem sempre a audiência capta esse reflexo e não se produz
qualquer fabulação no cotidiano. Como exemplo podemos citar o
episódio de 10 de abril de 2017 da telenovela Força do Querer (Glória
Perez, TV Globo, 21h00; também reprisada em 2020-2021): o
personagem Zeca (Marco Pigossi) retira Ritinha (Isis Valverde) à
força do aquário em que ela trabalhava por não concordar com seu
emprego de sereia. Em uma cena brutal, mas que se pretendia
cômica4, o galã carrega nos ombros a sua namorada enquanto ela
se debate pedindo para ficar em seu emprego5. Ainda em 2017 foi
possível ver a telenovela reproduzir a já tradicional cena – tão
comum em tantas telenovelas ao longo da história – do homem
infantilizando a mulher, retirando a agência da heroína em nome
do amor, ou da moral e dos bons costumes. Interessante lembrar,
ainda, que Pedro (José Mayer), em Laços de família (Manoel Carlos,
TV Globo, 2000-2001, 21h00), ao longo da novela, bateu na
personagem Íris (Deborah Secco). Também vale notar que os
registros de audiência marcam aumento nos capítulos em que
mulheres apanham, ou batem umas nas outras motivadas por
e colaboradores, TV Globo, 2017, 19h00), o galã Eric vivido por Mateus Solano usa
do mesmo recurso de Zeca quando a sua namorada, Luiza, interpretada por Camila
Queiróz, se recusa a falar com ele.
190
ciúme ou por reparação/vingança de infidelidade. É o homem
sempre no centro das atenções, no centro do sentido de vida das
mulheres. É da cultura patriarcal a mão que bate.
A supersérie Os Dias Eram Assim (Angela Chaves e Alessandra
Poggi, TV Globo, 2017, 23h00) parece cuidar atentamente das
contradições do tema. O capítulo de 21.07.2017, apresenta um
conflito de dois casais: Alice (Sophie Charlotte) e Renato (Renato
Góes) se apaixonaram, mas seus cônjuges não querem conceder a
separação. Ao mesmo tempo em que a trama resgata um contexto
histórico político brasileiro, da luta contra a repressão e a ditadura
militar, mostra as transformações na intimidade. Entrelaçando
tempo histórico e construção de personagem, a ficção mostra como
a democratização da vida privada está diretamente relacionada à
democratização da vida pública, conforme observa Giddens (1993).
Para o autor, a sexualidade está diretamente ligada à reelaboração
na narrativa do eu, da autoidentidade, da democratização da vida
cotidiana que anda em sintonia com a democratização da esfera
pública; as práticas democráticas na vida pessoal estimulam
práticas sociais igualmente democráticas: “Num plano mais amplo,
existe uma simetria entre a democratização da vida pessoal e as
possibilidades democráticas na ordem política global” (GIDDENS,
1993: 213). A super série dialoga com o presente histórico brasileiro
- de retrocessos ao passado narrado - e foi bastante elogiada por
não utilizar o contexto histórico apenas como pano de fundo.
Inclusive esteticamente, ao retomar fotos e vídeos da época. É a
ficção se entrelaçando ao histórico e aos tempos passado e presente,
com projeções para o futuro.
Em Os Dias Eram Assim, a temática dos estigmas da separação
e do desquite, já superados na atualidade, marca uma leitura do
passado que identifica o comportamento machista com a lógica
patriarcal e autoritária, apontando para as forças progressistas da
sociedade como as responsáveis pelo esforço em direção à
democratização das relações. Destacam-se as referências à Leila
Diniz e ao semanário O Pasquim. Sem cair no estereótipo, o
machismo também se pratica por meio da mulher, Rimena (Maria
191
Casadevall), esposa de Renato, que se recusa a dar a separação e
quer manter o casamento à força; ela ainda pretende engravidar de
outro homem para manter seu casamento. Do mesmo modo, o
marido de Alice, Vitor (Daniel de Oliveira), não quer aceitar o fim
do casamento apesar de ter, ele próprio, uma amante. É a
representação do “macho, adulto, branco, sempre no comando” e
pronto a tratar uma mulher como objeto. A minissérie também faz
referência às leis de honra ainda em vigor à época, marcando quão
machista era a visão de mundo em relação ao presente do
telespectador. Alice pode perder a guarda das crianças caso aja de
maneira “imoral”, como bem sublinhado por seu advogado. São os
homens que demarcam as fronteiras do permitido e do prescrito
para o comportamento das mulheres. Já seu marido, Vitor, mesmo
com amantes, sendo usuário de drogas, sabe que a lei está ao seu
lado em caso de separação e não hesita em exercer seu poder. Se os
dias eram assim antigamente, por que não perguntar: atualmente,
a masculinidade está mesmo mudando? E o amor romântico?
Nas telenovelas os casais se unem no êxtase de se completarem
um ao outro. Toda a história dos protagonistas se resume a uma
busca por aquele(a) que lhe proporcionará a plenitude, o sentido
mesmo da sua existência. A usual punição de deixar as mulheres
sem par amoroso no final da novela, por exemplo, é uma forma de
valorizar hierarquias entre as mulheres, cujo critério é ser a “posse”
de um macho, como se a mulher só tivesse valor se casada. As
narrativas que exaltam o amor romântico, monogâmico, podem
estimular uma visão de mundo de forte viés machista. “A solidão,
para algumas mulheres, está associada à vergonha, pois, no Brasil,
ser uma mulher sem homem é sinal de fracasso. Para outras, estar só
é estar desprotegida e insegura, sobretudo economicamente”
(GOLDENBERG, 2006, p. 30).
Neste ponto, a telenovela A Favorita (João Emanuel Carneiro,
21h, TV Globo, 2009) inovou e acertou no final de Catarina (Lilia
Cabral) que, cansada da violência doméstica, depois de tanto tentar
agradar ao marido, preferiu a separação e, no final, recusou o
pedido de casamento que recebera de um pretendente. Ela escolheu
192
viver sozinha. A solidão foi a sua recompensa já que só assim ela
poderia ser ela mesma.
Dois outros exemplos são importantes para a nossa análise.
Em 2011, na novela Fina Estampa, o personagem Baltazar
(Alexandre Nero) é apresentado como um marido violento. Ele
bate várias vezes na sua mulher, Celeste (Dira Paes). O personagem
é a clássica representação do marido abusivo. Ele bate e depois se
arrepende. Mesmo indo à polícia no decorrer da novela, no final,
Celeste perdoa o marido e eles terminam juntos, com direito à trilha
sonora de Jorge e Mateus romantizando relacionamentos abusivos
(“quando a gente fica junto, tem briga/ quando a gente fica longe,
dá saudade”). A ironia recai sobre o macho homofóbico ao insinuar
que Baltazar teria uma atração reprimida pelo mordomo Crô
(Marcelo Serrado).
Já em 2017 em O outro lado do paraíso (Walcyr Carrasco, TV
Globo, 21h, 2017-2018), a personagem Clara (Bianca Bin) passa por
situações semelhantes nas mãos de Gael (Sérgio Guizé), porém, os
seis anos de distância entre uma telenovela e outra não permitem o
mesmo final. Em O Outro lado do paraíso, Clara abandona Gael
ganhando um final feliz com um homem que a respeita.
Por muito tempo os protagonistas atuaram como
representantes do padrão hegemônico, as mudanças são muito
recentes. Namoros que seguem e acabam, divórcios, novos arranjos
familiares, histórias de amores puros e confluentes (GIDDENS, 1993),
heterossexuais e homossexuais, assim como formações
poliamorosas nas tramas secundárias. E as mudanças avançam
para as tramas principais, colocando em questão o machismo do
amor romântico.
Talvez o caso mais recente de mutação do amor romântico
heterossexual tenha sido o final de Félix (Mateus Solano) em Amor à
vida (Walcyr Carrasco, TV Globo, 2013/2014, 21h). Amparado pelo
público, o autor deu ao personagem um final feliz com Niko (Thiago
Fragoso). O protagonismo do par amoroso heterossexual foi apagado
pelo brilho da história de amor entre Félix e Niko, garantindo aos dois
homens a última união amorosa da trama a se consolidar – aquele
193
lugar de honra reservado aos personagens principais. A narrativa de
Félix exemplifica tanto a dificuldade de expor a diferença, quanto a
revolta com os padrões hegemônicos. Consumou-se o tão esperado
“beijo gay” na telenovela e uma explosão de comentários, a maioria
em tom de comemoração, explodiu na imprensa e nas redes sociais: o
casal gay se tornou o par romântico protagonista da história. A cena
final da telenovela mostrava o pai finalmente aceitando o filho
independentemente de sua orientação sexual e não um final feliz do
par amoroso convencional. Vale registrar que a cena do beijo entre
Félix e Niko foi censurada na exibição da telenovela no México. O
sucesso da personagem e sua narrativa mostram que a audiência
brasileira se identifica com representações que rompem com a
heteronormatividade e o machismo.
Como a própria telenovela, o galã está em constante mudança.
O caso do Félix que vai de vilão a mocinho/galã gay talvez
represente uma nova imagem do homem e da masculinidade na
televisão. Cenas como vimos em A força do querer não podem ser
mais justificadas na representação de um galã. Um verdadeiro galã
não pode cometer qualquer ato de violência contra a mulher, ainda
que seja por amor.
Nos últimos anos, as novelas têm apresentado galãs amorosos,
que respeitam as escolhas das mulheres e que as amam do jeito que
são. Caso mais recente, em Amor de mãe, o personagem de Murilo
Benício tenta se desconstruir ao longo da trama. Ele termina um
casamento de décadas com uma mulher da idade dele para assumir
um novo relacionamento com uma mulher mais pobre. Ela, por sua
vez, não aceita o conto de fadas tão facilmente. Ela já não é mais a
pobre mocinha que vai ser salva por se relacionar com um homem
rico e viver seu conto de fadas em um castelo (apartamento de luxo na
zona sul do Rio de Janeiro). Ela apresenta ao velho tipo galã uma nova
visão, por que não dizer mais feminista, da sociedade em que vivem.
O outro galã, na mesma novela, Danilo (Chay Suede), também
é um homem desconstruído conforme proposto nesta segunda
década do século XXI. Ele é um homem sensível que ama a sua
194
mulher e que tenta educar junto com a namorada (eles não se casam
oficialmente) o recém-nascido filho.
Apesar da mudança do galã, a violência contra a mulher ainda
persiste nas novelas. Porém, ela surge contra a mulher que trai, a
vilã. Tufão (Murilo Benício), em Avenida Brasil (João Emanuel
Carneiro, 2012), bate na cara de sua mulher, Carminha (Adriana
Esteves), duas vezes e a expulsa de casa quando descobre que ela e
seu cunhado eram amantes e tinham enganado toda a família
durante anos. Alguns anos atrás ele poderia matá-la. A violência é
justificada nos moldes dos crimes contra honra que persistiram no
Brasil até os anos 80, como explicou Chauí (1984, p.78), os crimes
de honra no Brasil não eram passíveis de punição.
O que dizer do final trágico da história de Dona Sinhazinha
(Maitê Proença) na adaptação de Gabriela, Cravo e Canela? E da
história real de Ângela Diniz, assassinada por Doca Street em 1976,
mas que foi preso apenas em 1981 depois de muita pressão dos
movimentos feministas? A honra ferida ainda é mote de várias
telenovelas, porém, podemos perceber uma certa mudança nos
últimos anos. Em Segundo Sol, do mesmo autor de Avenida Brasil,
João Emanuel Carneiro, constrói uma vilã que também trai o
marido. A diferença entre 2012 e 2017 é a reação do galã.
Diferentemente de Tufão em Avenida Brasil, Beto Falcão (Emílio
Dantas) se sente traído e briga com a mulher, mas ele não usa da
violência física e também não a expulsa de casa. Ela mantém a
mansão como moradia até o final da novela. As duas vilãs passam
por redenção. Em Avenida Brasil, Carminha volta a suas origens
morando no lixão e mostra-se arrependida dos problemas que
causou. E, em Segundo Sol, Karola (Deborah Secco) morre salvando
a vida do ex-marido.
Apesar dessas mudanças na construção do galã, a violência
física e moral contra a mulher, seja ela vilã ou heroína, ainda se
reproduz conforme o padrão composicional do gênero. O galã já
não bate mais na vilã, porém outras mulheres ao redor do
protagonista assumem essa posição. Em Segundo Sol, a mãe e a
cunhada do galã partem para a agressão física como parte do
195
processo de redenção da antagonista. Diferentemente de 2012, a
surra, em Segundo Sol, é substituída pela humilhação pública. Os
fãs do marido (cantor de sucesso) atiram copos de bebida no palco.
Em uma segunda cena, ela é verbalmente atacada por pessoas na
rua, afinal, ao que parece se confirmar com os picos de audiência
em cenas de agressão entre mulheres, a vilã ainda precisa sofrer
abuso físico e moral para se corrigir.
Em 2019, em A Dona do Pedaço, a vilã também sofre violência
física, confirmando a tendência apresentada em Segundo Sol, a
violência é entre mulheres. Nesta novela de Walcyr Carrasco, a
mãe, Maria da Paz (Juliana Paes), inconformada com a filha Josiane
(Agatha Moreira), que entre outras ações roubou a mãe e dormiu
com o namorado dela, se sente no direito de bater na moça durante
o confronto quando a verdade é revelada. Numa transição
pedagógica, as agressões físicas passam a ser características
exclusivas de personagens antagonistas.
Quando Gabeira (1980) escreveu O Crepúsculo do Macho
anunciava o final da hegemonia do macho que defendia sua honra
com sangue, que subjugava outras espécies e outros gêneros de sua
própria espécie. Contudo, nenhum império termina facilmente ou
de maneira abrupta. São necessários anos, às vezes décadas, para
que novas estruturas de poder se cristalizem. A derrocada do
macho vem sendo anunciada há décadas, porém, como todo
processo de transição, está composto por movimentos de retração
e expansão. Segundo Bourdieu (2007), somente uma ação política
que tenha em conta todos os efeitos da ordem masculina, mantida
tanto por homens quanto por mulheres, que mexa nas estruturas
das grandes instituições, nas quais a ordem social é principalmente
baseada na dominação masculina, a longo prazo, poderá
“contribuir para o desaparecimento progressivo da dominação
masculina” (BOURDIEU, 2007, p. 139). Quem sabe uma
transferência de poder esteja ocorrendo.
O império do macho, ainda que fragilizado, tem experiência
no exercício de dominação e subjugação em que minorias tentam
não tomar o poder, mas sim expandi-lo e dilui-lo em espaços mais
196
igualitários de representação, deixando espaço aberto para novas
possibilidades de ser e estar no mundo. Registramos num estudo
(JAKUBASZKO, 2017) sobre a minissérie Amores Roubados (George
Moura, TV Globo, 22h00, 2014) a morte do macho com a adaptação
livre do romance “A emparedada da rua nova” (Carneiro Vilela,
1909), pois permite recontar no presente uma história do passado
de forma a atualizar seus conflitos para se adequarem aos sentidos
dos novos interlocutores. Ainda que a obra original fizesse a crítica
da misoginia na sociedade brasileira na transição dos séculos 19 e
20, o final em que a heroína era emparedada viva pelo pai por ter
engravidado daquele que era também amante de sua mãe foi
alterado de forma que o macho - tanto o pegador quanto o opressor
- parece ter sido o elemento anacrônico eliminado. Ao invés do
emparedamento da mulher que se recusou à submissão, o pai
assassino do amante da filha e da esposa é que morre ouvindo sua
sentença de morte da boca da própria filha. Morrem o opressor e o
galã do tipo "Don Juan". Antônia (Ísis Valverde) recuperou para a
heroína um “final feliz”. Assim, nesta minissérie, o final da história
se inverte: não é o pai que mata o amante, enlouquece a mulher e
empareda a filha, mas é o macho todo poderoso que morre frente à
mulher, aquela que se empodera porque não se curva. E dela
nascerá um novo homem. Se Carneiro Vilela tinha como objetivo
denunciar a misoginia da sociedade recifense, Amores Roubados nos
mostra como o Brasil do século 21 vem operando a desconstrução
do machismo.
Considerações
197
representações de masculinidade das telenovelas trabalha com a
expectativa da igualdade entre os gêneros, mas as contradições
também se pronunciam.
E assim, o gênero telenovela vai diluindo a trama principal,
trabalhando cada vez mais uma estrutura em múltiplos núcleos
dramáticos (multiplot) e troca de protagonismos, retirando os
holofotes das representações machistas e transformando os “galãs
pegadores” em anacrônicos modelos de masculinidade. O fio
condutor passa a ser o amor, não necessariamente naquele modelo
romântico ao gosto patriarcal. Os roteiristas da atualidade têm
desafios a superar: como desvincular as formas composicionais do
galã, da representação do amor romântico e das possibilidades de
happy end do machismo que está impregnado na cultura e nos
gêneros discursivos?
O galã muda, assim como a telenovela, porém a desconstrução
do galã precisa vir acompanhada da construção de novas
representações de gênero que combatam, especialmente a
misoginia, a homofobia e a transfobia. À medida que surgem novos
modelos de masculinidade, que as lutas feministas e LGBTQIAP+
avançam em suas conquistas, a teledramaturgia precisa se adaptar
para continuar a produzir sentidos que dialoguem com a sua
audiência. Agora é esperar pelos próximos capítulos para saber
como as formas poéticas vão corporificar um novo galã de novela, e
como a diversidade irá crescer e se fixar nas representações de
contextos históricos, pessoas, relações afetivas e amorosas.
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198
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201
202
Gêneros e formatos televisivos na era do streaming: uma
análise das produções originais
Netflix latino-americanas
203
distribuída pela internet (LOTZ, 2018) retrata aspectos de
mudanças tão rápidas quanto drásticas. Apesar de todas essas
transformações conjunturais, acreditamos que a obra de Bakhtin
continua sendo uma ferramenta eficiente e, mais ainda,
fundamental para a compreensão do mundo e particularmente dos
processos comunicacionais que envolvem o audiovisual, a
televisão e a ficção seriada.
Ao longo do capítulo, em primeiro lugar, enfocamos um
conceito central do pensamento do Círculo de Bakhtin: o gênero do
discurso que subsidia nosso olhar para a produção televisiva. Em
seguida, discutimos sobre os conceitos de gêneros e formatos
televisivos deixando predominante seu caráter cultural para então
destacarmos a tradição da produção, distribuição e consumo da
ficção seriada latino-americana, dando destaque para o contexto
brasileiro, que envolve em sua trajetória a telenovela, até a
emergência do streaming. Por fim, traçamos um panorama
quantitativo dos gêneros e formatos de obras originais Netflix
latino-americanas, tendo como resultado um material eficiente
para subsidiar desdobramentos qualitativos da pesquisa
posteriormente.
204
Dos entusiastas do Círculo, além do próprio autor que nomeia o
grupo, Mikhail Mikhailovich Bakhtin (1895-1975), merecem
destaque Valentin Nikolaevich Volóchinov (1895-1936) e Pavel
Nikoláievich Medviédev (1892-1940).
Bakhtin tem sua formação nos estudos literários. Foi professor,
atuando sem vínculos institucionais até depois da Segunda Guerra
Mundial, quando conseguiu um emprego fixo, aposentando-se em
1969 e falecendo em 1975 na cidade de Moscou. Pode-se considerar
que suas contribuições o posicionam como um dos filósofos mais
importantes do século XX, apesar de seu ostracismo ter feito com
que suas ideias e debates ganhassem destaque na Rússia somente
na década de 1960, chegando ao Ocidente a partir dos anos de 1970
(CLARK e HOLQUIST, 1998 [1984]).
No que se refere à preocupação dos pensadores do Círculo a
respeito do gênero, Faraco (2009, p. 130) destaca que, no capítulo 7
de O Método Formal nos Estudos Literários (2012 [1928]), Medviédev
já explicava pioneiramente, embora focando os gêneros literários, a
relação entre tal conceito com a vida social e a cognição o
estendendo para outros espectros da atividade humana.
Especificamente, a teoria dos gêneros de Bakhtin (2011, p. 261-262)
parte da premissa de que o uso da linguagem permeia todos os
campos da atividade humana e não se refuta tal abrangência de
aplicação mesmo tendo a língua como uma unidade coletiva. A
materialização da língua, por sua vez, se dá por meio de
enunciados, sejam orais ou escritos, concretos e únicos oriundos
dos integrantes de cada um desses campos de atividade humana
cujas propriedades e finalidades estão refletidas indissoluvelmente
no conteúdo temático, no estilo e na construção composicional
desses próprios enunciados. E, apesar de esses enunciados
concretos serem individuais e particulares, o que Bakhtin (2011, p.
262) propõe é que “[...] cada campo de utilização da língua elabora
seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais
denominamos gêneros do discurso” (grifos do autor).
Na tentativa de superar o reducionismo da função
comunicativa da linguagem na “nossa fala” dominante na
205
linguística do século XIX, que chegava a promover a formação do
pensamento e a necessidade expressiva dos homens como primeiro
plano na concepção da língua, Bakhtin (2011, p. 269), explorando a
natureza dos enunciados concretos e dos gêneros discursivos,
incita que, na verdade, o enunciado é a unidade da comunicação
discursiva e as palavras e as orações são as unidades da língua
enquanto sistema. Isso ocorre porque o sistema linguístico fornece
um repositório de recursos fonéticos, gramaticais e lexicais para
conceber as unidades da língua; porém essa só ganha vida quando
atinge a forma de enunciações, portanto, só se faz discurso na e pela
comunicação discursiva.
O funcionamento da comunicação discursiva, por
consequente da própria teoria dos gêneros do discurso, é regido
por um princípio de responsividade. No complexo e
completamente ativo processo de comunicação discursiva, “[...]
toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza
altamente responsiva; [...] toda compreensão é prenhe de resposta”
(BAKHTIN, 2011, p. 271). O próprio falante/escritor espera que seu
ouvinte/interlocutor não tenha um entendimento passivo já que
houve esforços em tornar sua fala/escrita inteligível pressupondo a
funcionalidade do sistema da língua, mas também da percepção da
realidade a partir de enunciados antecedentes (BAKHTIN, 2011, p.
273). Vale aqui ponderar, então, que a comunicação discursiva é
circundada pelo interdiscurso que é capaz de fornecer aos agentes
envolvidos no ato comunicacional uma gama de possibilidades de
interpretação da realidade a partir das palavras utilizadas nos
enunciados concretos levando em conta aquilo que já foi dito antes,
em outro local, de forma independente sinônimo daquilo “[...] que
chamamos de memória discursiva: o saber discursivo que torna
possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o
já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada de
palavra” (ORLANDI, 2009, p. 31).
Dessa maneira, negando uma unilateralidade de uma emissão
ativa e uma recepção passiva, pode-se afirmar que é imprescindível
que tanto o emissor como o receptor tenham entendimento das
206
significações dos enunciados proferidos na situação de
comunicação de modo que sejam estabelecidos os critérios que
gerenciam a noção de gênero do discurso. Portanto, a força matriz
conceitual dos gêneros discursivos, ou seja, o enunciado concreto,
está no cerne das interações comunicativas como um elo na cadeia
de comunicação que depende tanto do emissor e do receptor como
das engrenagens que precedem essa dada cadeia comunicativa.
Aos gêneros discursivos, não são atribuídas características
individuais nem dos falantes/escritores nem dos
ouvintes/interlocutores, nos gêneros apenas reverberam-se as
circunstâncias dos campos da comunicação cultural onde
acontecem as interações discursivas lembrando da existência
inevitável da linguagem nas atividades humanas ao longo do
tempo vivido.
