DISSERTAÇÃO Bruna Maria Alexandre Guido
DISSERTAÇÃO Bruna Maria Alexandre Guido
DISSERTAÇÃO Bruna Maria Alexandre Guido
PERTENCIMENTO E ARTIFICIALIDADE:
A expressividade das cores néon no cinema queer brasileiro a partir da década
de 2010
Recife
2023
BRUNA MARIA ALEXANDRE GUIDO
PERTENCIMENTO E ARTIFICIALIDADE:
A expressividade das cores néon no cinema queer brasileiro a partir da década
de 2010
Recife
2023
Catalogação na fonte
Bibliotecária Mariana de Souza Alves – CRB-4/2105
Inclui referências.
Sou grata à FACEPE pelo auxílio financeiro de uma bolsa por dois anos, que
possibilitou minha dedicação exclusiva e a realização de uma pesquisa diversa.
Agradeço a Rayane, minha querida amiga, que está cursando seu mestrado em
biologia, pelos encontros sobre as alegrias e aflições de nossas pesquisas e vidas.
Gratidão a Maria, minha mãe, que sempre me incentivou por meio da educação, ainda
que ela tenha sido privada dessa oportunidade. Ser a primeira graduada da minha
família e ter a chance de ser a primeira mestra é uma conquista nossa.
Agradeço a Kaline, minha grande amiga e abstração perfeita, por sempre estar
disponível para ouvir minhas indagações e reflexões. Seu apoio intenso e confiança
em mim me motivam a seguir. Quando ela me diz: “Cada partezinha minha, ama cada
partezinha sua”, compreendo o quanto o amor e a liberdade são ferramentas potentes
para a autoestima e a saúde de toda uma sociedade.
Por fim, agradeço a todas as vivências que resistem. Que são, expressam e apreciam
ser quem são.
RESUMO
Discussions about gender and sexuality in contemporary Brazilian cinema have been
expanded through queer perspectives. This study follows this trend by observing the
presence of aesthetic manifestations of artifice in Brazilian films from the 2010s, such
as the use of colors and neon lights. To understand these connections, in Chapter I,
the study begins by addressing queer theory and its political propositions, examining
the aesthetic roots of the underground American cinema movement that currently
influences. Next, the project indicates the paths of queer cinema and its aesthetics,
while also providing a brief overview of the history of Brazilian queer cinema to
understand the growing aesthetics of artifice. In Chapter II, the research delves into
cinematic language, observing light and color as elements related to morality,
sensoriality, and queer spectatorship. Aesthetic examples are presented, as well as
the history of neon lights, to comprehend the differentiation and identification of queer
subjects in relation to their use. Finally, in Chapter III, to illustrate and substantiate this
phenomenon, the general use of neon in cinema is briefly indicated, followed by the
creation of a film constellation (SOUTO, 2019) called "Brazilian Neon Queer from 2010
onwards," composed of 9 films that are analyzed comparatively.
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................. 8
2 CAPÍTULO I ................................................................................................... 17
2.1 Um panorama sobre os estudos queer........................................................... 17
2.2 Cinema underground norte-americano: Pink Narcissus (1971, dir. James
Bidgood) e The Inauguration of the Pleasure Dome (1954, dir. Kenneth
Anger) ............................................................................................................ 22
2.3 Perspectivas de um cinema queer ................................................................. 29
2.4 Cinema queer brasileiro ................................................................................. 37
3 CAPÍTULO II .................................................................................................. 43
3.1 Atmosfera artificial no cinema: a moralidade na luz ...................................... 41
3.2 O corpo queer em tela: sensorialidade e espectatorialidade ......................... 48
3.3 As armas estéticas do artifício ....................................................................... 52
3.4 Descobrindo a superficialidade da luz néon: da publicidade à arte ................ 58
4 CAPÍTULO III ................................................................................................. 72
4.1 Possibilidade de utilização do néon no cinema: o uso atípico ........................ 69
4.2 Constelações fílmicas: metodologia comparativa para seleção do corpus de
pesquisa ......................................................................................................... 74
4.3 Análise fílmica da formação constelar: um filme é a ferramenta de análise do
outro ............................................................................................................... 77
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................ 103
REFERÊNCIAS ............................................................................................ 109
8
1 INTRODUÇÃO
1
Tradução minha. Trecho original: “prompt street culture; enrich the urban community’s visual histories;
and maintain senses of belonging in those people who carry out life under their hues.”.
9
2
Tradução minha. Trecho original: “이러한 네온 컬러는 자연의 색이 아닌 인공적 색이며, 가시광선 전체
파장의 빛 을 발산하여 주변으로 발산하는 것 같은 색 감 각을 불러일으킨다. ”.
10
3
Tradução minha. Trecho original: “In the era of artificial lighting and illuminated signs the city was
becoming more and more superficial and theatrical, clamouring for more and more effects.”.
11
como Hong Kong, que se tornaram uma possibilidade estética. Em alguns momentos
do texto, Sérvio (2004, p. 209) resume definições como esta:
[...] os Estudos de Cultura Visual comprometem-se em analisar momentos de
consumo/recepção/interpretação demonstrando que o significado dado a um
mesmo objeto/fenômeno pode transformar-se através de usos e
reapropriações.
As críticas feitas nestes campos abrem espaço para a reflexão sobre como o
cinema poderia se constituir enquanto instrumento ideológico na construção
de certos ideais de nação, de representações sobre o gênero e a sexualidade,
sobre as relações raciais, possibilitando a consolidação se [sic] certas noções
sobre dados sujeitos e subjetividades. (FERREIRA, 2015, p.181)
de 2010, e o corpus para análise consiste em 9 filmes escolhidos no capítulo III por
meio da constelação fílmica.
Para alcançar esse objetivo de forma mais detalhada, irei desenvolver sobre o
movimento queer e suas correlações no contexto cinematográfico, examinando a
história do cinema underground norte-americano para estabelecer conexões junto ao
contexto brasileiro. Além disso, irei estender o significado sobre iluminação artificial
no cinema e discutirei as características do néon e das estéticas do artifício diante da
subjetividade queer no cinema. Também analisarei as implicações morais e políticas
das estéticas empreendidas no cinema queer brasileiro atual. Ou seja, de maneira
geral, buscarei responder esta pergunta: por que a artificialidade do néon gera a
sensação de pertencimento no cinema queer brasileiro nos últimos anos?
