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Os Esplendores Da Fe - Tomo IV

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os

ESPLENDOKES
ACCORDO PERFEITO DA REVELAÇÃO E DA SCIENCIA,
DA FÉ E DA RAZÃO
PELO

REVERENDO M0IGN0
CONEGO DE S. DYONISIO

FDHDKDOR-DIRECTOR DO JORNHL «COSMOS-OS-MONDOS»


É preciso que E lle cresça, e quanto a mim,
que dim inua 1
S. JOÃO, CAP. III, V. 30.

VERSÃO PORTUGUEZA
DO

DA QUARTA E DI ÇÃO PRANCEZA

TOMO IV
DA FÉ E DA RAZÃO

PORTO
ANTONIO DOURADO-EOITOR
R u a dos Martyres da Liberdade, 137

1891
PORTO
TYP. DE ÍÍRTHÜR JOSÉ DE SOUSH 4 IRMÃO
74— Largo de S. Domingos— 76

iÉ ia ■BH i
PREFÁCIOS

O AUCTOR
F rancisco M aria M oigno , nascido em G ueméné — sijr -
S corf (M orbihan ), a 15 d ’abril ue 1804

Conego de S. Dyonisio, conego honorário do Cabi­


do da cathedral de Vannes; douctor em theologia de S.
Thomaz d’Aquino, professor emerito de theologia, de
hebreu, de Escriptura sancta, de historia ecclesiastica,
de mathematicas, de physica e de chimica; auctor das
Licções de calculo differencial e integral, do Calculo das Va­
riações, da Mecanica analytica, do Repertório de óptica mo­
derna, da Telegraphia eledrica, das Actualidades scientifi-
cas, da Chave da sciencia, quinta edição franceza; dos
princípios fundamentaes, segundo os qaaes devem resolver-
se, no tempo actual, as duas grandes questões: 1° das rela­
ções da Egreja e do Estado; 2.° e da Liberdade na \orga-
nisação do ensino; antigo redactor do Universo, da
União monarchica> da Época, da Imprensa, do Paiz; re­
dactor dos primeiros vinte e um volumes do Cosmos,
dos tres primeiros volumes Annuarios do Cosmos, dos
6 OS ESPLENDORES DA FÉ

trinta e nove volumes dos Mundos; traductor da Corre­


lação das forças physicas, de Grove; do Calor considera­
do uma forma de movimento, de Tyndall; das Licções so­
bre o som, de Tyndall; da Luz, de Tyndall; membro da
Associação britannica para o progresso das sciencias,
da Academia imperial Estanislau de Nancy, da Socie­
dade Batava de Botterdam; da Sociedade das scien­
cias de Harlem, do Instituto geologico de Yienna, das
Sociedades industriaes de Molhouse e de Lyão, da So­
ciedade das sciencias, lettras e agricultura de Versail-
les, das Academias pontifícias dos Nuovi-Lyncei, da
Immaculada Conceição, da Academia philosophico-
medical de S. Thomaz d’Aquino de Florença, e de mui­
tas outras Sociedades sabias; um dos fundadores da
Obra de S. Francisco Xavier; cavalleiro da Legião
d’honra; official da ordem de Santos Mauricio e Laza-
ro de Italia; commendador da ordem de Carlos m de
Hespanba.
Hão de estranhar-me que depois de ter escripto
tantas obras com esta singela indicação: pelo Padre
Moigno; faça agora alarde, no frontispicio d’esta, de es-
tirado rol de qualidades e titulos. Cederia eu porven­
tura a um sentimento de pequenina e ridicula vaidade?
A consciência tranquillisa-me a tal respeito.
Na obra que hoje publico e que é o resultado dos
estudos e preoccupações da minha vida, venho defen­
der e vingar a verdade e a divindade de minha fé; e
eis ahi o motivo, porque devia aparecer revestido de
todas as peças da armadura.
Vivemos n’um século que desconhece a since­
ridade esclarecida das almas crentes, que busina a pre­
tensão insultante de que a grande salvaguarda e ante-
mural da fé é a ignorância, que toma no sentido grosseiro
da lettra que mata aquella admiravel sentença do Sal­
vador: Bemaventurados os pobres de espirito; que quer em
summa que a sciencia haja dado cabo da fé, e que onde
PREFÁCIOS 7

a fé subsiste ainda, não possa haver sciencia. Em taes


condições é claro que prejudicaria minha causa, e que
por conseguinte faltaria a um dever, se desde logo não
tractasse de estabelecer meus direitos a ser censiderado
como entendido e sabido o que não podia fazer sem ac-
crescentar a meu nome as distincções honoríficas, que
me tem vindo procurar em minha exiguidade.
Posso declarar sem hesitação alguma, que se ha es-
criptor que preencha as condições exigidas para o de­
sempenho da missão que me impuz, a saber, esta­
belecer e provar o accordo perfeito da fé e da sciencia,
esse escriptor sou eu. Não podem accusar-me de ignorân­
cia quando eu affirmar que no immenso thesouro das ver­
dades, do qual a sciencia sente legitimo orgulho, não ha
nem sequer uma, que o homem de boa fé possa mane­
jar oontra a religião; não haverá remedio senão discu­
tir as provas que eu apresentar; a ninguém assiste o di­
reito de me recusar accesso. Imitando a forma da lingua­
gem ganctamente vivida de S. Paulo, talvez pudesse di­
zer sem orgulho aos mais ardentes partidistas da scien­
cia, a seus .mais auctorisados representantes: «Sois sá­
bio, também eu; já sondastes todas as profundidades da
theoria e verificastes todas as experiencias; também eu
theorisei e experimentei como vós. Amais o progresso;
a minha sêde por elle é insaciável, e deveis ter-me visto
na estacada de seus promotores. Livros, jornaes, brochu­
ras, licções, conferências, conversações, tudo puz por
obra >afim de o tornar accessivel áquelles que repelliam
o progresso. E os homens que o não queriam eram bas­
tas vezes áquelles que pareciam seus mais ardentes de­
fensores !
Avanço mais, porque toda a gente tem reparado
n’isso, e até muitos se tem admirado e talvez escandali-
sado, direi, que tenho marchado na frente e muito
adeante das theorias modernas. Eui o primeiro a pro­
clamar as verdades adquiridas por uma sciencia alfim
8 OS ESPLENDORES DA FÉ

no estado adulto; lá encontrareis meu nome, como guiso


sonoro preso ás doutrinas em apparencia as mais eman­
cipadas, embora realmente as menos inimigas da fé : a
simplicidade e a identidade dos últimos átomos da ma­
téria ; a reducção de todos os phenomenos da natureza
á matéria e ao movimento; a unidade e a correlação
de todas as forças physicas e chimicas, sua homogene-
se mutua por equivalentes mechanicos etc., etc. Não
devia recuar, nem recuei deante de nenhuma das gran­
des syntheses da sciencia moderna, porque são a expres­
são da verdade, e tem, o que o commum dos sábios
ignora, sua razão de ser, sua ultima explicação, na me-
taphysica, a primeira e a mais elevada das sciencias
porque é em nós o reflexo da luz de Deus que illumina,
quando vem ao mundo toda a alma feita a sua imagem
e semelhança.
Permitta-se-rae que deixe consignada aqui a home­
nagem espontânea que o barão Carlos Dupin, o gran­
de geometra, decano da secção de Mecanica do Insti­
tuto de França, se dignou prestar-me na sessão do Se­
nado de 25 de fevereiro de 1870, por occasião da discus- •
são sobre a liberdade do ensino susperior, liberdade afi­
nal concedida em 1875 e mutilada em 1876. Cito a pas­
sagem na integra, porque tem o interesse da actuali-
dade.
«... Tem-se dado alguma cousa de bastante singu­
lar. Royer-Collard, que citei, estava persuadido da gran­
deza, da excellencia da Universidade, e que nada pode­
ría jamais egualar-se-lhe. A tal respeito pensava exa-
ctamente como o sr. de Saint-Arnaud. Os Jesuítas, di­
zia elle, nunca conseguirão ter senão professores me­
díocres ; desafia-os a que montem um ensino de primei­
ra ordem.
Dizia-me isto pouco depois de 1830. Sem embar­
go os reverendos Padres tem caminhado de progres­
so em progresso, e cousa que revolta seus antagonistas,
PREFÁCIOS 9

tem teimado em formar professores. Em seu instituto


seguem um processo maravilhoso, e que os governos fa­
riam bem em imitar, afim de tirarem o melhor partido
dos homens.
Quando alguém é recebido como membro da or­
dem, examinam-se-lhe as aptidões, e diz-se-lhe: Vós ten­
des a palavra abundante e colorida, tendes disposições
para as brilhantes manifestações, sereis missionário e
prégador; ou: vós sois excellente para as minudencias
da administração, sereis nosso economo. E enfim a ou­
tro, como por exemplo, ao P.° Moigno, um dos geome-
tras mais distinctos da Europa, dizem: Yós tendes ta­
lento para as mathematicas, sereis professor de scien-
cias exactas. (Jornal official) de 20 de fevereiro, colu-
mnas 3 e 4.
O sr. Dumas, o illustre secretario da Academia das
sciencias, na sessão de segunda-feira 10 de setembro de
1872, dignou-se pronunciar a seu turno estas palavras,
as quaes o Jornal official publicou também:
«Tenho a honra de apresentar, proseguiu o sr. Du­
mas, em nome do sr. P.c Moigno, ftma serie completa
de livrinhos que formam um verdadeiro curso de scien-
cia illustrada, com o titulo: Adualidades scientificas. As
descobertas modernas são desenvolvidas com muita
competência de modo que não é facil encontrar n’ou-
tras obras esclarecimentos equivalentes. São conferên­
cias sobre cada questão em voga, mórmente sobre as-
sumptos, tratados na Inglaterra, na Allemanha, etc.
Exemplos: Combinação dos átomos.—Analyse espectral
dos corpos celestes. - Porça e matéria. - As illuminações
modernas.—Physica molecular.—Theoria do velocípede.
— Constituição da matéria.—Esboço historico da theo­
ria mecanica do calor. — Metamorphoses chimicas do
carbonio. — Phenomenos e theorias eléctricas.—Dicções
todas de muito proveito dos srs. Tyndall, Hofmann,
Huggins, Tait, Rankine, Odling, etc.
VOL. IV. 2
10 OS ESPLENDORES DA FE

«O snr. Moigno, ha cincoenta annos que marcha á


á frente do movimento scientifico. Introduziu em França
todas as novidades da sciencia estrangeira. Devemos-
lhe o conhecimento de quasi tudo o que de curioso e
notável se faz entre nossos visinhos; e reciprocamente,
é muitas vezes a elle que os sábios estrangeiros devem
o conhecimento de nossos trabalhos.
«Por seus jornaes e seus livros, o sr. Padre Moigno
tem prestado incessantes serviços á sciencia ; soube
constituir uma especie de livre permuta intellectual
entre os sábios francezes, inglezes, allemães, italianos,
americanos. E’ o laço de união, como nenhum outro,
entre as escolas, as faculdades, as universidades e os
grandes centros scientiíicos. E visto offerecer-se a oc-
casião, é bom fazel-o lembrado á geração presente, que
nem sempre attribue a seu verdadeiro auctor, com suí-
ficiente imparcialidade, o mérito de ter introduzido en­
tre nós o gosto dos altos estudos e das leituras scienti-
ficas.»
À Inglaterra deu-me também um precioso testi-
munho de notoriedade scientifica. As Monthly Notices,
jornal official da Sociedade Real astronômica, íizeram-
me saber um dia que meu humilde nome baixo bretão
tinha sido üaào a uma cratera da Lua, recentemente
notada e mais nitidamente definida, designada nas car­
tas ou catalogos com, o n.° 408. E’ uma grande hon­
ra, pois apenas quarenta,cornes francezes figuram á
superfície do satellite da Terra, e muitos nomes mais il-
lustres do que o meu, só deptfis é que lá appareceram.
A America também me não esqueceu : percorren­
do um dia o vocabulário dos nomes biographicos moder­
nos do magnífico diccionario anglo-americano iiiustra-
do, de Webster, ed ção de junho de 1864, que me foi
offerecido, fiquei surprehendido de lá encontrar meu
nome com as suas duas prouunciaçSes, a ingleza e a ame­
ricana
PREFÁCIOS 11

Em Vienna d'Áustria um editor, o sr. Lcnoir, que


debaixo da protecção da Academia imperial das scien-
cias, publicou o catalogo com grandes retratos litho-
grapbados, dos mathematicos disti netos, deu-me Aelle
um logar de honra.
Em Berlim, o sr. Poggendoríf, em seu grande dic-
cionario biographico para servir á historia das scien-
cias exactas, dignou-se tractar-me como amigo.
N ão posso em vista do exposto ser suspeito á scien-
c ia ; sempre lhe concedi, e sempre lhe hei de conceder
o que lhe é devido, a submissão a suas theorias, a accei-
taçao franca de seus factos, sem segunda tenção, sem
lhes impor outras condições, do que a de se tornarem
verdades adquiridas. Nunca me aconteceu nem me ha
de acontecer pôr de quarentena uma theoria ou um fa-
cto demonstrados, debaixo do pretexto desarrazoado e
impossível, de que essa theoria ou facto consummados
poderíam ser contrários a minha fé.
Devo inspirar tanto menos desconfiança á sciencia,
quanto que não sou um especialista, mathematico, physi-
co, chimico ou naturalista exclusivamente, confinado em
uma ordem particular de idéias, girando em um circulo
estreito de douctrinas e de phenomenos, absorvido con­
stantemente na investigação de uma dada classe de pro­
blemas. Por vocação, por disposição natural do meu es­
pirito, e também por dever tive de estudar uns após
outros os diversos ramos das sciencias humanas. Mal
acabava de receber de meus illustres mestres, Cauchy,
Ampere e Biot, o ensino completo das sciencias mathe-
mathicas e physicas, já me iniciava nas collecções das
galerias e dos jardins, sob a direcção dos Cuvier, dos
Hauy, dos Desfontaines, dos Thouin, nos factos da zoo­
logia, da botanica, da mineralogia, e da geologia. Mais
tarde, fundador e director de uma escola normal do cle­
ro, que teve algum retinímento, ensinei a mathemati-
ca, a physica, a chimica, a astronomia, etc.
12 OS ESPLENDORES DA FÉ

Um ultimo titulo emfim á confiança que estou no


direito de esperar dos sábios.
O molde de meu espirito, dando-me aliás o gosto
de aprofundar as sciencias, arrastava-me irresistivel­
mente para a vulgarisação ou exposição elementar, na
linguagem de todos, das conquistas da sciencia e da in­
dustria. Meu primeiro artigo de jornal data de 1829, e
desde então nunca mais larguei a penna, contente a
mais não poder ser de analysar e tornar conhecidas as
descobertas dos outros; cioso de promover sua gloria,
ardente em defender seus direitos, sempre duvidoso da
minha própria gloria. Preparei-me para esta missão de
dedicação por um longo e serio estudo das linguas eu-
pêas, e posso dizer que desde 1830 a 1876, li e resumi,
com a penna na mão, quasi tudo o que foi publicado
em jornaes e livros de sciencia progressiva na Allema-
nha, na Inglaterra, na Hespanha, na Italia e na Rússia,
etc.
Devo mesmo confessar que tenho levado ao exces­
so o amor da vulgarisação das sciencias. Em agosto de
1872, organisei em Paris, apenas com os meus recursos,
com o nome de Sala do Progresso, um notável estabele­
cimento no intuito : de promover por licções e conferên­
cias publicas o progresso real e bem entendido; de dar
maior e mais prompto impulso ás invenções e descober­
tas da sciencia e da industria ; de combater energica­
mente os dois inimigos inexoráveis do progresso, das
descobertas e da invenção, a ignorância que os mata
em germen, e que os deixa em o nada, e a rotina que
lhes oppõe o circulo apertado da sciencia.
A epocha e o local d’esta empreza não tinham sido
bem escolhidos? A agitação publica era muito gran­
de, e minha sala da cité do Retiro, rua do suburbio
Saint-Honoré n.° 30, estava muito fóra da circulação.
Depois de tres mezes de exercícios superiores a mi­
nhas forças, tive de resignar-me a voltar para a minha
PREFÁCIOS 18

humilde solidão de Saint-Gfermain-des-Prés. Só Deus sabe


quantas fadigas, inquietações, angustias e despezas enor­
mes me custou esta energica campanha. Não me lamen­
to. e tornaria a começar se fosse preciso ainda que tu­
do quanto soffri se erguesse de salto contra mim. Sin­
to-me feliz e altivo, eu, humilde padre, sabio pobre, ani­
mado e abençoado por Pio ix, que se dignou dizer que
me amava por ter sido o primeiro a levantar e segurar
firme a bandeira-do Progresso, i é, a bandeira necessa­
riamente divina do « Verdadeiro, do Bom, do Bello», de­
baixo de todas as formas.
Este episodio de minha vida prova-o superabundan-
temente. A sciencia não pode deixar de me considerar
como um de seus apostolos os mais ardentes; e os sá­
bios que desde muito me deram logar em suas fileiras,
não podem recusar-se a reconhecer em mim um irmão
de armas, um amigo, um echo fiel de suas investigações
e de seus estudos.
Devo ser ainda menos suspeito á religião, porque
cursei meus estudos ecclesiasticos na escola por excel-
lencia do saber e da piedade; e porque depois de ter
estudado durante seis annos a philosophia e a theolo-
gia, com mestres sábios e sanctos, ensinei por minha
vez essas sciencias, as primeiras de todas.
Fui objecto ainda de um favor insigne, que n’este
momento agradeço a Deus, prostrado por terra, e com
o coração repleto de uma gratidão sem limites. Estou
de sessenta e tres annos de edade, li tudo, ouvi tudo, e
nunca senti uma tentação contra a fé, nem a menor
sombra de duvida.
Sempre cri e creio como nunca em todas as verda­
des ensinadas pela Egreja catholica, apostólica, roma­
na, com uma fé calma, serena, viva e forte, sem que
nunca, torno a dizer, a minima sombra de duvida se
haja interposto entre um dogma e meu espirito. Devo
14 OS ESPLENDORES DA FE

esta felicidade incomparável, em primeiro logar a uma


graça particularissirna do ceo, depois á influencia e á
memória de meu virtuoso pai, Vicente Paulo Alexan­
dre René Moigno, espirito recto, coração nobre, como
nunca o houve. Devo-o enfim á limpidez natural de mi­
nha intelligencia, inimiga jurada da argúcia e do sophis-
ma; ao habito do trabalho e da oração que me tem
levado o melhor da vida, á fidelidade a minha prezada
sotaina, velha e sancta companhia que ha mais de cin-
coenta annos que não largo; á frequência enfim dos
sacramentos da penitencia e da Eucharistia. Tenho via­
jado muito, e'salvo duas ou tres excepções, tenho re­
zado todos os dias a sancta missa com todo o fervor de
que sou capaz.
Tenho sondado tanto quanto possível os mysterios
da religião e da sciencia, e minha fé jamais se resentiu
disso: minha voz será portanto a de uma testimunha
esclarecida, convicta e fiei.
Ninguém poderá dizer por outra parte que a san­
cta Egreja, á qual sou dedicado do fundo d’alma, tenha
tido para comigo preferencias e ternuras excepcionaes.
Pelo contrario todos sabem, e felicito-me por .isso, e
sinto hoje grande regozijo, no interesse da grande causa
que venho pleitear e ganhar, que por muito tempo se
conservou para comigo muito fiia e cheia de reserva.
Tendo entrado aos desoito annos na Companhia de
Jesus, em setembro de 1822, lá me conservei até 15 de
outubro de 1843, sinceramente fiel a minha vocação,
estimado de meus superiores, amado de meus irmãos.
Era professo dos quatro votos, o que significará
para os crédulos que estava iniciado em todos os segre­
dos da ordem. Em meu nome figurava a maior parte
das propriedades da província de França; e tanto den­
tro, como fóra da Companhia gozava da fama de reli­
gioso regular e instruído.
PREFÁCIOS 15

Era feliz então, feliz quanto se pode sel-o n’este


mundo, feliz no seio de uma vida de trabalho, de fadi­
ga, de privações e de austeridades.
Uma tempestade súbita separou-me d’esta illustre
Sociedade. Poderia revelar aqui o segredo de minha
separação, seria de molde para tirar vingança de bas­
tantes accusacões malignas, prefiro mil vezes humi­
lhar-me debaixo da mão de Deus.
■ Não me quero illudir, a perda de minha vocação
era uma vingança e um castigo, por causa de mui nu­
merosas infidelidades a minhas regras. Aquelle que é in­
fiel nas cousas pequenas, ■será infiel também nas grandes.
(S. Luc. cap. xvi, v. 10)
Aprouve porem ao bom Deus tirar bem do mal.
Quiz que a justiça e a misericórdia, se encontrassem em
mim, agraçleço-lh’o de todo o meu coração! A divisa
que me inspirara em meu terceiro anno de noviciadqp
convem que Elle (Jesus Christo) cresça, e quanto a mim,
que diminua, susteve-me 110 beiraPdo abatimento e do
desespero. Pelo amor e o habito do trabalho e da ora­
ção que me repartira, deu-me a entender que me re­
servava uma missão gloriosa, a reconciliação da fé e da
sciencia, missão que me seria. diffic.il cumprir, com
egual continuidade e independencia 11a Companhia. O
sentimento quasi unanime de meus antigos irmãos é de
facto que Deus me reservava este destino, e um tal
sentimento tem-me sido de grande consolação. Sabem
elles também que nunca deixei de amar ternamente
aquella que foi nossa mãe commum, e que me conser­
vei o que era quando estava entre elles nos bellos an-
nos de minha vida religiosa.
Eis que de repente me encontrei lançado em um
meio, ao qual era completamente estranho. Dizer o que
soffri durante os doze annos que se seguiram ao meu
egresso, seria tarefa impossivel. Calumnias odiosas,
proscripções injustas, miséria 1profunda, cruéis perse­
16 OS ESPLENDORES DA FÉ

guições por dividas que não eram minhas ou que ti­


nham tido por causa um excesso de imprudente cari­
dade, etc., tudo isso tive de soffrer. No entanto posso
asseverar que encontrei grande felicidade na tribu-
laçao; que comprehendi e saboreei esta phr.ise de S.
Paulo tuo desgostosa á natureza: Sereis bemaventura-
dos, quando os homens vos calumniarem, quando dis­
seram de vós falsamente todo o mal imaginável!
Durante estes cruéis annos de provas, tornei-me
um estranho, um desconhecido para a maior parte dos
membros do episcopado e do alto clero, para aquelles
mesmos que em outro tempo me tinham rodeado de
attenções e de respeitos. Obtemperando a minha cons­
ciência, arrebatado por um grande amor á Egreja, pu-
bliquei em 1846, com o titulo palpitante de actuali-
dade: Os verdadeiros princípios, segundo os quaes devem
resolver-se, no tempo presente, as duas magnas questões:
l.° das relações da Egreja e do Estado; 2° da liberdade e
da organisação do ensino, um livrinho que teve bastante
successo, a que fizeram numerosos empréstimos, mas
sem pronunciar o nome do auctor, considerado talvez
como transfuga.
Em 1848 Mgr. Sibour, recentemente nomeado ar­
cebispo de Paris, dignou-se prover-me no cargo de se­
gundo capellão do lyceu de Luiz o G-rande.
Servi-o alguns annos; mas em presença da desor-
ganisação momentânea d’este estabelecimento outr’ora
e ainda hoje tão florescente, cansado também da vida
secular, desejoso da paz da vida religiosa, pedi a de­
missão.
Meu projecto de entrar em uma congregação ao
tempo em via de organisar-se, não devia realisar-se. A
sancta Providencia indicou-me claramente o que de
mim esperava, fornecendo-me o ensejo e os meios de
fundar o jornal hebdomadário Cosmos, que veiu a ser
mais tarde Os Mundos. Consagrei-lhe toda a minha
PEEFACIOS 17

actividade, apezar de pobre e humilhado, sem um lo­


gar na Universidade, sem um benificio na Egreja.
Depois de tres annos passados na vida occulta de
uma communidade, foi para mim grande fortuna en­
contrar vago um logar de diacono assistente ás missas
cantadas em S. Sulpicio com o ordenado annual de
quatrocentos francos! O auctor do Maldicto pôde dizer
d’esta vez sem calumnia: «Um sabio de primeira or­
dem, o amigo de Francisco Arago e de Alexandre de
Humbolt, cujo renome é europeu, que abandonou os
Jesuítas ha muitos annos, é hoje diacono para acoly-
tar ás missas cantadas em uma das parochias de Pa­
ris !»
Em 1857, a convite do sr. Comte, parocho de S.
G-ermain-des-Prés, acceitei em condições um pouco me­
lhores o cargo de subdiacono assistente ás missas can­
tadas e de cura para administrar os últimos sacramentos.
E ’ a mais humilde das posições ecclesiasticas, mas é
honrosa, primeiramente porque tudo é honroso na casa
de Deus, em segundo logar porque tinha os poderes de
prégar e de confessar, e a salvação das almas da paro-
chia estava em grande parte a meu cargo durante a
noite. .
Bastantes vezes no entanto ouvi dizer a sábios il-
lustres, que pareciam sentir por mim mais do que be­
nevolência, uma sincera amizade, que conheciam ao
mesmo tempo minha posição e a cathegoria inferior de
um subdiacono: «Se não fosseis üm mau padre, a egreja
de Paris, com risco de passar por madrasta, dir-vos-hia:
«Meu amigo, subi mais acima.»
Contentei-me de responder com uma resignação
sincera: «A. egreja de Paris não é madrasta; sabe que
não sou um mau padre ; e está no direito de pensar que
faz em meu favor tudo o que pode ! Meu humilde cargo
dá-me o preciso, e deixa-me livre muito tempo; pro­
porciona-me, na própria egreja, um pequeno eremite-
VOL. IV. 3
18 OS ESPLENDORES DA PE

rio, longe do ruido das ruas, verdadeiro sanctuario da


oração e do trabalho, occupações gratíssimas da minha
vida.»
E ’ certo que, á semelhança de tantos outros eccle-
siasticos, teria podido salvar as aparências, frequen-
' tando como simples sacerdote os exercícios do culto
de uma parochia ou de uma simples capella. Mas por
um lado era pobre, sem outros recursos que a minha
penna, e rodeado, esmagado de igiserias a alliviar; por
outro, nunca pude acabar comigo, que ficasse uma se­
gunda vez fóra dos quadros da hierarchia ecclesias-
’tica.
Felicito-me cada vez mais da resolução energica
que tomei de me conservar e de morrer, se tanto fora
preciso, simples subdiacono em S. Grermain-des-Prés:
elegi abjedus esse in domo Dei mei!
Por este tempo Mgr. Gazailhan, então bispo de
Vannes, dignou-se nomear-me conego honorário do ca­
bido de sua cathedral.
Foi n’estas circumstancias e n’estas disposições que
ousei emprehender a redacção e a impressão dos «Es­
plendores da Fé», accordo perfeito da Revelação e da Scien-
cia. Dizia de mim para comigo com certa timidez, mas
não sem confiança no pouco que sabia: as academias
reconhecem que sou entendido, falarei com auctoridade;
a Egreja sabe que sou bom padre, padre humilhado se
se quizer, como o grão de trigo que deve morrer antes
de dar fructo, mas padre fiel a minhas crenças e a meus
deveres, falarei com'grande convicção, e também com
a graça do meu ministério.
Acabava em outubro de 1868 o primeiro esboço
d’esta obra, mal previa eu que me havia de levar ainda
sete longos annos de trabalho difficil e continuo! De­
pois de ter estudado toda a minha vida, e reunido in­
cessantemente os materiaes necessários, entendi que
poderia correr de foz em fóra ao redigil-a; não tardei
PREFÁCIOS 19

porem a reconhecer que tinha de ahrir caminho atra-


vez de uma floresta virgem, que tinha de marchar a
passo e ás apalpadelas.
Não importa, meus Esplendores foram para mim pa-
ranymphos de ventura antes de nascerem, e sou-lhes
obrigado por isso.
No fim da minha carreira litteraria e scientifica su­
jeitara-me ao grande exame de Universa Philosophia et
Theologia, e tinha na Companhia de Jesus o grau de dou-
ctor em theologia; não era comtudo um titulo oflicial
ou legal. Exprimi a um piedoso e illustre cardeal, o
principe Luiz Luciano Bonaparte, que me deu provas
inequivocas de muita afíeição, o desejo de ver meu dou-
ctorado confirmado e consagrado conformemente aos
usos e cânones da sancta Egreja.
Pouco depois recebia da sagrada Congregação da
Propaganda o diploma seguinte:
«Em audiência do Sanctissimo Padre, a 17 de se­
tembro de 1871. Como o reverendo Francisco Moigno,
sacerdote da diocese de Paris, tem dado á Sancta Sé
testimunhos claros de seu zelo pela religião e de intei­
reza de costumes, e tem dado provas de grande exito
entregando-se aos estudos theologicos, assim como at-
testa o reverendo provincial da Sociedade de Jesus na
província de França, Nosso Sanctissimo Padre o Papa
Pio ix, sobre o relatorio apresentado por nós, secreta­
rio da Sagrada Congregação da Propaganda abaixo as-
signado, dignou-se crear e declarar o dicto padre Fran­
cisco Moigno douctor na Faculdade de Theologia, com
todas as honras e direitos que são devidos aos doucto-
res em theologia. Sua Sanctidade quere que o sacer­
dote assim promovido faça quanto antes a profissão or­
dinária de fé catholica na presença de seu ordinário
diocesano, consoante a forma prescripta por Sua Sancti­
dade o soberano Pontífice Pio iv.
20 OS ESPLENDORES DA FÉ

Dado em Roma, no palacio da dieta Sagrada Con­


gregação, no dia e anno supra.
Meus votos haviam sido attendidos muito alem do
que esperava; assim vinha a ser douctor de S. Thomaz
d’Aquino, mestre em theologia, dignidade relativamente
rara. Fiçava plenamente satisfeito, quando menos de
um mez depois, o Soberano Pontífice Pio ix, tão sancto
e tão grande, tão doce e tão forte, se dignava dirigir
do Vaticano, sua prisão, ah! um breve apostolico que
me enche de confusão, e me move a abençoar como
nunca, minha vida de orações, de humilhações e de tra­
balho.

Á 0 NOSSO CARO FILHO FRANCISCO M oiG N O , SACERDOTE


FRANCEZ, P lO IX, SOBERANO PoN T IFÍC E

«Os pontífices romanos, apreciadores e pais nutri-


cios os mais seguros da verdadeira sciencia e da ver­
dadeira virtude, nunca deixaram de testimunhar sua
paternal benevolencia áquelles, em quem o mérito de
um saber eminente se unia a uma piedade exemplar,- a
uma fé inabalavel. a uma sincera dedicação a esta
Sancta Sé Apostólica, Este bellissimo elogio, charis-
simo filho, dirige-se certamente a vós que ao mesmo
tempo que pelo brilho de vosso nome attraís os olha­
res de todos os sábios, não só da França, mas das ou­
tras nações, realisais por vossa religião, integridade, e
submissão á cadeira de S. Pedro o que se pode esperar
de um ecclesiastico e de um sabio. Eis porque, tendo-
nos vós dirigido a humilde supplica de que vos confir­
memos, embora não houvésseis versado no collegio de
S. Thomaz dAquino dos Irmãos Prégadores as disci­
plinas theologicas, o diploma de douctor n’esta facul­
dade, nós que sabemos de boa fonte, que, joven ainda,
PREFÁCIOS 21

provastes em exercícios públicos vosso valor n’essas


mesmas sciencias, escutamos benevolamente vosso de­
sejo.
Em virtude do que, caríssimo filho, absolvendo-vos
e tendo-vos por absolvido, para este fim sómente, de
toda a excommunhão, suspensão ou interdicto, e dou­
tras quaesquer sentenças ecelesiasticas, se é que tendes
incorrido n’ellas, de qualquer maneira ou causa que
tenham sido pronunciadas, nós vos creamos, constituí­
mos, declaramos por estas lettras, por nossa auctoridade
apostólica, douctor na sagrada theologia; concedemos
e permittimos que sejaes chamado por este nome nos
diplomas de quaesquer actos. Todos os direitos, caro fi­
lho, privilégios, prerogativas, indultos, de qualquer nome
porque sejam designados, de qualquer auctoridade apos­
tólica, imperial ou regia que emanem, de que por direito
ou costume, usem e gozem, podem ou venham a poder
usar ou gozar, aquelles que depois de terem dado prova
de sua erudição, em qualquer universidade, obtiveram o
grau de douctor; por nossa auctoridade apostólica,
vol-os deferimos, attribuimos e outhorgamos. Todas es­
tas cousas, nós vol-as concedemos, decretando que nos­
sas presentes Lettras Apostólicas sejam e devam ser
tidas por firmes, validas e efficazes, que surtam e obte­
nham seus effeitos plenos e inteiros, que vos assegurem
em todas as circumstancias o titulo, direitos e privilé­
gios atraz mencionados, e que assim seja pronunciado
por todos os juizes ordinários ou delegados, mesmo pe­
los auditores das causas do Sacro Palacio e pelos car-
deaes da sancta Egreja Romana, tirando a todos e a
cada um d’elles toda a faculdade de julgar e de definir
d’outra sorte (seguem as sancções do estylo).
«Dado em Roma, em S. Pedro, sob o annel do Pes­
cador, a 2 d’outubro do anno de 1871, vigésimo sexto
do nosso Pontificado.»
Não recuei jamais deante de nenhuma das conquis­
22 OS ESPLENDORES DA FÉ

tas da sciencia; pelo contrario tenho corrido com toda8


as minhas forças adeante do progresso! O mesmo Pon­
tífice bem o sabe! E louva, e abençoa em minha hu­
milde pessoa o accordo de uma sciencia adeantada e
de uma fé inabalavel. Este accordo é pois em mim um
facto, como em si mesmo é um dogma! Quanto me
tarda que este facto e este dogma brilhem em meus
Esplendores, para os quaes este ditoso Breve constitue
um prefacio incomparável!
Faltava ainda alguma cousa a minha felicidade.
Rehabilitado acima de todas as minhas esperanças,
senti-me vivamente impellido a uma approximação com
a Companhia de Jesus, minha sancta e gloriosa mãe;
concebi o desejo ardente de lhe pertencer, tanto quanto
possível, sem no entanto viver em seu seio. Dirigi n’este
intento uma humilde supplica ao Muito Reverendo Pa­
dre Geral, por intermédio do Muito Reverendo Padre
Rubillon, Assistente de França, outr’ora meu discípulo,
e meu amigo. A resposta não se fez esperar, e vou com
satisfação consignal-a n’este logar: é datada de Roma,
25 d'agosto de 1872.
«E’ uma grande consolação para mim ver que sol-
licitaes de novo, e com mais instancia do que nunca,
vossa approximação da Companhia de Jesus, quando
está passando por uma perseguição tão universal e tão
violenta; quando o augusto suffragio de Pio íx acaba
de consagrar vossos gloriosos trabalhos e dar um novo
incentivo a outros para bem da sancta Egreja. Fiz va­
ler estes motivos junto do nosso Reverendo Padre Ge­
ral; dignou-se acolhel-os; e da melhor vontade vos
concede o que lhe pedis: l.° uma união de orações e de
méritos com a Companhia; 2.° a auctorisação de termi­
nar vossos dias em uma de nossas casas com o consen­
timento dos superiores locaes.»
O Muito Reverendo Padre Bechx dignara-se es­
crever por seu proprio punho: «Concedo de todo o
PREFÁCIOS 23

meu coração as duas petições mencionadas» e assi-


gnava-se.
Tocava no cumulo de meus votos; desde logo meu
coração se voltou para o pio e aabio asylo de Fourvie­
res, onde os Padres da Companhia redigem os Estudos
Religiosos; tive a veleidade de me lá apresentar com ar­
mas e bagagens: os Mundos poderíam talvez completar
os Estudos.
Escrevi portanto a um de meus confrades: eis sua
resposta, com a qual me conformei: «E’ com verdadeira
e religiosa alegria que soube o que me participaes a
proposito das disposições tomadas pelo Muito Reve­
rendo Padre Geral no que vos diz respeito; e. todos
aquelles de meus irmãos, a quem dei a noticia experi­
mentaram uma doce e viva consolação no Senhor.
Ah! sim, com certeza, Deus repartira-vos uma
grande e gloriosa missão, e por maior que seja o de­
sejo que temos de vos ver um dia unido comnosco mais
do que pelos afiectos do coração, entendemos que é
util, necessário até, que guardeis e mantenhaes o mais
tempo possivel o posto de honra, onde a Providencia
vos collocou para espiar, e desmascarar a falsa sciencia,
e sustentar perante o mundo inteiro a gloria da scien­
cia christã e do sacerdócio catholico.» 15 d’abril de
1873.
Alguns mezes depois um decreto do Marechal-Pre-
sidente da Republica, rubricado pelo sr. Batbie, Minis­
tro dos cultos, ein data de 15 de setembro de 1873, no­
meava-me conego do insigne cabido de S. Dyonisio.
A esta primeira dignidade, o senhor bispo de Van-
nes dignava-se accrescentar a de conego honorário de
sua cathedral com a cathegoria de bispo.
Em S. Dyonisio, n’este pacifico remanso, tendo á
vista a velha e esplendida basilica, ha tres annos que
continuo a redacção dos Esplendores da Fé.
E’ aqui também que me veiu procurar uma nova
24 OS ESPLENDORES DA FE

provação, da qual não posso deixar de dizer algumas


palavras. Um decreto da Congregação do Index, com
data de 7 de dezembro de 1875, condemna uma de mi­
nhas actuolidades Scientificas: a Fé e a Sciencia, explosão
do livre pensamento em setembro de 1874. Discursos anno-
taãos dos srs. Tyndall, du Bois-Raymond, Richard, Owen,
Huxley, Hooker, e de Sir John Lubbock, pelo sr. P.e Moi-
gno, conego de S. Dyonisio e Redactor em chefe dos
Mundos.
A sentença applica a meu Livro a segunda regra
do Index do Concilio de Trento: «Os livros dos aucto-
res hereticos que tractam ex professo de Religião ficam
absolutamente condemnados.»
Isenta meus prefácios e notas, i é, tudo aquillo que
é da minha lavra n’este opusculo, que tinha em vista
refutar brevemente todos os erros que a Sciencia mo­
derna oppõe á Revelação.
A condemnação não implica nada que me diga res­
peito pessoalmente; não se dirige realmente senão aos
discursos que reproduzi para melhor os combater.
Mas não é menos verdade que meu livro está no
Index, e que fiz mal em o publicar.
Reçonheço-o; não tentarei desculpar-me.
Ninguém o sabe melhor do que eu: o erro é in­
comparavelmente mais contagioso, do que a verdade é
persuasiva.
Minhas annotações, por nitidas, precisas e victorio-
sas que possam ser, não neutralisarão completamente o
veneno dos espíritos tentadores do livre pensamento,
deveria abster-me de publicar integralmente os insi-
diosos discursos dos sábios insurgidos contra a fé.
Apresso-me a declaral-o desde j á : ainda que a con­
demnação do Index se dirigisse a meus Esplendores da
Fé, essa obra que deve coroar uma longa vida de estu­
do, de oração, trabalho excessivamente arduo de sete
annos de redacção, cuja publicação tanto me tem cus-
PREFÁCIOS 25

tado, não hesitaria um instante em me submetter e em


me sacrificar, não sem uma viva dôr, mas sem outra ma­
goa que a de me não ter sabido garantir do erro !...
A auctoridade legitima, a auctoridade espiritual so­
bretudo não se discute, acceita-se, acata-se, e em segui­
da levantam-se os olhos ao ceo e adora-se.
Esta longa referencia, não o dissimulo, poderá pre­
judicar-me na opinião de alguns espiritos mais auste­
ros, poderá parecer menos conveniente, ou inopportuna.
A consciência porem não me auctorisava a supprimil-a,
porque se me affigurou de natureza a conciliar a minha
obra alguma sympathia, e a dar-lhe mais importância
e exito.
Resigno-me pois a que me acoimem de vaidade, a
mais néscia das fraquezas humanas; quanto a mim aben­
çoarei esta humilhação, se minha autobiographia con­
tribuir para me abrir accesso, ainda que só seja juncto
de uma alma paraja reconduzir á Pé.
F. Moigno.

S. Dyonisio, 2Fde maio de 1876, festa de Nossa Senhora


do auxilio dos Christãos.

«O Fundador dos Mundose das Salas do Progresso.»


No momento |o mais solemne e critico de minha
existência tão provada, quando estava nas dores do par­
to de minha «Sala do Progresso», tive a fortuna de in­
spirar, sem o saber, um vivo interesse a um escriptor
muito habil, o sr. Yictor Fournel, qué sob o pseudony-
mo de «Bernardille» redigia a chronica muito lida do
jornal o Francez. Fiquei surprehendido ao saber que, em
o numero de 6 de dezembro de 1872, se dignava fazer de
minha humilde individualidade um estudo atrahente, fa-
cto pelo qual fui muito felicitado.
VOL. IV. 4
26 OS ESPLENDORES DA FÉ

Eis quando o li qual o sentimento que me dominou


inteiramente. Era possivel que a creação da «Sala do
Progresso» estivesse acima dos meios de que dispunha,
e que me visse forçado a suspendel-a para esperar dias
melhores. O sr. Y. Fournel teria tido a missão providen­
cial de ornar a victima afim de que succumbisse pelo
menos com honra debaixo do seu immenso fardo, e de
grangear-lhe sympathias que a levantem quando a hora
soar?
"Se passardes casualmente entre as oito 6 as nove
da noite, nos arredores do bairro de Saint-Honoré, re-
commendo-vos que chegueis até ao n.° 30, e que pergun­
teis pela Sala do Progresso. Poderieis até sem inconve­
niente ir lá de proposito: a cousa vale a pena que se
tenha este incommodo. A Sala do Progresso foi aberta
ha algumas semanas pelo sr. P.e Moigno, do qual o sr.
Dumas, chimico dava recentemente em plena Acade­
mia este testimunho, que ha perto de meio século ca­
minha á frente do movimento scientifico em França.
E’ uma alevantada ideia esta sua, e que necessita
dos incitamentos do publico. O sr. P.e Moigno com os
collaboradores que o auxiliam, tenciona dar todos os
dias cursos de sciencia illustrada, que abracem todos
os ramos dos conhecimentos humanos: chimica, physi-
ca, historia natural, historia universal, geographia, que
sei eu ?.. ■ acompanhados de todas as demonstrações e
experiencias que podem tornar interessantes e claras as
licções, intermeiadas em certos dias de musica destina­
da a dourar a pilula, para aquelles que não consentem
em instruir-se senão com a condição de se diverti­
rem.
Tal é ardua tarefa que o sr. P.e Moigno, de perto
de 69 annos de edade, acaba de assumir com a energia
e a fé que o caracterisam.
Na America e na Inglaterra, o exito era seguro
para uma egual tentativa: em França só com o auxilio
PREFÁCIOS 27

de uma indomável perserverança é que será possivel


sacudir a apathia rotineira do publico.
Pelo que me diz respeito admiro com toda a since­
ridade aquelles que na edade do repouso, mettem con-
fiadamente hombros a uma semelhante empreza, e de­
sejaria ser poeta para renovar em sua honra a ode de
Horacio á nau de Virgilio, partindo para a Gfrecia.
O que ha de mais curioso na Sala do Progresso, não
são os cursos, mas seu fundador. Podeis ver todas as
noites sobre o estrado, mesmo quando não ensina, um.
velho de lunetas, um tanto curvado; de physionomia in-
sinuante, emuldurada em abundantes cabellos brancos,
de verbo tão atrahente como sua physionomia. Este pa­
dre de maneiras tão despretenciosas e tão modestas é
o sr. P.u Moigno, o amigo de Arago, de Cauchy, de
Ampére, de Thenard, o antigo collaborador scienti-
fico da Epoca, do Paiz, da Imprensa, o fundador do Cos­
mos e dos Mundos, o homem que tem escripto quasi tan­
tos volumes em seu genero e pela maior parte sem col­
laborador, como Alexandre Dumas no seu; em summa
o vulgarisador o mais infatigável da sciencia moderna.
Certo dia mostravam a uma senhora o sr. Montalem-
bert em um grupo de pessoas que conversavam.
«Reparai bem, senhora, reconhecel-o-heis immedia-
tamente, é aquelle que não está enfeitado.»
O sr. P.c Moigno tem alem d’isso um signal distin-
ctivo, mas não é visivel a olho nú: não é membro da
Academia das sciencias.
«Segui-o ao sahir do curso, onde vem fazer suas
grandes experiencias de electricidade com a machina
de Holtz, modelo Ruhmkorf, e demo'nstrar o novo para-
raio de Zeuner: vel-o-heis com os pés na lama, a cabe­
ça abrigada por um guarda-chuva que talvez seja de
algodão, esperar pacientemente o omnibus, subir para
elle e assentar-se entre um guarda-livros e uma colare-
ja e recitar baixinho seu rozario, porque esta alta intel-
28 0 8 ESPLENDORES DA PE

ligencia tem a fé do carvoeiro; e este sabio illustre é o


mais humilde dos padres.
Desçamos do omnibus com elle e não o larguemos
até á porta de sua casa. Não será mui dificultoso se-
guil-o até mais adeante ainda, ü P.e Moigno parece-se
muito com esse abbade de Moliere, cuja historia refere
Chomfort. Em casa d’elle tudo está aberto: os ladrões
podem entrar e revistar as gavetas á sua vontade ; sen­
do preciso o mesmo proprietário os auxiliará, dando-lhes
a chave, se porventura possue alguma. Com tanto que
não desarranjem os papéis, podem mexer quanto qui-
zerem.
O P.e Moigno habita uma casinha que se esconde
envergonhada atraz da egreja de Saint-G-ermain-des-
Prés. Paz serviço na parochia, desempenhando as fun-
cções de subdiacono nas missas, o que lhe grangeia se­
gundo penso uns 125 francos mensaes. Já é um progresso,
e elle está longe de se queixar. Lestes porventura o Mal-
dicto, uma obra que teve o defeito.de ser impia e o mau
gosto de ser néscia? Não. Pois li-a eu, porque é mister
que eu leia tudo, o que nem sempre me inspira uma es­
tima profunda pela arte de Guttemberg.
Encontra-se lá um capitulo, intitulado o diacono of-
ficiante, onde se fala de um sabio de primeira ordem,
que percebe 33 francos e 33 cêntimos por mez, para
desempenhar as funcções diaconaes á missa cantada em
uma das principaes egrejas de Paris. Tal foi de facto
outPora a posição do P.BMoigno, e é a elle que se re­
fere o Maldicto n’esta passagem. Não sei onde o auetor
pôde obter estes esclarecimentos, que teria podido
completar accrescentando que nunca sahiu uma queixa
da bocca nem do coração do P.e Moigno.
Está satisfeito, cumpre com os seus deveres subdia-
conaes e com todos os outros sacerdotaes com a exacti-
dão de um cura novo. Ainda tem tempo para recitar o
breviario depois de redigir os Mundos, de escrever as
PREFÁCIOS 29

Licções de Mecanica Analytica, de preparar suas prele-


cções, e nunca lhe passou pela mente que trabalhos tão
transcendentes o auctorisavam a pedir uma dispensa
qualquer.
«No alto da porta lê-se: Campainha dos Sacramen­
tos. E’ o P.e Moigno de facto que está encarregado tam­
bém de voar de noite em soccorro dos moribundos.
Muitas vezes, este anoião, este homem que tem apro­
fundado os mysterios da sciencia, é despertado a toda a
hora da noite para ir levar pela neve e o gelo o viatico
a alguma pobre mulher que elle consola, como horas
antes esclarecia as mais altas intelligencias. E a boa da
mulher nem sequer suspeita que esse padre de palavra
tão insinuante, que mandou chamar para juncto do seu
travesseiro, e que viu seiscentas vezes com a dalmatica
á missa das dez horas, é o amigo de Ampére e de
Arago.
Felizmente o P.e Moigno tem o somno leve e calmo
da creança. Deita-se entre as dez e as onze, para se le­
vantar invariavelmente ás seis horas, ainda quando o
tem despertado.
Das seis ao meio dia as funcções do seu ministério
e a missa obrigam-no a estar em jejum.
E ’ uma quaresma perpetua.
Mas custa-lhe pouco. Este anachoreta da sciencia
tem a sobriedade dos Padres do deserto, e não desejo
ao sr. Monselet um convite para almoçar em casa d’elle.
Viveria de côdeas de pão e de agua sem dar sequer
por isso; creio até, que chegaria a nutrir-se exclusiva­
mente de raizes quadradas e cúbicas. . .
Voltemos á casinha.
Entra-se n’um corredor escuro.
Ao fundo um pequeno quintal, cheio de gallinhas,
de pombos, coelhos e patos. Depois, de terdes errado
algum tempo á toa e chamado em vão, acabais por to­
30 0 3 ESPLENDORES DA FÉ

mar á direita, onde está uma porta que dá para uma


entrada estreita, ingreme e escura.
Em seguida deparais em frente com um quarto,
onde a velha criada invalida que ha quarenta e cinco
annos vive na casa do P.e Moigno, como viveria na sua,
vos espera ao passardes. Subi a outro andar, e encon­
trar-vos-heis em frente de uma porta: á direita uns
quartos de aguas-furtadas; á esquerda o escriptorio do
dono; no umbral está um cartaz impresso indicando os
dias e as horas nas quaes é expressamente prohibido
procurar o P.c Moigno, mas ni»guem faz caso d’isso,
nem o proprio P.e Moigno.
«Bateis, entrais: ninguém!
Depois de alguns minutos de espera e de attenção
para a bibliotheca, que um amador poderia á vontade
roubar sem que ninguém se oppuzesse, desceis para
advertir que o amo não está no seu escriptorio; ella
responde-vos simplesmente: «Talvez esteja na Acade­
mia.» No entrementes pôe-se em busca d’elle e passados
dez minutos, chega-se por via de regra a descobrir o
P,u Moigno. que apenas sahe para fazer as suas confe­
rências, que não põe os pés na rua, mas que frequente­
mente desce ao quintal por uma escada situada ao fundo
do seu escriptorio, em seu quarto de cama, esse famoso
quarto despedaçado por um obuz prussiano, a 20 de ja­
neiro, quando o P.u Moigno estava de pé no umbral,
com uma vella na mão, cuja mobilia a cidade de Paris
tornou a colar de novo, mobilia comprada em outro
tempo em leilão por 35 francos.
Podeis estar certo que sereis recebido com uma
benevolencia nunca desmentida n’esse gabinete de tra­
balho, onde todo o mundo vem trazer o seu contin­
gente. O sr. P.c Moigno recebe todas quantas publica­
ções scientificas sahem á luz, desde a França até á
Australia; está em correspondência com todos os sábios
do universo.
PREFÁCIOS 31

Sua rica bibliotheca está bem catalogada, mas seu


escriptorio é um abysmo, inundado incessantemente
por uma nova onda de papéis novos. Ao assentardes-
vos, tomai cuidado não esmagueis algum aparelho. Fe­
lizmente para se orientar n’este chãos, o sr. P.e Moigno
dispõe de uma memória prodigiosa, auxiliado por um
systema de mnemotechnica dos mais engenhosos. Sabe
doze linguas; e não esquece nada do que aprende.
Podeis facilmente adquirir a certeza d’isso pergun­
tando-lhe qual o nome do centesimo vigésimo primeiro
papa; responder-vos-ha logo: Landon.
O obuz prussiano deu-lhe cabo de quinhentos vo­
lumes, mas elle tinha-os todos na cabeça.
Se lhe roubarem os restantes, consolar-se-ha, como
se tem consolado de tantas outras eousas, lendo-as na
memória.
A’ maneira de Bias, o P.e Moigno traz tudo com-
sigo —não só toda a sua guardaroupa e toda a sua for­
tuna, mas sua bibliotheca.
«Bernardille.»
(0 Francez, sexta-feira 6 de dezembro de 1872.)
A OBRA

Não venho levantar polemica como os escriptores


catholicos do xvm século. Tenho uma confiança tibia
na lucta dos espíritos; e por outra parte estamos em
um século que tem horror ao syllogismo, elemento in­
dispensável de toda a discussão.
Nutro a convicção intima e hei de consagrar a esta
these um dos capítulos d'esta obra, de que a argumen­
tação e a controvérsia raras vezes esclarecem um espi­
rito ou convertem um coração; e de que na discussão
o defensor do direito e do verdadeiro facilmente é le­
vado a fazer concessões bastantes para que a razão
passe para o lado do adversário.
Também não venho como Chateaubriand, meu il-
lustre compatriota, cuja missão foi com certeza providen­
cial, falar á imaginação e ao coração por uma serie de
quadros encantadores e de scenas poéticas. No fim da
grande Revolução, as almas estavam violentamente sa­
cudidas por espectáculos cruéis e lugubres; as bellezas
e as harmonias da Religião, por um feliz contraste,
eram de molde a impressional-as profundamente, a re-
VOL. IV . 5
34 0 8 ESPLENDORES DA FÉ

concilial-as, sem que pensassem em desquitar-se de sen­


timentos que pareciam para sempre desterrados.
Hoje as condições de estudo e de lógica, indispen­
sáveis a uma discussão profunda, já não existem, as imagi­
nações, pelo menos nas cousas do espirito, estão com­
pletamente puidas, nada seria capaz de as fixar e com-
mover.
Ha porém felizmente uma faculdade, que ainda
não está bastantemente gasta, é a faculdade de com-
prehender, a intelligencia, e até certo ponto o espirito.
Nós temos ainda em França, e fóra d’ella muitas intel-
ligencias, e intelligencias muito vivas, muito exercita­
das !
Por conseguinte, sem discutir e sem pintar, venho
falar ao espirito, fazer brilhar a seus olhos a luz da
verdade e da fé. A minha obra não será mais do que a
expressão animada da lei immaculada de Deus que
converte as almas, o testimunho fiel do Senhor que dá
a sabedoria aos pequeninos. Lex Domini immaculata,
copvertens animas; testimoniiim Domini fidele sapientiam
praestans parvulis (Ps. xxviii). Tenho a convicção in­
tima —e espero que a hão de compartilhar as intelli­
gencias que me lerem, a despeito dos esforços de uma
vontade transviada, sempre propensa ah! a impedir o
accesso á luz a mais viva e pura — de que a divindade
da fé catholica, apostólica, romana, é uma verdade
clara como a luz do dia, crivei alem de quanto possa
dizer-se, em conformidade perfeita com a sciencia nos
pontos de contacto de uma com a outra.
Seria do mais intimo de minha alma, esclarecida
pela sciencia e sanctificada pela fé, que soltaria este grito
de reconhecimento: Dou-vos este testimunho, ó meu Pai!
Senhor do ceo e da terra, que se vossa revelação se occutta
ah! para os sábios e prudentes, é perfeitamente accessivel
aos pequeninos e humildes.
Se meu plano não é inteiramente novo, se aparecer
■ \v V

A OBRA 35

em outra parte esboçado em alguns de seus pormeno­


res, é novo pelo menos no seu todo.
Uma sentença de S. Gregorio, que o breviário ro­
mano recorda tantas vezes ao padre, causou-me viva
impressão. O grande doutor tinha de explicar a razão
porque são hoje tão raros os milagres, outrora. nos pri­
meiros tempos do christianismo tão frequentes.
«O milagre, disse elle, é a agua necessária para fa­
zer nascer e crescer a arvore do ceo, que deverá abri­
gar em seus ramos todos os filhos de Deus. Quando
plantamos uma arvore, temos o cuidado de a regar, e
regamol-a em quanto não pega; mas quando lançou
raizes profundas no solo, e vive da humidade que as­
pira, cessamos de lhe prodigar a agua já agora inútil.
Os milagres são indispensáveis no começo, quando a
maioria é ainda infiel, multiplicam-se então debaixo
dos pés dos apostolos do Evangelho; mas são supérfluos
quando a maioria é crente e fiel: Miracula infidelibus,
non fidelibus.»
O estabelecimento do christianismo, o facto de ter
vencido, conquistado e renovado o mundo, é o mais es­
plendoroso e indiscutivel dos milagres. Faz de per si só
empallidecer todos os factos maravilhosos individuaes,
sobre os quaes se pode discutir interminavelmente.
O que nós designariamos pelo nome de Evidencias
da Fé, se a expressão fosse permittida, o que chamare­
mos os Esplendores da Fé, são as luzes fulgentes de um
certo numero de factos notáveis, claramente enun­
ciados d’antemão, realisados da maneira a mais porten­
tosa, fóra de todas as condições naturaes. Estes orácu­
los, hoje realidades immensas e palpaveis, são d’ora em
deante pharoes brilhantes, cuja luz na ordem intelle-
ctual e moral, é muito superior á luz electrica, a mais
viva das luzes da sciencia moderna.
Mercê d’elles, estamos plenamente auctorisados a
dizer de nossa fé, que semelhante ao sol, se ergue como
36 OS ESPLENDORES DA FÉ

u m gigante para percorrer sua carreira immensa, que


tem attingido esplendores meridianos, a cuja luz e ca­
lor só uma vontade rebelde pode subtrahir-se.
Enumerarei mais tarde estas pequenas palavras, vol­
vidas grandes realidades. Seu alcance divino não exige
de modo algum que a authentioidade dos Evangelhos
seja demonstrada, ou a das obras originaes dos escri-
ptores apostolicos, sob cujos nomes foram publicadas.
E ’ muito bastante — o que sem difficuldade concedem
ainda os mais encarniçados inimigos do Christianismo)
o que a critica moderna nunca ousou negar—que os tex­
tos por mim invocados fossem escriptos e conhecidos
desde o século da era christã, quando nada ao tempo
fazia prever a realisação d’estes oráculos assombrosos.
OS ESPLENDORES !DA FE

A FÉ E A RAZÃO

CAPITULO PRIMEIRO

Estado da questão. Methodo a seguir. Discussão


e Exposição

epois de ter reconciliado perfeitamente a Scien-


cia com a Revelação, resta para também re­
conciliar perfeitamente a Razão com a F é : l.°
demonstrar invencivelmente, por argumentos
palpaveis e irresistiveis, a verdade da Revelação divina,
a divindade de Jesus Christo e da sancta Egreja catho-
lica romana; 2.° dissipar todas as nuvens, amontoadas
desde ha tantos annos a esta parte, por meio de res­
postas victoriosas ás objecçoes da impiedade e do livre
pensamento; 3.° esclarecer com toda a luz possivel os
mysterios da Pé.
Que methodo seguir n’esta demonstração e n’esta
refutação ? A dialectica, a philosophia e a theologia es-
colasticas são cousas excellentes, mas estão ao alcance
apenas de um pequeno numero de espíritos; não se im­
põem á intelligencia; excitam a vontade mas não a
38 OS ESPLENDORES DA EE

subjugam; não convertem. Se a intelligencia estivesse


só, não seria difficil esclarecel-a, mas a intelligencia está
debaixo da influencia ou melhor debaixo do poder da
vontade; e a vontade sempre mais ou menos má, sem­
pre mais ou menos insurgida contra a verdade sobre­
natural, tende a tornar esta verdade inaccessivel á in­
telligencia. Aquelle que faz o mal, disse a própria Ver­
dade, aborrece a luz! Esta influencia da vontade sobre
a intelligencia posta em presença da verdade, nulla, ou
quasi, quando se tracta de uma simples exposição, faz-se
sobretudo sentir logo que começa a discussão e sobre­
tudo a demonstração escolastica ou syllogistica, d’onde
resulta que nunca ou quasi nunca a discussão determina
a convicção, e sobretudo a conversão. Vou resumir, como
prova, a historia de seis conferências ou controvérsias ce­
lebres sobre questões religiosas: l.° a conferência ou col-
loquio de Poissy, por influencia de Catharina de Medieis.
Aos argumentos victoriosos, pelos quaes o cardeal de Lo-
rena, e o B. P.e Lainez, estabeleciam o facto da pre­
sença real, Theodoro de Beze oppoz a impossibilidade
do mysterio! Provava-se-lhe o movimento marchando,
elle persistia em o declarar impossivel. 2.° A conferên­
cia de Fontainebleau em presença de toda a côrte. Du-
plessis de Mornay não pôde defender sua causa, senão
invocando textos truncados; o cardeal Duperron recti-
ficou-os immediatamente, mas apezar de desmascarado,
o seu adversário não quiz concordar; e todavia todos
os espectadores o declararam batido. 3.° A correspon­
dência de Bossuet com Leibnitz sobre um projecto de
reunião dos catholicos e dos protestantes. Leibnitz,
apertado, esquivou-se bem depressa por considerações
indignas d’elle, e sem relação alguma com os princípios
fundamentaes da discussão. 4.® A entrevista de S. Fran­
cisco de Salles e de Theodoro de Beze.
Logo desde o principio Theodoro de Beze reco­
nheceu que a Egreja catholica, Egreja mãe, era a ver­
A FÉ E A EAZÃO 39

dadeira Egreja de Jesus Christo, e que era possível


salvarem-se os que estivessem dentro do seu grêmio.
Manteve porem até ao fim que na egreja calvinista
também era possível a salvação, e ainda mais facilmen­
te, sobre este principio absurdo em si, e contradictorio
com o Evangelho e a Tradição, que a fé salva sem
obras. 5.° A conferência de Bossuet e de Cláudio sobre
o acto de fé, em presença da senhora de Duras. Bossuet
tinha-se comprometido a fazer admittir a Cláudio, tan­
tas quantas vezes quizesse, que nas douctrinas do cal-
vinismo, cada christão pode entender melhor a Escri-
ptura do que os concilios universaes, e que o acto de
fé é impossível sem um acto prévio de infidelidade e de
incredulidade. Estas duas monstruosidades não desar­
maram Cláudio. 6.° A conferência entre theologos ca-
tholicos e protestantes sobre a vinda de S. Pedro a
Roma. Vejo que em todos estes casos repellido para
dentro de suas ultimas trincheiras e constituído na im­
possibilidade de responder, o adversário da verdade
nunca se rendeu á evidencia.
Se me puzesse a escrever a historia das polemicas
e discussões acadêmicas, políticas, judiciarias, pretéritas
ou contemporâneas, que tem tido o triste privilegio de
preoccupar e de apaixonar a attençao publica, teria de
verificar mais uma vez que nenhuma ou quasi nenhuma
terminou pela derrota confessada de um dos contendo-
res: que nenhum ou quasi nenhum dos luctadores teve
a coragem de reconhecer que sua causa era má.
Ha um facto no Evangelho que me tem impressio­
nado vivamente, é o desdem, diría o desprezo que Je ­
sus Christo, a Sabedoria infinita, testimunha pela dis­
cussão. Acceita a objecção e refuta-a, mas por uma pa­
lavra, de um só traço, sem nunca discutir. Jesus Chris­
to não argumentava; mais, nem sequer provava, falan­
do com rigor; não demonstrava, fazia resahir a ver­
dade, tornava-a sensível e palpavel por figuras e pa-
40 OS ESPLENDORES DA FÉ

rabolas. Quem deixará de admirar esses diálogos tão


singelos, tão attralientes que produziam quasi invenci­
velmente a evidencia da verdade nos espiritos mais
prevenidos? Lembrarei de fugida, porque são verda­
deiros modelos propostos á nossa imitação, as parabo-
las do Semeador, da Figueira esteril, da Viuva e do
Juiz, do Pharizeu e do Publicano, do Servo infiel, das
Dez Virgens prudentes e loucas, dos Dois filhos, dos
Convidados para o festim, dos Operários revoltados, do
Grão de mostarda, do Thesouro descoberto, da Pérola
encontrada, da Rede lançada ao mar, do Filho prodigo,
etc.
Estas figuras e parabolas, sahidas da bocca do di­
vino Salvador, que vinha illuminar a todo o genero hu­
mano, são ensinos ah! bem olvidados! Revelam-nos um
dos segredos mais occultos da razão humana, nas con­
dições em que a perda original a deixou. Para chegar
á intelligencia, para a mover a acceitar a verdade, so­
bretudo a verdade religiosa, é mister antes de mais
nada desprendel-a, surprehendel-a d’alguma sorte em
isolamento da vontade, e então, de improviso, por uma
figura, uma imagem, um facto simples e grandioso, etc.,
esclarecel-a com uma luz repentina e viva, á qual não
possa resistir. Ha um sentido muito profundo Resta
phrase de um moralista francez: «Não discutais, porque
não convencereis ninguém; as opiniões sâo como pregos:
quanto mais se lhes bate, mais penetram.»
Não discutirei pois, mas para convencer a razão da
divindade da Fé, forcejarei porque brilhe em toda a
sua simplicidade e pureza, com todo o seu raiar sereno
e benefico, a luz de um certo numero de palavras evan­
gélicas, que são ao mesmo tempo prophecias, milagres
e factos immensos que tem repercutido no mundo in­
teiro . .. São estas palavras evangélicas o que eu chamo
propriamente E splendores da F é . Estamos de posse
d’ellas desde os primeiros séculos da Egreja, antes que
A FÉ E A RAZÃO 41

houvessem tido inteiro cumprimento, e portanto não é


absolutamente necessário, para que tenham todo o seu
valor, que hajam sahido authenticamente do punho dos
evangelistas, aos quaes são attribuidas. Eil-as.
1. «Todas as nações da terra rne hão de proclamar
bemaventurada.» (Luc. í , 48).
2. «Meus olhos viram o salvador que vem de vós,
e que oífereceis a todos os povos, a luz que ha de illu-
minar as nações.» (Luc. n, 30, 31, 32.)
3. «Este menino está posto para ruina e para re-
surreição de muitos.» (Luc. ii , 34.)
4. «Este menino será o alvo da contradicção.»
(Luc. i i , 34.)
5. «Segui-me, far-vos-hei pescadores de homens.»
(Math. iv. 9.)
6. «Sêde perfeitos como vosso Pai celeste é per­
feito.» (Math. v, 48.)
7. «Os pobres serão evangelizados.» (Math. xi, 5.)
8. «Sereis objecto de odío para todo o mundo, por
causa de meu nome.» (Luc. xxi, 17.)
9. «Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a
minha Egreja, e as portas do inferno não prevalecerão
contra ella. (Math. xvi, 18.)
10. «Quando eu fôr levantado da terra, tudo at-
trahirei a mim.» (Jo. x, 32.)
11. «Reconhecerão que sois meus discipulos, por
este signal, que vos amareis uns aos outros.» (Jo. xm, 35.)
12. «Em verdade, em verdade vos digo, aquelle
que crer em mim fará as maravilhas que eu faço e
ainda maiores.» (Jo. xiv, 12.)
13. «Jerusalem, teus filhos serão passados ao fio da
espada, e serão levados captivos para entre todas as
nações... Jerusalem será calcada aos pés pelos gen­
tios . -» (Tuc. xi, 23 e 24,)
14. «Ide, ensinai todas as nações, baptizai-as em
nome do Padr.q do Filho e do Espirito Santo; ensinai-as
VOL I V g
42 OS ESPLENDORES DA FÉ

a observar os meus mandamentos, e eis que eu estarei


comvosco até á consummação dos séculos.» (Math. xxvni,
19 e 20.)
15. «Roguei por ti afim de que tua fé não desfal-
leça; e tu, convertido, confirma teus irmãos.» (Luc. xxn,
32.)
Eis outros tantos oráculos, cujo cumprimento esta­
va fóra e muito acima das forças humanas! E cumpri­
ram-se! Logo o dedo de Deus está ali.
CAPITULO SEGUNDO

A divindade da nossa fé, demonstrada pelas


propheeias

A prophecia é o annuncio muito ou pouco anteci­


pado de um facto contingente.
Por facto contingente deve entender-se o acto
eventual de uma vontade livre, um facto que não seja
o producto necessário de causas physicas ou moraes,
que-possa ser ou não ser realisado.
A prophecia visa a distancia, atravez do tempo e
do espaço, o facto de uma vontade livre, suppõe'ne­
cessariamente uma intervenção, uma inspiração, uma
revelação divina, consciente ou não. E’ de facto impos-
sivel a visão a distancia de um acto livre sem a visão
de Deus, ser dos seres, que foi, é e ha de ser, para o
qual não ha nem espaço, nem tempo, simultaneamente
immenso, eterno e omnipotente, senhor soberano das
vontades, que inclina para seus fins deixando-as ou me­
lhor formando-as livres.
A intervenção divina é mais necessária ainda se é
possivel, quando a prophecia tem por objecto aconte­
cimentos sobrenaturaes e miraculosos: o poder de pro­
nunciar confunde-se então com o de produzir.