Propõe-se ainda uma tipificação dos gêneros do discurso: os
primários e os secundários. A primeira categoria é caracterizada
por enunciados simples proferidos em circunstâncias de
comunicação imediata e espontânea, ou seja, que são facilmente
encontradas no cotidiano; já a segunda, abrange enunciados
complexos mediados predominantemente pela escrita e
emergentes a partir de condições de convívios culturais mais
desenvolvidas (BAKHTIN, 2011, p. 263). Contudo, essa divisão não
inviabiliza uma interpenetração dessas duas categorias, afinal
207
Logo, os gêneros primários compõem os gêneros secundários,
sendo perceptível uma interrelação entre tais categorias. Há o
emprego de uma maior complexidade a qual causa um
restabelecimento de novas possibilidades de significados de
maneira que se podem modificar tanto os enunciados concretos de
gênero primário como alterar também a constituição daqueles que
são referentes ao gênero secundário ao passo que acontecem as
interações discursivas. Bakhtin (2011, p. 266) ainda pondera que:
208
interações discursivas dos interlocutores de uma determinada
comunidade. Ademais, os gêneros do discurso servem como guias
nas escolhas dos sentidos dados as nossas palavras, pois organizam
o nosso discurso nessa malha de recursos linguísticos possíveis
para compor a comunicação discursiva dotados sócio-
historicamente de caráter ideológico.
2 Vale considerar aqui que a filosofia da linguagem proposta por Bakhtin vai além
da literatura e dos estudos linguísticos, sendo uma teoria do conhecimento.
Justificando essa abrangência, é importante relembrar a constate retomada da
conexão permanente que a linguagem mantém não só com a língua, mas com
diversos campos da atividade humana, ou seja, com a vida social de maneira crítica
e dialética. Crítica, porque não reduz a linguagem a questões que envolvem somente
a linguística; e dialética, por considerar a língua como um sistema vivo num contexto
209
Num panorama brasileiro e um pouco mais recente, referente ao
início dos anos 2000, tomando o conceito de gênero num viés
bakhtiniano, Machado (2014, p. 68), ao estudar a televisão, reitera que
210
interpretativas acerca de cada situação interacional presente nas
ações comunicativas que compõem o tal conteúdo a ser transmitido
pela televisão. Mittell (2004, p. 10) também observa a partir de uma
ótica cultural que “os gêneros cruzam as fronteiras entre texto e
contexto, pontuando produção, distribuição, promoção, exibição,
crítica e práticas de recepção, todas trabalhando para categorizar os
textos da mídia em gêneros”.
Em termos produtivos do conteúdo televisivo, enquanto
indústria cultural, emerge ainda o termo formato. Aronchi de
Souza (2004, p. 46) esclarece, numa perspectiva mais direcionada à
produção dos programas televisivos, que “o termo formato é
nomenclatura própria do meio para identificar a forma e o tipo de
produção de um gênero de programa de televisão. Formato está
sempre associado a um gênero [...]”. Sendo assim, o formato é
composto por um conjunto de ações técnicas, artísticas, econômicas
e empresariais, desenvolvidas pela televisão, enquanto meio de
comunicação, a fim de integrar uma intencionalidade plástica e
reproduzível a um gênero. Portanto, aqui se reconhece que o
formato não se limita à constituição de programas. Na verdade, ele
estabelece uma relação íntima com o gênero, fornecendo-lhe
algumas de suas características no campo da produção televisiva.
Ainda nessa dimensão cultural e comunicacional,
especificamente, sobre a ficção televisiva e seriada, Mungioli (2017,
2019) destaca a composição constitutiva constante e orgânica entre
gênero e formato: características genéricas dominam os formatos,
os quais, por sua vez, exercem influência sobre os gêneros; e reforça
a discussão da noção de gênero e de formato como instância de
mediação do local numa dupla articulação. Essa proposta prevê
que os gêneros e os formatos ficcionais, além de serem elementos
que quando articulados intrinsecamente mostram-se como uma
instância de mediação cultural a partir do local (MARTÍN-
BARBERO, 2001), também integram todas as etapas do circuito da
comunicação - produção, circulação, distribuição/consumo,
reprodução - o que lhes garante distinguir tais práticas como
práticas discursivas (HALL, 2003). Ou seja, as questões simbólicas
211
não podem ser desvinculadas das atividades realizadas em cada
etapa do circuito de comunicação que sofre com as modificações
oriundas das inovações tecnológicas.
Primeiramente, para Martín-Barbero (2001, p. 311) “os gêneros,
que articulam narrativamente as serialidades, constituem uma
mediação fundamental entre as lógicas do sistema produtivo e as do
sistema de consumo, entre a do formato e a dos modos de ler, dos
usos”. Dessa forma, os gêneros não são apenas categorias restritivas a
uma esfera da vida social, seja ela de cunho artístico ou econômico. Na
verdade, os gêneros estão presentes no tecido social.
Em suma, nessa dupla articulação gênero-formato ficcional,
constata-se que “o formato está intimamente ligado ao gênero
narrativo como instância de mediação entre o ser humano e o
mundo e não apenas a um modo de produção” (MUNGIOLI, 2019,
p. 162). Isto é, tanto o gênero como o formato ficcional, ao fazerem
parte do circuito comunicacional como um todo, em todas as etapas
e por conta da relação íntima, constante e orgânica que mantêm,
são elementos que articulam as matrizes culturais de um
determinado grupo social.
Finalizando, os gêneros são matrizes que dialogam
constitutivamente com os formatos industriais e com as lógicas da
produção, mas também com outras esferas culturais da sociedade,
configurando parâmetros de hábitos e de comportamentos
socioculturais que se instauram por meio da serialização. E a
serialização, de certa maneira, também é vista como mediadora do
cotidiano e do ritmo social (SEPULCHRE, 2011), no caso da
distribuição de fluxo experimentada pelo modelo broadcasting.
Deitar-se para dormir após a telenovela, marcar encontros
semanais com amigos para assistir ao programa favorito e correr
para chegar em casa a tempo de ver a season finale da série da qual
todos estão falando são hábitos comuns regidos pela mediação
entre os seres humanos e os gêneros e formatos, não ficcionais e
ficcionais, presentes não só na programação televisiva linear como
em muitos outros produtos da indústria cultural.
212
A tradição seriada latino-americana, em especial, a brasileira
213
de janeiro de 2015 a agosto de 2018, foram veiculadas 36 séries e
minisséries em canais abertos de TV no país - destas, apenas duas
não foram exibidas na Globo. Em 2016, somente a Globo produziu
o formato, sete no total. Ainda durante este ano, a emissora exibiu
nove séries e o SBT, em parceria com a Fox, produziu A Garota da
Moto, veiculada pelos dois canais. Em 2017, a Record, em parceria
com o canal A&E, exibiu Sem Volta, enquanto a Globo apresentou
11 produções originais. Os estudos sobre gêneros e formatos,
apontando a ficção seriada de maneira geral e a telenovela em
particular como os produtos audiovisuais em canais abertos mais
vistos no Brasil e na América Latina (BURNAY et al., 2018, p. 57),
evidenciam que as mídias tradicionais, especialmente a televisão,
ainda possuem relevância no cenário cultural da região. No
entanto, cabe enfatizar que o contexto atual aponta para uma
multiplicidade de telas e dispositivos que amplia e, ao mesmo
tempo, segmenta a recepção de conteúdos.
No caso da Netflix, que não possui grade linear de
programação, torna-se possível ao espectador testar diversas
maneiras de experiências estéticas que variam conforme o
interesse, o tempo que ele pode dedicar à assistência dos episódios,
ou mesmo em função dos dispositivos e recursos tecnológicos de
que dispõe. Nesse contexto, o fenômeno do binge-watching, ou
“maratonar” - que consiste na assistência a diversos episódios, ou
temporadas inteiras, em sequência ininterrupta - é uma das formas
de fruição que têm chamado atenção de pesquisadores no campo
da Comunicação (JENNER, 2016, 2020; RUBENKING et al., 2018;
SILVA, 2015, 2020) e de profissionais da indústria de televisão
distribuída pela internet. Existem muitas outras formas de
experiências estéticas proporcionadas, por exemplo, por recursos
que podem acelerar a velocidade das cenas; ou, em uma
perspectiva mais artesanal, quando o próprio espectador seleciona
por meio da barra de frames as cenas que quer ver, ou ainda com o
uso de funcionalidades oferecidas pela Netflix, como a que permite
pular a abertura das séries. Além disso, o portal lançou produções
interativas, com opções de seguir a trama de maneiras diferentes
214
para cada espectador, como em Gato de Botas: preso num conto épico
(2017) e Black Mirror: Bandersnatch (2018).
Enfim, há uma grande ampliação de possibilidades e
modalidades de espectatorialidade originadas tanto pelo avanço
tecnológico de transmissão de dados e imagens pela internet,
quanto pela própria aquisição de habilidades cognitivas e
perceptivas derivadas de experiências estéticas do espectador face
a estes produtos culturais. Todas essas possibilidades que a
televisão distribuída pela internet potencialmente traz podem ser
analisadas por meio da exploração dos gêneros e formatos por ela
produzidos e distribuídos. Não é objetivo deste artigo fazer uma
análise sobre espectatorialidade ou aprofundar as diferentes
experiências estéticas que a TV distribuída pela internet permite
às suas audiências, mas apresentar dados que relacionem a
tradição brasileira e latino-americana de produção televisiva na
chave da ficção seriada e os formatos e gêneros dos originais
Netflix na região.
Efeito Netflix
215
programação original, a maior produtora de séries do mundo
(PENNER; STRAUBHAAR, 2020).
Mesmo utilizando estratégias inovadoras, até 2010 a Netflix
atuava exclusivamente nos Estados Unidos. A partir daquele ano,
tem início um processo de expansão, que começa pelo Canadá. A
seguir, entraram no alcance da empresa países da América Latina,
Europa, Oceania e Ásia. A companhia começou a oferecer conteúdo
para o público brasileiro em 2011. De acordo com dados da Netflix
(2020), o alcance da empresa em 2020 era de mais de 190 países,
cujas ofertas de conteúdos variam de local para local e podem ser
diferentes (LOBATO, 2019). De acordo com Ladeira (2018, p. 8), é
“certo que a Netflix se constitui como uma plataforma de difusão
cujo principal objetivo reside em construir um território
audiovisual efetivamente global”.
A expansão mundial da Netflix e a evidente estratégia de
internacionalização não deixaram de fora a América Latina,
território sobre o qual se concentram as análises deste capítulo. No
continente, havia, no período de nossa coleta de dados (descrita no
próximo tópico), nove países produtores de conteúdos originais.
Apesar da quantidade relevante de países produtores, a realização
latino-americana de originais Netflix, então, representava apenas
4,6% do total de títulos próprios da corporação (PENNER, 2021).
É a partir dessa produção que são propostas as análises deste
capítulo. Considerando o território latino-americano, buscamos
compreender os gêneros e formatos dos títulos originais Netflix e
colocá-los em diálogo com uma tradição de realização e consumo
de ficção seriada na região, como debatido anteriormente. É de
fundamental importância, considerando a nossa percepção
cultural de gêneros e formatos televisivos, “geolocalizarmos” os
títulos produzidos, a fim de observar tendências e “vocações” de
certos espaços e suas relações com os conteúdos colocados em
circulação.
216
Gêneros e formatos da produção original Netflix na América
Latina3
217
especializados como Internet Movie Database (IMDb), Filmow,
AdoroCinema, entre outros. Em muitos casos, a informação não
constava em nenhuma dessas fontes, então foi necessário recorrer
aos créditos dos títulos para consolidá-la. É importante
mencionarmos ainda que usamos a classificação de gêneros e
formatos dada pela Netflix. Em alguns casos, no entanto,
confirmamos esta classificação nos referidos sites especializados
(quando a classificação era inconsistente ou muito abrangente).
Assim, foi possível isolar as obras originais Netflix latino-
americanas. Do total contabilizado de 1.535 títulos originais Netflix,
101 são oriundos da América Latina. A seguir, é apresentado um
gráfico com os formatos desse conjunto de obras.
218
produções originais latino-americanas da Netflix em formatos
seriados, correspondendo a mais da metade (51,4%) do total de
exclusivos disponíveis.
Logo depois das séries, desponta a categoria filme como a
segunda mais numerosa da lista (19 títulos), alcançando 18,8% do
total. Somados, séries e filmes chegam a 61,3% do catálogo original
Netflix produzido na América Latina. Se forem adicionadas ainda
séries de animação e unitários a este conjunto, chega-se a 66,3% de
todos os títulos originais Netflix latino-americanos realizados em
formatos ficcionais.
A terceira posição entre os formatos mais produzidos na
América Latina pela Netflix é interessante, por não contar com uma
história forte na região como os formatos seriados e/ou ligados a
narrativas ficcionais. Trata-se do Stand Up Comedy, que se
popularizou mundialmente nos últimos anos. Ao todo, são 17
títulos originais latino-americanos neste modelo, correspondendo
a 16,8% do total. É uma quantidade considerável, que aponta para
certo investimento da Netflix neste tipo de produção, o que
certamente está relacionado à boa aceitação das audiências locais,
além dos baixos custos que envolvem tais produções. Por fim,
merecem destaque os nove documentários (9% do total) e as cinco
séries documentais (4,9%), que somam 13,9% da produção original
Netflix proveniente da América Latina em formatos documentais.
É proposta agora uma breve discussão sobre a composição do
catálogo de originais Netflix latino-americanos em termos de
gêneros.
Um fator muito interessante perceptível por meio da
sistematização dos dados apresentada a seguir é a simetria perfeita
entre títulos originais Netflix provenientes da América Latina
produzidos nas chaves do humor e do crime. Com 27 títulos para
cada gênero, comédias e narrativas criminais detêm a mesma
proporção do total: 26,7%. Vale mencionar que tanto comédias
quanto criminais são gêneros presentes em formatos ficcionais e
não ficcionais, passando por séries, filmes, comédias stand up e
219
documentários, por exemplo. Os dramas, por sua vez, somam 14
títulos e representam 13,8% dos originais latino-americanos.
220
popularização das narco-séries, criações genuinamente latino-
americanas que retratam particularidades deste lugar. Há vários
títulos, como: Fronteira Verde (Colômbia), El Chapo (México,
Colômbia e Estados Unidos), A Rainha do Tráfico (México), A Lei
Secreta (Colômbia), Ingobernable (México), La Reina del Flow
(Colômbia).
Considerações
221
relaciona com outros anteriores a eles, caracterizando sua natureza
eminentemente dialógica.
Concordamos com Mungioli (2008), quando ela inter-relaciona
memórias e vivências individuais às memórias e às vivências
coletivas, colocando a constituição das identidades em
convergência com as mediações dos meios de comunicação de
massa. As experiências acumuladas pelo consumo midiático
constroem um passado comum que, por meio dos discursos postos
em circulação, forjam o “interdiscurso sobre o qual se assenta a
memória discursiva” (MUNGIOLI, 2008, p. 5), construindo
identidades em vários níveis, incluindo nacionais e regionais.
Há, portanto, um fio condutor das narrativas latino-
americanas que é orientado mais por gêneros e formatos televisuais
e menos pelos suportes nos quais os conteúdos são depositados ou
veiculados. Conclui-se, desse modo, a existência de uma ligação
profunda entre a produção televisiva e a cultura, que direciona
gêneros e formatos mais convenientes para cada conjuntura.
Assim, deve-se considerar a relevância das transformações trazidas
com a TV distribuída pela internet (LOTZ, 2018), mas sem deixar
de lado o caráter cultural que as define, seja na TV de fluxo, seja na
programação de portais e plataformas de streaming. Mesmo com
potencial global, a tecnologia é condicionada às realidades e às
histórias locais de maneira inevitável.
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226
Gêneros do discurso e TV Social: a série
Cidade Invisível 1
227
dos gêneros televisuais, destaca Bakhtin no sentido de ser o
pensador que melhor desenvolveu uma teoria de gênero que dá
conta dos trabalhos científicos da atualidade, mesmo tendo
restringido seu estudo aos fenômenos linguísticos e literários e não
englobando os produtos do audiovisual contemporâneo.
228
surgimento dos serviços de VOD, em streaming, sobretudo a partir
do início da década de 2010, também é consequência do contexto
da convergência midiática e redefiniu como as pessoas consomem
conteúdo, seja em áudio e/ou vídeo. Dentre os fatores que
viabilizaram e aceleraram esse processo, estão o barateamento da
internet banda larga e a popularização das tecnologias smart em
dispositivos eletrônicos, como televisores e celulares. Logo, o
streaming de vídeo por assinatura pago SVOD4 cresceu e o conteúdo
audiovisual como filmes, séries e documentários foi
disponibilizado nessas plataformas. No ano de 2011, a Netflix
chegou ao Brasil e ofereceu um extenso catálogo de filmes e séries
por 15 reais mensais (GARRETT, 2020).
Além de disponibilizarem diversos conteúdos audiovisuais,
os SVOD passaram a realizar produções próprias. A série
Lilyhammer, lançada em fevereiro de 2012, foi a primeira produção
original da Netflix (SILVA, 2021), porém é com o lançamento da
série House Of Cards no ano seguinte que a plataforma de streaming
atingiu seu primeiro grande sucesso mundial. No Brasil, a primeira
incursão nesse sentido se deu com a série 3%, lançada em 2016, com
boa repercussão mundial. Logo em seguida, houve outras
produções com ótima aceitação pelo público, como O Mecanismo
(2018), Samantha! (2018), Coisa mais linda (2019), Cidade Invisível
(2021). Realizada com a Prodigo Films, BottleCap Productions e
Boipeba Filmes, Cidade Invisível é uma ficção com sete episódios de
35 a 40 minutos de duração, também com boa repercussão
internacional (JOHNSTON, 2021). Embora a série não seja
produzida por uma empresa de televisão per se, e seja um produto
4Os serviços de VOD, vídeo on demand (ou vídeo sob demanda, em português),
classificam-se de acordo com a maneira que são comercializados. O SVOD refere-
se ao Subscription Video on Demand, ou seja, o vídeo sob demanda a partir de
assinatura; o AVOD, Video Advertising on Demand, é o vídeo sob demanda com
inserção publicitária; o TVOD, Transactional Video on Demand, é o vídeo sob
demanda com pagamento unitário; entre outros.
229
da plataforma Netflix, não deixa de se categorizar como um gênero
ficcional televisivo5.
Neste trabalho, de forma resumida, pretendemos refletir sobre
o conceito de gêneros do discurso, discutido por Bakhtin (2010),
com base na ficção televisiva seriada Cidade Invisível. Não temos a
finalidade de esgotar a análise perante o conceito, pois afinal o
pensador russo destaca o caráter heterogêneo e complexo dos
gêneros do discurso. O objetivo é, inicialmente, abordar a
concepção de gêneros do discurso de Bakhtin (2010) a fim de servir
de arcabouço teórico para olharmos nosso objeto sob duas
perspectivas: a primeira seria a de considerar e analisar a obra
audiovisual Cidade Invisível como gênero discursivo complexo; e a
segunda seria buscar compreender as características dos gêneros
da comunicação discursiva, para então podermos visualizá-las
inseridas no fenômeno da TV Social (FECHINE, 2017) por meio de
análise do perfil oficial da Netflix na rede social do Twitter.
230
utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de
enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso”
(BAKHTIN, 2010, p. 262). Nessa perspectiva, Mungioli (2012, p.
104) acrescenta que a base dos gêneros do discurso “é a vida das
interações verbais, da interlocução entre as pessoas, enfim, da
língua viva” e eles funcionam como “uma espécie de guia de
produção e de interpretação de sentidos”.
O próprio Bakhtin (2010) admite a dificuldade de definir a
natureza geral do enunciado em razão da diversidade dos gêneros
discursivos, apesar de sua relativa estabilidade. Isso acontece
porque estão ligados ao passado, à memória e à história, repetindo
usos anteriores e fortalecendo-os de acordo com estilos, temas e
formas. Essa repetição mantém vivas as significações sociais.
Dentro dessa solidez estabelecida é que começam a brotar
mudanças, atualizações, e surgem instabilidades que buscam o
futuro em tentativas de unir o sólido com o instável, o novo. É um
movimento dialógico em relação ao que já existe e ao porvir, que
testa possibilidades, novos enunciados, procurando respostas. Esse
é o movimento orgânico que renova os gêneros, pois é o mesmo
movimento que renova as atividades humanas.
Ainda, Bakhtin (2010) postula que todos os campos da
atividade humana utilizam a linguagem e que os enunciados são
parte indissolúvel das relações e das atividades do ser humano. Por
sua vez, há uma infinidade de possibilidades para a atividade
humana, e esses campos de atividade indicam o conteúdo, o estilo,
e a construção composicional do que é dito. A riqueza e a
diversidade dos gêneros do discurso são infinitas justamente
porque são inesgotáveis as possibilidades da atividade humana.
Podemos assim dizer que tais experiências constituídas por meio
da linguagem e as camadas em que atuam são imensuráveis, “em
cada campo dessa atividade é integral o repertório de gêneros do
discurso, que cresce e se diferencia à medida que se desenvolve e
se complexifica um determinado campo” (BAKHTIN, 2010, p. 262).
Em função disso, a aplicação dos gêneros discursivos é
heterogênea e extensa, pois estes são regidos por todas as esferas
231
das relações humanas e apresentam arquétipos em cada uma.
Dessa forma, “os gêneros do discurso perpassam todas as áreas do
conhecimento humano e adquirem (...) uma certa tipificação
decorrente da atividade social da área. Assim, a cada atividade
humana correspondem alguns gêneros que lhe são típicos”
(MUNGIOLI, 2012, p. 104). Bakhtin (2010) salienta outro aspecto
fundamental: os gêneros do discurso podem ser diferenciados
entre gêneros do discurso primários, ou simples, e secundários, ou
complexos.
232
(complexos). A partir da concepção bakhtiniana, portanto, podemos
entender Cidade Invisível como um gênero do discurso complexo.
Seguindo a mesma linha de raciocínio de Machado (2005), que
categorizou os gêneros dos conteúdos televisivos, Borelli (1996)
destaca o caráter multifacetário dos gêneros discursivos
abrangendo toda a esfera audiovisual ficcional – não excluímos a
existência de gêneros discursivos não ficcionais, porém nos
interessa aqui o gênero audiovisual ficcional:
233
falante com outros participantes da comunicação discursiva – com
os ouvintes, os leitores, os parceiros, o discurso do outro, etc.”
(BAKHTIN, 2010, p. 266). Logo, podemos falar em gêneros
discursivos ficcionais no campo audiovisual não apenas como
categorias classificatórias que orientam o mercado cultural, mas
também como partes integrantes e constituintes da comunicação
discursiva em uma perspectiva mais ampla.
Na comunicação discursiva, Bakhtin (2010) defende que o
ouvinte, ao perceber e compreender o significado do discurso,
sincronicamente em relação a ele, apropria-se de uma ativa posição
responsiva, ou seja:
234
da comunicação discursiva, inclusive no campo da comunicação
cultural, os gêneros científicos e artísticos também se integram
como unidades da comunicação discursiva (BAKHTIN, 2010, p.
279). A obra, desta forma, compreende um elo na cadeia da
comunicação discursiva. Ora, se a ficção televisiva Cidade Invisível
é definida como um enunciado complexo e integra-se ao conjunto
da comunicação discursiva, nos interessa agora assimilar como esse
processo ocorre na TV Social.
Convergência de mídias, telas múltiplas, redes sociais,
interatividade, suscitam conteúdos de mídia que expandem sua
complexidade via redes e criam novas sintaxes e renovam a prática
coletiva de assistir televisão (JENKINS, 2009). É nessa conjuntura
que o conceito de TV Social percorreu um caminho de discussões
em torno da convergência midiática (JENKINS, 2009) e da televisão
transmídia (FECHINE et al, 2013; MASSAROLO et al, 2013, 2015).
