Nothing Special   »   [go: up one dir, main page]

Fgalli1,+Ling+ +corrêa Rosado Layout+ (1) +

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 27

Revista Investigações, Recife, v. 35, n. 2, p.

1 - 27, 2022
https://periodicos.ufpe.br/revistas/INV/index
https://doi.org/10.51359/2175-294x.2022.252076

Afinal, o que é telenovela? Em busca da


configuração do gênero situacional

Leonardo Coelho Corrêa-Rosado*

Resumo: O presente trabalho visa descrever o gênero discursivo/situacional telenovela


brasileira, configurando suas características situacionais, discursivas e formais a fim de
compreender seu funcionamento intragenérico, bem como o papel desse gênero como artefato
cultural da sociedade brasileira. Para tal, utilizamos como arcabouço teórico-metodológico a
Teoria Semiolinguística de Charaudeau (1983; 1992; 1997; 2004; 2008), conjuntamente com os
estudos de gêneros discursivos propostos por Miller (1994) e Bakhtin (2010). Nossas análises
evidenciaram que a telenovela procura representar a realidade brasileira, suas crenças e valores
de seu povo, funcionando como horizonte de referência para diversos atores sociais.
Palavras-chave: Telenovela brasileira. Gênero discursivo. Análise do discurso. Teoria
Semiolinguística.

Abstract: The present work aims to describe the situational/discursive genre, Brazilian
telenovela, configuring its situational, discursive and formal characteristics in order to
understand its intrageneric functioning, as well as the role of it as a cultural artifact in Brazilian
society. For this, we used, as a theoretical-methodological framework, the Semiolinguistics
Theory of Charaudeau (1983; 1992; 1997; 2004; 2008), with the studies of discursive genres
proposed by Miller (1994) and Bakhtin (2010). Our analyzes showed that telenovela seeks to
represent Brazilian reality, the beliefs and values of its people, functioning as a reference horizon
for social actors.
Key-words: Brazilian telenovela. Discursive genre. Discourseanalysis. Semiolinguisticstheory.

Resumé: Le présent article vise à décrire le genre discursif/situationnel feuilletonbrésilien, en


configurant ses caractéristiques situationnelles, discursives et formelles afin de comprendre son
fonctionnement intragénirique, ainsi que le rôle de ce genre en tant qu'artefact culturel de la
société brésilienne. Pour cela, nous utiliserons la Théorie Semiolinguistique de Charaudeau
(1983; 1992; 1997; 2004; 2008), comme cadre théorique-méthodologique, ainsi que les études des
genres proposées par Miller (1994) et Bakhtine (2010). Nos analyses ont montré que le feuilleton
cherche à représenter la réalité brésilienne, lescroyances et valeurs de sonpeuple,
fonctionnantcommeunhorizon de référence.
Mots-clés: Feuilleton brésilien. Genre discursif. Analyse du discours. Théorie semiolinguistique.

*
Doutor em Linguística do Texto e do Discurso pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e
professor da rede particular de Belo Horizonte (MG). https://orcid.org/0000-0002-9447-472X /E-mail:
leotimtimcorre@icloud.com.
Este artigo está licenciado sob forma de uma licença Creative Commons Atribuição 4.0
Internacional, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que
a publicação original seja corretamente citada.
https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR .
CORRÊA-ROSADO, Leonardo Coelho

Introdução

A telenovela é um artefato cultural brasileiro. Essa declaração não é difícil de se


comprovar, sobretudo, quando consideramos que a maior emissora de televisão do
Brasil – a TV Globo – reserva cerca de 5 horas de sua programação diária para a exibição
de suas produções telenovelísticas (incluindo as novelas do Vale a Pena Ver de Novo, até
as novelas das 23h, de periodicidade variada). Esse fato pode também ser observado em
outras emissoras, como a RecordTV, que, nos últimos anos, vem investindo em
telenovelas de caráter bíblico, alcançando sucessos de audiência e desafiando a
concorrência (é o caso, por exemplo, de Os Dez Mandamentos, exibida entre março de
2015 e julho de 2016, com 242 capítulos).
Ademais, a história da televisão brasileira é cheia de passagens em que as
telenovelas são grandes “protagonistas” da vida cotidiana de muitos brasileiros, gerando
situações curiosas, como bolões lotéricos, sorteios de prêmios, modismos, além de
repercussões das mais variadas em jornais, revistas e redes sociais. A título de exemplo,
citamos a repercussão nas redes sociais do famoso “beijo gay” entre as personagens Félix
(Matheus Solano) e Niko (Thiago Fragoso) no último capítulo de Amor à vida, novela de
Walcyr Carrasco, exibida pela Globo entre maio de 2013 e janeiro de 20141.
Mesmo com a evolução do acesso à internet no país, a televisão faz parte de 97,2%
dos domicílios brasileiros, segundo dados levantados pelo IBGE por meio da Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua 2016 2 . Diante desse cenário,
podemos afirmar que, embora, atualmente, as telenovelas sofram concorrência com
outros gêneros narrativos ficcionais seriados, como as séries das diferentes plataformas
de streaming (Netflix, HBO Plus, Amazon Prime, entre outras), elas ainda constituem um

1
Segundo dados do IBOPE, o capítulo final de Amor à vida consolidou 48 pontos de audiência na grande
São Paulo e 45 pontos no Rio de Janeiro. Além do mais, um tweet publicado pelo Estadão, em 31 de janeiro
de 2014 (data da exibição do último capítulo da referida telenovela), divulgando imagem e matéria sobre
o “beijo gay”, movimentou as redes sociais, com comentários de apoio e desprezo pela exibição da cena. É
possível visualizar essa repercussão na rede social em questão por meio do link:
https://twitter.com/Estadao/status/429423898480738304.
2
Para consulta dos dados levantados na pesquisa mencionada, sugerimos a leitura da página do site
Agência Brasil, por meio do link: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2018-02/uso-de-
celular-e-acesso-internet-sao-tendencias-crescentes-no-brasil.

Revista Investigações, Recife, v. 35, n. 2, p. 1 - 27, 2022 ISSN Digital 2175-294x

2
CORRÊA-ROSADO, Leonardo Coelho

imenso repertório de histórias, personagens e comportamentos de domínio comum a


muitos brasileiros – domínio este que serve de horizonte para que muitos
telespectadores, sobretudo das classes D e E, se posicionem e interpretem tanto os seus
próprios dramas, quanto os problemas e situações sociais e políticas que os envolvem.
Outrossim, muitas plataformas de streaming, como a Globoplay (do Grupo Globo)
e a Netflix, disponibilizam várias telenovelas para seus assinantes. O caso da Globoplay
é bastante interessante nesse ponto, uma vez que a plataforma disponibiliza sucessos da
emissora, resgatando clássicos da teledramaturgia. Em seu catálogo, é possível encontrar
títulos como Tieta (1989-1990), O Bem-Amado (1973), Mulheres de Areia (1993-1994), A
Indomada (1997), entre outros. Desde abril de 2020, a plataforma em tela disponibiliza,
a cada 15 dias, uma novela completa em formato streaming.
Ainda com a relação à Globoplay, muitas dessas telenovelas vêm se tornando
recordes de audiência entre o público-assinante, como é o caso de Mulheres de Areia. De
acordo com o jornal O Globo3, o remake protagonizado por Glória Pires (nos papéis das
gêmeas Ruth e Raquel) teve cerca de 4.965 milhões de horas assistidas em seus primeiros
30 dias no streaming. A referida novela, originalmente exibida em 1993, estreou na
Globoplay em 29 de março de 2021.
Esse cenário justifica, então, a proposição desse artigo, cujo título, “Afinal, o que
é uma telenovela?”, configura-se como uma pergunta que procuraremos responder ao
longo desse trabalho. Nesse sentido, nosso objetivo é tentar compreender a telenovela
enquanto um gênero discursivo que faz parte da vida de muitos brasileiros. Assim,
encaramos, por um lado, a telenovela como um tipo relativamente estável de enunciado
– tal como propõe Bakhtin (2010) –, ou mais especificamente uma classe de texto 4, tal
como propõe Charaudeau (1997) no âmbito da Análise do Discurso Semiolinguística,
arcabouço teórico-metodológico que orienta esse trabalho.
Por outro lado, a telenovela é um artefato cultural, uma parte dos modos de
representação do raciocínio e dos propósitos de uma cultura, tal como propõe Miller

3
Os dados relativos à pesquisa realizada pela colunista Patrícia Kogut de O Globo podem ser acessados
pelo link: https://kogut.oglobo.globo.com/noticias-da-tv/novelas/noticia/2021/05/mulheres-de-areia-e-
novela-de-maior-sucesso-do-globoplay-confira-o-ranking-completo.html.
4
Para Charaudeau (1992; 1997), o texto é o resultado de um ato de linguagem produzido por um sujeito
em uma situação de troca social contratual.