É importante ressaltar que, por motivos acadêmicos, alguns pontos precisam
ser definidos. Porém, essas delimitações não se estendem aos filmes, uma vez que
cada obra audiovisual possui universos particulares e intenções específicas. Não
gostaria de reduzir as obras a essas categorias, mas sim destacar essa tendência
criativa presente nelas. Da mesma forma, é importante não deslegitimar filmes que
apresentam o uso de néon, mas não necessariamente possuem temáticas queer,
assim como filmes queer que não fazem uso de néon ou outros artifícios.
Embora o uso do néon tenha se destacado em várias produções audiovisuais
importantes no Brasil nos últimos anos, essa temática ainda não foi abordada em
pesquisas científicas. Essas são questões profícuas que ainda não foram suscitadas,
mesmo que se discuta estéticas artificiais, pouco se fala sobre o néon como um dos
elementos visuais para sua materialização. Por isso, é fundamental produzir materiais
teóricos que possam compreender as relações entre a história das luzes néon e suas
manifestações no cinema queer brasileiro. Além disso, é crucial traçar rotas estéticas
e poéticas que possam contribuir para outras pesquisas que analisem imagens queer
e o uso do néon não apenas em filmes, mas também em publicidade, videoclipes,
fotografias e outras mídias.
No capítulo I, pretendo estabelecer diálogos entre as políticas queer, o
movimento underground americano e o cinema queer, assim como seu contexto no
Brasil, por meio de uma abordagem histórica. Para delinear esse panorama, é vital
fazer algumas considerações do termo queer, a fim de demarcar o arcabouço fílmico
presente na dissertação. Para isso, é preciso elaborar suas possibilidades de forma a
não impor limitações ao termo, reconhecendo seu propósito questionador e libertário.
16
Neste seguimento, podemos tecer algumas perguntas, tais como: Ser queer é
necessariamente sinônimo de ser LGBTQIAP+? Ser queer vai além de se
autodenominar uma pessoa não-hétero? Será que ser queer implica em tensionar o
modelo de vida cisheteronormativo? A partir dessas indagações, é possível
estabelecer critérios para classificar um filme como queer.
Já no capítulo II, o objetivo é traçar caminhos para relacionar o néon à
temáticas queer, uma ideia pouco investigada teoricamente, e por isso, será uma
sessão definitivamente exploratória. Inicialmente, é interessante discutir o cinema
enquanto linguagem, examinando como as cores e luzes nas narrativas podem ser
realistas ou artificiais, levando em consideração seu âmbito moral. Também será
desenvolvida a ideia de sensibilidade junto a espectatorialidade queer. Além desses
aspectos, abordarei a estética do artifício, como camp, o conceito de lindo (GALT,
2015) e da superfície (BARBOSA, 2015), explorando suas críticas pertinentes ao
capitalismo e à colonialidade a partir dos parâmetros visuais. Para concluir, dissertarei
sobre a história do néon e como esse elemento versátil é incorporado na arte,
compreendendo suas relações com as experiências vividas nos subúrbios dos
Estados Unidos, sua sensibilidade luminosa e seu teor erótico.
No capítulo III, realizo um recorte para explorar a presença do néon no cinema,
estabelecendo dois tipos de uso: o típico e o atípico. O uso típico refere-se ao emprego
comum e inicial das luzes néon na forma de letreiros publicitários, enquanto o uso
atípico é mais frequente nos filmes queer e envolve a reprodução do efeito néon, seja
através das luzes, da materialidade ou do uso de efeitos digitais. Esse uso atípico está
relacionado a uma estética mais artificial, pois vai além do aspecto visual comum e
adquire outras interpretações.
Por fim, ainda no mesmo capítulo, apresento a metodologia do corpus e
construo a constelação intitulada "néon queer brasileiro a partir de 2010", para em
seguida analisar os filmes que a formam. A análise de cada filme do corpus é realizada
por meio de exemplos de cenas que apresentam a presença do néon em suas
diversas formas: luz, cores dos objetos ou efeitos visuais. Levo em consideração o
discurso, a sensorialidade e a subjetividade queer, além de explorar como essas
imagens são construídas: suas características, as sensações expressas e suas
composições.
17
2 CAPÍTULO I
4
Tradução minha. Trecho original: “Indeed, there is no ‘one’ who takes on a gender norm. On the
contrary, this citation of the gender norm is necessary in order to qualify as a ‘one’, to become viable as
a ‘one’, where subject-formation is dependent on the prior operation of legitimating gender norms.”
20
fracasso colocadas por Jack Halberstam (2020, p. 49): “[...] mudo o direcionamento
do significado de fracasso para o acúmulo de modos afetivos que foram associados
ao fracasso e agora descrevem novos direcionamentos na teoria queer.”. Halberstam
mapeia as compreensões de inadequação diante das ideais envolvendo o fracasso,
promovendo “uma relação diferente com o saber” (Ibidem, p. 49) por meio de uma
política de deixar de ser. Já Louro (2004 p. 13) compreende o sujeito queer como
inevitavelmente corajoso, explorador, disposto a correr riscos e a perturbar as regras.
A autora também destaca que, mesmo que possa soar pejorativo para pessoas
homoafetivas, queer pode estar associado ao estranho, ao excêntrico, a algo raro ou
até ridículo (LOURO, 2001).
Na maioria das vezes, o sujeito queer é colocado na posição de "outro", em
oposição ao que é considerado a "maioria" ou o "normal", seguindo uma lógica binária
e de dominação ocidental para lidar com as diferenças. Em uma abordagem recente,
Viviane Vergueiro tece críticas sobre a ciscolonialidade e a cisgeneridade, propondo
estratégias trans ao direcionar os considerados “normais” no lugar oposto, no lugar
que corpos queer ocupam, na anormalidade. Assim, a autora faz uma espécie de
desestruturação crítica a partir da binariedade apontando um espelho para aqueles
que nos apontam os dedos.
[...] desestabilizam a naturalidade das performatividades cisgêneras, do
objetivismo e certeza científica diante das categorias “homem” e “mulher”
através de ultrassons, formas corporais, intervenções cirúrgicas, diagnósticos
psiquiátricos, certidões, rituais, lápides. (VERGUEIRO, 2015, p. 40)
5
Tradução minha. Trecho original: “[...] then it follows that the critique of the queer subject is crucial to
the continuing democratization of queer politics.”