Massarolo et al (2013, p. 273) enfatizam que “a TV transmídia é
social” e pode ser entendida “como uma central de conteúdos
distribuídos por diferentes plataformas, conectando os usuários às
redes sociais, por meio de dispositivos móveis que permitem [uma
nova] experiência de ver televisão juntos”. A televisão mediada
pela internet (LOTZ, 2018) modificou a forma como os conteúdos
televisivos são produzidos, distribuídos, consumidos e,
principalmente, como nos relacionamos socialmente considerando
os avanços das tecnologias de comunicação. A prática coletiva de
assistir TV sofreu transformações e ganhou novas nuances por
meios da chamada cultura participativa (SHIRKY, 2011), o
relacionamento com outros fãs passou a ser abrigado em múltiplos
espaços virtuais de socialização, permitindo que a interação social
atravessasse diversas plataformas de mídia. É na confluência da
cultura participativa e da televisão transmídia que se configura a
comunicação discursiva dos fãs de uma determinada série, por
exemplo. O contexto em que essas práticas se situam é formado por
laços efêmeros e vínculos temporários, pluralidade de vozes e
discursos, espalhados em numerosos espaços sociais
(MASSAROLO et al., 2015, p. 155).
235
Em termos específicos e em relação à televisão, as discussões
acerca da TV social tiveram início nos anos 2000, com pesquisas que
norteavam a televisão interativa digital. Em seguida, o conceito
passou a designar a convergência entre a televisão e as mídias
sociais. Por sua vez, a conversação em rede, defendida por Recuero
(2014), é produto da comunicação mediada por computador,
caracteristicamente pública e coletiva, incentivada pelos sites de
redes sociais. De acordo com Recuero (2014, p. 19), ela “surge dos
milhares de atores interconectados que dividem, negociam e
constroem contextos coletivos de interação, trocam e difundem
informações, criam laços e estabelecem redes sociais”. De acordo
com Fechine (2017), podemos considerar como TV Social as
interações pessoais que envolvem produtos televisivos e são
mediadas por tecnologias interativas, seja no computador ou em
dispositivos móveis, por meio de plataformas que permitem
relacionamento e compartilhamento de conteúdo. Plataformas
como Twitter e Facebook, por exemplo, possuem milhões de
usuários que compartilham e comentam espontaneamente “em
seus perfis sobre conteúdos televisivos dos mais variados, dando
lugar a novos comentários sobre o que postaram e promovendo
uma espécie de conversa moldada pela lógica interacional das
redes sociais” (FECHINE, 2017, p. 88). Portanto, nessa conjuntura,
a TV Social se refere “ao compartilhamento de conteúdos
(comentários, memes, vídeos, montagens, fotos etc.) nas redes
sociais (Twitter, Facebook, Instagram etc.) e nos aplicativos de
segunda tela (TV Showtime, Telfie, Viggle etc.) de maneira síncrona
ao fluxo televisivo” (BORGES; SIGILIANO, 2019, p. 30).
Ainda, Borges e Sigiliano (2019) afirmam que a TV Social
reforça o conceito de laço social, discutido por Wolton (1996). Ou
seja, ao entrelaçar o fluxo televisivo com a temporalidade de mídias
sociais, como o Twitter, por exemplo, o fenômeno fortalece o laço
social e ao mesmo tempo ressignifica a experiência televisiva. “Ao
236
ser transposto para as redes multimodais, o watercooler6 reafirma
algumas de suas principais características e possibilita novas
formas de participação, colaboração e expansão do universo
ficcional” (BORGES; SIGILIANO, 2019, p. 31).
Em síntese, nos interessa compreender que dentro do campo
audiovisual estão localizados os gêneros discursivos ficcionais que,
sendo assim, possuem enunciados estilísticos, temáticos e
composicionais relativos à sua categoria. A obra audiovisual
representa uma unidade na comunicação discursiva e o autor da obra,
sujeito do discurso, também está disposto para a resposta do outro
(dos outros), para sua ativa compreensão responsiva, a qual pode
assumir diferentes formas: “(...) influência educativa sobre os leitores,
sobre suas convicções, respostas críticas, influência sobre seguidores e
continuadores; ela (a obra) determina as posições responsivas dos
outros nas complexas condições de comunicação discursiva de um
determinado campo da cultura” (BAKHTIN, 2010, p. 279).
Como constatamos, a própria obra ficcional televisiva é
considerada um gênero discursivo secundário e se configura como
um enunciado e, ao mesmo tempo, representa um elo na cadeia da
comunicação discursiva. Sobretudo na TV Social, ela irá gerar – nos
múltiplos espaços de socialização em rede, em plataformas como
Twitter e Facebook – uma determinada comunicação discursiva,
onde se concretizam as posições responsivas de outros
participantes, ou seja, dos produtores da obra ficcional, parceiros,
atores, consumidores desse conteúdo (dentre eles, os fãs), os
críticos, os atores, etc. Nesse sentido, a TV Social vem transitando
por este caminho de experimentação em que a ampliação de
perspectivas de interação em múltiplas telas narrativas dá suporte
para um novo ambiente fértil para a constituição de novas práticas
6O termo watercooler foi conceituado por Benton e Hills (2012) e se refere ao hábito
de socializar com os amigos, familiares e colegas de trabalho por meio da
discussão informal sobre a programação televisiva. Foi denominado assim em
alusão aos ambientes corporativos, nos quais o bebedouro era utilizado pelos
funcionários para comentar o que haviam assistido na TV, na noite anterior
(BORGES; SIGILIANO, 2019, p. 31).
237
discursivas. São tais práticas que ampliam as possibilidades de
gêneros do discurso. A comunicação discursiva na TV Social de
uma determinada ficção televisiva abriga múltiplos espaços de
socialização, permitindo que a interação social perpasse diversas
plataformas de mídia.
Cidade Invisível
238
onde ela trabalhava. A morte ocorreu em um incêndio durante uma
festa na qual Gabriela estava acompanhada de sua filha Luna
(Manu Dieguez), em uma floresta na Vila Toré, localidade próxima
da cidade, cujas terras interessam a uma grande construtora que
investe ali em um empreendimento imobiliário de grande porte.
Ao iniciar a investigação policial, junto com sua parceira Carla
(Áurea Maranhão), Eric objetiva compreender a morte de Gabriela,
mas logo no início é surpreendido pelo surgimento de um boto-cor-
de-rosa morto na praia. A seguir, dentro de seu carro, o animal se
transforma em um homem quando é transportado para necropsia.
Eric passa a achar, então, que há algum tipo de conexão entre os dois
fatos de características enigmáticas. Na investigação, nota que estão
acontecendo – e passando despercebidos – alguns mistérios na região
central da cidade do Rio de Janeiro. Neste ponto da narrativa, Eric
penetra na cidade invisível que dá nome à série: um mundo liderado
pela Cuca (Alessandra Negrini), onde habitam seres fabulosos.
Grosso modo, pode-se dizer que, assim como grande parte das
obras de ficção seriada televisiva da atualidade, a série Cidade
Invisível hibridiza algumas categorias classificatórias de gêneros
ficcionais que orientam o mercado cultural. Assim, em primeiro
lugar, trata-se de uma narrativa policial tradicional, sendo que
“conta com um protagonista que é um investigador ao estilo noir –
quebrando as regras do jogo para chegar à verdade, doa a quem
doer, e borrando as linhas entre o bem e o mal” (LUSVARGHI,
2021). Temos, portanto, um policial e sua parceira, uma
investigação de assassinato e uma investigação de crime ambiental,
além de disputas de poder no ambiente da delegacia.
A seguir, com o aparecimento gradual de figuras do folclore
brasileiro observa-se que estamos diante de uma obra que se insere
no terreno da narrativa fantástica (TODOROV, 2008). A narrativa
fantástica faz parte da ficção televisiva brasileira desde os anos
1970, com obras representativas como, por exemplo, as telenovelas
da Globo O Bofe (1972), Saramandaia (1976) e Roque Santeiro (1985) e
as minisséries, também da emissora, O Sorriso do Lagarto (1991),
Incidente em Antares (1994) e Fim Do Mundo (Globo, 1996).
239
A narrativa fantástica exige do leitor – e do telespectador –
uma adaptação a um mundo ficcional em que as leis da natureza e
seu conhecimento do mundo estão desorganizados e expostos a
uma nova “multidimensionalidade espacial ou temporal”
(MUNGIOLI, LEMOS, KARHAWI, 2013, p. 221). Esse
conhecimento do mundo, tão necessário à nossa existência no dia a
dia quanto ao nosso acesso, compreensão e mergulho nas obras de
ficção é nomeado por Eco (1997) como enciclopédia. Na narrativa
fantástica o mundo dos personagens organiza explicações tanto
naturais quanto sobrenaturais para os fenômenos do mundo
ficcional, subvertendo tal enciclopédia, o que gera hesitação no
telespectador. E é essa hesitação que revela a oposição irredutível
entre o real e o irreal: “o fantástico é a hesitação experimentada por
um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento
aparentemente sobrenatural” (TODOROV, 2010, p. 176).
Ora, à luz de Todorov (2010, p. 39), para que uma narrativa
seja considerada fantástica, é necessário que preencha três
condições: a primeira é essa hesitação do telespectador; a segunda
é a hesitação do personagem (que espelha, ou que representa a
própria hesitação do telespectador, ou seja, o personagem não
entende os fatos e o telespectador também não); e a terceira
condição é que o telespectador adote uma atitude de recusa a
interpretações alegóricas ou poéticas. Em Cidade Invisível as três
condições se cumprem, salientando que apesar da aparência
alegórica, os personagens não a assumem de fato como função
narrativa; ou seja, o telespectador não é levado a ler os
acontecimentos estranhos como sendo poéticos, nem como
alegóricos, como preconiza Todorov (2008, p. 151).
A série Cidade Invisível também apresenta traços de suspense e
horror, fechando, assim, um complexo de gêneros ficcionais que
não se adapta às estritas classificações anteriores, revelando os já
mencionados hibridismos narrativos e discursivos presentes nas
séries televisivas da atualidade.
Por fim, vale pontuar que em termos de temática a série
aborda questões atuais e relevantes tanto sociais quanto políticas,
240
com uma abordagem que se dirige à ecologia, à ocupação de áreas
de floresta por grandes empreendimentos e à preservação
ambiental.
241
origens, importam são as transformações pelas quais passam tais
manifestações tradicionais.
Em vista disso, vale ressaltar que os livros de Monteiro Lobato,
e suas subsequentes adaptações principalmente para a TV,
acompanharam gerações de brasileiros, o que levou muitos a
pensarem que alguns de seus personagens, como a Cuca ou o Saci-
Pererê, por exemplo, são criações do autor e não parte do
imaginário coletivo. Aqui, a televisão, ato contínuo, entra nessa
circularidade da permanência e dinâmica do folclore, e é
acompanhada pela série que ora analisamos.
Estamos diante, portanto, do movimento dialógico em relação
ao que já existe e ao porvir, que mencionamos anteriormente,
experimentando novos enunciados. Nesse sentido, listamos a
seguir os seres que integram a mitologia da série e que, na diegese,
se misturam às pessoas comuns, habitando áreas degradadas da
cidade, articulando as tramas e interagindo com os demais
personagens8:
(1) O Boto-cor-de-rosa, animal dos rios amazônicos, pertence a
uma lenda da região norte do país. A tradição popular usa essa
lenda para explicar os filhos sem pai – muitas vezes frutos de
ataques sexuais às mulheres. Está relacionada ao lado
masculino da Mãe d’Água e à antiga tradição dos delfins
apaixonados do Mediterrâneo. Entre muitas versões, conta-se
que ele se transforma em um homem muito bonito, sempre
vestido de roupas brancas e chapéu (para esconder seu orifício
respiratório), que seduz e engravida as mulheres,
desaparecendo em seguida. Na série, ele aparece em flashbacks
com o nome de Manaus (Victor Sparapane), referência a sua
origem, e se revela como o verdadeiro pai de Eric.
(2) O Saci-Pererê é um ser pequeno, negro, sem uma das pernas,
que habita as florestas, fuma cachimbo e usa gorro vermelho. Não
é um, são muitos os sacis, travessos, endiabrados, que
242
incomodam os cavalos, os viajantes, invadem as casas, surgindo
sempre em um redemoinho de vento. Lenda originária do sul do
Brasil, do povo Guarani, na série ele tem o nome de Isac (Wesley
Guimarães), anagrama com seu nome, usa perna mecânica e é um
dos detonadores da trama.
(3) Tutu Marambá, nome de origem africana, é um bicho-
papão (ser imaginário das mitologias infantis de quase todos
os povos do mundo). Na série, Tutu (Jimmy London) trabalha
como porteiro de um bar e se transforma em porco-do-mato
(na Bahia, a lenda dá a Tutu a fama de brigão e forte, como o
caititu, o porco-do-mato).
(4)A Cuca é uma criatura velha, feia, desgrenhada, sem forma
definida, capaz de se transformar em diversos animais, e que
rapta as crianças. Está relacionada à bruxa europeia e à Lilith
hebraica. Porém, a Cuca é um dos seres cuja aparência ficou
gravada na audiência brasileira como um jacaré com garras de
gavião devido à personagem criada por Lobato no Sítio do Pica-
Pau Amarelo. Em Cidade Invisível, a Cuca é Inês (Alessandra
Negrini) e, assim como as bruxas do imaginário brasileiro,
pode se metamorfosear em borboleta. Ela enxerga os medos
profundos das pessoas e é capaz de hipnotizá-las. Dona de um
bar, o Cafofo, usa o estabelecimento como fachada para sua
principal tarefa: a de chefe e protetora dos seres que foram
banidos da mata e estão perdidos na cidade, sofrendo e sendo
assassinados.
(5) Iara, que na língua Tupi significa senhora das águas, é
conhecida no imaginário brasileiro também como Mãe
d’Água. Na série é Camila (Jéssica Córes), durante o dia
trabalha como cantora no Cafofo e à noite se transforma nessa
sereia, metade humana e metade peixe, que seduz homens com
seu canto e os mata por afogamento.
(6) Curupira é o deus que protege as florestas e possui uma
função reguladora da relação do homem com a mata,
castigando os excessos. Foi a primeira entidade a ser registrada
por um europeu, o padre José de Anchieta, ainda no ano de
243
1560. Sua representação física mostra os pés virados para trás
e os cabelos vermelhos. Em Cidade Invisível o Curupira é Iberê
(Fábio Lago), morador de rua que está sempre embriagado e é
o alvo principal do Corpo-Seco. Porém, quando Curupira se
mostra na mata, assume sua forma verdadeira com o corpo
queimado e chamas vivas no lugar dos cabelos.
(7) O Corpo-Seco, conhecido também como Unhudo, é uma
lenda das regiões Sudeste e Centro-Oeste do Brasil que conta a
história de um homem tão mau que, quando morreu, nem o
céu, nem o inferno, nem a própria terra o aceitaram. Em
decomposição, essa criatura morta-viva perambula pelas
estradas e quando encontra uma pessoa gruda nela, sugando
seu sangue e sua vida. Na série, primeiramente ele aparece
como o caçador, Sr. Antunes (Eduardo Chagas) e,
posteriormente, surge apenas encarnado, primeiro em Luna e,
depois, no próprio Eric.
244
tipos de enunciados estilísticos, temáticos e composicionais.
Conforme esse campo se desenvolve e se complexifica, o mesmo
ocorre com o repertório de gêneros discursivos. Ao adentrarmos o
campo audiovisual, podemos considerar a série Cidade Invisível
como um enunciado que pode ser classificado como sendo um
gênero discursivo complexo, portanto como um elo na cadeia da
comunicação discursiva.
Por sua vez, a TV Social permite a criação de um ambiente
pródigo para o estabelecimento de novas práticas discursivas. É
nesse cenário de cultura participativa que nos deparamos com a
comunicação discursiva de uma determinada ficção televisiva
localizada em diferentes ambientes de socialização.
Na web 2.0, múltiplos espaços de socialização são criados,
porém são nos canais oficiais da plataforma de streaming que
podemos avistar uma maior interlocução entre os produtores e os
consumidores/fãs da série; concomitantemente, maior interação
entre esses últimos. Assim, neste trabalho elegemos realizar a análise
com base no perfil oficial da Netflix na rede social do Twitter, pois
se trata de um lócus onde podemos encontrar as características da
comunicação discursiva gerada pela série Cidade Invisível.
Para a análise empírica do fenômeno da TV Social e da
comunicação discursiva na série Cidade Invisível, portanto,
delimitamos uma amostragem nacional10, não representativa e
aleatória, direcionando nosso olhar para algumas questões. São
elas: a) De que forma as características da comunicação discursiva
bakhtiniana floresce na TV Social? b) Como podemos identificar os
gêneros da comunicação discursiva da série? Para isso, elegemos
temáticas para identificar os gêneros; nos atendo àquelas
abordadas nos posts realizados pelos perfis oficiais da Netflix com
maior concretização de reações ativas responsivas dos
consumidores da série. c) Quanto às reações dos consumidores da
série, quais podemos destacar para visualizar as características da
comunicação discursiva e dos sujeitos do discurso?
245
Limitamos o recorte do período da análise com base no Google
Trends11. Elegemos essa ferramenta, pois ela traz os assuntos e as
palavras-chaves mais pesquisadas pelos usuários. Além disso, as
informações disponíveis são geradas a partir da base de dados do
Google, ou seja, do site de busca que detém pelo menos 92,19% de
domínio do mercado mundial (CASTRO, 2019). Ao pesquisar pela
palavra-chave Cidade Invisível no Google Trends12, no Brasil, no
período de janeiro a maio de 2021, incluindo todas as categorias e
delimitando por pesquisas na Web, encontramos o seguinte gráfico:
possível observar o engajamento dos usuários e a variação das buscas sobre ele, o
que demonstra o interesse do público. Ademais, a ferramenta permite definir a
localização, o período a ser analisado, a categoria em que se insere o assunto e o
tipo de pesquisa — se foi na web, na busca de imagens, em notícias, no Google
Shopping ou no YouTube. Interesse ao longo do tempo: Os números representam o
interesse de pesquisa relativo ao ponto mais alto no gráfico de uma determinada
região em um dado período. Um valor de 100 representa o pico de popularidade
de um termo. Um valor de 50 significa que o termo teve metade da popularidade.
Uma pontuação de 0 significa que não havia dados suficientes sobre o termo.
Fonte: Google Trends. Disponível em: <https://trends.google.com.br/trends/
explore?date=2021-01-01%202021-12-31&geo=BR&q=Cidade%20Invis%C3%
ADvel>. Acesso em jan. 2023.
246
Figura 1 - Termo “Cidade Invisível”
247
dois tweets que remetiam às personagens (o primeiro relacionado
ao Curupira e o segundo, à Cuca), e um terceiro, com o ator Marcos
Pigossi confirmando a 2ª temporada da série. No Twitter, uma
forma de medir a reverberação de uma publicação é pelo número
de respostas13, de retweets14 e de curtidas ao tweet em questão.
Esses três tweets da @NetflixBrasil se sobressaíram numericamente
em relação aos outros.
248
mil respostas, 13,7 mil retweets e 72,7 mil curtidas. Como também
nos interessam os outros enunciadores, selecionamos a partir do
tweet original um exemplo de resposta e um exemplo de retweet.
Em relação ao tweet do Curupira, selecionamos a resposta
representada na Figura 3, onde temos um perfil dedicado à Cidade
Invisível que, ao compartilhar o gif da Cuca, pede a renovação da
série, ressaltando a importância de ser uma produção nacional, e
que reflete a cultura e o folclore brasileiro. Conforme observamos
anteriormente, essa abertura de diálogo revela o quanto o Sítio do
Pica-Pau Amarelo da TV, que fez parte da grade durante tantos
anos15 influenciou e marcou gerações inteiras que passaram a
compreender a imagem dessa criatura denominada Cuca como
uma forma caricata de jacaré. A partir da resposta ao post original,
houve mais duas reações de usuárias do Twitter, uma comentando
a demora para compreender que a personagem Inês se tratava da
Cuca, pois na série está relacionada com borboletas. A outra,
afirmou que passou a desconfiar que se tratava da Cuca ao ver Inês
cantando a popular canção de ninar, Nana Neném, para o guarda da
prisão. Na Figura 4, temos um retweet indicando a série e a
enaltecendo por ser baseada nas lendas folclóricas brasileiras.
15A primeira versão do Sítio do Pica-Pau Amarelo foi exibida pela TV Globo de
07/03/1977 a 31/01/1986. Já a segunda versão esteve no ar de 12/10/2001 a
07/12/2007, ambas diariamente. Em 2008, a emissora decidiu deixar o programa
fora da grade por uma temporada. “Em 2009, o programa ganhou uma versão
animada exibida na véspera do Natal; a nova versão ganhou duas temporadas em
2012 e 2013, quando saiu definitivamente da programação” (MEMÓRIA GLOBO).
Atualmente é possível acessar e assistir 14 temporadas completas do Sìtio do Pica-
Pau Amarelo, disponíveis no Globoplay. Disponível em: <https://globoplay.globo.
com/sitio-do-picapau-amarelo/t/rkBkNtCNxs/similares/>. Acesso em jan. 2023.
249
Figura 3 - Resposta ao tweet do dia 8 de fevereiro.
250
O segundo tweet selecionado no perfil @NetflixBrasil está
retratado na Figura 5 e foi publicado no dia 12 de fevereiro, obtendo
1,5 mil respostas, 11,5 mil retweets e 63,7 mil curtidas.
Compartilhando dois frames da Cuca de Cidade Invisível, o post –
de forma maliciosa – afirma Nunca pensei que diria isso, mas estou
implorando pra Cuca me pegar.
251
Figura 6 - Resposta ao tweet do dia 12 de fevereiro.
252
O terceiro tweet destacado no período de análise está
reproduzido na Figura 8, e foi publicado no dia 2 de março, com
3,3 mil respostas, 18,7 mil retweets e 71,7 mil curtidas. Nele há um
vídeo com mais de 1,6 milhões visualizações, no qual aparece o ator
Marcos Pigossi lendo tweets pedindo a renovação da série e, por
fim, confirmando oficialmente a 2ª temporada.
253
Figura 9 - Resposta ao tweet do dia 2 de março
254
Tendo em vista a análise do perfil @NetflixBrasil no período
indicado, pudemos verificar um dos lugares, dentre os diversos
espaços de socialização em rede, onde a comunicação discursiva da
série Cidade Invisível ressoa (ou seja, temos outros lugares onde a
obra ficcional televisiva poderia gerar interações e comentários,
como em blogs, fóruns, Facebook etc.). Dentre os oito tweets
publicados no perfil oficial da Netflix no período indicado, três
foram destacados aqui, os que apresentavam maior número de
ativas posições responsivas (BAKHTIN, 2010) por parte dos
consumidores da série. Além disso, podemos ressaltar que com
exceção do último tweet destacado confirmando a 2ª temporada da
série, os outros dois enfocam as personagens do universo diegético.
Uma crítica direcionada ao perfil da @NetflixBrasil nesse
sentido é que houve poucas publicações de divulgação da série,
mesmo que tenha chegado ao primeiro lugar dentre os programas
mais assistidos da Netflix conforme citado anteriormente. De certa
forma, se perdeu uma oportunidade de promover maior
engajamento dos assinantes com a série. Considerando as análises
realizadas, não é possível afirmar com exatidão qual temática de
fato provocou maior engajamento em razão da amostragem.
Dentre as respostas e os retweets dos tweets analisados,
presentes na interface do Twitter, foi possível enxergar a
cristalização dos aspectos da comunicação discursiva ressaltados
por Bakhtin (2010) a partir do discurso construído pela
@NetflixBrasil, como por exemplo, a concordância ou discordância
de uma ativa posição responsiva, a complementação ou até mesmo
o uso do enunciado para realizar uma crítica à série. Outra
característica também averiguada em cada publicação foi a
existência da alternância dos sujeitos do discurso, o que confere o
limite de cada enunciado. Quanto aos temas presentes nas
respostas e retweets, ganharam destaque questões referentes não
apenas ao universo diegético, mas também aspectos que, mesmo
dialogando com esse último, apresentam características relativas
ao contexto social de recepção da série. Como exemplo disso,
255
podemos citar a reivindicação de maior participação de
representantes dos povos originários brasileiros.