Revista Investigações, Recife, v. 35, n. 2, p. 1 - 27, 2022 ISSN Digital 2175-294x

3
CORRÊA-ROSADO, Leonardo Coelho

(1994). Essa perspectiva não exclui o ponto de vista precedente (na verdade o
complementa), já que, sendo a cultura um “modo particular de vida, em certo tempo e
lugar, experienciado em toda sua complexidade por um grupo que compreende a si
mesmo como um grupo identificável” (MILLER, 1994, p. 47), o gênero corresponderia a
um desses modos de interação desse grupo, ou nas palavras de Miller (1984, p. 22), “ações
retóricas tipificadas, fundidas em situações recorrentes”.
Diante desse quadro, o presente trabalho visa descrever o gênero
discursivo/situacional telenovela, configurando suas características situacionais,
discursivas e formais a fim de compreender seu funcionamento intragenérico, bem como
o papel desse gênero como artefato cultural. Para tal, utilizaremos como arcabouço
teórico-metodológico a Análise do Discurso Semiolinguística proposta por Charaudeau
(1983; 1992; 1997; 2004; 2008), conjuntamente com os estudos de gêneros discursivos
propostos por Miller (1984; 1994) e Bakhtin (2010). Além do mais, para empreender tal
configuração, utilizaremos trabalhos de estudiosos da televisão e das telenovelas, tais
como Balogh (2002), Costa (2000), Hamburger (2005; 2010), Machado-Borges (2003),
entre outros.

Antes de responder, vamos esclarecer uma possível dúvida...

Como existem diversos modelos de telenovela, como a soap opera estadunidense5,


a telenovela fechada 6 , a telenovela latino-americana, convém esclarecer a que tipo

5
A soap opera pode ser considerada uma produção ficcional transmitida pela TV, cuja história se baseia
em peripécias de uma comunidade cambiante, de um local definido ou de uma família circunscrita, não
tendo um fim exatamente previsto, prestando a ser permanentemente estendida. Segundo Pallottini (1998,
p. 53), os exemplos mais próximos e mais conhecidos são Dallas e Dinastia. “Na verdade, a soap opera está
mais para um longuíssimo e infindável seriado que para a telenovela como a conhecemos”.
6
De acordo com Pallottini (1998), a telenovela fechada é similar à telenovela brasileira (tradicional), no
entanto, é totalmente escrita e gravada antes de ir ao ar, o que não possibilita mudanças nos rumos da
história devido a questões de audiência (IBOPE), mercadológicas ou de preferência do público. Algumas
emissoras brasileiras, como o SBT, produziram e ainda produzem exemplares desse modelo, como Éramos
seis (SBT, 1994), As pupilas do Senhor Reitor (SBT, 1995), entre outros.

Revista Investigações, Recife, v. 35, n. 2, p. 1 - 27, 2022 ISSN Digital 2175-294x

4
CORRÊA-ROSADO, Leonardo Coelho

estamos nos referindo antes de propor uma possível resposta: a telenovela brasileira. À
maneira de Costa (2000), chamamos de telenovela brasileira esse produto televisivo
peculiar que passou a ser apresentado no Brasil, a partir do final da década de 60,
resultado de um processo de transformação marcante, cujo ponto culminante foi Beto
Rockfeller, de Bráulio Pedroso, exibida pela extinta TV Tupi em 1968-69.
Logo, não estamos nos remetendo apenas às produções adaptadas,
nacionalizadas ou geradas no Brasil, ou seja, aos produtos made in Brazil. Na verdade,
quando falamos de telenovela brasileira, estamos nos referindo ao gênero que adquiriu
características próprias, provenientes de nosso teatro, de nossa literatura, de nosso
cinema, enfim, de nossa cultura nacional, e cujas maiores expressões se dão nas
manifestações do realismo fantástico, presentes, por exemplo, em Saramandaia (1976),
Roque Santeiro (1985-1986), Tieta (1989-1990), Pedra sobre Pedra (1992), Fera Ferida
(1993-1994), A Indomada (1997-1998) e também nas histórias de cunho social, com forte
tendência realista, como Irmãos Coragem (1970-1971), Dancin’ Days (1978-1979), Água
Viva (1980), Vale Tudo (1988-1989), Belíssima (2005-2006), Avenida Brasil (2012-2013).
Estamos tratando, portanto, dessas produções com “cores locais”, como diria Machado
de Assis (1997 [1873]) em seu famoso Instinto de Nacionalidade, adaptando aqui o
pensamento de Machado às produções ficcionais televisivas.
Se nas telenovelas latino-americanas – sendo nosso referencial mais próximo as
mexicanas importadas pelo SBT como, por exemplo, Simplesmente Maria (1991), Maria
do Bairro (1997), A Usurpadora (1999), Manancial (2002-2003), entre outras – o modelo
é basicamente o chamado dramalhão, com enredo melodramático, centrado na família
burguesa e em seus conflitos, advindos geralmente da oposição entre instintos e anseios
íntimos, e a necessidade de adequá-los às normas sociais, também burguesas, na
telenovela brasileira, os temas são geralmente nacionais, retratando, ainda que de forma
ambígua e às vezes até paradoxal, uma parcela da realidade brasileira – na grande
maioria das vezes, a parcela de parte da classe média alta das grandes cidades brasileiras,
centradas no eixo Rio de Janeiro e São Paulo. Nesse sentido, elas podem ser vistas como
espaços para a mobilização de grades de interpretação e reinterpretação de certos
conteúdos socioculturais, incluindo modelos – frequentemente hegemônicos – de
estrutura familiar, relações de gênero, arranjos políticos, entre outras questões.

Revista Investigações, Recife, v. 35, n. 2, p. 1 - 27, 2022 ISSN Digital 2175-294x

5
CORRÊA-ROSADO, Leonardo Coelho

Logo, trata-se de um gênero com fortes traços de natureza social e crítica, com
enredos centrados não só em conflitos íntimos, pessoais e sentimentais, mas também
sociais 7 . A maior expressão desse modelo se revela nas produções da Rede Globo de
Televisão, que, desde o início dos anos 1970, se tornou a pioneira de produção do gênero
no Brasil, engendrando um modelo que foi e é, quase sempre, seguido por outras
emissoras brasileiras.

O que é telenovela? Uma possível resposta

Voltemos à pergunta proposta no título desse artigo. Em termos de gênero


discursivo, podemos definir, a princípio, a telenovela como uma novela escrita
diretamente ou adaptada de outro gênero (obra literária, peça teatral, etc.) para a
televisão (S. COSTA, 2008; RABAÇA; BARBOSA, 1995). Corresponde, dessa maneira, a
um tipo de novela, isto é, a uma “[...] forma narrativa, popular e produzida pela indústria
cultural” (COSTA, 2000, p. 133), cujas origens e funções remontam às canções de gesta,
de temática aventuresca e de comportamentos heroicos, contadas por trovadores na
Idade Média, com o intuito de entreter as pessoas. Hoje, o termo “novela” é usado para
designar essa narrativa sentimental, melodramática e seriada, produzida, sobretudo, na
América, em suas versões literárias (novela literária), radiofônica (radionovela), de
imprensa (fotonovela) e televisiva (telenovela).
Partindo dessa perspectiva, a telenovela corresponde, então, a um subgênero
desse gênero maior que é a novela (nos moldes como estamos apresentando acima).