22
2.2 Cinema underground norte-americano: Pink Narcissus (1971, dir. James Bidgood)
e The Inauguration of the Pleasure Dome (1954, dir. Kenneth Anger)
Nos anos 60, fica mais evidente que Hollywood é uma estrutura de influência
econômica e social de disseminação dos valores burgueses, principalmente por
induzirem atitudes antiautoritárias e padrões de consumo (ARTHUR, 1992, p. 19 e
20). A desestabilização destas noções foi feita pelo cinema que registrava momentos
banais, desafiando e questionando a autoridade do fazer cinematográfico industrial,
expandindo a ideia de realização dentro da sétima arte. As “distinções imutáveis entre
gravação amadora e produção comercial se confundiam na fantasia do potencial
libertador do filme.”6 (ARTHUR, 1992, p. 18).
6
Tradução minha. Trecho original: “immutable distinctions between amateur recording and commodity
production were blurred in the fantasy of film's liberatory potential.”
24
7
Tradução minha. Trecho original: “the films of Ron Rice, Ken Jacobs, and especially Jack Smith, soon
followed by Andy Warhol's early films”
26
sociais, propondo uma desorganização dos sentidos calcados nos filmes (Ibidem, p.
8, 9 e 10).
Em filmes como Tea and Sympathy (Vincente Minnelli, 1956) e Pink Narcissus
(James Bidgood, 1971), em romances pulp como Desire in the Shadows de
Joe Leon Houston (1966), e em imagens de pin-up promocionais de estrelas
de Hollywood, Dyer examina como uma ampla constelação de textos pode se
dirigir a um público de homens que desejam outros homens, os quais, mesmo
que tenham experienciado essa imagética de forma isolada, podem ter
passado a se ver como geradores da vida sociosexual gay. 8 (POWELL, 2018,
p. 158 e 159, grifos no original)
8
Tradução minha. Trecho original: “In films such as Tea and Sympathy (Vincente Minnelli, 1956) and
Pink Narcissus (James Bidgood, 1971), pulp novels such as Joe Leon Houston’s Desire in the Shadows
(1966), and promotional pinup images of Hollywood stars, Dyer examines how a wide constellation of
texts might speak to an audience of male-desiring men who, even if they experienced this imagery in
isolation, may have come to see themselves as generators of gay sociosexual life.”
27
Ao longo de uma única noite longa - muitos anos longa, mas isso não importa
- em uma metrópole incandescente, através de um banheiro sujo para
homens, um campo encantado, um quarto cor-de-rosa e becos assombrados
por néon, a borboleta é aniquilada, rasgada em pedaços e espalhada ao
vento, ejaculada na noite amena. É o ciclo natural de um sonho que morre.10
(SANDBERG, 2022)
9
Tradução minha. Trecho original: “To Jim, art was pornographic because it ought to demand a physical
response.”
10
Tradução minha. Trecho original: “Over the course of one long night – many years long, but that’s
beside the point – in an incandescent metropolis, through a seedy men’s toilet, an enchanted field, pink
28
Fonte: The Inauguration of the Pleasure Dome (1954, dir. Kenneth Anger).
bedroom and haunted neon alleyways, the butterfly is annihilated, ripped to shreds and scattered to the
wind, ejaculated into the balmy night. It’s the natural cycle of a dream that dies.”
29
O cinema é o foco principal deste projeto, o que é comum nos estudos queer.
Os filmes geralmente ocupam uma posição de destaque quando se trata de análises
queer, “os teóricos queer deram maior atenção à análise de obras fílmicas, artísticas
e midiáticas em geral” (MISKOLCI, 2009, p. 155, grifo no original).
Com razão, uma vez que o cinema junto com a televisão desempenha papéis
fundamentais na manutenção da cisheteronormatividade, reafirmando estereótipos de
gênero e sexualidade (LOPES, 2006). Antes da consolidação do movimento queer,
por exemplo, as representações de sujeitos dissidentes eram formuladas apenas por
ideais cisheteronormativos, ou seja, “os gays afeminados, as lésbicas masculinizadas,
as travestis, todas as ‘fechativas’, os promíscuos que não desejam casar e ter filhos”
(COLLING ET. AL., 2012, p. 98) eram considerados representações negativas pelos
30
Vale salientar que o cinema queer possui diversas abordagens e estéticas. Não
é necessariamente por ser um cinema intrinsecamente político, que ele esteja repleto
de didatismo ou instruções. Além do mais, atualmente, o cinema queer está se
afastando da abordagem baseada no tabu e das representações centradas nas
diversas formas de violência enfrentadas pela comunidade. Essa abordagem era
comum e foi influenciada pela característica do cinema brasileiro, que tinha uma ideia
intensa de que um filme para ser considerado político deveria apresentar
verossimilhança ou transmitir um teor de revolta. No entanto, essa perspectiva e
outras semelhantes carregam uma compreensão moralizante, sendo assim redutivas
e essencialistas. Como, por exemplo, a crença de que existem representações
completamente positivas ou negativas no cinema queer.
[...] é preciso cuidado para não reduzir a política de um filme às políticas de
representação que são, em última instância, sustentadas por uma estética de
verossimilhança; ou, ainda, pelo pressuposto de que as imagens são
espelhos da realidade vivida e que, portanto, os cinemas brasileiros só podem
ser políticos quando se limitam a (re) apresentar as desigualdades sociais ou
(re) elaborar a revisão de fatos históricos em tons de indignação e revolta.
(MARCONI, 2020, p. 143 e 144)
11
Camp é uma estética ligada a sensibilidade homossexual caracterizada pelo uso exgerado de
artifícios, da teatralidade, do humor e do deboche. Já a estética Kitsch, está mais relacionada a artigos
de valor barato que possuem apelo popular.
34
meio do artifício. Quando estes criam possibilidades técnicas e imaginativas para falar
sobre assuntos sérios, usando de lugares do entretenimento ao utilizar da linguagem
bem humorada, do ilusionismo e dos excessos. O cinema queer brasileiro atualmente
está trilhando caminhos como este – procurando lugares outros, além dos situados no
discurso – para destacar as tessituras das imagens, evitando pensar a estética queer
como algo determinante, percebendo-a como uma possibilidade para a criação de
paisagens e superfícies amplamente aproveitadas.