I
44 OS ESPLENDORES DA FÉ

O propheta, no sentido proprio, é o homem privi­


legiado. a quem e por quem Deus revela ou pronuncia
acontecimentos contingentes, que §e hão de realisar as
mais das vezes, quando elle já não existir e onde não
ha de estar.
Postos estes princípios, estamos no direito de dizer;
os grandes objectos de nossa fé. Jesus Christo e sua
Egreja, tem sido objecto de prophecias numerosas, cir­
cunstanciadas, brilhantes. Todos os grandes factos do
christianismo, a Incarnação, a Pedempção, etc., foram
prometidos, predictos, figurados e preparados com
muitos séculos de antendencia por grande numero de
homens; e estes homens eram evidentemente inspira­
dos, pois que viam a distancia, no tempo e no espaço;
logo Jesus Christo é Deus, a religião christã e a Egreja
de Jesus Christo são divinas.
Quem poderá com effeito deixar de ver Jesus Christo
no Messias de quem o Antigo Testamento por bocca
dos prophetas diz: Ha de ter um precursor, nascerá na
cidade de Belem ; nascerá de Judá e de David; mos-
trar-se-ha de preferencia em Jerusalem ; cegará os pru­
dentes e os sábios; annuneiará o Evangelho aos pobres
e aos pequenos; abrirá os olhos dos cegos e dará saude
aos enfermos; reconduzirá para a luz aquelles que ja­
zem nas trevas; ensinará a via perfeita e será o prece-
ptor dos gentios; será ao mesmo tempo a pedra angu­
lar' e a pedra de contradicção ou de escandalo, contra
a qual virá despedaçar-se Jerusalem. Deve ser regei-
tado, desconhecido, trahido. vencido, esbofeteado, es­
carnecido, aflicto de diversas maneiras, saturado de fel.
Terá os pés e as mãos atravessadas, hão de escar­
rar-lhe no rosto; ha de ser condemnado á morte, e seus
vestidos jogados aos dados. Ao terceiro dia resuscitará;
ha de subir ao ceo, e assentar-se á direita de Deus;
ha de ser victorioso de seus inimigos; os reis da terra
e todos os povos o hão de adorar. Os judeus hão de
A DIVINDADE DA NOSSA FÉ 45’

continuar a formar nação; mas errantes, sem reis, sem


sacrifícios, sem prophetas, aguardando a salvação e não
a encontrando! A Eile ser-lhe-ha dado um grande povo
eleito e sancto, que ha de conduzir e salvar, que ha de
nutrir e reconciliar com Deus, que ha de libertar do
captiveiro do peccado, e ao qual ha de dar leis grava das
no fundo de seus corações, pelo qual, sacerdote segundo
a ordem de Melehisedech, ha de offerecer o pão e o
vinho consagrados. Será simultaneamente o doutor
dos judeus e dos gentios; destruirá os idolos e o culto
maldicto que lhes tributavam ; as nações as mais infíeis
hão de submetter-se a seu jugo, e adorar a um só e
mesmo Deus. Ha de vir quando o sceptro tiver sahido
de Judá; depois da destruição da terceira monarchia,
a dos Gregos; durante a quarta dynastia, i é, a dos Ro­
manos ; setenta semanas de annos ou quatrocentos e
noventa annos depois da reconstrucção da cidade de
Jerusalem. Virá ao templo, reedificado no tempo de
Aggeu e de Malachias, e destruído pelos Romanos.
As promessas feitas no Antigo Testamento aos pa-
triarchas e aos prophetas, os innumeros caracteres at-
tribuidos ao Messias, as particularidades e até minu-
dencias de sua vida e morte, os resultados de sua mis­
são ou a conversão dos gentios, são pois incontestavel-
mente outras tantas prophecias, volvidas factos evan­
gélicos realisados em Jesus Christo. Logo Jesus Christo
é Deus, e sua Egreja é divina.
Não são tão sómente meras predicções ou annun-
cios feitos grande numero de séculos antes; os factos
os mais salientes da Redempção foram figurados por
acontecimentos e personnagens symbolicas: Isaac, a
Serpente de bronze, Jonas, etc., etc.
Accrescentemos que estes prenuncios irrecusáveis
de tantos factos, tão eventuaes como inverosimeis, es­
tão consignados nos livros os mais antigos do mundo,
fundamento immutavel da religião e do governo de
46 OS ESPLENDORES DA FÉ

um grande povo, guardados fielmente por elle, apezar


de todo o interesse que tinha de os subtrahir ás vistas
dos outros, e até de os destruir, pois que estão cheios
de testimunhos de sua infidelidade, de reprimendas as
mais asperas, de ameaças as mais terriveis, etc.; muito
embora sejam n’uma palavra o monumento de sua con-
demnação e do triumpho do christianismo que elle abor­
rece.
Mercê das prophecias, a religião christã é tão an­
tiga como o mundo, porque em todos os tempos o ho­
mem adorou o mesmo Deus como seu Creador, e o
mesmo Christo como seu Salvador. Passou por phases
diversas, progressos e decadencias, mas ficou uma em
todas as edades de sua duração.
Estabeleçamos enfim que ha no mundo um facto
oapital, que domina a antiguidade, que illuinina as tre­
vas do polytheismo, e que prova eloquentemente que es­
tas mysteriosas prophecias são divinas: é a expecta­
tiva universal de um Deus Salvador, esse echo das pro­
messas que o genero humano nos reproduz pelas boc-
cas as mais longinquas: E será a expectativa das nações!
Toda a terra fala como Moysés falou. j STo primeiro
trecho da historia, durante quatro mil annos, o mundo
espera e aguarda; no segundo, o mundo crê e adora.
Sim, pelo tempo da vinda de Jesus Christo, todos os
povos esperavam, na íé de antigos oráculos, um en­
viado do ceo que os devia regenerar. Voltaire, Boulan-
ger, Yolney, etc., proclamaram este facto necessário;
estabelecem que chamavam a vozes este enviado de
Deus: «o grande mediador, juiz final, salvador futuro,
Deus, rei unico, legislador supremo, etc., que havia de
trazer a edade de ouro sobre a terra e havia de livrar
os homens do império do mal.» Dizem formaes pala­
vras : que era esperado, que não ha povo algum que não es­
tivesse na expectativa d’eUe, e que o ponto do globo, onde
devia nascer poãeria denominar-se o Povo da esperança de
A DIVINDADE DA NOSSA FÉ 47

todas as nações. (Estados religiosos do sr. Nicolas, t. n, p.


134; t. iv, pag. 190.) As nações da terra esperaram-no
durante desoito séculos! Desde que Jesus Christo apa­
receu, não esperam já; logo Jesus Christo é o Messias
prometido e enviado de Deus! Enfim todas estas tra­
dições partem necessariamente de uma fonte commum
que não pode ser senão as escripturas antigas e sagra­
das, Antiquis sacerdotnm litteris, ás quaes Tácito as fazia
remontar.
Esta universalidade e esta perpetuidade da religião
de Jesus Christo são por conseguinte provas palpaveis
de sua divindade e da divindade de sua sancta Egreja.
CAPITULO TERCEIRO

A divindade de nossa fé provada pelos milagres

O milagre é uma suspensão do curso regular dos


phenomenos naturaes, uma derogação ás leis da natu­
reza, produzida por uma vontade particular e excepcio­
nal de Deus, operando fora da vontade geral que rege
o universo, e o que constitue o que é. Assim sabe-se
por uma experiencia de seis mil annos, que o sol se
conserva em media doze horas acima do horizonte, é a
lei da natureza.
Se acontecer que á ordem de um homem inspirado
o sol se conserve desoito ou vinte e quatro horas sobre
o horizonte, sem se pôr, será uma derogação ás leis da
natureza ou um milagre. O milagre é pois a acção par­
ticular ou excepcional de Deus, substituindo-se mo­
mentaneamente á acção geral e regular que constitue
a ordem da natureza. A primeira d’estas acções não
suppõe em sua causa, a vontade de Deus, mais poder
do que a segunda; apenas é caracterisada por sua sin­
gularidade.
O facto natural é a ordem constante e habitual,
não se dá por elle. O íácto excepcional e miraculoso é
A DIVINDADE DA NOSSA FÉ 49

a ordem perturbada, e por isso nota-se e com espanto.


A multiplicação do grão lançado á terra e a multipli­
cação dos pães são factos da meama ordem, um mate­
rial, o outro sobrenatural ou miraculoso.
Antes de ser um facto sobrenatural ou miraculoso,
o facto da derogação ás leis da natureza é um facto
physico, que como todos os factos physicos, cahe de­
baixo da alçada dos sentidos.
Yê-se e palpa-se da mesma maneira que o sol fi­
cou doze ou vinte horas sobre o horizonte. O milagre
pode por conseguinte tornar-se metaphysicamente certo
para aquelle ou aquelles que d’elle são subjeito ou obje-
c to ; physicamente certo para aquelles que o vêem;
moralmente certo para aquelles que o ouviram de tes-
timunhas oculares dignas de fé.
Negar a possibilidade do milagre é em realidade
negar a presença e a acção de Deus em a natureza.
Nenhum milagre é comparável em grandeza aos factos
immensos da creação e da conservação dos mundos.
Todo o homem que reconhece a um Deus creador e
conservador do universo, não está no direito de affir-
mar a impossibilidade do milagre. Por outras palavras
negar a possibilidade do milagre é implicitamente ser
atheu! Negar o milagre é também privar a Deus de
sua voz, o unico meio-pelo qual pode manifestar suas
vontades; é collocar Deus abaixo de todos os seres
animados da natureza, providos todos da faculdade de
exprimir seus pensamentos, desejos e Arontades. O mila­
gre, a derogação ás leis da natureza, a producção no
interior e no exterior d’um phenomeno contra a ordem
regular das cousas, é o unico meio pelo qual Deus
pode entrar em communicação com suas creaturas in-
telligentes e livres.
Supprimi o milagre, e reduzis Deus á condição dos
idolos que tem olhos e não vêem, ouvidos e não ouvem,
mãos e não palpam, pés e não marcham. Até os pagãos
VOL IV L 1.
50 OS ESPLENDORES DA EE

por um sentimento innato e invencível admittiam que


seus deuses de pedra e de madeira podiam fazer mila­
gres! Pediam-lh’os e exprimiam-lhes seu reconheci­
mento por ex-voto. Em todo o caso o milagre é pelo
menos a condição essencial de toda a revelação feita
ou de toda a fé imposta por Deus aos homens, de sorte
que Moysés, Jesus Christo e os apostolos deviam forço-
samente fazer milagres.
Os milagres são factos extraordinários, brilhantes,
mas que se palpam, se vêem, se verificam como todos os
phenomenos do mundo physico. E’ pois mentir a todas
as leis da lógica, e constituir-se no estado de milagre
de irrisão dizer com o sr. Renan, o inimigo pessoal
da divindade de Jesus Christo (Prefacio da décima ter­
ceira edição da Vida ãe Jesus Christo): «Se o milagre
tem alguma realidade, meu livro é um tecido de erros.
Se pelo contrario o milagre é cousa inadmissível, tive
razão em encarar os livros que encerram narrações
miraculosas como lendas repletas de inexactidões e de
erros de facção.>
Repetimos, os factos evangélicos, antes de serem
factos miraculosos, são meramente factos perceptíveis,
nem mais nem menos que os factos naturaes; aquelles
que os contam são tão dignos de credito, qpando affir-
mam tel-os visto, como se se tratasse de factos da or­
dem commum; dos dois lados a questão é toda testi-
munhal; ora que testimunhos mais dignos de fé, do
que o Evangelho e os evangelistas, dos quaes João Ja-
cques Rousseau dizia: «Como recusar o testimunho de
um livro escripto por testimunhas oculares, que o assi-
gnaram com o proprio sangue, recebido em deposito
por outras testimunhas, que não tem cessado de o pu­
blicar por toda a terra, pelo qual morreram martyres
em maior numero, do que as lettras de todas as suas
paginas?!... A sanctidade do Evangelho fala a meu co­
ração. Será possivel que um livro ao mesmo tempo tão
A DIVINDADE DA NOSSA FÈ 51
sublime e tão simples seja obra dos homens ? Sim, mil
vezes, os apostolos são as testimunhas oculares as mais
dignas de fé; suas pessoas e palavras trazem o cunho de
seu caracter irresistível de sinceridade e de verdade.»
Na historia singela dos innumeraveis milagres fei­
tos á luz do dia por Jesus Christo, nada accusa, pelo
contrario tudo exclue a ideia de trama, artifício, simu­
lação, invento ou coacção.
Estes milagres provam tanto mais a divindade de
Jesus Christo e de sua sancta Egreja, quanto é certo '
que todos ou quasi todos tiveram directa ou indirecta-
mente por fim e resultado estabelecer que elle era o
Messias enviado de Deus.
Façamos uma resenha d’elles por ordem chrono-
logica.
1. ° Os milagres do nascimento de Jesus. — O cântico
dos anjos, Gloria a Deus, paz aos homens!
A aparição aos pastores, a estrella e a adoração
dos magos, o aviso mysterioso que receberam de não
tornarem a passar por Jerusalem, etc., terão podido
ser inventados ?
2. " Baptismo de Jesus Christo. —Jesus baptizado e
sahindo d’agua orava, o ceo abriu-se, o Espirito San-
cto desceu sobre elle, debaixo da forma de uma pom­
ba. Uma voz descida do ceo dizia: Eis aqui meu Filho
muito amado, em quem tenho posto todas as minhas
complacencias, ouvi-o! João Baptista acorescenta: E’
o Filho de Deus.
3. ° A agua mudada em vinho nas bodas de Caná.—
Não tem vinho, diz Maria, mãe de Jesus... Enchei as
amphoras d’ag u a... Tirai agora e levai ao architricli-
no. A agua mudara-se em vinho... Foi o primeiro mi­
lagre de Jesus; manifestou por esta forma sua gloria,
e seus discípulos creram n’elle.
4. ° A conversão da Samaritana. — Chama teu mari­
do. Não tenho marido. Dizes bem, porque já tivestes
52 OS ESPLENDORES DA FE

cinco, e aquelle, com quem estás não é teu - . ■ Eu sei


que o Messias ha de v ir... Sou eu que falo contigo...
Vinde ver um homem que me contou tudo o que tenho
feito. • . Muitos creram n’e lle .. • porque, ouvindo-o, fi­
caram certos de que realmente era o Salvador do mundo.
5. ° Cura do paralytico.— Meu filho, são-te perdoa­
dos os teus peccados!.. . Quem pode perdoar peccados,
a não ser Deus ?. Para que saibais que o Filho do ho­
mem tem o poder de perdoar os peccados, digo a este
' paralytico: Levanta-te; toma o teu leito, e caminha! E
o homem marchando, dava gloria a Deus.
6. ° A transfiguração. — Seu rosto tornou-se resplan­
decente como o sol, seus vestidos luminosos e alvos
de neve; Moysés e Elias rodeados de magestade pra-
cticavam com elle. Uma nuvem luminosa os envol­
veu, e eis que d’ella se fez ouvir uma voz que dizia:
Este é meu filho muito amado, em quem tenho posto
todas as minhas complaceucias, ouvi-o! Em occasião
opportuna S. Pedro aIludiu -a este milagre em termos
magníficos, que o humilde barqueiro do lago de Gfene-
sareth estava longe de poder inventar:
«Não é por fabulas doutas que vimos dar-vos a co­
nhecer o poder e a virtude da exaltação de Jesus Christo,
mas depois de havermos sido espectadores de sua ma­
gestade! Nós estavamos com elle na montanha, quando
recebeu honra e gloria.»
7. ° 0 cego de nascimento. —Nem elle, nem seus pais
peccaram, mas está rneste estado (cego de nascimento)
para que as obras de Deus sejam manifestas n’e lle...
E ! mister que eu faça as obras de meu P a i... Deixou
cahir na terra uma pouca de saliva, fez lodo com ella,
e untou com esta massa os olhos do cego, dizendo-lhe:
Vai, e lava-te na fonte de Siloé.
Foi, lavou-se e voltou, vendo perfeitamente! (Aquelle
que dissesse que esta narração foi forjada, mentiría a
sua consciência e ao Espirito Sancto!) Era um sabba-
A DIVINDADE DA NOSSA FÈ 53

do •. • Este homem não é Deus, porque não guarda o


sabbado... Sabemos que é peccador! .. Se elle é pee-
cador, não sei eu.
Sei porem uma cousa; eu era cego e agora vejo!...
Deus falou a Moysés; quanto a este, não sabemos d’onde
v em ... Se não fosse Deus, não poderia operar estas
cousas. •. Tu nasceste todo no peccado, e arvoras-te
em doutor!... E excommungaram-no da Synagoga...
Jesus, encontrando-o, disse-lhe: Crês tu no Filho de
Deus? - . • Quem é, Senhor, para que eu creia n’e lle?...
E ’ este que te está falando . ■ Creio, Senhor! E pros-
trando-se, o adorou.
8. ° A resurreição de Lazaro. — Aquelle que amais,
está enfermo.. . Essa enfermidade tem por fim a gloria
de D eus... Lazaro está morto, vamos ter com elle...
Se houvereis estado aqui, meu irmão não teria morri­
d o .. . Teu irmão ha de resuscitar. .. Eu sou a resurrei­
ção e a vida - .. Sim, Senhor, creio que sois o Christo, o
Filho de Deus vivo, vindo a este mundo... Onde o pu-
zestes?... Yinde e vêde, Senhor... Levantai a pe­
dra! . Cheira mal. Não te disse, que se creres, verás
a gloria de Deus. .. Meu Pai, graças vos dou porque
me ouvistes... E ’ por este povo que me rodeia, afim de
que creia em vós que me enviastes. Lazaro, sahe fórai
E de repente Lazaro sahiu.. ■E muitos creram n’elle
9. ° A multiplicação dos pães. —Jesus retirou-se para.
o outro lado de lá do mar de Gralileia. Uma grande
multidão o seguia, porque viam os milagres que obra­
va. .. Tenho compaixão d’esta tu rb a!... Onde com­
praremos pão bastante para que todos elles comam?...
Ha aqui um moço que tem cinco pães de cevada e dois
peixes... Jesus Christo tomou os pães, e mandou-os
distribuir áquelles que estavam assentados, e também
os peixes... Todos comeram quanto quizeram. Depois
de fartos, ajuntaram-se os pedaços restantes, e enche­
ram doze cestos. Estes homens, em numero de cerca de
54 OS ESPLENDORES DA FÉ

cinco mil diziam: Este é verdadeiramente o propheta


que devia vir ao mundo.
10. ° Jesus caminha sobre as aguas. — O mar alvora-
çado por um vento muito forte, encapellava-se muito...
Ahi pela quarta vigília da noite, Jesus veiu ter com elles,
caminhando sobre as aguas... ficaram passados de
terror.. . Pedro disse-lhe: Se sois vós, ordenai que eu
vá ao vosso encontro sobre as aguas.. . Pedro cami­
nhava sobre as aguas... mas teve medo, e começava a
alagar-se. Senhor, salvai-me! E Jesus estendendo-llie
a mão, agarrou-o... Quando entraram na barca, o
vento cessou .. Aquelles que estavam na barca, vie­
ram adoral-o e disseram-lhe: Sois verdadeiramente o
Pilho de Deus.
11. ° Os milagres da morte de Jesus Christo. —A offus-
caçao do sol, as trevas espessas que cobrem a terra in­
teira, o sol que treme, os rochedos que estalam, o véo
do templo que se despedaça, os mortos que resuscitam,
o centurião que desce do calvano, batendo no peito e
exclamando: Aquelle era realmente o Filho de Deus,
etc.! Isto não pode ter sido inventado. ■. Dyonisio Areo-
p.agita, testimunha d’esta offuscação do sol, exclamou:
Ou o Deus da natureza soffre, ou a natureza vai recahir
em o nada!
12. ° A resurreição de Jesus Christo. — Por que mila­
gre nos provarás tu que tens o poder de fazer estas
cousas ? ... Destrui o templo, que eu o reedificarei em
tres dias.. . Assim como Jonas esteve tres dias e tres
noites no ventre da baleia, assim o Filho do homem es­
tará tres dias e tres noites no seio da terra. Ao terceiro
dia ha de resuscitar. Na manhã do dia terceiro deu-se
um grande terram oto... O anjo do Senhor desceu do
ceo e arredou a pedra... Os guardas assustados cahi-
ram como m ortos... Foi o momento da resurreição.
Antes do nascer do dia, Maria Magdalena e outra Ma­
ria vieram ao sepulchro e acharam-no vasio. O anjo
A DIVINDADE DA NOSSA FÉ 55

disse-lhes: Buscais a Jesus que foi crucificado, não está


aqui, resuscitou-. • Depois Jesus mostrou-se a Pedro,
aos discipulos de Emmaús, a todos os apostolos, e de
maneira particular a S. Thomé: Mette o teu dedo nos
buracos de minhas mãos, mette a tua mão na chaga de
meu lado, e não sejas incrédulo, mas fiel... Meu Se­
nhor e meu D eus!... S. Pedro no dia do Pentecostes
ousava dizer a todos os Judeus reunidos: Jesus de Na-
zareth, a quem Deus auctorisou entre vós por mila­
gres, prodigios e maravilhas, e a quem vós destes a
morte, Deus resuscitou-o, e nós somos testimunhas
d’isso.
13. ° A ascenção de Jesus Christo.—Ainda um pouco,
e não me vereis m ais... Vou para meu P a i... Vós
ser-me-heis testimunha em Jerusalém, em toda a Ju-
dêa, em Samaria e até ás extremidades do mundo. .
Quando chegou o momento, Jesus levou seus apostolos
e seus discipulos para Bethania, e quando acabou seu
discurso, levantou as mãos, abençoou-os, e deixando-os,
subiu ao ceo.
14. ° Descida do Espirito Sancto. — Estamos todos
reunidos no mesmo logar. De repente fez-se um grande
ruido ■■• que encheu toda a casa, onde estavam. Então
apareceram como linguas de fogo que se dividiram e
pousaram sobre cada um d’elles .. E foram todos
cheios do Espirito Sancto, e começaram a falar diver­
sas linguas. A multidão ajunctou-se e ficou confusa,
porque cada qual ouvia os discipulos falarem em sua
lingua.
15. ° 0 coxo da porta do templo. — Jesus Christo tinha
dicto a seus apostolos: Aquelle que crê em mim. fará
os milagres que eu faço, e ainda maiores. Ora eis que
de facto os Actos dos Apostolos nos dizem: «Os apos­
tolos partindo prégam em toda a parte, cooperando o
Senhor com elles, e confirmando sua palavra com os
milagres que os acompanhavam... Trazíamos doentes
56 OS ESPLEFDOEES DA FÉ

para as praças publicas, oollocavam-nos sobre leitos e'


grabatos, afim de que sequer a sombra de Pedro oa-
hisse sobre alguns d’elles, e os curasse de suas enfermida­
des...» S. Paulo em muitas de suas epístolas falado
que Jesus Christo obrou por elle, para a conversão dos
Gentios, em milagres e prodígios. Certo dia, Pedro e
João dirigiam-se ao templo; havia ali um homem que
era paralytico desde o ventre da mãe, e que lhes pediu
esmola. Pedro diz: não tenho ouro, nem prata. Mas
dou-te do que tenho. Em nome de Jesus Nazareno le­
vanta-te, e caminha. E logo seus pés e pernas se firma­
ram, e levantando-se, marchou, saltando e louvando a
Deus.
Digamol-o mais uma vez, só um milagre de ce­
gueira e de sem razão é capaz de imaginar e affirmar
que estas narrações foram inventadas, que factos tão
brilhantes são illusões ou mentiras.
Nos logares e tempos, em que Jesus Christo e os
apostolos viveram, e quando Jerusalem podia contar
tantas testimunhas de suas obras quantos eram os seus
habitantes, milhares de pessoas de todas as condições
mostraram-se de tal sorte4convencidas, que o adoraram
como Deus. A sancta Egreja de Jesus Christo, monu­
mento immenso, que não teve por fundamento senão
os milagres do divino Salvador e dos apostolos, está de
pé vai em dezenove séculos. Todas as potências da terra
a tem querido abater, a sciencia de todos os séculos
tem-se esforçado pela minar, e ella ahi está erecta e
levantada, entre a terra e o ceo! E’ outro milagre fun­
dado sobre o milagre.
Se o não vedes, que vedes então? Os escribas, os
sacerdotes, os pharizeus, inimigos de Jesus Christo,
nunca negavam seus milagres, tentavam sómente infir-
mal-os explicando-os pelo poder dos demonios. Ne­
nhum escriptor judeu nos primeiros séculos do chris-
tianismo, ousou desmentir os evangelistas. Os dois Tal-
A DIVINDADE DA NOSSA FÉ 57

muds de Babylonia e de Jerusalem, limitam-se a dizer


mui gravemente que Jesus Christo se apropriara o nome
ineflável de Deus, nome, cuia pronunciação é o bas­
tante para operar os maiores prodígios. A ajuizar pelo
que dizem os mais doutos apologistas, S. Justino, Ter-
tulliano, Origenes, etc., etc., nem os idolatras, nem os
philosophos ousavam no seu tempo ainda negar os mi­
lagres de Jesus Christo, e as consequências que d’el-
les tiravam os christãos. O proprio Celso os confessa ex­
pressamente, attribuindo-os a magia. E’ que então todos
acreditavam em Deus e nos deuses, e ninguém pensava
em negar a possibilidade do milagre, do maravilhoso,
do sobrenatural, que constitue o fundo d’alma humana.
Só o atheismo dissimulado do século xix podia inven­
tar a these, tão impia como insensata, da impossibili­
dade do milagre, e inspirar ao sr. Renan esta explica­
ção odiosa dos milagres de Jesus Christo:
«E’ pois verdade que Jesus Christo não íoi thau-
maturgo e exorcista senão contra vontade. Seus mila­
gres foram uma violência que lhe fez seu século, uma
concessão que lhe arrancou a necessidade do momento.
Assim é que o exorcista e o tliaumaturgo desaparece­
ram, mas o reformador religioso permanecerá eterna­
mente.» ( Vida de Jesus Christo, l.a ed., p. 268.) Que ti­
tulo poderia adduzir a uma eterna memória o miserá­
vel reformador, que se deixava arrastar, mau grado
seu, a operar milagres impossiveis . e que repetia sem
cessar que fazia seus milagres em nome de seu Pai, cuja
omnipotencia era a sua? Esta affirmação audaciosa e
blasphema do sr. Renan éum brilhante esplendor da fé.
Os milagres são mais'raros hoje e por uma razão
que 8. Gregorio Grande expoz em termos admiráveis:
«Os milagres são indispensáveis no principio, quando a
maioria é inhel, e multiplicam-se debaixo dos pés dos
apostolos do Evangelho! São supérfluos quando a maio­
ria é já crente e fiel: Miracula infidelihus, non fídelibus!»
VOL. I V 8
58 OS ESPLENDORES DA FÉ

Mas nem por isso deixa de ser verdade que na


Egreja catholica, e só ríella. com exclusão de todas as
egrejas christãs (o que é um caracter tocante de sua
divindade), os milagres não tem cessado de se operar,
em todos os séculos e que ainda hoje são numerosos:
sirvam de testimunho os logares de peregrinação da
Virgem e dos sanctos; e os inquéritos jurídicos relati­
vos aos milagres operados pelos sanctos, cuja beatifica­
ção ou canonização a Egreja proclama.
CAPITULO QUARTO

As notas ou os signaes característicos da verdadeira


Egreja de Jesus Christo

A Egreja é a sociedade dos fieis christãos, unidos


pela profissão da mesma fé, pela participação nos mes­
mos sacramentos, pela submissão a um só e mesmo pas­
tor legitimo, representante de Jesus Christo. Que Jesus
Christo instituiu uma Egreja, e que essa Egreja ainda
hoje subsiste, ninguém ousaria negal-o! Depois de Pe­
dro ter feito sua solemne profissão de fé: «Vós sois o
Christo, Pilho do Deus vivo», Jesus disse-lhe: «Tu és
Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Egreja, e
as portas do inferno não prevalecerão contra ella!» Nos
actos dos Apostolos, como em todas as epistolas canô­
nicas, fala-se continuamente da Egreja fundada por Je ­
sus Christo, adquirida a preço de seu sangue, que é mis­
ter ouvir sob pena de ser tido em o numero dos pagãos
e dos publicanos. Jesus Christo, que lhe chama seu reino,
o reino de Deus, sua herança, seu aprisco, fóra do qual
não ha salvação, deu-nos signaes, pelos quaes a pode­
mos reconhecer. Estes signaes ou Notas da Egreja são,
na ordem a mais lógica: a visibilidade, a apostolicida-
de, a unidade, a sanctidade, a catholicidade e a infalli-
60 OS ESPLENDORES DA FÉ

bilidade. Ora estas notas são próprias sobretudo, algu­


mas até exclusivamente, da Egreja catholica, cujo che­
fe é o soberano Pontífice romano, e mostram entre to­
das como a unica verdadeira a Egreja de Jesus Christo.
Visibilidade.—& Egreja devia ser uma cidade situa­
da sobre o cimo de uma alta montanha, uma lampada
collocada sobre o candelabro, afim de que luza a todos
os olhos. Ora a Egreja visivel por excellencia é a Egre­
ja catholica. Domina todas as outras pelo numero e
qualidade de seus membros; marcha triumphante atra-
vez do tempo e do espaço; mostra-se com brilho em
seu chefe, em seus membros, em seus sanctuarios innu-
meraveis, seus logares abençoados de peregrinação.
Mostra-se ainda melhor pelo odio que lhe votam. As
outras seitas são para ella como matilhas encarniçadas
em sua perseguição, e acclamando-a em grita por seus
uivos.
No dia 3 de julho de 1877 a catholicidade celebra­
va o quinquagesimo naniversario do episcopado de Pio ix,
o mundo inteiro movimentava-se; todos os olhares e
corações se voltavam para Roma; os navios a vapor e
os carros das vias ferreas enchiam-se de peregrinos acu­
dindo como outr’ora os Magos, carregados de ricos
presentes, ouro, myrrha e incenso; exclamavam por sua
vez: vimos o signal seu, e do norte como do meio dia,
do oriente como do occidente, viemos adoral-o!
Apostolicidade. — Jesus Christo confiou exclusiva­
mente a seus apostolos a missão de fundar sua Egreja,
de a governar e de a perpetuar; e prometeu-lhes que
havia de estar com elles até ao fim dos séculos. Os
apostolos metteram de posse de suas sés pastores esco­
lhidos, ordenados por elles; S. Paulo quere que os con­
siderem como estabelecidos por Deus, como guardas
fieis da doutrina e das tradições da Egreja de Jesus
Christo.
Ora a unica Egreja apostólica é a Egreja romana,
A DIVINDADE DA NOSSA FÈ 61

da qual dizia já no seu tempo S. Ireneu: «Citamos en­


tre todas a Egreja mui grande( muito antiga, de todos co­
nhecida, fundada em Roma pelos dois mais illustres
apostolos, Pedro e Paulo. A tradição que recebeu dos
apostolos e a fé annunciada aos homens, chegou até
nós pela successão de seus bispos.
Nós nomeamol-os, e fazendo-o, confundimos todos
aquelles que vão haurir em outra parte os artigos de
seu symbolo. E ’ por esta Egreja que os fieis dissemina­
dos por toda a parte cem conservado a tradição apos­
tólica.» Sim, basta a serie de soberanos Pontífices desde
S. Pedro a Pio ix para estabelecer como um sello pal­
pável e glorioso, sua apostolicidade. A apostolicidade
não a encontrais em mais parte alguma! Para confun­
dir todas as outras seitas christãs, basta recordar-lheg
os nomes de todos os seus fundadores, Ario, Nestorio,
Eutyches, Phocio, Socinio, Luthero, Calvino, Henri­
que viu, Jansenio, etc., etc.
Unidade. —Não ha sociedade sem unidade, sem um
programma universalmente adoptado, sem constituição
livremente consentida. Jesus Christo exige que seus
discípulos sejam uns, como seu Pai e Elle são um, e
quer que não haja mais do que um redil e um pastor.
Esta unidade é necessária e essencialmente tríplice:
unidade na fé, unidade na participação dos mesmos sa­
cramentos, unidade na subordinação a um mesmo pas­
tor : um só corpo e um só espirito; um só Senhor, uma só
fé, um só baptismo! dizia 8. Paulo.
• Esta tríplice unidade é completa e absoluta na
Egreja catholica. Não existe, não pode existir nas ou­
tras egrejas, ou melhor nas outras seitas christãs, que
adoptam como principio fundamental o proprio princi­
pio de divisão intestina, a liberdade de exame, a inter­
pretação privada da sagrada Escriptura, a inspiração
pessoal, etc.
E ’ em vão que para affectarem uma especie de uni-
62 OS ESPLENDORES DA FÉ

dade, inventam a distincção entre dogmas fundamen-


taes e dogmas secundários, porque Jesus Christo fulmi­
nou já esta distincção sacrilega, não quer que se omitta
um lota ou um unico ponto de sua douctrina ou de
seus mandamentos. E demais d’isso se se tracta das egre-
jas protestantes da Allemanha, da França, da Inglaterra,
• a divisão é tão profunda n’estes últimos annos, que at-
tinge o proprio dogma capital da divindade de Jesus
Christo.
Sanctidade. —Jesus Christo, diz S. Paulo, entre­
gou-se por sua Egreja, afim de a sanctificar, e de que
seja pura e sem macula. Impõe a todos os seus mem­
bros que sejam sanctos e perfeitos, como seu Pai ce­
lestial é perfeito; promete estar com ella até á con-
summação dos séculos na sanctidade e na justiça.
Ora a Egreja sempre contou e conta sempre em seu
seio um grande numero de sanctos; é a unica que pos-
sue o segredo e o privilegio das virtudes heróicas; é a
unica que exerce o direito de beatificação e de canoni-
zaȍao.
Nas outras egrejas nem sequer se aspira á sancti­
dade, muito menos ás virtudes heróicas; a ninguém se
dá o nome de sancto, não se beatifica, nem se canoniza!
A Egreja catholica é pois a unica sancta, na verda­
deira significação da palavra.
Catholicidade. — A catholicidade é a universalidade
na unidade. Jesus Christo enviou seus apostolos a ensi­
nar todas as nações, com ordem de lhes ensinarem a
guardar fielmente sua douctrina e seus mandamentos.
E de facto os apostolos foram por toda a parte, préga-
ram por toda a parte os mesmos dogmas e idêntica
m oral; administraram por toda a parte os mesmos sa­
cramentos ; submetteram por toda a parte os christãos
á mesma auctoridade etc.; de sorte que por um mila­
gre verdadeiramente extraordinário, a Egreja logo ao
nascer apareceu catholica. A Egreja romana é emi-
SIGNAES CARACTERÍSTICOS 63

nentemente catholica; conta não só membros, mas


egrejas e bispados em todas as partes do mundo. As­
sentado na cadeira de S. Pedro em Roma, centro de sua
unidade, seu cheíe supremo, para qualquer lado ou dis­
tancia para onde relanceie o olhar, vê povos submetti-
dos a sua auctoridade. E’ realmente a ella que Deus,
concedeu todas as nações em herança.
E ’ por ella e só por ella, que se cumpre a gran­
diosa prophecia de Malacbias; «do nascente ao poente,
meu nome é grande entre as nações, diz o Senhor; em
todos os logares se me sacrifica e offerece uma victima
pura.» A mais eloquente manifestação da visibilidade,
da apostolicidade, da unidade, da sanctidade, da catho-
licidade da Egreja, é o sancto sacrifício da missa cele­
brado a todas as horas, quasi em todos os momentos»
sobre toda a face da terra.
Indefectibilidade e infallibilidode. — Jesus Christo
prometeu estar com sua Egreja até ao fim dos séculos.
Enviou-lhe seu Paraclito, o Espirito de verdade que
deve estar sempre n’ella. Disse-lhe: Aquelle que vos
ouve, a mim ouve. Uma tal indefectibilidade só a Egreja
catholica a pode possuir. Só ella de facto a possue e a
exerce desde sua origem, forte com as promessas for-
maes de Jesus Christo. fundando-se n’este principio,
que Deus não teria sufficientemente assegurado o de­
posito da fé, se não houvesse constituído um juiz su­
premo que pronunciasse em ultima instancia, e que de­
cidisse iníallivelmente.
Nenhuma outra egreja tem pretensões á infallibili-
dade; todas se contentam em apresentar a seus ade­
ptos, nas sagradas Escripturas, um codigo que interpre­
tam com a assistência do Espirito Sancto que não vêem,
seu juiz infallivel de facto e de direito.
Alem d’esta indefectibilidade promettida á Egreja,
representada pelo summo Pontífice e pelos bispos, jui­
zes da fé, alem da infallibilidade própria dos concilios
64 OS ESPLENDORES DA EE

inspirados pelo Espirito Sancto, a Egreja catholica não


se esquece de uma outra infallibilidade prometida a
Pedro, encarregado por Jesus Christo de apascentar
as ovelhas e os cordeiros. Chegado o momento, reunida
em concilio ecumenico no Vaticano, proclamou ella
dogma de íé a infallibilidade do .summo Pontifice ro­
mano, falando ex cathedra, ou pronunciando em maté­
ria de dogma, de disciplina, como juiz supremo, e diri­
gindo-se a toda a Egreja.
Infallivel em si mesma e em seu chefe, a Egreja
catholica romana é bem mais do que qualquer outra,
a cidade ediücada sobre montanha, e que não pode
furtar-se ás vistas de todos. E um pharol de fogos bri­
lhantes, de raios, que só os cegos voluntários não veem.
Em resumo, a Egreja catholica apostólica, romana,
e só ella pode invocar em seu favor as prophecias, os
milagres, a visibilidade, a apostolicidade, a unidade, a
catholicidade, a sanctidade, a indefectibil.idade, a in­
fallibilidade ; logo é divina e só ella é divina.
Sua divindade adquirirá novo lustre dos Esplendo­
res da Fé.
í "

CAPITULO QUINTO

Primeiro Esplendor da Fé

Todas as nações da terra me hão de proclamar bem-


aventurada (S. Lucas, cap. i, v. 48).
Uma donzella nasceu na Judêa do casamento por
muito tempo esteril de Joaquim e Anna. Apresentada
no templo na edade de tres annos, foi educada debaixo
da vigilância dos sacerdotes em uma profunda solidão-
Bahe do templo na edade de quatorze annos para des-
posar S. José, como ella, descendente dos reis de Judá,
modelo acabado de todas as virtudes, porem humilde e
pobre carpinteiro.
Yeiu habitar em Nazareth uma modestíssima casa,
que ainda hoje pode ver-se no Loreto, cidade de Italia.
Um dia em que ella orava com fervor, o archanjo
Glabriel saudou-a com estas palavras extraordinárias:
Ave, cheia de graça, o Senhor é contigo, tu és bemdita en­
tre todas as mulheres. Maria toda perturbada, estremece
e pergunta o que pode significar esta mysteriosa sauda­
ção. O anjo diz-lhe: Não temas, porque encontraste graça
na presença de Deus. Conceberás e darás á luz um filho;
este filho será chamado o Filho do Altíssimo. Assentar-se-
VOL. IV 9
66 OS ESPLENDORES DA FÉ

ha sobre o throno de David, e seu reino não terá fim. Ma­


ria, cada vez mais admirada e fóra de si, afíirma que
uma tal concepção e parto são impossíveis, porque fez
voto de castidade inviolável. O anjo assegura-a dizen­
do : 0 Espirito Sancto virá sobre ti, e a virtude do Altíssi­
mo te cobrirá com sua sombra. 0 filho que de ti nascer será
o Filho de Deus. Maria curva-se dizendo: Eis aqui a es­
crava do Senhor, faça-se em mim segundo a sua palavra.
*E o Verbo Eterno se fets carne e habitou entre nós!!!»
Mal o anjo tem voltado ao ceo, eis que Maria,
transportada de caridade ardente, corre a offerecer
seus bons serviços a sua prima Izabel, cuja gravidez
miraculosa soubera pelo anjo. Izabel sente de im­
proviso estremecer em seu seio o filho que n’elle tra­
zia, e exclama inspirada pelo Espirito Sancto: Bemdita
és tu entre as mulheres e bemdito é o fructo do teu ventre!
Uonde a mim este excesso de felicidade, que a mãe do
meu Salvador se digne vir a minha casa ? Maria inspi­
rada e transportada por sua vez, exclama: «Minha al­
ma engrandece ao Senhor; e meu espirito exulta em
Deus meu Salvador; porque o Omnipotente operou em
mim grandes cousas. Baixou seus olhares sobre a hu­
mildade de sua escrava, e por «isso todas as nações a
«partir d!este dia me hão de proclamar bemaventurada!!! >
Alguns mezes depois, Maria dá á luz, nas proximi­
dades de Belem, em um estábulo abandonado o Filho
annunciado pelo anjo; colloca-o em um presepio ca-
runchoso; de súbito os anjos em grande numero fazem
retinir nos ares este cântico de triumpho e de amor:
Gloria a Deus nas alturas e sobre a terra paz aos homens
de boa vontade!
Pareceu-me que devia reproduzir abreviando esta
narração do Evangelho; mas façamos agora abstracção
do que encerra de maravilhoso para só considerar esta
simples phrase: «Todas as nações a partir d’este dia me
hão de chamar bemaventurada! Quando foram eseriptas
PBIMEIRO ESPLENDOR DA FÉ 67

por S. Lucas, o companheiro fiel do apostolado de S.


Paulo, Maria vivia ainda em Epheso em companhia de
S. João, o discipulo amado, que a recebera por mãe.
Mais tarde, de volta a Jerusalem, cidade toda cheia
de recordações da vida e sofírimentos de seu divino Pi­
lho, finou-se de amor. S. Dyonisio Areopagita conta que
os apostolos já dispersos, advertidos por vozes celestes,
se acharam junto do leito, sobre o qual Maria adorme­
cia no Senhor, renderam-lhe attentas homenagens, e a
proclamaram de novo bemaventurada. O que é certo é
que no concilio de Jerusalem, o primeiro dos concilios,
formulando o symbolo augusto que tem seu nome, en­
sinaram o mundo a fazer este acto solemne de fé :
Creio em Jesus Christo, Filho único de Deus. nascido da
Virgem Maria.
E’ o ponto de partida do culto particular de hyper-
dulia, que d’or’avante ha de ser dado a Maria no mundo
christão.
Uma piedosa combinação das palavras do anjo, da
saudação de Izabel, das invocações sahidas dos lábios
dos primeiros devotos para com Maria, deu origem logo
no berço do christianismo á deliciosa oração Ave Ma­
ria, Eu vos saudo, ó Maria. Tomando logar nos hábitos
da Egreja, recitada de manhã, á noite, muitas vezes
ao dia pelos fieis de todos os paizes, a Saudação angé­
lica é só de per si o mais maravilhoso cumprimento do
oráculo sahido da bocca de M aria: Todas as nações rne
proclamarão bemaventurada.
Desde os primeiros tempos da Egreja, capellas fo­
ram consagradas a Maria na gruta de Grethsemani e no
monte Carmelo. O templo da Fortuna de Epheso vol­
ve-se o sanctuario da Penagia, de Maria toda sancta,
como o Pantheon de Poma se transforma em S. Maria
de todos os Martyres. E já no tempo de Constantino,
em um local milagrosamente assignalado, se elevava a
magnifica basilica de Nossa Senhora das Neves ou de
68 OS ESPLENDORES DA FE

Santa Maria Maior, gloriosa rainha de todas as egrejas


consagradas a Maria. E’ crença constante que S. Lucas,
habil pintor, executara muitas vezes o retrato de Ma­
ria, e que algumas de suas effigies (madonas) ainda hoje
são veneradas nas egrejas de Roma: a mais celebre é
o principal ornamento de Santa Maria Maior. Seja como
for, é certo que se encontraram nas paredes das cata­
cumbas imagens de Maria que remontam ao terceiro
século, ao segundo e mesmo ao primeiro século da
Egreja. N’uma a Virgem está assentada, tendo nos
joelhos o divino Infante, e estendendo os braços na at-
titude de quem ora; o pintor desenhou á direita e á es­
querda o monogramma do Christo. Em grande numero
de outras pinturas, Maria está representada n’aquella
mesma attitude, mas só, com esta inscripção contun­
dente para os incrédulos: Maria Virgo, Ministere du tem­
plo Gerosale.
Os Padres da Egreja e os escriptores ecclesiasticos
proclamaram á porfia Maria bemaventurada. Desde S.
Clemente Papa, segundo successor de S. Pedro, até S.
Bernardo e S. Francisco de Salles, ha um concerto una­
nime de louvores enthusiastas e de supplicações arden­
tes. Occupam quatro grossos volumes da Semana Aurea
de Laudibus Beatce Virginis, Migne, 1862.
O nome, a commemoração, a invocação de Maria
tem tomado logar em todas as lithurgias, a partir da de
S. Thyago, a mais antiga de todas. Não se contentando de
a invocar na celebração dos sanctos mysterios, nos mo­
mentos os mais solemnes, antes e depois da consagra­
ção, a Egreja começou com cedo a celebrar em festas
particulares os mysterios e as circunstancias de sua
vida: seus desposorios, sua purificação, a Expecta-
ção de seu parto, sua annunciação, sua natividade,
sua compaixão, visitação, assumpção, suas sete do­
res, sua conceição immaculada. Estas solemnidades tão
numerosas não bastavam, a Egreja quiz ainda que to­
PRIMEIRO ESPLENDOR DA FÉ 69

dos os sabbados livres do anno fossem festas de Maria.


Não era bastante ainda, o calendário de Maria foi au-
gmentado cada dia, de século em século. Tem-se feste­
jado alternativamente: Nossa Senhora do Loreto, Nossa
Senhora do Monte Carmelo, Nossa Senhora Auxilio ou
Soccorro dos christãos, Nossa Senhora do Sancto Ro­
zario, o sancto Nome de Maria, os Prodígios de Maria,
etc., etc. E todas estas festas recentes commemoram
acontecimentos grandiosos, que são para Maria brilhan­
tes triumphos proclamados pela Egreja universal: a ba­
talha de Lepanto, o levantamento do sitio de Vienna,
a derrota dos Albigenses, a tomada da Eochella, a
volta de Pio vi e de Pio v i i a Roma, etc., etc.
Alem das invocações lithurgicas e de suas festas, a
Egreja oompoz em nome de Mana antiphonas, e hy-
mnos admiráveis e tocantes, que a proclamam bema-
venturada de todas as maneiras possiveis. Cada um
d’estes hymnos ou antifonas inspirou uma deliciosa me­
lodia, que se canta ha séculos com emoção sempre nova.
A maior parte d’estas orações, e outrosim as devoções
para com Maria, o Escapulario, o Rozario, o Angelus,
etc., recordam-nos aliás acontecimentos miraculosos,
grandes benefícios da bemaventurada Mãe de Deus. No
décimo terceiro século, seitas poderosas manichêas, os
cataros, os vaudezes, os albigenses, etc., faziam á Fran­
ça e á Egreja uma guerra implacável. S. Domingos op-
poz-lhes a devoção do sancto Rozario, e foram venci­
dos, quando mais seguros estavam da vietoria.
No tempo em que o Occidente se arrancou de al­
guma sorte de seus fundamentos para se arrojar todo
sobre o Oriente, e marchar á conquista dos Logares
Sanctos, os papas Urbano n, João xxn, Calisto m orde­
naram que a Ave Maria fosse recitada tres vezes ao dia
ao som do sino, de manhã, ao meio dia e á noite, por
todo o mundo e de joelhos. Ainda hoje, depois de tan­
tos séculos idos, o Angelus retine tres vezes ao dia, de
sorte que não se passa um minuto do dia em que Ma-
70 OS ESPLENDORES DA FÉ

ria não seja proclamada bemaventurada, visivel e sole-


mnemente.
Os hereges não podiam atacar Jesus Christo dei­
xando incólume sua divina Mãe. Insurgiram-se portanto
contra Maria: Ario negou que o Pilho de Deus, consub­
stanciai a seu Pai em sua divindade, (*) fosse consubs­
tanciai a Maria em sua humanidade. Nestorio disputou
a Maria sua maternidade divina. Joviniano ousou blas-
phemar contra sua tríplice virgindade, etc., etc.
Estes ataques rudes foram para Maria occasião dos
mais brilhantes triumphos. Os Padres da Egreja, os sum-
mos Pontífices, os Concilios geraes e particulares, to­
maram sua defesa com uma energia verdadeiramente
divina; proclamaram-na com mais solemnidade bema­
venturada e gloriosa! Quando o povo de Epheso teve
noticia da condemnação de Nestorio, soltou grandes
gritos de alegria, cumulou de bênçãos os Padres do
concilio, e acompanhou-os com brandões até suas mora­
das. A atmosphera da cidade apareceu de improviso em-
balsamada dos perfumes queimados em honra de Maria
Mãe de Deus, o enthusiasmo chegou a delírio, as lagri­
mas corriam de todos os olhos.
Maria tem sido sobretudo proclamada bemaventu­
rada nos sanctuarios bemditos dos logares de peregri­
nação, que se vão multiplicando sobre toda a terra
desde os primeiros tempos do christianismo até nossos
dias. Todos, em numero superior a duzentos, tiveram
por origem um acontecimento sobrenatural, uma apa­
rição celeste, uma graça insigne, um prodígio operado,
etc., etc.
Todas tem sua estatua milagrosa, aos pés da qual
milhares de peregrinos, vindos muitas vezes de grandes

(*) 0 contexto parece deixar na penumbra o principal erro de


Ario, a não consubstancialidade do Verbo com o Padre.
N. do T.
PRIMEIKO ESPLENDOR DA FÉ 71

distancias, tem orado e oram com um tervor sempre


antigo e sempre novo.
Na edade media a devoção para com Maria tomou
um impulso magnífico: todas as illustrações da epocha,
S. Francisco de Assis, S. Boaventura, Alexandre de
Halles, Alberto o G-rande, S, Bernardo e outros devo­
tos enthusiastas de Maria. (Para os sábios e escriptores
d’esta edade de fé, Maria era um espelho divino, onde
todas as verdades theologicas e especulativas, todos os
factos da historia da Religião e da natureza vinham re-
flectir-se.) Quando o genio da crença inventou a archi-
tectura gothica com sua ogiva esbelta e aguda, symbolo
do pensamento christão aspirando ao ceo, levantou seus
mais bellos monumentos á gloria de Maria. Só em Fran­
ça trinta e seis de nossas cathedraes sobre oitenta e
tres, são dedicadas a Maria.
A partir da edade media as lettras, as artes, as
bellas artes celebram á porfia as glorias da Virgem. Os
pintores Bellini, Cimabué, Fra Angélico, Memling, Al­
berto Durer, consagraram-lhe suas mais bellas produ*
cçóes. Ainda depois da Renascença ter de alguma sorte
paganisado o pincel, os mestres os mais illustres, o Pe-
rugino, Raphael, o Guido, o Tintoreto, os Oarrache,
Murillo, Mignard, Rubens, etc., nunca se mostram mais
bem inspirados, do que quando reproduzem a encanta­
dora imagem de Maria Mãe de Deus.
Os esculptores a seu turno, Miguel Ângelo, Luca
delia Robia, Donatello, Bouchardon, Canova, Bonnas-
sieu, esculpturaram primorosamente as glorias de Ma­
ria. Os músicos Haydn, Weber, Pergoleso, Beethoven,
Mozart, Haendel, Rossini, Gounod, etc., cantaram-na
em hymnos de harmonia; suas Ave-Maria, suas Regina
coeH, seus Stabat, são contados em o numero das obras
primas. Os poetas enfim desde Sedulins até Santeuil,
desde os Trouvères até Lamartine e Victor Hugo can­
taram seus louvores.
Um sentimento profundo de respeito e de venera-
72 OS ESPLENDORES DA FÉ

çào volvera os primeiros christãos timidos talvez ao ex­


cesso; não ousavam dar a seus filhos o nome augusto
e suave de Maria. Mas a pouco e pouco, á medida
que a devoção para com a Mãe de Deus e dos ho­
mens foi crescendo, crearam animo, e o nome de Ma­
ria volveu-se quasi universal. Hoje o maior numero de
meninas sentem-se felizes e altivas de o terem. E é uma
das mais graciosas glorificações de Maria o ver essa
multidão pressurosa que na vespera da festa da Assum-
pção percorre em todos os sentidos nossas grandes ci­
dades, levando na mão ramilhetes de flores que vai of-
ferecer a nossas innumeraveis Marias.
E que dizer d’esse numero portentoso de famílias
religiosas, de ordens de cavallaria, de congregações ou
associações piedosas, de homens, de mulheres, de mo­
ços, de donzellas, de creanças, que em todos os séculos
se tem alistado debaixo do estandarte de Maria, cum­
prindo d’est’arte o oráculo do Propheta: «Milhares de
virgens depois d’ella farão sua corte ao rei, virão para
elle ufanas de marchar nas suas pégadas: depois dos
pais e das mães, serão os filhos.» (Ps. x l t , 14 e 15.)
Desde o principio do segundo século da Egreja até
ao décimo nono, o oráculo cumprira-se; todas as na­
ções da terra tinham proclamado Maria bemaventura-
d a ! Mas era preciso para que o milagre attingisse toda
a sua significação, que a prophecia se realisasse com
mais brilho ainda no décimo nono século, i é, que nos­
so século fosse mais do que qualquer outro o século
de Maria. Seu começo foi assignalado por uma nova
devoção, tocante e entre todas suave; não era já a de­
voção de um dia, era de um mez inteiro, o bello mez
de maio, com suas flores, seus perfumes e seus cantos,
do qual se fez uma longa festa a Maria, festa celebrada
hoje no mundo todo. Depois do mez de Maria veiu em
1830 a medalha milagrosa, revelada a uma piedosa ir­
mã da Caridade com esta affectuosa invocação: «O’
Maria, concebida sem peccado, rogai por nós que a vós
PRIMEIRO ESPLENDOR DA FÉ 73

recorremos,» medalha que brilha hoje sobre milhares,


sobre milhões de peitos abençoados. Logo depois em
1836 nasceu a archiconfraria de Nossa Senhora das
Yictorias, a qual conta já 174,441 dioceses ou parochias.
O numero de cirios que ardem a cada instante deante
de seu altar privilegiado é de mais de 100; a quanti­
dade de eera consumida cada anno excede a cifra de
100000 trancos. No fim de março ultimo, o numero dos
ex-voto suspensos das paredes do templo era de 1,871;
ao officio da tarde, nos domingos, as encommendações
vindas de todo o mundo attingem a cifra enorme de
25,000, 100,000 cada mez, 1,2Q0,000 cada anno.
Em parte alguma, em nenhum outro século foi Ma­
ria proclamada bemaventurada com mais enthusiasmo!
E as aparições de la Salette, a 19 de dezembro de
1846; de Lourdes, fevereiro de 1855; de Pontmain, 17
de fevereiro de 1871; com suas aguas miraculosas, seus
magnificos sanctuarios, suas multidões de peregrinos,
vindos de todas partes do mundos, os innumeraveis mi­
lagres que todos os annos se operam n’aquelles loga-
res! E a manifestação recentissima de Maria a umas
creanças na floresta de Marpingen, que tanto irritou
o inimigo pessoal da Egreja e da França!
Ha dias, a annual peregrinação da Salvação teve a
nobre coragem de levar a Lourdes duzentos enfermos,
cujo estado era tão grave, que muitos estiveram a pi­
que de fallecer no caminho. Todos foram alliviados
ou consolados! Vinte foram miraculosamente curados-
Nunca Maria se mostrou tão gloriosa, mais cheia de
ternura pela França. Ao mesmo tempo vinte e cinco
mil peregrinos, a rainha mãe da Baviera á frente, en­
chiam a floresta de Marpingen, como lançando um des­
afio ao perseguidor que fremia de raiva. E’ que de feito
no momento dado Nossa Senhora de Lourdes e de
Marpingen, forte como exercito ordenado em batalha,
ha de assegurar o triumpho da França e reparar todas
as suas perdas.
YOL. IV. 10
74 OS BSPLENDOKES OA FÉ

E’ pois verdade, e de verdade absoluta e resplan­


decente que hoje, como na edade media, mais do que
nos primeiros séculos da Egreja, em todo o universo, a
gloria de Maria é como o sol no firmamento.
E ’ necessário ser cego, para se subtrahir á influen­
cia de seus raios evidentemente divinos.
Entre Maria immaculada em sua conceição e tres
vezes virgem, antes do seu parto, no parto e depois do
parto; entre Maria Mãe de Deus e Maria proclamada
bemaventurada pelo universo inteiro, pelos reis e pelos
povos, por todos os poderes do mundo, a sanctidade, o
genio, a eloquência, a poesia, a architectura, a pintura,
a esculptura, a gravura, o desenho, a musica, etc., etc.,
ha a proporção do effeito para a causa, e da causa para
o effeito, é o milagre produzindo o milagre. Entre Ma­
ria, mulher commum, esposa vulgar, mãe de muitos fi­
lhos, dos quaes um sabio, ainda que um tanto impostor
(segundo Renan e o livre pensamento) pois elle procla­
mava-se Deus, ha um abysmo invadeavel! Seria um edi­
fício collossal fundado no vacuo! Despojando Maria de
suas prerogativas, de seus privilégios, Renan centupli-
cou o esplendor do milagre! Fez o absurdo sobrenatu ~
ral e divino!
E o que seria se traçássemos o quadro verdadeira­
mente admiravel e divino da influencia do culto de
Maria sobre a vida dos individuos, das familias, das so­
ciedades ? Maria é em rigor a alma do mundo christão;
é ella sobretudo que faz os sanctos, e todos os sanctos
tiveram para com ella uma terna devoção. Todos os
dias se está verificando esta promessa divina: Israel
será tua herança, lança tuas raizes no coração dos
eleitos.
Exclamemos pois ao terminar : Maria tinha annun-
ciado e predicto' que todas as nações a proclamariam
bemaventurada; o oráculo cumpriu-se em condições
portentosas. E ’ a um tempo prophecia e milagre evi­
PRIMEIRO ESPLENDOR DA FÉ 75

dente! Logo Maria é Mãe de Deus! Logo a fé christã


é divina! Logo entre todas as egrejas a Egreja catholi-
ca, apostólica, romana, resplandece como divina, por­
que é em seu grêmio só que o culto de Maria tomou
seu desenvolvimento pleno; pois que é ella, mais do
que todas as outras, que proclama Maria bemaven-
turada!
CAPITULO SEXTO

Segundo Esplendor da Fé

Meus olhos viram o Salvador que vem de vós, que pre­


parastes em face de todos os povos, a luz que se ha de re­
velar ás nações. (S. Luc. cap. n, vv. 30, 31, 32).
Chegado o dia da purificação e da apresentação,
José e Maria levaram o Menino a Jerusalem, e o apre­
sentaram ao Senhor no templo; traziam consigo dois
pombinhos, que deviam offerecer para o resgatar. Ora
a esse tempo havia em Jerusalem um velho, chamado
Simeão, justo e temente a Deus, cheio do Espirito San-
cto, que esperava a consolação de Israel.
Conduzido por uma inspiração interior, veiu ao
templo, tomou o Menino Jesus nos braços e exclamou:
«Agora,' Senhor, segundo vossa palavra, deixai o vosso
servo morrer em paz; porque já meus olhos viram o Sal­
vador que vem de vós, que preparastes em face de todos os
povos, para dar a luz que ha de illuminar todas as nações.»
O sancto velho inspirado proclama pois em alta
voz que o menino por quem José e Maria acabavam de
pagar o resgate dos pobres, é: l.° o Salvador enviado
por Deus e offerecido a todos os povos; 2.° a luz que
SEGUNDO ESPLENDOR DA FÉ 77

ha de ser revelada ás nações. Eis o oráculo, a prophe-


cia clara, solemne, brilhante! Quando S. Lucas a escre­
via, os apostolos apenas tinham começado a sua tarefa.
O oráculo cumpriu-se? Evidentemente!
O mundo está cheio da salvação de Deus e inun­
dado da luz de Jesus Christo. O cumprimento do ora-
oulo, volvido a seu turno um milagre patente, incom­
parável, é o estabelecimento da religião christã, logo a
religião christã é divina. E como Jesus Christo não é
em parte alguma tanto e mais a salvação do mundo, a
luz das nações, do que no seio da Egreja catholica,
apostólica, romana, esta Egreja é a verdadeira Egreja
de Deus.
1.® Jesus Christo é e tem sido a salvação de Deus f
Com effeito, todo o povo salvo o tem sido por Jesus
Christo; todo o povo que Jesus Christo não tem salvo
está sepultado na morte e perdido; todo o povo que se
tem separado de Jesus Christo tem corrido de novo
para sua perd a!
Ali está o mais saliente de todos os factos; o ensi­
namento, a licção a mais certa da historia preterita e
presente. S. Pedro disse: «Jesus volveu-se a pedra an­
gular e fundamental; não ha salvação senão por elle,
porque não foi dado aos homens nenhum outro nome,
pelo qual possamos ser salvos!» S. Paulo disse depois
de S. Pedro, felicitando os romanos de sua fé em Jesus
Christo: Onde o peccado abundava, a graça de Jesus
Christo foi superabundante. Como o peccado reinou e pelo
peccado a morte, assim a graça reina por sua vez e com a
graça a justiça e a vida eterna. Não ha um resumo mais
eloquente da historia dos povos, grego, romano e ju­
deu, do que o do Apostolo dos Gentios n’essa mesma
epistola aos Romanos.
«São inexcusaveis, porque tendo podido conhecer,
e tendo conhecido Deus em suas obras, não o glorifi­
caram como D eus... Mas desvaneceram-se em seus
78 OS ESPLENDORES DA FÉ

pensamentos; e seu coração obscureceu-se.. . Embora


se digam sábios, volveram-se fatuos.. . Substituiram o
Deus incorruptível pela imagem de homens corruptí­
veis, de aves, de quadrúpedes. Assim é que Deus os
entregou aos desejos impuros de seus corações, de for­
ma que tem deshonrado sua própria carne. Porque
transformaram a verdade de Deus em mentira, adora­
ram e serviram a creatura, Deus entregou-os a suas
paixões de ignominia... Os homens e as mulheres com-
metteram crimes contra a natureza. A mulher ardia em
desejos pela mulher, o homem pelo homem, abandona­
dos como estavam a um senso depravado..., cheios de
toda a iniquidade, de malicia, de fornicação, de avare­
za, de inveja, de m orte! São malignos, brigões, delato­
res, detractores, violentos, arrogantes, calumniadores,
desobedientes, dissolutos, insensatos, sem affeição, sem
misericórdia!...» Eis escripta por um grande genio e
um grande sancto a historia do mundo ou pelo menos
da parte do mundo a mais civilisada. S. João, o apos-
tolo da castidade e da caridade, resumiu este quadro
em uma unica phrase: Todo o mundo está sepultado no
mal. Nós, a quem Jesus Christo salvou, somos de Deus e
não peccamos.
Jesus Christo salvou o mundo de todos os vicios e
dos vicios os mais vergonhosos... O proprio Cicero,
que falou tão bem dos deuses e da virtude, dizia-se
auctorisado pelos antigos a praticar a sodomia e o in­
cesto.
Jesus Christo salvou o mundo da idolatria e de uma
idolatria systematicamente corruptora, pois as paixões
as mais contrarias á razão e á natureza tinham seus
deuses, seus templos, seus altares, seus sacerdotes, seus
cultos e muitas vezes seus mysterios secretos e infames.
Jesus Christo salvou o mundo da barbarie e da ci-
vilisação podre, ainda peior do que a barbarie, peíor ao
menos do que o estado selvagem.
SEGUNDO ESPLENDOR DA FÉ 79

Jesus Christo salvou o homem da escravidão, não


da escravidão regulada, moderada, adoçada que o chris-
tianismo pôde tolerar, provisoriamente; mas da escra­
vidão sacrílega, espantosa, abominável, tyrannica, esta­
belecida e glorificada pelo paganismo, entre todas as
nações, e com maior refinamento de crueldade, nos
povos os mais esclarecidos e civilisados.
Entre os Gregos e os Romanos, os escravos não
eram homens, eram cousas; compravam-nos, vendiam-
noa, mandavam-nos matar, quando para nada prestavam
já; lançavam-nos até em pabulo ás feras dos circos ou.
ás morêas engordadas nos tanques dos patricios opu­
lentos. Seu numero era immenso! Athenas contava
quatrocentos mil escravos e só vinte mil cidadãos! Ro­
ma no tempo de Cicero contava apenas dois mil pro­
prietários sobre uma população de um milhão e qui­
nhentos mil proletários. Ainda ha pouco se descobriu
em Roma- o local das vastas prisões onde, acabado o
trabalho diário, amontoavam os escravos, em numero
de vinte a trinta mil. Eis a escravidão de que Jesus
Christo salvou o mundo! Eis os desgraçados, aos quaes
se não despedaçou, ao menos fez cahir os ferros!
Jesus Christo salvou a mulher de uma servidão
mais dura talvez e mais humilhante do que a própria
escravidão. Por elle a mulher foi levantada á dignidade
de companheira do homem; encontrou enfim nos res­
peitos e attenções de que é objecto a recompensa de
sua submissão e de sua dedicação. Com a mulher chris-
tã a creança tomou seu logar no lar domestico; vol­
veu-se o laço de união entre os dois esposos: a aucto-
ridade substituiu o despotismo brutal.
Jesus Christo salvou os povos da tyrannia dos po­
deres públicos. Os governos modernos, diz João Ja-
cques Rousseau (Emilio liv. v) devem incontestavel-
mente ao catholicismo sua mais solida auctoridade e a
infrequencia das revoluções; tornou-as menos sanguina-
80 OS ESPLENDORES DA EÉ

rias; isto prova-se pelos factos, conirontarido-os com os


dos antigos governos. Esta mudança não é obra dos ho­
mens de lettras; as crueldades dos Athenienses, dos di-
ctadores, dos imperadores romanos fazem fé !» Um pro­
testante celebre, lord Fitz William, em suas admiráveis
Cartas de Atticus, não deixa de dizer «que é impossivel
formar um systema de governo qualquer, que possa ser
permanente ou vantajoso, a não ser que se apoie na re­
ligião catholica romana.» •
Salvador do homem da terra e do tempo, do indi­
víduo, da familia, da sociedade, Jesus Christo. é bem
mais o Salvador do homem da eternidade.
As victimas humanas não podiam abonançar a jus­
tiça de Deus; disse: Eu venho; e constituiu-se victima
de propiciação pelos peccados do mundo; resgatou-o
pelo seu sangue; fechou os infernos debaixo de nossos
passos; abriu o ceo acima de nossas cabeças; enrique­
ceu-nos de tantas graças, que, por maiores que possam
ser as revoltas das paixões, está no direito de nos dizer
como a S. Paulo: «Basta-te minha graça, tanto mais
que minha omnipotencia se ostenta mais na infermi-
dade.» O Salvador fez mais ainda; fez nascer uma
quantidade grande de virtudes heróicas e verdadeira­
mente divinas, multiplicou os Sanctos, tão raros no
Antigo Testamento, em proporção immensa. O proprio
Yoltaire disse: «Todas as virtudes humanas podem ser
encontradas nos antigos, mas as divinas só os christãos
as possuem» e os christãos catholicos, apostolicos, ro­
manos!
Cumpriu-se pois da maneira a mais evidente e ex­
traordinária o oráculo de Simeão: Meus olhos viram o
Salvador que vem de vós!
O mundo inteiro brada a Maria bem a lto : Por to­
da a parte e sempre a salvação veiu e vem de Jesus
Christo! Por toda a parte e sempre a salvação se tem­
SEOUNDO ESPLENDOR DA FÉ 81

ido e se vai com Jesus Christo! e o delicto superabun-


da de novo!
Se Jesus Christo é Deus, o Verbo eterno de Deus
feito carne, esse resultado immenso de salvação expli­
ca-se naturalmente. Se, como opina Renan, Jesus Christo
é apenas um reformador humano, bastante fraco, bas­
tante covarde para se deixar arrastar a obrar milagres,
a constituir-se impostor, a salvação do mundo é um ef-
feito sem causa, um absurdo monstruoso. B porque é
sobretudo na e pela Egreja catholica, apostólica, roma­
na, que Jesus Christo é Salvador do mundo, a Egreja
catholica, apostólica, romana é divina.
2.° A luz que se ha de revelar ás nações. A historia
do christianismo resume-se toda Vestas poucas pala­
vras que o evangelista S. Matheus põe como exordio
de seu Evangelho: «O povo que estava assentado nas
trevas viu uma grande luz; a luz levantou-se para
aquelles que estavam assentados na região das sombras
da morte.»
Estas palavras inauditas de Jesus Christo: «Eu sou
a luz do mundo; aquelle que me segue não caminha
em trevas, mas terá a luz da vida!» volveram-se a seu
turno um successo immenso.
Que o mundo antes de Jesus Christo estava sepul­
tado nas mais profundas trevas, nas trevas da morte;
que elle estava entregue aos mais monstruosos erros,
ninguém se lembrou ainda de o pôr em duvida.
Sim, em toda a parte a noção do Deus verdadeiro
se tinha obscurecido, a noite fizera-se em volta dos co­
nhecimentos fundamentaes de nossa origem, de nossa
natureza, de nossos deveres, e destinos.
Emquanto o povo se imbebia em toda a parte de
tradições desfiguradas, e se mergulhava em uma idola­
tria monstruosa, a sciencia antiga forcejava por se tor­
nar a apossar da verdade obscurecida pelas paixões;
tentava forjar um Deus, mas este Deus era uma mistura
VOL. IV 11
82 OS ESPLENDORES DA FÉ

confusa de todos os seres, um parto ridículo de todas


as contradicções! um principio impotente que partilha
com o mal o soberano império das cousas; um monar-
cha egoísta que se concentra para gozar, no palacio de
sua gloria, deixando vogar o mundo aos caprichos do
acaso! - -. um destino inexorável que suffoca a liberdade
e íecha os ouvidos ás supplicas da misera humanidade
E ’ o ente de razão que se chama Natureza! E’ a maté­
ria infinita, eterna, subsistindo por si mesma, e tirando
de seu vasto seio todas as existências.
D’onde vimos? Quem o sabe ? As fabulas davam ao
homem um pai nos proprios deuses! Deus é um oceano
infinito que encerra em si o germen de todas as cousas.
O turbilhão eterno, montão de átomos, no seio dos
quaes o acaso opera felizes encontros. Que vemos ? aqui
brutos; alem parcellas de infinitos! ora sem alma, ora
com ella, ora com duas ou tres almas. Para um a alma
é espirito; para outro é um agregado de átomos! Para
muitos o genero humano compôem-se de castas distin-
ctas e ciosas que não devem misturar-se.
Que deveremos fazer? Contemplar o bello, deixar-
nos correr á vontade do destino, introduzir a ordem em
nossas sensações, medir o prazer pela força de nosso
temperamento, fazer consistir toda a moral na voluptuo-
sidade, imitar os deuses que a paixão fabricou, ou exa­
gerar a honra da virtude em proveito do orgulho.
Para onde vamos? Pei'der-nos sem saudade e sem
consciência no infinito! Rodar sem fim de um corpo
para outro! Tomar posse de um paraiso sensual! Ex-
tinguir-nos no abysmo do nada!
E tudo isto, talvez!!! Porque o erro antigo e mo­
derno nada affirma! Porque Sócrates, Platão, Aristóte­
les, Cicero, Seneca, depois de haverem escripto alter­
nativamente o pró e o contra, mantiveram-se n’um sce-
pticismo absoluto! O proprio Yoltaire disse: «Desejaria
que para gáudio de todos, para nossa instrucção, todos
SEGUNDO ESPLENDOR DA FÉ 83
os grandes philosophos da Antiguidade, os Zoroastro,
os Mercúrio Trimegisto, até os Numa, voltassem hoje
á terra, e conversassem com Pascal, que digo? com os
homens os menos sábios de nossos dias que não fossem
os menos sensatos; desculpe-me a Antiguidade, mas
creio que fariam uma triste figura. Pobres charlatães!
Não venderíam caro suas drogas sobre a Ponte-Nova!»
Ao contrario, Jesus Christo, luz do mundo, ensi­
nou-nos por seus exemplos, por suas licções, por seu
Espirito Sancto toda a verdade . O resumo da fé que
encabeçamos n’esta obra, prova claramente que um
menino christão sabe muito mais sobre Deus, sobre o
proximo, e sobre si mesmo, do que os mais famigera­
dos philosophos da antiguidade.
Mas mão é sómente na esphera religiosa e moral
que Jesus Christo é a luz do mundo! Foi necessário
muito tempo ao christianismo para corrigir os costu­
mes, esclarecer as intelligencias, converter as nações e
organisar as sociedades modernas. A meia edade pre-
occupara-se muito com os interesses sobrenaturaes e
tern o s do homem para poder cultivar com ardor e
successo as sciencias humanas. No entanto encetava co­
rajosamente o seu estudo, quando a Renascença veiu
tolher o passo ao movimento christão, e reavivar a lu-
cfa entre a carne e o espirito. Não é menos palpavel
que a luz scientifica não passa de um reverbero da luz
evangélica, e que realmente todos os progressos e con­
quistas das sciencias, das bellas artes, das artes, são fru-
cto do christianismo.
A prova está em que as nações sabias e industriaes
são as nações christãs; que a sciencia ou a industria
nascem ou ficam adstrictas a uma rotina mecanica no
seio das nações que o christianismo não illuininou, como
a China ou o Japão; que o progresso, as invenções, as
descobertas são apanagio das nações que illumina mais
ou menos a luz de Jesus Christo; que só muito tarde e
84 OS ESPLENDORES DA FÉ

que aparecem em as nações que não são ou que deixa­


ram de ser christãs, e ainda por importação ou imita­
ção.
Esclarecida pela fé a intelligencia dilata-se, a von­
tade fortifica-se; só então é que o homem aspira a do­
minar os sentidos e a natureza.
Ensinando ao homem por auctoridade verdades,
cuja investigação outrora lhe exhauria as forças, a fé
salvou-o do desanimo ou do scepticismo, e proporcio­
nou-lhe uma base solida; faz mais, pela diffusão e com-
munidade de luzes, cria para elle um contrapeso do
senso coínmum, que o protege efficazmente contra seus
desvarios individuaes, e uma alavanca potente que lhe
centuplica as forças, pondo as de todos á disposição de
cada um. Enfim pela communhão intima entre a alma
e seu auctor, entre a verdade e a virtude, a fé introduz
no homem um principio de vida que é para o espirito
o que o espirito é para o corpo, que concentra, disci­
plina, inspira seus movimentos, e defende seus thesou-
ros da ferrugem da corrupção. A fé em Jesus Christo
volve-se segundo a feliz expressão de Bacon o aroma
da Sciência, Fides aroma sçientiarum. Eis como forte
com o soccorro da fé, o espirito humano que ficara du­
rante quatro mil annos sopitado, e como no estado de
infancia, se ergueu a uma altura, nunca por elle conhe­
cida. Marchou de progresso em progresso! «Quando ve­
des, dizia ainda Voltaire em uma de suas phases de
acalmação, que a razão faz progressos tão prodigiosos,
mas só no momento da prégação do Evangelho, olhai
a fé como alliada que deve vir em vosso auxilio, e não
como inimiga que devais atacar; ousai estremecei-a e
não receal-a.»
A prova ainda de que a luz da fé é a luz da scien-
cia, está em que os mais nobres representantes da scien-
cia, da razão, do progresso debaixo de todas as suas
formas, os guias da humanidade tem sido todos apos-
SEGUNDO ESPLENDOK DA FÉ 85

tolos ou discípulos de Jesus Christo. «Não é difficil, diz


d’Alembert, produzir a lista dos grandes homens que
tem considerado a religião como obra de Deus; lista
capaz de abalar, mesmo antes do exame, os melhores
espíritos, sufficiente pelo menos para impor silencio a
qualquer multidão de conjurados, inimigos impotentes
das verdades necessárias aos homens, que Pascal de­
fendeu, que Newton acreditou, que Descartes respei­
tou!!!»
Cem vezes o temos recordado: no passado, como
nò presente, á frente de todos os ramos do saber hu­
mano, e entre os gênios que fazem honra á humanida-
dade, contam-se christãos sinceros, catholicos fervoro­
sos: o sr. Augusto Nicolas nota que dos sessenta e nove
sábios, de quem Fontenelle faz o elogio, talvez não haja
tres que não sejam notáveis pela piedade como pelo
saber, de sorte que o livro de seus elogios é no fundo
uma historia interessante. Bm pleno xix século, no tem­
po fatal, em que a fé, ah! se tornou tão rara, cada uma
das secções da nossa Academia da sciencias, Astrono­
mia, Geometria, Mecanica, Geographia e Navegação,
Physica, Chimica, Historia Natural, Mineralogia e Geo­
logia, Botanica, Medecina e Cirurgia, lá tem um sabio,
não só amigo do christianismo e da Egreja catholica,
mas crente e piedoso.
O catholicismo sempre marchou e marchará sem­
pre á frente da civilisação e do progresso, porque ha,
diz Balmes «na civilisação europêa, baseado no chris­
tianismo, um desejo ardente de perfeição em todos os
ram os... um espirito cosmopolita de universalidade e
de propaganda, um fundo inexhaurivel de recursos para
se rejuvenecer, uma impaciência generosa que preten­
de adeantar-se ao futuro, d’onde resulta uma agitação,
um movimento incessante,» etc. Em Erança antes da
Revolução a sciencia era toda christã e catholica, con­
tava em seu seio quatorze grandes universidades e
86 OS ESPLENDORES DA FÉ

trinta observatorios astronomicos. Se nos primeiros


cincòenta annos d’este século, a Egreja catholica mar­
chou no segundo plano é porque tinham derramado o
mais nobre e puro de seu sangue, tinham-na despojado
de todas as suas riquezas, deixando-lhe apenas com
que viver, e precisava de muito tempo para sahir do
meio de tantas ruinas.
Mas eil-a de pé, e em seu primeiro ímpeto aspira
já a ressuscitar o ensino superior que sem ella se defi­
nhava ; quere cultivar com ardor as sciencias humanas,
ostenta e desfralda novamente o balsão de Jesus Chris-
to, luz do mundo! Seus inimigos sabem muito bem, já
o demonstrámos, que a verdadeira sciencia é necessa­
riamente christã e catholica. não obstante dão vozes
enraivecidas contra ella, quereríam á semelhança de
Juliano Apóstata arrebatar-lhe violantamente a unica
liberdade que lhe tem dispensado. Mas saibem-no bem :
se no naufragio, com que as douctrinas impias amea­
çam a sociedade, as sciencias humanas não perecem, é
porque o clero catholico as terá salvo! Suas universi­
dades não são de hontem, e algumas pelo menos estão
já certas de um brilhante futuro. Pode dizer-se de
Pio ix que é o pontífice o mais apostolico, o mais ca­
tholico e o mais romano que se tem assentado na ca­
deira de S. Pedro: a simples enumeração do que tem
feito este papa em favor da sciencia é realmente fa­
buloso.
Sim, Jesus Christo é a luz do mundo não só reli­
gioso, moral e social, mas do mundo sabio. Sua fé é a
salvaguarda insubstituivel da sciencia e da civilisaçao.
No futuro, como no passado, as nações que lhe voltarem
costas, recahirão na barbarie.
Resumamos. O velho Simeão dissera da oreança po­
bre apresentada no templo, que havia de ser o Estan­
darte levantado em face das nações, a Salvação do
mundo, o Enviado de Deus, a Luz que havia de illumi-
SEGUNDO ESPLENDOR DA FÉ 87
nar todos os povos! E o tríplice oráculo cumpriu-se. E’
ao mesmo tempo uma prophecia evidente e um mila­
gre brilhante: milagre naturalissimo se aquelle menino
era Deus; milagre impossível se era apenas liomem.
Logo Jesus Christo é Deus, e porque é sobretudo em
face e no seio da Egreja catholica, apostólica, romana,
que Jesus Christo é o estandarte, salvação e luz, a
Egreja catholica, apostólica, romana é divina.
CAPITULO SÉTIMO

Terceiro Esplendor da Fé

Este está posto para ruína e resurreição de muitos. (S.