Considerações
Referências
256
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260
PARTE 3
261
262
Cinema e Educomunicação enquanto práxis
decoloniais: aproximações possíveis
francês, foi gentilmente cedida pelo Dr. Emmanuel Mbégane Ndour e pode ser
lida a seguir: "Le cinéma c'est un meeting permanent avec le public. Dans une salle de
cinéma, vous avez des Catholiques, Musulmans, Gaullistes, Communistes et tout ça quand
le film est bon. Chacun perçoit et accepte ce qu'il veut. C'est ça qui m'a amené au cinéma
pour mieux poursuivre ma quête de militantisme. (...) Mais pour prendre le raccourci de
l'histoire avec la tradition de l'oralité, le cinéma devient pour nous un outil important. Et
il est de tous les arts, l'expression la plus facile et la plus agréable pour un grand public.
Malheureusement, le cinéma coûte cher, il demande beaucoup d'investissement tant
humain que financier".
263
realizado de modo decolonial, apesar de que também possa existir
apenas a serviço e nos moldes do capitalismo.
O longa-metragem inaugural deste realizador, intitulado
originalmente como "La noire de...", é tido como o primeiro filme de
um realizador da África subsaariana a ter atenção internacional. O
filme é baseado em um conto homônimo do autor, que, antes de se
tornar cineasta - o que se deu já à altura de seus 40 anos de idade -
atuava como escritor. O roteiro do filme - para ilustrar a importância
que o diretor dá à crítica colonial e, dessa forma, se apresenta
enquanto narrativa decolonial por excelência -, acompanha a ida de
Diouana, uma jovem senegalesa, que sai de Dakar para ir à Riviera
francesa, uma vez que foi contratada para trabalhar como babá por
um cosmopolita casal francês. Este é um trajeto de silenciosa
rebelião, na passagem dos sonhos ilusórios por uma vida melhor a
uma realidade de exploração de seu trabalho e existência.
264
quase sempre em convergência, realçando os discursos e produzindo
efeitos de sentido (CAMPOS JÚNIOR, 2013, p. 59).
265
No contexto africano, como no caso ilustrado por Sembène,
anteriormente, esse ciclo dialógico ganha força pelo fato de estar
em conexão direta com um dos principais valores cosmogônicos e
tradicionais do continente-mãe: a oralidade. Ademais, é estratégia
essencial para atingir as diferentes camadas da sociedade,
incluindo as massas, por vezes, iletradas, e, dessa forma, poder
orientá-las conforme valores e crenças de quem assina as narrativas
cinematográficas, movidas, por exemplo, pelo ativismo e o
compromisso com a transformação social, como no caso das
películas assinadas pelo cineasta senegalês, em que a valorização
da negritude e das africanidades e o posicionamento crítico às
colonialidades e ao colonialismo são centrais (GOMES, 2020).
Com base nas potencialidades que a linguagem cinematográfica
apresenta para quem com ela se conecta - mesmo que de diferentes
modos e a partir de diferentes lugares de poder -, a partir desta
aproximação tanto estética quanto discursiva e ideológica, pode-se
identificar os signos, as representações, os discursos com base nos
quais se constrói a cultura de uma nação, de um grupo
populacional, de um indivíduo social, por exemplo. Como essa
imersão - também cosmogônica - define quem é quem e/ou como
cada parcela da sociedade age, reage e transforma e, por vezes, se
conforma à realidade.
266
dos demais grupos existentes em sociedade. A ideia, portanto, não
é criar uma espécie de divisão cultural, mas reforçar a unidade dos
grupos que, juntos, determinam uma nação. Desse modo, a cultura
é "uma dimensão penetrante do discurso humano que explora a
diferença para gerar diversas concepções da identidade de grupo"
(APPADURAI, 1996, p. 27).
Ao se referir à construção do conceito de povo, Bhabha (2013)
reitera a necessidade de se recontar a(s) história(s), de se criarem
por meio dos discursos as condições para que compreendamos o
passado e possamos nos situar, enquanto povo ou nação, no
presente. A condensação das temporalidades em busca da
construção de sentido produzida pelo interdiscurso - do qual
passamos a fazer parte na medida em que o constituímos e somos
por ele constituídos por meio da enunciação – que é possível por
meio da compreensão semiótica.
267
diferenças que - por sua vez, demarcam as construções de
identidades -, é cotidianamente mediado, seja pelas interações
interpessoais que travamos, pelas normas que seguimos, pelas
manifestações que celebramos, pelas mídias a que temos acesso ou
pelas maneiras como educamos ou somos educados e educadas em
sociedade.
A mediação (MARTÍN-BARBERO, 2001) é o que conduz as
relações que estabelecemos com o mundo que nos rodeia. É por
meio da mediação social que acedemos à noção de palavramundo
(FREIRE, 2008) e damos sentido aos seres e objetos do mundo.
Mundo composto por pessoas, por instituições, por sistemas
culturais, econômicos e políticos, enfim, por tudo aquilo que é vivo
e vive entre nós. Dessa forma, o cinema enquanto práxis se apoia
na mediação realizada por meio dos filmes e das narrativas por eles
representadas para afetar quem interage com as produções da
práxis cinematográfica. Nesse sentido, ressaltamos que
compreendemos o conceito de práxis, conforme definição a seguir:
268
Para isso, a mediação, enquanto um processo ativo liderado por
diferentes grupos e organizações, em que contextos devem ser
levados em conta no processo mediado, bem como as especificidades
dos públicos que compõem a produção de sentidos, é vital.
3Tradução livre realizada pela autora do artigo. A íntegra, em língua inglesa, pode
ser lida a seguir: "The concept of mediation is based on research findings that recognize
the role of producers, texts, audiences and contexts in the production of meaning - even if
not equally for each of these components".
269
interpretados diferentemente entre os/as sujeitos/as conforme suas
condições sociais. Dessa maneira, o signo estabelece a mediação
entre o/a sujeito/a e o mundo. Mediação semiótica que se configura
e se reconfigura continuamente com base nas situações concretas
da comunicação nas quais a significação se constitui. Segundo
VOLÓCHINOV (2017, p. 205), a construção da significação se
constrói em um movimento contínuo que envolve os
interlocutores. A significação não “pertence” a nenhum deles, mas
sim ao texto criado entre ambos. Dessa forma, a construção de
sentidos ocorre por meio de um processo caracterizado pela
alteridade. Em um processo de contínua interação com o outro e que
compreende o verbal, o não-verbal e o extraverbal. Cabe salientar
que o extraverbal não corresponde apenas ao contexto imediato
que envolve os interlocutores, mas também diz respeito à
constituição dos falantes como seres socialmente organizados (e,
portanto, ideologicamente constituídos).
Em relação aos sujeitos ou às sujeitas (KILOMBA, 2019) que
protagonizam tais processos de mediação, o intelectual russo
também compreende que esta perspectiva se dá em relação à
maneira com a qual respondem e são responsáveis (e
responsabilizados/as) pelas interações que realizam (BAKHTIN,
2012). Daí a valorização que essa relação dialógica deve prestar à
noção de alteridade, visto que é essencial demarcar a construção
das identidades destes/as sujeitos/as em relação a seus/suas
interlocutores/as e ao meio do qual fazem parte.
270
Portanto, durante qualquer processo de mediação, há enunciados,
trocas e interações. Quem enuncia e quem é enunciatário/a das
informações e dos conhecimentos trocados na mediação estabelece
uma relação dupla, no sentido de que, ora cumpre o papel de
enunciador/a, ora o papel de enunciatário/a. A mediação acontece no
processo em si, ela não se finda e nem é estanque, muito menos quem
dela se utiliza para comunicar o que deseja.
271
aliadas a quem delas faz uso político-ideológico em prol das
transformações sociais.
272
Uma vez que vivemos em uma sociedade capitalista, cada vez
mais binarizada, polarizada, com disputas sociais das mais
diferentes ordens, em que, ainda, quem acede aos postos de poder,
em geral, é pessoa cisgênera, autodeclarada branca, do sexo
masculino, declaradamente heterossexual e herdeira de finanças
que têm suas raízes nas relações originadas pelo colonialismo,
estabelecer processos educomunicativos mediados com base nos
valores da práxis educomunicativa não é tarefa fácil. Talvez por
isso seja comum identificar interpretações que restringem a
educomunicação apenas à sua dimensão tecnológica, sem levar em
conta todas as demais características e compromissos que
convocam educomunicadores/as a corazonar (ARIAS, 2012).
4Tradução livre realizada pela autora deste capítulo. A versão original, em língua
espanhola, pode ser lida a seguir: "Resulta absurdo creer que las perspectivas de vida
para la naturaleza y todo lo que en ella habita, y sobre todo, que la construcción de un
horizonte ‘otro’ diferente de civilización y de existencia, pueden ser posibles dentro de los
marcos epistémicos de una ciencia carente de ternura, que rompió con el sentido espiritual,
sagrado y femenino de la vida, a fin de transformar la naturaleza, la cultura, los seres
humanos en simples mercancías para la acumulación de riquezas. Lo irónico es que la
esperanza, para tejer un sentido civilizatorio y de vida diferente, está en las sabidurías
insurgentes o del corazón a las cuales el poder les negó su condición de humanidad; ha sido
desde la fuerza de esa sabiduría que emerge desde el corazón, como nuestros pueblos hoy
273
Neste texto, a educomunicação é compreendida como um
paradigma constituído por epistemologias e princípios teórico-
metodológicos que têm, como meta utópica e ideal, a condução de
transformações sociais com/nas comunidades que compõem a
sociedade em que vivemos e que se realiza a partir das
possibilidades e dos limites que esta mesma sociedade apresenta.
Portanto, a essencialidade de frisar, neste momento, a urgência da
compreensão do que se configurou nomear como sendo
"educomunicação possível" (SOARES, 2016).
A partir de reflexões teóricas, com base em práticas
educomunicativas, o conceito de educomunicação possível ainda é
pouco utilizado, no entanto, o mesmo autor que o cunhou é
também o responsável pelas primeiras discussões acerca deste
paradigma na academia brasileira. Desse modo, além da autoria do
conceito ser legítima, o mesmo está em sintonia com a realidade
que nos rodeia. Vê-se, aqui, a importância dada à vigilância
epistemológica em relação às discussões e práticas propostas
pela/na educomunicação.
Com base no chamado de uma educomunicação possível,
pode-se entender que, por não ser um convite natural em uma
sociedade com os valores acima apresentados, é necessário também
compreender que o processo de mediação que conduz a práxis
educomunicativa precisa ser realizado em uma situação real, em
um mundo real, com pessoas reais, a partir das cosmovisões e
cosmogonias que regem o viver em comunidades locais e não para
anunciar uma lógica que não faz sentido dentro da realidade em
que se vive. Ou seja, por meio de uma mediação que acontece a
partir de uma lógica decolonial, em modo de guerrilha, que, por
vezes, se concretiza quando se identificam as brechas (juntamente
com forças ancestrais, espirituais, ideológicas e revolucionárias) e
não se espera o formato ideal para sua realização.
siguen hablando con palabra propia y están aquí presentes, “sintiendo, haciendo, siendo”,
como dice el pueblo Kitu Kara".
274
Daí que a ideia de educomunicação possível ser qualificada como
uma situação intermediária, entre o ideal e o possível, o existente e o
desejado. E sua utilidade está exatamente em não se perder de vista
que a intervenção educomunicativa é construída aos poucos,
conforme a evolução da execução de suas propostas, ou seja, sua
práxis cotidiana, e que resulta da atuação direta dos sujeitos
participantes, co-autores do processo e não meramente reprodutores
de ações planejadas por outros e que deverão ser cumpridas. Ou
ainda, que é próprio da concepção referendada pela educomunicação
nortear-se por um plano aberto às interveniências do contexto e dos
sujeitos, e o acolhimento e aproveitamento das contribuições
diversas deles manifestadas, enfim, saber lidar com o imprevisível e
imponderável (VIANA, 2017, p. 928).
275
Sentipensar com o território implica pensar com o coração e a partir
da mente, ou corazonar, como bem afirmam os colegas de Chiapas
inspirados na experiência zapatista; é a maneira pela qual as
comunidades territorializadas aprenderam a arte de viver. Este é um
apelo, então, para que a leitora ou o leitor sentipense com os
territórios, culturas e conhecimentos de seus povos —com suas
ontologias—, mais do que com os conhecimentos des-
contextualizados que fundamentam as noções de
“desenvolvimento”, “crescimento” e, até mesmo, “economia”
(ESCOBAR, 2014, p. 16)5.
276
possibilidade de se assumir enquanto sujeito/a da realidade em que
vive, também a própria práxis educomunicativa se assume e meta-
reflete sobre si mesma neste mesmo processo. Inclusive, a
compreensão desta educomunicação possível enquanto práxis
decolonial se dá com base no entendimento de que se trata de um
paradigma em curso, em transformação perene e que é mutável
para poder fazer caber, para estabelecer trocas, diálogos em um
compasso que enaltece alteridade e dialogicidade.
Benveniste (2006) afirma que é por meio da enunciação que se
estabelecem ao mesmo tempo um eu e um tu, pois, ao apropriar-se
da língua, o eu “implanta o outro diante de si, qualquer que seja o
grau de presença que ele atribua a este outro” (BENVENISTE, 2006,
p. 84). Além da categoria pessoa (enunciador-enunciatário), o ato
de enunciação instaura as duas outras instâncias: a de espaço e a de
tempo. Dessa forma, ao se apropriar da palavra, o/a sujeito se
localiza tanto em termos de espaço (por meio de advérbios) quanto
em termos temporais (denotados pelos tempos verbais). É por meio
da apropriação da palavra e de sua constituição como enunciador-
enunciatário que o/a sujeito/a constrói o mundo em que vive.
Bakhtin (2000) define o processo de alteridade a partir da ideia
de que, quando o indivíduo protagoniza a mediação, em primeiro
lugar, compreende o/a enunciador/a e, posteriormente, responde
ativamente a ele/a, materializando seu discurso em uma resposta
(externa ou internamente). Dessa forma, o/a sujeito/a constitui-se
em relação às outras pessoas com quem interage, respondendo a
elas, em uma alternância constante de lugares. Nessa situação de
comunicação, não ocorre uma compreensão passiva por parte de
quem enuncia; resulta, ao contrário, uma resposta que se
materializa sob a forma de concordância, adesão, objeção,
execução, etc. A consciência, então, é engendrada pelas relações
que os/as sujeitos/as estabelecem entre si, no meio social. Relações,
por sua vez, constituídas sob a égide do signo ideológico. Há um
diálogo permanente, em que co-enunciadores/as e trocam de
papéis o tempo todo, colaborando mutuamente para a construção
de sentidos. É aqui que reside a natureza interdiscursiva da
277
linguagem, o que o autor denominou ‘dialogismo’, que, por sua
vez, compõe e complementa o conceito de alteridade.
Ser significa ser para um outro, e, por meio do outro, ser para si. Uma
pessoa não tem nenhum território interno soberano, ela está sempre
na fronteira; olhando para dentro de si, ele olha nos olhos de um outro
ou com os olhos de um outro (BAKHTIN, 1994, p. 287 - grifos do autor)6.
6 Tradução livre realizada pela autora do capítulo. A versão, em língua inglesa, pode
ser conferida a seguir: "To be means to be for another, and through the other, for oneself. A
person has no internal sovereign territory, he is wholly and always on the boundary; looking
inside himself, he looks into the eyes of another or with the eyes of another".
7 Tradução livre realizada pela autora do capítulo. A versão original, em língua
inglesa, pode ser lida a seguir: "To recognise and provide for incompleteness is not to
plead guilty, inadequate and helplessness vis-à-vis the supposedly complete others. Instead,
incompleteness is a disposition that enables us to act in particular ways to achieve our ends
in a world or universe of myriad interconnections of sentient incomplete beings and actors,
human and non-human, natural and supernatural, amenable and not amenable to
perception through our senses".
278
Refletir e agir em prol da práxis educomunicativa é considerar
esta incompletude como condição sine qua non da existência deste
paradigma. Pelo fato de a própria práxis não ser integralmente
definida, a fim de poder propiciar a possibilidade de ser construída no
coletivo, entre acertos e enganos, conjuntamente e encarando
educomunicadores/as enquanto co-responsáveis, tanto pelas
conquistas como pelos descompassos que existem e poderão estar
presentes em teorias e práticas educomunicativas em curso. "Alguém
é quem é por causa de outros. (...) Ao mesmo tempo, somos o produto
de várias redes de interconexões, para a produção e reprodução das
quais contribuímos ativamente" (NYAMJOH, 2021, s/p.)8.
279
Segundo Soares (2018, p. 14), "a educomunicação se presta a este
serviço, dada a sua origem na luta dos movimentos sociais pela
conquista da liberdade de expressão, pela reafirmação do direito às
diferenças e pelo reconhecimento dos direitos humanos”. Isso
demonstra a importância que a condução deste paradigma dá à
valorização de percursos inerentemente inconclusos ou incompletos
(NYAMJOH, 2021) e, ao contrário do que prega as lógicas coloniais e
eurocêntricas tradicionais, está distante de possível fragilidade ou
descrédito junto às instituições em que circulam os saberes, desde na
academia até entre as comunidades originárias.
Tanto a práxis cinematográfica quanto a práxis
educomunicativa são protagonizadas por pessoas, estejam elas em
posição de enunciadoras ou enunciatárias, sejam elas cineastas ou
educadoras, ou espectadoras ou estudantes. As narrativas que
produzimos estão sempre conectadas por construções assentadas
nas noções de alteridade e de dialogismo/dialogicidade, se
quisermos fazer as devidas aproximações entre as teorias
Bakhtinianas e Freirianas.
Por esse motivo, defendemos a viabilidade e a urgência da
análise de discursos e estéticas presentes das narrativas
cinematográficas enquanto pertencentes e ilustradoras de, no
mínimo e idealmente, três áreas de intervenção da
educomunicação, sendo elas: "educação para a comunicação";
"expressão comunicativa por meio das artes" e "mediação
280
tecnológica na educação'. Isso sem negar a possibilidade da a
'radiografia analítica' aqui apresentada poder ser alterada, a
qualquer momento, visto que discutimos um paradigma em
progresso.
Quando o cinema encontra a educomunicação, uma relação
afetuosa e sensorial acontece, pois gera uma miríade de olhares
possíveis, emergem olhares entremeados pelas histórias, pelas
bagagens culturais e pelas leituras de mundo (FREIRE, 1997) de
quem produz e de quem recebe os discursos produzidos. Ao
utilizar filmes como suporte para o ciclo de ensino-aprendizagem,
em um espaço educativo - seja ele formal, informal ou não-formal -
, há um despertar do senso crítico de educadores/as e estudantes
que participam deste processo. Com a instrumentalização e a
apropriação das ferramentas de construção do imagético,
desmistifica-se a linguagem e a produção cinematográfica,
potencializando a valorização da existência de seres críticos e
também (re)produtores da realidade.
O uso de filmes em processos de ensino-aprendizagem é
estratégico e salutar, uma vez que, enquanto prática ligada à área
de intervenção de "educação para a comunicação", possibilita,
ainda no primeiro tópico apresentado (educação para
comunicação, na perspectiva da educomunicação), que discussões
em torno dos discursos, formatos, das escolhas textuais e estéticas,
dos posicionamentos (tanto de câmeras quanto de estrutura
narrativo-ideológica), bem como de quem compõe a equipe que
está por detrás da tela, sejam priorizadas e atentamente pautadas,
a partir de diálogos que estejam em consonância com os princípios
da práxis educomunicativa. Dessa forma, busca-se diminuir um
possível olhar ingênuo ou acrítico - e por excelência jamais neutro
- em torno do que se produz ou se assiste.
Já em relação ao segundo tópico, intitulado "educação para as
competências midiáticas, na perspectiva da mídia-educação",
convoca-se o público, que está em processo alteritário e dialógico
com as narrativas presentes nos filmes, a desenvolver competências
de leitura crítica das mídias a que acessa. Por isso, a relevância em
281
dialogar desde sobre a história do cinema, por exemplo, passando
pelos recursos específicos desta práxis e suas linguagens. Esse
percurso didático-pedagógico é interessante para poder
desenvolver, junto à comunidade espectadora dos filmes, uma
cultura cinematográfica e uma ampliação da leitura crítica dos
meios de comunicação com os quais se conectam. No entanto,
salienta-se que nenhuma destas áreas de intervenção da
educomunicação está obrigatoriamente restrita ao uso do cinema
enquanto possibilidade de aplicação das concepções e valores
circunscritos nas respectivas áreas.
No que diz respeito à área de intervenção de “educação para a
comunicação enquanto educação para a cidadania”, talvez uma das
áreas que está mais intimamente relacionada ao 'coração' da práxis
educomunicativa, a utilização de filmografias para educar para
cidadania pode ser estratégia potente. Quando se entra em contato
consigo mesmo/a ou com outras culturas, por meio dos filmes que
assistimos, há uma série de outras perspectivas, de outros olhares
que poderão vir a contribuir à cidadania audiovisual de quem
estabelece diálogo com as narrativas cinematográficas em questão.
É um convite simbólico para humanizar o que já é teoricamente
humano, por meio dos discursos que se apresentam na tela.
282
educomunicação, sempre comprometida com as transformações
sociais das camadas subalternizadas e em diálogo com as
demandas e as utopias do chamado Sul Global, emergido de um
contexto histórico de reafirmação dos/as sujeitos/as sociais.
283
partir da compreensão do que é a práxis educomunicativa,
resumem-se em apontar caminhos para dirimir os desafios da
educação e de seus processos de aprendizagem.
Dessa forma, os filmes, quando utilizados em processos
educacionais, enaltecem a gênese da comunicação, uma vez que,
enquanto produtos comunicacionais, existem para "instaurar o
comum na comunidade, não como uma entidade agregada, mas
como uma vinculação, portanto, como um nada constitutivo, pois
o vínculo é sem substância física ou institucional, é pura abertura
na linguagem" (SODRÉ, 2014, p. 214).
Protagonizar - seja enquanto enunciador/a ou enunciatário/a
- uma mediação de filmes, por meio da promoção de um processo
educativo, é potencialmente estabelecer diálogos em torno do que
há em comum, mas também sobre o que se diferencia acerca
daquilo que é assistido em relação a quem produz as narrativas e
também em contraposição a quem assiste as produções
audiovisuais em questão. Este processo é carregado por crenças e
valores da práxis educomunicativa, que, por sua vez, se apoia no
coletivo - demarcadamente alteritário e dialógico - para colocar em
prática as demandas formais e formativas dos currículos, a fim de
que toda pessoa que tenha oportunidade de educar e de ser
educada - dentro e fora das escolas - possa fazê-lo por uma
perspectiva libertadora (FREIRE, 1967).
Entretanto, em qualquer processo mediado, sempre existe
uma certa tensão dialógica, advinda da convivência entre os
dizeres e os silêncios (ORLANDI, 2013), em que prevalece seu
caráter de inacabamento e destaca-se o movimento constitutivo do
dialogismo como anteposição de palavra e da contra-palavra
(VOLÓCHINOV, 2017) do enunciador. Tal configuração também é
vista na práxis educomunicativa.
284
educomunicativos, estes, por sua vez, marcadamente inclusivos e
democráticos (MUNGIOLI; VIANA; RAMOS, 2017, p. 220).
285
educomunicativas, provocando, inclusive, reflexões etimológicas
no sentido de sugerir adaptação ou criação de uma nova área de
intervenção, que abrangesse ações 'arteducomunicativas' (SILVA e
VIANA, 2019).
Portanto, enquanto parte das estratégias de condução da
práxis educomunicativa, os filmes, utilizados em processos de
mediação por meio da arte, são encarados enquanto obras de arte
e, dessa maneira, "tem foco no termo ‘expressão' e considera a arte
como ferramenta do processo, não dando conta da profundidade
que a arte pode trazer em sua forma de experienciar o mundo"
(SILVA e VIANA, 2019, grifos dos autores). Desse modo, os
ecossistemas comunicativos são novamente potencializados, por
meio do cinema, uma vez que produtores/as e receptores/as dos
filmes estão, colaborativamente, construindo e reconstruindo a si
mesmos/as enquanto realizam leitura crítica ou até mesmo a
produção audiovisual de narrativas autorais, mesmo quando
estudantes.