Nesse sentido, há filmes queer brasileiros contemporâneos que nos
convidam a deixar de lado esse apego ao logocentrismo ocidental e a pensar
a relação entre imagem, política e estética sem reduzi-las unicamente a um
dispositivo de cunho textual ou discursivo. (MARCONI, 2020, p. 150, grifo no
original)
12
“um artista ou uma produção audiovisual utiliza a estética fluída dos queer para angariar atenção e
apoio financeiro da comunidade LGBTQIA+, mas sem se identificar pessoalmente com a causa.”
(SOUZA, 2022)
37
A partir dos anos 1960, no Brasil, a presença homoerótica masculina nos filmes
se torna mais evidente, o que resulta em reações negativas e homofóbicas. Contudo,
os filmes possuem estratégias de conotação para velar a sexualidade, “restando ao
desejo homoerótico as margens e o caráter de desvio.” (LACERDA JÚNIOR, 2015a,
p. 57). Durante muito tempo, a utilização da ambiguidade e da marginalização foi a
forma pela qual o gênero e a sexualidade foram abordados, diferente do tratamento
dado aos personagens heterossexuais.
No final dos anos 80, houve um aumento dos estudos queer e,
consequentemente, das noções liberacionistas no cinema. Isso aconteceu em
resposta à disseminação opressora da assimilação para gays e lésbicas, bem como
à negligência governamental diante da grave crise da AIDS.
Apesar da relevância do trabalho ativista realizado por meio das mídias
alternativas na abordagem de diversas pautas, foi somente na década de 1990 que
as discussões sobre a representação nos meios de comunicação de massa
começaram a ser abordadas pelos movimentos. Esse período foi denominado por
Regina Facchini como a terceira onda do movimento homossexual brasileiro
(LACERDA JÚNIOR, 2015a, p. 17). Nesse momento, as imagens, personagens e
discursos estavam moldados em um modelo homoerótico "higienizado" nos filmes.
Porém, ao mesmo tempo, o homoerotismo e a transgeneridade passaram a ser
abordados como vivências que escapavam das noções heteronormativas e se
aproximavam de experiências pessoais. O cinema estava sendo feito de uma
perspectiva “de dentro” (LACERDA JÚNIOR, 2015a, p. 129).
Durante a fase da Retomada do cinema nacional, os perfis sociais
representados mudaram, antes as personagens eram de “classe baixa, subemprego,
ligação com a marginália, comportamento feminino, tendência à solidão e
incapacidade de relação monogâmica" (MORENO, 2001, p. 291). Esse perfil da
personagem homossexual foi modificado para incluir características de pessoas
brancas, cisgênero e de classe média, juntamente com noções da monogamia. Esse
38
3 CAPÍTULO II
Após observar vários filmes queer brasileiros que são permeados pelas luzes
néon, nota-se que esse tipo de iluminação é mais frequente em locais escuros ou que
pretendem ser pouco iluminados. Quando a iluminação é feita através de luzes
coloridas, tubos néon ou fitas de led (opção mais acessível e próxima ao efeito do
néon) buscando a artificialidade, a imagem não é nítida, fica mais escura por ter
menos raios de luz entrando na câmera, permitindo que o não visto também faça parte
da narrativa.
Seja de maneira física ou conceitual, é perceptível que o néon não tem como
objetivo iluminar, mas sim dialogar com a escuridão e preservá-la de alguma forma.
Ele não busca quebrar a escuridão, mas sim fazer parte dela e criar um significado
conjunto. Sendo assim, na lógica binária cristã, as manifestações néon são
localizadas nas trevas, na ausência de luz, em locais considerados imorais.
O escuro é o espaço da negatividade, lugar dos seres banidos da Luz, como
Lúcifer, o anjo caído que foi condenado a permanecer na escuridão. O espaço
da não-visão, das criaturas maléficas que ficam à espreita do homem para
possuí-lo é o análogo da noite e das criaturas que sempre povoaram o
intelecto humano. O medo primitivo da noite e da escuridão ajuda a reforçar
esse imaginário religioso. (SANTOS, 2012, p. 15)
coisa com a luz das novelas. Luz por todo lado, para todos e para tudo.
Ninguém é obrigado a seguir esses códigos, e seria possível fazer um filme
noir com pouco contraste. Seria então um filme noir sem o noir. (MOURA,
2001, p. 191, grifos no original)
13 Tradução minha. Trecho original: “[...] revolved around considerations of visual representation and
the application of structures of meaning drawn from semiotic and psychoanalytic models.”
14 Tradução minha. Trecho original: “Driven by notions of representation, semiotic, psychoanalytic, and
ideological analyses unwittingly furthered oppositional binaries that the cinema itself has consistently
proven quite capable of undoing, binaries such as reality/illusion, subject/object, thought/ emotion,
activity/passivity, and so on.”
49
15
Tradução minha. Trecho original: “[...] the embodied and synesthetic nature of perception, the
reversibility of perception and expression, and the material and sensuous operations of the technological
film apparatus [...]”
16
Tradução minha. Trecho original: “bodies as doers, generators, producers, performers of worlds, of
sensations and affects [...]”
50
17
Tradução minha. Trecho original: “ [...] the body’s movements and gestures are capable of
transforming static forms and concepts typical of a representational paradigm into forces and concepts
that exhibit a transformative/expansive potential.”
51
queer, que não busca abrir diálogos para o público geral, alguns são bem específicos
e direcionados para o público queer.
A marca de distinção se dá pelo excesso, pelo deboche, pela artificialidade,
pelo esteticismo da direção de arte, pelos documentários performáticos,
poéticos, reflexivos e pelo orgulho da marginalidade. (SILVA; MARCONI;
TOMAZETTI, 2018, p. 190)
O camp é uma expressão estética que surge como uma resposta à opressão
homossexual, utilizando o deboche, os excessos visuais e a paródia como formas de
resistência. Esta atitude estética é uma maneira de lidar com as intolerâncias através
do compartilhamento entre os membros LGBTQIAP+, uma tática de sobrevivência a
partir das aparências e dos comportamentos.