Luc, cap. ii 34.) Depois de ter entregue a Maria sua
Mãe o Menino Jesus, a quem nada no exterior distin­
gue dos outros meninos da sua edade, que não traz
consigo nenhum signal de força ou de poder, que não
balbucia, que não fala senão por seu sorriso, o velho
Simeão abençoando-o, dirige-lhe estas palavras prophe-
ticas, extraordinárias, inauditas, de um alcance immen-
so: «Este está posto para ruína e resurreição de muitos /»
Quer dizer será o senhor soberano, o arbitro unico do
genero humano, d’elle só dependerá a ruina ou a sal­
vação, a elevação ou a ruina dos Estados e dos homens,
sobre elle repousam d’or’avante os destinos do universo.
Se este Menino não é Deus, este oráculo é uma
loucura! E no entanto cumpriu-se á lettra ! Sobre toda
a face da terra, e na serie inteira das gerações, desde o
dia em que foi pronunciado até nossos dias, este oraçulo
é o resumo fidelissimo, palpavel, de toda a historia. A
sorte de muitos que resistem teimosos a Jesus Christo
é perecer mesmo n’este mundo; o destino de muitos
que militam debaixo de seu estandarte é vencer.
TERCEIRO ESPLENDOR DA FÉ 89

A ruína de muitos — 0 povo judeu. — Não contente


de desconhecer aquelle que Deus tinha enviado, a na­
ção judaica persegue-q e supplicia-o; assim é que essa
nação é a primeira, para quem Jesus Christo foi a
ruina.
No cerco para sempre memorável de Jerusalem,
por uma complicação de males sem exemplo, os terra-
motos, a fome, os contágios, a guerra extrangeira e in-
testina, perecem no espaço de alguns mezes um milhão
e cem mil homens! Da cidade immensa e do templo
tão magrqfico de Jerusalem não resta pedra sobre pe­
dra. Dispersos por toda a terra, os resquícios d’este
povo infeliz parecem ter por missão darem em espectá­
culo a todo o universo o cadaver mutilado e sempre
vivo de uma nação reprovada, apegando-se á terra e
desherdando-se do ceo.
Roma pagã. — Foi, depois da nação judaica, a mais
implacável inimiga do nome christão; será a segunda
victima immolada á gloria de Deus e do seu Evan­
gelho . . . Esta cidade orgulhosa estava ainda no ponto
o mais culminante de seu poder e esplendor, quando
João Evangelista proclamava com tres séculos de an­
tecedência, suas humilhações e sua queda; designava
os futuros vencedores do povo tantas vezes invencí­
vel, e representava-os primeiro alliados e depois ini­
migos. Parece que se estão a ver os Grodos, os Hu-
nos e os H erulos... Discernem-se os furores de um
Alarico e de um Atila, que consummaram afinal a de­
solação da antiga Roma, a grande cidade edificada so­
bre sete collinas, que reina sobre os reis, a mãe das
fornicações da terra, enebriada com o sangue dos san-
ctos e dos martyres de Jesus!
Os deicidas —Judas. — Arrojou seus trinta dinhei-
ros para o templo, foi-se e enforcou-se. Seu corpo abriu-
se, e as entranhas espalharam-se sobre a terra.
Pilatos. Encontrou no tribunal de Oaligula, succes-
VOL. IV. ' 12
90 OS ESPLENDORES DA FÉ

sor de Tiberio, um juiz diguo d’elle. Desterrado para


Vienna, capital dos Allobrogos, suicidou-se.
Caiphaz, que despedaçara $ua túnica de grande sa­
cerdote, exclamando que Jesus era blasphemo. despo­
jado da purpura por um proconsul romano, cahiu no
desespero e poz fim a seus dias.
Annaz, pai de Caiphaz, acabou também pelo suici.
dio.
Os TYRANNOS E OS PERSEGUIDORES DOS CHRISTÃOS —
Herodes Aggripa.—Primeiro dos perseguidores, mandou
matar S. Thyago o Menor, e prender S. Pedro. Tendo
vindo a Cesarêa para presidir ás festas em honra de
Cesar, de tal sorte offuscava com o brilho de seus ves­
tidos, que o povo exclamava: «Até aqui considerava­
mos-te um homem, hoje reconhecemos que dominas a
natureza!» No mesmo instante apareceu-lhe um anjo;
comprehendeu logo que era o annuncio das vinganças
divinas. Alcançado por violentissimas dores de entra­
nhas, volta-se para seus lisongeiros e diz-lhes: «Eis que
Deus me condemna a deixar esta terra.» Levado a seu
palacio, e vendo do leito o povo prostrado na praça,
chora e morre cinco dias depois em meio de dores in-
supportaveis
Nero.—Declarado pelo senado inimigo do bem pu­
blico, e condemnado ao supplicio da rocha Tarpeia, é
preso com guarda á vista sobre o monte Palatino. Gla-
nhos á força de dinheiro, os soldados abandonam o
posto da guarda, e vão passear nos bairros de Koma.
Nero fica só, mas vai vibrar sobre si uma punhalada
dentro de um sotão com um instrumento que um de
seus libertos lhe presta para o attentado.
Domiciano. — Foi tão cruel, tornou-se tão odioso,
que seus libertos, seus officiaes e sua mulher conspiram
contra elle e matam-no.
Galerio Máximo. — Preparava-se para celebrar por
novas crueldades contra os christãos o vigésimo anno
TERCEIRO ESPLENDOR DA FÉ 91

de seu reinado, quando uma úlcera espantosa invadiu


toda a parte inferior de seu corpo. Um sangue dene­
grido e podre mana incessantemente com vermes.
Seus soffrimentos são intoleráveis; desejaria não haver
nunca perseguido os christãos, mas é já tarde, e morre
n’um accesso de desespero.
Maximino 11— Baia.— Ingeriu veneno, mas a dose
é demasiada ou muito forte. Assalta-o um delirio furioso,
acompanhado de dores horríveis, causadas sobretudo
por um fogo interior, prenuncio do do inferno. Crê ver
Jesus Christo armado do raio para vingar seus servos
decapitados, e morre dando urros sinistros.
Jtâiano Apóstata.—Entrou na Pérsia á frente de um
exercito immenso, e seguido de uma frota considerável.
Sua rectaguarda é bruscamente atacada pelos soldados
de Sapor; voa em seu anxilio sem ter tido tempo de
vestir a couraça; um dardo despedido por mão desco­
nhecida vara-lhe um dos hypocondrios e penetra pro­
fundamente no figado. Theodoreto refere que levando a
mão á ferida, e enchendo-a de sangue o arrojara para o
ceo, exclamando: «Venceste, G-alileu!»
Valeriano.—Impellido por Marciano, um de seus ge-
neraes, perseguiu violentamente todos os christãos do
do império. Feito prisioneiro por Sapor foi alvo dos
mais indignos e cruéis tratamentos. O rei servia-se
d’elle como de apeadeiro, quando cavalgava; mandou-o
esfolar vivo, e quando morto mandou preparar sua
pelle para servir de tapete.
Diocleciano.—Constantino, seu vencedor, tinha man­
dado deitar abaixo todas as suas estatuas; tal magoa
concebeu por isso, que resolveu morrer. Vagueava de
um lado para outro, agitado por continuas inquietações,
sem tomar nem alimento, nem repouso, não fazendo
outra cousa senão gemer e derramar lagrimas. Despre-
sado, maltratado, reduzido a aborrecer a existência,
deixou-se morrer de fome e de desespero.
92 OS ESPLENDORES DA FÉ

R u ín a d o s in im ig o s d a E g r e ja e d o s P a p a s .— E ’ u m a
das maiores licções da historia, diz de Maistre: todo o
príncipe que se tem atrevido a por mãos sobre o Pon­
tífice ou a affiigil-o, pode contar com um castigo tem­
poral e visivel: morte violenta ou vergonhosa, má fama
durante a vida, e memória pouco saudosa depois da
m orte!
Adolfo e Desiderio, reis dos Lombarãos — Moveram
guerra aos papas Estevão n, Estevão m, Adriano 1 ;
Pepino e Carlos Magno marcharam contra elles, põem
termo ao império lombardo, e dão o exarchado de
Ravenna ao Papa.
Henrique IV , imperador da Allemanha — Muito ce­
lebre por suas luctas impias e violentas contra os pa­
pas G-regorio v ji , Victor m, Urbano i, morre miseravel­
mente em Liège, solemnemente deposto, expulso ver­
gonhosamente por seus súbditos conjurados contra
elle; implorando em vão a interferencia do summo
Pontífice e dos bispos.
Henrique V, imperador da Allemanha — Marchando
nas pégadas do pai, não cessa de perseguir o papa e a
Egreja; morre excommungado e sem descendencia.
Henrique VI, imperador da Allemanha — Excom­
mungado por Celestino m, a quem arrebatara o duca­
do de Benevente, morre pouco depois, de edade de
trinta e dois annos apenas.
Othão IV , imperador da Allemanha — Infiel a seus
compromissos, excommungado e deposto por Innocen-
cio m, morre em um esquecimento profundo.
Frederico 11, imperador da Allemanha — Excom­
mungado pelo Concilio de Lyão por ter querido despo­
jar a Sancta Sé de seu dominio temporal; declarado
decahido de sua dignidade, morre em um canto igno­
rado da Italia. Seu filho apenas lhe sobrevive alguns
mezes; seu neto morre no cadafalso; seu filho natural,
Manfredo, provavelmente seu assassino, usurpador d a
TERCEIRO ESPLENDOR DA FÉ 93'

Sicilia a seu turno, excommungado, é morto na bata­


lha de Benevente, seu corpo foi arrojado a um fosso,
sua mulher, seus filhos, seus thesouros entregues ao
vencedor.
Pkilippe o Bello, rei de França —Irritado da excom-
munhao fulminada contra elle pelo papa Bonifácio vmT
envia á Italia um deputado encarregado ostensivamente
de notificar sua appellação para o futuro Concilio, mas
na realidade para se apoderar da pessoa do Pontifice,
a quem esta violência occasiona a morte. Philippe cahe
de um cavallo e morre, de edade apenas de quarenta
e seis annos.
Luiz XI V, rei de França — A attitude firme da
Sancta Sé, nos negocios da Regale, do direito de asylo
das embaixadas, da declaração do clero de França, in-
dispol-o fortemente; ameaça e apodera-se do condado
de Avinhão. A partir d’esta fatal epocha, o esplendor
do Rei-Sol marchou a passos rápidos para o declinar.
A gloria de sua bandeira empallideceu, espantou a Eu­
ropa por seus revezes. Deus poz sobre elle mão pesada,
e atacou-o pelos lados mais sensiveis. Tornou-se o es­
cravo das vontades felizmente boas da senhora de
Maintenon, que o preparou para uma morte christã e
cheia de resignação.
0 Directorio da Republica franceza — Depois de ha­
ver notificado a Pio vi que o povo romano retomava
sua soberania, e não mais o reconhecia por seu chefe
temporal, mandou lançar mão de sua pessoa, e encer­
rou-o apezar de suas graves enfermidades na cidadella
de Valença onde morreu. Já se gloriavam de ver des­
pedaçados os velhos idolos, como o exigiam a liberdade
e a politica! Tres mezes depois, ás gargalhadas da
França, o Directorio inclinava-se deante da espada de
um moço general, e desaparecia da scena.
Napoleão 1, imperador dos Francezes — Vencedor
de toda a Europa, no apogeu de uma gloria superior á
94 OS ESPLENDORES DA FÉ

de Alexandre Magno, o imperador cakiu também sobre


a pedra angular, e foi despedaçado. Excommungado
pelo papa Pio vm, depois da invasão de Roma, man­
dou prender á força o augusto velho, conservou-o pri­
sioneiro no palacio de Pontainebleau, saturou-o de ma­
goas e de vexações, separou-o de seus conselheiros,
etc. Esperava que o havia de dobrar ao abandono do
poder temporal e á cessão dos Estados Pontifícios.
«E’ realmente extraordinário, dizia um dia Napoleão.
ao nobre e sancto velho, todos os principes da Europa
obedecem a minhas ordens, todos os povos vergam de­
baixo do peso dos meus exercitos triumphantes, só um
velho meu prisioneiro recusa minha amizade... Vossa
amizade ser-me-hia grata, mas o que quereis é injusto!
— Visto que repellis minha amizade, experimentai meu
odio ! —Magestade, deponho vossas ameaças aos pés do
crucifixo, deixo a Deus o cuidado de minha causa —
Estulta exaltação! — Imperador, calai-vos, o antigo
Deus vive ainda! Ha de despedaçar-vos quando a me­
dida estiver cheia!» Doze annos mais tarde Napoleão
prisioneiro em Santa Helena, dizia para um pagem
testimunha da terrível scena de Fontainebleau: «Re­
cordas-te de Pio v i i , de sua predicção e de suas pala­
vras ? — Sim, Sim! o antigo Deus vive ainda! Elle vos
despedaçará! O papa não foi falso propheta! — Meu
sceptro não foi despedaçado pelos homens, mas por
Deus!»
Luiz Philippe, rei dos Francezes — Via na religião
um meio de governo: a lei devia ser athêa, i é, indif-
ferente a todos os cultos. Liberal, aconselhou mal
Pio ix no começo do seu pontificado.
Por occasião de sua ultima conlerencia com Mgr.
Affre, que não trepidava em dizer que a Egreja pedia
liberdade, e não protecção, que não podia deixar de
manter o direito que tinham os bispos de se reunir
para tractarem dos interesses de suas dioceses, que re­
TERCEIRO ESPLENDOR DA FÉ 95

cusava dizer-lhe que especie de concessão una delega­


do dos bispos fora encarregado de ir solicitar do sobe­
rano Pontífice, Luiz Philippe levantou-se, pegou no ar­
cebispo pelo braço, e disse-lhe: «Não vos esqueçais
que se tem dado cabo de mais de uma m itra!» O arce­
bispo levantou-se por sua vez, e disse-lhe: «Isso é verda­
de! mas que Deus conserve ao rei sua coroa, porque
também se tem dado cabo de bastantes coroas!» A 24
de fevereiro o rei, já abatido pela morte tragica do
duque de Orleans, entrava precipitadamente para um
trem com a rainha, sem escolta, sem dinheiro, sem pro­
visões de viagem, e ordenava que o levassem primeiro
a Yersailles, e depois a Dreux, disfarçado, por entre
mil terrores de ser reconhecido, preso e julgado. De
Dreux, alcançava as costas da Mancha, e embarcado
em um frágil barco, por um mar agitadissimo, desem­
barcava em Inglaterra, e morria depois de um exilio
muito curto.
Carlos Alberto, rei do Piemonte —Lisongeou a Revo­
lução mesmo em suas perseguições contra o catholicis-
mo. Deixou violar os sanctos asylos dos religiosos e dos
padres, roubar as casas dos Jesuítas, e invadir os paços
episcopaes de muitos prelados aliás recommendaveis.
Vencido na batalha de Novara, abdica no mesmo dia
a coroa, e vai morrer de magoa e de vergonha no
Porto, em uma cabana de pescador.
Napoleão III, imperador dos Francezes — Os primei­
ros annos de seu reinado foram felizes. Quiz que Pio ix
fosse o padrinho do príncipe imperial. Mas havia tem­
po que era hostil ao poder temporal dos papas! Insta­
ram vivamente com elle para que não assignasse o tra­
tado de setembro, pelo qual se empenhava a retirar
suas tropas de Roma dentro de dois annos! Recorda­
vam-lhe os destinos de seu tio ! Tudo foi inútil. Os Es­
tados Pontifícios foram invadidos! Roma tornou-se a
capital do reino de Italia. Ao mesmo tempo no castello
96 OS ESPLENDORES DA FÉ

de Bellevue, Napoleão m vencido, esmagado, humilha­


do, entregava sua espada ao rei Guilherme, e partia
para o logar de sua prisão. Menos de dois annos depois
morria no exilio, despojado de todo o seu prestigio, na
modesta vivenda de Ohislehurst, felizmente reconcilia­
do com Deus.
R u ín a d o s ím p io s , d o s h e r e g e s , d o s sc ism a t ic o s —
Shnão o .Mago ----- Dizia-se Filho de Deus, e gabava-se
de subir ao ceo. Prometteu a Nero uma ascenção so-
lemne em sua presença. Elevoü-se de feito aos olhos
do imperador, mas por virtude da oração de S. Pedro,
cahiu, quebrou as pernas e morreu.
Avio — No momento em que fazia sua entrada
triumphante em Constantinopla, assaltado por uma
dor de entranhas, retirou-se a um logar secreto, e mor­
reu de repente.
Nestorio — Expulso por Theodosio de toda a area
do império, foi apanhado por nômadas. Repatriado, foi
ainda exilado por tres vezes, e morreu com o corpo em
decomposição, e a lingua roida pelos vermes.
Luthero — Assentado á sumptuosa meza dos condes
de Mansfield, esvasiando copos uns atraz dos outros de
vinhos generosos, solta redeas a seu humor cáustico
contra o papa, o imperador, os frades, e o proprio dia­
bo. Levantando-se em seguida, tira da parede um pe­
daço de cré, e escreve este famoso verso: Pestis eram,
vivens, moriens, tua mors ero, Papa —vivo, eu era tua
peste, ó Papa, morto serei a tua morte! — Immediata-
mente sente-se preza de uma tristeza insuperável, que
nunca mais o largou. Em a noite de 17 para 18 de fe-
tereiro de 1545, mortaes augustias lhe torturam a alma,
entra em agonia e expira, depois de ter protestado em
uma oração sacrílega, que confessara e pregara o Chris-
to, mas o Christo que o Papa deshonra, persegue e
blasphema!
Calvino. — Um de seus discípulos conta sua morte
TERCEIRO ESPLENDOR DA FÉ 97

d’esta maneira: «Calvino morreu como desesperado, tor­


turado e consumido por essa enfermidade muito ver­
gonhosa e cruel, com que Deus afflige os rebeldes e os
malditos... Vi com meus proprios olhos seu fim, sua
ruina e seu supplicio.»
Henrique VI I I , rei de Inglaterra. — Seus habituaes
desregramentos tinham-lhe causado uma tal obesidade
que não podia mover-se senão por meios mecânicos
por elle inventados. Nada porem perdera de sua fe­
rocidade e de sua paixão pelo sangue. Estava já esten­
dido sobre seu leito de morte, e ninguém ousava adver-
til-o do seu estado, porque este aviso seria inevitavel­
mente seguido de uma ordem de morte prompta e vio­
lenta. Morreu pois antes de saber que tocara no termo
de sua vida, e sem ter podido assignar um grande nu­
mero de sentenças de condemnação que planeava. Af-
firma-se que em sua ultima agonia, olhando para aquel-
les que lhe rodeavam o leito, lhes dissera: «Senhores,
tudo deitamos a perder, Estado, Egreja, a consciência
e o ceo!»
Izabel, rainha de Inglaterra.—Capaz de todos os cri­
mes, não pôde suffocar os remorsos que a consciência
de seus crimes suscita na alma dos tyrannos. Em sua
ultima enfermidade, espantada da abominação de sua
vida, dizia para os médicos solícitos em lhe prodigarem
seus cuidados: «Deixai-me, quero morrer, a vida torna-
se-me insuportável.» Os grandes da côrte e o arcebispo
de Cantuaria, lançaram-se-lhè aos pés. supplicando-lhe
que tomasse alguns remedios: nada puderam obter!
Estava decidida a morrer, matando-se.
Tliomaz Cromwdl — Foi elle quem moveu Henri­
que viu a declarar-se chefe da egreja de Inglaterra, e
a perseguir o clero para o obrigar a submetter-se.
Depois da abjuração solemne do rei, foi nomeado seu
vice-rei e vigário geral para o espiritual. Desgostoso
de Anna de Cleves que Cromwell lhe tinha trazido
VOL. I V 13
98 OS ESPLENDORES DA FÉ

para esposa, Henrique viii resolveu dar cabo d’elle, e


íel-o condemnar á morte por um parlamento como
herege e inimigo do Estado. Foi decapitado e todos os
seus bens confiscados.
Oliveiro Cromwell — Era a alma da conspiração Ím­
pia que jurara aniquilar o papismo e o Papa. Morreu
no leito; mas depois de que angustias! Perseguido pela
consciência de seus crimes, julgava-se incessantemente
ameaçado com a espada da divina vingança. Sem, ami­
gos, sem servidores fieis, não se fiando em ninguém, tre­
mendo a cada passo de ser assassinado, nunca dormia
duas noites seguidas no mesmo aposento, e arranjara
em cada um d’elles um esconderijo por onde pudesse
escapar-se.
Yoltaire — Conta-se d’elle que estando ainda moço
em um convento de Recolletos, apostrophando o gran­
de crucifixo que se levantava ao centro do claustro, lhe
dissera: «Tu és grande, e eu pequeno! Mas quando eu
fôr grande, far-te-hei pequeno!» Cumpriu a palavra;
tornou-se o inimigo pessoal de Jesus Christo e de sua
sancta Egreja, chamando-lhes infames, e combatendo-os
com toda a especie de armas. Esmagai o infame!
Era esse grito de guerra infernal que repetia sem
cessar! Em fevereiro de 1778, recebera auctorisação de
voltar a Paris, foi acolhido como triumphador; coroa­
ram-lhe o busto em sua presença na sala do theatro da
Comedia franceza.
A’ noite, exhausto dé emoções, saturado de lison-
jas, foi assaltado por uma febre violenta. Mandou cha­
mar o padre Gautier, sacerdote da communidade de
S. Sulpicio, assignou em presença de testimunhas a re-
tractação exigida e recebeu os últimos sacramentos!
Era seu ultimo acto de hypocrisia. Seu quarto encheu-
se de novo de encyclopedistas que não o largaram mais.
Gracejou com elles do que chamava sua phantasia de
penitencia. Ho mez de maio teve uma recahida grave.
TERCEIRO ESPLENDOR DA PÉ 99

Quiz ainda chamar o padre Grautier, mas só o deixaram


aproximar, quando o delirio do moribundo tornava já
inútil o seu ministério.
Morreu em um horrivel desespero, dirigindo a seus
discípulos amargas objurgações, ora invocando a Deus,
ora blasphemando-o. A’s vezes com voz lastimosa, e
muitas em accessos de furor, exclamava: «Jesus Chris-
to! Jesus Christob Torcia-se no leito e despedaçava o
peito com as unhas...
«Sinto, gritava, que uma invisível mão me arrasta
ao tribunal de D eus... O diabo está acolá! Quer agar­
rar-me, eu vejo-o, eu vejo o inferno; escondei-me!»
Em um accesso de sêde ardente levou a bacia da
cama aos lábios, e exgotou-a, deu um grande grito, e
morreu sujo das próprias ímmundicies e do sangue que
lhe sahia a borbotões da bocca e do nariz.
«Não posso recordar-me de semilhante espectáculo
sem horror! escrevia o celebre douctor Tronchet a Bon-
uet de Genebra. Desde que viu que tudo quanto fôra
tentado para lhe augmentar as forças produzia o effeito
contrario, a morte levantou-se como espectro deante
de seus olhos, e a raiva e o desespero cresceram sem­
pre.» Buina! Ruina!
Condorcet — Tinha grandes qualidades, genio v.rba
nidade, o que fazia um contraste frisante com sua ef
fervescencia revolucionaria. D’Alembert comparava-o
a um vulcão coberto de neve, e chamava-lhe carneiro
enraivado. Não reconhecendo no mundo senão a maté­
ria, mas dotada de uma força progressiva eterna e de
uma energia divina, destinada a depurar-se e engran­
decer-se por si mesma, foi como o patriarcha do atheis-
mo scientifico moderno. A exemplo de tantos innova-
dores modernos, cheios de imprudência, semeava ven­
tos sem prever a tempestade que havia de perdel-o.
Posto fóra da lei, viu-se obrigado a esconder-se nas
pedreiras abandonadas, onde passou muitas noites. A
100 OS ESPLENDORES DA FÉ

fome obrigou-o a sahir d’ali; foi reconhecido, preso e


encerrado n’uma prisão. Quando o carcereiro voltou
passadas vinte e quatro horas, encontrou-o m orto; to­
mara um veneno violento que havia algum tempo tra­
zia sempre consigo para escapar ao supplicio que o es­
perava.
Os coryphe-us da grande Revolução franceza — Chaumet-
te, o organisador da festa da Razão; Hebert, chefe dos
atheus; Robespierre, o inventor e o pontifice do Ente
Supremo; Pétion, o cúmplice dos dias 2 e 3 de setem­
bro; Cloots, que blasonava de inimigo pessoal de Jesus
Christo; Danton, o organisador da carnificina dos Car­
melitas ; Fouquier-Tinville, o feroz accusador publico;
Carrier, o ministro dos casamentos republicanos; Le-
bon, padre apóstata e fera sedenta de sangue; Schnei-
der, o novo Nero, etc., todos pereceram de morte tra-
gica e violenta! E as mais das vezes aconteceu ser es-
cripta sua sentença de morte sobre actas de accusação
impressas d’antemão, e deixadas por elles em branco
Ruinas! Ruinas!
Os corypheus da unidade italiana. 0 conde de Cavour —
Em sua opinião, nossas divinas crenças eram um fla -
gello, e retardavam o desenvolvimento regular e pro­
gressivo do genero humano. Foi elle quem proclamou
Roma capital da Italia. Chegou ao apogeu da gloria,
eis porem que sua intelligencia se obscurece, sua
mão treme. Morre de uma febre perniciosa no proprio
dia, em que se celebrava por uma grande festa nacio­
nal o anniversario da Unidade. Armellini, que pronun­
ciou em 1848 a queda do Papa soberano temporal, a
quem sua mulher increpava constantemente a violação
do juramento, que tinha prestado como advogado con-
sistorial, morre em Bruxellas, despresado de todas as
pessoas de bem.—Farini, que em sua juventude em Bo­
lonha, mostrando o braço nú, gritava que o havia de
mergulhar até ao cotovello no sangue dos padres, mor­
TERCEIRO ESPLENDOR DA FÉ 101

re doido! Recusando tomar qualquer especie de ali­


mento, os olhos desvairados, perseguido pelo espectro
de uma victima innocente, que entregara ás mãos de’
uma populaça furibunda; mettendo horror aos guar­
das, mergulha o braço até ao cotovello mas nas pró­
prias immundicies e expira.
De Lamennais —Poucos homens, mesmo entre os
hereges, tem acabado tão miseravelmente: Ario foi ful­
minado em um logar sordido, mas não se suicidou, nem
se condemnou ao abondono geral, á nullidade civil, ao
earroção fúnebre dos pobres, á valia commum, ao si­
lencio universal sobre um tumulo, que teria devido ser
tão illustre. Tudo isto, dizia Lacordaire, forma um es­
pectro que persegue. Ruina!
E lle fo i posto para resurreição de m u itos ! O
triumpho de muitos, des sociedades, dos príncipes e dos
particulares que tem seguido fielmente a Jesus Christo
e a sua sancta Egreja, e tem posto só n’Elle toda a
sua confiança, é a seu turno um grande facto histórico,
certo e palpavel.
N ações e soberanos — Israel — Parecia que em vir­
tude da reprovação do povo judeu, as promessas feitas
aos patriarchas e as esperanças do universo ficavam
para sempre comprometidas. Tudo porem revive com
a Egreja christã, e esta resurreição é admiravel! Jesus
Christo reservou para si de toda a nação judaica doze
homens do povo e ignorantes. Semeia-os pelo mundo
como grão fecundo, e não tarda que uma ceifa abun­
dante de adoradores em espirito e verdade surja de
toda a parte.
Constantino — No principio de sua gloriosa carreira,
leu no proprio ceo, juncto de uma cruz luminosa, as
promessas de seus futuros successos, In hoc signo vinces!
Mandou inscrever estas palavras sobre a bandeira de
seu exercito, e desíralda-a como estandarte á frente
de suas legiões.
102 OS ESPLENDORES DA FE

Desde então conta pelos annos suas victorias; faz


morder o pó a cinco imperadores idolatras, que lhe
oppunham seus exercitos; torna-se senhor do mundo
romano, ao qual manda adorar o divino Crucificado;
funda em seguida império mais florescente do que o
primeiro, e morre em velhice tranquilla, depois de um
reinado de trinta annos.
Carlos Magno. — Subiu ao throno joven ainda, mas
da juventude conservara apenas o vigor e a actividade;
não empregou seu poder senão em ampliar o reino de
Jesus Christo. Assim é que não houve gloria compará­
vel á sua.
Marcha de victoria em victoria, de triumpho em
triumpho. Sua magestade e sua bondade desarmavam
os rebeldes, que seu braço não vencera ainda. Que
bello dia aquelle em que o soberano Pontifice Leão iid
na basílica de S. Pedro em Roma lhe collocou a corôa
imperial sobre a fronte, ao mesmo tempo que o povo
romano repetia em altos gritos: Vida e victoria a Car­
los o muito pio, coroado de Deus, grande e pacifico
imperador! O mundo conta-o no numero de seus he-
roes, e a religião no de seus sanctos! Resurreição!
Convertidas illustres. —Mas a magnífica realisação
do oráculo de Simeão mostra-se sobretudo na historia
dos grandes convertidos. A conversão é um milagre da
resurreição das almas, realmente mais assombroso do
que o da resurreição dos corpos. O corpo morto de
feito não oppõe a sua resurreição senão uma resistên­
cia passiva, ao passo que a alma, pelo peccado morta,
oppõe a sua resurreição uma resistência activa e por
vezes tenacissima.
A conversão prova pois invencivelmente a divin­
dade da relieião, no seio da qual se opera, porque é
própria da religião catholica, apostólica e romana com
exclusão de qualquer outra egreja christã; pois são os
melhores sectários da heresia ou do scisma que passam
TERCEIRO ESPLENDOK DA FÉ 103

para o catholicismo, vencidos por uma conversão sin­


cera, em quanto que são os maus catholicos que pas­
sam para a heresia ou para o scisma, por uma verda­
deira preversão! A Egreja catholica, apostólica e ro­
mana, é a unica divina.
Esbocemos a historia de alguns d’estes convertidos
illustres.
Maria Magdalena. —•O Evangelho designa-a com o
epitheto de peccadora da cidade! Possessa de sete de­
mônios! Simão o phariseu estranha e pasma de que Je ­
sus Christo a consinta a seus pés!
Mas ella arrepende-se e ama! Seus peccados são-
lhe perdoados; sua vida não será mais do que um longo
acto de amor! Renan finge-a mentecapta!
Jesus Christo transformou-a n’uma grande sancta,
cujos louvores serão celebrados pelo mundo inteiro até
ao fim dos séculos. O oráculo cumpriu-se. Resurrei-
ção!
S. Paulo. — E’ Benjamin, lobo voraz, que de ma­
nhã arrebata a preza, e á tarde transforma-se em cor­
deiro !
«Eu atormentava, confessa elle, os sanctos nas sy-
nagogas. Meu furor augmentava todos os dias. Chegara
ás portas de Damasco. Yi uma luz mais brilhante que
o sol. Cahi por te r r a ... Ouvi uma voz, que me dizia:
Saulo, Saulo, porque me persegues ? Respondí: Quem
sois vós, Senhor? O Senhor disse-me: Sou Jesus a quem
tu persegues!... Envio-te aos Gíentios afim de que se
convertam das trevas á luz, de Satan para Deus.> Ao
mesmo tempo que os companheiros de S. Paulo, to­
mando-o pela mão, o introduziam em Damasco, Deus
aparecia a Ananias e dizia-lhe: Levanta-te! Yai a casa
de Judas e procura por Saulo de Tarso. Mas, Senhor,
elle vem para carregar de cadeias aquelles que invo­
cam vosso nome!... Elle ora, torna o Senhor, e eu es-
colhi-o para que prégue meu nome aos Gentios, aos
104 OS ESPLENDORES DA FÉ

reis e aos filhos de Israel. Ananias foi, impoz as mãos


a Saulo; logo escamas cahiram dos olhos, e recu­
perou a vista! B prégava nas synagogas que Jesus é o
Filho de Deus!... Seu impulso foi o de um gigante.
Attingia de salto o conjuncto de todas as virtudes, o
amor de Deus, o amor de Jesus Christo, o amor de
seus irmãos, amigos e inimigos! E seu ministério foi
soberanamente efficaz. O mais sabio dos philosophos,
Aristóteles, o mais eloquente, Platão, o mais illustre,
Sócrates, etc., honraram a Grécia com seus ensinamen­
tos e com os exemplos de sua vida. Apenas foram
bronzes que soam ou cymbalos que retiniam! Corintho,
apezar da presença dos sete Sábios, ficou a cidade a
mais corrompido do mundo: só no templo de V enus
não se contavam menos de mil cortezãs! Paulo, o asso­
ciado de um judeu que auxiliava na fabricação das
tendas, prégou n’esta cidade impudica a mortificação
dos sentidos e o desprezo das riquezas, e converteu-a!...
Chegado ao termo de sua divina missão, Paulo dizia a
Deus na singeleza de sua alm a: Consumei a minha car­
reira: combati o bom combate; guardei a fé! Resta-me
a coroa de justiça que me está reservada e que o justo
juiz não me fará esperar... Sua nobre 9 sancta cabeça
rolou ao corte da espada do carrasco; seu tumulo
bem mais glorioso, do que o dos conquistadores, dos
imperadores, dos philosophos os mais celebres, trans­
formou-se n’uma immensa e magnifica basilica, aonde
vem orar peregrinos de todo o mundo. S. João Chry-
sostomo, a quem seu genio, sua eloquência e seu zelo
ardente fez denominar Bocca d!ouro, prestou a S. Paulo
esta homenagem sublime:
«Quando te contemplo, fico estupefacto!» O sr. Re-
nan com sua penna sceptica e acerada, resume seu sa­
crílego Estudo de S. Paulo n’estas cruéis palavras, que
são aliás um esplendor da fé: «O Christo que lhe fez
TEHGEBRO ESPLENDOR: D A< FÉ 105

retelações<pfeesoaesf é- ^eu jpiapçio ipfcantftsipa, ,éí a sd


mmvmi a quem ouve, julgando ouvir a Jesus.» , i^ í.;
Jesus impostor! Paulo allucinado! E o mundo. coqt
vertido,! Resurreição!
S. Dymisio Areapagita — Um dia vê entrar no Ar-eo-
pago um homem de fronte vasta, olhar profundo, de
rosto inspirado: era S. Paulo. Ouve-o, sente-se tocado,
converte-se, e torna-se um escriptor inspirado. Debaixo
de sua penna douta, o ensino de S. Paulo explana-se
em mysteriosas harmonias, que sobem da terra ao ceo.
A seu turno faz-se apostolo, evangelisa a Grallia; funda
a Egreja de Paris; morre martyr, illustrando para sem­
p re ai ditosa collina com seu sangue. A; e^lendndaíbs*-
silicfeude S. Dyonisio tornará seu nome para7sempto haat-
-mortal, eün quarat^ que or nome dqírp^ros.arébpagitaa
«eud-addegàs,. jaz sepultado, «th pjfQfcfideesquecwaentc.
Resurreição!
S. Justiw. — Estudara alternativamente as doutri­
nas de Zenão, de Aristóteles, de Platão, seu espirito
com estas leituras turbara-se, e seu coração ficara mais
irrequieto. .
Certo dia que passava á beira-mar, um velho des­
conhecido, de exterior venerando, diz-lhe que a verdade
só se encontra nâs prophecias e nos milagres do Evan­
gelho. s ,.BÍiríO j .'Monf Irl;: :ioU jfíea v/y. :\.t.
Faz-se christão, recebe o sacerdócio, conservando
todavia seu manto de philosopho, e forma na primeira
escola diícipulos illustres. Sua fé ardente traduziu-se
em obras de brilho; sua primeira apologia desarmou o
imperador Adriano, a segunda fez impressão profunda
sobre o espirito de Mareo Aurélio. Como era eloquente,
quando dizia aos Romanos : «Flui outrora o que vós sois,
sêde bóje o que eu sou. A força da religião christã il-
lumincra-ttne, livrou minha alma da escravidão daspai-
xfles: trouxo*me a serenidade e -a paz.» A ahna assim
esclarecida está segura de se unir .um dia a ;seu Qrea-
VOL. IV 14
106 OS ESPLENDORES DA FÉ

dor. Pagão, Justino teria sido um philosopho ignorado;


christão, Justino brilha e brilhará para sempre com um
brilho puro, vivo e vivificador. Resurreição!
Santo Agostinho. — Alma ardente e sensivel, espii üo
vivo e penetrante, coração amoroso em extremo, segue
facilmente pelo declive rápido dos prazeres e do erro.
Mas a mãe incomparável, Santa Monioa, vigiu-o com
fervor. A graça persegue-o incessantemente.
Certo dia, cahe de joelhos e exclama: «Até quando,
Senhor, direi amanhã, amanhã? Porque não ha de ser
hoje, n’este mesmo instante?» Ouve uma voz interior
que lhe diz: «Toma e lê!» Um volume das Epístolas de
S. Paulo estava a seus pés. Toma-o e lê: «Caminhemos
honestamente, não nos excessos da meza e na embria­
guez, não na dissolução e na impudicicia, não na con­
tenção e na rivalidade! Revistamo-nos do Senhor Jesus
e não façamos caso da carne.» Immediatamente sur­
ge-lhe no espirito sua vida de erro e de piazer em
todo o seu horror, uma luz sobrenatural illumina sua in-
telligencia, os encantos da virtude enamoram-lhe o co­
ração. Está convertido!
Retira-se em companhia de sua mãe para uma so­
lidão visinha de Milão, e não a deixa senão para rece­
ber o baptismo das mãos de Santo Ambrosio. Volta á
África sem Monica, ah! morta em Ostia, e continua
perto de Tagaste sua vida solitaria e laboriosa. Acceita
muito a seu pezar a coadjuctoria de Valerio, bispo de
Hippona, e suecede-lhe mais tarde, vivendo de boas
obras, não se preoccupando senão da gloria da Egreja,
e da felicidade da patria, e morre aos setenta e seis an-
nos, succumbindo á previsão das desgraças que o cerco
ameaça a sua cara Hippona, legando á posteridade
monumentos impereciveis de seu genio, erudição e zelo.
Possidonius, um de seus contemporâneos, eleva o nu-
jnero de suas obras a mil e trinta, comprehendendo
seus sermões e suas cartas. Não resuscitado por Jesus
TERCEIRO ESPLENDOR DA FÉ 107

Christo, Agostinho teria sido um habil rhetorico, mas


d’ha muito esquecido; uma ruina m oral! Auctor de
uma das quatro grandes regras da vida religiosa, fun­
dador dos clérigos regulares, pai de multidão innume-
ravel de religiosos agostinhos e de religiosas agostinhas
que forma para a justiça, brilhará como estrella em
perpetuas eternidades. Resurreição!
Santo Ignacio de Loyola. Gfentil-homem espanhol, es­
colhera a carreira das armas e levava a vida dissipada
dos campos. Se Deus o não houvera resuscitado, teria
ficado vulgar e desconhecido. Ferido no cerco de Pam-
plona e condemnado a um repouso forçado, pediu um
livro para se distrahir. Não havia no castello senão a
Vida dos Sanctos! Esta leitura impressiona-o fundamente
e converte-o; toma logo a resolução de se consagrar
todo á defesa da Sancta Egreja e á maior gloria de
Deus. Cavalleiro de Jesus Christo e de sua divina Mãe,
faz sua primeira vigilia de armas na capella de Nossa
Sanhora de Montserrat, e corre a occultar-se na gruta
de Manresa, onde parece que Deus lhe revelou seus
Exercidos espirituaes, com os quaes ha de effectuar a
conquista dos primeiros companheiros de seu aposto-
lado, que mais tarde lhe hão de inspirar suas constitui­
ções tão admiradas, e o hão de volver pai da immensa
familia de apostolos que será a edificação do universo.
Conduzido a Roma por impulso irresistível, orava certo
dia em uma capella em ruinas; viu o Eterno Padre que
o apresentava a seu divino Filho Jesus Christo, carre­
gado de pesado madeiro e promete de lhe ser propi­
cio. De facto, por uma bulla de 27 de setembro de
1540, o soberano Pontífice aprovou com o nome de
Companhia de Jesus sua nova ordem, especialmente
dedicada á pessoa do summo Pontífice, á santificação
das almas e á educação da juventude. Prodigando-se
sem reserva, fundou umas apoz outras em Roma, a casa
de retiro para judeus convertidos, casa de refugio para
108 OS ESPLENDORES DA FÉ

cortezãs aiTependidas, asylos para orphãosinhos e don-


zellas em perigo de perderem a innocencia. Enfim mo­
delo completo de todas as virtudes, rico de mereci­
mentos, depois de ter recebido do summo Pontífice
uma benção especial, in articulo nwrti*. levantando as
mãos e os olhos ao ceo, pronunciou o nome sacrosancto
de Jesus, e expirou tranquillamente a 31 de julho de
1556. Sua vida resumè-se em sua famosa divisa : Ad ma-
orem Dei gloriam, e também nas bellas orações que re­
citava constantemente: Susápe ! e Anima Ckrisli !,A glo­
ria a mais pura de S. Ignacio e de sua Companhia é de
terem sido com Jesus Christo objecto especial das con-
tradicções do inferno e de seus sequazes: signum ciii
jconlmdimtwr<. Tem sido combatidos por toda a parte
sempre e em tudo. Esplendor!
Le Boitfhilier de Ransé—Joven e festejado, o abbade
de Ransé forcejava por conciliar o prazer e a moral-
»Eu prégo de manhã, dizia elle, como um anjo, e caço
a noite como um diabo.» O Senhor foi-o attrahindo in­
sensivelmente a si por uma serie de accidentes que lhe
fizeram tomar a resolução de se consagrar inteiramente
a Deus. lõdn&qaioogoiíémhq aob fílsinpaoo
Retirou-se para o seu castello de» Verei na Tourai-
n e ; mas bem depressa desgóstoso da magnificência e
da voluptuosidade que tudo n’elle respirava, o vendeu
cõm a baixella de ouro e de prata, deu o producto aos
pobres, despediu os criados, demdttiu-se de. todos os
benefícios, á excepção da abbadia da Trappa,- onde -se
estabeleceu na qualidade de abbade regular, comga
vontade decidida de ahi restabelecer a restrictai obser­
vância. o o mmvfq.G oóôifnoT o u í a s d o g o ,0tcl
fnabalavel em sua resolução, sem nuncame cançar
com semilhante vida de austeridádes, sempre indefesso
na practica de uma piedade ardente, morre penitente
sublime na palha c na cinza, com grande edificação da
corte de Luiz xiv. Que gloria para o fidalgo outrora
TERCEIRO ESPLENDOR D A. FÉ 109

tão leviano o ter-se volvido pai, grave e presadissimo,


d’essas numerosas famílias de trappistas que alegram os
ceos, assombram a terra e fazem fremir o inferno pelo
heroísmo de uma vida excessivamente mortificada!
0 R. Padre Lacordaire—Na província bebera na
própria nascente da incredulidade, e apezar de em sua
vinda a Paris se ter posto em relação com fervorosos
christãos, nem sequer pensara em converter-se. Eis
como elle proprio refere sua conversão: «Luz alguma
me veiu dos homens. Yivia solitário e pobre, abando­
nado ao trabalho de meus vinte annos, sem júbilos in­
teriores, sem relações a’gradaveis, sem attractivos pelo
mundo, sem os inebriamentos do theatro, sem paixões
de relação, de que tivesse consciência, a não ser um
tormento vago de reputação. Foi n’esse estado de
isolamento e de melancholia interior que Deus veiu
procurar-me. E ’-me impossível dizer em que dia, em
que hora, e como é que minha fé, perdida havia annos,
tornou a aparecer em meu coração como phanal que
não estava extincto. A theologia diz-nos que ha uma
outra luz do que a da razão, uma outra impulsão do
que a da natnreza, que essa luz e essa impulsão ema­
nadas de Deus, operam sem que saibamos d'onde vem
e para onde vão.» O R Padre Lacordaire teve duas
grandes glorias: a de crear um genero de eloquência
nova e a seu modo inspirada, que esclareceu muitos
espíritos e tocou bastantes corações; e a de restaurar
,em França a ordem illustre dos Padres Pregadores e
de ser o patriarcha de uma geração de oradores que
proseguem com brilho e com exito sua sancta mis-
,.gãO. ,({ ||,. . ,, i . . .
0 R. P.' Libermann., — Seu pai, rabbino muito in­
fluente, destinavam ás honras da synagoga, e com c,edo
instillara em seu Goração o odio que os judeus votam
aos catholicos! A vista tde uma cruz fazia-o fugir, a pre-
sança de um padre arrancava-lhe gritos de raiva.
110 OS ESPLENDORES DA FÉ

Seus estudos, exclusivamente rabbinicos, deram em


resultado conceber um entranhado horror aos christãos,
levado ao fanatismo. —Mas a graça aguardava a occa-
sião de domar este nòvo Saulo! •
Abriu-lhe largamente o coração, e recebeu o ba­
ptismo em sentimentos de calma e fé verdadeiramente
pasmosos. Não era só um christão que Deus trazia a sua
Egreja, era um sacerdote, um fundador de uma Congre­
gação religiosa e um apostolo. Escapo ás garras de uma
cruel enfermidade, a epilepsia, que devia reduzil-o a
uma impotência absoluta, mal acabara de receber o sa­
cerdócio, logo se tornou o funclador e o superior geral
das Congregações reunidas do Espirito Sancto e do Co­
ração Immaculado de Maria para o apostolado dos ne­
gros. Consumido em poucos annos, percorreu uma car­
reira immensa, brilhou com o brilho de heróicas virtu­
des. O processo de sua beatificação está já instruido.
Resurreição!
Poderiamos multiplicar ao infinito esta gloriosa
lista de resuscitados por Jesus Christo, conquistas glo­
riosas de sua graça, milagres vivos de sua omnipotencia
sempre subsistentes.
Mgr. Boess, o sabio e piedoso bispo de Strasbourg,
teve a feliz ideia de escrever a historia dos principaes
convertidos da Allemanha depois da Reforma até nossos
dias. Seus doze volumes, nos quaes figuram e resplan­
decem muitos milhares de resuscitados de Jesus Christo,
são um monumento incomparável levantado á gloria da
sancta Egreja catholica, apostólica, romana. Ah! se
também se escrevesse a historia dos prevertidos, por
bem pouco conhecidos, que passaram para os bandos
do scisma e da heresia, como seria eloquente o con­
traste ? Alem a resurreição com todos os seus fulgores;
aqui a ruina com suas torturas e ignomínias.
Os sa n c t o s e a s s a n c t a s . —Os resuscitados de Jesus
Christo são finalmente essa multidão innumeravel de
TERCEIRO ESPLERDOR DA FÉ 111

sanctos e de sanctas, generosos vencedores do mundo,


do inferno e de si mesmos, que sustentando palmas naa
mãos e diademas nas frontes, resplandecentes de luz di­
vina e inebriados de delicias immortaes, celebram por
hymnos de acções de graças a gloria de seu triumpha-
dor e os ineffaveis benefícios de seu Salvador. Gomo são
grandes! como fazem honra a Jesus Christo e a sua
sancta Egreja, esses apostolos que'perlustraram o uni­
verso, subjugando pela íorça da Verdade, pelo ascen­
dente de um poder evidentemente sobrenatural os sá­
bios e os ignorantes, os philosophos e seus discipulos,
os povos e os Cesares! *
Como são grandes esses prophetas inspirados do
ceo que predisseram com muitos séculos de antecedeu-
cia essa espantosa revolução! Como são grandes esses
martyres, cuja força e coragem nada pôde abater; esses
confessores de heróicas virtudes e de caridade ardente;
essas Virgens, lirios radiantes surgindo u'entre os espi­
nhos de todos os vicios, etc., todos esses sanctos, n’uma
palavra que bem melhor que o firmamento, proclamam
a gloria de Deus! que na Lnguagem energica de S.
Paulo venceram pela fé os reinos, practicaram a justi­
ça, conquistaram promessas, fecharam as fauces dos
liões, extinguirmn a impetuosidade das chamas, esca­
param ao no da espada, triumpharam da enfermidade,
naurindo sua força na fraqueza, e pondo em desordem
o campo dos infiéis, etc. Resurreição!
únuvi

CAPITULO OITAYO
Pl Lí oí l í (CUf í j 8 f ) t í t i > h o j j í u n - t , ,

Qttarto Esplendor da Fé

Este menino será posto corno alvo de còntradicção. (Luc.


cap. n, t 34.) O menino, tão bello, tão meigo, dé quem
o velho Simeão disse que seria posto em alvo de coii-
tradicção, siguum ctll contradicetur, é aquelle, cujo nas­
cimento os anjos annunciavam entoándd: P ax h o m in i -
BUS BONyE VOLUNTATIS.
Condensará todo o seu ensino n’esta unica recoin-
mendação:
Aprendei dè niitn cfnt sóu manso e humilde de coração.
Sua vida poderá escrever-se n’estás düàs únicas pa­
lavras: Passou fazendo ò bem. Sua voz não retihia estentò-
rosa nas praças publicas; não acabava de partir a canna
a meio quebrada; não extinguia a mecha que fumegava
ainda! As creanças apertavam-se em redor d’elle, e a
multidão seguia-o longe ao deserto, attrabida pelos en­
cantos de sua conversação e a sublimidade de sua dou-
ctrina e o resplendor de seus milagres! Salvador en­
viado de Deus, luz que se ha de revelar ás nações, cor­
deiro immolado pelos peccados do mundo, deveria ser
adorado, amado, bemdito de todos, e eis que Simeão

IK
QUARTO ESPLENDOR DA FÉ 113

prophetiza que seria alvo da contradieção em toda a


força da expressão, alvo da contradieção universal, in­
cessante, encarniçada, excessiva! Bis a prophecia, eis o
oráculo! B sua realisação enche também o mundo, o
tempo e o espaço. Esplendor!
Quando nasce, não ha para elle logar nas hospeda­
rias de Belem; nasce pois n’um estábulo abandonado.
Herodes, advertido já tarde de seu nascimento, resolve
mandal-o matar, e eil-o condemnado a fugir para o
Egypto. De volta do exilio, Archelau ameaça ainda seus
dias, terá de ir viver para Nazareth, na obscuridade,
na pobreza e no trabalho. Durante sua vida publica,
soffre sêde, fome, fadiga, e não tem onde repousar a
cabeça. Será sem cessar contradicto! Se expulsa os de­
mônios, fal-o sem nome de Belzebuth; se opera mila­
gres, é por intervenção do diabo, pois é peccador!
Armam-lhe laços, conspiram contra elle. prepa­
ram-lhe a morte, dizendo que é bom que um homem
morra pelo povo; pronuncia-se contra elle a grande
excommunhão, e expulsam-no da synagoga; está redu­
zido a não poder andar em publico, a occultar-se, a fugir
para o deserto. A hora das ultimas contradicções bateu-
Seus inimigos resolveram prendel-o; ajustam com Judas
o preço da traição; Judas entrega-o por um osculo; é
preso, cercam-lhe a garganta com uma corda, é ar­
rastado pelas ruas de Jerusalem, coberto de salivaa
declarado blasphemador, insultado, contundido, arras­
tado, abandonado por seus apostolos, renegado por S
Pedro, revestido da túnica dos loucos, flagellado, co­
roado de espinhos, apupado como rei de theatro, posto
em parallelo com Barrabás, rejeitado, condemnado á
morte, carregado com uma cruz, arrastado ao suppli-
cio, crucificado, ultrajado, blasphemado, maldito. Morre
dando um grande grito! Um soldado romano vara-lhe
o coração com uma lança, e guardas são postados
em seu tumulo para que seus discípulos não pudessem
VOL. IV 15
114 OS ESPLENDOKES DA FÉ

furtar seu corpo, e assim fizessem crer em sua resurrei-


ção. Contradicção!
Kesuscitado e ascendido ao ceo, será como nunca,
alvo da contradicçao, não em sua pessoa physicamente
inviolável, mas na pessoa do1; seus.
Prometera-lhes que seriam aborrecidos por causa
de seu nome, e de feito o odio desencadeia-se primei­
ramente contra os Apostolos e os christãos do seu tem­
po, expulsos também das synagogas, lançados em pri­
são, martyrisados como Estevão, Thyago o Menor, etc.
Quando desesperados e piivados de todo o poder,
os judeus estiverem na impossibilidade de cevar seu
odio contra os christãos, os imperadores romanos serão
a seu turno instrumentos implacáveis de contradicção.
Nero, Domiciano, Trajano, Marco Aurélio, Severo, Ma-
ximino e Juliano o Apóstata, ordenaram perseguições
geraes, em que pereceram milhões de christãos.
Era a Jesus Christo que se contradizia em seus
martyres, pois a primeira intimação que lhes faziam
era de o renegar, de calcar aos pés sua cruz, e de sa­
crificar aos idolos que a pregação do Evangelho deitou
por terra.
Quando os perseguidores desappareceram, todos ou •
quasi todos, victimas memoráveis da justiça divina, os
executores do oráculo sagrado da contradicção hão de
ser os hereges e os scismaticos! Disputarão a Jesus
Christo todo o seu ser: sua divindade que elle como
que aniquilou por nosso amor, sua sacrosancta humani­
dade de que se revestiu para ser nossa victima, sua
alma que foi triste até á morte, sua vontade que sacri­
ficou á de seu Pai, sua liberdade que abdicou, seu corpo
que entregou ao supplicio por nós, etc., etc. •
Ario contradirá a divindade do Verbo, sustentando
que o Filho de Deus não é egual em tudo, nem consub­
stanciai a seu Pai. Macedonio negará a divindade do
Espirito Sancto, contradirá a Incarnação do Verbo di­
QUARTO ESPLENDOR DA FÉ 115

vino em Maria pela virtude do Espirito Sancto. Pela-


gio negará o peccado original, contradirá a necessidade
da graça e da Redempção por Jesus Christo.
Os semi-pelagianos contradirão também o divino
Redemptor, afíirmando que o homem pode merecer a
graça por um principio de fé e por um bom movimento
da natureza: Nestorio contradirá a divindade do Pi­
lho do homem, afíirmando que Maria, sua mãe, não
pode ser chamada Mãe de Deus, distinguindo assim a
pessoa de Jesus Christo da pessoa do Yerbo divino. Eu-
tyches contradirá Jesus Christo, negando a unidadé das
pessoas e a dualidade das naturezas, afíirmando que de­
pois da Incarnação não ha em Jesus Christo mais do
que uma natureza. Os monothelitas * contradirão Je ­
sus Christo, recusando-lhe duas vontades e duas opera­
ções, divina e humana.
Os iconoclastas contradirão a Jesus Christo, decla­
rando guerra a suas imagens, ás imagens de sua divina
Mãe e de seus sanctos. Phocio contradirá Jesus Christo
negando que o Espirito Sancto proceda do Pai e do
Filho, e seperando-se de sua sancta Egreja. Beranger
disputará a Jesus Christo sua presença na Sua sagrada
. Eucharistia, negando a transubstanciação. Wiclef ata­
cará Jesus Christo na auctoridade do Pontifice romano,
que não será o chefe da Egreja. Lutheio contradirá as
doutrinas da Revelação sobre o peccado original, a jus­
tificação, os sacramentos, as indulgências, o primado da
Santa Sé, o Purgatório, o livre arbítrio, o mérito das
boas obras, etc., e porá em tumulto toda a Egreja de
Jesus Christo etc. Calvino, fazendo peior do que Lu-
thero, rejeitará a invocação dos sanctos, o papa, os
bispos, os padres, as festas, as ceremonias sagradas-
Henrique v u i contradirá Jesus Christo, declarando-se

* O texto traz por erro «monotheistas».


N. do T.
116 OS ESPLENDORES DA FÉ

chefe da Egreja, e passando rapidamente do scisma á


heresia protestante. Baio contradirá Jesus Christo por
numerosos erros e palmares sobre a graça, o livre arbi-
trio, a justificação, o peccado original. Jansenio ousará
affirmar que Jesus Christo não morreu por todos os ho­
mens: que Deus recusa a graça não só aos peccadores,
mas até aos justos; que os sacramentos não devem ser
administrados senão aos sanctos.
Depois dos reformadores que dispuzeram os espí­
ritos para a insubordinação e para a incredulidade vem
os socinianos que rejeitam de seu symbolo todos os
dogmas e todos os mysterios inaccessiveis á razão: a
SS. Trindade, a divindade de Jesus Christo, a Incarna.
ção, a satisfação do divino Salvador, os effeitos dos Sa­
cramentos, a operação da graça, etc., que affirmam
n’uma palavra que toda a Bedempção consiste em Je ­
sus Christo nos ter dado licções e exemplos de sancti-
dade, e que morreu para sellar sua douctrina.
Depois das negações do socinianismo vieram os
furores da philosophia do xvm século materialista e
athea.
O chefe do partido, Voltaire, tinha havia muito
feito juramento de votar sua vida á ruina da Egreja e .
de toda a religião revelada. Obstinando-se em ver no
christianismo uma invenção humana, proposta pelos
padres, imposta pelos reis, chega a ter-lhe horror; de­
signa-o com o nome de infame; d’or’avante seu grito
de guerra será este: «Esmagai o infame! O que mais
me interessa é o invilecimento do infame... Empenha1
todos os irmãos em perseguir o infame, de viva voz e
por esciipto, sem lhe dar um instante de tregoas.. •»
Era um exercito que aguerria contra Jesus Christo
e a E greja... «Formai um corpo, agrupai-vos, e sereis
os senhores...» E esta matilha encheu de seus uivos in-
fernaes a Encyclopedia universal, monumento immenso de
falsa philosophia, de uma sciencia insurgida contra a
QUARTO ESPLENDOR DA FÉ 117

fé, de historia tecida de fabulas e de mentiras, etc,


etc.
Depois da philosophia, e por ella chocada, veiu a
Revolução franceza, que passou das palavras a actos,
das ameaças a vias de facto. Depois de ter semeado a
perturbação e a divisão na Egreja, supprimido todas as
ordens religiosas, laicisado e algemado o clero, pros­
creveu a religião christã e proclamou o culto da Razão-
Jesus Christo foi expulso de seu tabernaculo e de seu
tem plo! E vis cortezãs, fazendo-se passar como rainhas
do Deus-razão, receberam o incenso das turbas.
A contradicção íoi como um mar immenso; engu-
liu tudo.
Até então pelo menos tinham deixado a Jesus
Christo seu ser, sua realidade histórica.
Mas eis que chega a critica moderna para lhe dis­
putar as acções de sua vida, as palavras de sua bocca,
sua personalidade, sua existência n’uma palavra. Em sua
Vida de Jesus que teve um tão fatal retinimento, o dou­
tor Strauss chega a dizer: «O sujeito dos attributos
que o Evangelho e a Egreja concedeu a Jesus Christo,
não é um individuo, mas uma ideia! Em um indiri-
duo, em um Deus-homem, certos attributos pugnam
entre si. Na ideia ou no espaço concordam. A humani­
dade é a reunião de duas naturezas, o Deus feito homem, o
infinito descendo á condição de finito, e o espirito finito que se
reconta de sua infinidade. Ella é o filho do Pai invisível e da
mãe visivel, do espirito e da natureza.. . Ella é o thauma-
turgo... Ella é imperecivel... Ella é aquelle que morre, que
resuscita e sobe ao ceo. Christo é a Humanidade. E esta
abstracção sacrílega, insensata, achou echo em grande
numero de espíritos contradictores de Jesus Christo.
A contradicção do sr. Renan é ainda mais revol­
tante : Compraz-se em despojar o divino Salvador de
todo o seu brilho real, de todo o seu prestigio sobrena­
tural e divino para o fazer passar por um personagem
118 OS ESPLENDORES DA FÉ

vulgarissimo, ou melhor «pelo verme dos prophetas!»


