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Memórias Póstumas de Brás Cubas
Memórias Póstumas de Brás Cubas
Memórias Póstumas de Brás Cubas
Sim, eu era esse garção bonito, airoso, abastado; e facilmente se imagina que
mais de uma dama inclinou diante de mim a fronte pensativa, ou levantou para mim os
olhos cobiçosos. De todas porém a que me cativou logo foi uma... uma... não sei se
diga; este livro é casto, ao menos na intenção; na intenção é castíssimo. Mas vá lá; ou
se há de dizer tudo ou nada. A que me cativou foi uma dama espanhola, Marcela, a
“linda Marcela”, como lhe chamavam os rapazes do tempo. E tinham razão os
rapazes. Era filha de um hortelão das Astúrias; disse-mo ela mesma, num dia de
sinceridade, porque a opinião aceita é que nascera de um letrado de Madrid, vítima da
invasão francesa, ferido, encarcerado, espingardeado, quando ela tinha apenas doze
anos. Cosas de Espanã. Quem quer que fosse, porém, o pai, letrado ou hortelão, a
verdade é que Marcela não possuía a inocência rústica, e mal chegava a entender a
moral do código. Era boa moça, lépida, sem escrúpulos, um pouco tolhida pela
austeridade do tempo, que lhe não permitia arrastar pelas ruas os seus
estouvamentos e berlindas; luxuosa, impaciente, amiga de dinheiro e de rapazes.
Naquele ano, morria de amores por um certo Xavier, sujeito abastado e tísico, --- uma
pérola.
Vi-a, pela primeira vez, no Rossio Grande, na noite das luminárias, logo que
constou a declaração da independência, uma festa de primavera, um amanhecer da
alma pública. Éramos dois rapazes, o povo e eu; vínhamos da infância, com todos os
arrebatamentos da juventude. Vi-a sair de uma cadeirinha, airosa e vistosa, um corpo
esbelto, ondulante, um desgarre, alguma coisa que nunca achara nas mulheres puras.
--- Segue-me, disse ela ao pajem. E eu segui-a, tão pajem como o outro, como se a
ordem me fosse dada, deixei-me ir namorado, vibrante, cheio das primeiras auroras. A
meio caminho, chamaram-lhe “linda Marcela”; lembrou-me que ouvira tal nome a meu
tio João, e fiquei, confesso que fiquei tonto.
Três dias depois perguntou-me meu tio, em segredo, se queria ir a uma ceia de
moças, nos cajueiros. Fomos; era em casa de Marcela. O Xavier, com todos os seus
tubérculos, presidia ao banquete noturno, em que eu pouco ou nada comi, porque só
tinha olhos para a dona da casa. Que gentil que estava a espanhola! Havia mais uma
meia dúzia de mulheres, --- todas de partido, --- e bonitas, cheias de graça, mas a
espanhola... O entusiasmo, alguns goles de vinho, o gênio imperioso, estouvado, tudo
isso me levou a fazer uma coisa única; à saída, à porta da rua, disse a meu tio que
esperasse um instante, e tornei a subir as escadas.
--- Esqueceu alguma coisa? perguntou Marcela de pé no patamar.
--- O lenço.
Ela ia abrir-me caminho para tornar à sala; eu segurei-lhe nas mãos, puxei-a para
mim, e dei-lhe um beijo. Não sei se ela disse alguma coisa, se gritou, se chamou
alguém; não sei nada; sei que desci outra vez as escadas, veloz como um tufão, e
incerto como um ébrio.