O dandismo e a frivolidade, importantes no desenvolvimento e concepção do
camp, têm raízes na aristocracia europeia anterior ao estabelecimento da sociedade
burguesa. Atualmente, essas estéticas são ressignificadas como uma forma de
resistência ao sistema capitalista, a partir da promoção do ócio, dos prazeres
momentâneos e da futilidade. Além de possuírem contornos nas travestilidades e
feminilidades, criando um movimento contra estrutural que desafia as normas de
gênero.
As pesquisas recentes sobre estética queer ou homoafetividade
frequentemente se concentram no camp, que tem sido estudado desde a década de
1960 e continua a ser um tema de interesse. Percebo que, devido ao seu caráter
homoafetivo masculino e cisgênero, ele é mais explorado e destacado nas pesquisas
do que outros aspectos da estética queer. Isso acontece apesar do artifício ser uma
categoria que abarque inúmeras estéticas, “da teatralidade barroca à simulação
midiática, da tradição do travestimento nas artes cênicas aos desafios da
performatividade do sujeito contemporâneo.” (LOPES, 2016, p. 3).
53
rejeitam a procura por certezas e pela veracidade, “se interessa mais em perder-se
radicalmente nos labirintos infinitos e coloridos da forma-mercadoria do que
encontrar-se na salvação sublime do real.” (grifo no original).
Outra estética que considero relevante para a pesquisa e que tem diálogo com
a linguagem cinematográfica promovendo contornos queer, é a do lindo. Essa estética
tem uma certa apreciação no cinema comercial, pois preza pelo prazer visual, seja no
corpo feminino ou nos cenários dos filmes. O lindo é visto, de maneira intensa, como
um “espetáculo vazio, superfície sem profundidade, o ornamento em massa.” (GALT,
2015, p. 46)
Fala tanto da sabedoria acolhida sobre o cinema como do lugar exato onde
sua estética se tornou um problema. [...] O lindo indica uma ansiedade teórica
sobre a imagem moderna, mas também nomeia práticas da feitura da imagem
que perturbam o dogma estético. (Ibidem)
18
Tradução minha. Trecho original: “[...] it’s very us. It is a distinctive way of behaving and of relating
to each other that we have evolved. To have a good camp together gives you a tremendous sense of
identification and belonging.”
19
Tradução minha. Trecho original: “mincing and screaming”
56
20 Tradução minha. Trecho original: “[...] that English uses the general term ‘neon lights’ for all
fluorescent light tubes, even when these are filled with other gases (argon produces violet, helium pink,
xenon pale blue and krypton silvery white, while a mixture of mercury and argon radiates blue).”
21 Tradução minha. Trecho original: “the streets of urban America gave birth to the ‘age of light and
colour’ in which the neon tube was to play such a key role.”
59
22
Tradução minha. Trecho original: “The media historian Anne Hoormann has described the world of
the new illuminated advertisements as a key feature of culture in the roaring ’20s – a network spreading
throughout the city and developing its very own ‘cinematography’. The flashing lights contributed to the
‘cultural predominance of the visual’ and thus to the increasing unreality of urban life.”
60
Figura 3 - Times Square nos anos de 1941 e 1955, Nova Iorque, Estados Unidos.
23
Tradução minha. Trecho original: “that continually focused on the dissolution of identity [...] opening
a space for reflection and recounting narratives that only take place in secret.”
62
24
Tradução minha. Trecho original: “In the world of neon, writers found what they were looking for: the
would-be naked, seemingly authentic existence of drunks, hookers, gamblers and small-time crooks.
This is the ironic twist in the story of the glowing tubes. They were developed as an element of business
technology to advertise hairdressing salons, cinemas and department stores and boost commercial
success. But when they lost the charm of the new, they became a symbol of urban decay, their light
shining above all on those looked down upon as losers.”
25
Tradução minha. Trecho original: “neon light became the favourite metaphor of those observers of
the city who based their defiant traditionalism on naked reality.”
26
Tradução minha. Trecho original: “an icon of ‘robotic eroticism’. She is a figure of myth exuding
‘boundless cruelty’, a ‘celestial and mechanical whore’.”
63
Figura 5 - Torso do Spa Fountain (1936), Torso Feminino (1936), Torso Masculino (1936).
27
Tradução minha. Trecho original: “In the post-war years it became increasingly noted for male
prostitution in particular.”
28 Tradução minha. Trecho original: “Family men, on the other hand, could only fantasize about such
29 Tradução minha. Trecho original: “Thus the observer sees a ‘Liebespaar / noch erhitzt und ein wenig
erregt’ (A couple of lovers / still stimulated and a bit excited) at the sight of the ‘neon snakes’ in the city.
The ‘worldwide illustrated magazine of mass culture’ published by the Devil himself shows ‘the filmstar’
with ‘more than exciting breasts’. The poem ‘Grossstadtreklame’ imagines ‘night clubs . . . particularly
exciting’, along with ‘nylon-covered legs’ and ‘heart machines / all non-stop’. Neon und Psyche put over
the message that the ‘green fingers’ made of light no longer extended just into nothingness. They were
reaching out for the bodies of the passers-by.”
30
Tradução minha. Trecho original: “They shine as brightly as the language in Hughes’s most vigorous
texts; they are as evocative as jazz and just as disjointed, rhythmic, flashing.”
66
31
Tradução minha. Trecho original: “the neon lights represented very much the warm, organic power
of language, the heated debates that led to the utopian experiments of the student revolts.”
67
32
Tradução minha. Trecho original: “took on neon, that symbol of sexual commerce, in order to express
her own views on sexuality and to throw light on the world of her own past.”
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4 CAPÍTULO III
Além disso, o néon pode ser utilizado no cinema como um aspecto visual de
diferenciação temporal em filmes com temáticas distópicas, tecnológicas e futuristas.
Em Metrópolis (1927, dir. Fritz Lang), por exemplo, círculos de luz percorrem o robô
em sua transformação em uma figura humana (Figura 8). Em Blade Runner (1982, dir.
70
Ridley Scott), que além de mostrar letreiros néon, o filme utiliza de maneira incomum
o néon como parte do cenário, como visto nos guarda-chuvas, para retratar uma
sociedade diferente do presente (Figura 9).