7
O fato de a telenovela brasileira ser um espaço de interpretação e reinterpretação de certos conteúdos
sociais, como estamos propondo, não pressupõe que elementos melodramáticos e folhetinescos não
integrem a sua construção composicional (BAKHTIN, 2010) ou mesmo sua organização narrativa
(CHARAUDEAU, 1992). A telenovela é fruto de um conjunto de antecedentes que, de um modo ou de
outro, se fazem presentes em sua estrutura narrativa. Nesse ponto, concordamos com Porto e Silva (2005),
para quem a influência do melodrama e do romance-folhetim na telenovela brasileira vai mais além das
situações melodramáticas e dos coups de théâtre (grosso modo, imprevistos). Eles se ajustam facilmente à
programação televisiva e renascem plenamente na telenovela, “[...] comovendo e prendendo o interesse
de milhões de telespectadores, assim como o fizeram as peças desse gênero de teatro [melodrama] com
plateias no passado” (PORTO E SILVA, 2005, p. 47).

Revista Investigações, Recife, v. 35, n. 2, p. 1 - 27, 2022 ISSN Digital 2175-294x

6
CORRÊA-ROSADO, Leonardo Coelho

Assim, o gênero novela, com o seu macrocontrato comunicacional, desdobra-se em


outros subgêneros, com seus subcontratos comunicacionais, condicionados
principalmente pelo dispositivo midiático utilizado para veicular o gênero (televisão,
rádio ou imprensa escrita).
Nesse sentido, os subcontratos dos subgêneros novelísticos, a telenovela, a
radionovela, a fotonovela, assumem traços dos contratos que configuram o dispositivo
comunicativo que os carregam (televisão, rádio, imprensa) e da comunicação midiática
em geral. Isso se justifica pelo fato de que, como afirma Charaudeau (2001), os atos de
comunicação realizados em uma sociedade não corresponderem a um único tipo de
contrato, pois, com frequência, se intercruzam, se superpõem e/ou se encaixam
(CHARAUDEAU, 2001). Há, portanto, um “jogo de encaixamento de contratos”,
conforme propõem Lochard e Soulages (1998, p. 103) em sua análise da comunicação
televisual.
Além do mais, como sugere Calza (1996), a telenovela não pode ser confundida
com outras formas narrativas de representação, como o romance, as peças teatrais, os
poemas, pois, devido a esse encaixamento, a telenovela possui um lugar específico: a
mídia e a televisão. Assim, a telenovela é uma história ficcional, que não é literatura, não
é teatro, não é cinema, porém “pode surgir da adaptação de um livro ou mesmo ser
inspirada em poema, mas nunca se confundirá com eles” (CALZA, 1996, p. 7).
Por ser veiculado pela televisão, esse gênero assume características de seu
dispositivo físico, ou suporte, em sua organização, diferenciando-se de seus congêneres.
Desse modo, a imagem tem importância na significação da história 8 , porém não do
mesmo modo que nos filmes narrativos – embora a telenovela tenha incorporado a
gramática audiovisual hollywoodiana clássica (ritmo veloz das cenas, exploração dos
movimentos de câmera, cenários amplos e externos, iluminação sofisticada,
incorporação de linguagem musical mediante trilhas sonoras), na qual prevalece o texto

8
Ao tratar da mídia televisiva, Charaudeau (2006) afirma que a televisão é imagem e fala, fala e imagem,
não existindo, para a significação televisiva, imagem em estado puro, como poderia ser o caso das criações
na fotografia ou nas artes plásticas, como a pintura e a escultura. “Não somente imagem, como se diz
algumas vezes quando se trata de denunciar seus efeitos manipuladores, mas imagem e fala numa
solidariedade tal, que não se saberia dizer de qual das duas depende mais a estruturação do sentido”
(CHARAUDEAU, 2006, p. 109, grifo nosso).

Revista Investigações, Recife, v. 35, n. 2, p. 1 - 27, 2022 ISSN Digital 2175-294x

7
CORRÊA-ROSADO, Leonardo Coelho

imagético, disfarçando os recursos narrativos. Contudo, entre esses dois gêneros há uma
diferença, por exemplo, na utilização dos planos (predominantemente mais abertos no
filme narrativo de ficção e mais fechados nas telenovelas), bem como na constituição
das personagens (no filme, geralmente, há uma interioridade marcante, enquanto nas
telenovelas as personagens são trabalhadas mais por sua exterioridade – conduta,
figurino, hábitos de linguagem e tiques).
Ademais, na telenovela, os diálogos são mais importantes que as imagens, já que
a ação progride mais por meio deles. Em Dancin’ Days, por exemplo, quando a
personagem Julia Matos viaja para a Europa, acompanhada de sua amiga Solange, as
ações de Julia no “velho mundo” chegam ao telespectador não por meio de imagens (não
há cenas que mostrem as duas em Paris ou em Londres), mas por meio de diálogos entre
as demais personagens: Carminha e Jofre, Verinha e Ubirajara. Exemplos similares
também podem ser observados em Irmãos Coragem: quando a personagem Duda
Coragem se apresenta com uma grande barba, ficamos sabendo do motivo desta pelo
diálogo que ele tece com o seu irmão Jerônimo: fora uma promessa feita a São João de
Deus, por não ter perdido a perna com o erro médico de seu sogro, Dr. Maciel.
Devido à importância dos diálogos, alguns estudiosos definem o gênero como
sendo uma história contada, por meio de imagens televisivas, com diálogo e ação
(PALLOTTINI, 1998), ou mesmo uma história que se desenrola através de diálogos ou
de conversação (PIGNATARI, 1984). Concordamos com essas definições e
acrescentamos que o frequente recurso ao diálogo é, conforme nos explica Calza (1996),
resultado de uma mistura de diferentes tradições: do rádio9, da literatura e dos clichês
cinematográficos, “submetida a um conjunto primeiro de regras esquemáticas impostas

9
A televisão brasileira surgiu e se sustentou do rádio durante seus primeiros anos. Dele, o incipiente
veículo herdou o pessoal, os recursos técnicos e administrativos, e as formas de regulamentação. Assim, o
rádio foi umas das maiores influências no que tange à produção televisiva dos primeiros anos, pois muito
dos gêneros e formatos radiofônicos, como os programas musicais, os shows de calouros, as novelas, os
radioteatros, os programas humorísticos, os jornais informativos, entre outros, foram praticamente
transferidos para a televisão. Era comum ouvir entre os telespectadores, como aponta Fanucchi (1996),
que a TV dos primórdios não passava de uma “rádio com imagens”. No entanto, com a inauguração da TV
Excelsior no início dos anos 1960 e, posteriormente, com a chegada da TV Globo, houve um rompimento
com a tradição radiofônica e uma busca pela midiatividade televisiva, de modo a tornar a TV um veículo
próprio.

Revista Investigações, Recife, v. 35, n. 2, p. 1 - 27, 2022 ISSN Digital 2175-294x

8
CORRÊA-ROSADO, Leonardo Coelho

menos por opções estéticas e mais por pressões econômicas, ou seja, pelas necessidades
da TV comercial” (CALZA, 1996, p. 8).
Sua relação com a realidade faz com que a telenovela brasileira seja um modo de
representação de alguns aspectos da vida cotidiana, com alguns de seus problemas,
conflitos, resoluções e comportamentos, estando mais próxima da crônica do cotidiano
que do romance, como propõe Calza (1996) – embora a telenovela não seja nenhum dos
dois. O “mundo lá fora” é uma referência para a construção do enredo de uma telenovela,
visto que “[a] audiência tem que estar apta a acreditar que as personagens construídas
no texto são pessoas reais, agradáveis ou não, com quem possuam afinidades ou não”
(ANDRADE, 2003, p. 58).
Com efeito, na enunciação telenovelística, há a simulação de uma situação
possível de ordem psicossocial e espacial – definição de ficção proposta por Mendes
(2004) –, fazendo com que o contrato comunicacional desse gênero discursivo
estabeleça um estatuto ficcional, isto é, a telenovela é um gênero em que há o
predomínio da simulação de situações possíveis. Assim, as relações do discurso
telenovelístico com a realidade são as mais instigantes possíveis; a telenovela pode “nos
dar sinalizações muito contundentes sobre o que se passa no imaginário de nosso povo”
(BALOGH, 2002, p. 197). Dessa maneira, ela mimetiza (simula) 10 e constantemente
renova determinadas imagens do cotidiano, definindo, por um lado, uma certa pauta
que regula algumas interações entre a vida pública e a vida privada, e transmitindo, por
outro lado, uma certa noção do que é ser contemporâneo.
Logo, as novelas podem fornecer certo repertório comum para indivíduos de
diferentes classes sociais, gêneros, gerações e regiões, constituindo em uma espécie de
referência para esses grupos de atores sociais. Esse repertório é, frequentemente,
organizado em torno de alguns aspectos e problemas experienciados por determinados
segmentos da sociedade brasileira. Nessa propagação de sentidos, as histórias de muitas
telenovelas retratam a realidade vivida, sobretudo, pelos integrantes da classe média alta