A origem de sua familia é desconhecida... Seu pai e
sua mãe eram de condição mediocre... Era o mais ve­
lho de uma numerosa familia, mas seus irmãos e irmãs
detestaram-no sem pre... Estava em revolta continua
contra a auctoridade paterna... Calcou aos pés tudo
o que ha de mais caro ao homem, o sangue, o amor, a
p a tria ... Com uma duzia de pescadores e algumas mu­
lheres, que disputavam entre si a honra de cuidar de
sua pessoa, entre outras Maria de Magdalo, pessoa
muito exaltada e padecendo de nervos, percorreu a
Galileia... Não se esquivava á alegria, e não deixava
de comparecer nos divertimentos das bodas... Sua
vida era uma festa perpetua... Affectava rodear-se de
pessoas de vida equivoca, arriscando-se a encontrar más
companhias em casas de fama suspeita... Nada de es­
candaloso, mas um profundo horror pelos devotos.. .
Como principio social o communismo com seus acces-
sorios, o odio do rico, a destruição da propriedade. . .
Nada de novo em douctrina... Suas continuas affir-
mações a seu respeito contem o quer que seja de
fastidioso... Nunca operou milagres. .. Era um exor*
cista esperto em todos os segredos da arte, um tanto
feiticeiro, um pouco magnetisador, um tanto espiritis-
t a ... Impuzeram-lhe a reputação de thaumaturgo•..
Os actos de illusão e de loucura tinham grande parte
em sua vida.
Provinciano admirado dos provincianos, foi mal visto
da aristocracia de Jerusalem ... Dizia-se altamente o
Filho de Deus; era porem um equivoco... Era pan-
theista, mas sem o saber---- No ultimo periodo de sua
vida, excedeu toda a medida---- Fez crer que era a
elle que comiam e bebiam---- Gigante cahido, queria
que só para elle se existisse, só a elle se am asse....
Vendo em sua própria morte o meio de fundar seu rei­
no, concebeu pensadamente o proposito de se fazer ma­
QUARTO ESPLENDOR DA FÉ 119

t a r .... Desesperançado, impellido até ás ultimas, não


se pertencendo mais a si mesmo, prestou-se a uma scena
miserável (a fingida resurreição de Lazaro) que o arras­
tou ao supplicio.. • Tudo se passou com toda a lealda­
de .. Um grande sentimento de ordem e de policia con­
servadora presidiu a todas as medidas adoptadas... Je ­
sus foi pregado na cruz... Forcejaram por estabelecer a
fé em sua resurreição... A forte imaginação de Maria de
Magdalo desempenhou n’esta conjunctura um papel ca­
pital. Poder divino do amor, momentos sagrados, em
que a paixão de uma halucinada dá n o mundo um
Deus resuscitado!
Ora eis aqui o Chricto do sr. R enan... J á não é
um rei, é um personagem de theatro. Et procidentes ado-
raverunt eum. Isto não são processos humanos, são pro­
cessos satanicos. Estamos em pleno sobrenatural, e nada
demonstra com mais força a divindade de Jesus Christo*
Esplendor! A contradicção ainda não fica por aqui. Do
odio hypoerita devia passar ao motejo e ao desdem.
Um litterato conhecido, membro da Assembléia legis­
lativa, cantou esta loa abominável no natal.. . «Era
realmente um pasmoso sonhador.... Não distinguindo
muito entre o meu e o teu .. Não trabalhando para
v iv er.... Mendicante, um admiravel vagabundo....
Infelizmente Deus, o pai desconhecido, dotara-o da fa­
culdade perigosa da imaginação... O filho devia com-
metter terriveis inconveniências contra as cousas e as
pessoas estabelecidas.. Isto foi tão longe, que a sa-
christia, a bolsa, o governo... o apanharam pelo gas-
ganete como a simples jornalista e o mataram---- As
creanças podem celebrar o nascimento de um tal sim­
plório. Reparai nas consequências... A fé está morta,
a hypocrisia alastra.. ■ Pudor de Tartufo perante a
verdade n ú a!... Compromissos, mentiras, perversão
de entendimento, gangrena de caracter! Em logar de
Jesus os Jesuítas... Mil e oitocentos annos perdidos...
120 OS ESPLENDORES DA FÉ

Não seria melhor que uma phtysica levasse este Salva­


dor, estendendo-o sobre a palha de seu estábulo, e as­
sim ficaria o mundo livre d’elle? Pobre grande coração,
se houvesse podido prever o que se ia fazer d’elle, com
que pressa, antes de ter abrido a bocca se teria atirado
ao Jordão com uma pedra ao pescoço!» Henrique Ro-
chefort foi mais longe ainda na expressão fria do des-
dem : «Se o rapaz quizesse aplicar-se um |pouco, te­
ria sahido mestre na arte de carpinteiro ; mas seus pais
não podiam sustental-o; andava sempre por fóra;
quando chegava a trabalhar meio dia, era a preço dos
maiores esforços; despediam-no de todas as ofhcinas. E
todavia não era a intelligencia que lhe faltava para seu
m ister... Quando lhe apresentaram a cruz, onde ia
morrer, a primeira cousa que disse foi: Que mal ama­
nhada está! deve ser obra de F .. >
O abysmo chama outro abysmo.
Eis enfim a contradicção impellida ao abominável,
ao horrível.
No reino christianissimo, a 1 de setembro, um jor­
nal pôde dizer impunemente a proposito do processo
intentado ao sr. Gfambetta: « .... Isto já data de ha mil
oitocentos annos; um revolucionário de nome Jesus
Christo teve seus dares e tomares com a justiça!... a
ponto que o infeliz thaumaturgo pereceu sobre o pati-
bulo da infamia... JDepois d’isso tem passado por DeuS)
graças aos archivos dos processos judiciários, que tão
caro lhe custaram como homem !... »
No dia da meia quaresma (15 de março de 1877) a
liga das tabernas pedintes, organisada em procissão car­
navalesca, passeou nas ruas durante muitas horas, sob
a protecção da auctoridade municipal uma imagem do
Sagrado Coração com ©sta inscripção : «Eis aquelle que
tanto amou as raparigas!»
Seja pois dicto mais uma vez:
Ç.JARTO ESPLENDOR DA FÉ 121

tomado proporções enormes. Humanamente falando,


er.la contradicção immensa, inexorável devia parecer in­
crível e impossível, visto Aquelle que é objecto d’ella
se offerecer ao mundo como sua salvação, sua luz, sua
vida, sua verdade, sua via, o legislador supremo do ver­
dadeiro, do bom e do bello! E como não obstante se dá,
colloca-nos em face do sobrenatural e do divino em toda
a sua expressão. O espirito que este Esplendor da fé
não offuscar e não vencer, será a seu turno um prodí­
gio de cegueira. Este Menino será um signa.1 de contra­
dicção.

VOC.. IV 16
C A P IT U L O N O N O

Qninto Esplendor da Fé

Vinde apoz de mim, e far-vos-hei pescadores de homens.


(S. Matheus, cap. rv, v. 18.) Jesus passando ao longo da
praia do mar de Oalileia, viu Simão e André, seu ir­
mão, que lançavam as redes ao mar, pois eram pesca­
dores; e disse-lhes: Vinde apoz de mim, e far-vos-hei
pescadores de homens... E largando as redes, segui­
ram-no. «Eu vos farei pescadores de homens!» Isto é pesca­
dores de almas!
Que singulares palavras dirigidas a pobres barquei­
ros! Nunca o mundo ouvira cousa assim! Eu vos farei
pescadores de homens! Quem, se não fora Deus, teria a
pretenção extraordinária de tomar este compromisso
solemne ?
E’ um oráculo patente, uma prophecia maravilho­
sa ! O oráculo traduziu-se n’uma realidade immensa! A
prophecia cumpriu-se! O compromisso teve seu effeito!
Desde o dia, em que semilhantes palavras foram
pronunciadas, o mundo tem estado notoriamente cheio
de pescadores de homens! Os apostolos e os successo-
res dos apostolos são por profissão pescadores de ho-
QUINTO ESPLENDOR DA FÉ 123

mens! O facto de haverem apanhado em suas redes


multidões de homens e de povos, é patente. Eis-nos
pois ainda em presença de uma prophecia e de um mi­
lagre esplendidos. '
Antes de subir ao ceo, Jesus Christo disse a seus
apostolos: Ide, ensinai todas as nações, baptizai-as em
nome do Padre, do Pilho e do Espirito Sancto; ensi­
nai-lhes a observar meus mandamentos! E logo, mas
depois de haverem recebido o Espirito Sancto, estes
pescadores de homens se espalham por toda a parte
prégando e convertendo, i é, effectuando por toda a
parte pescas miraculosas de homens.
No proprio dia do Pentecostes e no seguinte, Pe­
dro pescou oito mil grandes peixes-homens. Em segui­
da os apostolos repartiram entre si o universo, e envol­
veram-no todo nas malhas de suas redes. Simão Pedro
pescou no Ponto, na Bithynia, na Cappadocia, na Asia
Menor, em Antiochia, e em Roma.
André nos Scythas, na Grécia e no Epiro; Thyago
o Maior na Judêa, e provavelmente nas Gallias e na
Hespanha. S. João na Asia Menor; Philippe na alta
Asia; Bartholomeu na Alta Armênia; Matheus na Col-
chida; Thomé nos Parthos, na índia e porventura na
China; Thyago o Menor em Jerusalem; Simão na Li-
bia; Judas na Mesopotamia, etc. Paulo aggregado aos
apostolos por uma vocação directa lançou as redes em
setenta e sete regiões ou cidades; a simples enumera­
ção dos logares de seu apostolado é uma confirmação
brilhante do divino oráculo: «Far-vos-hei pescadores de
homens.»
A pesca das almas faz-se em primeiro logar dire-
ctamente pelas missões apostólicas propriamente di­
etas ; em segundo logar no púlpito sagrado pela préga-
ção; em terceiro logar no tribunal da penitencia pela
confissão; todos estão auctorisados a dizer a estes po­
vos, como S. Paulo aos Corinthios: Yós sois a corôa do
124 OS ESPLENDORES DA FÉ

meu apostolado; íui eu que vos gerei, sois minha obra.


minha gloria, minha consolação, minha alegria.
I. d* missões apostólicas.—E ’ Jesus Salvador do
mundo continuado atravez do espaço e do tempo; é o
reino de Deus estabelecendo-se na terra pela conquista
das almas para a bemaventurança eterna.
A historia da Egreja não é outra cousa do que a
historia das missões; não tem cessado, nem cessarão
até ao hm dos tempos.
A lista por ordem chronologica e por ordem al-
phabetica das principaes missões, occupa á sua parte
vinte e seis grandes columnas da Taboa das matérias
da Historia universal da Egreja Catholica do abbade Rohr-
bacher, sétima edição, 1877. Vai em desoito séculos
que o mundo inteiro tem sido continuamente sulcado
em todos os sentidos por gloriosos pescadores e caça­
dores de homens ou de almas. E não são pescadores de
homens isolados, são famílias inteiras, gerações de pes­
cadores de homens, que se succedem e se dedicam in­
cessantemente á conquista das almas. Todos os annos
numerosos missionários partem de Italia, da França, da
Bélgica, da Irlanda, de Roma, de Glenova, de Milão,
de Londres, das casas dos. Jesuítas, dos Franciscanos,
dos Dominicanos, dos Lazaristas, dos Irmãos da Ordem
3.a de S. Francisco, dos Maristas, dos Padres do Espirito
Sancto, dos Oblatos, etc., etc. Partem para a África:
Algeria, Sahará, Marrocos, Tunisia, Fezzan, o Senegal,
a G-uiné, o alto e baixo Egypto, a Abyssinia, o paiz
dos Grallas e dos Sahos, Zanzibar, a Senegambia, a Ni-
gricia, etc. Partem! para a Asia: a Syria, a Armênia,
a Mesopotamia, o Kurdistan, as margens do Tigre e
do Euphrates, as vertentes do Libano, do Oaucaso, do
Thibet, do Himalaya, a Conchinchina, a China, o Japão,
a Corêa, a Birmania, o reino de Sião, o Tonkin, o Cam-
bodge, a índia transgangetica e cisgangetica, a Ocea­
QUINTO ESPLENDOR DA FÉ 125

nia, a Australia, etc., etc. Partem ! para a America desde


a Califórnia até ao Labrador, etc., etc.
E em que condições verdadeiramente sobrenatu-
raes e divinas, exercitam seu ministério evangélico!
Condições de desinteresse! Como S. Paulo, o modelo
dos apostoios, ertão auctorisados a dizer: «Jamais cu-
bicei o ouro e a prata íosse de quem fosse; quanto ás
cousas de que eu e aquelles que estão comigo precisamos,
com estas mãos as tenho obtido; tenho-vos mostrado em
tudo que é trabalhando assim que devemos sustentar
os indigentes, e ter presente as palavras d’aquelle que
disse: é mais feliz o que dá do que aquelle que rece­
be!» Condições de intrepidez! «Parto não sabendo o
que está para me acontecer, a não ser que o Espirito
Sancto me attesta que tribulações e cadeias me aguar­
dam ; nenhuma d’estas cousas receio; não reputo minha
vida mais preciosa do que a mim, com tanto que con­
sume minha carreira e o ministério que recebi do Se­
nhor Jesus, de dar testimunho do Evangelho da graça
de Deus!» Condições de dedicação sem limites! «Li­
vre a respeito de todos, fiz-me escravo de todos para
ganhar maior numero d’elles. Eiz-me judeu com os ju­
deus para ganhar os judeus;-., como se fora sem lei
com aquelles que não tinham a lei, afim de ganhar
aquelles qu« estavam sem a le i;... fraco com os fra.
cos para ganhar os fracos; ... tudo para todos para
ganhar a todos!»
Aqui está realmente o pescador de homens evan­
gélico, primitivo e moderno, dobrando-se a todas as
necessidades, affrontando todos os perigos, tomando
todas as formas, usando de todas as astúcias sanctas, a
exemplo do pescador e do caçador que aspira anciosa-
mente apcderar-se de sua presa! Mas para maior glo­
ria de Deus e pela salvação das almas!
Os gelos do polo ou os fogos intertropicaes não
são capazes de lhe retardar o passo. Yive com os Es­
126 OS ESPLENDORES DA FÉ

quimós e os Groenlandezes em seu odre de pelle de


vacca marinha, transportado em trenós sobre gelos
eternos por cães ou rennas, rezando seu breviario aos
clarões das auroras boreaes, alimentando-se de oleo
de baleia.
Percorre a solidão montado no dromedário do Arabe
ou segue a pé o Cafre atravez de desertos abrazados.
Na índia, no Madure, condemnar-se-ha á vida mortifi-
cada e monotona dos bonzos; será paria, proscripto,
maldito, privando-se durante longos annos de todo o
commercio, mesmo secreto, com aquelles de seus com­
panheiros que evangelisam as castas nobres! Na China,
adoptará o vestuário dos lettrados, dará licções de geo­
metria; será presidente do tribunal das mathematicas;
armar-se-ha do telescópio e do compasso; desenrolará
as cartas, e fará girar os globos celeste e terrestre; ini­
ciará os mandarins no verdadeiro çurso dos astros para
lhes ensinar também o verdadeiro nome d’aquelle que
os dirige em suas órbitas, inspirando-lhes ao mesmo
tempo uma veneração profunda por seu Deus e uma
alta estima pela França! No Paraguay e no Brazil sobe
os grandes rios e penetra nas florestas com o breviario
na mão esquerda, uma grande cruz de madeira na di­
reita, sem outras provisões mais do que sua confiança
em Deus; atravessando florestas virgens, caminhando
em terrenos paludosos, com agua até á cintura, ou tre­
pando rochedos escarpados: espreitando os antros e os
precipicios com receio de lá encontrar em logar de ho­
mens serpentes ou animaes ferozes! Quando não conse­
gue apanhar o selvagem que foge sempre, o caçador de
homens planta sua cruz em um logar descoberto, e vai
occultar-se no mais cerrado da floresta; os índios apro­
ximam-se a pouco e pouco; sahindo então de súbito de
sua emboscada, e aproveitando-se da surpreza, exhor-
ta-os a deixar uma vida miserável para gosarem das
doçuras da sociedade. Muitas vezes embarcando n’uma
q u in t o e s p l e n d o r da fé 127

piroga com seus jovens cathecumenos, navega pelos


rios cantando cânticos, que os neophytos repetem, como
avesinhas de gaiola para attrahirem as aves selvagens.
Os índios deixam-se enfim cahir n’este laço, descem das
montanhas para a margem; para melhor ouvirem, mui­
tos d’elles lançam-se ao rio e seguem o barco encanta­
do. Os pescadores de homens conseguirão d’est’arte for­
mar em poucos annos trinta aldeias ou ReducçÕes, es-
pecies de republicas christãs, cujos habitantes são cul­
tivadores sem escravidão e guerreiros sem ferocidade.
«No seio d’estas povoações numerosas compostas de
índios inclinados a todos os vicios, reinava, diz uma
testimunha ocular, o bispo de Buenos-Ayres, uma tão
grande innocencia, que eu não creio que lá se commet-
tesse um unico peccado m ortal...» Era o christianismo
no máximo da felicidade! Na Gluyana, o missionário en­
terrava-se em lagoas doentias; tornava-se amavel aos
índios á força de se consagrar ao allivio de suas dores;
conseguia d’elles alguns filhos que educava no conhe­
cimento da Religião ohristã; de volta ás florestas, es­
tes jovens, apostolos improvisados, prégavam o Evan­
gelho a seus velhos parentes que facilmente se deixa­
vam persuadir. Breve chegava o momento de fundar
uma aldeia com a respectiva capella! Certa manhã, diz
Chateaubriand, em uma floresta solitaria do Canadá,
caminhava de meu vagar; vi vir para mim um grande
velho de barba branca, vestido de longa sotaina, lendo
attentamente em um livro, e caminhando apoiado em
um pau. Eis a vida que levava o missionário.
Ora seguia os selvagens nas caçadas que duravam
annos... ora vagueava ao grado e capricho de seus
neophytos, que semelhantes a creanças não podiam re­
sistir a um movimento de sua imaginação e de seus de­
sejos. .. julgando-se largamente recompensado se ha­
via por seus longos soffrimentos conquistado uma alma
para Deus, aberto o ceo a alguma creança, alliviado
128 OS ESPLENDORES DA FÉ

algum enfermo, enxugado uma lagrima. 0 ceo, tocado


de suas virtudes, concedia-lhe por vezes a palma do
martyrio, que tanto desejava.
Nos mares do Levante o missionário deixava-se
encerrar nos porões das sultanas para ouvir toda a
noite as confissões dos marinheiros, dizer-lhes a missa,
e dar-lhes a communhão ao amanhecer.
Muitos eram assaltados pela peste, e outros mor­
riam antes de lá terem sahido! Um jesuita que ha pou­
cos annos sollicitara a honra de se dedicar ao serviço
espiritual dos forçados, debaixo do clima mortífero da
Gayana franceza, escreveu a seu superior: «O posto
que ha quatro annos occupo é realmente esmagador;
sinto-me por vezes embrutecido com o trabalho. Ter
sempre deante dos olhos um milhar de grandes crimi­
nosos a humanisar, a esclarecer, a converter, é um
fardo que esmaga! Minha missão porem é tão bella!
Sobre os oitocentos homens da minha penitenciaria
seiscentos e trinta commungaram pela paschoa apezar
das injurias e dos sarcasmos dos empedernidos !>
Darei um rápido esboço da vida de alguns dos pes­
cadores de homens mais famosos.
S. Patrício, apostolo da Irlanda; S. Agostinho,
apostolo da Inglaterra; S. Eloi, apostolo dos Flamen­
gos e dos Frisões; S. Bonifácio, apostolo da Allema-
nha; S. Anschario, apostolo da Suécia, da Groenlândia
e da Irlandia; S. Adalberto, apostolo da Polonia e da
Prússia; S. Estevão, rei e apostolo da Hungria; S. Do­
mingos, apostolo dos Albigenses, fundador da Ordem
dos frades prégadores; S. Catharina de Senna, a
grande operadora de conversões, de quem os papas fi­
zeram seu legado; S. Vicente Ferrer, que arrebatava
as multidões apoz de si; S. Francisco Xavier, apostolo
das índias e do Japão, que levou a luz da fé a cin-
coenta e dois reinos, e arvorou a cruz sobre cinco mil
legoas de paiz. que baptizou por suas mãos perto de
QUINTO ESPLENDOR DA FÉ 129

um milhão e tanto de musulmanos, como de idolatras,


que trouxe á Egreja mais súbditos novos, do que os ce­
lebres heresiarchas do seu tempo fizeram desertores! S.
Francisco de Sales, o apostolo do Chablais, que foi doce
e humilde de coração, de quem o cardeal Duperron di­
zia: «Estou seguro de convencer os calvinistas; mas
convertel-os é segredo que Deus reservou para o sr. de
G-enebra.» S. João Francisco Regis, apostolo do Velay,
a quem nada se punha deante em suas excursões evan­
gélicas, que expirando em plena missão, sobre seu
campo de batalha, dizia para o companheiro: «Ah meu
irmão, que ventura! Como eu morro contente !> Pedro
Claver, o apostolo, o pai ou antes o escravo dos escra­
vos, o escravo dos negros, aos quaes serviu quarenta
annos, e aos quaes á força de ternura e de affectuosas
licções. ensinava a ser puros, castos e sobrios. O padre
Anchieta, o apostolo do Brazil, denominado o novo
Adão, por causa da innocencia de sua vida e do poder
maravilhoso que exerceu sobre os elementos e sobre os
animaes. O reverendo padre Mannoir, apostolo da bai­
xa Bretanha, que deu em media dez missões por anno,
durante quarenta annos, e fundou essas casas abençoa­
das de retiros annuaes que perpetuam efficazmente seu
apostolado •..
Os pescadores de homens são em primeira plana
os missionários; ora quem diz missionário diz missão,
missão legitimamente dada, missão recebida, missão
cumprida. A fé, dizia S. Paulo, nasce do ouvido, fides ex
auditu; mas como hão de ouvir sem prégador do Evan­
gelho, quomodo audient sine praedicante ? E com que di­
reito prégarão, se não forem enviados, quomodo praedi-
cabunt nisi mittantur? Ora aquelle que envia, que é por
consequência o pescador de homens por excellencia, é
o Soberano Pontifiee, successor de S. Pedro. E ’ o Papa
de feito que hoje ainda, como ha mil e sete centos an­
nos, lança continuamente sua rede evangélica sobre to-
voL. iv 17
180 OS ESPLENDORES DA FÉ

dos os povos, do norte ao meio dia, do oriente ao occi-


dente. Como modelo d’e. tes pescadores supremos d’al-
mas lembrarei S. Gregorio o Grande!
II. A cadeira e a prégação ovangelica. —Os pescado-,
res de homens são em segunda plana os prégadores, os
oradores christãos. Sócrates erigia em principio que a
arte de persuadir ou a eloquência, só deve servir para
mover ao bem. para desviar do mal, e no caso em que
se tenha feito o mal, deve servir para que se accuse ao
juiz, afim de receber a legitima punição. O que em Só­
crates era apenas ideal, volveu-se no seio do catholicis­
mo uma realidade palpavel, de todos os tempos e de
todos os logares. O púlpito eatholico é não a tribuna
mas o throno, d’onde se faz ouvir incessantemente a
palavra de Deus viva, efficaz, mais penetrante que a es­
pada de dois gumes penetrando até á divisão d’alma e
do corpo, até ás junctas e ás medullas dos ossos, que
poe a descoberto os pensamentos e os desejos do cora­
ção. Assim é que a historia da egreja está cheia de por­
tentosos effeitos de salvação produzidos pela palavra
dos grandes mestres do púlpito christão, os Leão o
Grande, os Gregorio o Grande, os Basilio, os Gregorio
de Nazianzo, os João Chrysostomo, os Àmbrosio, os
Agostinho, os Pedro Chrysologo, os Thomaz d’Aquino,
os Boaventura, os Lejeune, os Bossuet, os Bourdaloue,
os Massillon, os Flechier, os Bridaine, os Bouregard, os
Maccarthy, os Lacordaire, os Kavignan, os Felix, os
Monsabré. E ’ do alto do púlpito christão, que a verdade
brilha, que a virtude enamora, que a graça commove
profundamente! Luz, amor, conversão! Eis os grandes
effeitos da eloquência inspirada por Deus. Darei aqui
apenas os nomes de alguns oradores dos mais celebres:.
S. João Chrysostomo ou Bocca de Ouro, Bossuet,
Bourdaloue, Bridaine, o padre de Bauregard, o padre
de Maccarthy, o padre de Bavignan.
3.* 0 Confessionário—Depois dos missionários e dos
QUINTO ESPLENDOR DA FÉ 131

prégadores vem os confessores, que são, rigorosamente


fallando, os pescadores de homens, práticos e positivos.
E ’ pela confissão que se acaba a pesca. O confessionário
é realmente a espera do caçador, a choupana do pes­
cador de homens. Cada um dos milhões de confessio­
nários da Egreja catholica é por conseguinte uma tes-
timunha visivel, eloquente, do oráculo: Vinde, apoz de
mim, far-vos-hei pescadores de homens! E porque é
sómente na Egreja catholica que se levantam os confes­
sionários, a Egreja catholica é a unica egreja do Deus
salvador, que constituiu seus apostolos pescadores de
homens. A confissão é por outra parte tão insupporta-
vel aos fieis e ao padre, que se não fora divinamente
instituida por Jesus Christo, teria sido impossível im-
pol-a.
Representai-vos, por exemplo, o confessor nas pro­
ximidades da Paschoa, do Natal ou de qualquer outra
grande festividade, durante certa missão ou mesmo em
exercicios espirituaes, na vespera de uma communhão
gerai, etc.! Vê-se na necessidade de ficar no seu posto
todo o dia e uma parte da noite sem poder mexer-se,
em uma attitude desageitada, o ouvido sempre á escuta,
e temendo não ouvir, etc.! o frio regela-o, o somno
apoquenta-o ; as exalações physicas e moraes são insup-
portaveis ! Sim, que maior martyr que o infeliz que ape­
nas pode sahir do confessionário para tomar um pouco
de descanso ou de alimento, e desempenhar as outras
funcções egualmente espinhosas do sancto ministério!
Ah! se não sentisse que foi Deus quem ali o collocou,
que Jesus Christo o postou ali para trazer ao redil as
ovelhas desgarradas de sua grey, teria desanimado seis-
centas vezes. Que admiráveis pescadores de homens não
são uns nobres e santos velhos, ambos assistentes do
Gleral da Companhia de Jesus, que na egreja do Gresú
em Roma ouviam vinte e quatro mil confissões de pe­
nitentes, vindos de todas as partes do mundo! E que
132 OS ESPLENDORES DA FÉ

peixes tão grandes eram os que vinham pegar nas li­


nhas dormentes sempre lançadas, ou ficar em ma­
lhas sem cessar armadas! Certo dia viram levantar-se
do confissionario do P.e itozaven o mais illustre doa
chimicos, o mais eminente dos physiologistas da nos­
sa Academia das sciencias! E estes dois sanctos jesuí­
tas, hoje de setenta e seis annos de edade, que em Pa­
ris ouvem um quatorze mil, o outro vinte e quatro mil
confissões por annos! Ambos, mas o segundo sobretudo
está de tal sorte familiarísado com as pescas miraculo­
sas das almas, que me dizia singelamente:
«Que um peccador, doente ou são, consinta em me
dar um dedo minimo, que eu o levarei ao ceo.» E o
venerável João Baptista Viannay, parocho d!Ars, ho­
mem simples, bom e sem artificio, confessor incompará­
vel, pescador de almas como nunca se viu, para quem
acudia de todos os pontos do horizonte uma multidão
avida dos benefícios, de que era o dispenseiro. Por mui­
to cedo que se levantasse, antes das tres horas, já lá es­
tavam os penitentes á sua espera á porta da egreja. Al­
guns chegavam a passar toda a noite n’essa espectativa
para estarem certos de serem attendidos. Quando en­
trava ou sahia da egreja, quando atravessava a praça,
todos se preciptavam para elle, para ouvirem sua voa
ou ao menos para lhe tocarem a humilde sotaina. Ah!
que emoção causa ainda hoje a vista d’este confessioná­
rio grosseiro e incommodo, onde tantos peccadores
ajoelharam, onde tantas lagrimas correram, onde tantas
alegrias, luzes e consolações se receberam!
Pescador de homens em suas missões, em suas pré-
gações, no confissionario, o apostolo catholico é ainda
pescador de homens na administracção dos outros sa­
cramentos, o baptismo, a confirmação, a sancta Eucha-
ristia, a ordem, o matrimônio, a extrema-uncção.
Mas em quanto que a Egreja catholica conta em
seu seio tantos pescadores de homens, o pescador de
QUINTO ESPLENDOR DA FÉ 133'

homens é desconhecido no seio do scisma ou da here­


sia. As missões protestantes datam de hontem, dos pri­
meiros annos de este século, e pode asseverar-se que
se a reforma, que aliás se proclama evangélica, pensou,
embora tão tarde em levar a Boa Nova ás nações in­
fiéis, foi mais por odio do catholicismo, do que por
zelo e charidade.
Uma vez resolvida esta propaganda, ou antes esta
exportação do christianismo evangélico, effectua-se a
grandes somm^s de sociedades numerosas, debaixo da
protecção dos governos, com a força, são directores,.
secretários, correspondentes, missionários ou antes emis­
sários viajantes de Biblias que não são a palavra de
Deus immaculada, e de tracts ou pequenos tratados de
moral seccos e sem uncção. Estas sociedades biblicas
apesar de rendas annuaes enormes, 25 milhões de li­
bras, apesar de seu exercito de cinco mil missionários,
e do milhão de Biblias ou de tracts que distribuem to­
dos os annos, de que nas índias fazem estatuas dos
deuses, e na China solas de sapatos, são absolutamente
estereis! Osannuncios das conversões são uma excepção
rara, rarissima, e ainda assim desmentidas por collegas
invejosos ou mais sinceros. O missionário ou antes o
commissario biblico não é pescador de almas, porque
não é enviado, porque não tem nem caracter, nem mis­
são divina, porque não vai á maneira dos apostolos
consoante a ordem de Jesus Christo, sem pau, sem
sacco, sem provisões, sem dinheiro. Recebe 6000 fran­
cos para si, 1000 francos para a mulher, 500 francos
para cada filho; aproveita-se da posição para fazer um
commercio vantajoso; aluga ou compra por baixo pre­
ço terras que explora ou que vende caríssimo.
Os gordos milhões das sociedades biblicas são o
ouro do pharizeu que dá por ostentação, e que recebe
n’este mundo a recompensa. Os magros milhões da As­
sociação para a propaganda são o obulo do pobre, que
134 OS ESPLENDORES DA FÉ

se multiplica até ao centuplo. As missões protestantes


são o máximo do poder humano com o minimo do ef-
feito divino. As missões catholicas são o minimo do po­
der humano com o máximo do effeito divino.
O ministro evangélico não é pescador de homens
no púlpito christão; sempre porque não é enviado, ou
porque é enviado por uma auctoridade humana e
usurpada. Sua palavra não tem razão de ser; os fieis
estão no direito de a discutir e de a recusar, invocan­
do o principio fundamental da reforma, que os torna
interpretes da sagrada Bscriptura e juizes supremos na
fé. Deputado pelo Cezar ou pelo povo, não é indepen­
dente ; tem interesses de familia a conciliar. E’ simples­
mente um homem vestido de preto que sobe á tribuna
todos os domingos para falar de cousas discutíveis. Sua
palavra não tem auctoridade, nem caracter sacramen­
tal. O protestantismo alem disso degradou a eloquên­
cia christã por uma linguagem baixa, trivial, de mau
gosto, linguagem empregada pelos primeiros reforma­
dores para se fazerem receber melhor do povo.
O ministro evangélico enfim não é pescador de al­
mas na administração dos sacramentos. O baptismo
não passa de uma ceremonia, uma simples aspersão de
agua lustrai; a confissão é abolida; a communhão rara,
a eucharistia não é mais do que um symbolo; a orde­
nação é mui provavelmente ou antes certamente nulla;
o casamento enfim é apenas um contracto natural.
Para elle, a unica condição de salvação é a fé, mesmo
sem o mérito das boas obras; sua religião é no fundo
o socinianismo; não se crê lá na divindade de Jesus
Christo; não pode pois haver para elle nem redem-
pção, nem conversão.
Em resumo: Jesus tomara o compromisso de fazer
dos apostolos e de seus successores verdadeiros pesca­
dores de homens.
A promessa foi cumprida perante o univrseo in-
QUINTO ESPLENDOR DA FÉ 135
teirol O verdadeiro typo dos pescadores de homens
existe em grande numero! existe no seio da Egreja ca-
tholica, apostólica, romana, e em mais parte alguma!
Logo, porque o oráculo, aliás incrível e estranho, se
tornou uma realidade immensa, Jesus Christo é Deus e
a Egreja catholica é divina!
Assignalemos um facto que não tem sido sufíicien-
temente notado: em França e fóra d’ella o pescador de
homens tem muitas vezes deixado o seu nome no cen­
tro do seu apostolado, ou no logar de seu martyrio, de
forma que o cumprimento do oráculo divino está mil
vezes monumentalisado! « Vinde apoz de mim, far-vos-
hei pescadores de homens!
CAPITULO DÉCIMO

Sexto Esplendor da Fé

Sêde perfeitos como vosso Pai celestial í perfeito (Math.


v, 48.) Ao mesmo tempo que são um preceito ou um
conselho, estas palavras são também uma prophecia
Jesus Christo de facto não daria a seus discípulos pre­
ceitos ou conselhos evangélicos, se' taes preceitos ou
conselhos não devessem ser postos em practica por um
maior ou menor numero d’entre elles. Significam pois
que a religião de Jesus Christo formará uma grande
multidão de homens perfeitos, marchando nas pégadas
do divino Mestre. Ora este prenuncio tornou-se por sua
vez uma realidade immensa que enche o universo.
A Egreja catholica, romana, unica entre as egrejas
christãs, contou sempre o conta ainda e contará sem­
pre em seu seio um grande numero de almas perfeitas,
de sanctos e de sanctas de virtudes sobrenaturaes, logo
é divina, e só ella é divina.
J á no Antigo Testamento fora dicto aos eleitos de
Israel: «Sereis sanctos, porque vosso Deus é sancto.»
E de feito pela fé no Messias venturo, pela graça que
devia conquistar por seu sangue, um certo numero de
SEXTO ESPLENDOR DA FE 137

personagens bíblicas foram notáveis por sua sanctida-


de! S. Paulo, em sua carta aos Hebreus, exalta a fé e
a virtude de Abel, Enoch, de Noé, de Abrahão, de to­
dos aquelles que sem terem visto o cumprimento das
promessas as saudaram de longe com o sentimento
profundo de que eram estrangeiros e viajantes sobre a
terra.
Commentando esta apotheose de S. Paulo, toma
S. Ambrosio o cuidado de fazer notar que a philoso-
phia pagã não produziu nenhum heroe que se possa
comparar aos patriarchas, aos prophetas da lei antiga,
sanctificados pela fé em Jesus Christo venturo. Mas só
depois do seu advento é que os exemplos, as licções, a
morte do Salvador deviam fecundar a terra, e dar
aos anjos e aos homens o espectáculo não só de actos
em grande numero de virtudes heróicas, mas o habito
das virtudes heróicas que a Egreja catholica exige
d’aquelles que colloca nos altares.
As virtudes heróicas são caracterisadas e definidas
no admiravel capitulo quinto de S. Matheus que ter­
mina por um apello á perfeição, e que é ao mesmo
tempo o Sermão da montanha. Bem aventurados os po­
bres do espirito; bemaventurados os mansos, bemaven-
turados os que choram; bemaventurados os que tem
fome e sêde de justiça; bemaventurados os misericor­
diosos; bemaventurados aquelles que tem o coração
puro; bemaventurados os pacíficos; bemaventurados
aquelles que soffrem perseguição por amor da justiça.
Sereis bemaventurados quando os homens vos amaldi­
çoarem e disserem falsamente todo o mal de vós por
minha causa. Regozijai-vos e estremecei de alegria,
porque vossa recompensa será grande nos ceos; é as­
sim que perseguiram os prophetas que existiram antes
de vós. Vós sois (notemos que se tracta de uma affirma-
ção e não de uma simples exhortação) o sal da terra...
Vós sois a luz do m undo... Que vossa luz luza pois
VOL. IV 18
138 OS ESPLENDOEES DA FÉ

deante dos homens afim de que glorifiquem a vosso Pai


que está nos ceos... Se vossa justiça não for mais
abundante que a dos Escribas e Pharizeus, não entra­
reis no reino dos ceos-.. Aos antigos foi dicto. «Não
matarás» eu digo-vos que aquelle que se encolerisar
contra seu irmão que lhe disser raca, que lhe chamar
louco, soffrerá o juizo e passará pelo fogo... Se no
momento de apresentares tua offerenda ao altar, te
lembrares de que teu irmão tem alguma cousa contra
ti, deixa tua offerta sobre o altar, vai reconciliar-te
com teu irmão, e voltando, farás a tua offerenda...
Aos antigos foi dicto: «Não commetterás adultério.»
Eu digo-vos que todo aquelle que olhar para uma
mulher com mau desejo, já commetteu adultério em
seu coração...
Se teu olho te escandalisa, arranca-o... Se tua
mão direita te escandalisa, corta-a e arroja-a para lon­
ge de t i ...
Aos antigos foi dicto: «Não has-de perjurar, man­
terás teus juramentos ao Senhor.» E eu digo-vos não
jureis de maneira alguma nem pelo ceo, nem pela terra,
nem mesmo por vossa cabeça. Que vossa linguagem
seja: sim, sim; não, não. Porque tudo o que for alem
d’isto é mau. Foi dicto: «olho por olho, dente por den­
te.» E eu digo-vos que não pagueis mal com mal. Mas
se alguém vos ferir na face direita, offereçei-lhe tam­
bém a esquerda.
Dá a quem te pedir, e não te desvies d’aquelle que
quer que lhe emprestes! Foi dicto: «Aborrecerás o teu
inimigo e amarás o teu proximo.» Eu digo-vos: Amai
os vossos inimigos, fazei bem áquelles que vos odeiam,
orai por áquelles que vos perseguem e vos calumniam»
afim de que sejais abençoados de meu Pai que está no
ceo. Se amardes áquelles que vos amam, que mérito
tereis n’isso ? Os publica-nos fazem outro tanto. Quando
SEXTO ESPLENDOR DA FÉ 139

amais vossos irmãos, não fazeis mais do que os pagãos


fazem.
Sede pois perfeitos como vosso Pai celestial é per­
feito. —Esta linguagem sublime de simplicidade e de
sanctidade é só de per si um bello esplendor da fé. Ca-
racterisa o Verbo encarnado, Filho de Deus vivo. Uma
intelligencia humana não seria capaz de conceber este
ideal divino. Pois bem! tudo quanto Jesus Christo exi­
ge de mais perfeito, milhões de heroes catholicos lh’o
tem habitualmente cumprido. A Egreja não beatifica
todos aquelles que, tendo entrado na via da perfeição,
cedem ainda a algumas fraquezas humanas. Custou-lhe
a perdoar ao Padre Claver um movimento de impa­
ciência contra seus negros queridos, que depois de
advertidos continuavam não obstante a executar suas
danças indecentes. As virtudes, o habito das quaes
sempre suppoem os decretos de beatificação vem a ser:
as theologaes, Fé, Esperança e Charidade; as cardeaes,
Prudência, Justiça, Força e Temperança; as religiosas,
o Zelo da gloria de Deus, a Humildade, a Submissão á
vontade Deus, a Doçura, a Paciência, ó Desprezo do
mundo, a Mortificação, a Pobreza, a Castidade, a Obe­
diência. Ora a historia ecclesiastica de todas as edades
prova de maneira brilhante que todas estas virtudes
tem sido levadas ao heroísmo, por uma multidão de
sanctos perfeitós, como Jesus Christo, queria que o
fossem.
E ’ impossível pensar em qualquer d’estas virtudes
evangélicas sem a vincular ao nome popular de um dos
sanctos, cujas festas celebramos.
Que bello monumento não é a serie dos decretos
de beatificação e de canonização dos sanctos dos qua­
tro últimos séculos! Que gloriosa lista de nomes e de
virtudes evangélicas! Que typos admiráveis de perfei­
ção de todas as edades, sexos e condições, tendo fiel­
mente reproduzido em si os traços do divino auctor e
140 OS ESPLENDORES DA FÉ

consummador de nossa fé, espelho, modelo, regra, sello


de toda a sanctidade!
Commemoremos alguns.
5. José. — E’ justo, i é, modelo acabado de todas as
virtudes. A gravidez miraculosa de Maria, sua esposa,
inquieta-o, perturba-o; quer deixal-a sem escandalo,
secretamente. O anjo tranquilisa-o.
Crê na palavra do celeste enviado, e adora o Pilho
de Deus.
Recebe ordem de partir de noite, e de levar o Me­
nino com sua m ãe: parte. E’ pobre, e traz com alegria
a libré da pobreza. Durante tres dias com as lagrimas
nos olhos procura o divino Infante perdido no templo.
Ama a solidão laboriosa de Nazareth. Jesus e Maria
recebem seu ultimo suspiro.
S. João Baptista. — Que fé ! «Aquelle que nasceu de­
pois de mim já existia antes de m im ... Eis o Cordeiro
de Deus que apaga os peccados do mundo !» Que hu­
mildade! «Eu sou a voz que clama no deserto.. - Não
sou digno de desatar as correias de seus sapatos.» Que
austeridade! Por vestido uma pelle de cabra, por cin­
tura uma correia de couro, por alimento o mel selva­
gem das florestas e os gafanhotos do campo. Que amor
tão perfeito! «E' necessário que Elle cresça; e quanto
a mim, que diminua.» Que força! Não hesita em cen­
surar a Herodes o escandalo que dá, e curva docil­
mente a cabeça ao ferro do algoz.
S. João Evangelista. — Sua virgindade fez d’elle o
discípulo amado. Na ultima Ceia, pousou a cabeça so­
bre o peito de Jesus; foi o confidente de seus segredos.
Jesus moribundo confia-lhe sua mãe, e dá-o como filho
a Maria... E’ a aguia que levanta o vôo até ao alto
dos ceos, e que refere suas maravilhas... E’ o apostolo
inspirado da divindade e da caridade immensa de Je ­
sus. Em seu coração não ha senão am o r... Em seus
labiós assoma constantemente esta palavra fecunda:
SEXTO ESPLENDOR DA FÉ 141

«Filhinhos, amai-vos uns aos outros.»


Uma creança. S. Cyrillo. —Tinha sem cessar na bocca
o nome de Jesus. Furioso por não querer adorar os
idolos, seu pai expulsa-o de casa, e denuncia-o como
christão. O juiz insta para que ceda ás vontades de seu
pai, e entre nos direitos de herdeiro. •
«Estarei bem melhor, diz elle, com meu pai que
está no ceo: não temo a morte, será para mim o prin­
cipio de uma nova vida.» Levam-no ao supplicio; mos­
tram-lhe a fogueira, a espada, todos os instrumentos
da morte. Fica inabalavel. «Não temo nem o ferro, nem
o fogo; dai-vos pressa em acabar comigo, afim de que
vá mais promptamente ao ceo.»
Os espectadores choram; conjura-os a que se ale­
grem com elle, e o animem. Morre como heroe...
Vossos louvores, ó Senhor, sahiram perfeitos da bocca
d’esta creança!
Urna donzella. S. Ignez. — Tinha treze annos. Sua
belleza e suas riquezas grangearam-lhe muitos preten­
dentes das principaes famílias de Roma. Não quer po­
rem outro esposo senão Jesus Christo. Insistem, fica in­
flexível. Irritados, chamam em seu auxilio as ameaças
do juiz e a perspectiva dos instrumentos do supplicio...
Accendem uma grande fogueira; trazem cavaletes e
unhas de ferro; Ignez não desmaia. Arrastam-na para
diante dos idolos; querem forçal-a a offerecer-lhes in­
censo ; ergue a mão, mas para fazer o signal da cruz.
Encerram-na em um logar de perdição. Nada re­
ceio, diz para o ju iz; Jesus Christo é cioso de mais da
castidade de suas esposas, para que consinta em que
eu seja violada.»
Vencidos por sua belleza angélica, os libertinos
respeitam-na. Um unico, mais temerário, ousa pôr n’ella
olhos impudicos. E ’ ferido de cegueira.
Enfurecido, o juiz manda-lhe cortar a cabeça.
142 OS ESPLENDORES DA FÉ

Ignez, diz S. Ambrosio, marchou para o supplicio com


maior alegria, do que outras para o leito nupcial!
Uma joven esposa. S. Cecilia. —Era de familia illus-
tre e christà. Sua vida toda consagrada á oração e á
caridade. Era a abelha sempre activa e afanosa, que
enchia o seu cortiço de mel de todas as virtudes. Casa-
ram-na com um moço patrício, chamado Yaleriano. O
leito nupcial foi preparado, porem Cecilia dirigira a
Deus esta deprecação:
«Fazei que meu coração e meu corpo, immacula-
dos, conservem intacta a virgindade.» Foi ouvida.
Yalariano abriu os olhos á verdadeira fé, e tornou-se
christão.
Egualmente o veiu a ser Tiburcio, seu irmão, e um
joven official do pretorio, chamado Máximo.
Estes tres mancebos morreram martyres de sua
constância em defenderem sua religião. Cecilia depois
de lhes ter grangeado a salvação eterna, obteve tam­
bém a gloria do martyrio. Foi decapitada.
Uma boa mãe e seus filhos martyres. — Sancta Felici­
dade, dama romana, tão distincta por suas virtudes,
como por sua familia, teve sete filhos que educou no
temor de Deus e na piedade. Yiuva, consagrou todo o
seu tempo a Deus e á conversão dos idolatras.
Denunciada como christà pelos sacerdotes pagãos,
compareceu no tribunal de Publio. Intimada a sacrifi­
car aos idolos, recusa e exclama: «Com a virtude do
Espirito de Deus que combaterá em mim, sahirei victo-
riosa.»
E vossos filhos? forçar-me-heis a tirar-lhes a vida!
— Meus filhos viverão eternamente com Jesus Christo
se forem fieis. — Que ! não tendes dó d'elles ? Estão na
flor da edade, e podem aspirar ás mais altas dignida-
des.
— Yossa piedade é uma impiedade! meus filhos,
olhai o céo, onde Jesus Christo vos espera com todos
SEXTO ESPLENDOR DA FÉ 143

os sanctos. Publio mandou então esbofetear a sancta, e


interrogou separadamente os sete filhos.
Nenhum se deixou mover nem por ameaças, nem
com promessas. Morreram todos em supplicios differen-
tes, aos olhos de sua mãe, que foi a ultima a alcançar a
coroa do martyrio. Temia mais, diz S. G-regorio Magno,
deixar na terra seus sete filhos, do que as outras mães
temem sobreviver aos seus. Foi oito vezes martyr, pois
soffreu o que soffreram todos os seus sete filhos.
Um martyr na força da edade. S. Lourenço. —-As vir­
tudes extraordinárias de que deu exemplo em sua ju­
ventude, conquistaram-lhe a affeição de S. Sisto, que o
estabeleceu, em uma das principaes diaconias, guarda
das riquezas da Egreja e encarregado de destribuir
suas rendas aos pobres. Quando o sanct.o papa cami­
nhava para o supplicio, Lourenço triste disse-lhe: «Aon_
de ides, Pontífice, sem o vosso diacono?— Não vos aban.
dono, meu filho, . . . , provas maiores e uma victoria
mais gloriosa vos esperam! Dentro de tres dias seguir-
me-heis. No entretanto dai aos pobres as rendas de que
sois depositário.» Lourenço obedeceu. E quando mais
tarde o prefeito de Roma exigiu que lhe entregasse as
riquezas de que era depositário, Lourenço disse-lhe
mostrando-lhe grande multidão de pobres: «São esses
a quem as riquezas da Egreja foram distribuídas!» O
juiz, grandemente irritado, exclamou: «Sei que desejas
a m orte; hei de fazer-te a vontade; mas não julgues
que ha de ser prom pta; morrerás de morte lenta. Col-
locam uma grelha de ferro sobre carvões meio acesos,
e Lourenço é deitado em cima. Seu semblante revela-
se aos olhos dos christãos revestido de uma auréola de
gloria. Parecia insensível aos ardores do fogo material.
«Podeis virar-me, dizia para os algozes passado algum
tempo, d’este lado já estou assado.» D’ali a pouco: «Mi­
nha carne está assada, podeis comel-a.» Orava fervoro­
samente, pedindo a Deus a conversão de Roma.
144 OS ESPLENDORES DA FÉ

Acabada sua oração, levantou os olhos ao céo, e


entregou sua bella alma. Com esta morte acabou a ido­
latria que se esvaiu a pouco e pouco, até ao dia em
que o proprio senado venerou os tumulos dos apostolos
e dos martyres.
Um velho martyr. S. Polycarpo teve a felicidade de
'conversar com aquelles que tinham visto o Salvador e
de beber o espirito de Jesus Christo nas instrucções dos
mesmos apostolos. S. João, de quem era particularmen­
te affeiçoado, fel-o bispo de Smyrna. Certo dia encon­
trou em Roma a Marcião, o inimigo da divindade de
Jesus Christo, que ousou perguntar-lhe se o conhecia:
«Sim, conheço-te pelo primogênito do diabo.»
Soffreu o martyrio no império de Marco Aurélio.
Conduziram-no ao amphitheatro; o juiz ameaçou-o com
a fogueira ou as feras. «Não temo senão uma coisa, res­
pondeu Polycarpo serenamente, é o fogo eterno!» —
«Que o atirem ás chammas!» grita o povo. Immediata-
mente se junta lenha em redor de uma columna, á qual
está preso o sancto varão. Dirige então a Deus esta sup-
plica: «Senhor Jesus, Senhor do céo e da terra, dou-
vos graças por ter soado a hora, em que desfructo a
ventura de ser associado aos martyres.»
A chamma envolve-o de todos os lados, mas respei­
ta-o. O algoz acaba com elle, embebendo-lhe o punhal.
Assim morreu gloriosamente pelo nome de Jesus esse
venerável pontífice na edade de oitenta e seis annos.
Um mendigo. S. José Labre. Pobre, humilhado, des-
presado, vagabundo sobre a terra, vestido de andrajos,
apenas vivia de esmolas que nunca pedia, e que repar­
tia com os outros pobres, quando excediam as necessi­
dades de sua subsistência. Passava o dia na sua querida
egreja de N. Senhora dos Montes, e a noite no hospí­
cio.
Quando soltou o ultimo suspiro, um grito se esca­
pou de todos os peitos: «Morreu o sancto!» Deus ma-
SEXTO ESPLENDOR DA FÉ 145

nifestou sua gloria por numerosos milagres. A Egreja


inseriu-o no catalogo dos sanctos, e deve dizer-se em
abono da verdade que sua canonização foi um dos actos
mais gloriosos do soberano Pontificado de Pio ix.
Uma pastora. S. (renoveva. Tinha apenas sete annos
quando um bispo sancto, Germano de Auxerre, predis­
se sua futura sanctidade. Consagrou-se a Deus, de quem
foi esposa fiel. Sua mortificação era extrema, sua hu­
mildade profunda, sua fé viva, sua charidade ardente.
Era tractada como visionária e hypocrita. A cólera au-
gmentou quando predisse que Paris escaparia á espada
de Attila, que acabava de invadir as Gallias.
Quando pouco depois viram que os Hunos muda­
vam o plano de sua marcha, a perseguição dirigida con­
tra a sancta trocou-se em admiração. Genoveva ainda
operou por muito tempo outros prodigios brilhantes.
Morreu aos noventa annos. E ha séculos que é venerada
solemnemente e invocada com fervor sempre novo como
padroeira de Paris. Suas cinzas foram arrojadas ao ven­
to, mas seu tumulo canta victorias.
Um lavrador. S. Izidro.— Deu provas brilhantes de
sanctidade supportando com paciência as injurias, e
procedendo docemente com aquelles que lhe tinham
inveja por sua fidelidade aos amos.
O trabalho era para elle um acto de religião. Em-
quanto a mão lhe guiava a charrua, o coração conver­
sava com os anjos e com Deus. Cheio de caridade para
com os pobres, distribuia-lhes grande parte do seu sa-
lario. Inspirou de tal sorte a sua mulher os sentimentos
de sua fé profunda, que mereceu também ella ser ins-
cripta em o numero das sanctas que a Hespanha ve­
nera. O piedoso lavrador preparou-se dignamente para
a morte por uma renovação do seu fervor; causou admi­
ração a todos aquelles que assistiram aos seus últimos
momentos. Sua sanctidade eminente, apesar de occulta,
tem sido o objecto de universal admiração.
VOL. IV 19
146 OS ESPLENDORES DA FÉ

A Hespanha e a cidade de Madrid contam-n’o em


o numero de seus mais gloriosos patronos.
Um porteiro. Affonso Rodrigues. — Primeiramente foi
mercador, tendo porem experimentado difíerentes re ­
vezes de fortuna, adorou a mão de Deus, entregou-se
todo ás obras de sanctificação christã, e entrou na Com­
panhia de Jesus. Seus superiores confiaram-lhe o cargo
de porteiro do collegio de Majorca, funcções que des­
empenhou até ao fim de sua vida. Foi n’esta humilde
condição que soube elevar-se ao mais alto grau de san-
ctidade, caminhando sem cessar na presença de Deus-
Sua mortificação era extrema. Sua obediência e sua hu­
mildade não tinham limites. Era affavel e cortez com
todo o mundo. Viam-n’o muitas vezes em extasi; mas
os dons de Deus não inchavam seu coração; conside­
rava-se o maior dos peccadores. Morreu na edade de
noventa annos, e tornou-se objecto de profunda vene­
ração.
Uma serva. S. Zita. — Nasceu de paes pobres. Na
edade de doze annos entrou para o serviço de um rico
habitante de Lucques, onde ficou até á sua morte. Re­
partiu com os pobres do pouco que tinha. Sua cama
era uma taboa, ou a terra núa. Doce, humilde, submis­
sa para coin toda a gente, era de coragem intrépida
para com os libertinos. Sua virgindade era a recompen­
sa de uma vida mortificada e de uma oração continua.
Seu serviço não soffria com estes exercícios de piedade.
Assim é que seus amos acabaram por tractal-a com
bondade e até com veneraeão. Em sua velhice foi con­
siderada não como domestica, mas como serva de Deus.
Sua morte foi sem agonia, expirou docemente, com os
olhos erguidos para o ceo. No mesmo instante uma es-
trella fulgent» appareceu no zenith da cidade, e as
creanças entraram a clamar: « Corramos á egreja de S.
Fredegunda, porque Zita, a sancta, morreu.»
Numerosos prodigios attestaram sua sanctidade. A
SEXTO ESPLENDOR DA FÉ 147

Republica e a cidade de Lucques escolheram-n’a para


sua padi’oeira.
Um fugitivo. 8. Aleixo. —Filho unico de um rico
senador de Roma, recebeu uma educação conforme a
sua prosapia, não tardou que se tornasse notável por
sua benelicencia para com os pobres. Quanto mais avan­
çava em annos, tanto menos podia distrahir-se do pen­
samento de Deus e da eternidade. Seus paes quizeram
absolutamente casal-o. Mas por uma inspiração extra­
ordinária, no proprio dia das bodas, usando da liber­
dade que a Egreja concede de abraçar um estado mais
perfeito, antes de consummar o matrimônio, fugiu e foi
esconder-se n’uma cabana visinha de uma egreja dedi­
cada á Sanctissima Virgem. Suas virtudes attrahiram
a attenção, tudo alem d’isso revelava n’elle uma nobre
origem.
Mudou de residência, voltou a Roma disfarçado em
peregrino, e pediu hospitalidade na casa paterna. Con­
cederam-lhe um cantinho onde passou o resto de seus
dias, desconhecido de sua familia. Só na hora da morte
é que se deu a conhecer. Fizeram-lhe magnificos fune-
raes. Seu corpo, encontrado no século xm, descança
hoje n’uma egreja levantada em honra sua. Seu nome
apparece nos martyrologios gregos e latinos.
0 advogado dos pobres. S. Ivo. — Descendente de fa­
milia illustre e piedosa, cursou nas universidades mais
afamadas os estudos de philosophia, theologia e direito
canonico, nos quaes se distinguiu. A sancta gravidade
de sua conducta impunha-se aos mais libertinos e aca_
bava por os mover. Sua vida repartiu-se entre a oração,
o estudo e a caridade. Sua mortificação era excessiva:
deitava-se sobre a terra nua, com um livro ou pedra
por travesseiro. Decidiu-se livremente a abraçar o es­
tado ecclesiastico. No dia da sua ordenação e da sua
primeira missa derramou lagrimas.de alegria e de amor.
148 OS ESPLENDORES DA FÈ

Nomeado official, i é, juiz ecclesiastico, primeiramente


da diocese de Yannes, e de Treguier, prior ao depois,
desempenhou este cargo com uma sabedoria e habili­
dade incomparáveis.
Os mais illustres jurisconsultos admiravam sua
sciencia e conhecimentos do direito, ao mesmo tempo
eram subjugados pelos encantos de sua eloquência. Os
orphãos, os viúvos, os pobres, e os desprotegidos encon­
travam n’elle um defensor iníatigavel. Mandou construir
junto do seu presbyterio um hospital para os pobres e
os enfermos. Nos últimos annos de sua vida viam-n'o
sustentado por duas pessoas prégar e responder a to­
dos aquelles que vinham de longe consultal-o. Succum-
biu a tantas fadigas, e viu-se na necessidade de guar­
dar o leito. Tendo recebido os últimos sacramentos, só
com Deus se entreteve até dar o ultimo suspiro. Pra-
cticou a virtude em grau heroico nas funcções tão pe­
rigosas de juiz, de advogado, de cura, funcções que tem
dado á egreja mui poucos sanctos.
Um eremita. S. Paulo. —Nativo da baixa Thebaida,
apenas tinha quinze annos, e já vivia pacincamente na
practica de todas as virtudes christãs, quando o impe­
rador Decio abriu sua perseguição contra os christãos,
O moço Paulo para não se arriscar a perder a fé,
entendeu que devia esconder-se; d’aqui seguiu-se-lhe o
desejo de viver inteiramente no retiro do mundo. De-
parou-se-lhe uma caverna, juncto da qual havia uma
fonte e uma palmeira que lhe forneciam alimento e ves­
tuário. Tinha já cento e treze annos, quando S. Antão
por uma revelação do céo tomou o caminho de seu eri-
miterio. Os dois sanctos reconheceram-se sem nunca se
terem visto. Conversaram o dia inteiro ácerca das cou-
sas de Deus, e passaram a noite orando. No dia seguin­
te pela manhã Paulo pediu a Antão que lhe fosse bus­
car o manto de S. Athanasio, para o vestir antes de
SEXTO ESPLENDOR DA PÉ 14

morrer. Ao voltar, Antão encontrou Paulo de joelhos


sem movimento e sem vida. Dois leões vindos do de­
serto abriram uma cova, onde Antão deu sepultura ao
servo de Deus.
Um patriarcha. S. Athanasio. — Elevado na edade
de trinta annos á sé patriarchal de Alexandria, consa­
grou-se todo ao seu munus de pastor de almas. Go­
vernava com doçura e firmeza a grey confiada a seus
cuidados, quando appareceu no horisonte o espectro
negro do despresador da divindade de Jesus Christo. O
impio Ario desafivelou de repente a mascara; agrupa em
roda de si innumeros partidários, e conta já com o trium-
p h o ... Mas Athanasio sahe-lhe á frente para lbe tomar
o passo. Abate, confunde com sua eloquência vehemen-
te e cheia de fogo o novo Cerintho. Vencido no terreno
da douctrina, Ario ataca o adversário pela calumnia,
forceja por tornar Athanasio abominável aos olhos da
christandade.
O sancto e intrépido doutor é intimado a compare­
cer perante um conciliabulo, onde tomam assento bis­
pos, antes dignatarios do império, do que defensores
da Egreja. Athanasio desconcerta estes juizes prevari­
cadores pela magestade de sua attitude e pela preci­
são de suas respostas.
Sua causa triumpha, sua innocencia é manifesta;
mas aqui, como tantas outras vezes a h ! a força concul-
ca o direito. O intrépido bispo teve de aprender o ca­
minho do exilio. Cinco vezes se verá arrancado aos
braços de seu charo rebanho. Que importa! A chamma
inextinguivel do amor de Jesus Christo arde pura e
intensa em seu nobre peito. Inabalavel no testimunbo da
verdade, aguardará na oração, nas vigílias e no jejum,
quo chegue a hora da calma e do repouso.
A tempestade cede, e abonança, Athanasio sauda
enfim o termo de seus dias no meio de seu povo fiel de
150 OS ESPLENDORES DA FÉ

Alexandria, que nunca deixou de edificar com sua he­


róica paciência, sua humildade profunda, sua austeri­
dade sem limites e sua invencível affeição á douctrina
da Egreja.
Uma imperatriz. S. Helena. — Casou com Constan-
cio Chloro, quando era apenas official, o qual se viu
forçado a repudial-a, quando foi elevado ao império.
Eora uma condição expressa d’esta elevação. A honra
de ter dado á luz o G-rande ( lonstantino teria sido para
ella lenitivo d’esta affronta, se pudesse prever as con­
sequências felizes, sobretudo para sua salvação. Porque
só abraçou a fé christã depois de seu filho, mas soube
indemnisar-se do tempo desperdiçado na idolatria. Dis-
tinguiu-se principalmente por uma piedade humilde e
sincera, que a fazia esquecer de sua dignidade, e confun­
dir-se com o povo nas assembléias sanctas, por um amor
terno e generoso para com os pobres, dos quaes era
m ãe; por um zelo e uma liberalidade sem limites para
a construcção das egrejas.
Tinha já os seus oitenta annos, quando Constantino
lhe pediu que superintendesse na construcção de um
templo que tencionava levantar sobre o Calvario. He­
lena partiu para os Logares sanctos, abrazada no dese­
jo de encontrar a cruz, sobre a qual Jesus Christo mor­
rera. Seus votos foram ouvidos; a verdadeira cruz ap-
pareceu. Helena testimunhou a Deus seu reconhecimen­
to por uma infinidade de boas obras.
De volta a Roma, não tardou a entregar a Deus
sua bella alma, abençoando ternamente sua familia
ajoelhada a roda de seu leito.
Um Douctor. S. Ambrosio. —Era governador de Mi­
lão, quando foi chamado como por inspiração á sé epis­
copal d’esta grande cidade. Seu procedimento depres­
sa justificou esta escolha. Brilharam n’elle todas as
qualidades que fazem os grandes bispos. Seu zelo em
SEXTO ESPLENDOR DA FÉ 151

instruir o povo era infatigável, seu desinteresse exem­


plar, sua charidade sem limites, sua douctrina a res­
peito das almas tresmalhadas incomparável. A elle de­
ve a Egreja a conversão de S. Agostinho. Mostrou-se in­
flexível contra as emprezas da imperatriz Justina, e
prohibiu energicamente a entrada da egreja ao impe­
rador Theodosio, inquinado com a mortandade dos ha­
bitantes de Thessalonica.
TJm exemplar de mães. S. Monica. — Educada por
uma creada prudente, aprendeu com cedo a domar suas
paixões nascentes, e a reprimir os arrebatamentos do
caracter. Esposou um burguez de Tagasto, chamado
Patrício, homem honesto, mas ainda pagão.
Deu-lhe muito que entender o humor violento e
imprudente do marido, mas nunca se desmandou
d’aquella obediência que a religião recommenda ás mu­
lheres christãs. Esta moderação produziu seus effeitos
a pouco e pouco sobre o impetuoso caracter de Patrí­
cio. Acabou por detestar a idolatria, e morreu sancta-
mente. Deixava um filho que devia prolongar ainda
por bastante tempo as magoas d’esta digna viuva, an­
tes de lhe dar bem doces consolações. Este filho era o
grande Agostinho, então escravisado ao jugo do erro e
das paixões. Todas as admoestações de Monica pare­
ciam inúteis; mas as orações e as lagrimas que não ces­
sava de derramar na presença do Senhor avançavam em
segredo a hora de uma conversão inteiramente miracu­
losa.
Soou afinal. Esta boa mãe não tendo já nada a de­
sejar sobre a terra, foi receber no ceo a recompensa de
tantos méritos. Morreu no porto de Ostia, nos braços
de seu caro Agostinho.
Um bispo. S. Nicolan. — Um grande sancto, popular
atravez de todas as idades, viveu no século iv. Poi bis­
po de Myra na Lycia. A grande veneração em que a
152 OS ESPLENDORES DA FÉ

Eereja o teve sempre e o grande numero de templos


levantados em sua honra, sào provas inconcussas de
sua sanctidade. E ’ o patrono das creanças. E com
razão, porque desde a infancia foi modelo de innocen­
cia e de virtude. Tinha um prazer extremo em formar
esta edade tenra na piedade; muitas vezes salvou don-
zellas em perigo de perderem a innocencia. Operou
muitos milagres authenticos.
Um douctor. S. Thomaz cVAquino. —Nascido em 1226
de uma das principaes familias do reino de Nápoles
mostrou cedo grandes disposições para o estudo e para
a virtude. Aos dezesete annos envergou o habito de S.
Domingos. Seus pais levaram-n’o muito a mal; encer-
raram-n’o em um castello forte onde nada se omittiu
para tentar sua resolução, e onde sua innocencia cor­
reu grandes perigos. O sancto noviço triumphou de to­
das as dificuldades, conseguiu fugir e acabou por fazer
seus votos. Estudou na escola de Alberto o Grande.
A superioridade de seu espirito, junto a um traba­
lho continuo, depressa o puzerain em estado de dar
licções aos proprios mestres, e de compor essas bellas
obras de theologia, que lhe mereceram o epitheto de
Anjo da escola. O estudo contribuiu n’elle para aug-
mentar seu zelo pela perfeição e sua fidelidade ás pra-
cticas de devoção particularmente para com Jesus no
SS. Sacramento.
Escreveu seus mais bellos tractados aos pés do cru­
cifixo, por isso mereceu ouvir da bocca do divino Sal­
vador estas doces palavras: «Thomaz, bem escreveste a
meu respeito!»
Uma enferma. S. Lidwina.— Natural de Hollanda,
Lidwina amou a Deus desde os primeiros annos; aos
doze fez voto de virgindade. Foi provada por uma hor­
rível tempestade de males que a obrigaram a guardar
o leito os últimos trinta annos de sua vida. Durante
SEXTO ESPLENDOR DA FÉ 153

sete viu-se privada do uso de quasi todos os membros.


A estes soffrimentos physicos accresciam grandes penas
interiores. Mas nunca por um milagre da graça o de­
sespero se apoderou d’essa alma provada no cadinho do
soffrimento.
Meditava habitualmente sobre a paixão do Salva­
dor ; era ali que hauria a força para accrescentar a suas
próprias dores outras mortificações voluntárias. Esta
paciência heróica, acompanhada de uma doçura e de
uma humildade raras, de um ardente amor dos pobres,
mereceu-lhe o dom dos milagres e das revelações. San-
cta e alegremente crucificada na terra com seu divino
Mestre, foi partilhar emfim com elle a coroa prometti-
da aos fieis amantes da cruz.
Um rei. S. Luiz. — A rainha Branca, sua mãe, edu­
cou-o com grande esmero. «Meu filho, lhe dizia ella
muitas vezes, antes quizera ver-te morto a meus pés,
do que manchado com um peccado mortal. > Estas pa­
lavras gravaram-se profundamente no coração do joven
Luiz. Meditava-as sempre, já depois de ser rei de Fran­
ça. Mostrou-se tão grande príncipe, quanto fervoroso
christão, e soube alliar todas as virtudes dos sanctos
com as qualidades de um heroe e de um sabio legisla­
dor. Depois de haver regulado e pacificado o interior
de seus Estados, tomou a cruz, e partiu para a Pales­
tina. Cahido em poder dos musulmanos, não perdeu
nada da severidade de seu espirito, nem da dignidade
de seu caracter. Os proprios barbaros, tocados de tan­
ta grandeza d’alma, diziam que era o christão mais al­
tivo que jamais tinham visto.
Uma outra cruzada não teve melhor sorte, mas
proporcionou ao sancto rei a vantagem de morrer sol­
dado de Deus e de sua sancta religião. A peste arreba­
tou-o de juncto ás muralhas de Tunis.
O proprio Voltaire prestou um solemne e enco-
VOL, IV 20
154 OS ESPLENDORES DA PÈ

miastico preito á grande sanctidade d’este modelo in­


comparável de soberanos, antes pai do que rei dos
francezes.
Um papa. S. Pio V. — Logo aos quinze annos to­
mou o habito dos dominicanos, e a regra de tender
sempre á maior perfeição. Depois de haver ensinado
com grande successo a philosophia e a theologia, exer­
ceu uns apoz outros os cargos de mestre de noviços,
prior, etc., e mais tarde foi promovido ao cardinalato.
No pontificado de Pio iv, mostrou uma tál aptidão para
a direcção dos negocios da Egreja, que na morte d’este
papa, foi por acclamação chamado a succeder-lhe. Fez
quanto lhe foi possivel para affastar de si esfe fardov
mas não houve remedio senão curvar a cabeça. Pio v
■aostrou mais ardor ainda depois de papa do que antes
pela oração e mortificação; n’estes exercícios encontra­
va elle toda a sua força. Publicou os decretos do conci­
lio de Trento, e invidou todos os esforços para os fazer
executar. Foi a sua prodigiosa actividade e a suas ora­
ções que attribuiram a memorável victoria alcançada
sobre os Turcos em 1571. Pio v foi um grande papa e
um grande sancto.
Um grande do mundo. S. Francisco de Borgia. —
Passou os primeiros annos na corte de Carlos Quintot
que o tractou sempre com grande consideração. Espo­
sou Leonor de Castro, da qual teve cinco filhos. Encar­
regado de conduzir o corpo da imperatriz Izabel a Gra­
nada, Francisco tocado do estado do cadaver d’esta
princeza, concebeu um tal despreso pelas cousas do
mundo, que desde logo resolveu abraçar uma vida
mais perfeita'.
Viuvo aos trinta e seis annos, vice-rei da Catalunha,
quarto duque de (fandia, renunciou a todas as grande­
zas humanas, o entrou na Companhia de Jesus. S. Igna-
cio enviou-o como prégador a todas as províncias da
SEXTO ESPLENDOR DA FÉ 155

Hespanha, e nomeou-o superior de todas as casas de sua


ordem n’este reino. Sua humildade extraordinária e
suas outras virtudes, ás quaes sua fidalguia dava novo
realce, conciliaram-lhe o respeito de grandes e peque­
nos.
Seu ministério foi abençoado. Foi o terceiro geral
da Companhia. Tres cousas, dizia elle, hão-de assegu­
rar a prosperidade da Companhia:
l.° o espirito de oração e a frequência dos sacra­
mentos ; 2° a opposição do mundo e as perseguições;
3.° a practica da mais perfeita obediência.
Um grande chanceller. S. Thomaz de Cantuaria.—
Chanceller de Inglaterra no reinado de Henrique n, e
arcebispo de Cantuaria, exerceu estes cargos difficeis
com um zelo e um talento, que mereceu a aprovação
do rei. Thomaz era o modelo de seu clero, o pae dos
pobres, o ardente defensor dos direitos da Egreja. Esta
firmeza inabalavel attrahiu-lhe a inimizade do monar-
cha. Ninguém, dizia o rei, terá coragem de me livrar
d’esse padre, que me dá mais que fazer que todos os
outros meus súbditos! Thomaz assassinado em sua egre­
ja, ao pé do altar, morreu como heroe christão.
Um fundador. S. João da Matha. — Nasceu em Fau-
con, na Provença, por meado do século x i i ; cursou os
estudos pnmeiramente em Aix, ao depois em Paris,
onde recebeu o presbyterado.
Durante a celebração de sua primeira missa, teve
uma visão que lhe deu a entender o que o céo queria
d’elle. Mas afim de melhor se assegurar da vontade de
Deus, foi ao deserto ver um sancto eremita, Felix de
Yalois, com o qual combinou a fundação de uma or­
dem religiosa, destinada á redempção dos christãos ca-
ptivos em terras dos mahometanos. O summo Pontifice
depois de ter consultado a Deus na oração aprovou a
nova instituição que tomou o nome de Ordem da Trin­
156 OS ESPLENDORES DA FÈ

dade. João fez duas viagens a Tunis, onde teve muito


que soffrer.
Milhares de captivos foram resgatados. Extenuado
de fadigas, de jejuns e de mortificações, veiu morrer a
Eoma, em cheiro de sanctidade, pelos annos de 1213.
Uma fundadora. S. Thereza. — Nasceu em Avila em
1515. Desde a mais tenra edade, abrazada por leituras
piedosas, que em familia tinham logar, ardia no desejo
de affrontar o martyrio, e entregava-se com ardor in­
crível a todas as practicas devotas. Este primeiro en-
thusiasmo esfriou no entanto 'por causa da leitura de
alguns romances, e pelas relações que atou com pes­
soas bastante mundanas. Teria até cahido em verdadei­
ro relaxamento, se um movimento supexior da graça
lhe não tivesse inspirado o pensamento de entrar em
religião.
Escolheu a ordem do Carmelo. Dentro do claustro
ainda teve de luctar contra a fraqueza humana. Mas
afinal por um novo e glorioso impulso entregou-se to­
talmente a Deus e caminhou a largos passos pelas he­
róicas veredas da perfeição. Kecebeu do ceo favores
extraordinários pelos quaes Deus a preparava para a
grande obra da reforma do Carmelo. Conseguiu attin-
gir gloriosamente seus fins. Mil contradições, mil obstá­
culos vieram desalental-a! Thereza no fim confiava
sempre mais em Deus. Sua divisa era esta: ou soffrer ou
morrer, e depois de ter soffrido bem, e bem combatido
todos os combates do Senhor, pôde finalmente ir ver
face a face o divino esposo de sua alma, no anno de
1581.
Era-me facil multiplicar ao infinito esta gloriosa
lista de modelos de virtudes heróicas, mas é forçoso
parar. E quem eram esses aos quaes Jesus Christo pe­
dia a sanctidade e a perfeição, e que tem sido realmen­
te sanctos perfeitos?
SEXTO ESPLENDOK DA FÉ 157

Sao homens como nós, de quem o Sabio disse: « O


homem em seus sentidos, em seus sentimentos, em seu
coração, é inclinado ao mal desde a mais tenra ju­
ventude! N’elle a fascinação da frivolidade obscure-
ce o bem, e a inconstância e a concupiscencia faz nas­
cer invariavelmente a m alicia...» E’ esta natureza que
em Job exclamava: «Meu Deus, meu Deus, porque
me haveis feito contrario a vós ? » que inspirava a S.
Paulo estes assentos de desespero: «Infeliz de mim,
que não faço o bem que quero, e faço o mal que abor­
reço !» Estes sanctos, estes homens perfeitos são seus
apostolos e discipulos, a quem J esus Christo tantas ve­
zes dissera: « Vigiai e orai sem cessar, porque o espiri­
to está prompto. mas a carne é fraca...
Insensatos e remissos em crer, quanto tempo terei
de vos soffrer ao pé de mim?» São esses mesmos apos­
tolos, esses mesmos discipulos que no dia de sua pai­
xão, não tiveram animo para vigiar e orar uma ho­
ra com elle, e que fugiram. Sim, são esses mesmos
aquelles, dos quaes Christo fez sanctas e sanctos per­
feitos.
Um grande numero de sanctos, de facto, como S.
Thereza, S. Franoisca de Chantal, S. Francisco de Bor-
ja, S. André Avelino, etc., etc., fizeram voto de tender
sempre á perfeição, de obrar a cada instante o que lhes
parecesse que era mais excellente. Conforme as elo­
quentes palavras da Sagrada Escriptura corriam no ca­
minho da perfeição com a rapidez da faulha que devo­
ra uma vasta extensão de cannaviaes seccos; tinham
fabricado uns degraus em seu coração, trepavam-nos
com grande intrepidez; eram como a luz da aurora, ao
nascer fraca e pallida, mas crescendo sempre até aos
esplendores do meio dia. E repita mol-o mais uma vezf
estas transformações, estas transfigurações são próprias,
exclusivas da Egreja catholica, apostólica, romana, que
158 OS ESPLENDORES DA FÉ

é a unica saucta, a unica que tem feito, faz e fará sem­


pre sanctos e perfeitos.
Um impio cfesses a sangue frio e mui famoso, Prou-
dhon, ao .convite divino: «Sêde sanctos, porque eu sou
sancto,» respondia com estas abomináveis blasphemias
que se diriam sahidas da bocca de Satanaz, mas que
por sua côr negregada não deixam de ser um dos Es­
plendores da íé: «Grigante mentiroso, Deus imbecil, teu
reino acabou, vai procurar entre as bestas outras victi-
mas. Sei que não sou, nem posso nunca vir a ser sancto
E como o serás tu, tu que tanto te pareces comigo?....
Deus, tolice ou cobardia; Deus, hypocrisia e mentira;
Deus, tyrannia e miséria; Deus é o mal! Emquanto a
hnmanidade se curvar deante de um altar, emquanto o
homem for escravo dos reis e dos padres, será repro-
b a ... a paz e o amor desaparecerão d’entre os mor-
taes.»
Pois esse mesmo Proudhon vencido pela evidencia
dos factos, e pelo testimunho brilhante da historia, dis­
se da religião catholica; «Foi ella quem cimentou os
fundamentos da sociedade; quem deu a unidade e a
personalidade ás nações; quem serviu de sancção aos
primeiros legisladores; animou com um sopro divino os
poetas e os artistas, e eollocando no ceo a razão das
cousas e o termo de nossa esperança, derramou a on­
das sobre um mundo de dores a serenidade e o en-
thusiasmo... E como ella sabe enobrecer o trabalho,
aligeirar a dor, humilhar o orgulho do rico, e levantar
a dignidade do pobre! Quanta coragem inflammou com
suas lagrimas! Quantas virtudes fez despontar! que de­
dicações suscitou! Que torrentes de amor entornou no
coração das Therezas, dos Francisco de Sales, dos Vi­
cente de Paula, dos Fenelon! Com que laço fraterno
ella soube abraçar os povos, confundindo em suas tra ­
dições e orações, os tempos, as linguas e as raças...
SEXTO ESPLENDOR DA FÉ 159

A religião oreou typos, aos quaes a sciencia nada


poderá accrescentar; e ditosos de nós se aprendermos
da sciencia a realisar em nós o ideal que a religião nos
mostra.» Esplendor! Esplendor! Jesus Christo dissera:
« Sêde perfeitos, como vosso Pai celestial é perfeito, ou
antes, muitos de vós serão perfeitos como vosso Pai ce­
lestial é perfeito!» O oráculo divino cumpriu-se, e seu
cumprimento é um milagre evidente da omnipotencia
divina.
C A P I T U L O UNDECI MO

Sétimo Esplendor da Fé

Os pobres serão evangeliscuios. — (S. Matheus xi, 32).