Sendo assim, meu desejo e compromisso é para que o encontro
entre as práxis cinematográfica e educomunicativa propicie um
chamado coletivo a outros mundos possíveis, quiçá outras formas
de ser e estar neste atual mundo em que vivemos. Enquanto
sujeitos/as conscientes das relações das estruturas de poder -
interseccionalmente demarcadas por classe, gênero, raça, dentre
outros marcadores sociais de diferença -, possamos renovar nossas
forças, seguir em resistência e propiciar, a quem quer que seja,
trocas genuínas que tenham nos discursos (nas teorias e nas
práticas) aliados às revoluções mais emergentes e que, para isso,
tanto o cinema quanto a educomunicação possam servir de
esperançares-decoloniais-decolonizadores, amparados na
ideologia do adinkra ganês Sankofa, em que o passado é essencial
para compreender o presente e projetar o futuro.
Que nossos presentes e nossos futuros possam ser projetados
por meio de telas e de pessoas que mediam o mundo por, para e
com pessoas.
286
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São Paulo: Editora 34, 2017.
290
Narrativas de Trajetórias Particulares1
291
profundidade com o objetivo de conhecer a história de vida dos
sujeitos a fim de contextualizar e interpretar suas produções de
sentido sobre os temas da telenovela analisada. Cabe salientar, no
entanto, que apenas uma parte do material coletado foi
exaustivamente analisado na dissertação. Este capítulo trabalha com
parte do material coletado que não foi analisado em profundidade
na dissertação de mestrado, objetivando observar aspectos do papel
social das narrativas orais na vida dos sujeitos da pesquisa. Portanto,
o lugar de onde partimos para essa abordagem ancora-se na
proposta inicial de acompanhar os sujeitos da pesquisa no ato
cotidiano de assistir à telenovela brasileira5 no Japão. Essa
proximidade criada com a frequência dos encontros permitiu que os
laços entre a pesquisadora e os sujeitos da pesquisa fossem
construídos a partir da instância da cotidianidade na qual a
modalidade da comunicação oral ancora a história de vida. Dessa
forma, este trabalho de pesquisa possui como corpus a história de
vida contada pelos próprios sujeitos que viveram essas histórias
particulares. Certamente, apesar de se tratar de aspectos específicos
da vida de cada um dos sujeitos, o corpus aqui analisado descortina
elementos sobre a constituição desses sujeitos enquanto pessoas que
se constroem e se reconstroem por meio da linguagem oral que tanto
dá sentido às experiências de vida quanto à construção da memória
(BRUNER; WEISSER, 1995). A pesquisa baseou-se nos estudos de
linguagem de Bakhtin (2003, 2010), nas análises de Bruner e Weisser
(1995) e nos Estudos Culturais (Hall, 2006, 2009 e Bhabha, 1998).
5Na época da pesquisa de campo, a telenovela exibida pela IPCTV era Amor à Vida.
Telenovela que foi ao ar pela Rede Globo de Televisão de 20 de maio de 2013 até
31 de janeiro de 2014, escrita por Walcyr Carrasco e dirigida por Wolf Maya e
Mauro Mendonça Filho.
292
passava por uma grande crise marcada por recessão econômica,
inflação e desemprego. No cenário internacional, com o fim do
comunismo e a abertura de novos mercados, alguns países como o
Japão, cuja tecnologia avançada competia no mercado internacional,
necessitavam urgentemente de mão de obra para suprir as
necessidades da indústria. Esse conjunto de fatores culminou com a
criação, no Japão, de uma legislação regulamentando a contratação de
trabalhadores estrangeiros, o que levou ao aumento da população de
brasileiros no Japão. No final da década de 1980, o movimento
migratório de brasileiros para o Japão, conhecido naquele momento
como movimento dekassegui6, intensifica as relações já existentes
entre os dois países. Porém, em 2008, a grande crise econômica
registrada no Japão e no mundo levou à diminuição drástica do
número de brasileiros naquele país. Mesmo assim, de acordo com as
estimativas referentes a 2013 sobre a distribuição de brasileiros no
mundo, o Japão ficou em terceiro lugar. Em primeiro lugar ficou os
Estados Unidos (1.066.842), seguidos pelo Paraguai (459.760), Japão
(186.051), e Portugal (162.190)7.
Muitos imigrantes brasileiros que estão no Japão são
descendentes ou estão ligados a essa ascendência japonesa no
Brasil por parentesco ou casamento. Isso porque a legislação para
contratação de trabalhadores no Japão, promulgada em junho de
19908, buscava recrutar descendentes japoneses para trabalhar em
293
fábricas e principalmente nas médias e pequenas empresas do setor
eletrônico em expansão. Conforme explica Kawamura (2003), essa
resolução foi uma tentativa de amenizar as dificuldades e
diferenças culturais. Embora a integração dos descendentes nikkeys
parecesse menos problemática aos japoneses, ela também foi
marcada por um longo processo de estratégias de sobrevivência em
terras japonesas por parte desses imigrantes. Processo migratório
marcado por fases que vão desde a primeira ideia de permanência
temporária até o enraizamento e a aceitação da sua própria
condição como imigrante, implicando nessa trajetória muitas
adequações de experiência pessoal e coletiva e seus
desdobramentos em consequentes negociações de sentido de
identidade pessoal e coletiva. Conforme Bhabha (1998, p. 21), essa
situação acarreta na formação de uma arena de negociações em que
“os embates de fronteira acerca da diferença cultural têm tanta
possibilidade de serem consensuais quanto conflituosos”. Então,
para esses imigrantes brasileiros no Japão, a dificuldade da língua,
a saudade das práticas da vivência brasileira, sua cultura, comidas
e jeitos de ver o mundo, desde as pequenas coisas até as grandes
diferenças culturais tiveram que ser acomodadas numa situação
emergencial para que se tornasse possível a convivência nessa terra
estrangeira.
Identidades em Trânsito
294
parte da identidade também fica em suspenso, pois a identidade é
uma forma de ser, é uma forma de afirmação do que se é, e de
negação do que não se é. Bakhtin (2003) discute essa relação da
alteridade quando fala que o autor deve se colocar no lugar do
outro para entender a completude da situação e olhar para si com
os olhos do outro “com valores que a partir da própria vida são
transgredientes a ela e lhe dão acabamento; ele deve tornar-se outro
em relação a si mesmo.” (BAKTHIN, 2003, p. 13). Então, a
identidade cultural, assim construída, é corroborada pelo lugar ao
qual pertencemos e, esse lugar é o primeiro ponto de apoio para a
construção do sentido do mundo que nos rodeia. Hall (2006)
argumenta que:
295
vínculo entre a cultura e a geografia é mapeado de outra forma,
nem melhor, nem pior, mas diferente.
296
autobiografia é um hábil ato de se transferir uma amostragem de
memórias episódicas para uma densa matriz de memória semântica
organizada e culturalmente esquematizada”. Já Bakhtin (2003)
analisa o narrar biográfico como uma forma de se aceder à
conscientização por meio da enunciação, em um processo que
implica constantemente o "eu" e o "outro". Para Bakhtin (2003), o
relato, ou mais precisamente, o discurso autobiográfico implica, em
termos de enunciação, a construção de enunciados marcados pelas
palavras dos outros que ao mesmo tempo passam a ser minhas
quando as enuncio ao relatar minha vida.
297
A mente é formada, numa incrível proporção, pelo ato da invenção
do ser, pois por meio de prolongados e repetitivos atos de auto-
invenção definimos o mundo, o alcance de nossa atuação nele e a
natureza da epistemologia que governa o modo como o ser
conhecerá o mundo e, na verdade, a si mesmo. A auto-invenção,
devido à sua própria natureza, cria disjunções entre um ser que conta
no momento do discurso e os seres esquematizados na memória.
(BRUNER; WEISSER, 1995, p. 158).
298
redistribuição por assuntos ou temas, o que já demonstra certas
preferências do narrador em relação ao que contar e ao que não
contar. Para Bakhtin-Volochínov (2010) o tema da enunciação é um
elemento único, individual, não reiterável e concreto “tão concreto
como o instante histórico ao qual ela pertence” (p. 134), e somente
assim, pode-se apresentar como base para a enunciação, pois o
tema apresenta a expressão de uma situação histórica concreta que
origina o enunciado. Então, o tema é responsável pela compreensão
do significado.
- Essa história ele (pai de D. Telma) contava... O pai dele era da Yakuza (máfia
Japonesa) e a mãe, minha avó, sofria muito por causa disso. Inclusive esse meu
avô morreu assassinado. Ele morreu e os outros do grupo começaram a ameaçar
que iam matar o meu pai, isso era ele quem nos contava depois. A mãe, minha
avó, já estava doente, eu nem a conheci, e ela pediu para essa família amiga,
299
que levasse o filho junto com eles, ao Brasil. Porque ela tinha medo. E, por isso
que ele foi, meio que fugido!!
- Eu casei com 29 anos, ele teve que esperar minha irmã mais velha se casar.
Mas, depois de mim, logo as minhas irmãs casaram uma atrás da outra. A mais
nova se casou com um japonês, e hoje mora em Tokyo. Eu casei com um
brasileiro (não descendente). Nossa! Ele (pai) foi contra!! Nossa! Brigamos, ele
me deserdou, disse que eu não era mais sua filha e, nem foi ao meu casamento,
300
nem nada. Eu sofri bastante porque no dia do casamento, tão importante, a
gente quer os pais lá, né!? Só depois que fiquei grávida e ganhei minha filha,
que era a primeira neta, e ele adorava criança, ele queria conhecer, mas era
orgulhoso também, não queria dar o braço a torcer!! Aí, um dia o meu irmão
trouxe um presente dele, um carrinho, tipo berço, muito caro, então, eu pensei,
vou deixar o orgulho de lado e levar ela para o avô conhecer e, depois disso a
gente se entendeu.
- A minha filha mais velha era xodó, até outro dia, ela estava escrevendo no
facebook uma brincadeira com números, por exemplo, se a pessoa dava o
número dezessete, ela tinha que contar dezessete vezes algo sobre ela. A
primeira coisa que ela escreveu foi que quando ela tinha sete anos ela perdeu a
pessoa que mais amava, que era o avô!!
10 Nesse momento, tive que esperar alguns minutos até que D. Telma,
silenciosamente, se recompusesse e, assim, continuássemos a entrevista.
301
sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, susceptível de
longas latências e de repetidas revitalizações. (NORA, 1993, p. 9).
- Separei e depois de 4 anos vim para cá (Japão). Ele não queria dar o divórcio.
Depois de 2 anos, eu voltei ao Brasil muitas vezes, mas ele não queria assinar.
302
Eu tinha 50 anos quando vim para cá, então eu queria viver a vida. Aí, meu
filho e as meninas falaram que se ele não desse o divórcio eles ficariam bravos,
que esquecesse que eram filhos dele. Aí, eu fui para o Brasil com meu filho,
mesmo assim, um pouco antes de entrar na audiência, ele falou que não ia
assinar. Meu filho ficou bravo, falou que ele não podia fazer isso comigo, os
advogados também falaram com ele. Bom, ele ficou calado na frente do juiz,
mas assinou!! Nossa, parece que eu tinha tirado um peso das costas.
303
- Eu lia muito também. Eu percebi (minha homossexualidade) bem cedo, com
sete anos. Aí com 14, eu já sabia: É isso que eu vou ser, é isso que eu quero.
- Antes de você perceber que você é diferente, você precisa primeiro trabalhar o
seu lado interior. Não adianta eu falar, se por dentro eu não estou resolvido.
Eu trabalhei bem o lado interior. Eu era criança, mas eu lia muita revista de
adulto. Desde pequeno, eu já tinha, assim, interesse pela leitura. Só que a
criança não vê diferença entre revista de adulto ou de criança, qualquer coisa
que eu pegava, eu lia. E, uma revista que me ajudou muito nessa questão foi a
revista Nova (Ed. Abril). Eu tinha uma tia, irmã do meu pai, que assinava essa
revista e, toda vez que eu ia lá, eu ficava lendo. Só que na idade que eu tinha,
lembro que minha mãe falava para mim: Essa revista não é para você, não! Essa
revista não é para a sua idade!
- Bom, a gente não sofre tanto (no Japão), mas quando você vê que a pessoa tem
preconceito e, você percebe que você é diferente... Eu não tenho essa coisa de se
esconder, não. Já falo: O que foi? Te incomoda? Eu não me irrito, ao contrário,
eu devolvo a pergunta.
304
irmãos: mais maduro para sua idade, mais vivido e, talvez por isso
mais aberto a coisas novas. Enquanto ele relembra essa conversa,
vai concluindo fatos a partir do discurso do outro: “se ele me
comparou com meus irmãos, é porque já os conhecia antes de mim”.
305
Considerações
306
certa forma, a força real dos acontecimentos descritos e, isso
proporciona um olhar deles próprios como narradores de suas
histórias, portanto, seus relatos estão imbuídos de certo sentimento
de juízo de valor que só é possível de acontecer porque o fato em si
já está no passado; (2) na condição de serem, como se pode dizer,
uma terceira pessoa narrando sobre fatos e comportamentos que
eles próprios vivenciaram na primeira pessoa, muitas das
descobertas, sensações ou percepções, podem ser acometidas no
aqui/agora da narração, e também isso pode ser surpreendente
para quem conta a sua própria história.
Referências
307
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo:
Centauro, 2003.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de
Janeiro: DP&A, 2006.
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais.
Belo Horizonte: UFMG, 2009.
MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES DO BRASIL.
Estimativas populacionais das comunidades brasileiras no
mundo 2013. Disponível em: www.brasileirosnomundo.
itamaraty.gov.br/a-comunidade/estimativas-populacionais-das-
comunidades. Acesso em 03 fev. 2015.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos
lugares. Projeto História, São Paulo, n. 10, dez. 1993. p. 7-28.
SAKURAI, Célia. Os Japoneses. São Paulo: Contexto, 2008.
SUZUKI, Helen E. N. A telenovela e a produção de sentidos de
identidade brasileira no discurso de imigrantes brasileiros no
Japão. Dissertação (Mestrado em Ciências da Comunicação)
ECA/USP. São Paulo, 2014.
308
Telenovela, imigração e alteridade:
estratégias discursivas do olhar sobre o estrangeiro
Luciano Teixeira
309
previamente estabelecidos, buscando traços dentro de uma
identidade cultural sob uma determinada representação.
Entre os elementos do gênero melodramático (MARTIN-
BARBERO, 1997) presentes na telenovela, destacamos a
prevalência da busca pelo amor romântico (GIDDENS, 1993) e plots
marcados por tramas e situações de forte apelo emocional (famílias
desfeitas por contingências sócio históricas, ação de vilões e
também histórias de superação), além da construção de vilões e
mocinhos sem ambivalências. Esses elementos melodramáticos
constroem-se discursivamente não apenas por meio da longa
serialidade característica da telenovela, mas também por meio de
tramas e discussões fortemente marcadas por sua proximidade
com o cotidiano (MOTTER, 2000-2001) conforme discutiremos ao
longo desse trabalho.
Interessa-nos analisar, para além do fio melodramático que
tece a trama ficcional, a construção do discurso sobre o imigrante e
a relação com o povo brasileiro no gênero teledramatúrgico como
lugar de memória (MOTTER, 2000-2001) e espaço de construção de
significação e sentidos de nacionalidades (LOPES, 2009).
Ao focarmos a telenovela Órfãos da Terra, procuramos analisá-
la com base nas mediações discutidas por Martín-Barbero (1997, p.
304), como “lugares dos quais provêm as construções que
delimitam e configuram a materialidade social e a expressividade
cultural da televisão”.
A questão da imigração ou de apelo à temática de culturas
estrangeiras está presente na ficção televisiva brasileira desde a
década de 1960 nas telenovelas da Rede Globo e tem papel
importante dentro de um estilo de narração e estética que marca a
telenovela no Brasil.
Ao abordarmos Órfãos da Terra, queremos contextualizá-la no
quadro comparativo de outras obras ficcionais brasileiras
produzidas pela TV Globo. Nossa opção pela emissora carioca tem
relação com a regularidade das telenovelas inseridas em uma grade
de programação estruturada a partir da década de 1970, com três
310
produções constantes no chamado horário nobre da TV brasileira,
algo que persiste até hoje.
Nos primeiros 20 anos do século XXI tivemos 7 produções que
trataram da questão do imigrante e/ou culturas estrangeiras, a
maior parte no horário das 21 horas (Esperança - de Benedito Ruy
Barbosa e Walcyr Carrasco - O Clone, América, Caminho das Índias e
Salve Jorge – de Glória Perez) e duas no horário das 18 horas (Sol
Nascente – de Walther Negrão, Júlio Fischer e Suzana Pires - e Órfãos
da Terra – de Thelma Guedes e Duca Rachid).
311
referencial se desenvolvem desde as mais comezinhas conversas
cotidianas até as grandes discussões, nas relações face a face, nas que
envolvem grandes interesses nacionais, campos especializados e
sujeitos a diferentes mediações (MOTTER, 2004, p.264).
312
Órfãos da Terra traz para a ficção em suas tramas e subtramas
diversos acontecimentos divulgados pela imprensa. Esses fatos
foram incorporados e reconstruídos no roteiro do ambiente
ficcional. São temas atuais e importantes como a compra de
mulheres refugiadas por homens mais velhos; os grandes
contingentes de pessoas caminhando em busca de um país que as
acolhesse; a tentativa de ultrapassar a fronteira e a busca por um
destino definitivo depois de chegarem ao campo de refugiados.
Muitas referências (reportagens jornalísticas relatando fatos
da vida real que inspiraram as autoras) se fizeram presentes em
Órfãos da Terra desde a concepção da sinopse à construção
discursiva de cenas. Um exemplo dessa construção pode ser visto
no primeiro capítulo, quando Elias e sua família deixam a cidade
fictícia de Fardús a caminho de Beirute, no Líbano, e em novo
deslocamento da família rumo à Grécia. Essa travessia foi e ainda é
amplamente divulgada em coberturas da imprensa nacional e
internacional como uma das consequências nefastas da guerra no
país do Oriente Médio.
Essa perspectiva interdiscursiva também pode ser observada
em entrevistas das autoras da telenovela que mencionam que, ao
verem uma reportagem na televisão, identificaram o fio narrativo
que daria início à trama e se configuraria como o principal
empecilho à realização do amor entre Laila e Jamil, os personagens
principais e que conduzem a trama. Rachid (2019) afirma: “a
grande inspiração veio quando assistimos a uma matéria sobre
meninas que viviam em campos de refugiados e que eram
compradas por homens mais velhos para se casarem. Identificamos
aí uma história, um potencial de narrativa folhetinesca” (RACHID
apud JEBAILI, 2019, p. 90).
Nesse sentido, cabe enfatizar, juntamente com Motter (2004, p.
251), que a telenovela brasileira apresenta “plasticidade para
incorporar elementos de outros gêneros ficcionais e não-ficcionais,
além de incorporar elementos da realidade que lhe garantem
manutenção de intenso diálogo com o cotidiano concreto do país”.
Incorpora “elementos de diversos sistemas semióticos (...) e se
313
firma como documento histórico, lugar de memória (...)”
(MOTTER, 2004, p. 252).
No caso de Órfãos da Terra, podemos reconhecer referências
muito próximas da realidade concreta e que vão além do
cumprimento da premissa da verossimilhança (MOTTER, 2003;
MUNGIOLI, 2012) constituinte dos gêneros ficcionais. Motter
(2003, p. 74) reconhece na telenovela o “nutriente de maior potência
do imaginário nacional”, algo que nos possibilita entender a
“construção da realidade, num processo permanente em que ficção
e realidade se nutrem uma da outra, ambas se modificam, dando
origem a novas realidades, que alimentarão outras ficções, que
produzirão novas realidades”. Assim, são dois mundos que
estabelecem entre si um diálogo: um dito “real” e o outro
“ficcional”, algo que é visto no caso da novela Órfãos da Terra.
Na trama da telenovela temos a presença de elementos do
melodrama: a questão familiar e o amor romântico configuram-se,
a partir de sua centralidade, como condutores da ação e motivação
dos conflitos que movimentam as trajetórias dos protagonistas
frente às ações de vilões que tentam impedir a todo custo a
realização desse amor.
Embora a condução do plot com base nos elementos
melodramáticos se configure como uma das principais
características dessa telenovela, optamos por abordar a questão da
alteridade - inserindo a trama no quadro das narrativas sobre
imigrantes/culturas estrangeiras produzidas pela televisão
brasileira no século XXI.
No levantamento das outras temáticas presentes nas
telenovelas que abordaram imigração e diferentes culturas (Tabela
1) verificamos a discussão de questões ligadas à cultura árabe em
mais de uma telenovela, além de temas como clonagem,
dependência química, movimento operário, América Latina,
cultura indiana, tráfico de mulheres e situação de guerra e refúgio,
entre outros.
314
Quadro 1 - Temáticas de telenovelas sobre imigração no século XXI
TÍTULO EXIBIÇÃO/ QUESTÕES TEMÁTICAS DA
CAPÍTULO SOBRE TELENOVELA
ALTERIDADE
O Clone2 1/10/2001 a Brasil vs. Marrocos Clonagem humana
14/06/2002 Diferenças entre a Dependência química
cultura árabe/
221 cap. muçulmana e a
brasileira
Poligamia
Esperan- 17/06/2002 Brasil/Itália/Europa São Paulo dos anos
ça3 a Imigração de 1930
15/02/2003 italianos, judeus, Industrialização
espanhóis e Formação do
209 cap. portugueses movimento operário
Revolução de 32
Discussões políticas e
trabalhistas
Mão de obra feminina
Luta pela terra
Alfabetização
América4 14/03/2005 Brasil/EUA/Améric Imigração de
a a Latina brasileiros para os
05/11/2005 Diferenças entre EUA.
brasileiros, Homossexualidade
203 cap. americanos e outros Infidelidade
povos Convenções sociais
latinoamericanos. Religiosidade
Diversidade/pessoas
com deficiência
(cegueira)
em 01/08/2022.
4 Ver: https://memoriaglobo.globo.com/entretenimento/novelas/america/ Acesso
em 01/08/2022.
315
Caminho 19/01/2009 Brasil vs. Índia Desobediência às
das a Cultura indiana em tradições
Índias5 11/09/2009 contraponto com Sociedade de castas
costumes brasileiros Esquizofrenia
203 cap. Infidelidade
Futilidade
Educação dos filhos
Salve 22/10/2012 Brasil/Turquia/Euro Pacificação das
Jorge6 a pa comunidades cariocas
17/05/2013 Imigração de Papel da mulher na
brasileiros e tráfico sociedade
179 cap. de mulheres Homossexualidade
Rio de Janeiro: feminina
favela x asfalto Roubo de crianças
Sol 29/08/2016 Brasil/Japão/Itália História de dois
Nascente7 a Diferenças entre a amigos vindos de
21/03/2017 cultura origens diferentes
japonesa/brasileira/
175 cap. europeia
5 Ver: https://memoriaglobo.globo.com/entretenimento/novelas/caminho-das-
indias/ Acesso em 01/08/2022.
6 Ver: https://memoriaglobo.globo.com/entretenimento/novelas/salve-jorge/
Acesso em 01/08/2022.
7 Ver: http://gshow.globo.com/novelas/sol-nascente/ Acesso em 01/08/2020.
8 Ver: https://memoriaglobo.globo.com/entretenimento/novelas/orfaos-da-terra/
Acesso em 01/08/2022.