10
Genette (2007) afirma que a melhor tradução para o termo grego mimese (proposto por Aristóteles em
sua Arte Poética) está no termo simulação, pois, na narrativa ficcional, o ato narrativo instaura (inventa)
de uma só vez, a história (o conteúdo narrativo) e a própria narrativa (o enunciado), e os dois são
perfeitamente indissociáveis.

Revista Investigações, Recife, v. 35, n. 2, p. 1 - 27, 2022 ISSN Digital 2175-294x

9
CORRÊA-ROSADO, Leonardo Coelho

das grandes capitais brasileiras, engendrando padrões hegemônicos que representam


segmentos majoritários em termos de gênero, etnia, sexualidade, classe social, entre
outros, ao mesmo tempo estereotipando segmentos que não fazem parte desse padrão.
Com isso, do ponto de vista da recepção, mesmo que os telespectadores, os
sujeitos psicossociais reais que assistem às telenovelas (o sujeito interpretante da Teoria
Semiolinguística), não concordem com tais representações, essas servem como
referência para que esses grupos de indivíduos se posicionem e interpretem o mundo ao
seu redor. Essa perspectiva é partilhada por diversos autores como Andrade (2003),
Hamburguer (1998, 2005), Lopes, Borelli e Resende (2002) e Machado-Borges (2003) e a
ela nós também nos filiamos. Sobre esse aspecto, Hamburguer (1998) afirma que:

Elas [as novelas] são capazes de “sintonizar” telespectadores com a


interpretação e a reinterpretação da política, assim como de tipos ideais de
homem, mulher, marido, esposa e família. A novela se tornou um dos veículos
que capta e expressa padrões legítimos e ilegítimos de comportamento
(HAMBURGUER, 1998, p. 468, grifo nosso).

Assim, esse repertório comum fornecido pelas telenovelas funciona como um


referencial para certas parcelas sociais, revelando o potencial desse gênero, enquanto
narrativa social, em construir identidades, às quais diversas narrativas individuais
podem se referir. Elas, portanto, desempenham um papel na construção de certas
identidades culturais de algumas comunidades da sociedade brasileira.
Desse modo, as telenovelas, como artefato cultural, não podem ser vistas como
textos neutros ou objetivos, já que elas transmitem uma mensagem sobre o social, não
oferecendo somente entretenimento (apesar de seu contrato pressupor uma visada
emocional, um fazer-agradar, como veremos mais adiante). As mensagens que elas
veiculam possuem mecanismos significativos que propagam certos sentidos,
obscurecendo outros, revelando e/ou escondendo tendências reais pelas quais se
organizam as relações sociais, como no caso do contexto brasileiro, mostrando e
idealizando a realidade.
Nesse ponto, não é incomum a exibição de telenovelas que representam, de
maneira estereotipada, minorias sociais, tais como os homossexuais, os negros, as
mulheres, entre outras, engendrando no discurso telenovelístico imaginários de que tais

Revista Investigações, Recife, v. 35, n. 2, p. 1 - 27, 2022 ISSN Digital 2175-294x

10
CORRÊA-ROSADO, Leonardo Coelho

minorias são identificadas desta ou daquela maneira. Um exemplo interessante é a


representação de personagens homossexuais masculinos, muitas das vezes,
representados como efeminados. Tais representações – citamos, por exemplo, o
mordomo Clodoaldo Valério da telenovela Fina Estampa (Rede Globo, 2011-2012) –
acabam por propagar sentidos de que todo e qualquer homossexual masculino
assemelha-se à representação estereotipada. Com isso, a diversidade social, em muitas
telenovelas brasileiras, tende a ficar limitada a representações naturalizadas de certas
parcelas sociais. Apesar de alguns avanços na última década, ainda existem muitos
preconceitos e estereótipos veiculados pelas nossas telenovelas – o que é um ponto
bastante negativo.
Entretanto, não podemos perder de vista um fato apontado por alguns sociólogos
da comunicação, de cuja ideia compartilhamos: se há um diálogo entre a telenovela e a
realidade, é porque preexistem na sociedade os conteúdos veiculados (ANDRADE, 2003;
MACHADO-BORGES, 2003). “Se a televisão veicula valores que são dominantes, o faz
pelo simples fato de que eles são dominantes na sociedade na qual ela faz parte”
(ANDRADE, 2003, p. 32). Logo, se as telenovelas veiculam estereótipos e mobilizam
certos preconceitos, é porque tais preconceitos e estereótipos fazem parte do imaginário
social.
Embora engendrando estereótipos, muitas telenovelas abrem espaço para a
discussão – frequentemente paradoxal – de valores morais, políticos, religiosos, e de
certas questões “tabus”, como a homossexualidade, as drogas, a virgindade, tornando-se
“[r]etrato do momento político, referência para a moda, fonte de comportamento, objeto
de análise social: a telenovela brasileira é hoje um dos mais importantes produtos
culturais do País” (ALENCAR, 2004, p. 2).
Sobre esse ponto, Costa (2000) complementa que:

[o] estilo melodramático, as peripécias das personagens e a intervenção do


público, exigindo uma versão cor-de-rosa da vida, levam-nos a pensar a
telenovela, muitas vezes, como um produto alienante e alienado, de nosso
imaginário. Mas, quando estudada de maneira mais profunda, a construção das
personagens e o desfecho de seus conflitos, vê-se que ela prima por um
desconcertante realismo. (COSTA, 2000, p. 157, grifo nosso).

Revista Investigações, Recife, v. 35, n. 2, p. 1 - 27, 2022 ISSN Digital 2175-294x

11
CORRÊA-ROSADO, Leonardo Coelho

O fato de ter seus enredos calcados em determinados aspectos de parte da


realidade faz com que as telenovelas engendrem em sua discursivização certa noção de
contemporaneidade e de ser contemporâneo. Nesse sentido, elas difundem, com
frequência, o que seu sujeito comunicante – o locutor da telenovela (uma instância
compósita formada por inúmeros sujeitos sociais) – imagina como sendo o universo
glamoroso das classes médias urbanas – centradas, sobretudo, no eixo Rio de Janeiro/São
Paulo, conforme mencionamos anteriormente – com suas inquietações, sua ânsia de
modernização, sua identidade construída em torno da atualidade sempre renovada e
exibida por bens de consumo. “Personagens usam telefones sem fio, celulares, faxes,
computadores, trens, helicópteros, aviões, meios de comunicação e de transporte que
atualizam [...] os padrões do que significa ser moderno” (HAMBURGUER, 1998, p. 443).
Mesmo no caso de telenovelas com um enredo localizado em espaços rurais e
interioranos, como Irmãos Coragem, Roque Santeiro e Tieta, é comum alguma referência
à contemporaneidade. As personagens Sinhozinho Malta e Viúva Porcina (Roque
Santeiro), por exemplo, ostentam uma série de artefatos que os colocam como
vinculados a esse universo: aviões, carros de luxo, telefones sem fio, entre outros
artefatos. Em Tieta, também temos uma situação similar: embora o enredo se localize
em Santana do Agreste (cidade localizada no agreste baiano), a personagem Tieta, ao
regressar à cidade, evidencia toda a lógica da capital paulistana por meio de seu
comportamento, linguagem, vestuário e pertences. Inclusive, a casa que ela constrói na
cidade, difere-se das dos demais habitantes.