Os discípulos de João hesitavam ainda em se collocar
debaixo da direcção d’aquelle que seu mestre denomi­
nara o Cordeiro de Deus. O precursor lá estava jazendo
sempre na prisão. Herodes tinha até então resistido ás
solicitações de uma esposa vingativa e cruel. O illustre
preso aproveitou-se dos últimos dias de vida que lhe
deixava a moderação ou a pusillaminidade do tetrar-
cha. Mandou chamar dois de seus mais fieis discípulos
e despachou-os directamente a Jesus: «João Baptista,
disseram elles ao Salvador, propõe-vos esta pergunta:
Sois Aquelle que deve vir, ou devemos esperar outro?»
ISPeste momento Jesus, estava rodeado de immensa
multidão de povo. Na presença dos discípulos de João
curou enfermos de suas enfermidades e de suas chagas,
livrou os possessos e deu vista aos cegos. «Ide, e dizei a
João o que vistes. Os cegos veem, os coxos andam, os
leprosos são limpos, os surdos ouvem, os mortos resus-
citam, os pobres são evangelisados.» E ’ portanto o pro-
prio Jesus Christo que classifica o annuncio do Evan­
SÉTIMO ESPLENDOK DA FÉ 161
gelho dos pobres como um milagre que demonstra sua
divindade e a divindade de sua Egreja, e que d’elle
faz um Esplendor da fé ! Os pobres são evangelizados,
quer dizer, rehabilitados, respeitados, amados, soccorri-
dos, ensinados.
E' ainda um oráculo, uma prophecia! e um oráculo
que se tem verificado, e todos os dias se está verifican­
do. Em toda a parte no christianismo, theoricamente
ao menos, ou ao menos no seio da Egreja catholica,
romana, dogmatica e practicamente, o pobre é evan-
gelizado da maneira a mais perfeita, e esta evangeliza-
ção do pobre é ainda um grande facto que enche o
mundo. Logo a Egreja catholica é divina. Jesus Christo
já tinha chamado a attenção sobre este escopo de sua
missão. Em uma circumstancia memorável, certo dia
em que ensinava na synagoga de Eazareth, sua cidade
natal, apresentaram-lhe o livro do propheta Isaias,
abriu-o e leu: «O espirito do Senhor está sobre mim, e
me consagrou por uma uncção sancta, enviou-me para
evangelizar os pobres.» O Evangelho annunciado aos
pobres, fim capital da missão do divino Mestre, é pois
também uma prophecia do Antigo Testamento, cujo
cumprimento é realmente maravilhoso.
Logo que o Messias nasce, pobre no meio dos po­
bres, logo que o anjo aparece aos pastores, diz-lhes:
«Annuncio-vos uma feliz nova, uma grande alegria.
Eis que vos nasceu o Salvador, o Salvador dos pobres!
Ide, encontrareis um menino deitado n’um presepio,
envolvido em cueiros.» E immediatamente uma grande
multidão de espiritos entoa o hymno do Salvador: «Glo­
ria a Deus! Paz aos homens de boa vontade!» Os pas­
tores correram a Belem, encontraram o menino deita­
do no presepio, creram nelle e adoraram-no; depois fi­
zeram-se echos da boa nova. Os primeiros chamados
ao berço do Salvador foram pois os pobres. Fundará
sua Egreja sobre pobres.
VOL. IV 21
162 OS ESPDENUORES DA FE

Seus apostolos serão pobres, o chefe do seu apos-


tolado será pobre. Quando começar sua prégação, a pri­
meira das bemaventuranças será: «Bemaventurados os
pobres!»
Até então, nos tempos passados, em todas as socie­
dades, na antiguidade pagã, e entre os povos, cuja ci-
vilisação tem sido a mais gabada, os Gregos e os Ro­
manos, não só nenhuma pobreza, nenhuma indigencia
era respeitada — a historia inteira alii está para o attes-
tar — mas todas as misérias eram barbaramente ultraja­
das. Aqui a indigencia era uma verdadeira degradação
social, que collocava o pobre fóra da familia e da hu­
manidade; alem a creança pobre, cobardemente trahida
pela sociedade, era abandonada sem defesa aos capri­
chos de seu pai que podia a seu grado atiral-a como
uma immundicie sobre a praça publica ou asphixial-a
por suas próprias mãos.
Acolá hombro a hombro com um punhado de ho­
mens, que disfructavam alegremente a vida como se fôra
monopolio seu, vegetavam entre o supplicio da fome e
o mais duro ainda do despreso milhares de escravos,
especie de rebanho de figura humana, de dia ajoujados
aos mais duros trabalhos, á noite encurralados como vis
animaes em fétidos subterrâneos, raça privilegiada para
a dor e o opprobrio.
Tudo isto se passava no reinado da razão humana
sem que jamais soltasse um protesto em favor da digni­
dade do homem. Não só a philosophia não derramava
lagrimas em presença de tantos infortúnios, sua voz
contra uma tal oppressão, mas proclamava pela bocca
de Seneca, de Marco Aurélio e de seus outros sábios,
que a piedade não é senão uma fraqueza: «Não chores
com aquelles que choram!» Mas eis que de súbito apa­
receu no mundo a doçura e a humanidade de Nosso
Senhor Jesus Christo, gritando: «Meu Pai envia-mo
para evangelizar os pobres! Bemaventurados os pobres;.
SÉTIMO ESPLENDOR DA FÉ 163

bem aventurados os que choram! Chorai com os que


choram, affligi-vos com os que estão afilictos. E para ope­
rar esta revolução immensa, Jesus Christo encontrou
em seu coração humilde e doce um segredo divino e in­
crível, superior a quanto d’elle poderiamos dizer.
Quere que o pobre d’ora em diante seja honrado
como se íôra o proprio Jesus Christo; quere outhorgar-
lhe titulos não só á consideração e ao respeito, mas a
uma especie de culto e de adoração. E para isso, fará
de sua condição uma especie de sacramento ineftavel,
no qual se ha-de revelar sensivelmente até ao fim dos sé­
culos. Incarna-se no pobre; identifica-se com o pobre:
«Em verdade, em verdade vos digo, que tudo aquillo
que fizerdes ao minimo dos meus, a mim o fizestes. • .
Aquelle que o fere, fere-me na pupilla do olho.» O po­
bre chora, é Jesus Christo quem chora! O pobre tem
fome, é Jesus Christo quem tem fome! O pobre men­
diga, é Jesus Christo quem mendiga! O pobre tem a
aparência do homem, mas a realidade desapareceu, em
seu logar está Jesus Christo. E com receio de que esta
transformação não ficasse uma ideia esteril, Jesus Chris­
to tira d’ella uma ideia pratica. Depois de ter revestido
o pobre de sua dignidade, revestiu-o de sua omnipoten-
cia, constituiu-o thesoureiro do ceo.
O que Jesus Christo dá, o pobre o dá. Dá a verdade,
a graça e o ceo; porque a fé, a graça e a salvação eter­
na, tudo isto está promettido só aos pobres. «Vinde,
bernditos de meu P ai.. Porque tive fome, e me des­
tes de comer; sêde e me destes de b eb er... Retirai-vos
de mim, malditos, ide para o fogo eterno!» Aqui está o
pobre realmente divinisado! Eil-o rodeado das home­
nagens do universo. Será preciso, é-o absolutamente, sob
pena de morte eterna, que o homem se lhe dirija com
todo o respeito.
Os direitos de Jesus Christo são os direitos do po­
bre, e esta delegação era necessária, para que a indi-
164 OS ESPLENDORES DA PÉ

gencia não ficasse sem recursos, para que a humanidade


fosse verdadeiramente uma familia de irmãos, para que
o Pai commum que está nos ceos assegurasse a cada
um o pão quotidiano. Jesus Christo no pobre é a obri­
gação da esmola, é a divida de reconhecimento a um
amor infinito! E ’ também a regra do amor que deve
medir-se não pelas necessidades do pobre, mas pelos
direitos de Jesus Christo, pelas dimensões da Cruz. E a
cruz é o infinito no amor. E’ também a consolação e a
gloria na esmola! E ’ finalmente a refutação de todas as
objecções que o mundo não cessa de oppor á esmola!
Importa estabelecer alem d’isso que Jesus Christo
para melhor affirmar a beatitude do pobre lhe oppoz a
desgraça do rico: «Ai de vós! os ricos! Em verdade vos
digo, é muito difficil que um rico entre no reino dos
ceos!.. ■ Repito, é mais facil a um camello passar pelo
buraco de uma agulha, do que um rico entrar no ceo.»
O que ha de mais extraordinário é que estas dou­
trinas sobre a pobreza e a riqueza, escandalo para o
judeu, loucura para o gentio, sabedoria e virtude de
Deus para os escolhidos, hajam entrado tanto adentro
na sociedade humana, e hajam mudado todas as idéias,
todos os sentimentos, todas as relações. E’ que o pobre
está no direito de saccudir o pó de seu opprobrio, de
levantar a cabeça inclinada pela desgraça ou pelo des-
preso. Os abatimentos do pobre são finitos! Cedo virão
seus dias de ventura e de gloria!
Pode agora estender a mão e fechai-a sobre a es­
mola do rico, porque esta esmola não é um socccorro á
miséria, mas sim um tributo pago á realeza de Jesus
Christo a quem representa. Ora um tributo nunca foi
vergonha á realeza que o reclama e recebe! Que su­
blime pensamento o de eollocar o pobre acima de tudo
só pelo facto e em nome de sua pobreza! Que consciên­
cia não é preciso ter de sua própria força para tentar
semelhante revolução! Que poder para a impor! A’
SÉTIMO ESPLENDOR DA FÉ 165

falta de outro esplendor, este seria o bastante para fa­


zer cahir de joelhos deante de Jesus Christo e de sua
sancta Egreja, catholica, apostólica e romana! Porque
realmente tanto poder, tanta grandeza e tanta caridade
só a Deus podem pertencer.
Antes de civilisada pela Cruz, a sociedade não co­
nhecia outros monumentos alem dos arcos de trium-
pho, os theatros, os templos dos idolos, i é, os tristes
monumentos do erro, do orgulho e da voluptuosidade í
Hoje pasma de ver levantar edifícios novos, caritativos
e gloriosos, a simples inscripção dos quaes revela o gê­
nio que os produziu. «A Jesus Christo em seus pobres!»
A Egreja faz mais ainda! Com seu poder de creação
que lhe foi legado pelo divino fundador, surgem por
toda a parte fundações religiosas que repartem entre
si todas as misérias a recolher e a alliviar. A sua voz e
por sua influencia entre os proprios abalos das revolu­
ções e as trevas da barbarie, surgem generosas associa­
ções, rivalisando em dedicação, disputando a palma
do sacrifício, cujas leis são a verdadeira carta de bene­
ficência, cuja constituição ficará para sempre a organi-
sação viva da caridade. Não ha nenhuma das innumera-
veis misérias da especie humana que escape ás sanefas
conspirações de seu zelo, cujo exercício é um novo es­
plendor da fé. «Hão do reconhecer que sois meus discí­
pulos, se vos amardes uns aos outros.»
Apenas esboçamos aqui a evangelisação que se
exerce pela instrueçao, o ensino dos pobres e dos peque­
nos. E’ ainda um facto mais claro que o dia, que no seio
do christianismo em geral e da Egreja catholica, apos­
tólica, romana em particular: l.° o ensino tem tomado
proporções enormes; que as escolas que remontam aos
séculos apostolicos se tem multiplicado sem cessar até
attingirem uma cifra prodigiosa; 2.° que em as nações
até hoje idolatras, mesmo n’aquellas, em que a civilisa-
ção é muito antiga e bastante adeantada, como na Chi­
166 OS ESPLENDOBES DA FÉ

na e no Japão, a instrucção se reduz a muito pouco, á


explicação de alguns textos de Confucio; 3.° que entre
as nações que abandonaram o christianismo, a instru­
cção das classes inferiores da sociedade é quasi nulla.
De forma que o ensino, a instrucção do pobre é certa­
mente um dos mais refulgentes esplendores da fé.
No século primeiro S. João fundou em Epheso uma
escola, na qual instruia a juventude. S. Polycarpo, seu
discipulo, fez outrotanto em Smyrna. Desde o século n
e o iii vemos escolas e bibliotlieeas collocadas ao lado
das egrejas. Na primeira ordem d’estas escolas deve
collocar-se a dos cathecumenos, cuja instrucção e edu­
cação duravam de ordinário dois annos. Não percamos
occasião de notar que o catecismo, esse livrinho que
desde os mais remotos séculos até nossos dias, serve de
texto á instrucção religiosa dos cathecumenos e das
creanças, é só á sua parte um brilhante esplendor
da fé.
«Lêde esse pequeno livro, diz Jouffroy, um dos
chefes menos suspeitos da escola Pliilosophica e ecléti­
ca, ahi encontrareis a solução de todas os questões que
venho de propor, de todas sem excepção. Perguntai ao
christão d’onde vem a especie humana, dir-vol-o-ha;
para onde vai, também o sabe. Perguntai á pobre
creança, que jamais pensou na vida, para que está
n;este mundo, o que será d'elle depois da morte ? Ou­
vireis uma resposta sublime que não comprehenderá,
mas que nem por isso deixará de ser digna de admira­
ção! Perguntai-lhe porque, perguntai-lhe como foi crea-
do o mundo e para que foi? Porque é que Deus creou
animaes e plantas? Como foi povoada a terra? Se por
uma só familia, se por muitas? Porque falam os ho­
mens muitas linguas? Porque soffrem, porque se guer­
reiam, e quando ha de acabar tudo isto ? Ella o sabe­
rá ainda. Origem do mundo, origem da especie, origem
das raças, destino do homem mesta vida ou na outra,
SÉTIMO ESPLENDOR DA FÉ 167
relações do homem com Deus, deveres do homem em
suas relações para com os seus semilhantes, direitos do
homem sobre a creação, nada d’isso ignora. E quando
fôr grahde, não hesitará sobre o direito natural, sobre
o direito politico, sobre o direito das gentes. Tudo isto
resalta e decorre naturalmente do christianismo e do
catecismo !.../>
A escola de Alexandria e de Constantinopla, onde
Juliano teve por condiscípulos S. Basilio e S. Gregorio
de Nazianzo, eram verdadeiras universidades. A biblio-
theca, annexa á escola de Alexandria comprehendia
cem mil volumes. Estas escolas e bibliothecas esten­
diam-se á litteratura profana, testimunha o decreto
hypocrita de Juliano Apóstata que prohibia aos chris-
tãos interpretar Homero, Hesiodo, etc., debaixo do pre­
texto de que era um delicto interpretar auctores, cuja
doutrina se condemnava, e se accusavam de erro, de
loucura e de impiedade. E ’ um facto indubitavel que
os thesouros litterarios da antiguidade grega e romana
foram conservados nos conventqs. Entre os livros que
levaram para Inglaterra os monges encarregados por
Gregorio Magno de converter a Grã-Bretanha causava
admiração um bellissimo manuscripto de Homero.
Mas a missão de evangelisar as nações devia exer­
cer-se, mórmente por escolas elementares. Desde 680, o
sexto concilio de Constantinopla ordenava que se es­
tabelecessem escolas gratuitas até mesmo nas aldeias,
e recommendava aos padres que tomassem cuidado
d’ellas.
Ho século viii diversos concilios prescrevem aos
bispos e aos parochos que se devotem á instrucção da
juventude, sobre tudo d’aquelles que se dedicavam ao es­
tado ecclesiastico. No século ix, Carlos Magno, auxilia­
do por Alcuino, fundou a universidade de Paris, e deu
um impulso immenso ás escolas ecclesiasticas e leigas.
Ao mesmo tempo Alfredo o Grande fundava a univer­
168 OS ESPLENDORES DA FÉ

sidade de Oxford. No século x, Luiz o Gordo emancipava


os servos, e queria que um dos principaes cuidados dos
bispos fosse sua instrucção. Apareceram então muitas
Congregações de um e outro sexo, devotadas não só ao
estudo das altas sciencias, mas principalmente ao ensino
dos primeiros elementos das lettras e da religião. Em
uma serie de artigos sobre as bibliothecas da edade
media, inseridos nos Annaes de philosophia christã, 1839, o
E. P.e Cahier prova até á evidencia que n’esta epocha
tão calumniada, graças á acção poderosa da Egreja, a
instrucção dos reis e dos senhores da burguezia, e das
próprias mulheres, era muito mais vasta do que se pen­
sa. Apresenta a lista, pasmosa pelo numero, das escolas
da França, da Allemanha, da Inglaterra, da Irlanda.
Eefuta a estolida calumnia de que os nobres se gaba­
vam de não saberem escrever o seu nome, e explica a
ausência de assignaturas da classe nobre nos actos pú­
blicos pela tyrannia da etiqueta que era não assignar.
S. Luiz, rei de França, que assignava suas cartas,
não assignava os diplomas; um escriptor censura a Car­
los v ter assignado por proprio punho todos os actos
emanados de sua auctoridade. Sabe-se também que a
maior parte dos trovadores e dos trouvéres da meia eda­
de eram gentishomens. Anna de Volvire, chamada a
sancta de Nada, á qual um sancto uso bretão dera
como padrinho e madrinha dois bons pobres, era já
aos quatorze annos madrinha de quatro creanças po­
bres, e ensinava ella mesma em seu castello ás donzel-
las indigentes as primeiras lettras. No século xvi sur­
gem umas apoz outras innumeras congregações ou or­
dens religiosas, unica e principalmente consagradas á
instrucção e á educação das creanças e dos pobres. As
Grsulinas, fundadas por Angela de Mérici; os Jesuitas,
por Santo Ignacio de Loyola; os padres do Oratorio
por S. Philippe Nery; a Congregação de Nossa Senhora
pelo bemaventurado Pedro Fourier; a Ordem da dou­
SÉTIMO ESPLENDOR DA FÉ 169

trina christã por S. Hippolyto Galando; os Somascos


por S. Jeronymo Emiliano; os Religiosos das Escolas
pias por S. José Calazanz; a Ordem da Visitação por
S. Francisco de Sales e Santa Joanna de Chantal; a
Congregação do üratorio pelo cardeal de Berulle; os
Padres da Congregação da Missão e as Irmãs da cari­
dade por S. Vicente de Paulo e Luiza de Marillac; os
Eudistas pelo Padre Eudes; a Congregação de S. Car­
los, fundada na Lorena; as Irmãs da doutrina christã,
as Irmãs da Providencia; os Irmãos das Escolas chris-
tãs por J. B. de la Salle; os Irmãos da Caridade, fun­
dados pelo abbade Rosmini; os Irmãos da Instrucção
christã, os Irmãos da Sacra Familia, etc., etc. Darei
apenas um rápido esboço de alguns d’estes piedosos
fundadores.
Jeronymo Emiliano. —-Era de Veneza, de nobre es­
tirpe.
Depois de ter servido com distineção nos exercitos
da republica, foi feito prisioneiro e carregado de fer­
ros. Tendo obtido soltura por intervenção da santíssima
Virgem, consagrou-se á practica de todas as virtudes
christãs, especialmente aos exercícios da caridade. O
allivio dos enfermos e dos pobres, o cuidado dos or-
phãos, a instrucção das creanças e dos candidatos ao es­
tado ecclesiastico, foram objecto de sua solicitude. O
desejo de perpetuar estas boas obras moveu-o a fundar
a Congregação dos Somascos. Este nome veiu-lhe da
aldeia, onde pela primeira vez se reuniram os membros
do novo instituto. Jeronymo morreu de doença conta­
giosa, contratada no tratamento dos enfermos.
José Calazanz. —Veiu ao mundo a 11 de novembro
de 1586, em Petralta, no Aragão. Logo desde a infân­
cia se tornou notável por sua piedade. Padre, confessa,
préga, visita os doentes, os enfermos, n’uma palavra
entrega-se a todas as obras de caridade e do aposto-
lado.
170 OS ESPLENDORES DA FE

Sua mortificação era excessiva, suas acções conti­


nuas; os pobres, os doentes, os prisioneiros eram o
objecto constante de sua ternura e de suas esmolas,
guando a peste devastou Roma, andava de um lado
para o outro, visitando todos os enfermos, e muitas
vezes carregava com os corpos das victimas do conta­
gio. A vista de um rancho de creanças desoccupadas e
entregues á mais vergonhosa ignorância toca-lhe o co­
ração. Quer atalhar a este deplorável estado; mas elle
só que poderá fazer? arranja cooperadores, fundando
com a protecção do papa a Congregação das Escolas
pias que prestaram immensos serviços á Egreja na pes­
soa dos filhos do povo.
João Baptista de la Salle. — Nascido em Reims de fa­
mília christã e honesta, teve desde a juventude desejos
de se consagrar a Deus. Ordenado de presbytero, rece­
beu o grau de doutor em Pariz. Nomeado conego de
Reims, depressa largou estas funcções, mui pouco acti­
vas para seu zelo, e devotou-se á educação das crean­
ças. Em 1679 abriu em Reims escolas gratuitas, forma
professores, aos quaes sustenta em sua casa, e dá-lhes
sábios regulamentos. Assim tomou principio o Instituto
dos Irmãos das Escolas christãs, que tanto se tem dis­
seminado atravez dos séculos, apezar das calumnias e
das perseguições de toda a especie. Este verdadeiro e
modesto servidor dos pobres deixou em paz a terra de
exilio na edade de sessenta e oito annos em 1719.
João de Larnennàis. —Irmão do celeberrimo auctor
do Ensaio sobre a Indifferençü, João de Lamennais nasceu
sobre o velho solo catholico da Bretanha. Educado em
sentimentos de uma piedade sincera e solida, tendo
abraçado a carreira ecclesiastica, João tornou-se notá­
vel por sua fé ardente e seu gosto pelo estudo. Em
1825, em Ploermel, lançou os fundamentos do Instituto
des Irmãos da caridade, destinado á educação das
creanças pobres. Os começos foram humildes, mas o
SÉTIMO ESPLENDOR DA FÉ 171

grão de mostarda germinou, e a massa fermentou com


o tempo. Hoje esta obra estremecida por este padre
simples e recto está de todo florescente. Ainda não ha
muito que este humilde evangelista dos pobres entre­
gou sua bella alma a Deus nos sentimentos da maior
piedade e da mais doce confiança na misericórdia di­
vina, Deixou fundas saudades em todos quantos o co­
nheceram. Seu querido Instituto dos Irmãos da cari­
dade prestou e continuará a prestar relevantes serviços
por toda a parte onde aparecer.
No tim do século xvm, o numero das escolas de
caridade em Paris e nas dioceses de França era im-
menso! Bergier notava que não fora nem a philosophia,
nem a politica, nem a philantropia, mas só a religião, a
que marchando á frente d’estas bellas instituições, fun­
dara todos estes estabelecimentos de instrucção para
as classes ricas e pobres. A revolução franceza rompeu
violentamente com todas as tradições do passado, sup-
primiu os estabelecimentos religiosos, e dispersou a
sancta legião dos evangelistas dos pobres. Fez n’uma
palavra taboa rasa de tudo o que existia.
Quiz em seguida reorganisar, mas apenas pôde dar
á luz um despotismo ridiculo e barbaro. O Directorio
não foi mais feliz. Suas escolas centraes ficaram deser­
tas. Então provou-se á evidencia que a demagogia
athêa tão poderosa jem destruir é incapaz de edificar,
e que a Egreja, a unica que recebeu a missão de ensi­
nar as nações, é também a unica que pode crear, cons­
truir e conservar.
A França, que antes da Revolução contava grande
multidão de collegios e universidades florescentes, ficou
apenas com escolas centraes sem estudantes, faculda­
des sem ouvintes, collegios commerciaes desertos, ly-
ceus sem frequência, e um unico observatorio que le­
gou um triste numero de observações sem importân­
cia, Com o império e a restauração, as congregações
172 OS ESPLENDORES DA FÉ

religiosas renasceram. Multiplicaram-se em proporção


enorme. O Pmperes evangelisantur de novo se converteu
em brilhante realidade. E o que ha de mais extraordi­
nário é que os collegios do clero, as instituições eccle-
siasticas, as escolas preparatórias para as carreiras pu­
blicas, sustentadas por padres ou religiosos, são mui
superiores em numero, em distincção de educandos, e
nos resultados obtidos nos concursos para a Escola po-
lytechnica, para a Escola militar, nos diplomas de ca­
pacidade, nas pensões para as escolas especiaes etc. As
Universidades catholicas estão apenas em começo, e
tudo prenuncia já para o direito e a medicina que hão
de fazer concorrência temivel ás faculdades do Estado.
Hão de provar ao menos que a sciencia a mais adean-
tada não inspira á Egreja nenhum terror, que a Fé
considera a sciencia como irmã querida com a missão
de evangelisar com ella em uma harmonia perfeita. As­
sim é que se ouve o ronco longínquo do odio vir-se
aproximando cada vez mais. Regouga a expressão sen­
tida e iracunda que inspira essa pouca liberdade que
deixam á Egreja, sobretudo para o ensino superior.
Levanta-se já tudo a desfraldar o estandarte da liga
do ensino, o espectro da instrucção, gratuita obrigató­
ria e leiga. E ’ sempre e encarniçado, como nunca, o
odio de Deus que se tracta de banir a todo o preço do
coração das creanças e sobretuda do coração dos po­
bres. O que ha de mais horrível é que este odio que não
pode simular o amor da sciencia e do progresso, pois
que os resultados estão no campo contrario, prepara
sem ter a desculpa de o não saber, o castigo cruel das
sociedades que se deixam covardemente puxar a re­
boque de uma odienta minoria. A religião retirou-se
deante dos prejuízos selvagens que lhe vedam o exer­
cício da sua grande missão de evangelisar os pobres.
Que tem acontecido V todas as misérias se erguem
SÉTIMO ESPLENDOR DA FÉ 173

ameaçadoras, e dora em deante forras de todo o freio


que as continha, combatendo-as.
E ’ a onda do pauperismo, que de balde detido pela
regulamentação, sobe, sobe sempre até ameaçar a pro­
priedade. A riqueza aterrada solta o grito de alarme,
a sociedade no lucto vela a fronte com um veo...
Onde irá despedaçar-se a onda que engrossa! Sabe-o
Deus! O que nós sabemos ó que onde o catholicismo
está em pé, onde os pobres são por elle evangelisados,
o desespero é um crime. Que a religião volte! que
avance, que implante sua cruz e diga á onda: «Até
aqui, e não mais longe!» E a onda virá expirar a seus
pés, a esperança renascerá, e o mundo será salvo!
CAPITULO DUODECIMO

Oitavo Esplendor da Fé

Sereis odiados de todos por causa do meu nome. (Math


x, 22.) Jesus Christo estava no principio da sua vida
publica. Percorria cidades e aldeias, prégando o Evan­
gelho, curando enfermidades e toda a casta de ma­
les. Relanceando um olhar sobre a multidão que o se­
guia, amiserou-se d’estas ovelhas sem pastor, e voltan­
do-se para seus discípulos, disse-lhes: «A seara é gran­
de. mas os obreiros são poucos. Rogai ao Senhor que
mande obreiros para a sua messe.» Tomando em se­
guida de parte os doze, depois de lhes ter dado o po­
der de expulsar os demonios e de guarecer todos os
males, diz-lhes: «Ide, prégai que o reino de Deus está
proximo. Envio-vos como ovelhas para entre lobos...
Sereis conduzidos por minha causa á presença dos
reis e dos governadores... Os homens compellir-vos-
hão a comparecer em suas assembléias, e sereis flegel-
lados em suas synagogas...
Quando assim vos succeder, não estejais inquietos
sobre o que haveis de responder... O espirito de vosso
Pai suggerir-vos-ha o que haveis de dizer e falará em
OITAVO ESPLENDOR DA FÉ 175

vós. .. Vás sereis odiados por todos por minha causa ! O dis­
cípulo não é mais do que o mestre .. Se ao Pai de fa­
mílias chamaram Beelzebuth, ainda peior hão de dizer
dos de sua casa. Mas não temais aquelles que matam o
corpo e que não podem matar a alma •.»
Eis em sua tocante simplicidade a narração evan­
gélica. Uma outra vez Jesus Christo disse aos doze:
«Sereis entregues á tribulação e á morte, e sereis odia­
dos de todas as nações por causa de meu nome.
(Math. xxiv, 9 )... Se o mundo vos aborrece, sabei que
primeiro me aborreceu a mim. Se fosseis do mundo, o
mundo vos amaria, porque ama o que lhe pertence.
Como porem não sois do mundo, e eu vos escolhi d’en-
tre os do mundo, eis porque o mundo vos aborrece. O
servo não é mais do que seu senhor; a mim persegui­
ram-me, também vos perseguirão a vós por causa de
meu nome, porque não reconhecem como Deus Aquelle
que me enviou.» Compendiando a palavra do Mestre,
S. Paulo diz: «Todos aquelles que quizerem viver pia-
mente em Jesus Christo, hão de soffrer perseguição.»
(Ep. a Timotheo, n cap. iii, 12.)
Sereis por toda a parte e sempre objecto de odio, vós, meus
apostolos e discípulos, meus padres e meus fieis servos,
vós a quem eu envio, e que sereis effectivamente cor­
deiros em meio de lobos! Aqui está o oráculo, e como
se cumpre todos os dias, aqui está o milagre! Cordeiros
e odio! Associação absurda, monstruosa e no entanto
divina, realidade immensa que só á sua parte enche o
espaço e o tem po! E’ que se trata de um odio sobre­
natural e divino, porque se dirige a Deus.
E como o objecto único d’este odio implacável é o
padre e o fiel catholico, apostolico, romano, com exclu­
são de qualquer outro, a Religião catholica, apostólica,
romana é a unica religião de Jesus Christo, é a unica
divina.
Realmente para tudo isso que a Verdade mesma
*

176 OS ESPLENDORES DA FÉ

denominou Mundo, para todos aquelles que mão genu-


tiectem deante de Deus, nem de Jesus Christo, para tudo
isso, que por uma consequência fatal jaz sob o império
do espirito maligno, o padre e o fiel catholico são o
objecto incessante de um odio concentrado. Que passe
um ministro de uma religião qualquer, um marabuto,
um derviche, um bonzo, um lamma, um ministro protes­
tante, um pope, um inuphti, etc., que passe, digo, diante
de um grupo de livres-pensadores, o sentimento que
desperta será um sentimento de curiosidade e de res­
peito !
Passe um padre catholico ou um irmão das escolas
christãs, será logo objecto de um rancor talvez contido,
porem mal disfarçado! E’ a historia do preterito, do
presente, e será a historia do futuro! «Sereis alvo do
odio por causa de meu nome, e porque não conheceram
meu Pai que me enviou!» O discipulo de Jesus Christo
não tem sido sómente objecto de odio, tem-o sido nas
condições miraculosas e também divinas, pelo Mestre
enunciadas Restes termos: «Sereis felizes, quando os
homens vos amaldiçoarem, vos perseguirem e disserem
falsamente de vós todo o mal. Regozijai-vos, estremecei
de alegria, porque foi de egual modo que trataram os
prophetas que vos precederam.»
O odio! o odio! A alegria e a bemaventurança em
face do odio! E’ prophecia, é historia!
l.° O odio inflamma-se primeiramente no coração
dos judeus. Mal os Apostolos encetavam em Jerusalem
suas prégações ácerca de Jesus Christo, logo os princi-
pes dos sacerdotes os prendem e mettem em masmor­
ras.
Um anjo abre-lhes as portas e pôe-nos em liberdade.
De novo pregam no templo, os magistrados lá estão
para os arrastar ao Conselho que depois de os ter des­
pedaçado com açoutes, os despede, prohibindo-lhes sob
as mais severas penas que tornem a fallar de Jesus
OITAVO ESPLENDOR DA FÉ 177

Christo. Estevão, um dos primeiros diaconos da nas­


cente Egreja, ainda moço, cheio de graça e de sabedo­
ria, espanta os judeus por suas replicas. O Espirito di­
vino fala evidente por sua bocca. Fremem de raiva em
seu coração, e rangem os dentes contra elle. Levam-no
de rastos para fóra da cidade, e apedrejam-no emquanto
ora e diz: «Senhor Jesus, recebei meu espirito, não lhes
imputeis este peccado.» E’ sempre, como se vê, o odio
e a alegria no odio, que S. Paulo celebra n’estes termos
ainda mais eloquentes: «Por cinco vezes recebi dos ju­
deus quarenta açoutes menos um; por tres vezes fui
despedaçado com varas. Perigos dos de minha raça, pe­
rigos da parte dos gentios, perigos até dos falsos irmãos ■
Deus poz-nos a nós, o ultimo dos Apostolos, em espe ­
ctáculo ao mundo, aos anjos e aos homens, como des­
tinado á morte! Vós sois sábios; nós insensato por causa
de Christo! Vós fortes, nós fraco! Vós honrados, nós
desprezado! Nós supportamos fome e sêde! Nós esta­
mos nú e despedaçado a golpes! nós não temos morada
estável! Nós fatigamo-nos a trabalhar por nossas mãos t
Amaldiçoam-nos e nós abençoamos! Perseguem-nos e
perdoamos! Biasphemam de nós e oramos! Nós somos
considerado enfim como aposthema, como as fezes do
mundo, por todos rejeitado!»
O que S. Paulo dizia de si, dizia-o de seus correli­
gionários.
Uns tem sido torturados, outros soffrido vaias, pri­
sões, e vergastas; tem sido apedrejados, e supportado
maus tractos. Acabaram á espada. Tem vagueado de
um lado para outro vestidos de pelles de cabra ou de
carneiro, nas privações, na angustia, na afflicção.
Elles, de quem o mundo não era digno, viram-se
na necessidade de se esconderem nos desertos, nas au-
fractuosidades dos rochedos, nos antros e cavernas da
terra!» Odio, apostema e fezes do mundo, tudo isso era
S. Paulo; tudo isso eram os primeiros christãos; os
vol. iv 22
178 OS ESPLENDORES DA FÉ

christãos âe todos os séculos e de todos os logares o


tem sido! Nós, catholicos romanos, devemos sel-o e o
somos para certa alcateia de lobos.
2.° Do coração dos judeus o odio passa para o co­
ração dos romanos e traduz-se no martyrio, em propor­
ções evidentemente sobrenaturaes e satanicas. Nero, diz
Tácito, mandou suppliciar homens detestados que o
vulgo chamava christãos, menos convencidos de have­
rem pegado fogo a Roma, do que de serem detestados do
genero humano /
O excesso divino d’este odio resalta das circuns­
tancias seguintes: l.° o numero de martyres. Tácito noti­
fica que era multidão.
Plinio o Moço diz em sua carta a Trajano, que se
proseguisse em punir os christãos, uma infinidade de
pessoas de toda a edade, sexo e condição correríam
perigo de vida, porque as denuncias eram em grande
numero. S. Clemente de Roma, afíirma que S. Pedro e
S. Paulo foram seguidos por grande multidão de elei­
tos que soffreram os ultrajes e os tormentos dando-nos
edificante exemplo.
Muitos escriptores calculam em desoito milhões o nu­
mero de victimas das dez perseguições geraes dos im­
peradores romanos! 2.° A qualidade das victimas, innocen-
tes e modelos de todas as virtudes! Plinio afíirma que não
só os não accusavam de nenhum crime, mas que s e
obrigavam com juramento a não commetter nem rou­
bo, nem adultério, a nunca faltarem a sua palavra, a
nunca negarem o deposito confiado, etc. Eram crean-
ças, adolescentes, donzellas, mulheres levantando-se
acima das fraquezas de seu natural, magistrados Ínte­
gros com os seus jurisdiccionados, senhores com seus
escravos, nobres e plebeus, personagens illustres e ci­
dadãos obscuros, de todas as nações barbaras ou civili-
sadas. 3.° 0 motivo do odio e do martyrio. Os perseguido­
r e s faziam um crime aos christãos de não adorarem ob
OIT A.VO ESPLENDOR DA FÉ 179

idolos, de serem aferradamente addictos á nova reli­


gião, de não quererem abjurar a fé de Jesus Christo.
Maximiano pretende obrigar a legião thebana a tomar
parte no sacrifício solemne que offerecia aos deuses
antes de entrar nas Gfallias. A legião recusa! Dezima-a
uma primeira, e uma segunda vez. Nova recusa. Maurí­
cio responde em nome de seus companheiros de ar­
mas: «Nós confessamos a um Deus, ereador de todas
as cousas e a Jesus Christo seu Filho. Temos armas,
mas não nos serviremos d’ellas. Antes queremos morrer
innocentes do que viver culpados.»
Eram seis mil! Deixaram-se degollar como cordei­
ros. 4.° A multiplicidade e a crueldade dos tormentos. Já
Tácito refere que tinham sido inventadas torturas mui
refinadas, cuja enumeração faz estremecer. Eram es­
tendidos no cavallete, vergastados, esfollados vivos,
despedaçados com unhas de ferro ou de bronze, consu­
midos pelo fogo, pregados á cruz; feitos em postas e
devorados por cães, ursos e liões; cobertos de laminas
rubras ao fogo; assentados sobre cadeiras ardentes;
mergulhados em azeite a ferver; queimados a fogo len­
to; esmagados em mós; affogados nas ondas; lançados
nús em tanques gelados; enterrados vivos; cortados a
pedaços, empalado:3, decapitados á espada ou ao ma­
chado, etc. etc. Para elles não ha piedade, nem no co­
ração das mulheres e das creanças que se volvem seus
carrascos, nem no coração das multidões, a quem o
supplicio dos maiores criminosos commove quasi sem­
pre; ao contrario d’isso aplaudiam os tormentos dos
christãos por gritos de alegria.
Nem a morte punha os martyres ao abrigo da raiva
dos perseguidores; encarniçavam-se ainda sobre os tris­
tes despojos de seus corpos mutilados; ou os reduziam
a cinzas que eram arrojadas ao vento. 5.° A constância das
victimas. Não era o fanatismo dos índios que se preci­
pitam debaixo das rodas do carro de seus deuses, pe­
180 OS ESPLENDORES DA FÉ

regrinos de Meca que se fazem calcar aos pés do ca-


vallo branco do propheta, mulheres indús que se quei­
mam sobre os corpos de seus maridos.
Não, os martyres estavam calmos! Em quanto lhes
não queriam impor a apostasia, guardavam silencio; mas
quando lhes intimavam a renuncia a Jesus Christo,
avançavam firmes e invencíveis. Jesus Christo promet-
tera-lhes uma sabedoria e uma força d’alma, a que seus
contrários não poderíam resistir; confiando n’esta pro­
messa e não contando consigo, preparavam-se para o
combate com a penitencia, a oração e o jejum.
E de feito esta constância heróica foi liberalisada a
todos os martyres, a virgens delicadas e timidas, a ten­
ras creancinhas que venceram seus algozes por uma
energia modesta e calma. 6.° Os fructos do martyrio. Fre­
quentes vezes, conversões extraordinárias, milagres bri­
lhantes arrancavam aos mais incrédulos a confissão de
que o heroísmo do martyrio vinha do alto. Mas o maior
dos prodígios é não ter sido o christianismo afiogado
n’esta onda de sangue; que pelo contrario a morte, em
principio destruidora, haja multiplicado mais e mais o
numero dos christãos, a ponto de que o sangue dos
martyres se converteu em sementeira de gerações no­
vas de discípulos de Jesus Christo e que depois de
tres séculos de morticínio, o universo se volveu chris-
tão.
III. Do coração dos imperadores romanos o odio
transitou para o coração de grande numero de outros
perseguidores pagãos, hereticos e scismaticos, etc. etc.,
os reis da Pérsia, China, Japão, Tonkin, Sião, Corêa,
Ethiopia, etc. Os musulmanos, os imperadores da Alle-
manha, os reis de Inglaterra a seu turno tem odiado a
Egreja de Jesus Christo e feito grande numero de mar­
tyres. Não ha século, não se passa anno que não veja
derramar o sangue dos christãos catholicos. Para elles
o odio e o martyrio são a regra, em quanto que para
OITAVO ESPLENDOR DA FÉ 181

todas as outras seitas christãs só por excepção raris-


simos.
Cada scisma, cada heresia, traz consigo nova explo­
são de odio e de crueldade. Os arianos, os vaudezes, os
albigenses, os lutheranos, os calvinistas, os anglicanos
exerceram as mais cruéis violências contra os catholi-
cos. Incendiaram egrejas, destruiram mosteiros, mata­
ram religiosos e padres, etc.
Um corsário calvinista, chamado Souris, apodera-
se do navio que transportava ao Brazil o P.° Ignacio
de Azevedo com os vinte nove companheiros de seu
apostolado, e a todos immola em honra dos manes de
Calvino.
IY. Do coração dos porta-estandartes do scisma e
da heresia, o odio contra os catliolicos passa para o co­
ração dos philosophos do xviii século e de Yoltaire seu
chefe. Transborda em torrentes não de sangue, mas de
blasphemias, de injurias, de sarcasmos, de calumnias
odiosas, de mentiras desavergonhadas, etc. Christo, a
Egreja, os fieis, são o «Infame» que é mister destruir a
todo o preço. O odiento patriarcha de Ferney não tre ­
pidará deante do alvitre selvagem de ver estrangular o
ultimo jesuita com as tripas do ultimo rei. «Que pena,
exclama, que os philosophos não sejam ainda bastante
numerosos, nem bastante zelosos para destruir pelo
ferro e pelo logo os inimigos do genero humano e a
seita abominável que tantos horrores tem causado.»
Eis o odio, não humano, porem satanico, que imprime
na fronte da religião catholica seu cunho brilhante de
divindade. E’ mais significativo ainda este odio, quando
arrasta Joanna d’Are, a heroina sancta, no lodo de um
poema, onde a obscenidade mais hedionda corre pare­
lhas com a mais execrável impiedade. É este odio, com­
partilhado por uma legião de cooperadores, inundou a
capital e as provincias de maus livros, para uso de to­
das as edades, sexos e condições. Corromperam funda­
182 OS ESPLENDORES DA FÉ

mente o espirito publico; transformaram uma nação


nobre e generosa n’uma sociedade de incrédulos, immo-
ral, interesseira, sedenta de ouro e de prazer.
V. Do coração dos philosophos passou o odio en­
fim para o coração dos revolucionários, que decretam
uma apoz outra a confiscação dos bens do clero, a con­
stituição civil da egreja de França, a suppressão dos vo­
tos monásticos, a deportação dos padres não ajuramen-
tados, as matanças de 2 de setembro em Paris, em Ver-
sailles, em Reims, e em outras partes.
Decretam festas licenciosas á deusa Razão, a abju-
ração solemne do sacerdócio pelos padres ajuramen--
tados, a reforma do calendário christão, a suppres­
são das festas, o trabalho obrigado ao domingo, o en­
cerramento dos templos, a destruição das cruzes, a de­
portação dos padres para Cayenna, seu empilhamento
sobre barracas, sua mortandade, o martyrio de grande
numero de religiosos e de religiosas, etc., etc. Era o odio
em seu maior paroxismo, o odio verdadeiramente infer­
nal!»
«Sereis odiados de todos por causa de meu nome.»
Envergonhado de seus excessos, o odio philosophico
e revolucionário, resolveu esconder as garras para de
novo as deitar fóra, e organisou as sociedades secretas,
na cuspide das quaes está a Franc-maçonaria, a qual
semelhante á immensidade, cobre não só a Europa, mas
o mundo inteiro. O numero das lojas é superior a cinco
mil! (*)
O dos companheiros de oito milhões pelo menos
para todos os paizes; de um milhão e seiscentos mil só

(*) A cifra d as lojas, que leio no P refacio dos A s s a s s i n a t o s M a ç o -


de Leo Taxil, é de 17:016 com 1.060:095 m açous (p arece-n o s fra­
n ic o s
co). E’ um ex ercito b em bo n ito I A a d i t e m p ie n t.e s , e t n o lite a b jic e r e e a m !

N. do T.
OITAVO ESPLENDOR DA FÉ 183

para a França. Como Proudhon confessa, a maçonaria ê


a negação directa do elemento sobrenatural. Inimiga
jurada de Deus e da religião, visa a excluir taes noções
da educação, dos costumes privados e públicos, da vida
humana e da morte. Nos seus segredos até já inicia mu­
lheres e donzellas, e não trepida dizer-lhes quando o
momento é chegado: «A primeira de vossas obrigações
é acirrar o povo contra os padres e contra os reis: tra­
balhai por toda a parte n’esta cruzada sacrosanta.» A
maçonaria almeja solapar toda a auctoridade divina.
O odio! Sim um odio verdadeiramente satanico é
o que eu tenho presenceado da parte de todos os go­
vernos que se succedem ha uns sessenta annos a esta
parte.
Debaixo da Restauração. —Força de lei dada á decla­
ração do clero gallicano em 1682. —Violenta cólera a
proposito das leis do sacrilégio e do descanso domini-
caL—O estrondear da imprensa liberal. —Ridiculo con­
stantemente arremessado sobre o rei Carlos x. Ahi vai
a amostra n’estas canções pérfidas do mais popular dos
poetas contemporâneos:

A’s plan tas de p relad o s am biciosos


P aram en tad o em g ra n d e o sten tação ,
Ao som m ellilluo dos sagrados hym nos
Carlos re cita a su a confissão !

E stendendo a m ão na sa c ra Biblia,
O confessor lh e diz : Em Deus j u r a i !
Aves, f u g i! o vosso am o é vassallo,
A vossa lib erd a d e em risco v a i ! . . .

T errív el coio de se re s m alditos,


De jesu itas cynicos, alv ares ;
P o rta d o r’s de bonecos celestiaes,
De p a d recas astu to s aos m ilh a r e s ! ..
184 OS ESPLENDORES DA FÉ

P o r elles abençoado esvai-se tu d o .


A m ais an tig a c o rte se to rn o u
P o r elles n ’um p eq u en o sem in ário
Mas ah ! o b iltre se m p re g o v ern o u I

As cantilenas impias da rua.- A effervescencia irn-


pia da juventude das escolas.—Insultos ás sotainas que
apareciam nos pateos ou nas salas da Sorbonna.—Inju­
rias grosseiras prodigadas ao clero; coleras violentas
contra a Congregação, associação pia de jovens ani­
mando-se mutuamente ao bem. — Decreto de encerra­
mento dos collegios dos Jesuitas arrancado ao rei chris-
tianissimo, que ha de ir expiar esta fraqueza ao exilio,
onde acabará os dias.
Debaixo da monarchia de julho: O nobre e piedoso ar­
cebispo de Paris, Mgr. de Quelen, obrigado a fugir e a
esconder-se para escapar á morte. —O saque odioso e
sacrílego de Samt-G-ermain-1'Auxerrois.—A pilhagem e
a destruição do paço do arcebispo.—A egreja de Santa
Gfenoveva arrebatada ao culto para se tornar no Pan-
theon dos grandes homens da França. — Projecto de
suppressão das escolas dos irmãos suppostos ignoranti-
nhos.—Prohibição de celebrar outras festas alem das da
Concordata.—Casamentos protestantes das filhas do rei.
— Auctorisação concedida ao primaz das Gfallias de
abrir sua egreja franceza.—Desenvolvimento em enorme
escala das sociedades secretas.
Debaixo do segundo império: Odio mais artisticamente
dissimulado, mas não menos activo. — A perseguição
contra a imprensa religiosa. — A hostilidade contra as
ordens religiosas docentes. —Os ataques dos orgãos do
poder contra o clero e contra os homens fieis acima de
tudo á sua consciência e á Egreja. — A dispersão do
Conselho superior da obra de S. Vicente de Paulo.—A
violação do compromisso solemne de fazer respeitar o
poder temporal do Papa. — üs francezes alistados nas
OITAVO ESPLENDOR DA FÉ 185

bandeiras do papa, ameaçados em sua nacionalidade.


—O dinheiro de 8. Pedro denunciado como obra má.—
Os destinos do papado tractados entre a França e o
Piemonte sem o papa. —A missão de defender o chefe
da Egreja confiada a seu espoliador. —A queda do po­
der temporal do papa realisada com velhacarias e men­
tiras.—DenegaçÕes hypocritas, depressa seguidas do re­
conhecimento dos factos consummados por uma politi-
ca desleal e contraria aos interesses da França.--0 pro­
gresso material animado sem limites.—O luxo attingin-
do em todas as classes da sociedade loucas proporções.
—A immoralidade escorrendo espessa nos theatros.—0
drama envenenado de Gfalileu. — Escandalo das festas
pagãs e os bailes decorados do palacio das Tuileries.
Debaixo do governo da communa. —Excitado pelo aco­
lhimento demasiado benevolo que o clero fizera ao im­
pério e ao imperador, o odio retomou seu curso, e de
um pulo descambou nos mais revoltantes excessos. Es-
treiou-se por profissões de fé athêas: «Deus é a hypo-
these, nós damos-lhe baixa... A nova geração não deve
conhecer nem Deus que é o tyranno, nem o padre, que
é o carrasco... Eu odeio a Deus, o miserável Deus do
padre, e desejaria como os Titans poder escalar o ceo
para o ir apunhalar.»
Em seguida aparecem os decretos de proscripção
e de confisco. —A Egreja é separada do Estado — O
orçamento do culto supprimido. — Os bens das congre­
gações religiosas são declarados propriedades nacio-
naes. — E’ decretada a prisão dos padres. —As egrejas
são transformadas em clubs. Afinal vem as execuções
capitaes. As nobres victimas, entre as quaes Mgr. Dar-
boy e o abbade Deguerry, são transportadas da prisão
das Mezas á prisão da Roquette nos carros cobertos para
transporte de cousas militares, e no percurso ouvem-se
os gritos selvagens: Abaixo os padrecas! façamol-os
em postas! Ha desoito séculos que estes maltrapilhos
486 OS ESPLENDORES DA FÉ

nos emboubam! etc., etc. Quarenta e sete victimas,


(Tentre as quaes dez padres ou religiosos, são conduzi­
das da Roquette á rua do Haxo. Uma vivandeira a ca-
vallo, vestida de vermelho, tocando o tambor, no meio
d'uma charanga de clarins, entorna a embriaguez do
ruido sobre aquellas cabeças já esquentadas pela em­
briaguez do álcool e do sangue.
A multidão armada empurrava os refens; as mulhe­
res sobretudo davam aos padres valentes soccos. . . A
grita pede: Aqui, aqui, matai-os aqui! Ninguém quer
deixar de tomar parte na obra meritória, todos querem
bater, ejaeular uma affronta, arremessar a sua pedra.
Cantam, dançam, urram ... O que ali está são victimas
humanas cheias de angustias e de torturas, e loucos
facciosos incapazes actualmente de distinguir o bem do
mal. As barreiras da cité de Yincennes, rua Haxo, 85,
estavam fechadas: empurram, as barreiras cedem; os re­
fens são aiTastados n’este movimento da multidão api­
nhada contra um pequeno muro por acabar. A taber-
neira, apeando-se do cavallo, correu para elles, e vi­
brou-lhes o primeiro golpe.
Immediatamente foram acommettidos a espingar­
da. a revolver e á espada. Alguns federados de uma
muralha próxima berravam de ensurdecer e faziam foen
sobre as victimas. Mas a matança não era assaz. Força­
ram aquelles infelizes a saltar para cima do muro. Gar­
galhada. Os padres recusaram-se a este gracejo burles­
co. Um federado agarra-os então por baixo dos braços
e atirava-os para cima do muro. A ultima victima per­
deu os sentidos; tomaram-na pelas pernas e pelos bra­
ços, balancearam-na um instante e em seguida atira-
ram-na para sobre os outros infelizes. Foi este o ensejo
escolhido para dar a estas doces victimas da liberdade
de consciência a honra de uma descarga geral. Odio!
mas satanico!
Debaixo do ceo plúmbeo da hora presente. —O odio pro-
OITAVO ESPLENDOR DA FÉ 187

mettido e prenunciado desencadeia-se por toda a parte


sanhudo. Em França homens de estado, que blasonam
de moderados, berram publicamente: «O clericalismo,
o ultramontanismo, eis o inimigo. O grande vencido
das eleições é o clericalismo!»
Ora, como os nossos proprios inimigos confessam,
em França já não ha um só gallicano, é logo o catho-
licismo o grande predestinado ao odio, o alvo perma­
nente de seus ataques.
E no entretanto o governo é o primeiro a repetir,
que não está sujeito de maneira alguma á influencia
dos clericaes e dos padres.
Ao mesmo tempo as sociedades secretas e suas
trombetas recomeçam seus gritos de m orte: «Estáveis
quasi esquecidos; mas de sobejo nos haveis mostrado
que tendes sete folegos, e que sois como a vibora, a
qual cortada aos pedaços, se agita ainda: ora pois, aca­
bareis afinal de sibilar e de morder. Quereis guerra,
seja! estamos promptos.»
Em Italia o Papa despojado de tudo o que possuia,
encerrado no Vaticano debaixo da protecção de uma
tal lei das garantias, irrisória e sacrílega, acha-se manie-
tado contra os insultos e as ameaças dos inimigos da
Egreja. As egrejas são confiscadas, as Congregações re­
ligiosas expulsas dos seus conventos e espoliadas...
Em summa, por toda a parte perseguição não confessa­
da, mas real e intensa.
Na Allemanha o odio é mais frio, mais systematico,
mais philosophico, se assim me posso exprimir, porem
mais profundo, e mais envenenado. Assenta nos princi- .
pios de 1789, de forma que entre a Egreja e o Estado
moderno haja guerra e guerra de morte.
«A Egreja quer fazer do Estado seu gendarme, o
Estado quer e deve fazer da Egreja sua pupilla.» «Ne­
nhum membro do Estado pode subtrahir-se á obediên­
cia ás leis, apellando para os dogmas e constituições
188 OS ESPLENDORES DA FE

da Egreja ou para a sua consciência. O Estado deve


por conseguinte trabalhar incessantemente em dominar
a auctoridade da Egreja, sobretudo da Egreja catholi-
ca, instituição altamente perigosa; deve alem d’isso
trabalhar sem descanço em consolidar seu proprio po­
der.» Tal é escopo da lucta religiosa na Allemanha.
Os meios empregados para attingir este fim são de
uma violência extrema: separação da Egreja e do Es­
tado ; casamento civil obrigatorio; registo civil; leis
penaes contra o abuso do púlpito; fiscalisação da edu­
cação do clero; alta policia do Estado sobre a adminis­
tração dos bens ecclesiasticos; prohibição de aplicar
penas ecclesiasticas com effeito civil; apresentação das
prescripções ecclesiasticas ao visto do Estado; suppres-
são e expulsão da ordem dos Jesuitas e das outras or­
dens religiosas não auctorisadas; appellação de abuso
contra a auctoridade ecclesiastica; emancipação inte­
rior da Egreja; emancipação exterior das potências es­
trangeiras. E ’ em substancia impor a abjuração do
dogma fundamental: «Creio na Egreja catholica.» E’
uma profissão equivalente de atheismo!
Assim é que a perseguição marcha sem travão
Exilio, prisões, muletas, destituição, tudo é posto por
obra para realisar este plano infernal.
' Na Rússia, o odio manifestou-se e manifesta-se pe­
los maus tractos exercidos contra os Gregos unidos ou
Uniatas da Polonia. Populações inteiras de 10, 20, 40 e
50 mil almas são arrancadas a seu torrão natal e des­
terradas sem recursos, sem abrigo. Os padres orthodo-
. xos são deportados para a Sibéria e oondemnados a
uma horrivel miséria. E o soberano que assim tortura
milhares de súbditos innocentes e fieis vai á frente de
seus exercitos reclamar da Turquia a emancipação das
populações christãs scismaticas! Cumprimento indubita-
vel' da prophecia:
«Sereis odiados de todos por causa do meu nome!» O
OITAVO ESPLENDOR DA FÉ 189

odio infernal aos catholicos, porque são os únicos disci-


pulos confessos de Jesus Ohristo!
Na Inglaterra, o mesmo odio, a mesma conspiração
dos homens de Estado e dos jornaes contra a auctori-
dade da Egreja catholica e da Sancta Sé, unico obstá­
culo invencivel ao desenvolvimento da Reforma e da
Revolução.
Na Suissa, n’esse velho paiz da honra e da liber­
dade, as egrejas catholicas com seus presbyteros, os
ornatos necessários ao culto, n’uma palavra com tudo
o que constituía outrora a propriedade absoluta e sa­
grada de cem mil catholicos do Jura e do cantão de
Genebra, são dados a um punhado de sectários ou an­
tes de intrusos sem sentimento algum de religião. Os
ligitimos curas d’almas são expulsos, desterrados, per­
seguidos como criminosos, e substituídos depois de far-
ças odiosas de eleição popular, por miseráveis padres
apóstatas italianos, allemaes ou francezes que a vindicta
publica corre de todos os lados. Odio, odio sempre sa­
tânico ou infernal. Esplendor!
Na Bélgica, é o odio escancarado, ensurdecedor da
franc-maçonaria, da imprensa liberal, das Universida­
des, mas com uns espíritos que bem mostram ser a
obra prima de Satanaz. A Bélgica produziu o Solidá­
rio, i é, o impio que rompe abertamente, publicamente
com a Egreja de Jesus Christo, que se obriga com ju­
ramento a não mandar baptizar seus filhos, a nunca pôr
os pés n’uma egreja, a casar-se civilmente e a morrer
sem sacramentos. O solidarismo é uma profissão aber­
ta de materialismo e de atheismo grosseiro, ou de um
puro deismo sem practicas religiosas. E’ o odio no seu
apogeu. «Não se destroe a Egreja discutindo com ella,
testimunhas Diocleciano e Voltaire. Mas quando nin­
guém ou quasi ninguém procurar o seu ministério, en­
tão a Egreja desaparecerá. A religião christã funda­
190 OS ESPLENDORES DA FÉ

menta-se em dois fantasmas, com que os simples se


aterram, o Juizo e o Inferno. O unico meio de arredar
este espantalho é repellir o padre, seu perdão e seu
hyssope.» Tal é a linguagem do solidário. E não ha ten­
tar convertel-o aos sentimentos de familia, e ás conve­
niências que a familia impõe. Antes de ser pai, esposo
e irmão, é solidário! A esta phantasia deu sua fé, seu
baptismo, sua alma, a religião de sua mãe e a salvação
eterna de seus filhos!
E’ mais que o odio, é a raiva do condemnado. E
de facto aquelle que não crê no Filho de Deus, já está
julgado! Não poderá ver a vida, a ira de Deus está
sobre elle!
O odio fora predicto solemnemente debaixo de to­
dos os seus variados aspectos, e á hora presente anda
como nunca exasperado. O odio n’aquelle que o aninha
e traduz é o sello da besta; na Egreja catholica e para
seus filhos é o sello de Deus. Os doudos furiosos que
nos aborrecem proclamam a origem divina da Egreja
e a fé não menos divina dos odiados. Ha no entanto uma
condição indispensável para que o odio seja realmente
para a Egreja o penhor da victoria, e para nós o sello
dos escolhidos: E ’ que nós não cessemos de ser cor­
deiros. Em quanto formos cordeiros, diz S. João Chry-
sostomo, essa bocca d’ouro, venceremos. Ainda quando
tivermos em volta de nós milhares e milhares de lobos,
seremos vencedores.
Mas se nos puzessemos a morder aquelles que nos
mordem, nossos inimigos ficar-nos-hiam superiores, por­
que então faltar-nos-hia o soccorro do pastor que apas­
centa não os lobos, mas os cordeiros.
«Sereis objecto de odio.»
E temol-o sido. «Mando-vos como cordeiros para
entre os lobos,» e temos sido cordeiros em meio de lo­
bos! Esplendor!
OITAVO ESPLENDOR DA FÉ 191

Como são bellas e consoladoras estas palavras do


principe dos apostolos, e como tem a maior opportu-
nidade nos tempos actuaes!
«Meus charissimos, não vos surprehenda o fogo ar­
dente que serve para vos acrysolar, como se o que vos
acontece fora alguma cousa de extraordinário. Partici­
pantes dos soífrimentos de Christo, regozijai-vos afim
de que no dia da Revelação de sua gloria, sejaes tam­
bém vós transportados de alegria.
«Se fordes ultrajados pelo nome de Christo, sereis
bemaventurados, porque então a gloria, a virtude e o
espirito de Deus repousam em vós. Se soffrerdes como
ladrões, maledicentes ou ávidos do bem de outrem, te-
rieis de que córar. Mas quando soffrerdes como chris-
tãos, bemdizei e glorificai a Deus.» Esplendor!
CAPITULO DÉCIMO TERCEIRO

Nono Esplendor da Fé

Tu és Pedro, e sobe esta pedra edificarei a minha Egreja,


e as portas do inferno não prevalecerão contra ella. (S. Math. XVI,
18.) Jesus dirigia-se para os arredores de Cesarêa de
Philippos, e interrogava seus discípulos dizendo: Quem
dizem ser o Filho do homem? Elles responderam: uns
querem que seja João Baptista, outros Elias, outros ern-
fim um dos prophetas. E vós quem dizeis que eu sou?
Tomando a palavra Simão Pedro, disse: Vós sois o
C h r is t o , F il h o d o D e u s v i v o ! E Jesus dirigindo-se a
Pedro, disse-lhe: «E’s feliz, Simão, filho de João, por­
que não foi a carne, nem o sangue, quem te revelou
este mysterio, porem sim meu Pai que está nos ceos.
Digo-te pois: Tu és Pedro, e sobre esta pedra edifica­
rei a minha Egreja e as portas do inferno não prevale-
rão contra ella. Dar-te-hei as chaves do reino dos ceos,
tudo quanto fizeres sobre a terra será ligado também
no ceo, e tudo quanto desligares na terra será desliga­
do no ceo.»
Uma outra vez, ás margens do lago de Tiberiades,
Jesus resuscitado depois de ter exigido de Pedro uma
NONO ESPLÉNDOR DA FÊ 193

tríplice profissão, não já de fé, mas de amor, disse a


Pedro, amas-me? Apascenta meus cordeiros! Apascen­
ta minhas ovelhas! Quer dizer que o estabelece chefe
supremo de sua grey, de seu reino, de sua E greja... De
forma que: Jesus Christo declara abertamente que ha
de edificar uma Egreja, e que o fundamento e o chefe
supremo d’esta Egreja, reino de Deus, seu reino, seu
aprisco, será Simão Pedro; e que contra esta Egreja
assim edificada, as portas do inferno, i é, o reino e o rei
do inferno, apezar de perpetuamente conjurados contra
ella, não poderão jamais prevalecer. Eis a prophecia!
o oráculo! Cumpriu-se? Jesus Christo fundou uma
Egreja, da qual Pedro é chefe ? Incontestavelmente! O
inferno ter-se-ha perpetuamente desencadeado contra
esta Egreja de Pedro, catholica, apostólica, romana,
pela synagoga, pelos tyrannos, pelos hereges, pelo isla-
mismo, pela renascença e pela relaxação dos costumes,
pelo scisma, pela reforma, pelos philosopheiros, pela re­
volução, etc., etc. ? Incontestavelmente! E’ a historia da
Egreja sem tirar nem pôr. O inferno prevaleceu acaso ?
Não, evidentemente! A Egreja tem sahido triumphante
de todas as conjurações que deveríam ter acabado com
ella, se não fora divina, se ao memo tempo que Jesus
Christo disse a seus apostolos: «Ide, ensinai todas as
nações, baptizai-as em nome do Padre, do Filho e do
Espirito Sancto, ensinai a practicar tudo o que vos te­
nho recommendado,» não houvesse accrescentado: «Eis
que eu estou convosco até á consummação dos séculos.»
Eu estou convosco ensinando, baptizando, ensinan­
do a observar os mandamentos, estou convosco exerci­
tando um ministério exterior visivel, comvosco e com
aquelles que vos succederem; com a sociedade reunida
debaixo de vossa conducta, com minha Egreja até que
o mundo acabe, todos os dias sem interrupção.
Eis aqui a prophecia, eis também o milagre de seu
cumprimento.
VOL. IV 23
194 OS ESPLENDORES DA FÉ