Figura 10 - Adolescente faz orações e canta louvor em ritmo de funk em frente de um crucifixo azul
néon, evocando a estética camp.
néon invadem o espaço em três tonalidades: rosa, azul e verde (Figura 12). Outro
exemplo está no filme de comédia Alice Júnior (2019, dir. Gil Baroni), em que as cores
no porão da casa de Alice, embora necessitando de iluminação clara por ser um local
de trabalho, são escuras e remetem a ambientes eróticos (Figura 13).
Figura 11 - Dois cômodos na casa de Amianto, o primeiro em azul néon e o segundo em vermelho, na
qual uma luz rosa da televisão ilumina a personagem.
Figura 13 - Porão, e antigo quarto do sexo, da casa que Alice e seu pai moram.
forma, para a criação de uma constelação fílmica, é preciso ter no mínimo três filmes,
não existindo um número máximo.
Inicialmente, este projeto estava focado na análise de dois longas-metragens:
Boi Neon e Tinta Bruta. No entanto, buscando uma abordagem mais dinâmica e
interseccional, decidi criar uma constelação fílmica a partir de eixos que considero
fundamentais para sua constituição. Isso abre a possibilidade de estabelecer
conexões entre curtas, médias e longas-metragens. Utilizo a historicidade recente do
cinema queer brasileiro e a visualidade do néon como elementos basilares para a
construção dessa constelação, explorando as aproximações narrativas e técnicas que
envolvem a artificialidade do uso incomum do néon na iluminação, como objeto e nos
efeitos visuais.
Durante o período de pesquisa, assisti a diversos filmes queer em busca de
suas conexões com o néon, e Latifúndio (2017, dir. Érica Sarmet) foi um dos filmes
em que a relação entre a temática queer e o néon se mostra mais perceptível, intensa
e com diversidade de relações e corpos ao longo da obra. Esse curta-metragem
experimental de diretore e pesquisadore Érica Sarmet, se destaca por abordar o corpo
e o desejo a partir do teor pornográfico com segurança e sem medo, movimento que
acredito que seja justamente pelo seu trabalho como pesquisadore. Diante disso, irei
iniciar a formação da constelação por ele.
A iluminação proporcionada pelo néon e o apelo pornográfico presentes em
Latifúndio se conectam ao longa-metragem Vento Seco (2020, dir. Daniel Nolasco).
Este filme me remeteu a outros dois longas-metragens. O primeiro é Boi Neon (2015,
dir. Gabriel Mascaro), devido ao seu teor sexual homoerótico e ao fetiche ligado ao
animalesco. E o segundo é Doce Amianto (2013, dir. Uirá dos Reis e Guto Parente),
devido ao seu caráter lúdico e imaginativo.
Os filmes mencionados têm em comum o elemento do néon em sua iluminação,
mas Boi Neon e Doce Amianto vão além trazendo formatos diferentes, como a tinta
néon como materialidade e o néon como efeito da pós-produção. Sendo assim, Boi
Neon possui ligações com Tinta Bruta (2018, dir. Filipe Matzembacher e Márcio
Reolon) pelo uso da tinta néon e Peixe (2019, dir. Yasmin Guimarães), de maneira
mais distante, pela presença de objetos em néon. No caso de Doce Amianto, o filme
se aproxima de Alice Júnior (2019, dir. Gil Baroni) devido às intervenções do néon na
pós-produção.
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Fonte: Latifúndio (2017, Érica Sarmet) e Vento Seco (2020, Daniel Nolasco).
Nessa cena específica, Sandro observa Maicon de longe, enquanto ele chega
em casa. Após a entrada de Maicon, Sandro se aproxima da residência e o portão se
abre de maneira misteriosa, sugerindo uma dimensão sobrenatural, um devaneio.
Sandro decide entrar, e é nesse momento que a iluminação rosa néon surge,
intensificando seus desejos (Figura 17). O que nas cenas anteriores era apenas um
sonho se torna claro nesta cena, Sandro está dissociado da realidade, pois as luzes
rosas vão se apagando gradualmente à medida que ele se aproxima da moto.
Mergulhado em seus contatos íntimos com a moto, de repente, Sandro escuta
barulhos dentro da casa, voltando também às sonoridades da cidade, tirando-o do
estado de excitação. Assim, fica nítido que Sandro invadiu a casa de Maicon movido
por seus desejos.
Figura 17 - Sandro entrando na iluminação rosa néon no momento que sua imaginação sexual aflora
em Vento Seco.
Figura 18 - A mesma iluminação rosa que se apresenta quando Sandro deseja Maicon, seja em um
acontecimento real ou em um devaneio, respectivamente.
Figura 19 - Sandro vê Maicon pela primeira vez. O quadro apresenta a presença do néon, porém não
está imerso na mesma intensidade de iluminação dos devaneios de Sandro.
homem que se relaciona apenas com mulheres. Ele demonstra seu desejo em
momentos apropriados, desafiando os estereótipos de masculinidade viril e
hipersexual. A narrativa distingue claramente sua visão sexual diante do corpo
feminino em um contexto de intimidade e quando ele lida com esse corpo no âmbito
profissional, esses momentos revelam também sua sensibilidade na arte da
confecção. Isso vai de encontro à ideia cultural esperada por homens cis, que não
deveriam agir com sensibilidade ou ver mulheres por outros pontos de vista, que não
o sexual. Assim, o filme apresenta comportamentos possíveis que não seguem a
cartilha da performatividade de gênero. De forma similar, essa complexidade é
explorada na personagem Galega, uma mulher cis que desfruta de liberdade sexual e
trabalha em uma ocupação considerada masculina, dirigindo um caminhão. O filme
complexifica a construção das personagens, estabelecendo oposições
comportamentais em nuances, questionando a rigidez de ideias binárias.
Em Boi Neon, a performance corporal e a estética relacionadas ao néon
buscam desafiar convenções sociais e nos conduzir a um exercício imaginativo. Os
valores que são apresentados e aparentemente superficiais desempenham um papel
crucial no filme, pois além de refletir sobre desejos e fetiches, também questionam o
valor monetário e social do trabalho. O filme explora essa imagem, essa busca pela
beleza através do prisma do lucro e da exploração de corpos, aproximando a ideia do
néon enquanto elemento capitalista, como vemos nos letreiros (Figura 20).