Exemplo 1: Referência à contemporaneidade em Roque Santeiro (Sinhozinho Malta, i,


ii, iii, iv; Porcina, v, vi, vii, viii) e em Tieta (Tieta, ix, x, xi, xii)

i ii iii iv

Revista Investigações, Recife, v. 35, n. 2, p. 1 - 27, 2022 ISSN Digital 2175-294x

12
CORRÊA-ROSADO, Leonardo Coelho

v vi vii viii

ix x xi xii

Fonte: Imagens extraídas dos boxes de DVDs das referidas telenovelas 11.

Tal conjuntura aparece ainda indexada no merchandising incorporado pelas


telenovelas – com a exposição de produtos por personagens no desenvolvimento das
tramas –, ferramenta poderosa, com influência direta no consumo de determinados bens;
na moda lançada pelos figurinistas, nas trilhas sonoras lançadas em discos, nos livros
(no caso da telenovela ser uma adaptação); na representação das formas de comunicação
sucessivamente atualizadas: por exemplo, o telegrama que anuncia a chegada do
campeão de futebol Duda Coragem à sua cidade natal (Irmãos Coragem) representa um
fator moderno naquela cidade perdida no Brasil profundo.

Exemplo 2: Chegada do telegrama de Duda em Irmãos Coragem

Fonte: Imagens extraídas do boxe de DVDs da referida telenovela.

11
As imagens que compõem os diferentes exemplos desse trabalho foram retiradas dos boxes de DVDs das
referidas telenovelas mencionadas. Cumpre-nos ressaltar que tais boxes são produtos lançados pela
Globomarcas, ligada às Organizações Globo e à Rede Globo de Televisão.

Revista Investigações, Recife, v. 35, n. 2, p. 1 - 27, 2022 ISSN Digital 2175-294x

13
CORRÊA-ROSADO, Leonardo Coelho

Dessa maneira, as telenovelas brasileiras por meio de seu flow (MACHADO-


BORGES, 2003) – que não se restringe ao momento mesmo de sua enunciação, mas que
abarca uma série de outros elementos como os comentários da mídia (programas de
televisão, anúncios publicitários, artigos de jornais) e os produtos resultantes que
intervêm nas tramas, personagens e atores – interpelam os telespectadores de diversas
maneiras, podendo tais sujeitos (ao se reconhecerem como sujeitos a quem a
interpelação se dirige, isto é, como sujeitos destinatários do ato de linguagem
telenovelístico) se apropriarem dos discursos da telenovela e os engendrarem em suas
práticas sociais e discursivas, tal como propõe Machado-Borges (2003).
Embora as telenovelas estejam conectadas a uma visão hegemônica de
contemporaneidade, isso não pressupõe que seus enredos sejam inseparáveis das
temáticas do romance, da família, do amor, do casamento, da separação. “É a lógica das
relações pessoais que preside a narrativa dos problemas políticos ou sociais”
(HAMBURGUER, 1998, p. 469). Há sempre um “quê” de melodrama nos enredos e nas
temáticas das telenovelas; como diz o autor de telenovelas Benedito Ruy Barbosa: “O
amor é o que amarra tudo em uma novela. Se não houver uma grande história de amor,
ninguém vai se interessar por nada”.
Assim, se em termos de gênero e contrato, a finalidade, por selecionar uma ou
mais visadas, determina a orientação discursiva da comunicação, tal como propõe
Charaudeau (2004), podemos afirmar que a telenovela objetiva contar uma história para
os telespectadores, com intuito de entretê-los. Ela é, antes de mais nada, entretenimento,
cujo mainstream é o de narrar a crônica do cotidiano – ressaltando que tal cotidiano é,
frequentemente, hegemônico. Mesmo que seu enredo dialogue com uma parte da
realidade, engendrando outras visadas como a visada informativa (fazer-saber) e a visada
de incitação (fazer-fazer), a telenovela não pode prescindir de ser uma história de ficção
que agrade ao telespectador.
Ela deve propor-lhe uma satisfação hedônica, um fazer-agradar (visada
emocional), pois as novelas “são concebidas para fazer rir e chorar, amar e odiar e
portanto fazem, na maior parte das vezes, exatamente isso” (ANDRADE, 2003, p. 55). O
contrato comunicacional estabelecido entre os interlocutores propõe, então, um convite
implícito à especulação sobre julgamentos morais e/ou dilemas emocionais vividos pelas

Revista Investigações, Recife, v. 35, n. 2, p. 1 - 27, 2022 ISSN Digital 2175-294x

14
CORRÊA-ROSADO, Leonardo Coelho

personagens, “convite que é aceito pela audiência e materializado nas fofocas, conversas
e comentários que a trama destila” (ANDRADE, 2003, p. 52), e nas respostas às
interpelações da telenovela flow (MACHADO-BORGES, 2003, p. 80).
Com isso, a telenovela aparece como um jogo que brinca com o destino das
personagens ao longo dos capítulos. Nesse sentido, assistir novela é, para alguns
telespectadores, muito mais que ver um programa de TV; é estar envolvido em sua trama,
é se deixar levar pelo suspense, é compartilhar emoções com as personagens, é discutir
as motivações de suas condutas, é, por fim, decidir o que é certo ou errado. Assim, não
é incomum que certo telespectador ligue a TV para assistir à telenovela com o intuito de
se envolver, de se deixar seduzir, de ver reconhecida sua própria existência e experiência
do dia-a-dia na tela da televisão. Sobre esse envolvimento, Calza (1996) complementa
que:
uma TN [...] [e]ngendra-se a partir de seres de papel, saídos do reino da ficção,
que de repente saltam para a vida real e, por seu alto poder de influência,
invadem a privacidade do telespectador, na situação mais desprotegida:
relaxada, no recesso do seu lar. O processo chega a ser catártico, terapêutico: o
telespectador [...] quer se exaurir em emoções e sobressaltos (CALZA, 1996, p.
14, grifos nossos).

Dessa maneira, a telenovela, como todo ato de linguagem, é uma aposta, ou nas
palavras de Charaudeau (1983), uma expedição e uma aventura. Uma expedição porque
ela é organizada, dentro das possibilidades situacionais, por um sujeito (na verdade, por
vários sujeitos que constituem uma instância compósita), dotado de uma
intencionalidade, que se dirige a outros sujeitos, seus destinatários, a fim de influenciá-
lo de algum modo; uma aventura porque não se sabe se os efeitos visados por esse sujeito
intencional serão efetivamente produzidos no destinatário.
Podemos afirmar que a telenovela é similar a um encontro de conhecidos, em que
um (o telespectador) espia a vida do outro (as personagens), encontro este cuja única
fidelidade que existe é com a interação comunicativa, ou seja, com o próprio ritual de
contar/assistir (COSTA, 2000). Apesar de o autor, o próprio escritor do roteiro, ser tido
como o grande responsável pela enunciação telenovelística, visto que é a sua assinatura
que consta como responsabilidade autoral (conforme evidenciamos nas imagens a
seguir), a produção televisiva se comporta de maneira antropofágica em relação ao texto

Revista Investigações, Recife, v. 35, n. 2, p. 1 - 27, 2022 ISSN Digital 2175-294x

15
CORRÊA-ROSADO, Leonardo Coelho

telenovelístico, deglutindo-o segundo as necessidades produtivas (mercadológicas,


sobretudo) e vontades do público.
Assim, uma das fidelidades da telenovela é o compromisso com seu público, ou
seja, o compromisso de manter o contato com ele e de agradá-lo com histórias sobre o
drama da vida. O público espera que o autor e a produção tenham como objetivo maior
o seu prazer e gozo, e também a manutenção perpétua de sua atenção.

Exemplo 3: Responsabilidade autoral nas vinhetas de abertura das telenovelas de


nosso corpus: Irmãos Coragem (i), Dancin' Days (ii a iv), Roque Santeiro (v e vi) e
Tieta (vii e viii)

i ii iii iv

v vi vii viii

Fonte: Imagens extraídas dos boxes de DVDs das referidas telenovelas.