P r im e ir a t e m p e s t a d e . — Conspiração da synagoga e
dos judeus rebeldes — Oincoenta dias eram apenas decor­
ridos depois que Jesus, carregado das maldições de
todo o povo, expirara em tormentos, fora sepultado, e
a pedra que o cobria sellada com o sello da auctorida-
de publica. Seus discípulos, aterrados, tinham-se homi-
siado no Cenaculo, d’onde não ousavam sahir; nem se­
quer se ousava pronunciar o nome do Sancto suppli-
ciado; as únicas vozes que soavam em Jerusalem
triumphantes eram as dos seus inimigos; o seu poder
firmara-se cada vez mais.
De súbito um grito de resureição retiniu dentro
da cidade deicida; aparecem visíveis linguas de fogo?
os apostolos sahem fóra de seu retiro como homens
possuídos do espirito divino. Falam todas as linguas a
um tempo, pregam que, o crucificado está vivo, que é
elle o Messias prenunciado pelos prophetas.
Ostentam-se prodígios, que auctorisam seus discur­
sos ; crêem-nos; os algozes do Christo convertem-se aos
milhares; o povo precipita-se em multidão atraz dos
novos pregadores; a primeira egreja christã é fundada
em Jerusalem á vista do Calvario; estabelecem-se ou­
tras em toda a Judêa; de balde a Synagoga restruge;
perturbada, fóra de si, debate-se algum tempo, mas
depressa tom ba; e o povo judeu é disperso por toda a
terra. Que victoria! Onde a houve mais prompta e mais
prodigiosa ?
S e g u n d a t e m p e s t a d e . — Conspiração dos tyrannos!
— Todo o mundo romano conspira contra os doze pes­
cadores de Grenesareth, que conceberam o arrojado em­
penho de converter o universo á lei de seu Mestre di­
vino. Todo o poder dos Cesares, toda a auctoridade do
senado, dos pontífices e dos magistrados; todos os pres­
tígios dos falsos deuses, toda a arte dos sophistas e dos
escriptores, a força dos exercitos, o odio cego dos po­
vos, a crueldade dos algozes, o horror dos supplicios e
NONO ESPLENDOR DA FÉ 195

das torturas, tudo é empregado, tudo se esgota durante


mais de trezentos annos, para suffocar a religião nas­
cente e assegurar o triumpho da idolatria. Enfim depois
de tão longos e de tão cruéis esforços, uma ultima per­
seguição mais furibunda que as outras, parece destina­
da a cumprir o voto de todos os perseguidores; nutrem
a esperança de afogar o christianismo nas ondas de san­
gue derramado, e proclamam solemnemente que este
culto detestado desapareceu da terra!
Yêde os fastuosos monumentos levantados para
eternisar a memória de um tal acontecimento. Lêde
estas soberbas inscripções: «A Diocleciano, o Novo Jú ­
piter, e a Maximiano, o Novo Hercules! por terem afi­
nal abolido o nome christão e destruído no mundo in­
teiro a superstição do Christo: Nomine christianorum
deleto..- snperstitione Christi ubique deleta. Mal punham
a ultima pedra n’estes monumentos, eis Constantino,
ainda pagão, advertido por um anjo e por um signal
celeste a desfraldar aos ventos o estandarte da Cruz,
com o qual entra vencedor em Roma e lá triumpha! O
universo espantando é mau grado seu christão! Então
perece o paganismo e seu império que o impio Juliano
tentará em vão galvanisar.
Roma pagã, a maravilha das nações e o centro da
idolatria, ha de soccumbir também um século mais tar­
de, e dar logar á Roma christã que ha de ser até ao
fim dos tempos a sede da verdadeira religião e a ca­
pital do universo catholico.
T erceira tem pestade . — Conspiração das heresias e
dos scismas. — A que extremidades não foi reduzida a
Egreja, quando debaixo dos imperadores christãos, di­
vididos os hereges entre si, porem unidos em odio com-
mum contra ella, despedaçaram seu seio e lhe arranca­
ram as entranhas! Nestorianos, donatistas, pelagianos,
manicheus, iconoclastas, etc., etc.! Que espantosa tem­
pestade desencadeiaram! Que perturbação e que mo­
196 OS ESPLENDORES DA FÉ

tim no reino de Jesus Christo! Por toda a parte altar


contra altar, cadeira contra cadeira, pastor contra pas­
tor, rebanho contra rebanho; o erro sustentado pelo
poder publico falando mais alto do que a verdade; con-
cilios orthodoxos e conciliabulos inimigos da verdadeira
fé; o Oriente e o Occidente divididos; o povo fiel mar­
chando vacillante n’esta meia luz coada por entre tre­
vas. O mundo exposto a deitar-se christão e a levan­
tar-se ariano. Quem restituirá á verdade seu brilho em-
baciado ? Quem fará sahir mais uma vez do seio das
aguas a terra quasi submersa e engolida? Deus que
prometeu á sua Bgreja que as portas do inferno não
prevaleceriam contra ella! Com effeito á voz de Deus
as sombras espessas da mentira dissipam-se ; os scismas
e as heresias passam, fogem como torrentes, e desapa­
recem !
A Egreja sempre inabalavel sobre a rocha onde foi
assente, domina do alto da montanha sancta o oceano
das paixões e dos erros humanos e vê perpetuamente
as ondas aparcelladas virem desfazer-se a seus pés.
Q uarta tem pestade .— Conspiração cio Mahometismo
—Mahomet retoma a empreza de Ario. Investe contra
a divindade de Jesus Christo, recusando-lhe outro titulo
á veneração dos povos, alem do de Grande Propheta.
Recommenda-se como o enviado de Deus, e jura con­
verter o universo á sua doutrina, mistura de austero
fanatismo e de mysticismo voluptuoso, cujo attractivo
é impotente para realisar o sonho ambicioso d’esse fi­
lho sombrio de Ismael. Recorrerá pois á força bruta. O
Islamismo ataca de todos os lados ao mesmo tempo a
christandade surprehendida de tanta audacia, mas de
nenhuma sorte inquieta do resultado final. Os mahouie-
tanos infestaram o Mediterrâneo por frotas de corsá­
rios; invadiram successivamente a Sardenha, a Corse-
ga, a Sicilia, a Calabria, a Hespanha, a França meri­
dional, a Hungria, a Bohemia, a Áustria. Mas quando
NONO ESPLENDOR D A FÉ 197

o perigo foi extremo, o successor de S. Pedro dirigiu o


seu apello aos generosos sentimentos da Europa catho-
lica e dos heroes christãos; Carlos Martel, D. João de
Áustria, Sobieski, vencedores das famosas batalhas de
Toledo, de Tours, de Lepanto, de Víenna, detinham
esses furiosos guerreiros no momento, em que pareciam
mais proximos a subjugar a Europa para de novo a se­
pultarem na barbarie.
As cruzadas por um lado, do outro a conquista dos
Portuguezes, que arrebataram a este formidável poder
os recursos do commercio e das riquezas do Oriente, o
reduziram ao enfraquecimento, em que hoje o vemos,
até que seja afinal repellido para alem dos Balkans,
se esbarronde debaixo do seu proprio peso.
Q uinta tem pestade . — Conspiração e invasão dos
Barbaros. — No século x, a Egreja soffreu muito da fe­
rocidade dos povos do Norte, que occuparam successi-
vamente as provincias da Europa Occidental. Os Nor-
mandos, os Húngaros e outros povos selvagens percor­
reram com o ferro em punho a Allemanha, a França,
a Italia e a Hespanha, e causaram por toda a parte
males infinitos. As cidades foram reduzidas a cinzas, os
mosteiros roubados e deitados a terra, os estudos e as
artes quasi olvidados. A Egreja não obstante teve assaz
força não só para guarecer as chagas abertas pela mão
dos Barbaros, mas para converter e assimilar a si seus
novos perseguidores.
Foi-lhe mister tempo para domar os excessos de
sua originaria selvageria, e para dissipar a ignorância
que consigo tinham trazido; mas enfim Deus fez trium-
phar a Egreja da barbarie e da ignorância, como trium-
phara das perseguições e das heresias.
S exta tem pestade . — Os escândalos da edade de fer­
ro. —As perturbações e a ignorância, cortejo dos Bar­
baros, produziram o enfraquecimento da disciplina e a
corrupção dos costumes; os escândalos multiplica­
198 OS ESPLENDORES DA FÉ

ram-se, as mais sanctas leis eram publicamente viola­


das; o concubinato e a simonia ostentavam-se repellen-
tes; o mal invadira os mesmos pastores, e a própria
Eoma não lavrava excepção. A Egreja gemia debaixo
do peso de tantas desordens; esta prova era para ella
mil vezes mais dolorosa, do que as perseguições. Estes
escândalos em logar de abalarem nossa fé, devem pelo
contrario firmal-a, porque nunca se patenteou mais vi­
sivelmente que é a mão de Deus a que sustenta a Egre-
ja, e não a dos homens. Em meio de tantas desordens
a fé conservou-se sempre pura; Deus não permittiu
que os dogmas christãos soffressem o menor damno. A
Egreja por outra parte nunca deixou de clamar contra
os excessos e os abusos; em todos os concilios reno­
vava as leis da disciplina, e forcejava por lhes suscitar
a observância. A divina Providencia atalhou a este es­
tado com o apparecimento de sanctos illustres que se
oppuzeram com zelo indomável á torrente das iniqui-
dades. As sciencias e artes encontraram asylo no clero
e nos mosteiros: as casas episcopaes e religiosas torna­
ram-se escolas publicas. Os clérigos e os monges occu-
param-se em transcrever as obras antigas que tinham
arrancado das mãos dos Barbaros.
Não só a tradição constante e seguida das verda­
des que regulam nossa fé e nossos costumes, mas por
outro lado a renascença das lettras, das sciencias e
das bellas artes na Europa, são obra da Egreja ca-
tholica.
S étima tempestade . — O grande scisma do Occiden-
te. --N o xiv século, desanimados pelas guerras intesti-
nas que desolavam a Italia, os soberanos Pontifices en­
tenderam conveniente affastarem-se de Eoma, e vieram
fixar sua residência em Avinhão.
Não havia ninguém que não acreditasse que este
affastamento não fosse fatal á Egreja; ficava no entanto
apostólica, mas visivel e çatholica... Mas por morte
NONO ESPLENDOR DA FÉ 199

de Gregorio xi, os cardeaes residentes em Roma, em


numero de dezeseis, julgaram-se no direito de reunir
consistorio e elegeram o papa Urbano vi, italiano de
nascimento, prelado tão distincto por sua sciencia, como
por suas virtudes. Ao mesmo tempo os cardeaes de
Avinhão elegiam papa um francez Clemente v i i , que
fixou sua sede em Avinhão. Qual era o legitimo chefe
da Egreja de Deus? Ninguém o sabia ao certo; pelo
contrario a duvida pairava tão sinistra que houveram
sanctos e illustres personagens sujeitos uns á obediên­
cia de Urbano, outros á de Clemente. Foi para a barca
de Pedro uma cruel tempestade, e o Senhor parecia
dormir então. Urbano e Clemente tiveram muitos suc-
cessores, todos convencidos da legitimidade da sua elei­
ção, e vendo em seu emulo um antipapa. Este scisma
vertiginoso durou ainda trinta annos. Em vão o conci­
lio de Pisa depoz os dois concorrentes de Roma e de
Avinhão; de balde procedeu á eleição de Alexandre v ;
o scisma continuou. A obstinação dos eleitos, o ciume
dos cardeaes das duas obediências, os interesses oppos-
tos das coroas, eram outros tantos obstáculos ao re­
gresso á unidade! Mas a Egreja tem promessas, e Deus
não se esqueceu d’ellas no perigo extremo. A despeito
de todas as paixões humanas, a união effectuou-se no
concilio geral de Constança; os pretendentes ao papado
abdicaram ou foram depostos, e Martinho v, o novo
eleito, foi universalmente reconhecido por unico e legi­
timo successor de S. Pedro.
O itava tem pestade . —As violências da Reforma pro­
testante. —Mau grado de tantas derrotas já experimen­
tadas, o espirito das trevas não se deu por batido. Ins-
tillou na alma de um monge orgulhoso e libertino o
sopro da revolta. Luthero queimou as bullas do papa
na praça publica, protestando violentamente contra a
auctoridade do — "
ijunrmce, e proclamou ,
a dou­
200 OS ESPLENDORES DA FÈ

trina do livre exame. Era mais do que a negação de


tal ou tal dogma; era a negação do mesmo principio
da auctoridade, base de todos os dogmas.
Esta emancipação da razão encontrou echo n’uma
grande multidão de almas, ha muito insoffridas de todo
o jugo, e a nova religião, mais ou menos profunda­
mente modificada, fez progressos tão rápidos, que em
poucos annos invadiu uma grande parte da Europa. A
Inglaterra, a Dinamarca, a Suécia, quasi toda a Alle-
manha e a Suissa despedaçaram os liames que as pren­
diam a Eoma. As novas seitas nem respeitavam as leis
humanas nem as divinas. Luthero não receiara dizer a
seu proprio soberano: «Se por amor da liberdade
christã me é permittido calcar aos pés os decretos do
Papa e os cânones dos Concilios, pensais vós que res­
peitarei assaz vossas ordens para as considerar como
leis ?» Eis como a reforma se mostrou por toda a parte
violenta e sanguinaria. Na Allemanha os lutheranos
levantaram-se em massa, pegaram em armas, desola­
ram as provincias, destruiram castellos e mosteiros,
mataram os padres e as religiosas. Em Inglaterra,
quantas espoliações e mortes!
Quanto sangue derramado também n’esta nossa
França, despedaçada durante tres longos reinados por
facções insurgidas, por guerras civis, por numerosas
batalhas! Um discipulo de Luthero, Ecolampadio, di­
zia poucos annos depois de seu mestre haver começado
a predicar: «O Elba com todas as suas aguas não po­
dería fornecer lagrimas bastantes para chorar os males
que a Reforma fez.» Estes males immensos alcançaram
sobretudo a sancta Egreja, contra a qual todas estas
seitas, unidas ou divididas, amigas ou contrarias, se
conspiraram; e todavia ficou de pé. Ficou com seis
grandes reinos, a França, a Italia, a Hespanha, Portu-
' '"■nnde numero
í?al, â Áustria ê a Poíonía; c m a u m — ,
de filhos fieis até nos reinos os mais infestados pela
NONO ESPLENDOE DA FÉ 201

heresia; ganha todos os dias, por conversões numero­


sas, em Inglaterra sobretudo, muito terreno que tinha
perdido.
As conquistas de seus novos apostolos dão-lhe na
China, no Japão, nas índias quasi tantas almas como
a Reforma lhe arrebatara. Dois grandes acontecimen­
tos enfim, o feliz termo do concilio de Trento, apezar
de todos os obstáculos levantados pelo espirito de erro
e de revolta; e o ardor realmente prodigioso da nova
ordem religiosa, a Companhia de Jesus, fundada por
S. Ignacio no intuito de levantar a auctoridade do so­
berano Pontifice romano, acabaram de abonançar a
tormenta.
N ona tem pestade . — 0 desencadeiar da Philosophia
do xvni século. —A incredulidade do xvm século, tão
altiva de suas luzes e de suas forças amotinadas contra
a Egreja de Jesus Christo, desenvolveu todas as suas
phalanges, deistas, atheus, scepticos, materialistas, Ím­
pios de todos os systemas, de todos os paizes, de todas
as seitas; arregimentou-as debaixo da mesma bandeira,
a bandeira do odio inexpiavel contra o nome catholico-
Assim formou um exercito innumeravel ao grito de
guerra: Esmaguemos o infame! Nada o enfreia; todo o
meio lhe parece legitimo para destruir uma religião
que ousa dizer-se a unica verdadeira e divina: a ver­
dade e a mentira, a violência e a perfidia, os respeitos
hypocritas e os despresos ultrajantes, as maximas de
tolerância e os furores da perseguição.
Prophetisou bem alto que a ultima hora do catho-
licismo havia soado; que a indefectível Egreja ia cahir
inevitavelmente aos golpes de seu braço. Arrastou as
multidões, não persuadindo os espíritos, mas corrom­
pendo os corações, lisongeando todos os maus instin-
ctos, favorecendo todos os vícios. Desolou a Egreja por
bastantes defecções; mas sua fecundidade ha-de ca-
rear-lhe novos filhos que lhe enxuguem as lagrimas. As
202 OS ESPLENDORES DA FÉ

conspirações e os excessos da philosophia deixaram de


pé a Egreja catholica que pretendera aniquilar mas
solapou a sociedade civil, cujos interesses affectara de­
fender.
G-ravidou a revolução íranceza, fez derramar san­
gue a ondas, onde se submergiu ella própria, em quanto
que a Egreja catholica sahiu d’este duplo combate con­
tra a incredulidade e a revolução triumphante como
nunca.
D écima tem pestade . — Os excessos da Revolução fran-
ceza. — Uma geração corrompida pela philosophia jul­
gou que uma vez despedaçado o jugo da Religião
christã e catholica, e reconhecida a razão humana pela
unica divindade da terra, reaparecería a edade de
ouro das nações esclarecidas e livres. Foi proscripta a
religião, abolidos seu culto e leis, perseguidos e exter­
minados seus ministros como inimigos públicos; Deus
não tinha altares, mas a razão em delirio teve os seus.
Não tardou que o divorcio, proclamado entre o
ceo e a terra, produzisse os necessários effeitos: algo
de semelhante ao que se daria na ordem da natureza
se viesse a extinguir-se o facho do dia e os elementos
a confundir-se, se deu também na ordem moral. A
França, alteada depois de quinze séculos de christia-
nismo ao fastigio da civilisação, abysmou-se repentina­
mente no pego da barbarie; perdeu toda a decencia,
todas as regras, a humanidade, toda a forma de estado
social; era a imagem do chãos e do inferno, quando os
impios espantados de sua própria obra, vendo que o
abysmo cavado ia engulil-os a elles também, desespe­
rançados de poderem suster os estragos da torrente,
cujos diques haviam rompido, chamaram em seu soc-
corro essa mesma religião catholica, que tantos esfor­
ços tinham feito para aniquilar, reabriram por suas pró­
prias mãos os templos de Deus e restituiram alguma
liberdade a seu culto. Desde então os males diminui­
NONO ESPLENDOR DA FÉ 203

ram, e os mais incrédulos viram claramente que o úni­


co meio de salvação estava na reconciliação da França
com a Egreja.
D’est?arte, quando um homem, sahido das suas fi­
leiras, e ao depois tão celebre, subiu ao poder supre­
mo, julgou impossivel dar ás leis e á auctondade um
solido fundamento, em quanto não recorresse á Santa
Sé apostólica para repor as legitimas cadeiras episco-
paes, guiar os povos pelos seus pastores, e apoiar a or­
dem publica sobre a moral do Evangelho. Que home­
nagem a sua Egreja opprimida! Que retractação tão
solemne de tantas calumnias! Que confissão de impo­
tência absoluta de conservar sem ella os costumes, as
virtudes sociaes, e a própria vida do corpo político!
E —o que ninguém poderá contestar—a volta á reli­
gião de nossos pais foi a epocha precisa da resurreição
das sciencias, das lettras, do commercio, da industria,
das artes, pelas quaes se testimunha hoje tanto zelo, e
que tinham succumbido com tudo o mais no reinado do
atheismo!
Debaixo ainda de outro aspecto foi a Revolução
franceza para a sancta Egreja de Jesus Christo occa-
siao de brilhante triumpho. O que a historia referia
ácerca das cruéis perseguições d’outrora e do heroísmo
dos primeiros fieis era desterrado por um mundo incré­
dulo para a região das exagerações e das chymeras
Eis porem que a Egreja em sua supposta decrepitude
é chamada á mais violenta das investidas; viram então
que o fogo sagrado que inflammara os martyres não
estava extincto. Quizeram impor ao clero írancez leis
que alteravam sua constituição divina e contradiziam
sua fé: ou prestar juramento ou ficar exposto a todos
os effeitos da mais implacável vingança. Hesitariam um
momento? Trinta bispos e quarenta mil padres, pela
recusa unanime do perjúrio se votam a todos e quaes-
quer sacrifícios, a todos os perigos e carnificinas. Nas
204 OS ESPLENDORES DA FÉ

prisões, nas barcaças, esses tumulos fluctuantes, onde


soffrem supplicios, peiores que a morte, nos banhos de
Cayenna, nos cadafalsos, etc. ninguém solta um murmú­
rio, uma queixa; a nenhum pôde a morte arrancar o
menor signal de fraqueza; ao expirar todos renovam
seus juramentos de fidelidade a Deus e a sua sancta
Egreja. Triumpho, esplendor!
U ndécima tem pestade . — Os attentados do Diredorio
e do imperador Napoleão contra a Sancta Sé.-—Por duas
vezes no principio d’este século o inferno dirigiu todos
os seus esforços contra a Sé indefectivel de Pedro, por
duas vezes se lisongeou de a ter prostrado, e ousou
cantar victoria. Era cedo; a sua alegria foi curta; e
porque milagres de sua dextreza levantou Deus esse
throno apostolico que julgavam ter despedaçado e re­
duzido a pó! Eoi Deus evidentemente quem n’um mo­
mento derribou o colosso que pesava sobre o mundo
inteiro, solidando-se todos os dias mais, e deante do
qual se abatiam sceptros e coroas. Foi Deus quem fe­
riu de súbito o capitão famoso, cujas emprezas, até en­
tão habilmente concertadas, tinham sido coroadas de
successos. Quem, senão Deus, desbaratou só com os
elementos naturaes exercitos reputados invenciveis, e
dispersou pelo sopro do aquilão como leves palhas, es­
sas innumeras phalanges que pareciam predestinadas á
conquista do universo ? Quem, senão Deus, reunindo no
mesmo desígnio e em um sentimento commurn de con­
servação, os soberanos de Estados, tão diversos e sepa­
rados de vistas, de interesses, de política, de religião,
reis, príncipes, vindos de todos os pontos da terra, até
hereticos e scismaticos, em soccorro do chefe da Egre­
ja, despedaçou os ferros que o algemavam, e levado
em seus braços o restituiu a essa Roma, cuja auctori-
dade e direitos combatiam?
D uodécima tem pestade . — As pretensões e temerida-
des da falsa sciencia e da meia sciencia.— No xviii século
NONO ESPLENDOR DA FÉ 205

e nos primeiros annos do xix, formara-se uma vasta


coalisao de sábios no intuito de convencer os escripto-
res biblicos de ignorância ou de impostura.
Homens presumpçosos distribuiram entre si o do-
minio inteiro das sciencias, e entregaram-se a trabalbos
gigantescos. Interrogaram ao mesmo tempo os annaes
das nações, as leis da natureza, o curso dos astros do
firmamento, as revoluções do globo, sua superfície, suas
entranhas, os movimentos dos mares e dos rios; fizeram
um apello a todos os seres animados e inanimados, ao
ceo, á terra, ao Oceano, ao homem com sua razão e
seus sentidos, á philosophia com suas subtilezas e abs-
tracções, á historia com seus factos, suas datas e monu­
mentos, etc., contra a verdade de nossos livros santos,
annunciando todos os dias novas descobertas, titulos
novos de convicção contra a divina revelação, demons­
trações sempre mais evidentes de sua incompatibili­
dade com os factos da historia os mais incontestáveis.
O Egypto fornecia suas constellações gravadas em pe­
dra; a índia suas taboas chronologicas e astronômicas
para dar desmentidos authenticos á historia sagrada.
O edifício da fé parecia cahir pedaço a pedaço, e
esbarrondar-se até aos fundamentos.
Causava espanto que o mundo tivesse podido ac-
ceitar como verdades reveladas tão palpaveis erros;
não se fartavam de elogiar o mérito dos homens ex­
traordinários, cujo saber e genio iam afinal desabusar
o genero humano, e arrancar a razão a uma longa in­
fância. O que aconteceu porem? Essas mesmas investi­
gações continuadas, esses mesmos estudos mais aprofun­
dados levaram ao conhecimento de que os grandes ho­
mens tinham sido afinal logrados e caloteados pelas
mais grosseiras illusões; suas invenções e systhemas des­
vaneceram-se como sonhos e phantasmas; suas dificul­
dades melhor examinadas converteram-se em provas
da religião que pretendiam destruir. Os monumentos
206 OS ESPLENDORES DA FÉ

transportados de tão longe e com tamanhas despezas


para virem depor contra elle, depuzeram em seu favor;
enfim cálculos mais justos e observações mais exactas
justificaram plenamente a Escriptura Santa, suas ori­
gens, suas datas, sua irrefragavel auctoridade, que já se
gabavam de haver entregue ao despreso e ao escarneo.
Que confusão para a falsa sciencia! que triumpho para
a Egreja! Pode depois d’isto exclamar com o grande
apostolo: O’ sábios, ó litteratos, ó investigadores do sé­
culo, que é feito de vós afinal? Sapiens, ubi, scriba, ubi
conquisitor linguce soeculi, Deus perdeu a sabedoria dos
sábios; reprovou a sciencia dos mais prudentes.
Este oráculo tão expresso: As portas do inferno não
prevalecerão contra ella, cumpriu-se finalmente da ma­
neira mais brilhante. Incerra elle toda a historia, é um
facto immenso que enche só de per si o mundo. Logo
a Egreja de Jesus Ohristo é divina! E como é divina, e
como tem marchado de triumpho em triumpho, ha de
triumphar até ao fim.
O oráculo que tão brilhante mente se realisou no
passado, ha de realisar-se de modo mais tocante ainda
no porvir. No momento actual, os poderes do inferno
desencadeiaram-se, como nunca, contra a Egreja de Pe­
dro. A Italia tem feito o que tem querido, conserva o
Pontífice eaptivo no palacio do Vaticano, depois de o
haver espoliado de todos os seus recursos materiaes,
espirituaes e moraes! Em Inglaterra denunciaram-na
como a inimiga implacável das soberanias temporaes!
A França, ou pelo menos a maioria legislativa da França
grita contra o clericalismo, contra o ultramontanisino,
como o mortal inimigo da Patria! A Áustria expoz
ao vivo suas desconfianças, mais pérfidas talvez do que
uma hostilidade aberta! A Prússia eructa seus odios a
vozes cheias! Seu genio mau, mais forte e não menos
astuto do que Juliano. Apóstata, victorioso da Dina­
marca, da Áustria e da França, declara-se seguro de
NONO ESPLENDOR DA FÉ 207

vencer Roma tam bém ! Conta as horas do papado! Para


o riscar da historia espreita apenas a hora da morte de
Pio ix, que succumbe ao peso dos annos! Prússia e Ita-
lia apertai o nó dos tratados, concertai habilmente vos­
sos desígnios, urdi tramas profundas, tomai infalliveis
medidas, prophetai bem alto que a Egreja indefectível
de Pedro vai cahir golpeada por vós! Sereis vencidas!
As portas do inferno não prevalecerão contra ella. Je ­
sus Christo, o Cordeiro —leão, estará com ella até á
consummação dos séculos! E na consummação dos sé­
culos, a eterna separação dos eleitos e dos reprobos, a
eterna felicidade dos bons, a eterna desgraça dos maus,
serão para ella o triumpho dos triumphos, porque to­
dos os eleitos serão filhos seus, todos os reprobos foram
inimigos seus, ella será a Jerusalem celeste, a visão ma­
gnífica da paz. Pio ix é morto e Leão xm reina!
CAPITULO DÉCIMO QUARTO

Décimo esplendor da fé

E eu, quando for exaltado da terra, atrahirei tudo a


mim. (S. Jo. x i i , 32). Quasi no começo de sua vida pu­
blica, na conversação mysteriosa que teve com Nicode-
mus, príncipe dos judeus, Jesus Christo fez-lhe esta re­
velação extraordinária: «Assim como no deserto Moy-
sés levantou a serpente de bronze, assim é mister que
o filho do homem seja levantado e offerecido ás vistas
de todos, afim de que todo o homem que crer n’elle
não pereça, mas tenha a vida eterna. Porque Deus
amou o mundo de tal modo, que lhe deu seu unico Pi­
lho, afim de que nenhum d’aquelles que n’elle crerem
pereça, mas tenha a vida eterna .. Aquelle que n’elle
crer não será julgado!... Aquelle pelo contrario que
não crê n’elle já está julgado, não mais verá a vida, a
cólera de Deus acena-lhe o golpe !...»
Em uma circumstancia solemne, no dia de sua en­
trada triumphante em Jerusalem, em presença da mul­
tidão, Jesus dirigia a seu Pai esta oração : «Meu Pai,
glorifica teu Pilho!»
Uma voz que desceu do ceo, e que a multidão
DÉCIMO ESPLENDOR DA FÉ 209

cuidou ser a do trovão, fez ouvir estas palavras: «Grlo-


rifiquei, e glorificarei ainda!» Então Jesus Christo ex­
clamou : «E eu, quando fôr exaltado da terra, attrahi-
rei tudo a mim!» João Evangelista accrescenta : «Dizia
isto por allusão ao genero de morte que havia de sof-
frer!» O divino Salvador affirma cathegoricamente que
semelhante á serpente de bronze no deserto, devia para
salvação do povo ser pregado na cruz, suspenso entre
o ceo e a terra, e que d’este modo tudo havia de attra-
hir a si! Dizia equivalentemente: Eu, homem mortal e
morto, eu, divino suppliciado, tudo hei de attrahir a
m im ! Em quanto que o poder dos imperadores os mais
famosos, conquistadores os mais intrépidos se extingue
na campa ! «E’ quando tiver soffrido sobre a cruz o sup-
plicio dos escravos, que Jesus Christo pretende exercer
uma attracção universal e irresistível.
Eis a prophecia! Eis agora o milagre. Um olhar,
uma palavra de Jesus era o bastante para impressionar
profundamente, para subjugar, para prender seus pri­
meiros discípulos e seus apostolos. Attrahiu a si Zacheu,
Magdalena e tantos outros! Sobre a cruz attrahiu o
bom ladrão, que n’esse mesmo dia entrou com elle no
paraizo.
Tanto elle era a alma de toda a natureza, que ao
dar o ultimo suspiro, o sol perdeu a sua luz, a terra
tremeu, os rochedos fenderam-se, os mortos sahiram do
tumulo, o veo do templo despedaçou-se, os sepulchros
abriram-se e muitos sanctos que dormiam resuscitaram.
O centurião e os que estavam com elle diziam: Aquelle
era realmente o Filho de Deus; Jesus Christo attrahi-
ra-os a si! Mesmo no tumulo, descia ao Limbo, e sahia
trazendo em sua companhia as almas dos patriarchas e
dos justos, que entraram com elle no ceo. Resuscitado,
Jesus Christo attrahe a si o genero humano, as nações,
os povos, os reinos e os impérios do universo. Com um
sopro varreu os idolos, e expurgou a religião publica
vol. iv 24
210 OS ESPLENDOKES DA FÉ

dos erros e infamias que a deshonestavam; e depois de


ter empurrado os povos fóra dos templos que derruia,
chamava-os a novos templos, ao pé dos seus altares, e
recebia as adorações da humanidade. Do templo pene­
trou na sociedade, renovou-lhe as instituições ou me­
lhor reconstituiu-lhe os elementos, penetrou todo o
corpo social de sua própria vida, e instillou n’ella os
principios, antes d’elle ignorados, do direito, da justiça,
da liberdade. Chamou primeiro os pequenos; e os po­
vos vieram consolar-se orando e esperando a seus pés.
Depois chamou os sábios; e o genio e o talento, deser­
tando das escolas dos sophistas e dos rethoricos, veiu
pensar, escrever e prégar a favor da sua causa. Chamou
afinal os Cezares; e os imperadores cedendo-lhe o thro-
no, exclamaram á face do universo: «Não ha senão um
Senhor e Mestre que é Jesus Christo. Christus regit, re-
gnat, imperat/» O universo tornara-se christão, e ainda
hoje o é, mas forçosamente dividido em dois campos, o
campo dos amigos de Jesus Christo e o campo de seus
inimigos. Restauração de uns e ruina dos outros, a to­
dos se impoz. Sim, é graças á attracção exercida por
Jesus Christo, que o mundo se salvou, esclareceu, civi-
lisou, foi restituido á liberdade, vivificado pela carida­
de. Sim esta attracção é por tal forma a vida das mo­
dernas sociedades, que se pudessem isolar-se brusca­
mente d’ella, volver-se-hiam astros errantes, bem de­
pressa extinctos pelo vacuo e pelo frio dos espaços ce­
lestes, seriam n’uma palavra terras sem sol! Perderíam
rapidamente toda a civilisação, toda a liberdade, toda
a claridade; testimunha as scenas da Revolução fran-
ceza em 1793, e da Communa de Paris em 1871.
Jesus Christo attrahiu a si o homem individual, a
personalidade humana! Fez sua a intelligencia e a li­
berdade de cada um ; fez seu o coração e até o corpo
de cada um, em summa todo o ser de cada um.
A intelligencia de cada homem de facto pela fé em
DÉCIMO ESPLENDOül DA FÉ 211

Jesus Christo abdica sua própria razão e funda-se na


razão suprema do Verbo divino.
Faz pedaços o molde pessoal, mais ou menos falso e
estreito para entrar no molde largo e profundo d’onde
sahiu o Evangelho. Nenhum outro sobre a terra obteve
jamais esta suprema dictadura da humana intelligen-
cia. Os tyrannos opprimiram o pensamento, impedin­
do-lhe as suas manifestações, mas nunca o governaram,
conquistaram ou attrahiram a si.
A vontade de cada um. Vai em desenove séculos que
milhões de homens só querem o que quer Jesus Chris­
to. Tem por unica vontade a vontade própria de Jesus
Christo, e por unica lei de vida sua lei sancta e os di­
vinos ensinamentos de seus exemplos. Fazem-se com elle
doces e humildes de coração; tomam voluntariamente
seu jugo, proclamando perante o universo que é bom
e suave. E para lhe pertencerem totalmente deixam
casa, pai, mãe, irmãos, irmãs, filhos, mulher, patria etc.
A abnegação de si proprios é completa; crucificam sua
carne, com seus vicios e concupiscencias, castigam seu
corpo para o reduzirem á servidão. Afim de assegurai
rem sua união eterna com Jesus Christo, e ao mesmo
tempo procurarem a salvação eterna de seus irmãos,
preenchem em sua carne o que falta á paixão do Sal­
vador. São n’uma palavra de tal sorte attrahidos por
Jesus Christo, que não hesitam em dizer com S. Paulo:
«Estou pregado na cruz com Jesus Christo; vivo, mas
não sou eu quem vive, é Jesus Christo que vive em
mim.» Esta fusão em Jesus Christo do ser inteiro do
homem consumma-se n’este mundo no sacramento da
Eucharistia, onde Jesus Christo se faz nosso alimento e
nossa bebida, quando sua carne se confunde com nossa
carne, seu sangue se mistura com o nosso sangue, seu
coração pulsa junto do nosso coração e nossa alma é
animada pela sua.
Como esta fusão com Jesus Christo, como este re-
212 OS ESPLENDORES DÀ FÉ

vestimento completo de Jesus Christo, ao qual o grande


apostolo incitava os primeiros fieis : Induimini Dominum
Jesum Christum! é admiravelmente expresso n’estas duas
bellas orações inspiradas a S. Ignacio na gruta de Man-
resa: «l.° Recebei, Senhor, toda a minha liberdade; re­
cebei minha memória, minha intelligencia e minha von­
tade ; fostes vós o que me destes tudo o que tenho e
tudo o que possuo; restituo-vol-o sem volta, e o entrego
á inteira disposição de vossa vontade. Dai-me sómente
vosso amor com vossa graça, serei bastante rico, nada
mais vos peço. 2.° Alma de Jesus Christo, sanctificai-
me; corpo de Jesus Christo, salvai-me; sangue de Je ­
sus Christo, inebriai-me; paixão de Jesus Christo, for­
tificai-me; ó bom Jesus, ouvi-me; escondei-me em vos­
sas chagas; não consintais que eu seja separado de vós,
defendei-me dos maus; na hora de minha morte cha­
mai-me, mandai-me que vá para vós, afim de que seja
feliz convosco pelos séculos dos séculos.»
0 coração de cada um. Jesus Christo attrahiu o co­
ração do homem. Conquistou sua affeição e seu amor...
O amor fez-lhe guarda ao tumulo. Seu sepulchro é não
só glorioso, mas amado. Todos os dias renasce em uma
innumeravel multidão de seus discípulos. E ’ visitado em
seu berço pelos pastores e pelos reis que aporfiam em
lhe trazerem o ouro, o incenso, a myrrha, como a seu
Rei, como a seu Redemptor, como a seu Deus. Uma
porção notável da humanidade retoma seu caminho e
segue-lhe os passos em todos os logares de sua antiga
peregrinação, sobre os joelhos de sua mãe, á beira dos
lagos, no cume dos montes, nos carreiros do valle, á
sombra das oliveiras, sobre o Thabor, etc. Espiam-lhe
o somno e o despertar; escutam-no religiosamente;
cada palavra sua vibra ainda, e produz o amor e as
obras do amor.
Milhões de adoradores se despegam todos os dias
em espirito da cruz, throno de seu supplicio e de seu
DÉCIMO ESPLENDOR DA FÉ 213

triumpho, se pôem de joelhos, prostrando-se até á terra,


e em seguida beijam com indizivel fervor seus pés san-
guinolentos. Uma paixão ineffavel o resuscita da morte
e da infamia para o collocar na gloria de um amor que
não desfallece, que n’elle encontra a paz, a alegria e
até o extase. A cada geração requisita seus apostolos e
seus martyres, e cada geração responde a seu apello.
E este amor que lhe consagram depois de sua morte
milhões de homens, que nunca o viram, é já velho de
dezenove séculos; e não arde em um só logar, mas sob
todas as zonas do globo terrestre, tornando todos os
tempos, todos os homens tributários, com elle de um
amor que jamais se extinguirá. Jesus Christo é de facto
rei do coração, como o é também da intelligencia.
0 corpo de cada um. Como o corpo, a carne com
suas concupiscencias, suas cubiças, a corrupção de que
é causa, são o obstáculo ou a resistência invencivel op-
posta ao exercicio da attracção divina, os attrahídos de
Jesus Christo sempre foram os inimigos encarniçados,
os algozes do seu proprio corpo. Inventaram contra elle,
como os tyrannos contra os martyres, mil instrumentos
ou modos de supplicio, disciplinas, cilicios, cruzes ainda
de prégos, abstinencias, jejuns prolongados, etc., etc.
Não pararam n’este caminho senão quando o corpo foi
reduzido completamente á servidão na linguagem tão
expressiva de S. Paulo. E o que é mais extraordinário,
mais divino, é que as carnes as mais aborrecidas e as
mais crucificadas são as mais tenras e as mais puras.
Taes são as dos Luiz Gonzaga, das Rosa de Lima,
etc., etc.
Napoleão o Grande fez a este respeito um commen-
tario que é ao mesmo tempo um lampejo de genio e
uma inspiração sobrenatural. «Admiram as conquistas
de Alexandre, mas o que são ellas comparadas com as
de Christo? Ainda que Alexandre haja conquistado o
mundo, suas conquistas passaram. Jesus pelo contrario
nar

214 OS ESPLENDORES DA FÉ

conquista e enamora não uma nação, mas toda a raça


humana. Suas conquistas estendem-se pelo espaço de
dezoito séculos, e com toda a probabilidade estender-
se-hão até ao fim dos tempos.
B que conquista Jesus a cada homem? O que é
mais difficil de conquistar - o coração! o amor! Pois
Jesus conquista-os aos milhões vae em dezoito séculos.
Alexandre, Cesar, Annibal nunca puderam conquistar
um coração de homem! B o Christo! os corações de
milhões de individuos são seus. Desde ha dezoito sécu­
los centenas de milhares de homens se tem deixado
martyrisar por elle; centenas de milhares acceitam seu
jugo, supportam por elle as mais duras privações! Onde
estão os meus amigos? Dois ou tres immortaes compar­
tilham meu desterro! Que abysmo entre a minha misé­
ria e o reino eterno do Christo, que é annunciado, pré-
gado, amado, adorado por toda a terra. Elle viverá pela
duração dos séculos em milhões de corações.» Este reino
maravilhoso de Christo prova claramente sua divindade.
Mas se o Christo é Deus, sua Bgreja é divina, manifes­
tamente divina.
Semelhante attracção, exercida por Jesus Christo
sobre as almas é egualmente maravilhosa e omnipotente,
quer se tracte de uma alma infiel, quer de uma fiel,
mórmente de uma d’essas primorosas, a quem se digna
chamar bem amadas. Lá está sempre batendo á porta
da alma desgarrada, e não se cansa de bater. Agita-a,
abala-a, desprende-a dos sentidos e do mundo, subju­
ga-a. ^
Sacudida em todos os sentidos pela mão divina a
pobre alma bem pode retirar todas as suas molas, não
lhe será permittido continuar o somno que a encan­
tava.
Jesus tem o poder de despertar e de perturbar as
almas. Quando o effectuou, tem o poder de penetrar lá
dentro, quando lhe apraz sem lhes arrebatar a liber-
DÉCIMO ESPLENDOK DA FÉ 215

dade, deixando-as ou antes volvendo-as livres. Quantas


vezes a conversão se dá n’um alustro! Um relampago,
uma voz que ribomba em a nuvem derriba um Saulo
soberbo, e muda o leão em cordeiro, o perseguidor em
apostolo. Jesus volta-se e olha para Pedro que o acaba
de negar tres vezes. Pedro convertido chora amarga­
mente na solidão, e tantas lagrimas quotidianas cavam-
lhe nas faces dois sulcos indeleveis. Está attrahido para
sempre! E quando o divino Mestre lhe perguntar se o
ama, não hesitará em responder-lhe: «Senhor, bem sa­
beis que vos amo.» Que divina attracção não é essa que
arrebata todos os dias aos carinhos da familia essas vir­
gens abençoadas, que lá vão atraz do Cordeiro, para
toda a parte aonde fôr, até ao Calvario, até ao ceo ?
Arrancar- se-hão todas juvenis e cheias de encantos aos
braços de um pai e mãe estremecidos, a todas as espe­
ranças e illusões da vida, para irem occultar-se na soli­
dão do claustro.. • Alguns mezes depois soa o momento
da tomada do habito. Apareçem radiantes á grade do
coro, vestidas como noivas, enfeitadas de joias e de
rendas, enfeites que poucos minutos mais tarde vão ar­
rancar e calcar aos pés, aureolando-lhes a fronte uma
alegria divina, fructo do mais perfeito conhecimento
d’Aquelle, ao qual deram seu coração. Quando apoz de
um ou dois annos de provas definitivas reaparecem á
grade para pronunciarem votos irrevogáveis, quando
sua voz se faz ouvir no silencio da assembléia sancta
para dizer: Meu amado é meu e eu sou d!elle; já não
é só a alegria, é o enthusiasmo que arfa no peito, e que
trahe na emoção da voz a paixão que as transporta. E
é sempre de Jesus Christo morto na cruz. .. que nasce
esta mysteriosa attracção.
Sim, Jesus Christo levantado da terra attrahe tudo
a si.
N’estes séculos tristes, em que a indifferença uni­
versal está reclamando uma graça omnipotente, que es-
216 OS ESPLENDORES D A F È

perte e vivifique as almas; em que a impiedade sempre


uivante indica a necessidade de um novo vinculo que
prenda os homens a Jesus Christo; em que as violên­
cias desaforadas da heresia desolam a Egreja e lhe ar­
rebatam milhares de seus filhos; em que os crimes que
bradam ao ceo, clamam por uma grande expiaçao e
uma grande reparação, Jesus aparece a Margarida Ma­
ria Alacoque, a quem dá o doce nome de desposada, e
a breve trecho de esposa.
Descobrindo-lhe seu divino Coração, que tanto
amou os homens, que a nada se tem poupado até se ex-
gotar e consumir, para lhes provar seu am or... Peço-te
que a primeira sexta-feira da oitava do SS. Sacramento
seja dedicada a uma festa particular para honrar meu
coração em reparação e desagravo dos ultrages que re­
cebe no sacramento de meu amor... Prometo-te que
meu coração se ha de dilatar para verter com abun-
dancia as influencias de seu amor sobre aquelles que lhe
renderem esta homenagem.»
Ora a voz da humilde virgem de Paray-le-Monial
foi no glorioso pontificado de Pio ix plenamente escu­
tada. O mundo celebra hoje com pompa a festividade
do Sagrado Coração de Jesus. A Egreja catholica em
globo, a egreja de França em geral, e cada diocese de
França em particular, a cidade de Paris de maneira
particularissima, estão consagradas ao Sagrado Cora­
ção de Jesus. Maria Margarida foi elevada á honra dos
altares; seu tumulo já agora glorioso attrahe milhares
de peregrinos que vem orar com o fervor dos primeiros
christãos; e eis que no seio da grande Babylonia mo­
derna, do viso da sancta collina dos martyres, antigos
e modernos, vai erguer-se magestosa a immensa basi-
lica do Sagrado Coração, do alto da qual Jesus Christo
agradecido attrahirá de novo a si os corações de nossa
bella Patria.
E’ portanto verídico que a prophecia, que o mila­
DÉCIMO ESPLENDOR DA FÉ 217

gre, que o impossível, se volveram realidades immen-


sas. Exaltado da terra, Jesus Christo attrahiu tudo a si!
Jesus Christo vivo sempre em sua morte, impoz-se ao
mundo! Cessando de viver, começou a reinar! Do fundo
de seu tumulo, ou antes lá do alto dos céos, agita o
mundo e subjuga a humanidade! Logo é Deus e sua
religião divina! Esplendor!!!
CAPITULO DÉCIMO QUINTO

Undecimo Esplendor da Fé

N’isto hão de reconhecer todos que sois meus discípu­


los, se vos amardes uns aos outros. (S. J. xiv, 34.) O Sal­
vador come a ultima ceia com seus discípulos; levan­
ta-se da mesa, cinge-se com uma toalha, e lava os pés
aos doze apostolos! Até ao proprio Judas! Dá-lhes a
derradeira, a prova suprema de seu amor infinito, seu
corpo a comer, seu sangue a b eb er...! Com o espirito
perturbado, com o coração saturado de angustias an-
nuncia-lhes que um d’elles o ha de trahir. Esta revela­
ção é o signal da salada de Judas; Jesus ficando só
com os onze, diz-lhes: «Meus filhos, dou-vos um man­
damento novo, amai-vos uns aos outros..-, como eu
vos amei. Todos hão de reconhecer que sois meus dis­
cípulos, se vos amardes uns aos outros.»
Pouco depois, na adoravel oração da Ceia, Jesus
Christo dirá a seu Pai: «Que aquelles que me destes se­
jam um, como nós somos um; que sejam consummados
na união, afim de que o mundo conheça, que fostes vós
quem me enviou.» Assim o proprio Jesus Christo por
duas vezes fez da caridade para com o proximo um
Esplendor da Fé.
UNDECIMO ESPLENDOR DA FÉ 219

O apostolo S. Pedro foi mais explicito ainda, pois


diz:
«A vontade de Deus é que tapeis a bocca ás obje-
cções dos ignorantes e dos insensatos, fazendo bem a
toda a creatura!»
O oráculo reza pois que a Egreja de Jesus Christo
devia resplandecer por uma caridade sem limites, por
uma fusão completa das almas e dos corações! E assim
era, os primeiros christãos denunciavam-se logo, porque
formavam um só coração e uma só alma. Esta caridade
devia estender-se a todas as misérias e a todas as do­
res; ora é de facto no grêmio da Egreja catholica, apos­
tólica, romana, que a caridade tem sido superabun-
dante, e tem tomado em seus excessos todas as formas
imagináveis. Logo a Egreja catholica, apostólica, ro­
mana, é a verdadeira Egreja de Jesus Christo.
Já S. Paulo dizia: «Quem soffre que eu não soffra
com elle?»
Digamos antes de mais nada em que deve consistir
esta caridade, enumerando-lhe as regras, as obras, as
qualidades, perfeição e coroa.
l.° Regras da caridade evangélica:
Primeira regra: Não faças a outrem o que não quere­
rías que te fizessem.
Segunda reg ra: Faze a outros o que quererías que te
fizessem.
Terceira regra: Amarás o teu proximo como a ti
mesmo. (S. Math. xxn, 39.) 0 amor que nos temos a nós
é real, activo, efficaz; quereriamos communical-o a to­
dos, ou que todos nos amassem tão cordealmente como
nos amamos a nós mesmos. O amor que nos temos é
terno; volve-nos sensivel a todos os nossos males, e per­
suade-nos de que nunca são pequenos; occulta-nos nos­
sos proprios defeitos, e persuade-nos de que nunca são
grandes. Nosso amor ao proximo deve também volver-
nos sensiveis a seus menores trabalhos, e fechar-nos os
220 OS ESPLENDORES DA F É

olhos a seus maiores defeitos: regra verdadeiramente


divina, da qual os sábios da antiguidade não tivei’am a
menor ideia. Um príncipe pagão muito illustrado, a
quem a revelaram pela primeira vez, não hesitou um
momento em proclamar divina a religião que a ensi­
nava e que por milagre a praticava.
Quarta regra: Amai vossos inimigos: fazei bem áquel-
les que vos aborrecem, orai por aquelles que vos perseguem
e vos calumniam. (Math., v. 44.)
Quinta regra: Ama o proximo, ou pelo menos esfor­
ça-te por amar o proximo, como Jesus Christo nos amou.
«Amai-vos uns aos outros como eu vos tenho amado!»
Regra sublime, cuja pratica constitue uma perfeição
eminente, o heroismo da caridade.
E ’ este em rigor o mandamento novo que só um
Deus podia trazer ao mundo, do qual só um Deus po­
dia offerecer-nos o exemplo, exemplo que só um Deus
por sua graça pode mover-nos a imitar. Pois Jesus
Christo amou-nos: l.° sem nenhum interesse da sua
parte e sem nenhum motivo da nossa, não só porque na
qualidade de peccadores não podiamos ser de forma
alguma dignos de amor, mas porque uma semilhante
condição nos volvia soberanamente dignos de aversão.
Não obstante amou-nos mais do que a si mesmo,
pois se aniquilou por nós, e derramou seu sangue até á
ultima gota. Assim diz S. João (Ep. nr, 16): «Se Jesus
nos testificou seu amor dando sua vida por nós, deve­
mos corresponder a este amor dando nossa vida por
nossos irmãos.» O apostolo da caridade accrescentava:
«Meus filhinhos, amai-vos uns aos outros, não de pala­
vra e de lingua, mas por obras e verdade. Por este ca­
racterístico reconheceremos e reconhecerão que somos
da verdade... Sabemos que fomos transportados da
morte para a vida, porque amamos nossos irmãos...
Aquelle que ama cumpre a le i... Se vos amardes, isso
basta - ..»
UNDEC1M0 ESPLENDOR DA PÉ 221

Jesus Cbristo inculcou a seus discípulos a caridade


debaixo ainda de outra forma: «Sêde misericordiosos,
como vosso Pai celestial é misericordioso.» A miseri­
córdia, piedade do coração para com a miséria do pro-
ximo, e as obras de misericórdia são recommendadas
n’estas palavras da sentença final:
«Vinde, bemditos de meu Pai, possuir o reino que
vos está preparado desde o principio. Porque tive fome
e destes-me de comer; tive sêde e destes-me de beber;
não tinha asylo e recolhestes-me; estava nú e vestistes-
me ; doente e visitastes-me; prisioneiro e viestes ver­
me.» As obras de misericórdia são de duas especies,
corporaes e espirituaes. As primeiras em numero de
sete são: visitar os enfermos; dar de comer aos famin­
tos ; de beber aos sequiosos; vestir os nus; visitar e soc-
correr os prisioneiros; sepultar os mortos. As segundas
também são sete: ensinar os ignorantes; dar conselho
aos que d’elle carecem; esclarecer os que estam em
erro; perdoar as injurias; consolar os tristes; soffrer os
defeitos do proximo; orar a Deus pelos vivos e de-
functos.
A caridade christã deve alem d’isso revestir quali­
dades ou preencher condições que S. Paulo enumera
com uma complacência inspirada n’esta passagem su­
blime :
«Ainda que eu falasse todas as linguas dos homens
e dos anjos, se não tiver caridade, não sou mais do que
o bronze que soa ou cymbalo que retine. Ainda que ti­
vera o dom de prophecia, ou penetrasse todos os mys-
terios, ainda que versasse toda a sciencia, ou tivesse fé
bastante para transportar montes... ainda que distri­
buísse todos os meus bens pelos pobres ou entregasse
meu corpo ás chammas... se não tiver caridade de
nada me serve tudo isto. A caridade é paciente, doce
e bemfazeja; não é invejosa, nem temeraria ou preci­
pitada; não se tinge de orgulho; não é ciosa; não busca
222 OS ESPLENDORES DA FÉ

seus proprios interesses; não se irrita; não pensa mal;


não folga com a injustiça. Tudo soffre, tudo crê, tudo
espera, tudo supporta. As prophecias hão de acabar, as
línguas hão de cessar, a sciencia ha de desvanecer-se,
a Caridade essa nunca terá fim. A Fé, a Esperança, a
Caridade são tres cousas excellentes, mas a Caridade
é-o bem mais! A Fé ha de passar, a Esperança ha de
passar, só a Caridade permanecerá.»
Finalmente Jesus Christo resumiu toda a sua dou-
ctrina n’estas palavras ineffaveis: «Aprendei de mim,
que sou manso e humdde de coração.»
A doçura é a perfeição, o verniz, a flor, o perfume
da caridade. A humildade é o fundamento, o meio, o
baluarte da caridade. Debaixo de todas as suas formas
e em todos os seus graus de perfeição a caridade é a
virtude sobrenatural, pela qual amamos ao proximo por
amor de Deus, de sorte que na opinião de S. Thomaz, o
amor de Deus e o amor do proximo apenas constituem
um só e mesmo habito ou disposição d’alma capaz de
actos differentes. Interrogado acerca dos mandamentos
da lei, o Salvador respondeu: «O primeiro e o maior
dos mandamentos é: «Amarás ao Senhor teu Deus de
todo o teu coração, com toda a tua alma, com todas as
tuas forças, com todo o teu espirito.» O segundo é se-
milhante ao primeiro: «Amarás ao proximo como a ti
mesmo.»
O motivo ou base do primeiro mandamento é o
proprio Deus! O motivo do segundo é Jesus Christo,
Deus incarnado na humanidade, no homem, incarnado
porem de maneira particular no pobre. «Tive fome e
destes-me de comer; tive sêde e destes-me de beber...
Aquillo que fizestes ao mais pequeno dos meus, a mim
o fizestes.»
Não é tudo: a coroa indispensável da caridade
evangélica eil-a aqui. Ha de ser essencialmente activa,
mas cheia de pudor e occulta. «Tende cuidado, diz Je-
UNDECIMO ESPLENDOR DA FÉ 223

sus Christo, não façais as vossas boas obras deante dos


homens para attrahirdes sobre vós seus olhares, porque
então perderieis vossa re:-ompensa. Quando derdes a es­
mola, que vossa mão esquerda ignore o que faz a vossa
mão direita, afim de que vossa esmola fique em segre­
do, e que vosso Pai que vê tudo no recondito vos dê a
paga.» Aqui está a caridade evangélica em todo o es­
plendor do divino, suas regras, suas obras, suas quali­
dades esquisitas, seus motivos, sua perfeição ou sua
coroa.
E não soffre duvida, que o signal por onde desde
as primeiras edades da Egreja se reconhecem os chris-
tãos, é sua caridade fraterna.
E ’ por suas boas obras que a contento de Deus ta­
pam a bocca d’aquelles que blasphemam do que igno­
ram.
Eram apontados a dedo: «Vêde-os como se amam!»
Formavam um só coração e uma só alma! Yêde quanta
é sua solicitude pelos pobres! S. Pacomio, fundador da
vida cenobitica, ainda soldado, passando por uma cida­
de christã, foi tomado de assombro á vista dos dons
voluntários que um grande numero de habitantes fazia
aos pobres. Perguntou que anjos de caridade eram
aquelles; responderam-lhe que eram christãos.
Sem detença ergue as mãos ao ceo e jura abraçar
o christianismo. A viuva e o orphão, o velho sem am­
paro, o indigente vestido de trapos são objecto não só
da compaixão e do amor do christão, mas de seu res­
peito e de sua veneração. A Egreja tem ensinado aos
príncipes e aos reis a lavar e a beijar os pés do pobre,
de quem ella tem sido em todo o tempo a alma nutriz.
Emquanto possuiu thesouros, prodigou os em seu favor:
para elles construía magníficos hospícios, instituiu or­
dens religiosas dos dois sexos para os alimentar, para
os soccorrer em suas necessidades, para lhes assistir nas
enfermidades, para os consolar na dôr. Hoje, pobre e
224 0 8 ESPLENDORES DA FÉ

indigente, faz apello ao menos á caridade publica em


faror d’aqüelles de seus filhos que soffrem ; geme, e solta
o grito compadecido das entranhas maternas; armada
de todos os seus meios de auctoridade e de persuasão,
não cessa do alto da tribuna sagrada de ameaçar os
ricos avaros e egoístas, de convidar a novos esforços, a
novos sacrifícios os ricos caridosos e compassivos...
Em resumo desde os alvores do Christianismo — e
é este um dos factos mais brilhantes da historia —tem
surgido como por encanto uma pleiade de heroes da
humanidade regenerada que á porfia tem observado re­
ligiosamente todas as regras da caridade evangélica,
praticado todas as obras de misericórdia corporal e es­
piritual com o luxo divino das qualidades esquisitas que
S. Paulo enumera tão complacentemente, pondo-lhe o
sello da humanidade e da doçura, cujo exemplo nos
legou o divino Salvador, dotando-a com esse doce per­
fume de timida modéstia que a si própria se oçculta o
bem que faz. E não são sómente heroes da caridade,
são gerações inteiras de heroes succedendo-se indefessa-
mente a seu sancto Fundador, os que continuam o glo­
rioso apostolado de sua caridade sem limites.
Depois de a havermos admirado na idealidade, ve­
jamos como alguns de seus mais bellos modelos a tem
sabido pôr em practica em grau heroico.
S. Paulo. — Zelador ardente da seita pharizaica,
reputava só como amigos seus os do seu partido e os
de sua raça; perseguia furibundo tudo quanto contra­
riava as tradições de seus pais. Mas logo que adora a
Jesus Christo, attentai como seu coração se dilata!
«Cesse, diz elle, toda a distineção entre Judeu e Gen­
tio, circunciso e incircunciso, Grego, Barbaro, Scytha,
entre escravo e homem livre, Jesus Christo e só elle é
tudo em todos, e todos são n’Elle. Por seu amor per­
tenço não a um povo, não a uma seita, mas a todos os
povos selvagens e civxlisados, a todos os homens sábios
UNDECIMO ESPLENDOR D A FÉ 225

e ignorantes, prudentes e insensatos. A caridade de Je­


sus Christo urge-me. Em meu peito e entranhas trago
tudo quanto foi resgatado em seu sangue. Vprteria da
melhor vontade todo o meu pelo mais obscuro habi­
tante da ultima região da, terra. De livre que era tor­
nei-me escravo de todos; percorro o mundo inteiro
para servir meus semelhantes, chorando com os que
choram, regozijando-me com os que se regozijam, sof-
frendo sem me queixar a fome, a sêde, a nudez, fadigas
extremas e cruéis perseguições, esquecido de mim
mesmo e fazendo-me tudo para todos, para tudo reu­
nir debaixo da doce lei do Deus de misericórdia e de
am or!»
S. João Evangelista. — Hauriu a caridade no peito
de Jesus Christo que á sua semelhança o fez manso e
humilde de coração. Como é admiravel quando nos diz
em sua epistola: «Caríssimos, amemo-nos uns aos ou­
tros, porque a caridade é de Deus. Todo aquelle que
ama nasce de Deus, e conhece a Deus. Aquelle que não
ama não conhece Deus, porque Deus é o amor! Se al­
guém disser: Eu amo a Deus, e aborrecer seu irmão,
mente, pois como aquelle que não ama seu irmão que
vê amaria a Deus que não vê?» Oráculo divino mas
formidável, que se explica por estas solemnes palavras
de Jesus Christo: «O que fizerdes ao minimo dos meus,
a mim o fizestes!» Nos últimos annos de sua vida, le­
vado á egreja nos braços dos fieis, não podendo já fa­
zer-lhes longas exhortações, contentava-se com esta:
«Filhinhos, amai-vos uns aos outros.» E quando lhe
observavam que não lhes dizia outra cousa, respondeu:
«E’ o preceito do Senhor, se o cumprirdes, tanto bas­
ta!» Já tinha seus oitenta annos, quando tendo sabido
que um mancebo por elle confiado á solicitude pater­
nal do bispo de Epheso, de excesso em excesso cahira
em se tornar capitão de ladrões, vivendo com elles de
roubos e morticinios, em um monte escarpado e coberto
vol. iv 25
226 OS ESPLENDORES DA PE

de espessa floresta, monta a cavallo, toma um guia, e


dirige-se a toda a pressa para o valhacouto dos bandi­
dos. Tendo lá chegado, desce do cavallo, despede aquel-
les que o acompanhavam, e penetra sósinho atravez da
espessura. Preso pelas sentinellas, pede que o conduzam
á presença do capitão. Logo que reconheceu a João,
larga a fugir; João persegue-o gritando-lhe: «Porque
fojes de teu pai, que vem buscar a ovelha perdida e
reconduzil-a ao aprisco?» Não lhe sendo possivel resis­
tir a instâncias taes, o moço pára, abraça chorando o
sancto velho, que o estreita amorosamente ao peito, o
leva consigo e o reconcilia com Deus.
S. Nicolau, bispo de Mijra. Mereceu pela innocen-
cia da vida, pela piedade, por uma terna compaixão
pelos pobres, ser o modelo e o padroeiro da infancia e
da juventude christã. A morte prematura de seus pais,
constituira-o senhor absoluto de sua sorte, e possuidor
de uma immensa fortuna. Foi o thesoureiro do pobre e
do indigente, Indagava as necessidades occultas, as mi­
sérias timidas, e soccorria-as em segredo. Nada mais to­
cante do que as sanctas industrias, as destrezas que em­
pregava para roubar não sómente aos olhares estra­
nhos, mas aos proprios indivíduos, objecto de seus be­
nefícios e munificencias, a mão que lh’as dispensava,
para que só a Deus os agradecessem, de quem era o
ministro invisível. Duas virtuosas donzellas irmãs, a
quem o pai não pudera dotar, porque por uma serie de
desgraças, de rico e abastado que era cahira na mise-
cia, tinham recebido d’esta mão desconhecida sommas
que as habilitaram para casar decentemente. Uma ter­
ceira irmã, não menos digna do que as outras duas, con­
cebeu a esperança de ser a seu turno opportunamente
favorecida. Esperavam terceira bolça arrojada de im­
proviso pela janella aberta. A bolça não se fez espe­
rar! Mas d’esta vez o mysterioso bemfeitor foi perce­
bido, e não pôde esquivar-se ao reconhecimento por
UN DÉCIMO ESPLENDOR DA FÉ 227

tanto tempo illudido. Soube-se desde então quem era o


auctor de cem outras liberalidades secretas.
S. Paulino, bispo de Nola. — S. Agostinho disse
d’elle: «Ide á Campania, visitai Paulino, esse tão
grande por seu nascimento, por seu genio e riquezas!
Yêde com que generosidade esse servo de Deus se
despoja de tudo para só a Deus possuir! Yêde como
renunciou ao orgulho do mundo para abraçar a humil­
dade da cruz! Vêde como emprega em louvar a Deus
esses thesouros de sciencia, perdidos quando se não
consagram áquelle que os confiou!» Certo dia, não ten­
do já nada que distribuir, vende-se a si mesmo para
resgatar o filho de uma pobre viuva! Levado captivo
pelos (Iodos, dizia a Deus com simplicidade: «Não
consintais que me atormentem por ouro ou prata;
bem sabeis onde depositei tudo o que me destes.»
S. João o Esmoler, bispo de Alexandria. — Mal to­
mara posse, reune os econoinos de sua egreja, e diz-
lhes : «Ide por toda a cidade, e inscrevei com muito
cuidado os nomes de todos os nossos senhores e amos!»
Perguntam-lhe com pasmo quem eram esses amos e
senhores. «São aquelles, diz, a quem vós chamais os
Pobres/» Encontraram mais de sete mil, aos quaes
mandou dar esmola todos os dias. Eis o seu testamen­
to: «Dou-vos graças, meu Deus, por que ouvistes mi­
nha deprecãção, não me resta mais do que a terça
parte de um soldo, embora em minha ordenação en­
contrasse na casa episcopal de Alexandria quatro mil
libras de ouro, afóra as quantias innumeraveis que re-
cebi dos amigos de Christo ..»
8. João (lualberto. — Encontrando n’uma sexta feira
sancta em uma passagem estreita o assassino de seu ir­
mão, ripa da espada e cresce para elle. Mas lançando-
se-lhe aos pés, com os braços em cruz, conjura-o em
nome de Jesus Christo a que lhe não tire a vida. To­
cado a este espectáculo, João estende a mão ao assas-
228 OS ESPLENDORES DA FE

sino, e diz-lhe: «E’-me impossivel recusar-te o que


me pedes em nome do Salvador; concedo-te não só a
vida, mas até minha amizade,» e abraçou-o ternamente-
Fundador da Ordem de Vallombreuse, João fez da
charidade para com os pobi’es a virtude culminante; a
ninguém despedia sem lhe dar esmola; muitas vezes
aconteceu-lhe deixar vasios os celleiros do mosteiro
para soccorrer os indigentes. Deus permittiu que em
uma grande fome se multiplicassem miraculosamente
as provisões do convento de Kozzuolo, aonde acudiam
pobres de toda a parte.
S. Izabel da Hungria. — O castello de Marburgo.
que ella habitava, levantava-se sobre um rochedo es­
carpado, aonde os doentes não podiam subir. Manda
edificar perto do castello dois hospitaes, onde todos os
doentes e pobres eram acolhidos.
Yisitava-os a miude, e practicava para com elles
os serviços os mais humilhantes e mais ternos. Todos
os dias distribuía á sua porta abundantes esmolas em
dinheiro e provisões a novecentos indigentes, de forma
que suas rendas eram no rigor da palavra o patrimônio
dos pobres.
Prudente em sua excessiva charidade, mandava
trabalhar aquelles que podiam, de maneira proporcio­
nada a sua força e destreza. Espoliada de seus esta­
dos e fortuna, reduzida á miséria, estendeu a mão sem
vergonha e vivia de esmolas. Quando mais tarde seu
espoliador e seu carrasco, voltou a sentimentos de jus­
tiça e bondade, lhe pediu perdão pelo mal que lhe ti­
nha feito, em resposta abriu-lhe os braços e regando-o
de lagrimas, exclamou: «Não quero nem vossos castel-
los, nem vossas cidades; dai-me tão sómente com que
prover ás necessidades dos pobres.» Logo que recebeu
os quinhentos marcos de prata que o duque Henrique
lhe enviou, mandou-os distribuir pelos pobres de uma
só vez e no mesmo dia. Fez publico por toda a parte
UNDECIM0 ESPLENDOR DA FÉ 229
nas vinte e cinco léguas em redor de Marburgo, que
todos os pobres se reunissem n’um dia determinado em
certa planicie proximo de Wherda.
No dia aprazado milhares de mendigos, vagabun­
dos, estropiados, cegos, enfermos se acharam ali reuni­
dos. Izabel presidiu á distribuição de sua pensão, pas­
sando de fileira em fileira, servindo todos os pobres
com uma toalha á cinta, como se servisse a Jesus
Christo. Ao entardecer, vendo que os mais fracos ti­
nham de passar a noite ao sereno, mandou accender
grandes fogueiras, lavar-lhes os pés e perfumar-lh'os.
Como cantassem, enthusiasmados por tantas atten-
ções, exclamou: «Bem vol-o tenho dicto, que devemos
tornar os homens tão felizes quanto possível.» B correu
para tomar parte em sua alegria.
S. João de Deus, fundador dos Irmãos da Charidade.
— Convertido por João d’Avila, entra a correr pelas
ruas de Grenada, arrancando os cabellos em tal deses­
pero, que a populaça crendo-o louco, poz-se a perse-
guil-o á pedrada e a cacete. De volta a sua casa, co­
berto de sangue e de lama, dá aos pobres tudo, e fica
reduzido a miséria extrema. Chamado pelo sancto reli­
gioso cuja voz lhe commovera o coração, á practica da
charidade, arranjou algum dinheiro no negocio da ma­
deira, com o qual alugou uma casa para doentes po­
bres. A todas as necessidades provia, passando as horas
do dia á cabeceira da cama dos enfermos, e as da noi­
te a transportar outros para este hospital improvisado.
Um dia pega-lhe o fogo na casa; vivameute alar­
mado do perigo que corriam seus caros doentes, to­
ma-os a todos um por um ás costas e salva-os atra vez
das chammas! Pareciam respeitar o fogo intenso que
abrazava seu coração, de forma que nem elle, nem seus
doentes padeceram cousa alguma. Sua charidade não
se delimitava nas paredes do hospital, penetrado de
dor ao pensar que muitos infelizes não teriam o neces-
230 OS ESPLENDORES DA FÉ

sario, mandou proceder a uma investigação exacta de


todos os pobres da província, e proveu a suas necessi­
dades já enviando-lhes alimentos a casa, já proporcio­
nando-lhes trabalho. Certo dia que o arcebispo de Gire.
nada lhe censurava receber em seu hospital todos os
vadios e homens de má vida, respondeu com admirá­
vel candura: «Não sei que haja no meu hospital outros
peccadores senão eu, que sou indigno de comer o pão
dos pobres!» Seus religiosos que vão de porta em porta
pedindo esmola, dizem: Meus irmãos, fazei bem por
amor de Deus.
Na Italia são por isso conhecidos pelo nome de
iate ben Fratelli!
S. Thomaz de Villanova. —Ainda creança, dava do
seu almoço aos outros pequenos, e seus vestidos áquel-
les que tinham trio. Voltou mais de uma vez para casa
sem fato, sem chapéu e sem sapatos.
Se lhe tivessem feito a vontade, daria todas as suas
refeições aos pobres, e elle comeria pão secco. Na mor­
te de seu pai, distribuiu toda a herança pelos pobres,
fez de sua casa um hospital, e entrou na ordem dos
Eremitas de S. Agostinho.
Nomeado arcebispo de Valença, fez a jornada a
pé, com o habito de monge já bem puido. O cabido
que bem conhecia sua pobreza, presenteou-o com qua­
tro mil ducados para mobilia; recebeu-os, mas logo os
doou ao hospital, que estava ao tempo muito sobrecar­
regado. Guardou o habito monástico, que remendava
elle mesmo, como a regra prescrevia. Dos dezoito mil
ducados que rendia a mitra, treze eram destinados a
obras de caridade.
Todos os dias se viam á sua porta quinhentos po­
bres, e todos recebiam com uma ração de pão e vinho
uma pequena quantia de dinheiro. Contribuía para o
dote das donzellas casadoiras. Mas sua particular ter­
nura empregava-se nos orphãos; recompensava aquelles
UNDECIMO ESPLENDOR DA FÉ 231

que lh’os traziam. Antes de expirar, quiz que dessem


aos pobres toda a mobilia e dinheiro que lhe restava!
E como, já depois de te r repartido largamente por to­
dos, seus fâmulos lhe trouxessem ainda mil e quinhen­
tos ducados, reprehendeu-os por lhe retardarem sua
ditosa morte. «Ide, disse-lhes, acabai com isso, afim de
que eu não viva mais tempo.»
Quando voltaram, exclamou: «Agora, marcharei
alegre ao combate, nada tenho por onde o inimigo
possa deter-me. Tendo tido conhecimento de que um
pobre pae de familia, carcereiro, não tivera parte na
distribuição da mobilia, mandou-o chamar, pediu-lhe
desculpa do esquecimento, deu-lbe a cama sobre a qual
estava deitado e fez signal de que o descessem e o pu-
zessem no chão, para que o novo domno pudesse levar
a cama. Como ninguém lhe quizesse fazer n’isto a von­
tade, o sancto volta-se para o pae de familia, e roga.
lhe em nome de Jesus Christo que lhe permitta o uso
do leito até á sua morte. Esplendor!
S. Luiz Gonzaga. — Este sancto ioven pertencia
mais ao ceo do que á terra; era mister todo o rigor da
obediência para o arrancar a seu commercio intimo
com Deus; mereceu que o Papa Bento xiii lhe desse
este glorioso testimunho: «As mais eloquentes palavras
não poderiam louvar condignamente a caridade de Luiz
Gonzaga, porque attingiu o grau mais elevado a que
pode chegar-se.
Ostentou-se principalmente, quando em Boma apoz
a fome se declarou a peste, onde fez tantas victimas.
Embora lhe custasse a ter-se em pé — tal era a fraqueza
a que o reduziam as mortificações — solicitou e obteve
de seus superiores licença para visitar os pestiferos nos
hospitaes, e de lá os transportar ás costas, de lhes la­
var os pés, de os consolar e animar, e de ir de porta
em porta mendigar para os que tinham fome, etc. Ata-
232 OS ESPLENDORES DA FÉ

cado do flagello no exercício da santa caridade, mor­


reu com 23 annos de edade apenas!
S. Vicente de Paulo.-—Uma piedade rara, a pureza
immaculada de seus costumes, a solidez e a penetração
de seu espirito, a candura de sua alma, uma ternura
para com os pobres que chegava a ponto de repartir
com elles d’aquillo que mal bastava para suas necessi­
dades, um amor ardente pela casa do Senlior, um zelo
prematuro por sua gloria revelavam os secretos desi-
gnios da Providencia a seu respeito. Debaixo do fato
rude do moço pastor occultava-se o coração do bom
pastor... Nunca houve coração mais sensível ás misé­
rias humanas do que o seu; tinha o genio de bemfazer
e soube communical-o aos outros.
Por toda a parte, por onde Vicente passar, a dor
e o infortúnio serão forçados a bater em retirada.. ■
Deus que o constituiu de modo particular ministro de
sua caridade, e depositário de seus dons n’este mundo,
deu-lhe auctoridade e poder sobre todos os corações,
direito e acção, digamol-o assim, sobre todas as fortu­
nas, de íorma que é impossível recusar-lhe cousa al­
guma em sua qualidade de provedor e economo dos
pobres... Parece que tudo pertence a este homem de
Deus, e que recebeu o supremo dominio sobre todos os
bens... E assim que não poderá elle ? o que não pôde
nenhum soberano! Nutrir a população inteira de qua­
tro grandes províncias! Luctar contra os flagellos con­
jugados do contagio, da fome e da guerra, e vencel-os*
Prover durante vinte annos consecutivos a todas as ne­
cessidades de vinte e cinco cidades e de um numero
dez vezes maior de villas e aldeias! Mandar a oitenta
casas suas distribuir diariamente viveres, remedios e
vestidos, a todo um povo nú, doente e faminto! Ser
n’uma palavra para os habitantes de uma notável parte
da França o que a Providencia é para o universo! Que
UNDEC IMO ESPLENDOR DA FÉ 233

diriamos, se mettessemos em conta os hospitaes, casas


de refugio, asylos, etc., que abriu para todas as edades
e misérias humanas? Se o mostrássemos ao leitor, re­
solvendo já no íim de seus dias com pleno successo o
problema insolúvel para os governos da abolição da
mendicidade? E provando assim que a religião pode
só por si o que será sempre impossivel ao poder hu­
mano, porque este emprega o zelo mercenário que
anceia enriquecer, e aquelle a caridade generosa que
forceja por empobrecer?
A irmã da Caridade.—E’ a obra prima de S. Vi­
cente de Paulo, que tomou, como Deus, o lodo da terra*
e lhe deu forma e espirito. Ensinou-lhes d’um jacto os
ternos cuidados que reclamam as dores e os enojos da
enfermidade; as doces insinuações que consolam e ani­
mam ao moribundo; a solicitude attenciosa que adivi­
nha as necessidades; o ardor que previne os desejos, o
zelo que triumpha dos desgostos; a paciência que não
esgotam ingratidões e injustos murmurios; a arte tão
proveitosa de preparar por suas mãos os remedios e
de aplical-os com discernimento, de pensar delicada­
mente as feridas, de curar as enfermidades...; a arte
de balbuciar com a infancia para a formar na sciencia
e na virtude; de inspirar a fé aos pobres alliviando-lhes
as misérias; de assim fazer uma dupla esmola ao mesmo
tempo, esmola ao corpo, esmola também á alma etc.
Escola de novo genero, onde a própria caridade en­
gendra mães para os orphãos, mestras para as meninas
pobres, médicos para os doentes, hospicios para a indi-
gencia, consoladoras para todas as dores, etc. E são
passados já dois séculos, e estes ensinamentos de S. Vi­
cente de Paulo estão tão vivos ou talvez mais vivos do
que no primeiro dia! A philosophia, a heresia, o scisma
nunca puderam formar uma uni ca irmã da caridade. E
a santa Egreja catholica, apostólica, romana conta em
seu seio vinte mil, um exercito que assombra e desafia
234 OS KSPLENDOKES DA FÉ

o mundo. Por toda a parte estimadas, por toda a parte


amadas, votadas á castidade, á pobreza, á obediência,
e se tanto for preciso, á morte.
Em Paris, durante o cerco, quarenta e sete irmãs da
caridade tratavam em Bicetre os soldados atacados de
variola. Onze succumbem dentro de poucos dias! Ex-
haustas de fadiga, envenenadas pelo ar pestilencial que
respiram, as trinta e seis que restam não chegam para
todos os serviços da ambulancia! Requisitam-se outras
onze, aparecem logo trinta e duas.
A Irmã Rosalia. — Tinha apenas quinze annos, e já
brilhava com todos os attractivos da belleza; entra nas
Irmãs da caridade! Morta aos setenta annos, consagrou
a Deus e aos pobres cincoenta e cinco annos de sua
vida. Depois de terminar o noviciado, foi mandada para
a Pequena Casa da Rua Epée de Bois, bairro de S. Mar-
ceau, um dos mais pobres arrabaldes de Paris, o mais
grosseiro e entregue a todas as suggestões das más pai­
xões ; nunca a abandonou! Se adregava falar-se dos vi-
cios que minavam aquella infeliz gente, respondia: «-São
meus filhos, e se a graça me não sustentasse, seria peior
do que elles!»
Exercia sobre todos os que se lhe aproximavam
um poder extraordinário, o poder de um espirito supe­
rior e de um coração animado do ardente amor de
Deus e dos pobres. Os proprios incrédulos não lhe re­
sistiam, postos em frente de necessidades extremas, te-
miveis e cruéis, era-lhes impossivel deixar de abrir a bol­
sa, todos os dias mais, até que á hora marcada, não sa­
biam como, mas sentiam-se inundados de fé, de conhe­
cimento e amor de Deus.
Quantas almas abriu ás influencias da graça, depois
de obter que abrissem a bolsa! Não se contentava com
o concurso das esmolas, pedia e alcançava o concurso
dos corações. Assim dispunha de um exercito de auxi­
liares, damas, jovens e homens maduros. O poder que
UNDEC1M0 ESPLENDOR DA FÉ 235

exercia em nome dos pobres sobre tudo quanto se lhe


avisinhava, creava-lhe um fundo de recursos inexgota-
veis; era d’esta sorte que sua caridade podia abraçar
todas as misérias que lhe pediam soccorro, e allivial-as.
Nada a amedrontava; sabia sempre excogitar o meio
de vencer os obstáculos que se oppõem ao bem. Nas
grandes crises desenvolvia um poder incalculável. Sem­
pre calma, fria mesmo na aparência, conseguia, como
se viu durante o cholera de 1832 e de 1849, como nas
jornadas de 1848 organisar meies de soccorros propor-
cionaes ás grandes necessidades. E ’ impossível enume­
rar os prodígios de caridade e de misericórdia por ella
feitos!
Mas para que se faça uma pequena ideia bastará
dizer que sendo dotada de actividade rara, passou to­
dos os seus dias unicamente occupada do proximo sem
outro descanso que o tempo, consagrado á oração!
E não era por certo este tempo aquelle, em que
menos trabalhava em sua missão quotidiana de ardente
caridade. Esplendor!
Ms Irmãsinhas dos Pobres. — Um humilde vigário de
Saint-Servan, villa da Bretanha, em face de S. Maio, o
sr. P.e Lepailleur, commovido profundamente pelos ve­
lhos pobres, fatalmente condemnados á mendicidade ou
antes á vadiagem, concebeu o desígnio de fundar um
asylo que lhes assegurasse ao mesmo tempo os soccor­
ros tsmporaes e espirituaes. Não dispunha comtudo dos
recursos indispensáveis para a realisação do seu pensa­
mento, por isso teve de limitar-se a exprimir o seu de­
sejo a duas meninas, suas confessadas, nas quaes desco­
brira as mesmas aspirações.
Convidou-as a unirem-se-lhe e a estarem promptas
para responder á vocação de Deus.
O regulamento que redigiu para ellas continha esta
phrase que foi o ponto de partida de uma das mais bel-
las creações da caridade catholica.
236 OS ESPLENDORES DA FE