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Figura 20 - Performance de Galega modulando trejeitos de um cavalo sob uma iluminação néon
vermelha e a derrubada do boi coberto por tinta néon em uma vaquejada.
Boi Neon está em uma zona de transição, pois além da presença da iluminação
néon, também há a inclusão de objetos a partir da tinta néon. É interessante perceber
que nesse filme, as aparências e escolhas estéticas com apelo néon não dizem
respeito às relações sexuais, e sim sobre os corpos que trabalham. Ao invés disso,
aproxima-se o sexo a uma noção animalesca, não no sentido de selvageria e
intensidade, mas sim em busca de uma normalização das práticas. É um ponto que
consigo observar também em Vento Seco.
Embora em Vento Seco o néon esteja relacionado aos desejos sexuais do
inconsciente, o filme também apresenta cenas de sexo, assim como em Boi Neon.
Ambos os filmes buscam por momentos de respiro do néon, explorando a realidade
carnal. Há uma tentativa de retratar o ato sexual como algo normal e banal, ligado à
natureza, e não como uma fantasia, ou do uso do corpo como mercadoria (Figura 21).
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Além disso, os filmes abordam o trabalho como questão central, e o sexo ocorre
nos intervalos, nos lembrando que a fantasia e a aparência nos afetam e nos
conduzem, mas as relações sexuais são, acima de tudo, simples e diretas. Em Boi
Neon, próximo ao final do filme, há uma cena de sexo entre Iremar e Geise,
apresentada em um plano-sequência de quase 10 minutos. É importante destacar que
Geise é uma mulher grávida desfrutando do prazer sexual, desafiando outra
convenção cultural no filme. Em Vento Seco, também no desfecho do filme, três
personagens que ao longo da trama foram envolvidos em intrigas e comportamentos
questionáveis devido a ciúmes e outros pressupostos monogâmicos têm relações
sexuais em conjunto (Figura 21).
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Fonte: Boi Neon (2015, Gabriel Mascaro) e Vento Seco (2020, Daniel Nolasco).
Outro filme que Vento Seco se conecta é Doce Amianto, devido ao aspecto
lúdico, embora de uma maneira distinta, com um foco mais afetivo do que sexual.
Doce Amianto é um filme extremamente frívolo e camp, em que a narrativa,
caracterização, linguagem e comportamentos das personagens são exagerados e
inspirados em contos de fadas. O filme destaca personagens queer no centro da
história, como Amianto e sua fada madrinha Blanche. A vida de Amianto possui altos
e baixos em seus relacionamentos afetivos, principalmente devido aos traumas que
carrega e às expectativas amorosas impostas pela heteronormatividade. Após ser
abandonada por seu antigo amante, Amianto fica triste e encontra conforto em
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Em uma cena, Amianto sai para jantar com seu pretendente, porém, ao retornar
do banheiro trazendo um presente em mãos, se depara com outra versão de si mesma
com o rapaz, ficando incrédula. Esse acontecimento ilustra o medo profundo de
rejeição que ela carrega, como se fosse possível ser substituída por uma versão de si
mesma. Depois, entende-se que esta cena é um sonho representado inteiramente em
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Outra cena intrigante que reforça essa dinâmica ocorre quando Blanche
aconselha Amianto a ir a uma festa para se distrair e se sentir melhor. Amianto segue
o conselho e, ao chegar à festa, começa a dançar entusiasmada (Figura 24). De
repente, ela avista um homem que desperta seu interesse. A música muda para o som
de batidas de coração, e Amianto começa a apresentar diversas trocas de roupas,
como em um sonho que teve anteriormente. Nesse momento, parece que ela está
escolhendo diferentes roupas e personalidades para se apresentar a esse homem, na
esperança de ser aceita. Amianto então se aproxima dele e, após algumas trocas de
palavras, começa a imaginar uma vida completa ao seu lado: encontros românticos,
casamento, lua de mel, a rotina de convivência e o término. De volta à realidade,
devastada com o término fictício, Amianto interrompe o beijo e expressa sua
descrença de que ele poderia tratá-la daquela forma em seus pensamentos.
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Após o ocorrido, Amianto anda pelas ruas visivelmente triste vestindo um traje
de luto. Ao retornar para casa, alguns momentos depois, o mesmo rapaz que a deixou
abalada bate à sua porta e eles acabam se envolvendo casualmente. Nesse momento,
Amianto se vê feliz, pois sente que sua aparência e personalidade foram validadas.
Chega ao fim do filme, a cena corta para Amianto dançando alegremente sob luzes
strobo, ou seja, luzes de efeitos estroboscópicos (Figura 25).
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Figura 25 - Ao final do filme, Amianto dança feliz sob luzes strobo após sexo casual.
Doce Amianto pode ser considerado caricato, sem sentido e lúdico à primeira
vista, entretanto ele retrata um sentimento comum entre pessoas queer: a rejeição.
Por não se encaixarem nas expectativas cisheteronormativas, essas pessoas
enfrentam dificuldades para terem afetividades, são corpos comumente objetificados.
Além disso, quando inseridas em uma cultura cristã, capitalista e monogâmica, que
promove modelos de vivência ideais, muitas vezes não há espaço para aqueles que
são dissidentes, restando a frustração.
Fazendo um paralelo com a realidade, pessoas como Amianto muitas vezes
procuram conselhos em suas comunidades, encontrando apoio em figuras como
Blanche. Que utilizam de festas como ambiente seguro para se distrair e tentar
estabelecer conexões sem sofrer tanto. Essas estratégias são uma forma de lidar com
as dificuldades enfrentadas por pessoas queer na busca por aceitação e
relacionamentos significativos.
Antes de abordar os filmes que Boi Neon me remeteu ao definir a constelação,
gostaria de discutir Alice Júnior, um filme que se conecta com Doce Amianto pela
utilização do néon na pós-produção. Em Doce Amianto, o néon é inserido na pós-
produção por meio do chroma key e é destacado nos sonhos de Amianto, onde ela
troca de roupas ou experimenta momentos de alegria. Em Alice Júnior, os efeitos
visuais em néon estão presentes em duas ocasiões distintas. Primeiro, eles são
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Figura 26 - Vídeo produzido por Alice respondendo perguntas, transmitido na tela inicial de seu
computador.
internet e está tentando conseguir seu primeiro beijo. A utilização de traços na tela em
situações cotidianas e o uso do néon em sua vida online tornam o filme mais leve e
divertido. Apesar de lidar com momentos de preconceito, a narrativa busca
proporcionar momentos de diversão e percalços típicos da adolescência. O filme não
se concentra exclusivamente no sofrimento trans, mas sim na celebração das
amizades, no relacionamento com seu pai e na transição para a nova fase de vida em
uma cidade diferente.