316
Ao analisarmos as temáticas presentes nas telenovelas
observamos que a discussão de questões sobre alteridade fica por
conta, na maior parte, das diferenças culturais e do papel do
homem e da mulher nas diferentes sociedades retratadas. Há o “lá
e o aqui”, o que também reforça essa diferenciação entre quem é o
outro e o que somos. Acreditamos que esse recurso de reforçar
diferenças é uma tentativa de tornar o entendimento sobre outra
cultura palatável para o telespectador brasileiro. Essa forma de
construção da trama e do enredo é algo já recorrente e perpassa as
obras ficcionais de diferentes autores, como uma espécie de
“manual do como fazer”: um contrato firmado, uma relação com o
telespectador que já viu outras telenovelas sobre imigração e possui
um repertório esperado de entendimento deste tipo de telenovela
que aborda o estrangeiro.
Ao mesmo tempo, a telenovela brasileira abre espaço para a
discussão de outros temas de atualidade, uma forma de
engajamento do público e de reforço da verossimilhança
(MUNGIOLI, 2012) na história. Assim, temos inúmeros assuntos
abordados que são de interesse de discussão com o público, como
dependência química, esquizofrenia, roubo de crianças, feminismo,
laços familiares, homossexualidade, internet, dentre tantos outros
que estão presentes na sociedade e que alavancam o público para a
telenovela, gerando engajamento à trama. São questões e temáticas
que marcam o jeito de fazer a telenovela brasileira.
317
discurso – percurso narrativo, estética e expressão no geral”
(MAURO, 2019, p.30).
Hall (2016) fala em dois tipos de representações: (1) como o ato
de retratar algo por descrição ou imaginação (algo importante no
processo de construção das personagens) e outro (2) como simbologia,
amostra ou substituto. A imposição de um poder na sociedade,
segundo o autor, tem estreita relação com essas representações sociais,
algo simbólico que envolve dominadores e dominados.
Segundo Campos (2007), no drama esses personagens são
definidos “principalmente através dos seus jogos de ações” (p.112).
Ao escolher um personagem principal, o autor pode estabelecer
“uma referência a partir da qual a narrativa será composta e, mais
tarde, recebida pelo espectador - e, assim, dar unidade e facilitar
composição e recepção” (p. 116).
Consideramos estes conceitos para analisarmos o discurso da
telenovela de construção de uma alteridade e sua relação dialógica
com as representações sociais e a midiatização, algo que para
Charaudeau (2012, p. 25) é realizado também a partir das
“condições semiológicas da produção - aquelas que presidem à
própria realização do produto midiático (...)” e que abrangem a
relação entre o externo-interno, ou seja, o discurso encontra-se, ele
próprio, “pensado e justificado por discursos de representação
sobre o como fazer e em função de qual visada (...)”.
Para analisarmos a questão da alteridade na ficção seriada e a
construção do discurso de um eu e de um outro nos processos
comunicacionais, gostaríamos de fazer uma breve análise das
origens recentes da questão da alteridade no campo da filosofia,
história, da relação entre pensamento, linguagem e ciências sociais.
A palavra alteridade tem origem do latim alter – o outro – e é
exatamente essa análise que nos interessa: a condição do
estrangeiro, do diferente ou do considerado pela sociedade como
exótico. A discussão da questão do eu e do outro remonta aos
estudos de Martin Buber e Emmanuel Levinas, que criaram a
filosofia da alteridade, buscando a questão da intersubjetividade
em seus estudos.
318
Todorov contribui com a discussão da alteridade no campo da
história, ao analisar em “A Conquista da América: a questão do
outro” a intersubjetividade dos colonizadores espanhóis em seu
momento de conquista de territórios, em que milhões de indígenas
foram subjugados e mortos. Para Todorov (1993, p.154) “a pedra de
toque da alteridade não é o tu presente e próximo, mas o ele ausente
ou afastado”.
Duschatzky e Skliar (2001) analisam a alteridade, entre outros
pontos de vista e discussões, como fonte de todo mal, de
demonização do outro que pensa diferente e por isso precisa ser
eliminado, “ausentado”, numa estratégia de (in) visibilidade social,
de inclusão ou exclusão do lugar de fala. Assim, dentro desse
contexto de análise, o diferente só pode ocupar um lugar marginal.
319
dentro do mundo da cultura, provoca mudanças e contribui para a
formação do “eu”. Assim, a linguagem acaba funcionando como
um veículo, um sistema de mediação que vai modular essa relação
de alteridade. “A partir das generalizações primitivas, o
pensamento verbal eleva-se ao nível dos conceitos mais abstratos.
Não é simplesmente o conteúdo de uma palavra que se altera, mas
o modo pelo qual a realidade é generalizada e refletida em uma
palavra” (p. 105).
A discussão da alteridade é uma questão basilar para os
autores do Círculo de Bakhtin e está presente em vários momentos.
Destacamos aqui o exemplo presente na “arquitetônica do mundo
da vida”. Bakhtin (2010) defende que o eu, traduzido como um ser
ativo e participante, dialoga com o outro de maneira responsável,
ativa e criativa e essa relação se insere na vida e na cultura.
320
do mundo concreto, estabelecido e vivido dentro do mundo de
valores desse eu e desse outro em três dimensões: eu para mim, eu
para o outro e o outro para mim (BAKHTIN, 2010).
Outro debate que traz luz à questão da alteridade em Bakhtin
é a sua análise em “Reformulação do livro sobre Dostoievski", onde
ele analisa (2003) a tomada de consciência desse eu com a revelação
para o outro, através e com o auxílio desse outro.
321
O autor também busca definir a questão da alteridade
geográfica, aquela que é:
322
semelhança do mundo real é reproduzido na obra literária - e da
relação com o real, Mungioli (2012) afirma que a ficção não está
baseada ou fundada na imitação da realidade, mas sobre o
princípio da verossimilhança, de uma realidade possível, da
criação de um mundo ficcional que se molda sobre as relações
simbólicas construídas socialmente.
A narrativa de Órfãos da Terra trabalha essa construção social e
ressalta ainda a construção da diferença e a questão identitária,
questões analisadas por Kathryn Woodward (2000), Hall (2006) e
Bhabha (1998). Woodward defende que o jogo de oposições -
baseado na interação social que demarca o próximo e o distante,
suas fronteiras e oposições, molda a identidade “ao dar sentido à
experiência e ao tornar possível optar, entre as várias identidades
possíveis, por um modo específico de subjetividade”
(WOODWARD, 2000, p.18-19). Segundo a autora, essa demarcação
da diferença é construída com a determinação de juízos de valor,
disputas de poder e inserção de polos opostos.
323
própria, articulando a heterogeneidade de sua população (BHABHA,
1998, p.209).
324
tiveram que abandonar seus países, que entendem o que é deixar
sua nação para reconstruir a vida em outro lugar, num outro
modelo cultural, com novos e velhos valores. Como já dissemos
anteriormente, muitas das cenas da trama reproduzem, direta ou
indiretamente, fatos vividos por refugiados, mostrados e relatados
pelo jornalismo diário e reconstruídos em ambiente ficcional.
Considerações
325
televisão brasileira no século XXI, contrapôs Brasil e Síria, mostrou
diferenças culturais e semelhanças entre os dois países.
Conforme nossa análise, a telenovela ampliou a visibilidade de
imagens e histórias de imigrantes e refugiados amplamente
divulgadas na imprensa de maneira geral, na medida em que,
como enfatiza Motter (2003, p. 260), situa e contextualiza a trama e
os personagens “no espaço da individualidade, da afetividade, das
inter-relações sociais, do político, do ético e, enfim, do humano”.
Uma história contada na televisão que ajudou a mudar a
percepção de muitos brasileiros sobre os sírios e a cultura árabe.
Tais evidências concretizam-se tanto na fala das autoras como nos
dados disponibilizados pelo Caderno Globo9, segundo os quais, 57%
das pessoas que assistem à telenovela declararam ter mudado de
opinião em relação aos refugiados (JEBAILI, 2019). Pode-se dizer
que, por meio da teledramaturgia, ocorreu produção de sentidos
acerca de refugiados em razão do tratamento dispensado pela
trama. Desse total, 92% dos entrevistados consideraram o assunto
extremamente relevante, 76% passaram a se interessar mais pela
questão, 88% se sensibilizaram com o drama dos refugiados e 41%
ampliaram o conhecimento sobre o tema.
De acordo com os resultados dessa mesma pesquisa, muitas
pessoas revelaram que, anteriormente à telenovela, tinham medo
de quem usava lenço na cabeça e que passaram a olhar para essas
pessoas de uma outra forma. Outras se interessaram em dar aula
para refugiados, contrapondo a visão vigente não só no Brasil, mas
em boa parte do mundo - de que os refugiados vieram para
“ocupar” o lugar de brasileiros no mercado de trabalho.
Concluímos que o gênero melodramático confere à história
não apenas o caráter emocional necessário a uma telenovela, mas
também a densidade das relações humanas, além de redimensionar
as perdas e os ganhos de pessoas em situações extremas. Tal
construção denota a intencionalidade de misturar o factual e o real
9 http://estatico.redeglobo.globo.com/2019/08/26/caderno_globo_deslocamentos
_e_refgios.pdf
326
ao ficcional e diferentes tipos de alteridade, produzindo sentidos e
ampliando possibilidades de compreensão de outras realidades.
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327
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329
330
O Cronotopo e o Homem na série Segunda Chamada
Gabriela Torres1
331
formato/gênero seriado com parâmetros próprios e “dentro de um
quadro complexo de interpretação do texto televisual, ou seja,
dentro de um quadro que levasse em conta a materialidade do texto
(histórica, social, composicional), as condições de produção, o
sujeito do discurso” (p. 23). Mittell (2012) destaca a complexidade
narrativa, surgida nas últimas décadas, pela hibridização das
formas clássicas seriadas (a episódica e a contínua2) dando lugar a
uma linguagem própria desse produto audiovisual. De acordo com
Malcher (2001, p. 4) a narrativa ficcional “se configura em um
modelo de significação que trabalha constantemente no sentido de
produzir coerência no assunto, a partir da heterogeneidade de
efeitos que são mobilizados e estruturados” . Para além de se
conformar em produto a ser consumido, a narrativa ficcional
seriada promove uma significação própria, daí a importância
crescente de seu estudo e compreensão.
Embora ainda não exista uma posição conclusiva no campo
Comunicacional no que diz respeito ao gênero da narrativa
ficcional, talvez por sua recente existência e por apresentar
mudanças em sua produção e consumo. Produtos audiovisuais
seriados ainda se utilizam do formato episódicos convencionais e
de arcos narrativos episódicos, porém experimentações não
convencionais vêm se construindo no intuito de cativar um público
cada vez mais participativo e fiel e se fazer competitivo nos
mercados locais e internacionais. Mittell afirma que “(...) as
discussões ressaltam a complexidade narrativa crescente e o
experimento de novos parâmetros, acredito que a televisão dos
últimos 20 anos será lembrada como uma era de experimentação e
inovação narrativa, desafiando as regras do que pode ser feito
nesse meio” (2012, p. 31).
332
Segundo Machado (1995), ao lançar luzes sobre elementos do
romance, generalidades filosóficas e sociais, racionalidades,
relações de causa e efeito que gravitam em torno das apreensões do
tempo e do espaço, e sobre o momento histórico no qual a narrativa
está inserida, o cronotopo torna perceptíveis especificidades das
condições reais e históricas e também individuais e sociais da obra.
Dessa forma, gêneros narrativos como romance de aventura,
biografia, epopeia, romance rabelaisiano representam para Bakhtin
formas de assimilação do tempo e de espaços históricos numa
particular dinâmica social. Em que pese as séries audiovisuais
serem construídas a partir de uma narrativa, acreditamos ser
possível realizar leitura dessas obras a partir dessa perspectiva
bakhtiniana, “A linguagem é essencialmente cronotópica como um
acervo de imagens” (BAKHTIN, 2018, p. 227). Compreender a
narrativa ficcional seriada sob a égide do cronotopo pode
contribuir para o amadurecimento do olhar sobre esse objeto.
No presente artigo partiremos das análises bakhtinianas do
cronotopo nos romances grego, aventuresco de costumes e de
cavalaria. Deixaremos de lado o romance antigo autobiográfico e o
romance rabelaisiano por compreendermos que o primeiro por sua
natureza foge em demasia do formato do romance ficcional seriado
analisado na atualidade e o segundo parte de uma proposta
fantástico realista que também se distancia do tipo de narrativa que
pretendemos estudar, mais próxima de uma proposta realista, de
verossimilhança, como é o caso de Segunda Chamada. A série, que
possui duas temporadas, fala sobre a rotina noturna de uma escola
voltada à educação de jovens e adultos de uma cidade grande, suas
dificuldades e vicissitudes. O tom realista da obra beira muitas
vezes a denúncia de uma realidade dura tanto educacional quanto
social, na qual pessoas que se encontram à margem da sociedade
lutam para sobreviver e enfrentam os mais variados desafios. Antes
de falarmos desta série lançada em 2019, contudo, é preciso lançar
um olhar sobre as concepções bakhtinianas de tempo e espaço nas
narrativas ficcionais.
333
O cronotopo no romance grego
334
pelo abstrato vínculo técnico do espaço e do tempo, pela
reversibilidade dos elementos da série temporal e por sua
mobilidade no espaço” (BAKHTIN, 2018, p. 32). O espaço da ação
do herói (floresta, deserto, montanha, mar) é, então, desvinculado
de qualquer contexto histórico ou cultural, sem conexão de forma
substancial a especificidades de uma região ou de determinada
cultura. Os lugares aparecem no enredo da aventura “como uma
extensividade vazia e abstrata” (idem, p. 32), pois qualquer
concretização limitaria o poder do acaso, restringindo as
possibilidades da aventura. É, pois, a junção dessa abstração do
tempo e do espaço - ausência de caracterização das peculiaridades
de determinado lugar ou região – que tornam possíveis as várias
aventuras intempestivas e sem vínculos.
3Importante esta ressalva do autor para que não confundamos o romance grego
com o da mitologia grega, uma vez que esta última possui densidade cronotópica,
335
interna que transforma os motivos do romance grego removendo
densidade e profundidade, desvinculando o contexto, a paisagem,
a cultura em prol do enredo da aventura.
336
potencialidades de formação, crescimento e mudança” (BAKHTIN,
2018, p. 44 – 45).
337
diversas situações por que passa; e, por fim, atinge o renascimento
ou restabelecimento, quando o protagonista volta à forma humana,
porém um humano bem diferente do que antes fora. Segundo
Bakhtin, o tempo aventuresco também se caracteriza por ser o
tempo dos acontecimentos excepcionais e o tempo da
simultaneidade casual e da simultaneidade de tempos.
Os acontecimentos não são de cunho externo, antes definem a
vida do herói, fazem parte de sua transformação enquanto ser;
logo, diferentemente do tempo no romance grego, esse tempo deixa
profundas impressões no protagonista e em toda a sua vida. Apesar
da forte influência mitológica ou teológica, o homem
representando no romance aventuresco de costumes revela um
caráter privado e isolado, pois sua transformação parte do caráter
individual e permanece nele. A responsabilidade pelo processo de
transformação, ainda que não desejado, é sua, assim como a
redenção ao final do romance4. O cenário externo e demais
personagens permanecem estáticos, sem alteração. “O homem
muda, sofre uma metamorfose de modo absolutamente
independente do mundo; o próprio mundo permanece imutável.
Por essa razão, a metamorfose é de caráter privado e não criador”
(BAKHTIN, 2018, p. 57 – 58).
Já o espaço é concreto e substancial, pois seu sentido é
completado pelo sentido da relação do herói com o seu destino.
Durante o encontro, o embate, a separação, a fuga, o protagonista
luta com ele mesmo e atravessa a estrada da vida rumo ao seu
amadurecimento e ao seu destino final. “O deslocamento do
homem no espaço e suas errâncias perdem aqui aquele caráter
técnico-abstrato da combinação das determinações de espaço e
tempo (proximidade – distância, simultaneidade –
heterotemporalidade) que observamos no romance grego” (idem,
338
p. 59). Por fim, Bakhtin destaca o aspecto cotidiano, da vida privada
relatado no romance aventuresco de costumes. O protagonista é
testemunha das agruras e dos segredos alheios, ele mesmo, porém,
relaciona-se de forma distante e inadaptada com esse dia-a-dia.
339
âmbito de certas aventuras, é assimilado de modo diferente”
(BAKHTIN, 2018, p. 55).
Enquanto no romance grego o tempo aventuresco é
tecnicamente verossímil, um dia é igual a um dia, uma hora
transcorre em 60 minutos; no romance de cavalaria tem lugar a
subjetividade do tempo na qual minutos se alongam ou dias que se
reduzem a instantes. Fazem-se presentes a noção de
simultaneidade e as distorções temporais a partir da perspectiva do
sonho, de visões ou de algum encantamento. “De modo geral,
surge no romance de cavalaria um jogo subjetivo com o tempo, seus
alongamentos e encolhimentos lírico-emocionais (além das
referidas deformações fabulares e oníricas), o desaparecimento de
episódios inteiros como se não tivessem existido (BAKHTIN, 2018,
p. 103–104). O interesse pelo cotidiano, pela vida privada e por
questões de ordem íntima ganha relevo. Entretanto, a concepção de
tempo associado a essa vida privada que se aproxima do cotidiano
no romance de cavalaria não segue a compreensão cíclica do tempo
agrário - entrelaçado ao ritmo da natureza e dos mitos.
Já no romance de cavalaria esse tempo cíclico não se repete,
está deslocado da natureza e fracionado em segmentos que
abrangem episódios da vida cotidiana. Esses episódios são
perpendiculares à narrativa basilar e apresentam vestígios do
tempo histórico. O deslocamento do herói no espaço perde o
caráter técnico-abstrato e se torna concreto e pleno de um tempo
vital, não só vive acontecimentos excepcionais, mas também
adentra no cotidiano, na vida pública e privada. “O espaço é
completado por um sentido vital real e ganha uma relação
substancial com o herói e seu destino. Esse cronotopo é tão
saturado que elementos como o encontro, a separação, o choque, a
fuga, etc. ganham nele uma importância cronotópica bem mais
concreta” (idem, p. 59).
Com essa breve explanação sobre os três tipos de romances
examinados por Bakhtin e a visão cronotópica de construção da
trama e do herói, acreditamos que podemos pensar a estrutura
narrativa da ficção seriada audiovisual, respeitando as
340
especificidades dos meios e os formatos analisados. Assim,
debruçamo-nos sobre a questão de como seria possível enxergar a
narrativa ficcional seriada a partir do cronotopo bakhtiniano tendo
como objeto empírico a série Segunda Chamada.
341
“móveis” que ganham mais ou menos força na trama, os alunos e
às vezes familiares. Chama a atenção perfil o multifacetado do
universo discente (motoboy, ex-presidiária, prostituta, playboy,
evangélico, imigrante venezuelano, indígena, dona de casa
católica, travesti, traficante, sem teto etc.), constituindo uma espécie
de painel social de pessoas que muitas vezes vivem à margem da
sociedade e de suas instituições. Todos convivendo ou aprendendo
a conviver no mesmo espaço educacional, no período noturno do
Ensino de Jovens e Adultos (EJA).
O caráter contraditório, demasiado humano e, por vezes,
ambíguo dos personagens em Segunda Chamada não permite uma
definição de herói isento de defeitos e dificuldades internas. Os
professores, mesmo desempenhando papel de liderança e erigindo
soluções para eventuais adversidades, revelam dificuldades e
dramas internos7 que os colocam em contradição. São personagens
redondas cujas camadas se mostram à medida que a história
avança. Apesar das falhas e limitações que apresentam, podem ser
caracterizados como envolvidos e compromissados com a escola e
empenhados a ajudar o próximo e são essas as características que
mobilizam a essência da série, criando um ambiente propício para
resolução de conflitos, aceitação e acolhimento.
Ocorre em um único episódio o desenrolar de mais de uma
história que tem seu desfecho no próprio episódio. Essa
simultaneidade entre dois ou mais enredos narrativos é garantido
pelos cortes de cenas e retomadas às situações, numa costura entre
as diferentes temáticas. A série também traz arcos narrativos que
onde sua mãe biológica nasceu e mora, talvez numa tentativa de conhecê-la; ou
como a professora de História, Sônia, que tenta colocar fim ao casamento abusivo
e ao mesmo tempo lidar com sua própria dependência química; há também a
professora de Português, Lúcia, que busca entender as circunstâncias que
envolvem a morte do seu filho. Estes são alguns exemplos dos dramas pessoais
que afetam esses personagens e põem movimento às tramas narrativas.
342
perpassam vários episódios, como na primeira temporada o
mistério acerca da morte de Marcelo (Artur Volpi), filho da
professora Lúcia (Débora Bloch), que se estende ao longo dos dez
episódios da primeira temporada, com a inserção de inúmeros
flashbacks e a interferências nas narrativas do presente diegético,
imbricam-se a outros enredos entrelaçando toda a trama. O
desenvolvimento desse arco narrativo implica outros arcos da
trama construindo uma narrativa complexa que se desdobra e se
aprofunda a cada episódio, promovendo intersecções e motivações
que movem a narrativa adiante. Uma dessas intersecções é o
relacionamento extraconjugal entre Lúcia e Jaci (Paulo Gorgulho),
diretor da escola, que avança por vários episódios com
repercussões, porém com um fio narrativo linear.
Na segunda temporada, lançada em setembro de 2021 com
apenas seis episódios por conta da Pandemia da Covid 19, a
ampliação do arco narrativo ganha relevo. A inserção de discentes
sem teto na escola, as adaptações e os conflitos que permeiam esse
processo e a vida amorosa e pessoal dos professores dão a tônica a
arcos narrativos que atravessam os episódios e mesmo as
temporadas, geram suspense e curiosidade no telespectador, ao
mesmo tempo em que ajudam a costurar os episódios entre as duas
temporadas. Como mencionamos acima, essas histórias que vão
sendo destrinchadas capítulo a capítulo, perpassando os arcos
episódicos, contribuem para a construção cumulativa8 de mais de
uma camada narrativa, gerando uma narrativa complexa, a qual
Mittell resume da seguinte forma:
343
é uma redefinição de formas episódicas sob a influência da narração
em série – não é necessariamente uma fusão completa dos formatos
episódicos e seriados, mas um equilíbrio volátil. Recusando a
necessidade de fechamento da trama em cada episódio, que
caracteriza o formato episódico convencional, a complexidade
narrativa privilegia estórias com continuidade e passando por
diversos gêneros (2012, p. 36).
9 Ver matéria da Folha de São Paulo, “Débora Bloch visita escolas e ouve
professores para série da Globo” https://f5.folha.uol.com.br/cinema-e-
series/2019/09/debora-bloch-visita-escolas-e-ouve-
professores-para-serie-da-globo-nao-ha-pais-sem-educacao.shtml). Acessado em
30 de outubro de 2021.
344
A equipe da Globo teve de fazer uma série de reparos na estrutura
do edifício. Mas o aspecto geral de abandono, com infiltrações, vidros
estilhaçados e pichações nas paredes, foi mantido.
“Para mim, foi muito importante deixar a obra o mais próximo possível
da realidade, o que uma locação como esta nos garantiu. Apesar do
abandono, a construção é linda e quisemos aproveitá-la”, afirmou Joana
Jabace, diretora artística da série (Revista Veja, 16/08/19).
10 Ver matéria da Folha de São Paulo “Débora Bloch diz ser revoltante como os que
vivem na rua são ignorados” https://f5.folha.uol.com.br/cinema-e-
series/2021/09/debora-bloch-diz-ser-revoltante-como-os
-que-vivem-na-rua-sao-ignorados.shtml). Acessada em 30 de outubro de 2021.
11 Ver plataforma da Globo REP, Repercutindo Histórias, com mais de 100
345
oposto ao cronotopo do romance grego que se constrói num espaço
abstrato, impreciso e generalista.