Desse modo, na telenovela brasileira, existe sempre uma possibilidade de


mudança nos rumos da história em função do público: este pode não se sentir satisfeito
com os rumos que a novela vai tomando, reclamando de alguma forma, o que leva a uma
mudança no enredo. Assim, podemos considerá-la como uma “obra aberta” – um traço
de um dos seus antecedentes, o romance-folhetim europeu, que se caracterizava por
estar atento à resposta do público e por meio dela conhecer o jogo para agradá-lo.
Está claro que o sentido geral da trama é previsto inicialmente pelo autor e
colaboradores por meio de uma sinopse – conjunto de elementos (story-line, argumento,
descrição da trama central e das tramas paralelas, perfil das personagens, cenografia e
figurinos) que compõem a versão sintética da história que se pretende vender à emissora,
funcionando como ponto de partida para a produção de uma telenovela (CALZA, 1996;

Revista Investigações, Recife, v. 35, n. 2, p. 1 - 27, 2022 ISSN Digital 2175-294x

16
CORRÊA-ROSADO, Leonardo Coelho

ALENCAR, 2004). Todavia, o desenrolar da trama pode tomar outros rumos, devido à
influência dos fatores acima.
Nesse contexto, o jugo do IBOPE, aferindo a satisfação do público, e as opiniões
expressas pelos telespectadores do Rio de Janeiro e São Paulo nos grupos de discussão
(discussion groups) montados pelas emissoras, são elementos importantes nesse
processo.
Como afirma Hamburguer (1998):

[a]s relações do público com as novelas são marcadas pelo caráter folhetinesco,
sujeito às mais variadas pressões de instituições sociais, de índices de audiência,
às reações expressas por telespectadores em contato direto com autores e
produtores, ou mediadas pela imprensa e mídia especializada (HAMBURGUER,
1998, p. 479).

Para termos uma ideia da dinâmica a respeito da questão da telenovela enquanto


“obra aberta”, apresentamos a seguir um esquema elaborado por Alencar (2004) para
explicar o processo de escritura de uma telenovela, considerando a interação entre autor
e colaboradores.

Figura 1: Processo de escritura de um roteiro de telenovela

Fonte: Alencar (2004, p. 72).

Revista Investigações, Recife, v. 35, n. 2, p. 1 - 27, 2022 ISSN Digital 2175-294x

17
CORRÊA-ROSADO, Leonardo Coelho

Nessa ânsia de agradar seu público, a telenovela é uma espécie de ritual, uma vez
que ela é oferecida sempre no mesmo horário e nos mesmos dias da semana para o
telespectador – uma consequência da programação vertical e horizontal que permitiu
desenvolver o potencial comercial da televisão e também desse gênero. Com isso, ela se
insere nas rotinas diárias da audiência, em meio a afazeres de diversas ordens. Por
exemplo, no caso de um homem que gosta desse gênero: o ritual de assistir telenovelas
ocorre concomitante a outras atividades como a chegada do trabalho; organização da
casa; cuidado com os filhos; jantar, etc.
Com efeito, a telenovela se torna uma verdadeira prática sociodiscursiva. Dessa
maneira, ela institui um verdadeiro cerimonial narrativo (COSTA, 2000), no qual um
determinado local (a televisão localizada em certo cômodo da casa) e um horário são
estabelecidos para sua interação, organizando, com efeito, a vida temporal e social dos
atores sociais12.
Portanto, de um modo geral, a telenovela é uma narrativa ficcional escrita para a
televisão ou adaptada de outro gênero (romance, peça teatral, poema, etc.), apresentada
em capítulos diários, com duração de 40 a 55 minutos. Trata-se de uma “obra aberta”, na
qual o desenrolar da trama acompanha as reações do público e do IBOPE. A telenovela,
mesmo sendo entretenimento, pode lidar com temáticas sociais e discutir questões de
interesse social, tais como a pedofilia, a prostituição, o desaparecimento de crianças, ou
o uso de drogas, entre outros. Entretanto, muitas delas acabam por tratar dessas pautas
a partir de uma perspectiva hegemônica, conforme mencionamos.

Telenovela: delineando o seu contrato

12
É comum ouvirmos, em nosso dia-a-dia, enunciados do tipo: “Só posso depois da novela”; “Hoje não vai
dar porque não quero perder o capítulo da novela”; “Chegando em casa, depois de um dia exaustivo de
trabalho, só quero deitar na cama e assistir às novelas”; “Eu adoro novelas. Não perco um capítulo”, entre
outros tão comumente ditos por certos brasileiros, o que evidencia o modo como as telenovelas organizam
a vida de determinados telespectadores.

Revista Investigações, Recife, v. 35, n. 2, p. 1 - 27, 2022 ISSN Digital 2175-294x

18
CORRÊA-ROSADO, Leonardo Coelho

Nessa parte de nosso trabalho, achamos adequado apresentar ao nosso leitor uma
breve descrição do gênero telenovela para complementar as considerações feitas
anteriormente. Para tal, resgatamos alguns apontamentos realizados por nós mesmos
em outros trabalhos (CORRÊA-ROSADO, 2013, 2016; CORRÊA-ROSADO; MELO, 2015)
e inserimo-los em um quadro, conforme podemos visualizar a seguir (quadro 1).
Segue-se, então, o quadro que resume as configurações do gênero telenovela,
segundo a perspectiva adotada.

Quadro 1: Descrição do gênero telenovela: quadro constituído a partir dos


apontamentos de Corrêa-Rosado e Melo (2015)

Fonte: Elaborado pelo próprio autor.

Tal como propõem Aumont e Marie (2009), os quadros e os esquemas constituem


verdadeiros instrumentos de descrição de textos audiovisuais, pois quase tudo que em
um filme é susceptível de ser descrito pode originar uma esquematização ou apresentar-
se sob a forma de um quadro.

Revista Investigações, Recife, v. 35, n. 2, p. 1 - 27, 2022 ISSN Digital 2175-294x

19
CORRÊA-ROSADO, Leonardo Coelho

Contudo, não podemos perder de vista que, ao propor essa descrição do gênero
telenovela, estamos calcados na proposta de Charaudeau (1997, 2004). Para o
pesquisador em tela, os gêneros do discurso são necessários para a inteligibilidade dos
objetos do mundo, servindo de modelo ou contra-modelo de produção-leitura do
discurso. “Assim, os gêneros se inscrevem em uma relação social na medida em que eles
testemunham uma codificação que pode variar no espaço (diferenças culturais) e no
tempo (mudanças históricas)” (CHARAUDEAU, 1997, p. 82, tradução nossa13).
Assim, partindo do postulado bakhtiniano de que é preciso certas referências para
comunicar, ou seja, de que aprendemos a moldar nossos enunciados em formas de
gênero (BAKHTIN, 2010), Charaudeau (2004) entende que os gêneros estão ancorados
na dimensão social da linguagem, sem esquecer-se de suas outras dimensões, discursiva
e formal. Com isso, ele os denomina de “gêneros situacionais”, na medida em que as
características do discurso dependem essencialmente de suas condições de produção em
determinadas situações, isto é, dos dados do contrato comunicacional que modela a
situação de troca verbal (CHARAUDEAU, 2006, p. 251).
Nesse sentido, ele parte da ideia de que falar em gêneros é falar em restrições e
propõe, com isso, uma articulação entre as restrições das três dimensões do fato
linguageiro: a) as restrições situacionais, b) as restrições discursivas e c) as restrições
formais. No entanto, é importante esclarecer que tal articulação deve ser entendida
como uma correlação e não como uma implicação sucessiva entre os diversos níveis, pois
todos eles possuem categorias que permitem apreender um determinado gênero.
Assim, as restrições situacionais são delimitadas pelos componentes do contrato
comunicacional (finalidade, identidade, propósito e circunstâncias materiais); já as
restrições discursivas dizem respeito aos componentes ligados ao “como dizer” em
função dos dados situacionais (modos enunciativos, modos enoncivos, modos de
tematização, modos de semiologização); por fim, as restrições formais, que
correspondem às recorrências formais que testemunham as regularidades e até mesmo
as rotinizações e a configuração textual do gênero (CHARAUDEAU, 2004), como a

13 No original: “Dès lors, les genres s’inscriventdansune relation socialeentantqu’ilstémoignentd’une


codification qui peutvarierdansl’espace (différencesculturelles) et dans les temps
(changementshistoriques).”