Sobretudo forcejaremos por tratar com bondade os po­


bres velhos, enfermos e doentes; não lhes recusaremos nossa
solicitude. Chegou o momento; a divina Providencia poz
na mesma estrada das duas jovens outros dois anjos de
caridade, Joanna Jugan e Fanchon Aubert, a quem
deram asylo na mansarda que habitavam, assim como a
uma velha cega que tinham adoptado. Tal foi o berço
da obra incomparável que promete conquistar o mundo.
No conselho da mansarda resolveu-se immediata-
mente recolher o maior numero de velhos possivel. As
quatro associadas não podiam desde então pensar em
ganhar a vida de seus pobres pelo trabalho; os cuida­
dos reclamados pela edade e fraquezas de seus adopti­
vos absorviam-lhes todo o tempo. Mandar os velhos pe­
dir esmola teria sido expol-os novamente ao perigo de
recahirem nos maus hábitos.
Então o padre propoz-lhes irem ellas mendigar para
elles.
Quem havia de pensar que o novo instituto encon­
traria n’esta decisão o seu futuro e recursos inesgotá­
veis ? E no entanto a partir d’este dia, puderam provi­
denciar a todas as necessidades de seus pobres por esta
nobre e sancta mendicidade. Sofiriam vaias e baldoes,
viam-se cercadas de uma atmosphera de ridículo e de
opprobrio...
O numero dos velhos crescia continuamente; exi­
gia novas Irmãsinhas dos pobres. Foi este o nome tão
humilde quanto amoravel que tomaram, depois de ha­
verem accrescentado aos tres votos ordinários de po­
breza, castidade e obediência o voto particular de hos­
pitalidade. .. Era tal a sua convicção de que seu exem­
plo seria imitado, que só pensavam em fundar novas ca­
sas. O momento avisinhava-se em que a obra ia tomar
uma extensão miraculosa. O piedoso fundador mal po.
dia acreditar no que via; novos recrutas vinham alis­
tar-se n'este exercito contra a miséria. Por via de re­
DÉCIMO ESPLENDOR DA FÉ 237

gra eram pobres operarias ou simples creadas de ser­


vir, transformadas graças ao amor de Deus em servas
dos pobres; os noviciados multiplicavam-se e aperfei­
çoavam-se ; as Irmãsinhas apareciam como por encanto.
Hoje sua congregação, tão novel ainda, compoe-se de
dois mil e oitocentos membros, e estes 2,800 membros
encarregam-se de por si sós nutrir, consolar, alliviar,
mais efficazmente do que o faziam todas as administra­
ções vinte mil pobres velhos !
Pois uma só casa fundada no hospital custa dez mil
francos! As 105 casas, as 20,000 camas das Irmãsinhas
dos Pobres custariam portanto duzentos milhões de fran­
cos, e todavia nada custaram. E’ um mundo sahido do
nada á voz da omnipotencia divina. Estas casas bemdi-
tas são no fundo a reunião de todas as misérias imagi­
náveis ! Mas do seio d’esta pobreza de cortar o coração,
d’estas repugnantes enfermidades, resalta como que um
irradiar de dignidade, de ventura, de contentamento!
As almas são felizes, veem e gostam de Deus.
As irmãs honram-no e amam-o nos pobres, os po­
bres bendizem-no e amam-o nas irm ãs; nada ha mais
tocante e suave do que a expansão de todos estes po­
bres corações felizes, tranquillos, consolados, cheios de
reconhecimento e de esperança. São tractados como
meninos; imitam-lhes o caracter, o riso franco e aberto,
a alegria, sobretudo a alegria! E quantas conversões
miraculosas produzidas por este espectáculo! Quantas e
quantas vezes se lhes tem escapado esta confissão: Que­
rei bem aos vossos pobres, ó minha mãe, eu era um
mau christão antes de conhecer-vos, não amava os po­
bres; agora amo os pobres e o bom Deus!
Sim uma só irmã da caridade tal qual sahiu do co­
ração de S. Vicente de Paulo com sua touca, seu esca-
pulario, seu corpinho, saia e avental, seu rosário, sua
cruz e sua caveira; uma só irmãsinha dos pobres tal
qual se nos mostra em Joanna Jugan, com sua capa,
938 OS ESPLENDORES DA FE

sua touca, saia á la Vierge, seu cordão, é um magnífico


esplendor da F é ! Que diremos pois de vinte mil Irmãs
da Caridade, de duas mil e oitocentas irmãsinhas dos po­
bres!
Exercito glorioso de testimunlias brilhantes da di­
vindade da sancta Egreja catholica, apostólica, roma­
na. Ah! como são celestes ao levantarem-se da meza
sancta, trazendo em seu casto seio o divino esposo que
ellas adoram, servem e amam nos meninos e nos velhos
de sua adopção!
Em todos os séculos, e mais do que nos pretéritos
n’este século décimo nono, a sancta Egreja pode lançar
ao mundo o altivo desafio de S. Paulo: Quem adoece,
que eu não esteja com elle? Quem está ahi alcançado
pelo fogo da dor, que não me queime o coração ?! Sim,
na estirada serie das misérias humanas, misérias do cor­
po e misérias de espirito, não ha uma unica para a qual
não tenha descoberto e aplicado o remedio e aberto
asylo. Sigamos de facto rapidamente a esteira do ho­
mem, do seio da mãe ao seio da eternidade, e vejamos
como ao pé do mal lá aparece o remedio que ella traz.
Ao nascer. —Hospícios de maternidade. Sociedades
de maternidade. Irmãs de Nossa Senhora da Assistên­
cia dos partos. Obras dos enxovaes para recem-nasci-
dos. Rodas. Hospícios dos meninos encontrados. Obra
das amas de leite. Obra da Santa Infancia para o res­
gate, baptismo e educação das creanças chinezas.
Do berço á escola. — Salas de asylo. Obra das senho­
ras protectoras das salas de asylo. Obra de adopção.
Obra dos orphãosinhos. Vestiaria do Menino Jesus.
Obra das tutelas das creanças encontradas e abando­
nadas. Orphanatos agrícolas. Obra dos meninos desam­
parados. Obra dos campos para meninos pobres. Obra
da repatriaçao das creanças abandonadas.
Da escola ao aprendizado. —Escolas primarias de
todas as especies. Pensões para as escolas primarias.
UNDECIMO ESPLENDOR DA FÉ 239

Obra da primeira communhão. Obra dos catecismos e


das parochias para vestir creanças preparadas para a
primeira communhão. Sociedades de collocação, educa­
ção, de aprendizado das creanças. Obra da primeira
communhão e da perseverança dos jovens limpa-chami-
nés. Sociedades de educação e de ensino.
Do aprendizado á officina. — Obra dos aprendizes e
dos jovens operários. Obra de patronato dos aprendizes
convalescentes. Orphanatos e officinas de raparigas po­
bres na cidade e no campo. Escolas profissionaes.
Na officina e em família. — Associações de jovens e
de damas de commercio. Escolas nocturnas. Associação
de professores. Obra dos domésticos e das criadas. Re­
fúgios para donzellas e mulheres sem asylo. Sociedades
de despedida para suas familias de raparigas sem collo­
cação e das mulheres abandonadas pelos maridos. Obra
de S. Vicente de Paulo. Grêmios de beneficencia. Da­
mas da Caridade nas freguezias. Damas da Caridade
nos concelhos. Sociedades philantropicas, boticas e for-
nilhos. Caixas de alugueres. Assistência judiciaria. Obra
do secretariado dos pobres. Obra do resgate dos penho­
res depositados no monte-pio. Asylos da boa noite. So­
ciedade de S. Francisco Regis para a rehabilitação dos
casamentos civis e religiosos. Sociedade de protecção
para os indiciados que se justificam.
Infermos. —Asylo de creanças incuráveis. Hospitaes
de Berck-sur-Mer e de Forges-les-Bains para creanças
escrofulosas. Asylos e escolas de surdos-mudos e de sur-
das-mudas. Asylos e escolas de creanças cegas. Socie­
dades para o ensino simultâneo dos surdos-mudos e dos
que falam. Escolas de gagos. Asylo de S. Vicente de
Paulo para epilépticos.
Doentes. —Hospitaes e hospicios geraes. Hospitaes
e hospicios especiaes. Estabelecimentos Monthyon para
convalescentes. Asylos para convalescentes. Obra dos
doentes pobres. Obra da visita dos doentes pobres nos
240 OS ESPLENDORES DA FE

hospitaes. Irmãs guarda-doentes nos domicílios dos ri­


cos e dos pobres. Soccorros aos afogados e asphyxiados.
Soccorros de hospício. Consultas gratuitas. Pharmacias-
Hospícios e asylos de orates.
Velhos. — Hospitaes e hospícios da velhice. Asylo
SanCAnna. Hospícios das pequenas famílias. Casas de
retiro e asylos para velhos de ambos os sexos. Casas
das irmãsinhas dos pobres.
Criminosos. — Sociedades de protecção aos indicia­
dos que se justificam. Sociedades de protecção aos jo­
vens presos e aos jovens soltos. Colonias e penitencia­
rias agrícolas para os moços condemnados. Casas das
raparigas victimas de uma primeira falta. Casas e obras
do Bom Pastor. Obras das damas e cavalheiros visitan­
tes das prisões. Congregações de irmãos e irmãs para
serviço das prisões. Trinitarios e padres da Mercê para
resgate dos captivos nos paizes infiéis. Documentos au-
thenticos provam que o numero total dos infelizes ar­
rancados á escravidão, desde 1218 a 1632, attingiu a ci­
fra enorme de um milhão e quatrocentos mil, e que estes
resgates não custaram menos de oito milhares e quatro­
centos milhões! ( Vida cie S. João cia Matlia, pelo P.e Ca-
listo da Providencia, pag. 345 e 346.) Que esplendor
da P é !
Moribundos e mortos. —Padres das orações da ago­
nia. Congregações dos irmãos da boa morte para assis­
tência dos agonisantes. Capellão dos condemnados á
morte. Irmãos coveiros. Archiconfraria da boa morte-
Confraria de N. S. da Piedade para os mortos. Damas
suffragantes das almas do Purgatório.
E que immensidade de obras especialmente consa­
gradas á satisfação das necessidades religiosas e moraes
das populações! Ohras dos bairros. Obras das egrejas
do campo. Obra dos tabernaculos. Obra das lampadas-
Obra da adoração do SS. Sacramento. Obra do descanso
dominical. Obras da sacra familia. Obra da doutrina
UNDEC1M0 ESPLENDOR DA FÉ 241

christa. Obras dos estudantes. Obra das novas conver­


tidas. Obras da juventude. Obra dos praticantes de S.
Sulpicio. Obra das escolas apostólicas. Obra e socieda­
de dos bons livros. Bibliothecas parochiaes. Obra dos
Bretões, dos Allemães, dos Alsacianos, dos Flamengos,
dos Inglezes, dos Italianos. Congregações e confrarias
de homens e mulheres, etc., etc.
Viajantes — Peregrinos, etc. — Quem não admirará a
dedicação dos Padres de S. Bernardo condemnados vo­
luntariamente a respirar um ar rarefeito e frio que lhes
consome a vida ? Quem ha ahi que ignore a historia da
capella de Nossa Senhora dos Anjos na floresta de
Bondy, da abbadia de Nossa Senhora dos Eremitas em
Einsiedeln; dos numerosos mosteiros erectos nos logares
os mais selvagens dos Abruzzos; dos conventos fortifi­
cados do monte Libano; das ordens dos cavalleiros da
Terra Sancta, etc., instituições inspiradas no pensa­
mento de defender a vida dos viajantes das avalanches
e dos ataques dos bandidos e as caravanas de peregri­
nos das depredações dos Árabes, etc., etc. ?
Os *centros de acção que vimos de enumerar são
só em França mais de vinte mil. Cada centro de acção
conta pelo menos dez cooperadores. O que forma um
total de duzentos mil agentes activos da charidade ca-
tholica, prestando ouvido attento e fiel á voz do Deus
que disse: Ama teu proximo como a ti mesmo. Forceja
pelo amar como eu te amei a ti mesmo!
O que fizeres ao menor dos meus, a mim proprio
o farás.
Aquelle que não ama seu proximo que vê, como
amaria a Deus a quem não vê?
Quem não se deixará possuir ‘de respeito á vista
d'esses innumeraveis monumentos da charidade catho-
lica, onde todas as enfermidades são curadas ou ao
menos alliviadas; onde as dores sem esperança são mi­
tigadas; onde a velhice indigente acha o repouso e a
vol. iv 26
242 OS ESPLENDORES DA F É

tranquillidade; onde o orphao encontra uma família;


onde são prodigados ao infeliz privado de razão cui­
dados que não poderá nunca reconhecer?
Providencia visivel de Deus sobre a terra, só a
Egreja catholica poderia mitigar d’esta sorte os males
da humanidade. Esplendor!
CAPITULO DÉCIMO SEXTO

Duodecimo Esplendor da Fé

E m ve rd a d e , em v e rd a d e vo s d ig o . A q u elle que crê em


m im f a r á a s o b ra s que eu fa ç o e a té m a io r e s ! (S. Jo. xiv,
12.) Jesus acaba de celebrar a Paschoa legal! Depois
de ter amado ternamente os seus, quiz deixar-lhes uma
prova derradeira e excessiva de seu amor.
Deu-lhes seu proprio corpo a comer, seu sangue a
beber, com direitos d’or'avante sagrados á immortali-
dade, á ditosa resurreição, á visão intuitiva, á felicida­
de eterna. Em seguida expande seu coraçào no d’elles.
«Eu vou á casa de meu Pai, vou preparar-vos um lo-
gar. Quando este logar estiver preparado, voltarei e
vos tomarei comigo afim de que estejais onde eu esti­
ver. .. Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém
vai ao Pai senão por mim. Eu estou em meu Pai e meu
Pai em mim - .. Quem me vê, vê a meu P a i... Se não
crêdes em minha palavra, crêde ao menos pelas obras.
Em verdade, em verdade vos digo: Aquelle que crê
em mim fará as obras que eu faço e ainda maiores,
porque vou para o P ai... Tudo o que pedirdes a meu
Pai em meu nome vos será concedido.» Jesus Christo
244 OS ESPLENDORES DA FÉ

promete a seus apostolos um poder egual e mesmo su­


perior ao seu; e indica-lhes o escopo d’essa omnipoten-
cia. Consiste em fazer os milagres que fez Jesus Ohris-
to. E que milagres fez Jesus Christo? Os cegos viam,
os coxos andavam, os leprosos eram curados, os surdos
ouviam, os mortos resuscitavam, os pobres eram evan-
gelisados, os demonios fugiam, uma virtude emanava
de seu corpo e curava todos os males. E deverão os
apostolos e seus successores fazer os mesmos milagres
e maiores ainda!
Eis a prophecia, eis o oráculo! claro, brilhante, so­
brenatural, divino! Cumpriu-se? Evidentemente! á let-
tra! Os milagres dos apostolos, milagres maiores do
que os do proprio Jesus Christo tem enchido e enche­
rão o mundo. Estes milagres por outra parte são ex­
clusivos da Egreja catholica romana. Nenhuma outra
Egreja pensa mesmo em reivindical-os; nenhuma tem
pretensões ao milagre! Logo a Egreja catholica é divi­
na e a unica divina.
Jesus Christo foi mais explicito ainda no dia de
sua Ascensão: «Ide, diz a seus apostolos, por todo o
mundo, prégar o Evangelho a toda a creatura! Eis os
prodígios que hão de acompanhar aquelles que crerem :
Expulsarão os demonios e falarão novas linguas; toma­
rão impunemente as serpentes; beberão venenos mor­
tíferos e não lhes farão mal; imporão as mãos aos
doentes e os doentes ficarão curados.» O oráculo cum­
priu-se immediatamente, pois S. Marcos accrescenta:
«Elles partindo prégaram por toda a parte cooperando
com elles o Senhor, e confirmando sua palavra com os
milagres que a acompanhavam.» Este oráculo de Jesus
Christo: «os apostolos farão os milagres que eu fiz e
maiores ainda,» quando se aproxima do da affirmação,
pela qual S. João termina seu Evangelho, é realmente
decisivo e contundente. Eis as palavras do apostolo :
«Muitas outras cousas fez Jesus, as quaes se fossem
DUODECIMO ESPLENDOR DA FÉ 245

escriptas, nem o mundo todo seria bastante para con­


ter os livros que as referissem.» Pode haver hyperbole^
no que diz o apostolo, mas é rigorosamente verdadeiro
que fizeram os milagres de Jesus e maiores ainda. Desde
o começo de seu apostolado. depois do ruido que se fez
ouvir no Oenaculo, a multidão conjuga-se em redor
d’elles e fica confusa, porque todos os ouvem falar a
sua lingua: «Estes são galileus, e todavia fala cada um
d’elles a lingua, em que nascemos!» Falar todas as lín­
guas a um tempo, fazer-se entender ao mesmo tempo
de povos os mais diversos, é inquestionavelmente um
facto altamente extraordinário! Não lemos que Jesus o
fizesse. E quantas e quantas vezes se não renovou este
prodigio! Paulo em Epheso baptiza doze discípulos do
divino Precursor; não sabiam ainda se havia Espirito
Santo! impõe-lhes as mãos, e immediatamente cheios
do Espirito Santo prophetisam e falam muitas linguas!
E estes dons, estas graças, diversas e portentosas, que
S. Paulo chama obras de Deus: o espirito de palavra,
a sabedoria da sciencia, o dom das curas, o dom dos
milagres, o discernimento dos espíritos, etc. eram com-
muns na primitiva Egreja! Sahia de Jesus Christo uma
virtude que curava todos os males ..! Mas seguiu S. Pe­
dro em sua marcha triumphal. Traziam os enfermos
para as praças publicas, estendiam-nos sobre os graba-
tos, e a sombra de Pedro curava-os... Saphira e sua
mulher surprehendem a boa fé de Pedro; tinham de­
posto a seus pés uma parte apenas do campo vendido...
«Para que esta mentira e esta fraude, diz S. Pedro a
Saphira. Tu mentiste a Deus e não aos homens!» E im­
mediatamente Saphira cae m orto! A mulher de Saphi.
ra mente por sua vez e consumma a fraude. «Porque)
lhe diz Pedro, vos concertastes ambos para enganar o
Espirito Sancto ? Eis que chegam os que levaram teu
marido á sepultura e vão levar-te!»
246 OS ESPLENDORES DA F È

De repente cambaleia e expira! Eram peccados a


sangue frio.
Foram severamente punidos! Mas que grande mi­
lagre comparado mesmo aos do proprio Jesus Christo!
Resuscitou Lazaro, mas nunca deu a morte a peccador
algum só com a espada da sua palavra. E’ sobretudo
na moinentosa obra da pregação do Evangelho que os
milagres dos apostolos excederam os do proprio Jesus
Christo. Logo ao primeiro sermão de S. Pedro tres mil
pessoas se convertem! Ao segundo cinco mil! No mo­
mento da Ascenção do divino Salvador, o numero dos
discípulos encerrados no Cenaculo era de cento e vin­
te! Alem d’estes contavam um ou outro escondidos
aqui e ali, mas em pequeníssimo numero. Quando Pau­
lo, de volta a Jerusalem em casa de Thyago contou aos
anciãos reunidos o que Deus obrou a favor dos Gentios
por seu ministério, estes, glorificando a Deus, lhe di­
ziam: «Vês, irmão, quantos milhares de Judeus creram!
E no entamto eram todos mui zelosos da lei.»
Milhares de judeus, zelosos da lei, convertidos, que
milagre!...
E o paganismo da Grécia e de Roma extirpado! E
o Evangelho recebido no mundo inteiro! Os ditosos
pés de cada um d’estes admiráveis pescadores d’almas,
d’estes evangelistas da paz, d’estes evangelistas do bem,
correndo sempre, semeavam por toda a parte milagres.
Todo mundo ouviu o retinir dos prodígios semelhantes
ou maiores do que os do divino Salvador. Logo o cum­
primento da propliecia encheu também o mundo. Nun­
ca faltaram na Egreja de Jesus Christo os milagres no
exercício do apostolado. Mas ha sanctos, a quem a
multidão de seus milagres tem valido o glorioso epi-
theto de Thaumaturgos. São testimunhas mais solem-
nes, mais brilhantes da verdade da palavra de Jesus
Christo, do cumprimento da tão inaudita prophecia.
DUODECIMO ESPLEND O R DA F É 247

Vamos fazer desfilar aos olhos do leitor alguns d’estes


grandes thaumaèurgos.
S . M a rtin h o de T ou rs. — Nascido na Pannonia de
familia idolatra, á volta do anno 316, viu-se obrierado
por ordem de seu pai a entrar na carreira das armas.
Era ainda cathecumeno quando Jesus Christo lhe apa­
receu em visão e lhe agradeceu o ter dado ametade da
capa a um pobre. Deixa a profissão das armas, recebe
o baptismo e vai ter com Hilário, bispo de Poitiers,
que lhe confere o poder dos exorcismos. Ainda levitai
funda o mosteiro de Ligugé, onde opera o seu primeiro
milagre. Um negocio urgente levara Martinho a deixar
a cella. Durante a sua ausência, um noviço ainda não
baptizado, morre subitamente. Os monges estão cons­
ternados. Martinho regressa e sabe do acontecido. Di­
rige-se á cella do morto, manda retirar toda a gente,
faz uma prece fervorosa, e chama á vida aquelle que
pouco antes era cadaver.
Nomeado bispo de Tours, o sancto thaumaturgo
continua sua vida penitente e mortificada. Préga por
toda a parte, acompanhando a palavra de innumeros
prodígios.
Em Tours cura uma rapariga paralytica e quasi
moribunda. .. Em Paris livra um leproso do mal que
o consome abraçando-o e dando-lhe a benção. Em uma
aldeia da diocese de Chartres resuscita um menino,
milagre que determina logo a conversão de muitas al­
mas. .. Dá vista a Paulino de Nola, tocando-lhe nos
olhos feridos de cataracta...
Insistia um dia com os idolatras para que deitas­
sem abaixo uma arvore, objecto do culto pagão; suas
instâncias são coroadas de exito, mas com a condição
de que o bispo se collocaria do lado para onde a ar­
vore devesse cahir. O sancto acceitá.
Querem ainda prendel-o com cordas... consente
n’isso confiando no poder de Deus... A arvore vae ca-
248 OS ESPLEND ORES DA F É

hir... pende para o lado de Martinho... um terrível es­


talido se ouve... o sancto está ameaçado de morte ine­
vitável. .. mas não! Faz o signal da cruz... a arvore le­
vanta-se e cahe com fracasso do lado opposto! Os pa­
gãos maravilhados batem as palmas cheios de enthu-
siasmo, e pedem instantemente que os baptizem.
Sulpicio Severo, testimunha digna de fé, conta ainda
outros muitos prodígios operados por este grande e hu­
milde servo de Deus. Carregado de annos e de traba­
lhos, o grande bispo de Tours recebe aviso de Deus de
seu proximo fim. Estremece de alegria a esta feliz nova,
offerecendo-se no entanto para ficar mais tempo sobre
a terra afim de txabalhar ainda na salvação das almas
e dos corpos. Mas sua coroa immortal está aprestada;
já o espera no ceo! O demonio tenta atemorisal-o. «Que
vens tu aqui fazer, besta feroz? lhe diz o sancto. Em
mim nada encontras que seia te u ;‘o seio de Abrahão
está aberto para me receber.» Taes foram suas ultimas
palavras. Expirou tranquillamente aos noventa annos
de edade. Eis aqui com certeza milagres tão grandes e •
maiores que os de Jesus Christo.
S. Gregorio. —Nasceu também nas trevas da idola­
tria. Sua alma era recta ainda assim, seu coração puro,
sua intelligencia activa e ardente. Não tarda a sentir
duvidas sobre as superstições do paganismo. O grande
Origenes inicia-o nos mysterios da fé, e desde então
marcha a passos agigantados no caminho da virtude.
Recebe o baptismo e pouco depois, apezar de sua resis­
tência é sagrado bispo deNeocesarêa. Converte sua mãe;
só o pae permanece indifferente a suas exhortações...
A força de Deus assiste a Cfregorio. A sua diocese
é quasi toda pagã, apenas conta dezesete christãos! Mas
ao morrer apenas haverá dezesete pagãos! Brilha so­
bretudo por seu poder extraordinário de operar mila­
gres. Os seus desejos são sempre attendidos. Certo dia
entra para se abrigar em um templo consagrado aos
DUODECIMO ESPLEND O R DA F É 249

idolos, depois de ter feito muitas vezes o signal da cruz,


passa a noite em oração... No dia seguinte chega o sa­
cerdote do templo; os demonios declaram que não po­
dem continuar a habitar em um logar, d’onde os expul­
sou um homem que ali esteve de noite. O sacerdote en­
furece-se e corre apoz de Gregorio... ü sancto diz-lhe
tranquillamente que recebeu de Deus o poder de expul­
sar e de chamar Satanaz a seu grado. O padre enche-
se de pasmo; conjura-o a que chame os demonios. Gre­
gorio acceita e entrega-lhe este escripto: «Gregorio a
Satanaz, entra.» Mal é collocada sobre o altar esta or­
dem, eis que os demonios entram, e dão seus oráculos!
O sacerdote pagão sente-se mudado; pede no entanto
outro milagre mais brilhante ainda... Uma enorme pe­
dra embaraça o caminho; deseja que mude de logar...
Gregorio ordena... e a pedra vae collocar-se no sitio
indicado! D’esta vez dissipam-se todas as sombras do
espirito do pagão, que se volve discípulo fervoroso de
Jesus. Em outra occasião, tem uma visão, o seu quarto
está inundado de luz... a Virgem aparece-lhe acompa­
nhada do discípulo amado... Gregorio prostra-se... S.
João convida-o a por-se á meza e a escrever o que lhe
ditar... E Gregorio ouve da própria bocca do Evange­
lista a explicação das divinas Escripturas!.. Em Neoce-
sarêa, todos os dias lhe traziam muitos doentes, por ve­
zes incuráveis, dá-lhes sua benção e recuperam a sau­
de. .. E ’ preciso edificar uma egreja para conter os fieis,
cujo numero augmenta todos os dias... Um tremor de
terra derriba quasi todos os edifícios da cidade, nem
uma pedra sequer da egreja edificada por Gregorio se
despega!.. O Lyco, rio mui impetuoso trasbordava fre­
quentemente occasionando o espanto, nas inundações__
era o terror e a desolação dos habitantes! Gregorio
commove-se com esta perspectiva. Approxima-se do
rio, planta seu cajado na margem, e ordena com segu­
rança e calma ás aguas do rio que obedeçam á vonta-
250 OS ESPLENDORES DA F É

de de Deus, que não vão alem do sitio onde está fixo


o seu cajado... As aguas retiram dóceis, e as innunda-
ções cessaram desde então... O cajado de Gregorio
toma raizes e tornou-se uma grande arvore... S. Grego­
rio de Nyssa refere este duplo prodígio realmente in­
crível. Rixavam dois irmãos por causa de um lago que
fazia parte da herança paterna... a quem havia de per­
tencer? A discussão acalora-se. Os dois irmãos não ac-
cordam... Encontram a Gregorio, a quem expõem a
questão e aguardam a resposta... O negocio não se ar­
ranja. .. Os dois litigantes estão a ponto de vir ás mãos,
apellando para a força... Já está aprazado o dia da
lucta... Gregorio sabe-o; a perspectiva do sangue que
vae derramar-se horrorisa-o... Passa a noite em ora­
ção á borda do lago... Ao outro dia o lago estava sec-
co! Em outra occasião o sancto thaumaturgo a petição
dos habitantes faz recuar um monte o bastante para
deixar espaço a uma nova egreja que vae edificar-se.
E’ o non-plus ultra da fé, e o milagre dos milagres, como
se deprehende das palavras do Salvador.
S. Francisco d’Assis. — A vida d’este glorioso e hu­
milde servo de Christo foi um milagre continuo. Sua
mãe deu-o á luz em um estábulo, sobre palha a conse­
lho de um estrangeiro mysterioso. Um desconhecido,
um anjo talvez em figura humana, serve-lhe de padri­
nho. Um outro personagem de origem não menos ce­
leste, pede para ver este menino de benção; toma-o
nos braços, contempla-o com amor, e marca-o numa
espadua com o signal da cruz. Assim é que todos aquel-
les que presencearam estes prodigios, exclamaram:
«Este menino será grande deante de Deus!» Nunca
houve predição que melhor se realisasse. Francisco, de­
pois de alguns annos passados na leviandade mundana,
renuncia ás esperanças do século, e lança-se a passos
de gigante no caminho real da sancta cruz.
Yolve-se o familiar de Deus.
DUODECIMO ESPLENDOR DA F É 251

Pobre dos bens d’este mundo, é rico do poder di­


vino. Manda nos elementos; os animaes bravios submet-
tem-se-lhe; reina como senhor sobre toda a natureza.
Com um gesto, com um signal cura todas as enfermi­
dades e doenças; dá vista aos cegos, ouvido aos surdos,
palavra aos mudos. A própria morte depõe sua tyran-
nia deante do fiel discipulo de Jesus; Francisco arre­
bata-lhe suas victimas.
No valle de Spoleto encontra-se com um pobre
mendigo, cuja face está roida por um cancro; prostra-
se-lhe aos pés e beija-ih’os. O sancto ordena-lhe com
bondade que se levante; aperta-o ao coração, abraça-o
com effusão e o cancro desaparece!... Em Terni uma
creança fica esmagada debaixo do entulho de uma pa­
rede desabada, levam á presença de Francisco o cada-
ver do pequeno; o servo de Deus ora, e entrega-o á fa­
mília cheio de saude! Em Narni afoga-se um homem,
cujo cadaver não aparece... Francisco ora, immediata-
mente indica o sitio onde o devem encontrar. Trans­
portam-no para juncto do sancto... Abençoa-o, e orde­
na-lhe em nome de Jesus que resuscite e o morto re­
vive!... A egreja da Porciuncula e o pequeno retiro
do monte Alverne foram as testimunhas privilegiadas
dos favores concedidos pelo ceo a Francisco. Os anjos
faziam-lhe companhia; conversava com a Yirgem Im-
maculada; Jesus aparecia-lhe em forma visivel e ado­
rável.
A Trindade revelava-se a esta alma doce e amante
em todo o brilho da magestade. Um seraphim assigna-
lou-o com os estygmas sagrados da paixão do Redem­
ptor. E depois de sua morte puderam ver em seu corpo
esses signaes portentosos do divino amor.
No sentimento de terna devoção para com o meu
patrono devo commemorar aqui um de seus milagres
mais tocantes, que não viria á imaginação a mais viva
e phantasista. Prégava certo dia em uma cidade da Ita-
252 OS ESPLENDORES DA F É

lia, na praça publica; o concurso da multidão era enor­


me. Dois jovens esposos, muito affeiçoados ao sancto, e
aos quaes promettera depois do sermão ir jantar a sua
casa, deixaram um filho entregue aos cuidados de uma
domestica digna de toda a confiança, recommendando-
lhe muito que o não deixasse um instante. Não tinham
contado a h ! com a grande fama do sancto que attrahia
tudo a si. A criada não pôde resistir ao desejo de ouvir
o seraphico S. Francisco; a creança que ficara só, cahe
dentro de uma caldeira d’agua a ferver e perde a vida-
Imagine-se qual não seria o desespero da criada e
mais ainda dos pais que entraram pouco depois! 0
sancto porem ia chegar e com elle uma felicidade in­
comparável. Se lhe contam a triste nova, não será pos-
sivel obsequial-o como desejam. Para lh’a occultar,
mettem o cadaver do menino em um bahú, e cada qual
dissimula como pode a dor que o opprime. Francisco
chega, pôz-se á meza, como se tudo ignorasse, e mos­
tra-se cheio de amabilidade para os seus hospedes que­
ridos. Mas á sobre-meza, exprime um singular desejo,
quer que lhe sirvam maçãs! Não era tempo d’ella,s, por
isso os pais desculpam-se como podem. O sancto rei­
tera suas instâncias, que perturbam e entristecem seus
hospedadeiros já tão consternados. De súbito, lançando
um olhar para o bahú, onde estava escondido o corpo
da creança, o olhar cheio de inspiração e verdadeira­
mente celeste exclama: «Abri esse bahú, que lá encon­
trareis as maçãs que tão ardentemente desejo.»
Que rude golpe para o coração do pai e da mãe;
mas não ha remedio senão obtemperar.
Abrem o bahú fatal, e quasi morrem de alegria ao
verem seu filho vivo, com as mãosinhas cheias de ma­
çãs que o incomparável servo de Deus espera. E’ logo
verdade que Deus faz a vontade d’aquelles que o te­
mem, e que os discipulos do Salvador tem feito mila­
gres tão grandes e até maiores do que os seus! Riam
DU0DECIM 0 ESPLENDOR DA FÉ 253

se querem de minha ingenuidade, de minha demenciat


mas depois de passados cincoenta annos a profundar os
mysterios da sciencia, creio ainda n’este milagre da fé,
por mais extraordinário que seja, ou pelo menos em
sua possibilidade, tão sinceramente, tão vivamente como
nos bellos dias de meu noviciado religioso, quando o li
pela vez primeira na Vida de S. Francisco, pelo rev. Pa­
dre Chalippe.
S. Francisco de Paula. — O piedoso fundador dos Mí­
nimos pertencia a uma honesta familia da Calabria;
desde sua infancia aparece no theatro do mundo como
o eleito do Senhor. Ahi pelos quinze annos retirou-se
para uma espantosa solidão, entregando-se a todos os
exercícios de uma vida austera e mortificada. O inferno
desencadeia-se contra elle, mas o joven athleta sahe
vencedor da lucta. Sua fé é inabalavel; seu amor sem
limites. Mais tarde honrado com a estima e a aífeição
dos papas e dos reis, reputava-se a vassoura do mundo
e a mais indigna das creaturas; a dar-lhe credito era
um miserável peccador. Quiz que seus discípulos se con­
decorassem com o nome de Minimos, para indicar que
deviam considerar-se os últimos na casa do Senhor. Em
troca de tanta humildade, recebe uma participação ver­
dadeiramente extraordinária na omnipotencia divina.
Brinca com os mais terríveis elementos.
Lê nos corações; prevê o futuro. Deus parece ter-se
constituído executor de todas as suas vontades. Sem­
pre affavel, sempre amavel, sua caridade para com o
proximo nunca desmaia. Opera maravilhas e conside­
ra-se o minimo dos servos de Deus. Eis algumas: Um
pobre homem soffre de lepra, está disforme. Os nervos
dos pés e das mãos contrahidos; quasi que não tem
voz... Levam-no a Francisco. .. Dá-me a tua mão, diz
ao leproso, e sente-se logo cheio de firmeza e de vi­
gor!. .. Dá também vista a uma rapariga cega, e a pa­
lavra a um mudo de nascença. A irmã do sancto no
254 OS ESPLEND O RES DA F É

desespero da morte de seu unico filho, vem ter com


elle. Francisco manda transportar o cadaver a sua cella,
põe-se em oração, e minutos depois, a mãe vê reapare­
cer o filho cheio de vida. Quando procedia á edificação
de um mosteiro, succedeu ficarem dois operários sepul­
tados n’um cabouco.
Todos os julgam perdidos; Francisco manda remo­
ver o terreno; os dois obreiros aparecem vivos sem te­
rem recebido a minima arranhadura!.. . Na cidade de
Palermo muitos gentishomens encontram um cadaver
humano debaixo da neve; trazem-no ao sancto que lhe
grita: «Levanta-te e caminha.»
A taes palavras o cadaver pôe-se em p é ; a morte
abandonara sua presa ■.. Em quanto se edificava uma
casa da ordem, um forno de cal apezar de muito ar­
dente, não funccionava, e fazia recear uma explosão.
Vão ter com Francisco, que entra intrepidamente no
forno incandescente, faz-lhe as necessárias reparações e
sahe são e salvo! .. Um prégador afamado por seu ta­
lento e virtudes, ousou censurar ao sancto o prometer
a saude aos doentes, e lançar-lhe em rosto o que elle
chamava sua presumpção: o sancto ouve-o com paciên­
cia, em seguida aproximando-se do lume, toma nas mãos
carvões ardentes e conserva-os sem se queimar. «Todas
as creaturas, diz-lhe então, obedecem d’est’arte áquel-
les que servem a Deus com um coração perfeito.»
S. Francisco Xavier. — Tão distincto pela nobreza
de sua origem, como pela superioridade de seu talento,
o futuro apostolo das índias aspirava ás honras as mais
elevadas, aos empregos os mais distinctos. •. Ignacio de
Loyola faz penetrar a graça do ceo ifiesta alma ardente
e generosa... Transforma X avier... faz d’elle um apos­
tolo. .. Debaixo da direcção de um tal mestre Xavier
attinge o mais alto grau da perfeição evangélica. Arde
no alevantado designio de salvar os homens seus ir­
mãos; quer conquistar almas para Jesus C hristo...
DUODECIMO ESPLEND O R DA F É 255

Seus votos são escutados... As índias serão d’or’avante


o theatro de seu apostolado; lá fará Deus brilhar n’este
servo seu poder infinito. Não é pelos arrazoados que se
podem arrebatar ao demonio almas escravisadas ás po­
tências infernaes... E’ mister milagres incessantes para
abrir á luz do Evangelho os olhos cegos d’estes pobres
idolatras... Este poder sobrenatural acompanhará por
toda a parte a prégação do infatigável apostolo... Cen-
tenares de pessoas lhe pedem ao mesmo tempo que ve­
nha vel-os e cural-os ■. E’ impossivel satisfazel-os a to­
dos ao mesmo tempo .. Xavier toma creanças, a quem
distribue medalhas e rozarios-.. E logo estes christão-
sinhos expulsam os demonios e effectuam curas mila­
grosas. .. Um de seus cathechistas, Antonio Miranda, é
mordido por uma vibora e, morre. Xavier sabe-o!.. •
Faz-lhe falta este auxiliar para a instrucção do povo,
corre: «Antonio, diz elle com voz forte e vibrante, em
nome de Jesus Christo, levanta-te!» E Antonio levan­
ta-se, cheio de vida... Uma rapariga é ceifada por uma
febre maligna... Xavier resuscita-a! Uma creançaperde
a vida afogada n’um poço... Chamam o apostolo..., os
pagão» estão presentes. .. aguardam com incredulida­
d e ..., Xavier lê-lhes no coração..., restitue a vida á
creança... Milhares de idolatras abraçam a fé... a Fran­
cisco dão-lhe o epitheto de Senhor da natureza. ■. Fala
muitas linguas sem as ter aprendido... Separa dois
exercitos promptos a bater-se só com a simples injucção
de que se separem ... Certo dia está prégando a um au­
ditório mal disposto..., ouvem-no sorrindo-se... reco­
lhe-se e com voz inspirada exclama: «Não acreditais na
minha palavra, acreditai ao menos nas obras que ella
faz.» Morrera havia dias um indio, o grande thaumaturgo
manda abrir a sepultura, já fede...! «Ponde-o ali», diz
o Padre na inspiração... Levam o cadaver infecto a
seus p és... «Em nome do Deus vivo, em prova das ver­
256 OS ESPLENDORES DA FÉ

dades que prégo, ordeno-te que te levantes!» O morto


levanta-se obediente a esta voz.
Então toda aquella gente proclama a sua crença
no Deus de X avier!... Já estavam dando á terra outro
cadaver, o de um joven. . a familia chora e consterna-
se. .. Xavier sente-se commovido, e restitue o moço
vivo aos seus.
O vice-rei da Hespanha vai embarcar; dá ordem
para tudo apromptar: «Não embarqueis, lhe diz Xa-
x ier,... o navio perder-se-ha.» A predicção verificou-
se ... Muitas vezes interrompia suas predicas para an-
nunciar ao povo a morte de um personagem conheci­
do-.. «Tal individuo acaba de perecer no mar, pedi
por sua alma!...» Imperava nas ondas irritadas, apa­
rece, visivel ao mesmo tempo em dois navios separados
e a longa distancia. Salva do naufragio inevitável um
navio varado entre dois bancos de areia .. «Grande
Deus, Padre, Filho e Espirito Santo, exclama, salvai-
nos!» E o navio segue na derrota docil á voz do apos-
to lo !... Uma creança cahe ao m a r... o pae está des­
esperado. .. é musulmano. •.! Xavier vai ter com elle,
conforta-o, e obtem d’elle a promessa de converter-se,
caso Deus lhe restitua o filho... Passados dias, a crean­
ça aparece na praia, e precipita-se nos braços do pae
que recebe o baptim o... Uma grande estiagem desola
a terra que evangelisa... Xavier pede ao Senhor que
se amerceie dos pobres neophytos, e lhes mande chuva,
e a chuva cahe com abundancia!•.. Annuncia a muitas
almas a hora de sua conversão. • a outras increpa a
recahida futura no mal. . .
Aquelle que crer em mim fará as obras que eu
faço e maiores ainda! Esplendor!!!
CAPITULO DÉCIMO OITAVO

Décimo terceiro Esplendor da Fé

Ide, ensinai a todas as nações, baptizando-as em nome


do Padre, do Filho e do Espirito Santo; ensinando-lhes a
observar todos os meus mandamentos, e eis que estarei con-
vosco todos os dias até d consummação dos séculos. (S. Ma-
theus., xxviii, 10 e 18). Estas palavras foram pronuncia­
das na occasião a mais solemne da vida de Jesus Christo.
Os onze apostolos tinham vindo á montanha da G-ali-
leia como ponto de entrevista. Jesus Christo aparece a
seu turno, e ao chegar, os apostolos adoram-no! Apro­
xima-se d’elles e diz-lhes: «Todo o poder me foi dado
no ceo e na terra, como meu Pai me enviou, assim eu
vos envio. Ide pois, ensinai todas as nações, baptizan­
do-as em nome do Padre, do Pilho e do Espirito Santo;
ensinando-lhes a observar todos os meus mandamen­
tos. E eis que eu estarei convosco até á consummação
dos séculos.»
O que Jesus Christo ordena a seus apostolos: «Ide,
ensinai, baptizai, ensinai a observar meus mandamen­
tos,» é evidentemente a conversão do mundo inteiro.
No decurso de sua vida publica muitas vezes alludira
vol. iv 27
258 OS ESPLENDOKES D A F É

e predissera esta conversão debaixo de diversas ima­


gens. Ora é uma seara: «Levantai os olhos e vede os
campos, como já estão louros para a ceifa! A seara é
grande, mas os obreiros poucos. Rogai ao Senhor da
*eara que mande operários para sua ceifa.>
Em outra occasião, é o reino dos ceos que se apro­
xima; e o incremento d’este reino é comparado ao da
mínima das sementes bem depressa transformada em
um arbusto e depois em uma grande arvore, debaixo
de cujos ramos se vem abrigar todas as aves do ceo.
Em outra parte, é uma pequena porção de fermento, o
qual, acrescentado a uma grande massa de farinha, a faz
fermentar toda! Que menor grão, de feito, que menor
fermento do que esse pequeno collegio de apostolos
enviado por Jesus Christo, a todas as cidades, e nações
do mundo! Mas o divino Mestre é mais explicito ainda.
Prediz que muitos estrangeiros hão de vir do Oriente e
do Occidente tomar logar no reino dos ceos com Abra-
hão, Isaac, Ja c o b ..., que seu Evangelho ha de ser pré-
gado por toda a p a rte ..., que quando fôr levantado da
terra tudo ha de attrahir a si!!!
Jesus Christo prediz alem d’isso a maneira, pela
qual se ha de operar o grande milagre da conversão do
mundo. Não occulta a seus apostolos as opposições vio­
lentas que hão de levantar, os odios mortaes de que hão
de ser objecto, as perseguições sanguinolentas que hão
de soffrer, o martyrio e a morte que os esperam. Ani­
ma-os, fortalece-os com a ideia de que elle venceu o
mundo, de quein tanto tem de soffrer e promette-lhes
que hão de ser esclarecidos e fortificados pela virtude
do Espirito Sancto, etc., etc-
D’onde se vê que a conversão do mundo, as cir-
cumstancias d’esta conversão, os meios, pelos quaes ha-
de effectuar-se, que tudo isso foi predicto por Jesus
Christo. Sua afhrmação é ainda mais solemne, quando
diz a seus apostolos no momento de os deixar:
DÉCIMO TERCEIRO ESPLENDOR DA FÉ 259

Recebereis a virtude do Espirito Sando que virá sobre


vós, e ser-me-heis testimunhas em Jerusalem, em toda a Ju-
áêa e Samaria e até aos confins da terra. (Act. 18.) A pro-
phecia é extraordinária, refulgente, e cumpriu-se á ris­
ca! O Evangelista S. Marcos refere-o n’estes termos de
uma grandiosa simplicidade: E elles partiram, e préga-
ram por toda a parte, cooperando o Senhor com elles, e
confirmando sua palavra com milagres. Esta linguagem
nada tem de humano!
Elles: Pedro seu chefe que tanto se escandalisara,
tanto se revoltara á simples ideia do supplicio da cruz,
que provocara estas palavras fulminantes de Jesus:
«Retira-te, Satanaz, tu és para mim objecto de escân­
dalo, pois não tens gosto pelas cousas de Deus, mas pe­
las dos homens;» Pedro, que em a noite da agonia, não
pôde vigiar e orar sequer uma hora com seu divino
Mestre, a quem por tres vezes renegou... mas Pedro
que já confirmado no bem, exclamava enthusiasmado:
«Senhor, bem sabeis que vos amo!» Elles! Os dez! que
na marcha fúnebre pelo jardim das Oliveiras disputa­
vam ainda quald'elles era o maior; a quem Jesus Ohristo,
magoado por sua incredulidade, não duvidou dizer:
«Raça de incrédulos, até quando permanecerei con-
vosco ? Até quando terei de vos supportar?» 0,9 dez! in­
sensatos e tardios em crer no cumprimento das pro-
phecias; Os dez! que logo que seu Mestre foi preso, fu­
giram covardemente! Os dez! que mesmo no Thabor,
algumas horas antes da ascenção de seu Mestre, duvi­
dam ainda da sua resurreição, e merecem que lhes cen­
sure severamente sua incredulidade e dureza de cora­
ção! Mas os dez! que afinal cheios do Espirito Sane to,
se volvem pescadores intrépidos das almas!
Partiram! O Evangelho não diz vão partir, partem,
mas sim partiram ! Como heroes, como Cesar! e cada
qual diz como Cesar: «Cheguei, vi e venci!»
E pregaram ! Em todos os idiomas, porque o Espi­
260 OS ESPLENDORES DA FÉ

rito Sancto lhes tinha desatado a lingua! Prégaram por


toda a parte, na Judéa, na Samaria, na Asia Menor, na
G-recia, na Mesopotamia, na Armênia, na Pérsia, nas
índias, na China provavelmente, em Roma, na Italia,
nas Gfallias, na Hespanha, etc., etc. Por ioda a parte!
Com a cooperação do Senhor que os enviara! Semea­
ram, plantaram, regaram! Deus fez crescer as plantas
e as arvores abençoadas.
Confirmando e fecundando o Senhor sua palavra pelos
milagres que a acompanham! Com effeito Jesus Christo
promettera-lhes que fariam milagres como os por Elle
feitos e maiores, e fizeram-nos. Marcharam, e ensinaram
tào bem e baptizaram tão bem, que Paulo seu contem­
porâneo e coapostolo, dizia em sua Epistola aos Roma­
nos : Sua voz soou por toda a terra, dai graças a Deus por
que a vossa fé é annunciada em todo o universo; em sua
Epistola aos colossenses: «O Evangelho que chegou até
vós, é annunciado em todo o mundo, onde cresce e fru-
ctifica, assim como entre vós.»
Partiram! Como seu divino Mestre queria que par­
tissem : sem alforge, sem sapatos, annunciando por toda
a parte a paz, acceitando a hospitalidade que lhes for
offerecida, comendo e bebendo do que lhes puzerem
diante, curando os enfermos, e repetindo sempre: está
proximo o reino de D eus...
Cordeiros em meio de lobos, objecto do odio uni­
versal, predestinados ao supplicio, e de facto todos mar-
tyres em testimunho da fé que prégavam. Tudo isto é
admiravel, sobrenatural, divino! O mundo convertido é
um milagre immenso só pelo facto de haver sido pre­
nunciado.
Mas esta conversão é um segundo milagre, mais no­
tável ainda em razão das circumstancias extraordinárias
em que se realisou.
Difficuldaãe da empreza. — Aqui evidentemente não
ha proporção entre a causa e o effeito. O effeito é o
DÉCIMO TERCEIRO ESPLENDOR DA PÉ 261

mundo convertido, conquistado. A causa é a voz, a pa­


lavra dos apostolos, fides ex auditu. Ou esta palavra não
passa de palavra humana, a palavra dos obscuros e
grosseiros pescadores do lago de Grenesareth, e então
é um pouco de som vão que se dissipa no ar, uma causa
nulla, absolutamente nulla! ou essa palavra confirmada
pelo milagre como se affirma no Evangelho, é a pala­
vra do mesmo Deus, e então a causa é divina, e o effeito
— a conversão do mundo, o reino de Deus, a Egreja ca-
tholica, apostólica, romana, — é divina. Causa nulla, ef­
feito infinito! ou causa e effeito divino. Escolhei.
A grandeza do emprehendimento. —S. João Chrysos-
tomo, representando em espirito os apostolos ao sahi-
rem de Jerusalem, detem-os e diz-lhes: «Que pretendeis
fazer? Converter o universo? a quem? a Jesus Christo ?
Que! ides converter o universo abysmado em toda a
casta de excessos, e convertel-o a um homem que acaba
de morrer n;uma cruz! E não reparais na geral ani-
madversão que ides concitar contra vós? A surpersti-
ção do povo, a prescripção de antigos erros, o orgulho
dos philosophos, a libertinagem dos impios, o poder
dos Cesares, a crueldade dos tyrannos, a raiva dos ver-
dugos, toda^s as forças da terra e do inferno, conjuradas
vão desencadeiar-se contra vós!
Jesus Crucificado envia-nos! Obedeceremos! E ha­
vemos de triumphar! Balanço da causa, zero! Balanço
do effeito, infinito!
Os heroes da empreza. — E’ ainda S. João Chrysos-
tomo que fala: «Mas para conseguirdes o que desejais
dispondes de recursos? Possuis thesouros para ganhar
os povos pelo engodo das riquezas ? Tendes sciencia
para confundir os senhores das nações? Conheceis a
política para lhe moverdes as molas ? Tendes ao menos
exercito e soldados para subjugar o universo pela força
das armas? —Não, não temos nada d’isso! Se temos al­
guma cousa, é o contrario dfisso! Nossas tropas? somos
262 OS ESPLENDORES DA FÉ

doze apenas! Nossas riquezas? a falta de tudo! Nossa


política? a simplicidade da pomba com a prudência da
serpente! Nossa sabedoria? a loucura da cruz.» Balan­
ço da causa, zero, menos do que zero. Balanço do effei-
to, infinito!
Exito da empreza. — De maneira que d’um lado o
infinito! Os sábios, os philosophos, os gênios, os impe­
radores, os magistrados, os exercitos, o universo intei­
ro ; do outro zero, menos do que zero! Doze judeus,
aborrecidos e desprezados de todas as nações; doze pro­
sadores sem lettras, sem talentos adquiridos, até então
grosseiros, timidos, covardes, sem apoio, sem defeza!
Quem triumphará? Os apostolos saltam para a arena
annunciam o Evangelho! A terra assombrada cala-se
na presença d’elles... E alam .. suas palavras são dar­
dos de fogo! — M archam ... seus passos são passadas
de gigante. Seus actos são outros tantos prodígios. Es­
tes timidos cordeiros que vão para o açougue sem se
lastimarem são outros tantos liões destemidos que af-
frontam todos os perigos, outros tantos conquistadores
que percorrem todo o universo como vencedores. Os
milagres precedem-nos em sua m archa; as virtudes se­
guem-nos em multidão, os vicios consternados e sem ani­
mo fogem espavoridos. A idolatria baqueia por terra, e
sobre essas ruinas a Egreja triumphante de Jesus Christo
estabelece seu império. Balanço da causa menos que
zero! Balanço do effeito, infinito! Por seus cordeiros o
lião de Judá venceu!
Rapidez da empreza. — Infinita a seu turno! S. Paulo
já quasi no começo do seu apostolado bemdizia Deus,
porque o Evangelho illuminava toda a terra. No segun­
do, dizia S. Justino, todas as nações, todos os povos:
Gregos, Romanos, Scythas, Barbaros, etc. estão sujeitos
á lei do Evangelho. «Império romano, dizia Tertulliano
depois de S. Justino, cessa de gabar tuas victorias e
conquistas. Nossos apostolos foram mais longe do que
DÉCIMO TERCEIRO ESPLENDOR DA FÉ 263

todos os teus generaes, e nunca Roma em seus mais


bellos dias hasteou tão longe seu estandarte, como a
Egreja sua cruz! Yêde a multidão dos nossos! Somos de
hontem, e já enchemos as vossas provincias, vossas ci­
dades, e vossos campos, tudo, tudo á excepção dos vos­
sos templos e dos vossos theatros. Perseguis-nos; se nos
quizeramos vingar, bastar-nos-hia abandonar-vos!Vosso
império ficaria deserto! Balanço da causa, zero! Balan­
ço do effeito, infinito !
Consequências da empreza. —A transformação do
genero humano, dos individuos e dos povos! Transfor­
mação d’essa innumeravel multidão de pessoas de toda
a edade, sexo e condição, que depois de terem gemido
por tanto tempo á sombra da morte, nas trevas da
idolatria, abriram afinal os olhos á luz! Transformação
d’essa multidão de almas mundanas, que arrancando-se
ás delicias nefastas do século, foram sepultar-se nos de­
sertos, nos claustros, nos conventos, para só meditarem
as verdades eternas! Transformação das almas boas
mudadas em almas sanctas, heróicas, perfeitas, como seu
celestial auctor! Transformação até mesmo das almas
sceleradas e impias! «Dai-me, dizia Lactancio, homens
orgulhosos, avaros, coléricos, sensuaes; confiai-os á reli­
gião, que ella os transformará em homens novos. O or­
gulhoso humilhado debaixo da mão de Deus; o avaro
entornando seus thesouros no seio do pobre; o colérico
mostrando a doçura do cordeiro; o sensual abraçando
a cruz...» Transformação finalmente de innumeravel
multidão de pagãos em m artyres! No quarto século
contava já S. Jeronymo um milhão e cem mil! outros
tantos gloriosos athletas da fé, modelos incomparáveis
de constância acima das forças humanas! Constância
heróica! Affrontavam a morte, arrostavam com os ty-
rannos, subiam aos cadafalsos como vencedores! Con­
stância tão universal que parecia innata nos christãos!
Homens, mulheres, creanças, velhos! toda a edade e
264 OS ESPLENDORES DA FÉ

sexo estava maduro para o martyrio. Sua vida era um


aprendizado para o martyrio ; sua ambição m orrer; seu
sangue era guardado nas veias para correr sobre o altar
da Religião. Oonstancia tão extraordinária, que arreba­
tava os proprios tyrannos de admiração, e algumas ve­
zes foi causa de sua conversão. Constância divinamente
contagiosa e fecunda! Quantos mais christãos degolla-
vam, mais apareciam.
O sangue dos martyres era liberal sementeira de
crentes; de forma que depois de reunidos todos os es­
forços do inferno, depois de trezentos annos de violenta
perseguição, os tyrannos cansados, inebriados de san­
gue, desesperando de extinguir o christianismo, se vol­
veram elles proprios afinal christãos. Os lobos muda­
dos em cordeiros entraram a seu turno no redil, co­
roando por tal arte o triumpho da religião de Jesus
Christo. Balanço da causa, menos que zero! Balanço do
effeito, infinito!
Perpetuidade da empreza. —-O que é mais extraor­
dinário ainda é que passados mil e oitocentos annos os
successores directos dos apostolos prégam por toda a
parte, ensinam todas as nações, baptizam-nas, e ensi­
nam-lhes a observar os mandamentos de Deus. Um no­
tável numero de sanctos zelosos Pescadores d?almas,
Jovens apostolos arrojam-se intrépidos para os quatro
pontos do horizonte, o Japão, a China, a Corêa, as ín ­
dias, a Conchinchina, o reino de Siam, Madagascar, as
ilhas de Sandwich, as ilhas da Oceania, o Senegal, a
África meridional e central, S. Domingos, as Monta­
nhas Rochosas, o Labrador, etc-, etc.
E como elles partem ! A ceremonia das despedidas é
um verdadeiro esplendor da fé. Depois da oração da
noite, os viajeiros do dia seguinte são introduzidos na
capella. Ajoelham nos degraus do altar, junto do taber-
naculo. Atraz d’elles seus irmãos, seus directores, seus
parentes e amigos, chegados para os verem pela ultima
DÉCIMO TERCEIRO ESPLENDOR DA FÉ 265

vez. Procede-se á leitura do assumpto da meditação


que os seminaristas hão de fazer no dia seguinte.
Acabada a leitura, assentam-se; os missionários po­
rem ficam de pé junto do altar. Um dos directores do
estabelecimento, antigo missionário, dirige-lhes uma pie­
dosa allocução. Em seguida os missionários sobem os
degraus do sanctuario, e ali, de pé, voltam-se para seus
irmãos. Estes e depois d’elles todos os assistentes, le­
vantam-se de seus logares, e, vem oscular de joelhos os
pés abençoados d’estes enviados do Senhor, em quanto
o coro canta a bella antiphona: Quão formosos são os
pés dos que evangelisam a paz, dos que evangelisam o
bem! Logo que seus irmãos acabam de oscular os pés
dos missionários, estes levantam-nos e depõem na fron­
te d’elles o beijo da paternidade. E quando todos os
corações se tem assim transfundido uns nos outros, en­
toa-se o cântico da partida, cuja musica é obra de um
grande artista, Gfounod. Eis o estribilho: «Parti, ami­
gos, adeus n’esta vida, levai ao longe o nome do nosso
Deus. Encontrar-nos-hemos um dia na patria. Adeus,
irmãos, adeus!» Assistindo uma noite, diz Luiz Yeuil-
lot, a esta cerimônia, na capella do Seminário das Mis­
sões Estrangeiras, fui testimunha do facto seguinte: «Um
velho adeanta-se, caminhando a custo, e amparado por
um dos directores. Chegado ao altar, beija successiva-
mente os pés dos quatro primeiros missionários. Quando
chegou aos pés do quinto, prostrou-se, imprimiu os lá­
bios sobre os pés do moço que empallideceu, e a elles
junctou a fronte cobrindo-os com suas cãs ; afinal soltou
um suspiro que echoou em todos os corações: não pos­
so esquecer-ine da pallidez que mostrou então o rosto
do missionário, que era seu filho. E este filho era o se­
gundo que este Abrahão entregava assim a Deus. E não
lhe ficava outro!»
Esplendor! Jesus Cliristo tinha dito a seus aposto-
los: «Ide, ensinai todas as nações, baptizai-as em nome
266 0 3 ESPLENDORES DA FÉ

do Padre, do Filho e do Espirito Sancto, ensinai-lhes a


observar os meus preceitos. E eis que eu estou com-
vosco até á consummação dos séculos.» Tal é a prophe-
cia. Jesus Christo quiz que fosse mais explicita ainda.
«Recebereis a virtude do Espirito Sancto que baixará
sobre vós, e ser-me-heis testimunhas em Jerusalem, em
toda a Judeia, na Samaria e até aos confins da terra.»
Eis o oráculo! Era também o impossivel humana­
mente! Devia ser e foi o milagre. Recebereis a virtude
do Espirito Sancto lá do alto! Ora sua prophecia e o
milagre tornaram-se um facto immenso!
0 mundo converteu-se, é christão! Os apostolos
marcharam, ensinaram, baptizaram, ensinaram a obser­
var os mandamentos de Jesus e foram suas testimunhas
até aos confins da terra! Logo Jesus Christo é Deus;
logo a religião catholioa, apostólica, romana é divina!
Esplendor! Esplendor!!!
C A P IT U L O D É C IM O O IT A V O