O meio, que se constitui no espaço físico e social de onde a
personagem veio e onde se encontra no presente, possui bastante
influência na caracterização dessas personagens e dos dilemas que
enfrentam. Embora marcante, o meio social não se coloca como
fator determinante da conduta do sujeito, visto que a própria série
se estrutura numa proposta de superação ou possibilidade de
mudança das condições apresentadas, ao mesmo tempo em que
constrói uma certa quebra de expectativa em relação ao que se pode
esperar de determinado personagem, numa espécie de crítica a
possíveis estigmas que determinadas categorias sociais ou
situações podem trazer. O meio constitui-se como principal
referência na construção de personagens e no desenvolvimento dos
enredos, porém ao mesmo tempo em que o meio oprime e sufoca,
cabe ao sujeito a decisão sobre seus atos e a responsabilização
acerca de suas decisões e disso também depende a superação da
própria condição desse sujeito. O sujeito, muitas vezes vítima de
um meio injusto, abusivo, excludente encontra na escola
possibilidades de formação, reconhecimento, pertencimento, uma
espécie de tábua de salvação para impulsionamento de sua vida.
346
Intempéries ocorrem na trama, o “acaso” apontado por
Bakhtin como força motriz dos romances grego, aventuresco e de
cavalaria, e em Segunda Chamada servem de mote para superação
ou, a depender do desfecho, podem agravar ou melhorar as
condições dos personagens. Na construção dessa narrativa há uma
busca por determinado rumo, que pode ou não ser atingido e a
escola pública é vista como uma âncora neste processo de
construção de um presente e de um futuro mais satisfatórios. O
meio (o espaço social de origem), em Segunda Chamada, portanto,
não é fator determinante do caráter do personagem nem do seu
futuro, mas o é de sua condição de vida, da falta de formação, da
falta de oportunidade de crescimento, da falta de condição para
disputar em igualdade as perspectivas profissionais, de falta de
amparo social, da falta de estrutura para uma vida decente. É
contra esse cenário que os personagens se debatem num amálgama
entre a tentativa de melhorar de qualidade de vida e de adaptação
a essa realidade que lhes é imposta.
O tempo da narrativa na série, apesar de ser atual, dinâmico e
efêmero, revelador de uma época e de uma sociedade ao mostrar
as cenas do cotidiano de pessoas em sua maioria à margem da
sociedade, apresenta uma perspectiva de futuro na narrativa que
se estrutura no que se espera que essas pessoas se tornem ou no
que se espera que essas pessoas farão a fim de minimizar ou
resolver seus dramas pessoais. Há uma expectativa do que está por
acontecer, uma certa tensão que prende o interesse do espectador,
assim como também uma certa atenção em relação a como
determinado personagem vai se comportar diante de determinada
situação, quais respostas serão dadas, quais escolhas serão
realizadas. Essa projeção do futuro norteia tanto a expectativa do
telespectador, quanto as ações dos personagens que tentam chegar
a um outro lugar – uma mudança de vida, uma ascensão social. É
a projeção desse iminente futuro que constrói o presente em
Segunda Chamada.
Ao mesmo tempo, o passado aparece atrelado à carga
dramática das personagens. Seus erros, sofrimentos, traumas estão
347
no passado, mas devem ser trabalhados no presente para que haja
possibilidade de uma vida melhor no futuro. O homem
representado na narrativa ficcional seriada é contemporâneo ao seu
tempo e carrega um passado o qual, ao mesmo tempo em que pesa,
pode impulsionar uma mudança necessária para um futuro
projetado. Em outra camada de análise é possível entrever que esse
mesmo homem encontra-se em um universo imediatista13 ao se
situar desvinculado do espaço público, pela lacuna de
questionamentos voltados ao social e ao próprio sistema
educacional e à instituição escolar. A narrativa expõe problemas e
dificuldades a serem superadas pelos personagens envolvidos; as
respostas dadas pelos sujeitos, porém, são na grande maioria das
vezes soluções pontuais e restritas ao âmbito do indivíduo afetado
pelo problema. Essa invisibilidade de uma esfera social mais
ampla, de uma esfera pública e de ações coletivas organizadas e
planejadas restringe o sujeito em Segunda Chamada às esferas
íntimas e privadas e a um tempo imediato – o tempo em que os
problemas surgem intempestivamente e os indivíduos precisam
dar conta dessas situações atípicas e conflitantes. Os personagens
se vêem obrigados a buscar soluções, numa espécie de corrida
contra o tempo. Corrida contra um problema que lhes é imposto de
forma inequívoca e diante do qual ocupam posição de
desvantagem, de atraso em relação ao que poderiam ter feito no
sentido de evitar ou de superar esse mesmo problema antes que
houvesse “estourado”. Muito da carga dramática em Segunda
Chamada é decorrente da perspectiva de que o problema enfrentado
348
no momento presente da trama, poderia ter sido evitado ou
superado, se esse mesmo sujeito tivesse tido, no passado, condições
minimamente adequadas.
Essas intempéries correspondem, em certa medida, ao acaso
dos romances grego e de cavalaria e têm início com infortúnios
externos ou com decisões equivocadas tomadas pelos personagens
que os conduzem a situações dramáticas. Como, por exemplo, (no
terceiro capítulo da primeira temporada) quando a gestante vai
para a escola mesmo numa noite de bastante chuva e se envolve
numa discussão religiosa sem prestar atenção a possíveis sinais que
seu corpo estaria dando de entrar em trabalho de parto; ou a
decisão de realizar um aborto a fim de evitar gravidez indesejada
(quinto capítulo da primeira temporada); ou ainda a iniciativa de
tomar drogas estimulantes para realizar uma prova (primeiro
capítulo da primeira temporada). A partir desses acasos ou de
decisões equivocadas têm lugar situações difíceis, por vezes
dramáticas, por que passam os sujeitos (parturiente que dá à luz na
escola por estar ilhada em decorrência dos alagamentos; moça que
passa mal na escola depois de realizar aborto clandestino; aluno
que sofre overdose depois de ingerir drogas para não dormir
durante prova). Essas más escolhas ou situações problemas
correspondem à força motriz do acaso ou das provações por
aventuras que movem romances gregos e medievais. Na série
analisada há ainda situações que mesclam escolhas equivocadas
com fatores externos, extrapolando completamente ao controle do
sujeito, como o caso de ex-presidiária (episódio sete da primeira
temporada) que tenta se inserir na sociedade e na escola, sofrendo
preconceito por parte de possíveis empregadores e de colegas da
escola. Ela errou ao cometer delitos que a levaram à prisão, porém
a dificuldade que enfrenta no momento presente diz respeito a um
forte preconceito social que extrapola o seu controle e vontade.
Na narrativa ficcional seriada as intempéries ocorrem a cada
episódio a fim de acionar os enredos, ou seja, a cada momento um
personagem é colocado em foco e tem seu drama pessoal posto à
tona. Outros sujeitos, geralmente um ou mais docentes, auxiliam e
349
amparam a personagem a lidar com o seu problema, seriam os
heróis modernos com seus inúmeros defeitos e contradições. A
depender do desfecho, esses acasos podem agravar ou melhorar as
condições dos personagens envolvidos. Pode-se afirmar, portanto,
que a série traz um conjunto de personagens que entram e saem
dos holofotes a depender do enredo, assim como um conjunto de
“heróis” e “heroínas” que se envolvem mais ou menos
intensamente em determinadas situações. Entretanto,
diferentemente dos heróis do romance grego passivos e
conformados ao destino, ou dos romances de cavalaria nos quais
os próprios heróis provocavam a aventura pondo-se à prova; os da
nossa época lutam contra as adversidades e tentam construir a vida
num determinado sentido - que parece ser o destino contrário do
determinado pela sociedade (e não mais pelos deuses) dada a sua
condição social e o suporte social que recebem (ou a falta dele). Na
ordenação da narrativa, por conseguinte, há uma busca por
determinado rumo, que pode ou não ser atingido, e a escola pública
é uma espécie de plataforma neste processo de construção de um
presente e de um futuro mais satisfatórios. A escola Carolina Maria
de Jesus caracteriza-se, portanto, como o epicentro do tempo e do
espaço na narrativa.
Considerações
350
aspectos intrínsecos deste ser que vive e atua nas referidas
dimensões do tempo e do espaço ficcionais.
Se no cronotopo do romance grego o tempo nada transforma
e os lugares são abstratos e impessoais e no cronotopo da literatura
aventuresca de cavalaria o tempo constrói-se subjetivamente e o
espaço em nada afeta a subjetividade do herói; nesta série do século
XXI o tempo agrilhoa o sujeito num presentismo que comprime
passado e futuro, levando-o ao imediatismo do aqui e do agora14, e
o espaço social, se não determina por completo sua condição,
desempenha o papel dos deuses ou do acaso lançando sobre o
sujeito os árduos obstáculos do dia a dia sobre com os quais deve
lidar no limite da sobrevivência. O Homem em Segunda Chamada,
talvez na maior parte das ficções seriadas do século XXI, é
destituído de noções de um tempo encadeado e integrado15. O
tempo, contudo, o atinge na tensão entre passado e futuro – o
momento presente no qual tenta ter controle sob sua vida e agir o
mais rápido possível na busca por superar as vicissitudes que se
abatem sobre ele. O tempo que inexoravelmente transcorre marca
os personagens (envelhecem, morrem, perdem a perna, saem da
escola, formam-se concluindo os estudos) e a escola (com seus
problemas de estrutura física e de ordem burocrática). A disposição
da própria narrativa cumulativa traz uma ampliação na trama e,
por vezes, da carga dramática refletindo as marcas desse tempo.
Ao aproximar-se de uma realidade desconhecida do grande
público, do subúrbio da civilidade urbana, da periferia do sistema
capitalista e à margem das estruturas sociais, a narrativa ficcional
busca a familiaridade com sujeitos invisibilizados, evidenciando
351
uma dura realidade e a constituição desequilibrada de nossa
sociedade. Circunscrito à esfera privada e a um tempo imediatista,
ao homem deste milênio cabe o papel de vítima do meio (enquanto
espaço social), perdido na sua solidão, numa solidão a qual este
homem realiza no estar e no agir individualmente. A este homem,
desguarnecido de esfera pública, restam ações descoordenadas,
isoladas e iminentes, sem qualquer integração ou continuidade.
Segunda Chamada reflete este ser humano privado do social, da
coletividade e imerso no imediatismo ao construir sua narrativa
amparada em diferentes situações dramáticas que só se interligam
umas às outras pelo lugar comum a todas que é a escola.
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352
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historias-sobre-o-ensino-noturno-para-jovens-e-adultos.ghtml).
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354
Um estudo do catálogo das séries originais Globoplay no
período de 2018 a 20221
355
sistemas tradicionais de televisão, grupos de comunicação,
incluindo os canais de televisão tradicionais, em diferentes países
passaram a investir em suas próprias plataformas de streaming.
No Brasil, a TV Globo, principal produtora de teleficção e
canal de maior audiência da televisão aberta e TV cabo, lançou, em
2015, o Globoplay, um serviço de vídeo sob demanda por
assinatura. Em janeiro de 2021, o Globoplay contabilizava trinta
milhões de usuários considerando os assinantes da plataforma e os
que tinham acesso ao conteúdo que estava sendo transmitido ao
vivo pela TV Globo (GRATER, 2021). Desde sua criação, o
Globoplay tem investido fortemente tanto em tecnologia quanto na
construção de um catálogo competitivo de programas
(MUNGIOLI; IKEDA; PENNER, 2018).
O conjunto dessas transformações, incluindo os movimentos
de adaptação da televisão tradicional ao contexto da televisão
distribuída pela internet (LOTZ, 2018), incide, como dissemos
anteriormente, em todos os segmentos da cadeia de produção,
distribuição e consumo de televisão e mais amplamente do
audiovisual). Em termos de gêneros e formatos ficcionais, no polo
da produção, as séries despontam como o carro-chefe da ficção em
termos de quantidade em escala internacional, mas sobretudo no
maior produtor de ficção e sede dos mais populares serviços de
streaming: os Estados Unidos. John Landgraf, CEO do canal
estadunidense FX, previa, em agosto de 2022, que o fenômeno por
ele nomeado como Peak TV ocorreria novamente nesse ano quando
se contabilizaria uma produção de 559 séries em língua inglesa
(GOLDBERG, 2022, s/p).
Embora não seja nosso objetivo discutir tal fenômeno,
consideramos importante assinalar que ele proporciona várias
leituras em termos de suas implicações tanto em relação a
estratégias de produção quanto em relação à distribuição de
conteúdos pelas produtoras e emissoras de TV. Além disso, ele nos
ajuda a pensar o contexto internacional da produção de séries. Lotz
(2018, p. 106) destaca que o cenário atual – caracterizado pela
chegada das plataformas de streaming e a abundância de conteúdos
356
- desafia os modelos de televisão até agora conhecidos e demanda
dos canais a cabo e broadcast novas estratégias de produção e
distribuição. Ao mesmo tempo, as plataformas de streaming
necessitam dos conteúdos produzidos pela televisão tradicional
não só para montar seus portfólios, mas também para atrair um
público cativo das séries já apresentadas na televisão e, assim,
aumentar sua base de assinantes. Situação também apontada por
Meimaridis e Quinan (2022). Para alguns críticos, as consequências
da abundância de conteúdos trazem ganhos para os espectadores,
uma vez que o leque de produções se amplia possibilitando o
surgimento de histórias com temas e personagens muito diversos,
que teriam pouca chance de ser produzidas e exibidas na TV em
um cenário com menor concorrência entre os sistemas broadcast,
TV a cabo e plataformas de streaming (FRAMKE, 2019).
O presente artigo utiliza dados colhidos nos projetos Séries
brasileiras de televisão no cenário da internacionalização e da
transnacionalização: um estudo sobre a mediação local na constituição de
formatos e gêneros ficcionais na plataforma Globoplay no período de 2016
a 2020, realizado com apoio do CNPq, e do projeto Um estudo da
plataforma Globoplay no cenário de internacionalização de
gêneros/formatos e de distribuição no período de 2015-2022, e da tese
Séries brasileiras na TV paga e nas plataformas streaming: gêneros,
formatos e temas em um circuito em transformação (IKEDA, 2022)3. No
desenvolvimento do artigo, apresentamos um recorte dessas
pesquisas para análise das séries produzidas e exibidas pela
plataforma Globoplay considerando o atual cenário
internacionalizado de produção de conteúdos e formas de
apropriação dos gêneros e formatos globais. Nesse contexto,
destacamos o processo de cosmopolitização (CHALABY 2005, p.
32). O objetivo é analisar o catálogo de séries originais dessa
plataforma, destacando seus gêneros, formatos e temas. Esses
357
elementos são essenciais para pensar as operações de adaptação e
transformação dos formatos industriais em relação às matrizes das
culturas locais (MARTÍN-BARBERO, 2015), e, ao mesmo tempo,
fornecem pistas para se analisarem as estratégias da plataforma
para dialogar com séries internacionais que compõem os catálogos
de plataformas de streaming globais e que disputam o mercado
interno brasileiro. Com base nos resultados colhidos na análise,
discutimos como o Globoplay tem conseguido aliar a tradição e a
expertise da TV Globo em ficção televisiva para dialogar com um
público não só acostumado a assistir a séries internacionais, mas
com novos hábitos de formas de consumo televisual.
358
como uma propriedade ou função do discurso, é possível examinar
os modos nos quais várias formas de comunicação funcionam para
constituir definições genéricas, significados, e valores dentro de um
contexto histórico particular (MITTELL, 2004, p. 12).
Em nossa pesquisa a questão da internacionalização e
transnacionalização de conteúdos surge como uma vertente para
estudarmos as especificidades das produções brasileiras na
plataforma Globoplay inseridas em um contexto cada vez mais
intenso de globalização de conteúdos com a chegada e
consolidação de serviços de streaming internacionais ao Brasil,
como Netflix, Disney+, Prime Video e HBOMax, apenas para citar
os mais populares em nosso país. Conforme destaca Lotz (2018), os
processos de internacionalização e transnacionalização de
conteúdos televisivos ganharam força e foram “revolucionados”
(LOTZ, 2018) com a chegada das plataformas de streaming com
alcance mundial.
Referindo-se a um contexto mais amplo e não apenas às
plataformas de streaming, Sinclair (2014, p. 63) resume os três
paradigmas propostos por Chalaby (2005) relacionados à
comunicação global: (1) "a internacionalização, ou a comunicação
de nação a nação, como na era dos programas enlatados."; (2) a
globalização que tem início com o uso de tecnologias “capazes de
atravessar fronteiras e distribuir o mesmo conteúdo
eletronicamente para muitas nações, mais ou menos ao mesmo
tempo (...). Esse conteúdo global deve certamente ter a forma
modificada para atender às demandas de diferentes regiões
geolinguísticas” (Sinclair, 2014, p. 63); (3) a transnacionalização,
"um novo estágio em que ocorre um maior ou menor grau de
glocalização: o empréstimo seletivo daquilo que é local e a
adaptação de ideias globais e formas culturais, o que inclui a
comercialização de roteiros e direitos para produzir determinados
formatos." (SINCLAIR, 2014, p. 63).
Chalaby (2005) acrescenta ainda à sua argumentação que o
atual contexto social apresenta um processo de cosmopolitização
que se desenrola no interior da globalização e que envolve a
359
comunicação em seus quatro níveis - o local, o nacional, regional e
o global. Segundo ele, é nesse contexto emergente que a mídia
transnacional se insere,
4No texto original: “The transnational media order belongs to this emerging context,
challenging boundaries, questioning the principles of territoriality and opening up
from within the national media. New media practices and flows are shaping media
spaces with built-in transnational connectivity creating contemporary cultures
pregnant with meanings and experiences." (Chalaby, 2005, p. 32)
360
Em relação à questão da história de produção, destacamos que
o conglomerado Globo tem buscado identificar o portfólio do
Globoplay com toda a história de criação e produção da
teledramaturgia da emissora. Um exemplo dessa estratégia pode
ser observado quando, no catálogo Globoplay, produções próprias
e da TV Globo eram apresentadas sob a rubrica “Do Brasil para
brasileiros”, buscando incorporar à plataforma o capital simbólico
das produções da Globo.
Em termos de pesquisa, o estudo que fundamenta nossas
discussões se caracteriza como uma pesquisa qualitativa do
catálogo das séries originais Globoplay que objetiva identificar
tendências ou recorrências em termos de gêneros, formatos e
temas. O estudo dá sequência aos estudos realizados por Mungioli,
Ikeda e Penner (2018) e Mungioli e Ikeda (2020). Considerando a
tradição da Globo como a maior produtora de ficção para televisão
aberta e paga no país, refletimos sobre eventuais diálogos entre tal
histórico e as séries originais Globoplay. Na análise, observamos a
interdiscursividade que se constrói entre gêneros e formatos
nacionais e internacionais e o diálogo das séries do recorte com as
realidades cotidiana e histórica dos espectadores por meio do
tratamento temático.
361
de infraestrutura de comunicação e incentivo à indústria de
aparelhos de televisão foram decisivas para que a televisão se
tornasse o principal meio de acesso a informações e entretenimento
audiovisual no país, denotando uma política deliberada dos
governos autoritários daquele período.
Em 2011, mesmo ano da chegada da Netflix ao Brasil, a
distribuidora de canais a cabo NET (que tinha a participação do
grupo Globo) e a Globosat lançaram plataformas de vídeo sob
demanda (catch up TV), respectivamente, NOW e Muu
(posteriormente Globosatplay). Em 2012, foi lançado o Globo TV+
(com programação do canal aberto e conteúdos de acervo), extinto
em 2015, com o lançamento do Globo Play (como era grafado o
nome da plataforma), que podia ser acessado pelo computador ou
aplicativo. Inicialmente, abrigava programas já exibidos na Globo
(catch-up TV), incluindo telenovelas e séries, com a possibilidade de
não assinantes assistirem à programação exibida ao vivo na TV
Globo (simulcasting) e a trechos dos programas.
A plataforma passou a antecipar a exibição de programas da
TV Globo em 2016, quando quatro das nove séries do canal
estrearam no Globoplay. Nos anos seguintes, houve diferentes
experiências relativas ao número de episódios disponibilizados e
ao tempo de antecedência em relação às estreias no canal aberto. O
Globoplay também exibiu spin-offs de telenovelas de sucesso
naquele momento (Totalmente Demais, 2015; Haja Coração, 2016;
Liberdade, Liberdade, 2016). Eram webséries disponibilizadas
simultaneamente no portal GShow (gratuito). Em 26 de dezembro
de 2016, os quatro episódios da minissérie Aldo-mais forte que o
mundo foram incluídos na plataforma, nove dias antes da estreia na
televisão (janeiro de 2017) (Pires, 2016). Entre janeiro de 2016 e abril
de 2020, 30 das 41 séries veiculadas na TV Globo foram lançadas
antes no Globoplay (MUNGIOLI, IKEDA; PENNER, 2018;
MUNGIOLI; IKEDA, 2020).
Em 2018, o Globoplay passa por uma transformação mais
profunda em sua proposta e começa construir um portfólio não
apenas com programas da Globo, mas também produções
362
licenciadas, inclusive internacionais. Nesse ano, o Grupo Globo
anunciou uma nova forma de gestão que denominou “Uma Só
Globo”, com a proposta de ser uma mediatech, unindo TV Globo,
Globosat, DGCorp (Diretoria de Gestão Corporativa), Globo.com
e Som Livre (2018-LANÇAMENTO DO PROGRAMA, 2021;
ROSA, 2019).
Além disso, em setembro de 2018 estreou na plataforma Além
da Ilha, primeira das três séries denominadas “Originais
Globoplay” naquele ano como veremos mais adiante.
363
Quadro 1 – Séries originais Globoplay de 2018 a maio de 2022.
Ano Título Episódios Gênero
2018 Além da Ilha 10 Comédia
2018 Assédio 10 Drama
2018 Ilha de Ferro 12 Drama
2019 Shippados 12 Comédia
2019 Aruanas 10 Drama
2019 A Divisão 5 Crime/Drama
Sessão de Terapia (4ª
2019 35 Drama
temporada)
Ilha de Ferro (2ª
2019 10 Drama
temporada)
2019 Eu, a Vó e a Boi 6 Comédia
2020 Arcanjo Renegado 10 Drama/Crime
Todas as Mulheres do
2020 12 Comédia romântica
Mundo
2020 A Divisão (2ª temporada) 5 Crime/Drama
2020 Desalma 10 Drama /Fantasia
2020 As Five 10 Drama
2021 Onde está meu coração 10 Drama
Segunda Chamada (2ª
2021 6 Drama
temporada)
2021 Aruanas 10 Drama
Sessão de terapia (5ª
2021 35 Drama
temporada)
2022 Desalma (2a. temporada) 10 Drama/Sobrenatural
Fonte: as próprias autoras.
364
natureza sexual cometidos contra mulheres pelo médico Roger
Abdelmassih, ocorrido no Brasil entre 1990 e 2000. Em novembro,
estreou Ilha de Ferro (Estúdios Globo), ficção que retrata a vida
profissional e amorosa de trabalhadoras/es de uma plataforma
marítima de petróleo. Em uma estratégia de potencializar um
possível aumento de audiência do Globoplay por meio da televisão
aberta, Assédio e Ilha de Ferro tiveram seus episódios pilotos
exibidos na televisão aberta.
O ano de 2019 teve o dobro de temporadas inéditas de séries
originais em relação ao ano anterior (seis temporadas e cinco títulos
novos): Ilha de Ferro (segunda temporada); as comédias Shippados
(Estúdios Globo); Eu, a Vó e a Boi (Estúdios Globo); e os dramas
Aruanas (Estúdios Globo e Maria Farinha Filmes); A Divisão
(Afroreggae Audiovisual e Hungry Man); e a quarta temporada de
Sessão de Terapia (Moonshot Pictures), cujas três primeiras
temporadas foram exibidas pelo GNT, coprodutor da continuação.
Em 2020 estrearam quatro novos títulos e uma continuação:
Arcanjo Renegado (coprodução Multishow e Afroreggae
Audiovisual), sobre policial justiceiro que age contra o sistema;
Todas as Mulheres do Mundo (Estúdios Globo), adaptação do filme
de 1966, de Domingo de Oliveira; Desalma (Estúdios Globo), trama
sobrenatural; As Five (Estúdios Globo), spin-off da novela Malhação;
e A Divisão (segunda temporada).