Revista Investigações, Recife, v. 35, n. 2, p. 1 - 27, 2022 ISSN Digital 2175-294x

20
CORRÊA-ROSADO, Leonardo Coelho

composição textual, a mise em scène textual interna, os recursos de fraseologia e a


construção gramatical.
Muitos dos elementos apresentados no quadro foram discutidos em trabalhos
precedentes (CORRÊA-ROSADO, 2013, 2016; CORRÊA-ROSADO; MELO, 2015). Todavia,
antes de finalizarmos essa parte, achamos interessante apresentar algumas
considerações a respeito da argumentatividade desse contrato comunicacional – que
tem a ver com o “poder de influência” do gênero.
Quando pensamos em argumentatividade e argumentação, nossa primeira
referência tende para os discursos logicamente organizados, que mostram uma
proposição a respeito do mundo, que é defendida com o uso de argumentos variados.
São incluídos, nesse caso, discursos diversos como aqueles dos trabalhos científicos em
geral, as argumentações jurídicas, os debates eleitorais, etc., enfim, discursos que
possuem uma visada de persuasão (levar o interlocutor a compartilhar as mesmas
representações propostas pelo locutor). Dificilmente incluiríamos nesse rol discursos
narrativos, como os contos, os romances, as narrativas de vida e as telenovelas. A visão
comumente compartilhada de narrativa é que ela simplesmente conta “histórias”, sem
argumentar e sem o desejo de influenciar o seu público.
Todavia, como sugere Amosssy (2000, p. 24, tradução nossa 14), a argumentação
no discurso “se liga tanto aos discursos que visam explicitamente a agir sobre o público,
quanto àqueles que exercem uma influência sem se dar, para tanto, um empreendimento
de persuasão”. Em outras palavras, há uma forma de argumentação que se aplica
somente a certos tipos de discursos (a argumentação lógica) e outra, mais ampla, que
aparece no interior do discurso narrativizado (MACHADO, 2012).
Amossy (2006) difere, então, a visada argumentativa da dimensão argumentativa.
A simples transmissão de um ponto de vista sobre alguma coisa, que não objetiva
modificar expressamente as representações do interlocutor, não pode se confundir com
o empreendimento de persuasão sustentado por uma intenção consciente e por
estratégias programadas para engendrar esse efeito (AMOSSY, 2006). Logo, a visada
argumentativa engloba os enunciados que visam intencionalmente a persuadir o outro,

14 No original: “s’attache aux discours qui visentexplicitement à agir sub le public, qu’àceux qui
exercentune influence sans se donner pour autant come une enterprise de persuasion”.

Revista Investigações, Recife, v. 35, n. 2, p. 1 - 27, 2022 ISSN Digital 2175-294x

21
CORRÊA-ROSADO, Leonardo Coelho

a fazê-lo compartilhar as mesmas representações; já a dimensão argumentativa, mais


ampla, não deseja provar ou mesmo defender algo. Contudo, ela não pode deixar de
orientar o olhar e de conferir à paisagem ou à personagem que ela toma como tema uma
coloração e um sentido particular (AMOSSY, 2006), que sensibilizarão o leitor, o ouvinte
ou o telespectador.
Incluímos, nesse último caso, os gêneros predominantemente
narrativos/descritivos, ficcionais ou não, como as notícias jornalísticas, os artigos de
jornal, os romances, as narrativas de vida e as telenovelas.
Como complementa Machado (2012):

[n]o âmbito dessa opção argumentativa, vê-se que o que é buscado, em um


discurso ficcional ou semificcional, como o das biografias e outros gêneros que
incluem narrativas de vida, é dar ênfase à vida de um ser real, fazendo com que
o leitor participe dos temas de reflexão propostos pelo narrador sobre este
sujeito (MACHADO, 2012, p. 202).

Portanto, devido à sua dimensão argumentativa, a telenovela, mesmo que não


seja produzida com uma visada de persuasão – excetuando-se os casos das sequências
de merchandising que são construídas com essa intenção –, pode influenciar o
telespectador de modo a intervir em sua percepção e até em seus comportamentos,
fazendo-o partilhar de um conjunto de representações variadas – representações sobre
o corpo, a feminilidade, a masculinidade, o erotismo, a beleza e a moda, muitas das vezes,
estereotipadas, como já apontamos. É possível observar a alusão a essa dimensão
argumentativa na telenovela nas seguintes palavras de Porto e Silva (2005):

a telenovela [...] possibilita ao espectador participar de uma experiência


ficcional, através da qual, projetando-se na tela, esquecido das limitações da
vida cotidiana, vive uma miríade de aventuras, às quais, possivelmente, não
poderia experimentar na realidade. Nesse jogo ilusório a identificação com as
personagens e a história permite-lhe ser vários e viver experiências diversas,
podendo impunemente ceder a seus impulsos reprimidos, a seu desejo de
sentir-se livre em aspectos religiosos, políticos, sociais e sexuais. Cessada a
representação, desligado o aparelho televisor, a catarse feita, ele retorna sua
vida diária. A ilusão ficou no palco ou apagou-se na tela do televisor desligado
(PORTO E SILVA, 2005, p. 53-54).

Muitos sociólogos e antropólogos da comunicação, como Andrade (2003), Lopes,


Borelli e Resende (2002) e Machado-Borges (2003), mencionam, em seus trabalhos, o

Revista Investigações, Recife, v. 35, n. 2, p. 1 - 27, 2022 ISSN Digital 2175-294x

22
CORRÊA-ROSADO, Leonardo Coelho

poder de influência que a telenovela tem sobre os seus interlocutores. Machado-Borges


(2003, p. 63) cita o exemplo de uma de suas informantes que, ao se preparar para a festa
de casamento de sua irmã, exclama: “Hoje, eu estou vestida como Maria do Bairro
[personagem de uma novela mexicana exibida pelo SBT]: da cabeça aos pés. Eu sou Maria
do Bairro”, evidenciando a maneira como a telenovela influencia, de modos variados (e
até mais que um discurso argumentativo propriamente dito), seus interlocutores.
E nesse jogo de influência que a telenovela realiza é que precisamos nos
questionar a respeito do papel desse gênero na construção de nosso imaginário social.
Como ressaltamos ao longo desse trabalho, as telenovelas não podem ser vistas como
mero entretenimento, mas principalmente como discursos. Assim, disfarçadas de
“histórias para agradar ao público”, muitas telenovelas brasileiras acabam por retratar
realidades hegemônicas de maneira naturalizada, enquanto ocultam outras (ou as
refratam), frequentemente aquelas vivenciadas por grupos minoritários. O estudo
discursivo desse gênero pode, então, abrir um campo para a compreensão desse
imaginário.

Considerações finais

O presente trabalho almejou descrever o gênero discursivo/situacional telenovela


brasileira, configurando suas características situacionais, discursivas e formais a fim de
compreender seu funcionamento intragenérico, bem como o papel desse gênero como
artefato cultural. Para a realização desse trabalho, utilizamos o instrumental teórico
metodológico da Teoria Semiolinguística de Patrick Charaudeau (1983; 1992; 1997,; 2004),
conjuntamente com os estudos de gêneros discursivos propostos por Miller (1984, 1994)
e Bakhtin (2010). Além do mais, para empreender tal configuração, utilizamos trabalhos
de estudiosos da televisão e das telenovelas, tais como Balogh (2002), Costa (2000),
Hamburger (2005, 2010), Machado-Borges (2003), entre outros.
Diante disso, acreditamos que, enquanto materialidade discursiva, a telenovela
brasileira pode ser tida como um artefato cultural – no sentido dado por Miller (1984),

Revista Investigações, Recife, v. 35, n. 2, p. 1 - 27, 2022 ISSN Digital 2175-294x