Do ponto de vista identitário, Alice Júnior é um filme muito relevante. Não se
trata de momentos de fabulações como os outros já citados, a fabulação nesse filme
é de uma representação de uma vida trans adolescente possível, na qual Alice se
diverte, tem recursos financeiros, conta com o apoio paterno, pode se expressar como
indivíduo, possui autoestima e ainda descobre sua bissexualidade ao fim do filme. O
filme destaca a possibilidade de uma vivência positiva para pessoas trans, celebrando
suas experiências e existência.
Seguindo a formação constelar, Boi neon se conecta a Tinta bruta e Peixe.
Em Tinta Bruta, estabelece-se um diálogo com Boi Neon por meio do uso da
tinta néon. Enquanto em Boi Neon há um equilíbrio entre a iluminação e o néon
material da tinta, em Tinta Bruta a sensibilidade está concentrada no uso da tinta néon,
que é realçada pela luz negra.
O contraste visual entre o néon e uma atmosfera densa da cidade é marcante
em Tinta Bruta, o néon cria uma variabilidade do cotidiano de Pedro. O protagonista
se encontra em um estado ansioso, solitário e problemático, em um momento de
vários processos de transição em sua vida. A tinta néon representa a busca de Pedro
pela libertação. Ela simboliza sua tentativa de se desvencilhar dos medos que o
aprisionam, assim o néon assume um papel simbólico e sensorial, guiando-o em sua
jornada de superação dos traumas causados pela homofobia.
No início do filme, somos apresentados a Pedro, que utiliza o codinome
GarotoNeon para realizar performances eróticas virtuais com tinta néon. Essas
performances se tornam um refúgio para ele, uma forma de escape diante das
interações homofóbicas que enfrenta ao longo da história. Pedro encontra conforto e
liberdade na relação afetiva que estabelece com Leo, e juntos, eles também utilizam
de seus corpos nas performances online, fazendo uso do néon para se diferenciarem.
Essas performances são uma forma de criar marcadores para si mesmos enquanto
sujeitos queer.
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Figura 28 - Primeira imagem, Pedro performa em seu quarto com tinta néon. Na segunda, ao final do
filme, ele dança em público usando a mesma tinta.
Figura 29 - Comparação entre um dia comum e um dia de festa. A cor néon é usada como elemento
distintivo.
Figura 30 - Presença néon em um momento incomum que conota que Pedro é Greta.
colônias, todos foram vacinados para perder essa habilidade. Na Terra, a polícia atua
em defesa dos interesses da colônia espacial, enquanto a seita surge como um ato
de resistência contra o sistema dominante. Eles fornecem uma bebida específica de
forma ritualística em um ambiente seguro para permitir que os que permaneceram na
Terra possam dormir e sonhar.
O protagonista, entre relações amorosas e o tédio do cotidiano, descobre a
existência da seita ao se deparar com um cartaz rosa néon que aparece
repetidamente nas ruas (Figura 32). Esse momento marca uma virada na trama,
servindo como um alerta em meio à realidade comum. O cartaz desperta sua
curiosidade, levando-o para algo secreto e considerado impróprio pelos padrões
dessa sociedade futurista.
100
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
moral, bem como ao estender as noções sobre o camp por meio da estética do lindo
e da ligação entre cor e luz. Ao trazer o néon como um elemento cinematográfico e
propor uma forma de análise, tanto em sua expressão atípica quanto típica, foi
possível perceber suas nuances como conceito a partir do efeito néon. Além disso, foi
aberta a possibilidade de compreender o néon não apenas como um dispositivo
material de iluminação, mas também como um rastro luminoso cujas fontes de
produção podem ser variadas, tanto materiais quanto digitais. Outra contribuição
importante foi a colaboração, ainda que de forma concisa, da história do néon e do
movimento underground americano na língua portuguesa. Essa disponibilidade de
material em português facilita o acesso a esses temas, uma vez que não encontrei
fontes disponíveis na língua portuguesa anteriormente.
Gostaria de ressaltar mais uma questão antes de concluir as considerações,
que foi observada durante a pesquisa: a relação entre a estética do artifício e do queer
como ações anticapitalistas através de suas críticas. Essas estéticas funcionam como
ferramentas para compreender o sistema e evidenciar sua precariedade e a
necessidade de mudanças. No entanto, é importante ressaltar que o fim desse sistema
não deve ser promovido apenas por meio dessas estéticas, mesmo que elas
desempenhem um papel crítico em relação à realidade. A possibilidade de superar o
sistema capitalista ocorre por meio de mobilizações populares e/ou ações de partidos
socialistas e comunistas. É importante reconhecer que, ao longo do tempo, essas
estéticas podem ter seu impacto reduzido, já que as críticas ao capitalismo são
absorvidas por ele e transformadas em mercadorias, observamos esse fenômeno nas
pautas identitárias, por exemplo, nas quais são vendidos inúmeros produtos com a
bandeira LGBTQIAP+ estampada.
Por fim, considero que o projeto obteve resultados satisfatórios. Desde o início,
não foram realizadas grandes mudanças no tema, mas sim direcionamentos mais
objetivos e aprofundamentos, o que me auxiliou a focar nos argumentos. Foi
desafiador em diversos aspectos, uma vez que os temas abordados eram
relativamente distantes e foi necessário encontrar pontos de intersecção para criar
significados e possibilidades teóricas. O projeto se revelou importante ao apontar
novos caminhos para a compreensão do cinema queer e da estética do artifício, ao
introduzir um novo elemento, o néon. Isso possibilita a ampliação dos estudos sobre
o néon em outras áreas da arte e em cinemas que vão além do contexto queer,
também permitindo a realização de pesquisas que não se restrinjam apenas aos filmes
108
REFERÊNCIAS
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