Ressalte-se que 2020 foi o primeiro ano da pandemia Covid-
19, que impôs a paralização das produções audiovisuais no Brasil,
com impactos especialmente nas telenovelas, tradicionalmente
gravadas concomitantemente à exibição. A manutenção das
estreias do Globoplay nesse período pode ser justificada pelo fato
de que os programas haviam sido gravados e finalizados.
Em 2021, estrearam as séries: Onde Está Meu Coração (Estúdios
Globo); Segunda Chamada (O2), cuja primeira temporada foi
produzida para a TV Globo, mas que foi lançada com o selo de
“original Globoplay” pela primeira vez; Aruanas (segunda
temporada); e Sessão de Terapia (quinta temporada). Finalmente, em
2022, até maio, quando foi finalizada a coleta para este artigo, o
365
Globoplay havia lançado apenas a segunda temporada de Desalma.
Novamente, podem ser vistos nessa diminuição de produção os
efeitos da pandemia de Covid-19.
A estratégia de Assédio e Ilha de Ferro, que estrearam o episódio
piloto na TV Globo, se repetiu nos anos seguintes em títulos como
Shippados, Aruanas, Arcanjo Renegado, Todas as Mulheres do Mundo e
As Five. Esses títulos foram posteriormente veiculados
integralmente na televisão. Na TV Globo: Assédio, em 2019;
Aruanas, em 2020; Ilha de Ferro, Todas as Mulheres do Mundo; As Five;
e Desalma, em 2021. A última foi exibida na semana do Dia das
Bruxas, embora nessa data não haja uma comemoração tipicamente
brasileira. Em canais pagos do Grupo Globo, em 2020, estrearam
três obras: A Divisão e Além da Ilha, no Multishow, e a quarta
temporada de Sessão de Terapia no GNT. Em 2021, foi a vez de Eu a
Vó e a Boi, estrear no GNT.
Considerações
366
instituições. Esse é tema em Arcanjo Renegado, cujo tratamento
estético e temático pode ser relacionado a dois filmes brasileiros
sobre crimes que alcançaram grande reconhecimento
internacional, Cidade de Deus (O2 Filmes; Globo Filmes, 2002) e
Tropa de Elite (Zazen Produções; The Weinstein Company, 2007).
O primeiro realiza uma observação da violência urbana pela
perspectiva dos criminosos, está em segundo lugar no ranking do
IMDb dos filmes não estadunidenses mais vistos no mundo e foi
indicado ao Oscar e ao Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro
(2004). Já Tropa de Elite, que ganhou o Urso de Ouro (2008), tem o
foco na figura do policial em crise com as corporações
(CARNEIRO, 2020; IKEDA, 2022).
Essas experiências refletem a criação de uma cultura televisual
contemporânea, gerada de contatos culturais transnacionais, da
hibridização do local com o proveniente do cenário globalizado do
consumo cultural mediado pela tecnologia (CHALABY, 2005,
CANCLINI, 2008). Ainda em relação aos dramas, citamos Desalma,
que mistura elementos sobrenaturais e de mistério, gêneros pouco
explorados na tradição televisiva brasileira e da Globo. O cenário
de Desalma é a cidade ficcional de Brígida, no interior de Santa
Catarina, reduto de descendentes de imigrantes ucranianos.
Brígida foi inspirada em Prudentópolis, no Paraná, mas filmada na
Serra Gaúcha, em Antônio Prado e São Francisco de Paula.
Em relação às comédias, foram quatro títulos lançados até
maio de 2022: Além da Ilha (2018); Eu, a Vó e a Boi (2019); Shippados
(2019); e Todas as Mulheres do Mundo (2020). As duas últimas podem
ser classificadas como comédias românticas, pois suas tramas
giram em torno da relação de um casal.
No recorte das comédias, reitera-se o que ocorre no conjunto
das séries originais Globoplay em termos de mediação entre
formatos industriais (globais) e matrizes culturais locais (MARTÍN-
BARBERO, 2015). Por um lado, experimentações em termos de
gêneros e formatos espelham a emergência de uma cultura de
séries internacionais e o intento de concorrer com as produções
brasileiras ofertadas em plataformas internacionais. Exemplos,
367
além das séries de crimes, são séries com elementos de thriller (Ilha
de Ferro e Aruanas) e a aproximação com o terror (Desalma). Por
outro lado, a incorporação de temáticas e ambientação ligadas à
realidade e ao imaginário brasileiros é notável em todos os títulos,
mesmo em Desalma -que agrega um fato demográfico e a cultura
híbrida de uma comunidade no interior do Brasil - ou na quarta
temporada de Sessão de Terapia, cujo original israelense Betipul, teve
apenas duas temporadas e, desde a terceira, conta com episódios
com texto totalmente nacional.
Mas esse diálogo entre o global e o local ocorre em diferentes
níveis, como observado pela referência a fatos da realidade (Assédio
e A Divisão), por temas relacionados a inquietações e interesses
atuais da sociedade, como os crimes ambientais na Amazônia
(Aruanas), violência e corrupção (Arcanjo Renegado e A Divisão), a
disseminação das drogas ilícitas entre a classe média (Onde Está
Meu Coração), e até os bastidores da exploração de petróleo, foco de
escândalos reais recentes no país, para citar alguns exemplos.
A série Todas as Mulheres do Mundo foi apresentada como uma
homenagem ao dramaturgo e diretor Domingos Oliveira, falecido
em 2019. Trata-se de uma versão seriada do filme homônimo,
lançado em 1966 (mesmo ano em que o diretor deixou a TV Globo
para se dedicar ao cinema). Pode-se pensar ainda que, através dessa
série, o Globoplay reforça um diálogo com a cultura audiovisual
brasileira, especificamente, com uma cinematografia urbana
moderna e carioca, de que Domingos Oliveira é um expoente.
A aproximação e referência (explícitas ou não) das séries
originais Globoplay ao imaginário construído pela própria Globo
ao longo do tempo também é percebida na escolha de elencos,
roteiristas e diretores reconhecidos da emissora. Eu, Avó e a Boi é
uma criação de Miguel Falabella, diretor cujo estilo, construído em
diferentes séries da TV Globo e no teatro, explicita, esteticamente,
a familiaridade da plataforma com a tradição teleficcional da
Globo. Outro elemento que se liga à interdiscursividade pode ser
encontrado em As Five, spin off da novela juvenil Malhação, título
de ficção que está há mais tempo no ar na TV Globo (desde 1995).
368
Outro tipo ocorre com a segunda temporada de Segunda Chamada,
que teve a primeira temporada lançada pela TV aberta, além da
continuação da série Sessão de Terapia.
Os levantamentos e análises realizados apontam para uma
produção constante de séries brasileiras pelo Globoplay e adoção
de estratégias de lançamento que procuram levar o telespectador
da TV aberta para a plataforma Globoplay. Destaca-se ainda o
tratamento temático de séries policiais que as aproxima de formas
narrativas e discursivas empregadas em séries policiais
estadunidenses, bem como a produção de histórias de apelo
internacional com temáticas como a questão ambiental e narrativas
com elementos do universo fantástico.
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371
SINCLAIR, J. A transnacionalização de programas televisivos na
região ibero-americana. MATRIZes, [S. l.], v. 8, n. 2, p. 63-77, 2014.
Disponível em: https://www.revistas.usp.br/matrizes/article/
view/90447. Acesso em: 10 out. 2022.
2018 - Lançamento do programa Uma Só Globo. (2021, 26
novembro). Grupo Globo História, 26 nov. 2021. Disponível em:
https://historia.globo.com/historia-grupo-globo/2015-2024/noticia/
2018-lancamento-de-uma-so-globo.ghtml. Acesso em 10 nov. 2022.
372
PARTE IV
O GRUPO GELIDIS
373
374
O Grupo de Pesquisa GELiDis
Linguagens e Discursos nos Meios de Comunicação
375
especial interesse nos diferentes gêneros de ficção televisiva e suas
especificidades de formato e estilo; os processos enunciativos
considerados a partir da perspectiva verbal e verbo-visual. As
origens históricas e a construção cultural da ficção nos meios de
comunicação também integram o escopo de estudos do grupo.
O grupo é certificado pela Universidade de São Paulo e está
registrado no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq
(dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/237881). É vinculado ao
Departamento de Comunicações e Artes da Escola de
Comunicações e Artes (ECA/USP) e ao Programa de Pós-
Graduação em Ciências da Comunicação (PPGCom/USP) por meio
da linha de pesquisa 1 - Comunicação, redes e linguagens: objetos
teóricos e empíricos.
Entre os principais objetivos do grupo de pesquisa, destaca-se
ainda a formação de pesquisadoras/es nos diversos níveis da vida
acadêmica e profissional no âmbito da Escola de Comunicações e
Artes da Universidade de São Paulo. Desde o início das atividades
do grupo de pesquisa, foram orientados dois mestrados e oito
doutorados. Entre as dez pesquisas realizadas, em nível de
Doutorado e Mestrado, nove delas contaram com apoio de agências
de fomento como Capes e CNPq. Destaca-se ainda que, até 2015,
ano de início das atividades do grupo, sua coordenadora havia
orientado seis pesquisas de Mestrado e supervisionado uma
pesquisa de pós-doutorado (com Bolsa PNPD Capes). Em 2023,
encontram-se em andamento no grupo de pesquisa, cinco
pesquisas de doutorado e duas de mestrado. A grande maioria
delas recebe apoio por meio de bolsas da Capes e do CNPq.
Gostaríamos ainda de destacar a presença de integrantes do
grupo GELiDis em grupos de trabalho de associações da área de
comunicação como Intercom e ALAIC, bem como a apresentação
de trabalhos em eventos nacionais e internacionais como Congresso
da Intercom, Congresso da ALAIC – Associação Latino-Americana de
Investigadores de Ciências da Comunicação, Congressos TeleVisões
(Universidade Federal Fluminense), Jornada Internacional Geminis
(UFSCar), evento Conexões e Isolamentos, promovido, em 2021, pelo
376
Grupo Entelas da Universidade Federal de Juiz de Fora e as
Jornadas de Cinema e Ficção Audiovisual, organizadas pela
Universidade Tuiuti do Paraná, das quais temos participado desde
2017. Além disso, membros do grupo têm participado ativamente
de atividades junto aos cursos de graduação da ECA, fortalecendo
os aspectos formativos e integrativos entre os diversos níveis de
ensino, pesquisa e extensão.
Nos dias 29 e 30 de agosto de 2022, como parte das
comemorações dos 50 anos do PPGCom-USP, o grupo GELiDis
organizou, juntamente com o Programa de Pós-Graduação em
Ciências da Comunicação da USP e com o Departamento de
Comunicações e Artes da ECA, o Seminário François Jost no
PPGCom-USP na modalidade presencial. Ao longo da primeira
palestra intitulada “Os memes: da paródia à pandemia digital”, o
professor apresentou resultados de sua pesquisa sobre os memes
enfocando tanto a sua construção como fenômeno de comunicação
quanto as especificidades de sua construção como discurso do nosso
tempo. No segundo dia do seminário, sob o tema Metamorfoses da
maldade nas séries norte-americanas, François Jost se dedicou a analisar
a questão da construção da maldade nas séries de televisão da
atualidade estabelecendo categorias e comparações entre os vilões das
produções atuais e os das produções mais antigas.
Por fim, destacamos os seminários organizados pelo Grupo de
Pesquisa GELiDis que tem como objetivo desenvolver ações e
atividades que se possibilitem o desenvolvimento acadêmico e de
pesquisa de suas/seus pesquisadoras/es privilegiando o
aprofundamento de discussões teóricas e metodológicas em torno
dos temas e objetos afeitos aos estudos de televisão.
377
procedimentos metodológicos para análise de obras ficcionais com
base nos estudos de Mikhail Bakhtin, enfocando-as sob a
perspectiva dos estudos de Comunicação. O evento contou com a
presença de dois estudiosos da obra bakhtiniana: Geraldo Tadeu
Souza (UFSCar) e Igor Sacramento (PPGICS/Icict/Fiocruz e UFRJ).
Em sua palestra, o Professor Geraldo Tadeu Souza analisou o
conto Orientação, de Guimarães Rosa, detendo-se no estudo das
metamorfoses da heroína e do herói - Rita Rola e Yao Tsing Lao –
por meio do cronotopo. O Professor Igor Sacramento proferiu sua
palestra sobre os temas autoria, estilo e exotopia em Bakhtin
discutindo-os como possibilidades para a análise da ficção
televisiva.
378
III Seminário do grupo GeLiDis - Linguagens e Discursos
Ficcionais de Televisão
379
comunicação que têm sido adotados nas pesquisas realizadas no
grupo de pesquisa para o estudo das linguagens verbais e verbo-
visuais nos meios de comunicação, principalmente em ficção
televisiva. O evento teve lugar, de forma híbrida, ao longo de três
dias: 18 de novembro e 02 de dezembro (em ambos os dias, o evento
foi realizado via internet); no dia 16 de dezembro, o evento foi
realizado na modalidade presencial na ECA.
O primeiro dia de evento teve como tema Recepção e
Discursos. A primeira apresentação foi realizada pela Profa. Dra.
Helen Suzuki: A telenovela brasileira na relação intergeracional de
imigrantes brasileiros no Japão: mediação, discursos e produção de
sentido e teve como foco sua pesquisa de doutorado. A segunda
apresentação foi conduzida pela Profa. Dra. Paola Prandini que
discutiu aspectos de sua pesquisa de doutorado intitulada: Conexão
Atlândica: branquitude, decolonialitude e educomunicação em discursos
de docentes de Joanesburgo, de Maputo e de São Paulo. A Profa. Dra.
Lizbeth Kanyat destacou em sua apresentação os instrumentos
metodológicos utilizados em sua tese de doutorado intitulada A
produção de sentidos na recepção da série Game of Thrones: um estudo de
recepção sobre a construção de vínculos entre sujeitos locais e o produto
televisivo global.
Em 02 de dezembro, segundo dia do seminário, as
apresentações foram agrupadas sob o título Poéticas da Ficção
Seriada: formato, personagens e melodrama que contou com as
apresentações da Profa. Dra. Rosana Mauro sobre A construção
discursiva televisual da mulher popular na telenovela: um estudo sobre as
personagens de Avenida Brasil e A Regra do Jogo, na qual a autora
destacou procedimentos para análise de personagens de ficção. O
Prof. Dr. Anderson Lopes da Silva destacou o quadro teórico e os
procedimentos analíticos empregados em sua tese de doutorado
sob o título “O excesso como simbiose entre melodrama, carnavalização
e fantástico: análise das produções de sentido na minissérie Amorteamo".
Ainda no mesmo dia, a Profa. Dra. Daniela Jakubaszko discutiu o
conceito de dialogia bakhtiniano por meio da apresentação
Construção de uma perspectiva dialógica para a ficção audiovisual.
380
O terceiro dia do seminário ocorreu em 16 de dezembro e foi
realizado presencialmente na ECA e teve como tema Produções de
TV Paga e Streaming: formatos, gêneros, representações e temas.
As apresentações sobre a construção metodológica de suas
pesquisas ficaram por conta do Prof. Dr. Tomaz Penner, com a
apresentação Bandeiras da Netflix: produção global e representações
discursivas da diversidade LGBT+ nas séries brasileiras. Na sequência,
a Profa. Dra. Flavia Suzue de Mesquita Ikeda apresentou a
fundamentação teórica e os procedimentos de análise que
empregou em sua pesquisa de doutorado intitulada Séries
brasileiras na TV paga e nas plataformas streaming: gêneros, formatos e
temas em um circuito em transformação.
Finalmente, gostaríamos de indicar o site do grupo GELiDis
como fonte atualizada de suas atividades: https://sites.usp.br/
gelidis/
381
382
Sobre as autoras e autores
383
coordenador da equipe paranaense na Rede Obitel Brasil e membro
da Comissão Editorial e Executiva da Revista Latinoamericana de
Ciencias de la Comunicación - ALAIC. Pesquisador do GELiDis
(CNPq/ECA-USP) e do NEFICS (CNPq/UFPR).
E-mail: anderson.l@chula.ac.th
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4865-4201
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5928025738021730
Daniela Jakubaszko
Doutorado e Mestrado em Ciências da Comunicação pela Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Especialização
em Psicologia (2019). Possui graduação em Linguística e Português
pela Universidade de São Paulo (1998). Tem experiência nas áreas de
Linguagem e Comunicação, com ênfase em ciências da comunicação,
atua principalmente com os seguintes temas: telenovela brasileira,
cotidiano, memória e ficção televisiva, masculinidade e gênero.
Docente nos cursos de Comunicação da Escola da Indústria Criativa
da USCS - Universidade Municipal de São Caetano do Sul, é membro
384
do GELiDis - Linguagens e Discursos nos Meios de Comunicação
(ECA-USP). Autora do livro A Representação de temas de interesse
público na telenovela brasileira: uma perspectiva dialógica para o
estudo da ficção audiovisual. Membro do Comitê de Ética da USCS
(CEP-USCS) desde 2020.
E-mail: daniela.jakubaszko@online.uscs.edu.br
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8655301957304815
Gabriela Torres
Doutoranda em Ciências da Comunicação pela Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, mestre em
Comunicação Social e graduada em Comunicação Social pelo
Centro de Artes e Comunicação da Universidade Federal de
Pernambuco. É pesquisadora membro do Grupo de Estudos
Linguagens e Discursos nos Meios de Comunicação - GELiDis
(CNPq/ECA-USP) e tem se dedicado a pesquisas na área de
385
Comunicação, em especial narrativas ficcionais, produtos
audiovisuais e plataformas streamings.
E-mail:gabitorres.professora@gmail.com
Currículo Lattes: https://lattes.cnpq.br/1200460090369251
386
masculinidades e telenovela no Brasil. João também é tradutor e
escritor. Sua mais recente tradução é “In the name of desire” de
João Silvério Trevisan (Sundial, 2023).
E-mail: jn2395@columbia.edu
https://columbia.academia.edu/JoaoNemi
Lizbeth Kanyat
Doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Mestre em
Comunicação e Práticas de Consumo pela Escola Superior de
Propaganda e Marketing - ESPM (2014), com estágio de pesquisa
no Centro Internacional de Estudios Superiores de Comunicación
para América Latina (CIESPAL), em Quito - Equador. Possui
graduação em Publicidade e Propaganda e especialização em
Docência Universitária pelo Centro Universitário Adventista de
São Paulo - UNASP (2009 e 2011). Também atua como professora
387
dos cursos de Publicidade, Jornalismo e Rádio e Televisão no
UNASP. É pesquisadora do Grupo de Estudos Linguagens e
Discursos nos Meios de Comunicação - GELiDis (CNPq/ECA-USP)
e coordenadora do grupo do Coletivo de Investigação em
Narrativas e Estéticas - CINE (CNPq/UNASP). Principais interesses
de estudo: comunicação e consumo; processos de recepção e
atribuição de sentidos; e narrativas televisivas.
E-mail: lizbeth.kanyat@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0757-9380
Currículo Lattes: https://lattes.cnpq.br/4498277879097885
Luciano Teixeira
Doutorando em Ciências da Comunicação pela Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP).
Mestre em Comunicação e Identidades pela Universidade Federal
de Juiz de Fora - UFJF (2013). Especialista em Comunicação de
Conflitos pela Universidade Autônoma de Barcelona - UAB
(Espanha, 2009). Jornalista com estudos voltados a temas como
refúgio, imigração, construção do real na telenovela, alteridades,
comunicação de conflitos, mediação da paz, (in)visibilidades na
ficção seriada e representação da violência no telejornalismo. Foi
repórter da TV Globo e da Folha de S. Paulo. Atualmente é repórter
do SBT Brasil e colabora com portais estrangeiros em reportagens
sobre Brasil e América Latina.
E-mail: luciano.teixeira@usp.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3548-8611
Currículo Lattes: https://lattes.cnpq.br/6615188571004332
388
do GT22: Estudos de Televisão e Streaming, da Associação Latino-
Americana de Investigadores de Ciências da Comunicação -
ALAIC. Editora adjunta da Revista Latino-Americana de Ciências
da Comunicação. Autora de diversos artigos e capítulos de livros
sobre ficção televisiva, em especial sobre séries, minisséries e
telenovelas brasileiras. Dedica-se ainda à pesquisa das relações
entre comunicação e educação sob a vertente da Educomunicação.
E-mail: crismungioli@usp.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5553-6107
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7264758788782605
Paola Prandini
Doutora e Mestra em Ciências da Comunicação, pela Escola de
Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo e Jornalista, pela
Faculdade Cásper Líbero. Foi pesquisadora-visitante da Universidade
Eduardo Mondlane, em Moçambique, e da University of the
Witwatersrand, na África do Sul. Co-fundadora da empresa social
AfroeducAÇÃO. Sócia-fundadora e Diretora Cultural da Associação
Brasileira de Pesquisadores e Profissionais em Educomunicação e
pesquisadora do Núcleo de Comunicação e Educação e do Grupo de
Pesquisa GELiDis - Linguagens e Discursos nos Meios de
Comunicação, ambos da USP. Autora dos livros “Cruz e Sousa”,
“Carolinas” e “A cor na voz: identidade étnico-racial,
educomunicação e histórias de vida” e cotradutora de “Batidas, rimas
e vida escolar: Pedagogia Hip-Hop e as políticas de identidade”.
E-mail: paprandini@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2852-4917
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3865493755212307
Rafaela Bernardazzi
Professora em Produção Audiovisual do Ensino Básico, Técnico e
Tecnológico no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
do Rio Grande do Norte (IFRN). Doutora em Estudos da Mídia, na
área de Práticas Sociais, na Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (UFRN). Mestre em Ciências da Comunicação pela Escola de
389
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP),
na área de concentração de Teoria e Pesquisa em Comunicação, na
linha de pesquisa Linguagens e Estéticas da Comunicação.
Especialista em Cinema e Linguagem Audiovisual pela
Universidade Estácio de Sá. Bacharel em Comunicação Social -
Radialismo pela UFRN. Líder do Grupo de Pesquisa COMINICAL.
Pesquisadora do Grupo de Pesquisa GELiDis - Linguagens e
Discursos nos Meios de Comunicação.
E-mail: rafaelaleite@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0153-017X
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/1288784072022919
Rosana Mauro
Professora substituta na Universidade Federal do Espírito Santo
(UFES), com pós-doutorado em andamento na mesma instituição.
Pesquisa sobre a união entre os conceitos de cronotopo e
terriorialidades para a análise de produções audiovisuais. Doutora
e mestre em Ciências da Comunicação pela ECA-USP. Integrante
do grupo de estudos GELiDis - Linguagens e Discursos nos Meios
de Comunicação e do CAT - Grupo de Estudos Cultura
Audiovisual e Tecnologia
E-mail: mauro.rosana@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1731-202X
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7559974135922950
Tomaz Penner
Doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações
e Artes da Universidade de São Paulo. Mestre pela mesma
instituição. Pesquisador dedicado aos temas digitais,
especificamente sobre redes sociais, consumo cultural, televisão e
audiovisual. Atualmente, trabalha com a Netflix e seus fluxos
globais, observando a configuração dos catálogos (especialmente
os títulos originais) ao redor do mundo e o comportamento da
marca em diferentes mercados. Foi pesquisador visitante na
Universidade do Texas em Austin (Estados Unidos), onde
390
desenvolveu a pesquisa "Títulos originais e licenciados com
exclusividade no catálogo brasileiro Netflix: um mapeamento dos
países produtores". É professor no Centro de Ciências Sociais e
Aplicadas da Universidade Presbiteriana Mackenzie e vice-
coordenador do Grupo de Estudos Linguagens e Discursos nos
Meios de Comunicação - GELiDis (CNPq/ECA-USP).
E-mail: tomaz.penner@mackenzie.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2690-5599
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3169767015889824
391