23
CORRÊA-ROSADO, Leonardo Coelho

ou seja, uma representação do raciocínio e propósitos característicos de uma dada


cultura –, conectado a determinados parâmetros culturais e sociais do Brasil. Nesse
sentido, nossos apontamentos evidenciaram que a telenovela, embora vinculada a um
contrato comunicacional de estatuto ficcional, representa uma determinada parte da
realidade brasileira – ainda que como pano de fundo de muitas de suas histórias –, e as
emoções que definem certos segmentos do povo brasileiro, com suas crenças e valores,
funcionando como horizonte de referência para diversos atores sociais, fonte não só de
entretenimento, mas também de informação e de posicionamento para algumas
questões sociais, políticas e culturais.
Dessa maneira, a telenovela opera como uma narrativa social compartilhada e
aceita por um grupo de atores sociais. Ela também faz parte da dinâmica sociocultural,
organizando a vida temporal de parte dessa coletividade (muitos brasileiros organizam
suas atividades em função das telenovelas que assistem) e instituindo uma relação de
força entre sujeitos, ao mesmo tempo que constitui algumas identidades (individuais e
coletivas) de certos grupos de sujeitos.
Com efeito, o que se vê na telenovela é uma construção – e não uma expressão do
mundo – realizada pelos sujeitos produtores. E, ao construir um mundo significado
através de um processo de semiotização/representação narrativa, o sujeito comunicante,
projetando-se em seu enunciador, imprime sua visão de mundo, seu olhar, no interior
do ato de linguagem, propagando certos sentidos e obscurecendo outros. Logo, as
telenovelas produzem certos efeitos de sentido que podem definir temas, instalar a
agenda dos problemas sociais a serem discutidos e proporcionar pontos de vistas sobre
os quais eles podem ser pensados. Porém, elas jamais garantem isso, já que o sujeito
interpretante, o público real que assiste às histórias, é mais ou menos livre.

Referências

ALENCAR, M. A Hollywood brasileira: Panorama da telenovela no Brasil. 2. ed. Rio


de Janeiro: Editora Senac, 2004.

Revista Investigações, Recife, v. 35, n. 2, p. 1 - 27, 2022 ISSN Digital 2175-294x

24
CORRÊA-ROSADO, Leonardo Coelho

AMOSSY, R. L’argumentation dans le discourse. Dicours politique, literature


d’idées, fiction. Comment peut-on agir sur un public en orientant ses façons de voir, de
penser? Paris: Nathan, 2000.

ANDRADE, R. B. O fascínio de Scherazade: os usos sociais da telenovela. São Paulo:


Annablume, 2003.

ASSIS, M. Notícia da atual literatura brasileira: Instinto de nacionalidade. In. ASSIS, M.


Crítica e variedade. São Paulo: Globo, 1997 [1873]. p. 17-28.

AUMONT, J.; MARIE, M. A análise do filme. Lisboa: Edições Texto e Grafia, 2009.

BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 5


ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 261-306.

BALOGH, A. M. O discurso ficcional na TV: sedução e sonho em doses


homeopáticas. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002.

CALZA, R. O que é telenovela. São Paulo: Brasiliense, 1996.

CHARAUDEAU, P. Langage et discours: Éléments de sémiolinguistique (théorie et


pratique). Paris: Hachette, 1983.

CHARAUDEAU, P. Grammaire du sens et de l’expression. Paris: Hachette, 1992.

CHARAUDEAU, P. Les conditions d’une typologie des genres télevisuels d’information.


Réseaux: Communication, techonologie, Societé. Paris, v. 15, n. 81, p. 79-101, 1997.

CHARAUDEAU, P. La television et l’autre-étranger. Conditions d’une étude. In:


CHARAUDEAU, P et al. (org.). La télévision et la guerre – déformation ou
construction de la réalité ? Le conflit em Bosnie (1990-1994). Bruxelas: Éditions de
Boeck Université, 2001. p. 7-29.

CHARAUDEAU, P. Visadas discursivas, gêneros situacionais e construção textual.


Tradução de Renato de Melo. In: MACHADO, I. L.; MELLO, R. (org.). Gêneros:
reflexões em análise do discurso. Belo Horizonte: NAD/FALE/UFMG, 2004. p. 13-41.

CHARAUDEAU, P. Discurso das mídias. Tradução Angela M. S. Corrêa. São Paulo:


Contexto, 2006.

CHARAUDEAU, P. Linguagem e discurso: modos de organização. Coordenação da


equipe de tradução Ângela M. S. Corrêa e Ida Lúcia Machado. São Paulo: Contexto,
2008.

Revista Investigações, Recife, v. 35, n. 2, p. 1 - 27, 2022 ISSN Digital 2175-294x

25
CORRÊA-ROSADO, Leonardo Coelho

CORRÊA-ROSADO, L. C. Sorrir ou chorar? A patemização na telenovela


brasileira, um estudo de O Astro. 2013. 260f. Dissertação (Mestrado em Letras).
Departamento de Letras, Universidade Federal de Viçosa, Viçosa, 2013.

CORRÊA-ROSADO, L. C.; MELO, M. S. S. A telenovela das 23h: uma descrição do


gênero a partir da Teoria Semiolinguística. Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, SC,
v. 15, n. 2, p. 207-227, maio/ago. 2015.

CORRÊA-ROSADO, L. C. A narrativa telenovelística. In: MACHADO, I. L.; MELO, M.


S. S. (org.). Estudos sobre narrativas em diferentes materialidades discursivas na
visão da análise do discurso. Belo Horizonte: NAD/FALE/UFMG, 2016, p. 151-182.

COSTA, C. A milésima segunda noite: da narrativa mítica à telenovela: análise


estética e sociológica. São Paulo: Annablume, 2000.

COSTA, S. R. Dicionário de gêneros textuais. Belo Horizonte: Autêntica Editora,


2008.

GENETTE, G. Discours du récit. Paris: Éditions du Seuil, 2007.

HAMBURGUER, E. Diluindo fronteiras: a televisão e as novelas no cotidiano. In.


SCHWARCZ, Lilia (org.). História da vida privada no Brasil: contrastes da
intimidade contemporânea. v. 4. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 439-488.

HAMBURGUER, E. O Brasil antenado: a sociedade da telenovela. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar, 2005.

LOCHARD, G.; SOULAGES, J.-C. La communication télévisuelle. Paris: Armand


Colin, 1998.

LOPES, M. I. V. de; BORELLI, S. H. S.; RESENDE, V. da R. Vivendo com a telenovela:


mediações, recepção, teleficcionalidade. São Paulo: Summus, 2002.

MACHADO-BORGES, T. Only for you! Brazilians and the telenovela flow.


Stockholm: University of Stockholm, 2003.

MACHADO, I. L. Uma analista do discurso face aos ditos de dois políticos: narrativas
de vida que se entrecruzam. Revista Eletrônica de Estudos Integrados em
Discurso e Argumentação, [s.l.], v. 3, p. 68-81, 2012.

MENDES, E. Contribuições ao estudo do conceito de ficcionalidade e de suas


configurações discursivas. 2004. 267f. Tese (Doutorado em Estudos Linguísticos).
Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2004.

MILLER, C. Genre as social action. Quarterly Journal of speech. London, v. 70, n. 2,


p. 151-167, 1984.

Revista Investigações, Recife, v. 35, n. 2, p. 1 - 27, 2022 ISSN Digital 2175-294x

26
CORRÊA-ROSADO, Leonardo Coelho

MILLER, C. Rhetorical community: The cultural basis of genre. FREEDMAN, A.;


MEDWAY, P. Genre and the New Rhetoric. London: Taylor & Francis, 1994. p. 67-78.

PALLOTTINI, R. Dramaturgia de televisão. São Paulo: Editora Moderna, 1998.

PIGNATARI, D. Signagem da televisão. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1984.

PORTO E SILVA, F. L. Melodrama, folhetim e telenovela: anotações para um estudo


comparativo. FACOM, São Paulo, v. 15, n. 2, p. 46-54, 2005.

RABAÇA, C.; BARBOSA, G. Dicionário de Comunicação. 2. ed. São Paulo: Editora


Ática, 1995.

Recebido em 15/12/2021.
Aprovado em 04/05/2022.

Revista Investigações, Recife, v. 35, n. 2, p. 1 - 27, 2022 ISSN Digital 2175-294x

27

Você também pode gostar