Décimo quarto Esplendor da Fé

Jerusalem, dias virão em que teus filhos hão de cahir


ao gume da espada e hão de ser levados captivos para entre
as nações.. ■Jerusalem será calcada aos pés pelos Gentios
até que o tempo dos Gentios tenha expirado... (S. Lu­
cas, xxi, 24.)
Jesus Christo approximava-se de Jerusalem, onde
ia fazer sua entrada triumphal. Ao avistar a cidade do
alto das collinas, chorou sobre ella e disse: « A h ! se
conhecesses pelo menos n’este dia que te é ainda con­
cedido, como poderias assegurar-te a paz! Mas ah! es­
tas cousas estão encobertas a teus olhos. Por isso dias
virão em que teus inimigos te hão de cercar de trin­
cheiras, te hão de bloquear e opprimir de todos os la­
dos. Hão de lançar-te por terra a ti e a teus filhos; não
deixarão pedra sobre pedra, porque não conheceste o
tempo da tua visita!» Em outra occasião, Jesus Chris­
to dizia aos Judeus: «Vim em nome de meu Pai e vós
não me recebestes! Um outro virá em seu proprio no­
me (Tiberio ou Tito) e sereis forçados a sofírel-o!» Fi­
nalmente em uma predicção não menos clara, não me-
268 OS ESPLENDORES DA FÉ

nos explicita, Jesus Christo disse: « Quando virdes Je ­


rusalém investida por um exercito, sabei que está pró­
xima a desolação. Ai das mulheres gravidas e d’aquel-
las que amamentarem! N’esses dias haverá uma espan­
tosa miséria no paiz e uma grande cólera contra o po­
vo... Hão de cahir debaixo do gume da espada e hão de
ser levados em captiveiro para entre as nações... J e ­
rusalém será calcada aos pés pelos gentios até que o
tempo dos gentios acabe. »
Jesus Christo predisse pois claramente a destruição
da cidade de Jerusalem e do templo, a mortandade
dos judeus, sua dispersão, a maldição que incessante­
mente ha de cahir sobre elles, por elles mesmos invo­
cada, quando em um excesso de furor satanico a esta
declaração de Pilatos: « Eu estou innocente do sangue
d’este justo, vede lá vós,» clamaram : « Que seu sangue
caia sobre nós e sobre nossos filhos!» Scena espanto­
sa! o povo todo prophetisava como prophetisara Caifaz!
O facho de todas as prophecias illuminava-o com uma
luz fúnebre!...
Cumprir-se-hiam estes oráculos? Sim, e de maneira
bem extraordinária. Jerusalem foi sitiada, tomada de
assalto, saqueada e destruída! Não ficou pedra sobre
pedra do templo, cujos fundamentos saltaram fóra... O
povo judeu, disperso por toda a terra, é por toda a parte
detestado, maldito, suscitando desconfianças! Nunca
se viu quadro mais fúnebre do que o das desgraças
dos judeus, traçado por Josepho, desgraças na patria,
desgraças no Oriente e no Occidente. Tiberio e Cláu­
dio expulsam-nos de Roma; em Cesarêa são degolla-
dos aos milhares. Nero confisca-lhes o direito de cidade,
na capital da Syria. Em Alexandria aos mais cruéis
supplicios ajunctam o ultraje; expulsam-nos de suas ca­
sas; suas mulheres são publicamente affrontadas; ma­
tam-nos a pau e á pedrada; comprazem-se em os ve­
rem brutamente consumidos pelas chammas das foguei­
DÉCIMO TERCEIRO ESPLENDOR DA FÉ 269

ras. Em consequência de um levantamento provocado


por novas vexações, Alexandre, judeu de nação, aban­
dona seus compatriotas ao furor dos soldados e do po­
vo. Fazem n’elles uma carnagem horrivel... Encontra­
ram mais de cincoenta mil cadaveres amontoados no
Delta do Nilo, onde estes infelizes tentaram entrinchei­
rar-se.
Todas as cidades da Syria presencearam eguaes hor­
rores, que se repetiam até na Mesopotamia. A Palesti­
na é levantada pelos romanos e pelos bandos de insur-
rectos que sob o nome característico de assassinos, se-
mêam por toda a parte a desolação, o incêndio e a
morte. Em Jerusalem Floro espicaça os habitantes pela
tyrannia de seus caprichos, e quando lhe vem fazer re­
presentações, açula sobre estes desgraçados a malta de
seus satellites como se fossem feras. Mais barbaro ainda,
João de Gliscala, chama em soccorro de seus zelotes
vinte mil Idumeus que por sua ferocidade põem o cu­
mulo á desolação! Não ha tregoas nem accordo, é a
mais espantosa anarchia que se viu jamais! Tudo está
inundado de sangue, até mesmo nos degraus do altar!
Jesus Christo não tinha predicto sómente *o facto
principal do horrivel castigo dos Judeus; as circums-
tancias que deviam acompanhal-o ou precedel-o, foram
também prenunciadas.
l.° Jesus Christo tinha dicto a seus apostolos:
«Antes de todos estes males, porão mãos sobre vós;
hão de levar-vos perante as synagogas, os reis e os go­
vernadores; metter-vos-hão em prisão; sereis mortos.»
Quem fez o primeiro martyr do Evangelho ? Quem im-
molou o primeiro bispo de Jerusalem? Quem lançou
Pedro em prisão, lhe poz ferros, entregou Paulo ao pro-
consul romano? Foram os judeus que o perseguiram
por toda a parte com seus furores, em Jerusalem, em
Roma, em Damasco, em Cesarêa; e que foram por fim
os instrumentos da perseguição de Nero.
270 OS ESPLENDORES DA FÉ

2." Jesus Christo tinha dicto em segundo logar


que o Evangelho de seu reino seria pregado em todo o
mundo antes da queda de Jerusalem. De feito a voz
dos apostolos já tinha soado até aos confins da terra,
seu sangue fecundo tinha corrido sobre todas as plagas,
de mistura com o sangue de innumeraveis fieis. A
Egreja estava fundada e reinava pela cruz! Era a nova
Jerusalem cantada por Isaias! A antiga Jerusalem po­
dia então desaparecer.
3* Jesus Christo tinha dicto: «Em verdade, em
verdade vos digo, não passará a presente geração sem
que todas estas cousas succedam! Convidara as filhas
de Jerusalem a chorar sobre si e sobre seus filhos. Es­
tas palavras, ouvidas sem duvida por muitos d’aquelles
que haviam de vir a ser as testimunhas ou as victimas
d’este supremo desastre, foram plenamente verificadas
pelo acontecimento. O pagão Phlegon e toda a tradição
ecclesiastica. referem que por occasião de arrastarem
ao supplicio os dois apostolos Pedro e Paulo, estas duas
fieis testimunhas de Jesus Christo annunciaram aos ju­
deus que os rodeavam a ruina imminente da sua patria.
Lactancio conservou-nos estas revelações: «Jerusalem
vai ser completamente destruida, seus habitantes redu­
zidos a comerem-se uns aos outros, perecerão de fome
e de desespero. Os que escaparem da morte, cahirão
nas mãos de seus inimigos; verão esmagar seus filhos, e
tudo assolado pelo ferro e pelo fogo; serão para sem­
pre banidos da terra dada a seus pais.
E todos estes males cahirão sobre elles por terem
insultado com tão cruéis opprobrios o bem amado Pi­
lho de Deus!» Os dois apostolos eram martyrisados a
29 de junho, no anno 66, e no principio d’abril de 67,
Tito á frente de cerca de setenta mil homens, vinha
acampar quasi á vista de Jerusalem. Para esfaimar a ci­
dade, cercou-a com a vasta muralha predicta por Jesus
Christo. A 8 de setembro mandou assaltar a cidade
DÉCIMO QUARTO ESPLENDOR DA FÉ 271

alta; ao primeiro assalto a muralha entreabriu-se; os


romanos precipitam-se pela abertura; é tudo morto í
a terra desapparece coberta de sangue; a cidade é de­
molida. Os prisioneiros foram noventa e sete mil! Os
mortos um milhão e cem m il! Desastre inaudito e nun­
ca visto sobre a te rra ; cegueira insensata, humilhação
de um crime espantoso; mortandade, fome; abomina-
ção da desolação no templo, sacrifício offerecido a Jú ­
piter pelos soldados deante da porta oriental; circum-
vallação immensa; cidade tomada de assalto e posta a
fogo e a sangue, ruina completa pelos gentios, etc.
Aqui está o cumprimento litteral da prophecia, co­
roado pela ceremonia solemne do triumpho de Tito,
que Joseplio descreve com o sentimento de indizivel
dor. Entre os despojos era digno de notar-se sobretudo
o livro da lei mosaica e setecentos prisioneiros carre­
gados de cadeias, com os olhos baixos e marejados de
lagrimas, adeante do carro do triumphador. A esta ho­
ra já a charrua tinha passado a uso romano sobre as
ruinas ainda fumegantes do templo. »
Não era bastante; a louca pretensão de Juliano
Apóstata de dar um desmentido ao Nazareno reedifi-
cando o templo, cavará os fundametos de tal sorte que
não reste de facto pedra sobre pedra d’esses edifícios
soberbos condemnados por Jesus Christo.
O propheta Oseas dissera:
«Os filhos de Israel estarão muito tempo sem rei,
sem príncipe, sem sacrificio, sem altar, sem sceptro,
sem teraphim. » Parece impossível precisar melhor e em
menos palavras a condição real dos judeus dispersos e
calcados aos pés pelas nações: l.° sem rei e sem prín­
cipe! Seiscentas vezes tem os judeus tentado constituir-
se em republica independente e eleger um chefe; seis­
centas vezes tem esposado como sua a causa de qual­
quer aventureiro q u e lisongeasse sua ambição patrióti­
ca. Todos os seus esforços tem mallogrado e sua sorte
272 OS ESPLENDORES DA FÉ

não muda. E’ sempre e por toda a parte a raça proscri-


pta, vagabunda e maldita, trazendo na fronte estampa­
do o estygma da reprovação divina e de sua grandeza
decahida, mysterioso signal que a opulência nunca pode
apagar!
Disseram:
«Não temos outro rei senão a Cezar!» E ’ Cezar
com effeito, é sempre Cezar, nos tempos de Roma como
em toda a serie dos séculos, i é, o poder politico que
os abandona aos furores populares, provocados pelo
prejuizo, ou levantados pelo crime.
2° Não terão culto, nem sacrifícios. Não havia se­
não um unico logar no universo, onde se pudesse offe-
recer a Deus o sacrifício grato, e este logar já não exis­
te! E’ pois naturalissimo que os regosijos das festas dos
Taberciaeulos, os ritos mysteriosos da Paschoa, que as
pompas augustas do Pentecostes hajam cessado. Quem
por outra parte immolaria d’ora em deante as vi-
ctimas de Israel e as offereceria ao Senhor? Este mi­
nistério era destinado para os sacerdotes, e Israel já os
não tem. O sacerdote devia ser tomado na tribu de
Levi, e a tribu de Levi está confundida com as de­
mais! O rabbino que succedeu ao Pontífice é um sim­
ples doutor sem a uncção sagrada, sem caracter nem
missão!
3. ° Não terão ephod: O ephod é a insígnia sacerdo­
tal. Até ao tempo de Theodosio o Moço, os judeus em­
bora dispersos tinham ainda um pontífice chamado pa-
triarcha; desde esta epocha em deante nem sombra se­
quer de hierarchia!
4. ° Sem terapkim: Sem pontífice e sem vidente que
dê os oráculos divinos na Arca Sancta! A Arca Sancta
de íacto desappareceu no incêndio do templo, e desde
então não mais houve sancto dos sanctos nem orácu­
los; Deus emudeceu para elles! Cessou de haver pas­
tor para os encaminhar, verdadeiro mestre para os es-
DÉCIMO QUARTO ESPLENDOR DA FÉ 273

clarecer, mão para levantar o veo dos divinos myste-


rios! A dispersão com os caracteres os mais definitivos
de uma reprovação e sem appellação! Sua teimosia em
refugar o perdão; o acervo de crimes amontoados so­
bre sua cabeça, e cuja medida todos os dias enchem; a
ausência completa de sacerdócio e de nacionalidade; o
odio invencivel de que são alvo; tudo está a dizer cla­
ramente que não ha para elles graça...
Contraste singular! São elles os reis da terra pelas
enormes riquezas que possuem, pela influencia incalcu­
lável que a sua imprensa exerce em todas as nações, e
apesar d’isso são objeeto do desprezo universal! O pro-
prio ítenan, o inimigo pessoal de Jesus Christo, diz:
« Insociavel, estranho em toda a parte, sem patria, sem
outro interesse que o de sua seita, o judeu talmudista
tem muitas vezes sido o flagello dos paizes, para onde
a sorte o tem levado!» Michelet o clerophobo disse com
maior crueza ainda: «O judeu é o homem itnmundo,
que não pode tocar qualquer cousa ou uma mulher sem
que a queime, é o homem de ultrage, em quem todo o
mundo escarra!» (Historia de França, t, m.) O sr. Des-
monsseaux termina seu livro o Judeu, o Judaísmo, e a
Judaização dos povos christãos, tão instructivo e tão es­
pantoso pela revelação da conspiração satanica, urdida
pelos judeus contra as sociedades christãs, por esta san­
grenta apostrophe, expressão formidável da verdade :
« Marcha, marcha, alma vagabunda, judeu errante, sem­
pre irrequieto, sempre agitado, sempre esbofeteado,
sempre implacável, sempre immutavel no meio de tuas
mudanças... Toda a nação é para ti estranha; toda a
nação te conhece e tu conhecel-as a todas! Mas teu co­
ração empedernido não se affeiçoa a ninguém e nin­
guém se te affeiçoa!...
E ’s conhecido em toda a parte, e por toda a parte
homens, climas e flagellos, se te não poupam o insulto,
poupam-te ao menos a vida! Um signal semelhante ao
vol. xv 28
274 OS ESPLENDORES DA FÉ

de Cain te assignala. Tu és maldito!•.. sim maldito!...


E os prophetas de tua lei te bradam que nenhuma ben­
ção egualará a tua no dia em que de tua pessoa faças
o verdadeiro filho de Abrahão! >
A conversão dos judeus é de facto uma opinião
seguida, principalmente fundamentada nas prophecias
de Isaias e de S. Paulo. «Virá de Sião Aquelle que deve
libertai-a e que deve expurgar a impiedade de Jacob.»
(Is. lxix , 25)... S. Paulo (Epístola aos romanos, xi, 25 e
seg.,) parece dizer que o povo judeu converter-se-ha no
fim dos tempos para o Messias, desde muito desconhe­
cido e que os Grentios o terão também a seu turno esque­
cido, dobrará o joelho deante d’elle, e implorará o per­
dão. Então a antiga e a nova alliança, reconciliadas
n’uma só, se abraçarão como duas irmãs reunidas pelo
mesmo amor, sobre o peito adoravel d’este unico e ver­
dadeiro Salvador, cuja morte resgatou indistinctamente
todas as nações, todos os povos e edades. Muitos inter­
pretes aplicam aos judeus este oráculo de Ezechiel:
«Retirar-vos-hei de todos os povos... Conduzir-vos-hei
para a vossa terra que dei a vossos p ais... Sereis meu
povo e eu serei vosso Deus. Quando eu vos tiver puri­
ficado de todas as vossas iniquidades, e houver repo­
voado vossas cidades e restaurado os logares arruina­
dos. .. tudo o que restar dos povos que vos rodearem
reconhecerá que eu sou o Senhor.» Não será esta a ex­
plicação da tendencia extraordinária de grandíssimo
numero de judeus de todas as partes do mundo para
irem viver e morrer em Jerusalem? Todas as sextas-
feiras, excepto a que faz parte das festas do Taberna-
culo, os mais devotos dirigem-se no verão ás quatro ho­
ras e no inyerno ás tres e meia da tarde ao muro Occi­
dental da mesquita de Ornar, para orarem e chorarem
seus peccados, para implorarem o fim dos males que os
acabrunham, vai em dezenove séculos.
DÉCIMO QUARTO ESPLENDOR DA FÉ 275

Nada mais melancólico do que este seu cântico dia­


logado :
«O rabbino: Por causa do templo que foi destruído,
por causa das muralhas em ruina, por causa de nossos
grandes homens que pereceram. — 0 povo: Solitários
nos assentamos nas lagrimas e no pranto. — 0 rabbino:
Supplicamo-vos que tenhais piedade de Sião!»
Que tocante realisação do oráculo de Jeremias
(xxx, 15)): «Porque choraes vossos fiagellos? Vossa dor
é incurável, é por causa da multidão de vossos pecca-
dos que d’esta maneira vos tractei!»
Esplendor!!!
CAPITULO DÉCIMO NONO

Décimo quinto Esplendor da Fé

E tu, convertido, confirma teus irmãos. (S. Luc. xxn,


32.) Terminara a ceia. Judas sahira, a alma do Salvador
estava cheia de mortal tristeza, mas amava infinita­
mente, estava doce e resignada. «Meus filhinhos, diz,
dou-vos um mandamento novo: Amai-vos como eu vos
tenho amado.» Depois voltando-se para Pedro, diz-lhe:
«Simão, Simão, Satanaz pediu para te joeirar como se
joeira o trigo; mas eu roguei por ti, afim de que tua fé
não desfalleça, e tu, convertido, confirma teus irmãos/»
Confirma teus irmãos! Jesus Christo fala assim ao chefe
de sua Egreja; a oração que acaba de fazer volveu-o
invencivel, os poderes do inferno não poderão prevale­
cer contra elle! Desmaiará um instante, mas levantar-
se-ha, confirmado no bem, e depois de convertido, con­
firmará seus irmãos na fé. E’ uma ordem, mas é ao
mesmo tempo um oráculo, uma prophecia. Tu serás o
joguete de Satanaz, mas depois de convertido, confir­
marás teus irmãos.
O oraçulo cumpriu-se, Pedro cahira! Desconheceu
e renegou seu divino Mestre, o homem, o Gralileu, o
Nazareno...! mas não renegou a Deus.
DÉCIMO QUINTO ESPLENDOR DA FÉ 277

Jesus Christo dirigiu-lhe não obstante um olhar de


misericórdia e de am or! Converteu-o! Em seguida vai
occultar-se nas trevas, chora amargamente, e todos os
dias de sua vida o canto do gallo fará correr por suas
faces uma torrente de lagrimas.
E Pedro confirmou seus irmãos na fé de maneira
portentosa.
De todos os esplendores o mais refulgente é talvez
a vida de S. Pedro resumida n’estas duas palavras de
grandeza e simplicidade maravilhosas: «Pedro, conver­
tido, confirma teus irmãos!» Pedro antes de sua conver­
são é o homem com todas as fraquezas dos da sua es-
pecie; é a canna agitada pelo vento. Pedro convertido
é o roble vigoroso que desafia a tempestade. Ouçamos
sua historia bosquejada pelos sanctos evangelistas.
André conduziu seu irmão Pedro a Jesus, dizen­
do-lhe: Encontrámos o Messias! Jesus encara Pedro e
diz-lhe: «Simão, filho de Jonas (filho da pomba e pom­
ba) chamar-te-has Cephas! quer dizer Pedra, rocha im-
mutavel, sobre a qual hei de levantar minha Egreja.»
Que admiravel inicio!
Jesus passando á borda do mar de G-alileia, viu Si­
mão e André, seu irmão, lançar as redes á pressa e dis­
se-lhes : «Vinde, segui-me, far-vos-hei pescadores de ho­
mens !>
E largando as redes seguiram-no. Que divina a ttra-.
cção! Que portentosa missão! Pescadores de homens!
Jesus Christo assentado na barca de S. Pedro, diz-lhe:
Faze-te ao largo, e deita as redes.—Mestre, em toda a
noite nada apanhámo-s; mas á tua palavra deital-a-
h e i.. .» E apanharam uma tal quantidade de peixes
que a rede corria perigo de se romper. Fizeram signal
a outros pescadores para que viessem ajudal-os; estes
acudiram, e encheram de peixes as duas barcas de for­
ma que ameaçavam submergir-se. Ao ver isto Simão
Pedro prostrou-se aos pés de Jesus, exclamando: «Re-
278 OS ESPLENDORES DA FÉ

tirai-vos de mim, Senhor! porque sou peccador! A pes­


ca milagrosa mergulhara-os a todos na estupefacção.
Jesus disse a Simão: «Não temas! Mais tarde pescarás
homens.» Que milagre! que acto de fé divina! Que es­
tranha prophecia!
Pela quarta vigilia da noite Jesus veiu ter com
seus discipulos, marchando sobre as aguas do mar, e
fazendo semblante de passar alem. Julgaram que era
um phantasma. Pedro exclama: «Senhor, se sois vós,
ordenai que eu vá ter comvosco por cima das aguas.»
E sahindo da barca, caminhava sobre as aguas.
Mas ventava muito, e Pedro teve m edo; começando a
submergir-se, exclamou: Senhor, salvai-me! Jesus es­
tendendo a mão, agarrou-o e fazendo-o entrar na barca,
disse-lhe: «Homem de pouca fé, porque duvidaste?»
Eis mais uma vez o milagre, eis o homem, eis a
canna.
«E tu, Pedro, quem dizes que eu sou?» — Senhor, tu
és o Christo, Filho de Deus vivo! — Bemaventurado és,
Simão, filho de Jonas, porque não foi a carne ou o san­
gue quem te revelou este mysterio, porem sim meu Pai
que está nos eeos. E eu digo-te: Tu és Pedro, e sobre
esta pedra edificarei minha Egreja, e as portas do in­
ferno não prevalecerão contra ella. Dar-te-hei as cha­
ves do reino dos ceos; tudo o que ligares sobre a terra
será ligado no ceo, e tudo o que desligares sobre a terra
será desligado no ceo!
Que magnífico acto de fé ! que elogio! que promessa!
que poder tão magnífico o concedido a S. Pedro! Poder
sempre exercido, e que o ha de ser sempre.
Jesus annunciava a seus discipulos que era mister
que elle fosse a Jerusalem, que soffresse muito, e fosse
suppliciado, mas que ao terceiro dia havia de resusci-
tar! Pedro toma-o de parte, e dirige-lhe vivas increpa-
ções: a Deus não praza que taes cousas te aconteçam!
é impossível! Jesus voltando-se para seus discipulos,
DÉCIMO QUINTO ESPLENDOR DA FÉ 279

ameaça Pedro e diz-lhe: «Retira-te de mim Satanaz ; tu


és para mim objecto de escandalo! Não comprehendes
o que sejam as cousas de Deus, só sim comprehendes
as dos homens! Não tens gosto pelas cousas do ceo, só­
mente aprecias as da terra!» Aqui está o homem! aqui
está a canna! Aqui está Pedro antes de ter recebido a
virtude do A lto!
Jesus levanta-se da meza, despe seus vestidos, cin-
ge a cintura com uma toalha, deita agua n’uma bacia
e dirige-se primeiramente a Pedro para lhe lavar os
pés. «Que! Senhor, vós a lavar-me os pés ! nunca o pode­
rei consentir! — Se te não lavar os pés, não terás parte
comigo! — Senhor, n’esse caso não só os pés, mas tam­
bém as mãos e a cabeça! —Aquelle que é puro apenas
ha mister que lhe lavem os pés: ora vós sois puros.»
Eis ainda o homem, eis a natureza humana com seus
extremos! E que scena tão divina!
«Simão, Simão, eis que Satanaz pede para te joei.
rar como ao trigo! — Senhor, diz Pedro, estou prompto
para vos seguir ao cárcere e á morte. —Todos vós esta
noite tomareis escandalo de mim. — Quando todos se
escandalisassem, eu nunca o faria, antes darei minha
vida por vós!
—Tu darás tua vida por mim ! Em verdade, em ver­
dade te digo: Hoje, antes que o gallo cante uma vez,
já tu me terás negado tre s! — Ainda quando fosse pre­
ciso morrer nunca te renegarei.»
Pedro era introduzido no Pretorio por um discípulo
que conhecia o grande sacerdote ! —A criada porteira
diz-lhe : «Não és tu um dos discípulos d’este homem ?
—Não!» responde Pedro. Tinham feito uma grande fo­
gueira, Pedro tomara logar a ella. Uma criada olhan­
do-o com attenção, diz-lhe: «Tu estavas com Jesus o
Galileu. —Não sei o que queres dizer, não conheço esse
homem!» Pedro ia para sahir, o gallo cantou. Ao atra­
vessar a porta, uma outra criada diz: «Este é dos de
280 OS ESPLENDORES DA FÈ

Jesus de Nazareth » Pedro negava, mas a criada insis­


tia: «Tu és d’essa gente, a linguagem mesmo denuncia-
te.» Pedro protesta e jura que nada de commum havia
entre Jesus e elle. —Mas eu vi-te com elle no horto!»
diz um parente do criado do Pontífice, a quem Pedro
cortou uma orelha. Pedro continuou a negar.
O gallo cantou pela segunda vez! E Jesus que pas­
sava arrastado pelos soldados, volveu um olhar para
Pedro, que correu a occultar-se nas trevas e chorou
amargamente. Eis a queda e a conversão-
Jesus resuscitado mostra-se de pé na praia. O dis­
cípulo que Jesus amava diz a Pedro : «E’ o Senhor » Pe­
dro enverga a túnica (pois estava nú) e lança-se ao mar.
Depois de modesta refeição, Jesus diz a Pedro:
«Simão, filho de Jonas, amas-me? — Sim, Senhor, bem
sabeis que vos amo. - Apascenta os meus cordeiros.—
—Pedro, amas-me ?—Senhor, vós que tudo sabeis, bem
conheceis que vos amo! Apascenta as minhas ovelhas.
Quando eras moço cingias teus rins, e ias para onde
querias! Quando fores velho, entregarás as mãos que
outro ligará, e serás conduzido aonde não quererías ir.
Falando assim, Jesus indicava a Pedro o genero de mor­
te, com que havia de glorificar a Deus. Eis a tocante e
divina historia de Pedro.
Aqui está como elle confirmou seus irmãos.
Descendo do jardim das Oliveiras, Pedro entra no
Oenaculo com os apostolos e os discípulos, e procede á
eleição de Mathias na vaga de Judas. Passados dez dias
de ferventes supplicas, Pedro e os apostolos são cheios
do Espirito Sancto, e sahe do cenaculo falando todas as
linguas.
Vinga seus companheiros da calumnia de embrie-
guez, com que pretendem amesquinhal-os, e mostra
n’elles o cumprimento da prophecia de Isaias: «Derra­
marei meu espirito sobre vossos filhos e prophetiza-
rão.»
•- .

DÉCIMO QUINTO ESPLENDOR DA FÉ 281

Depois apostrophando a multidão, diz-lhe: «Jesus


a quem vós crucificastes não soffreu a corrupção do tu-
mulo, resuscitou, e nós somos testimunhas de sua res­
surreição. Assentado á direita de seu Pai, entornou so­
bre nós seu espirito, espirito que procede de seu Pai, e
este espirito opera em nós o que estais vendo, o que
ouvis.
Crêde n’elle, recebei seu baptismo.» Cerca de tres
mil acreditaram, e uniram-se aos apostolos na fracção
do pão e na prece. Ao outro dia recomeça a prégação
e convertem-se cinco mil homens. A synagoga indigna-
se, lança ferros a Pedro e a João; cita-os deante do seu
tribunal, prohibe-lhes com ameaças que d’ora em deante
falem e ensinem em nome d’esse Jesus; mas respondem
com uma intrepidez divina:
«Não podemos deixar de obedecer a Deus que nos
impoz como uma obrigação dizer o que vimos e ouvi­
mos.» E estes heroes pedem íervorosamente a Deus que
lhes conceda a força para annunciar sua sancta palavra
em toda a confiança, e que estenda seu braço para que
as curas, os milagres, os prodígios feitos em nome de
Jesus Christo acompanhem por toda a banda seus pas­
sos. Deus ouve-os.
Basta a sombra de Pedro para curar os enfermos
e livrar os possessos, qae acudiam de toda a parte ao
seu encontro. Herodes para lisongear os judeus dá or­
dem de prisão contra Pedro, desejando ir alem suppri-
mindo-o pela morte, assim como a Thyago Maior, bispo
de Jerusalem; mas um anjo abre-lhe as portas do cár­
cere.
Por occasiao da renhida disputa de preceituar aos
gentios convertidos a observância das prescripções le-
gaes, Pedro faz esta simples observação : «Para que im­
por aos discipulos um jugo que nem nossos paes nem
nós podemos supportar?» Todos eram confirmados ná
verdade e fixos no procedimento que deviam ter.
282 OS ESPLENDORES DA FÉ

Mas é sobretudo depois de ter levantado sua ca­


deira em Roma que elle lia de ser o chefe supremo vi­
sível da Egreja, cumprindo com maior solemnidade o
oráculo do divino Mestre.
Os fieis de Roma, diz S. Ambrosio, alarmados dos
perigos que a crueldade de Nero acenava sobre a ca­
beça de Pedro, apertavam com elle para que se retirasse
da cidade. Por muito tempo recusou fazel-o, mas afinal
taes e tantas foram as instâncias que se decidiu a par­
tir. Poz-se a caminho durante a noite, e já se aproxi­
mava das muralhas, quando viu a Jesus Ohristo, que
entrava pela porta e vinha ao seu encontro. «Aonde
ides Senhor? lhe diz o apostolo. — Vou a Roma para
lá ser outra vez crucificado!» Pedro comprehendeu.
Volta para traz. Advertido do supplicio que o espera,
apenas tem um pensamento, confirmou por uma exhor-
taçào immortal a coragem, a fé e a esperança dos chris-
tãos. E ’ seu testamento, fal-o para todos os fieis do uni­
verso, a todos quantos partilham com elle a fé de N. S.
Jesus Christo: «Servi a Deus juntando a virtude á fé, a
sciencia á virtude, o desinteresse á sciencia, a paciência
ao desinteresse, a piedade á paciência; o amor do pro-
ximo á piedade, e ao amor do proximo a charidade
que tudo encerra!!!...
Todo aquelle que perde de vista estas grandes
cousas é um cego que marcha ás topadelas na vida, um
ingrato que esquece os favores, de que foi objectoi
quando pelo baptismo recebeu a remissão de seus an­
tigos peccados.. • Devo reiterar a memória d’estas ver­
dades, embora as saibaes já e as guardeis em vosso co­
ração. Em quanto habitar n’este tabernaculo mortal,
sou-vos devedor d’estes incitamentos e exhortações. {Con­
firma f ratres tuos /) A deposição do templo de minha
alma está para breve; estou certo d’isso. Nosso Senhor
Jesus Christo m’o revelou ! Mas terei todo o cuidado de
DÉCIMO QUINTO ESPLENDOR DA FÉ 283

que depois de minha morte estas instrucções vos sejam


reiteradas!» Pelos successores de Pedro!...
«Quero que saibaes também que, annunciando-vos
o advento e o poder de N. S. Jesus Christo, de modo
algum me volvia echo de fabulas clontas ! Eu proprio fui
testimunha de suas grandezas, e das glorias de que
Deus Padre o revestiu. Lá estava quando uma voz des­
cida do ceo, no meio de um vivo fulgor, lhe prestava
esta testificação: «Este é o meu Pilho muito amado,
em quem puz todas as minhas complacencias; ouviu-o.»
Esta voz celeste ouvi-a quando estavamos com elle so­
bre a montanha sancta.
Alem d’isso possuímos um testimunho não menos
authentico nos oráculos dos prophetas. Que os ledes
com muita attenção é por mim bem conhecido, e por
isso sois dignos de louvor. As prophecias são lampadas
accesas na obscuridade, aguardando que o dia apareça
e que a estrella d’alva amanheça para os vossos cora­
ções. Não esqueçais no entanto que as palavras da sa­
grada Escriptura não devem ser submettidas a uma in­
terpretação privada. São independentes da vontade e
da intelligencia por sua mesma procedência, pois que
os sanctos que nol-as transmittiram as tinham recebido
da inspiração do Espirito Sancto.» Quem não sente
aqui o sopro de Deus?
«Assim como houve falsos prophetas no seio do
povo de Israel, assim haverá mestres na impostura. In­
troduzirão no meio de vós seitas de perdição. Renega­
rão a fé do Senhor que os remiu. Seguil-os-hão turbas
em seus desvarios! Por uma avareza sórdida fazem tra ­
fico de seus discursos seductores e dos desgraçados que
são suas victimas.
Sua condemnação está escripta desde a origem da
historia do mundo; o Deus vingador não dorme. Não
perdoou aos anjos rebeldes... Não poupou o mundo
284 OS ESPLENDORES DA FÉ

antediluviano. Nas ondas do dilúvio universal que en-


guliu os impios, escaparam apenas Noé e sete pessoas!
As cidades de Sodoma e Gomorrha reduzidas a cinzas
ainda hoje attestam a realidade dos castigos que Deus
reserva aos impios.
O justo Loth foi arrancado pelo Senhor ao ultrage
d’estes infames... Deus sabe, quando lhe apraz, livrar
os justos da perseguição.
Sua providencia reserva os impios para o juizo fi­
nal e para os supplicios eternos. Sua vingança osten-
tar-se-ha principalmente sobre os preversos que se
abandonaram ás ignomínias das concupiscencias car-
naes, affectando o desprezo de toda a auctoridade,
comprazendo-se nos commettimentos do orgulho, per­
seguindo com suas blasphemias todos os representan­
tes do poder.
Os anjos, maiores e mais poderosos do que os prín­
cipes d’este mundo, poupam-nos por agora, deixando a
Deus o cuidado de os julgar.
Os insensatos, soltos como brutos empoz de todas
as perversidades da natureza, correm a sua perdição.
Blasphemam do que ignoram, perecerão na corru­
pção. Seus olhos andam cheios de adultério, e seduzem
as almas innocentes...
Fontes sem agua, nuvens arrebatadas por turbi­
lhões, e que vão perder-se nas trevas da noite, atiçam
as chamas das paixões impuras para de novo inflammar
os christãos a custo safos do erro. Promettem a liber­
dade, esses escravos da corrupção' Sim escravos! por­
que tal é o estado dos que se deixam vencer; sim, por­
que depois de ter buscado um refugio contra as fezes
do mundo no conhecimento de Jesus Christo, de novo
soífreram o jogo ignominioso da carne.
Melhor teria sido para elles não haverem jamais
conhecido as vias da justiça; a elles se aplicam èm
toda a sua nudez estes cruéis provérbios: O cão volta
DÉCIMO QUINTO ESPLENDOR DA FÉ 285

a engolir seu vomito! O povo sahindo vai chafurdar na


lama!
Nos últimos dias surgirão artífices de decepção,
seductores entregues a todas as concupiscencias da
carne...
Onde estão, dizem, as promessas de Jesus... de sua
segunda vinda? Yossos pais morreram, nada se tem
mudado na ordem da creação, a natureza é eterna!
Ora a verdade, que elles a ignorem ou não, é que
o Verbo de Deus creou os ceos primeiramente; em se­
guida a terra, da agua e pela agua, na qual foi sub­
mersa pelo dilúvio. N’este mesmo instante os ceos e a
terra só pelo Verbo subsistem. E’ elle que os mantem
no estado actual até ao dia do juizo e da catastrophe
final, em que os impios hão de perecer pelo fogo.
Quanto a vós, meus caríssimos, não tracteis de compu­
tar os tempos. Sabei que aos olhos do Senhor um dia
é como mil annos e mil annos como um d ia !.. . Sua
providencia é paciente! Por amor de nós não quer a
perda de ninguém, quer pelo contrario chamar todos á
penitencia...
O dia do Senhor surprehenderá de improviso como
surprehende o ladrão! Em um choque horrível os ceos
passarão; os elementos esbrazeados serão dissipados;
a terra com tudo o que encerra será consumida pelo
fogo. Se pois todo o universo está destinado a succum-
bir, qual não deve ser a piedade, a sanctidade de vossa
vida, vós que esperaes o julgamento do Senhor, que
correis a este formidável acontecimento, em que os
ceos esbrazeados serão dissolvidos, em que os elemen­
tos entrarão em fusão pelo ardor das chammas! Se­
gundo a promessa de Deus esperamos novos ceos e
nova terra, patria da justiça! Em uma tal expectativa,
caríssimos, empregai todos os vossos cuidados em man­
ter-vos puros e sem mancha, na paz de uma consciên­
cia inviolável; redobrai de zelo na confiança de que a
286 OS ESPLENDORES DA FÉ

longanimidade de Nosso Senhor Jesus Christo é um


meio de salvação para nossas almas. O nosso carissimo
irmão Paulo já vos escreveu ácerca d’estas cousas se­
gundo a sabedoria divina que o inspira... Sei que em
suas epistolas ha passagens diffieeis de comprehender,
e que certos homens, ignorantes e levianos, procuram
depravar-lhe o sentido. Mas não ha um unico livro das
Bscripturas que o espirito de mentira e de ruina não
tenha forcejado por adulterar. Vós ao menos, irmãos
meus, tende-vos por advertidos, acauteiai-vos não ce­
dais a suggestões pérfidas, sêde firmes na fé, crescei
cada vez mais na graça e no conhecimento de nosso
Deus e Senhor. A Elle toda a gloria no presente e na
eternidade!
Que admiravel profissão de fé ! Que magestosa con-
demnação das heresias de todas as edades, incluindo o
protestantismo e o liberalismo.
E que successo tão extraordinário o da explanação
da dupla theoria verdadeira, a formação neptuniana
da terra e o fim do mundo pelo fogo, feita por aquelle
de quem a synagoga não podia deixar de admirar a
inabalavel firmeza tanto mais, que bem sabia que era
analphabeto e idiota, sine litteris et iãiotae! mas S. Dyo-
nisio Areopagita, impressionado pela sublimidade de
sua linguagem, não hesitava em chamar-lhe «a gloria
sem rival, o ornamento celeste, o chefe supremo, a
base, a columna singular e a mais forte da divina theo-
logia.»
A primeira epístola de S. Pedro, mais moral do que
dogmatica, nem por isso deixa de ser um maravilhoso
cumprimento da prophecia: Convertido, confirma teus
irmãos! Seus irmãos d’esta vez são os judeus da disper­
são, reservados para a salvação que deve revelar-se no
fim dos tem pos.. •
«Não foi a preço de ouro ou prata, matérias cor­
ruptíveis, que alcançastes a redempção dos vãos erros
DÉCIMO QUINTO ESPLENDOR DA FÉ 287

das paternas tradições, mas pelo sangue de Jesus Chris-


to, cordeiro sem macula, conhecido antes da creação
do mundo, e manifesto n’estes últimos tempos por vossa
causa. E’ por elle que credes em Deus que o resuscitou
d’entre os mortos, e o coroou de gloria, assim é que
vossa fé e vossa esperança estão em-Deus.
«Conservai pois vossas almas castas nos vinculos da
caridade e da ternura fraterna. Amai-vos mais e mais
respeitosamente uns aos outros na simplicidade de vos­
sos corações .. regenerados como fostes no Verbo de
Deus vivo e eterno... Despojai-vos de todo o espirito
de fraude, de dissimulação, de inveja e de maledicência-
Como a creança recem-nascida, sêde ávidos do leite
espiritual e puro que vos fará crescer na salvação. Gos­
tai cada vez mais quanto o Senhor é doce. Aproximai-
vos d’esta pedra viva, rejeitada dos homens, mas eleita e
glorificada por Deus, afim de que lhe sejais sobrepostos
como as outras pedras de seus edifícios espirituaes, tem­
plos sanctos, onde se oíferecem hóstias agradaveis a
Deus por Jesus Christo. . Honra vos seja, a vós que
acreditastes.
Para os incrédulos ao contrario a pedra angular,
rejeitada por architectos cegos, tornou-se pedra de nau­
frágio e de escandalo, contra a qual virão despedaçar-
se. ..
Vós, caríssimos, raça escolhida, sacerdócio regio,
nação sancta, povos da divina acquisição..., viajemos e
peregrinos que sois, desatai-vos das concupiscencias car-
naes que luctam contra a alma, .firmai vossa vida entre
as nações no caminho do bem. Apodam-nos de maléfi­
cos, forçai os calumniadores a reconhecerem vossas boas
obras... Sêde submissos por Deus a toda a creatura hu­
mana : ao príncipe como fonte do poder; aos governa­
dores por elle enviados como a representantes seus,
para que reprimam os culpados e remunerem os ho­
mens de bem. Tal ó a vontade de D eus... Sois livres,
288 OS ESPLENDORES DA FÉ

não para fazer de vossa liberdade veo de malícia per­


versa, mas para vos mostrardes servos de Deus. Respei­
tosos para com todos, amai os homens com amor fra­
terno, temei a Deus e amai o príncipe.» — «Escravos,
sede submissos com todo o temor a vossos amos, não
sómente áquelles que são bons e moderados, mas áquel-
les, cujo caracter é áspero. Porque é o triumpho da
graça tolerar pacientemente por amor de Deus maus
tractos injustos. Jesus Ohristo também assim soffreu por
nós, e nos legou seus exemplos afim de que os imite­
mos. Não tinha peccado, nunca a mentira assomou a
seus lábios; amaldiçoavam-no e guardava silencio; sof­
freu as torturas de sua paixão, e nunca caiu de sua
bocca a menor ameaça sobre seus algozes.» — «Que as
mulheres sejam submissas a seus maridos.. • Que os al-
liciem á fé por seu procedimento casto, juncto a um te­
mor respeitoso. Que não façam alarde de seu cabello
esquisitamente penteado, nem de enfeites de ouro ou de
vestidos muito ricos; mas que brilhem pela incorrupti­
bilidade de um espirito calmo e modesto, que é de
grande valia aos olhos de Deus. E’ assim que outr’ora
as sanctas mulheres se adornavam em espirito de sub­
missão e de fidelidade a seus esposos.» — «Vós, maridos,
vivei intelligentemente e sabiamente com vossas mu­
lheres, tractando-as com delicadeza como a seres mais
fracos, coherdeiras convosco da, graça de Jesus Christo.
N’estas disposições, todas as preces que fizerdes serão
ouvidas.»
— Todos enfim não formais senão um só coração,
compassivos, amando-vos como irmãos, misericordiosoSj
modestos, humildes. Não pagando o mal com mal, a
maldição com a maldição, mas pelo contrario pagando
o mal com bem, a maldição com benção. Acima de
tudo, tende uns para com os outros uma caridade cons­
tante, porque a caridade apaga a multidão dos pecea­
dos.
DÉCIMO QUINTO ESPLENDOR DA FÈ 289

Ponde ao serviço uns dos outros os dons que hou­


verdes recebido, constituindo-vos d’esta sorte bons dis-
penseiros dos dons múltiplos de Deus... Caríssimos, se
vos ultrajarem pelo nome de Jesus Christo, considerai-
vos ditosos, porque a honra, a gloria, a virtude de Deus,
e seu espirito repousam sobre vós.
Cautela não vos affrontem como a homicidas, la­
drões, maldizentes, ávidos dos bens d’outrem. Mas se
vos affrontarem como a christãos, não coreis, antes dai
gloria a D eus... Bispos, conjuro-vos eu, bispo e testi-
munha dos soffrimentos de Christo, a que apascenteis o
rebanho de Deus, confiado a vossos cuidados, e a que
desempenheis as funcções do episcopado não com
espirito de rigor, mas com terna affeição; não com os
olhos no lucro torpe, mas no sentimento de uma carida­
de desinteressada; não para dominar tyrannicamente so­
bre o clero, mas para serdes de coração o modelo do re­
banho. .. Yós, moços, sêde submissos aos anciãos; exer­
citai-vos porfiadamente na humildade, porque Deus re­
siste aos soberbos e dá sua graça aos humildes. Humi­
lhai-vos debaixo da poderosa mão de Deus, para que
vos exalte no tempo de sua vinda, deixando-lhe a Elle
toda a vossa solicitude, para que tenha cuidado de vós.
Sêde sobrios, e estai vigilantes, porque o vosso inimigo
o diabo anda em roda de vós como leão rugindo, pro­
curando a quem devore... Resisti-lhe fortes na fé...
Que o Deus de toda a graça, que nos chamou por Je ­
sus Christo a sua eterna gloria, depois de haverdes sof-
frido por modicissimo tempo, vos aperfeiçoe, fortifique
e roborise. A Elle seja dada a gloria e o império pelos
séculos dos séculos. Amen!»
Esta linguagem é evidentemente sobrenatural, in­
spirada, divina!
Quando te converteres, confirma teus irmãos! E ’
diz Bossuet, por outras palavras: «Tu és Pedro, e sobre
esta pedra edificarei minha Egreja e as portas do in-
VOL IV 2y
290 OS ESPLENDORES DA FÈ

ferno não prevalecerão contra ella,» quer dizer, que


será avigorado contra os esforços de Satanaz até se
volver inabalavel, confirmado em sua immobilidade.
E ahi está todos os dias o summo pontifice, chefe
da Egreja, successor de Pedro, pela convocação dos
concilios, por allocuções consistoriaes, por suas bullas,
seus breves apostolicos sellados com o sello do pesca­
dor, a continuar a gloriosa missão de confirmar seus
irmãos na fé. Sejam quaes forem as tormentas que se des­
encadeiem, as duvidas que se suscitem, os erros que
despontem, Pedro manda aos ventos e ás ondas e apa­
ziguam-se; Eoma fala e a causa está definitivamente
julgada. Roma locuta est, causa finita est! Pio ix confir­
mou-os até ao fim tanto ou mais do que os seus prede-
cessores; confirmou-os principalmente por sua obra, o
incomparável Syttabus, por seus protestos energicos con­
tra todas as invasões da revolução e contra todas as
arremettidas do erro. Sua firmeza inabalavel grangeou-
lhe a honra de ser o primeiro papa proclamado infalli-
vel. Logo que lhe succedeu Leão xiii, eil-o, na carta en-
cyclica da tomada de posse do supremo pontificado, a
tornar-se o echo intrépido de todas as confirmações de
Pio ix, que tinham sido as de Pedro! Esplendor!
CAPITULO VIGÉSIMO

O alcance tios Esplendores da Fé

Um só Testes esplendores da Fé, que são em seu


enunciado prophecias luminosas, em sua realisação mi­
lagres refulgentes, é o sufficiente para demonstrar in­
vencivelmente, para fazer tocar com o dedo a divindade
de Jesus Christo, auctor d’estas prophecias e d’estes
milagres, a divindade da sancta Egreja catholica, apos­
tólica, romana, objecto e fructo d’estes portentosos
acontecimentos. Reunidos, postos ao lado uns dos ou­
tros, fortificam-se em proporção crescente e de alguma
forma indefinida.
Nunca, ao menos que eu saiba, foram agrupados
sob este duplo aspecto, de seu duplo alcance, prophe­
cias claras como a luz, factos ou milagres tamanhos co­
mo o mundo, ou antes factos que são o proprio mun­
do transformado e d!alguma sorte divinisado.
Com effeito:
l.° Todas as nações me proclamarão bemaventuraãa!
E ’ o mundo retinindo por toda a parte com os louvo­
res de Maria; coalhado de logares de peregrinação e
de sanctuarios de Maria, proclamando por toda a parte
os seus louvores.
292 OS ESPLENDORES DA FÉ

2. ° Meus olhos viram o vosso Salvador, o Salvador d


todos os povos, a luz que illuminará as nações! E’ o mundo
salvo, illuminado, civilisado pelo Christianismo!
3. ° Este menino está posto para ruína e resarreiçã
de muitos! E ’ o mundo vendo desaparecer uma a uma
as nações, judaica, grega e romana, etc., conjuradas
contra a religião de Jesus Ohristo. E’ o mundo testi-
numha solemne da morte funesta de muitos persegui­
dores, hereges, impios, inimigos de Jesus Christo, de
sua sancta Egreja e do papado. E ’ o mundo glorifican-
do-se de aplaudir o heroismo da sanctidade, a gloria
sem nuvens dos grandes convertidos ou resuscitados de
Jesus Christo!
4. ° Este menino será mira de contradicção! E’
mundo de todos os tempos e logares, desencadeado,
encarniçado, enfurecido contra Jesus Christo, e dispu­
tando-lhe violentamente todo o seu ser!
õ.° Vinde comigo, far-vos-hei pescadores de homens!
E’ o mundo salvo em todos os sentidos pelos bellos
passos dos evangelistas da paz, caçadores e pescadores
de homens, lançando continuamente suas linhas e suas
redes! Missões por toda a parte, púlpitos e confessioná­
rios!
6. ° Sêde perfeitos, como vosso Pai celestial é perfeit
E ’ o mundo por toda a parte e sempre edificado, es­
pantado, encantado com as virtudes heróicas dos san-
ctos, que aspiram á perfeição, e que se empenham por
voto a attingil-a!
7. ° Os pobres serão evangelisados ! E’ o mundo su
prehendido, escandalisado de ver a pobreza liberta,
honrada, amada, espontaneamente abraçada como uma
profissão bemdita! Os pobres evangelisados, instruidos,
alliviados e consolados de todas as suas misérias; em
quanto que o rico, como um maldito, vê-se reduzido a
não poder ser salvo senão pelo pobre!
8. ° Sereis objedo do oclio de todos por minha causa!
0 ALCANCE DOS ESPLENDOR DA FÉ 293

E’ o mundo echo perpetuo dos uivos implacáveis das


matilhas encarniçadas contra os catholicos, ardentes
na chacina dos infames d’outr’ora, dos claricaes de
hoje!
9. ° Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei minha
Egreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ella !
E ’ o mundo theatro do furor impotente da idolatria,
da heresia, do scisma, da philosophia, da Revolução,
conjurados uns apoz outros contra a Egreja, sempre de
pé sobre sua rocha eterna! Fortes e bem fortes foram
os imperadores, fortes os arianos, fortes os barbaros,
fortes Luthero e Oalvino, fortes Yoltaire e os encyclo-
pedistas, fortes Robespierre e a Revolução franceza,
fortes os imperadores da Allemanha, forte Napoleão o
grande, forte a Franc-maçonaria, forte o heroe do Kul-
turkampf / * E todas estas forças, todas estas ondas vie­
ram e virão despedaçar-se contra a rocha do Vati­
cano!
10. ° Quando eu for levantado da terra, tudo aitrahi-
rei a mim. E’ o mundo tornado christão, dominado pela
cruz de Jesus Christo; o mundo dando o grito estri­
dente de gloria e de triumpho da edade media: O
Christo reina, o Christo governa, o Christo impera nas
intelligencias, nas vontades, nos corações e nos cor­
pos!
11. ° Reconhecerão que sois meus discipidos por este
signal, que vos amareis uns aos outros! E ’ o mundo pas­
sando do estado mais brutal á mais ardente charidade,
engendrando por toda a parte heroes da charidade.
12. ° Em verdade, em verdade vos digo, aquelle que
crer em mim fará as obras maravilhosas que eu faço, e
ainda maiores! E ’ o mundo convertido pelos milagres

* B ism arck, ex -ch an celler do im p ério allem ão.

N. do T.
294 OS ESPLENDORES DA FÉ

dos apostolos; é o mundo maravilhado dos prodigios


operados pela Sanctissima Virgem e pelos sanctos.
13. ° Jerusalem, tu serás calcada aos pés dos gentios
E ’ o mundo apontando por toda a parte os judeus dis­
persos, vagabundos e malditos, obstinados em seu en­
durecimento, sem altares, sem sacerdotes, nem sacrifí­
cios !
14. ° Ide, ensinai todas as nações, baptizai-os em nom
do Padre, do Filho e do Espirito Sancto, ensinando-lhes a
observância dos meus preceitos! E’ o mundo baptizado,
instruído, submettido á lei de Jesus Christo, cantando
em seu reconhecimento por toda a parte e sempre a
sancta doxologia: Gloria ao Padre, ao Filho e ao Espi­
rito Sancto!
15. * E tu, convertido, confirma teus irmãos! E’ o
mundo ouvindo outr’ora, como hoje, a voz que desce
da cadeira de Pedro em Eoma, sacudindo loucamente,
de balde felizmente, o jugo aliás suave do representante
de Jesus Christo.
E’ o mundo assombrado da valentia de Pio ix,
enunciando e condemnando os erros modernos no Syl-
labus e continuado por Leão xm!
Estas quinze prophecias são outros tantos pharoes,
ou melhor quinze astros rutilantes; quinze milagres
tomando outras tantas formas novas e sobrenatu-
raes. Impossivel é não ver umas, impossível não palpar
ou sentir os outros. Reunidos expõem a divindade de
Jesus Christo e de sua Egreja a um foco de luz tão
viva, que a incredulidade é urn crime, que a duvida é
inexcusavel. üs pseudo-sabios e os demi-sabios do
mundo, offuscados por suas próprias luzes, alteando-se
acima do ceo, são os únicos que podem não ver os lis­
tões brilhantes d’estes oráculos de luz, não enxergar
estes mundos milagrosamente transformados!
Quão sublime e formidável é este transporte de
Jesus Christo agradecendo a seu Pai o ter permittido
O ALCANCE DOS ESPLENDOBES DA FÉ 295

que a revelação accessivel aos pequeninos se esquivasse


aos olhos dos grandes!
E não esqueça que estes oráculos e estes milagres
não cessam de effectuar-se no seio da Egreja catholica,
apostólica, romana. Effectuam- se, é verdade, em pro­
porções ou com menor brilho, porque a fé tende a tor­
nar-se cada dia mais rara sobre a terra, Mas este brilho
diminuto estava egualmente predicto, e é a seu turno
um milagre de cegueira voluntária!
«Quando soar a hora do juizo derradeiro, e o Filho
do homem vier, credes que encontrará fé na terra?»
Ü divino Salvador accrescentava : «A vida material
dominará cada vez mais sobre a terra; a grande pre-
occupação dos homens será comer, beber, matrimoniar-
se, correr de festa em festa; depois virão dias de sedu-
cção tal, que se Deus os não abreviasse, os proprios
eleitos, se possível fosse, seriam seduzidos.» S. Pedro
em sua segunda epístola, mostra-nos também a concu-
piscencia dos últimos tempos e embustes arteiros cau­
sando defecções innumeras.
S. Paulo enfim aponta no mais remoto horizonte
um tempo, em que os homens não mais hão de suppor-
tar as sãs douctrinas e se hão de embalar em fabulas.
Tudo é esplendor na fé christã, até mesmo o abandono,
que ha de soffrer um dia!
Jesus Christo é Deus, a Egreja é divina, logo tudo
o que Jesus Christo nos revelou e o que a Egreja nos
ensina é verdadeiro, bello e bom, como todas as mani­
festações divinas. As objecções levantadas por esta re­
velação e ensino, podem ter algum valor aparente, mas
não tem nenhum re a l! Assiste-nos o direito e o dever
de as rejeitar sem mesmo as discutir. Mas se eu usasse
d’este direito, se cumprisse rigorosamente este dever,
muitas intelligencias não ficariam satisfeitas; era de re­
cear que dos paúes da razão subjugada pelos sentidos
surgissem nuvens espessas de hesitações, duvidas, in-
296 OS ESPLENDORES DA FÉ

quietações, que obscureceriam o bello ceo da revela­


ção. Darei pois mais um passo para a frente, cheio de
confiança, direi mesmo, certo de não deixar atraz de
mim uma objecção seria.
A Religião christã, catholica, apostólica, romana,
prospõe-nos como dogmas de íé mysterios e verdades
que espantam a intelligencia ou que contrariam a von­
tade. Deus, sua existência, sua noção, seus attributos!
A SS. Trindade, a Creação. A Incarnação, a Redem-
pção! O peccado original, a existência do mal no mun­
do! A Providencia; o milagre. A oração. A liberdade
humana em presença do concurso divino da acção
omnipotente da graça e da predestinação! A presença
real de Jesus Christo debaixo das especies eucharisti-
cas! A existência dos espíritos ou anjos bons e maus, e
suas relações com o homem! Os sacramentos! Os fins
do homem: a morte, o juizo particular, a resurreição
dos corpos, o juizo universal! A vida futura, o paraizo,
o inferno, a eternidade das penas e das recompensas!
As relações da Egreja e do Estado! O poder temporal
dos papas.
Sobre todos estes pontos o mysterio e o sobrenatu­
ral, n’este século de preoccupações materiaes, de fé
rara e pouco activa, excitam em grande numero de
espiritos uma repulsão mais ou menos violenta!
Para conciliar plenamente a razão com a fé, ha
bastantes prejuízos a desarreigar, repugnancias a ven­
cer, incertezas a dissipar.
Fiel ao plano que me tracei, não vou discutir, nem
mesmo raciocinar syllogisticamente, mas procurarei es­
clarecer! Pela questão previa, por excepções oppostas
e sem recusa, por considerações curtíssimas e muito
simples, accessiveis a todas as intelligencias com a úni­
ca condição de estarem livres de má vontade, farei ca-
hir objecções, tirando-lhes todo o valor aparente ou
real.
CAPITULO VÍGrESSIMO PRIMEIRO

Os Mysterios em geral

No capitulo sétimo do primeiro volume demonstrei


até á evidencia que a fé subjectiva, a adhesão da intel-
ligencia ás verdades reveladas é altamente razoavel,
porque a fé não é realmente senão o auxiliar necessá­
rio e benefico da alma humana, o telescópio bemdito
de sua razão e liberdade.
Ao mesmo tempo recordei os princípios que for­
çam a admittir a necessidade absoluta e a existência
real dos mysterios, i é, das verdades, factos ou dogmas,
inaccessiveis á intelligencia humana, mas que todo o
homem razoavel deve acceitar, quando lhe sejam reve­
lados ou impostos por uma auctoridade competente e
indiscutível.
Nossa intelligencia é essencialmente finita; a ver­
dade pelo contrario physica, metaphysica ou moral é
essencialmente infinita ou indefinida. Nossa intelligen­
cia é a poça aberta pela creança; o mysterio é o Me­
diterrâneo ou o Oceano! Louco seria aquelle que qui-
zesse transportar o Oceano para a poça! Mais louco
ainda aquelle que partisse d’esta impossibilidade para
negar a existência do Oceano!
298 OS ESPLENDORES DA FÉ

O inaccessivel, o desconhecido, é o mysterio! O co­


nhecido, o palpavel é a revelação manifestada pelos es­
plendores da fé! Oppor o desconhecido, o mysterio ao
conhecido, á revelação seria abuso do raciocínio! Ac-
eeitar pelo contrario o desconhecido, o mysterio de­
baixo da pressão do conhecido, da revelação é obrar
com razão esclarecida! Já o dissemos, os mysterios da
religião são bem menos numerosos e aterradores, do
que os mysterios da sciencia. Em realidade, nada sabe­
mos, ou bem pouco! E esse pouco sabemol-o muito
pouco! De cousa alguma possuimos a ultima palavra!
A que se reduzem em derradeira analyse os progressos
das sciencias? á multiplicação das incógnitas! Quando
é sincero, o verdadeiro sabio não hesita em dizer como
Salomão: «Concebera o desígnio em meu espirito de
investigar e tornar a investigar a origem de tudo o que
existe debaixo do sol! Ignorava a h ! que é a peior das
occupações, a que Deus pôde entregar o homem.» E
n’outra p arte: «Que fructo tira o homem do seu traba­
lho ?»
«Cerca-o de todos os lados a afflicção do espirito, o
mysterio, o desconhecido, de que Deus o envolve como
n'uin vestido! Deus fez bem todas as cousas no tempo
e no espaço. Mas este bem tornou-o como inaccessivel
ao homem! Entregou o homem a disputas eternas, como se
houvesse querido pol-o na impossibilidade de achar o se­
gredo de uma só de suas obras desde o principio até ao
fim!. . . » E ainda algures'• «Reconhecí que de todas as obras
de Deus que se passam debaixo do sol, o homem nenhuma
razão (definitiva) pode encontrar; que quanto mais for-
ceja por encontrar menos encontra. O sabio em vão se lison-
geia de possuir este conhecimento, nunca o poderá attin-
gir!» Sim, todas as sciencias humanas, aquellas de que
o homem se orgulha mais, sciencias, cujo objecto é
aliás a obra visivel de Deus, vão dar a incógnitas ter­
ríveis, a mysterios desoladores! E ha quem se admire,
OS MYSTERIOS EM GERAL 299

quem se indigne de que a religião, cujo objecto é o


proprio Deus, o auctor de todas aquellas cousas, o In­
finito ! nos proponha e preceitue mysterios!
Espirito, matéria, ether, espaço, tempo, attracção,
affinidade, luz, calor, electricidade, magnetismo, molé­
culas, etc., a essencia de tudo isso escapa-nos! E quere­
riamos conhecer a Deus!!!
A inconsequencia é tanto mais fatal, quanto que os
mysterios da Religião, perfeitamente dignos de Deus,
perfeitamente dignos do homem, são, como provaremos,
admiráveis conquistas scientiticas, que elevam a intelli-
gencia, que dilatam o coração, que são para nós fonte
de graças e de felicidades que jamais teriamos ousado
esperar.
Pelo contrario os mysterios da sciencia humana,
muito mais proximos de nós, são muralhas a pique, con­
tra as quaes força é vir despedaçar-se. E a tal ponto
que á excepção dos factos ou plienomenos, a sciencia
humana é como uma prisão, sobre a porta da qual se
lê esta sentença formidável: 0’ vós que entrais, deixai
aqui toda a esperança! Prisão que estamos condemnados
a habitar, em quanto a visão da fé não der logar á vi­
são intuitiva. Porque será então que, emancipados pela
crença fiel nos mysterios de Deus, veremos a luz sem a
luz! Para provar que nada exageramos affirmando que
os mvsterios da sciencia são realmente desoladores,
para não dizer revoltantes, enumeraremos alguns.
A terra, que sentimos absolutamente immovel, é
animada no entanto por tres movimentos muito rápi­
dos: de rotação em redor do seu eixo, de revolução em
volta do sol, de translação no espaço sobre a órbita
immensa que o proprio sol descreve em redor da es-
trella Alcyon das Pleiades, e talvez de outros muitos
movimentos ainda, porque Alcyon e todas as estrellas
chamadas fixas, como por antithese, eífectuam no es­
paço carreiras vertiginosas! —Cada uma d’essas peque­
300 OS ESPLENDORES DA FÉ

nas manchas esbranquiçadas ou nebulosidades, que só


a custo enxergamos no ceo, e bem assim a immensa
zona circular que chamamos Via Lactea, é um montão
de soes tanto ou mais brilhantes e grandes, do que o
nosso sol, que realmente não passa de uma estrella de
sexta grandeza! — Cada uma das ondas luminosas que
partem do sol, atravessa em um segundo, em quanto di­
zemos um, tresentos mil kilometros! — Este correio que
anda tresentos mil kilometros por segundo, gasta mui­
tos annos para chegar da estrella mais visinha até nós,
e faz-nos assistir hoje a uma erupção estellar, succedida
ha doze, cem, mil annos talvez! — Os milhares de mi­
lhões de raios luminosos, caloríficos, sonoros, lançados
pelos astros visíveis e invisíveis do firmamento, cru­
zam-se e entrecruzam-se sem nunca se perderem ou ex-
tinguirem, transportando comsigo e em si o signal in-
delevel dos acontecimentos occorridos desde a origem
dos tempos!
Uma gota d’agua microscópica, de uma millesima
de millimetro de diâmetro, encerra vinte e cinco mi­
lhões de moléculas, formadas cada uma de milhões de
átomos!
Em cada millimetro de ar que respiramos, ha se­
gundo o sr. Stoney, grande auctoridade scientifica, um
bilião de biliões de moléculas, das quaes fica ainda um
milhão de biliões em um millimetro cúbico do vacuo o
mais perfeito a que possamos chegar com nossas ma-
chinas pneumáticas aperfeiçoadas. — As moléculas ou
átomos do fluido luminoso, o ether, cujas distancias mu­
tuas são apenas de tres millionesimas de millimetro, exe­
cutam pelo menos n’um segundo quatrocentos milhões
de vibrações! As amplitudes d’estas vibrações variam
de quatro a seis millionesimas de millimetro. E todavia
estas vibrações, infinitamente pequenas, produzem to­
dos os phenomenos da attracção, da affinidade, da luz,
do calor, do magnetismo e da electricidade! —No seio
OS MYSTERIOS EM GERAL 301

de um frasco cheio de gaz e hermeticamente fechado,


onde parece reinar o repouso absoluto, as moléculas
são incessantemente projectadas em todos os sentidos,
com velocidades excessivas de seiscentos a dois mil me­
tros por segundo, de modo a causar oito milhões de co­
lisões ou choques mutuos n’um mesmo tempo quasi in­
divisível.— Um gaz, o hydrogenio, posto em presença,
a uma temperatura relativamente baixa, do palladio,
um dos metaes mais densos, penetra-o, e faz-lhe absor­
ver de quinhentas a seiscentae vezes o seu volume, e
forma com elle um só e mesmo solido, o que suppõe
uma pressão ou compressão interior de quarenta a cin-
coenta mil atmospheras, pressão, de que não fazemos ideia
alguma.
Dois gazes inoífensivos, o oxygenio e o hydrogenio.
unindo-se debaixo da acção de uma pequena chispa
electrica, em quantidade sufficiente para formar um li­
tro de agua, largam 34000 calorias ou unidades de ca­
lor, i é, o equivalente de uma força mecanica, ao pé da
qual as forças do mundo visivel se anullam, bem supe­
rior ao esforço espantoso de qualquer massa de granito
de muitos milhares de kilogrammas, precipitando-se
do monte Branco! — Se a terra parasse repentinamente
em sua órbita, descripta em volta do sol, o calor pro­
duzido pela transformação súbita do movimento de
massa em movimento molecular, produziría um calor
tal, que o globo terrestre seria não só fundido, mas até
volatilisado! etc., etc.
Prolongando indefinidamente uma curva e sua
asymptota, distantes na origem apenas um centímetro
ou uma millionesima de millimetro, aproximam-se sem­
pre sem nunca se encontrarem.
Que haverá de mais intimo para nós do que nosso
corpo e nossa alma! Nosso corpo e nossa alma somos
nós! Nossa alma vê-se pela mais perfeita das visões, a
visão intuitiva! A alma habita, informa, anima, sente
302 OS ESPLENDORES DA FÉ

seu corpo, faz d’elle o que quer! e no entanto o corpo


e a alma, unidos ou separados, são para nossa intelli-
gencia duas incógnitas desoladoras, dois enigmas inso­
lentes que arrancam á sciencia a mais despreoccupada,
á mais livre pensadora este grito de desespero: ignora­
mus, ignorabimus, que tantas coleras tem excitado, mas
que todos bom ou mau grado são forçados a acceitar!
Que cousa é essa que em nós sente, pensa e quer,
opera, delibera e soffre? Ignoramus, ignorabimus! Que
logar é esse onde a memória congrega e armazena os
thesouros do passado, 1 é, um acervo enorme de idéias,
de factos, de lembranças, que põe sem cessar á nossa
disposição, sem que possamos ver onde os temos para
nol-os apresentar ? E a vontade ? E a intelligencia ou a
faculdade de comprehender ou de raciocinar ? E a ima­
ginação ? E essa successão infinita de idéias, de refle­
xões, de sentimentos, de desejos, de sonhos, modificações
moveis ao excesso de uma alma simples e indivisível, que
alternativamente nos occuparn, divertem, afligem, es­
pantam e desconcertam, etc. O que é tudo isso ? Igno­
ramus! Ignorabimus / E a vida, o que sentimos mais in­
timamente em nós? E nossos sentidos? E nossos or-
gãos ? E esse poder tão absoluto que temos sobre nos­
sos membros? E todas essas molas tão admiravelmente
distribuídas em todas as partes de nosso corpo, que o
movem com tanta facilidade e de tantas maneiras dif-
ferentes? Como sem os ter visto, sem conhecer nem
sua posição, nem seu numero, nem seu jogo tão com­
plicado, nem suas combinações tão múltiplas, os em­
pregamos com tamanha pontualidade? Como encon­
trais exactamente cada um d’elles para lhe imprimir a
acção que vos apraz?
Ignoramus! Ignorabimus! E toda esta resenha é
apenas um debil bosquejo dos mysterios esmagadore
da natureza, que a sciencia tem de acceitar aos milha,
res, porque sua existência é evidente, muito embora
OS MYSTEKIOS EM GERAL 303

nada comprehenda. Se dermos ouvidos á ultima pala­


vra da sciencia, mesmo experimental, não ha realmen­
te em a natureza senão myriades de myriades de mo-
nadas simples ou inextensas, idênticas em si! E ’ com
estas monadas inextensas que são constituidos todos os
corpos: gazosos, líquidos, solidos, inorgânicos e orgâ­
nicos do reino mineral, do reino vegetal, do reino ani­
mal, e são geradas todas as forças, todos os phenome-
nos da natureza!
O mysterio da matéria em consequência dos inces­
santes progressos realisados pelas sciencias de observa­
ção, converteu-se n’um pégo tão profundo, que a sua
vista causa fortes vertigens. Um dos mais illustres phy-
sicos de Inglaterra, já atraz o dissemos, em seu discur­
so inaugural das sessões da Associação britanica para
o progresso das sciencias levou o arrojo a ponto de fa­
zer a seguinte profissão da fé, que é um delirio: «Pe­
netro n’essa matéria, que em nossa ignorância até hoje
temos coberto de opprobrios, o poder de engendrar to­
das as formas da vida... A natureza da matéria é de­
senvolver tudo o que nos rodeia, e tudo o que em nós
sentimos, tudo o que foi e tudo o que ha de ser, pelo
jogo das forças molleculares. Vivemos porque a maté­
ria vive: sentimos e pensamos, porque as combinações
materiaes de que somos formados, tem a virtude de sen­
tir e pensar!» Para o sabio sem Deus esta synthese do
universo só pela matéria é evidentemente o impossível,
o absurdo no seu mais alto grau. Pelo contrario para o
sabio christão que crê no Deus eterno, omnipoten-
te, creador e conservador dos mundos, esta synthese
é um hymno admiravel, que entoa alegre e o arre­
bata, porque d’esta sorte tudo é reconduzido á uni­
dade.
O desconhecido, o mysterio da sciencia permanece,
mas passa realmente do finito ao infinito, do mundo a
Deus. Será sempre verdade que ha fóra de nós seres
304 OS ESPLENDORES DA FÉ

que não poderemos attingir, verdades que não podere­


mos comprehender; mas estes sei’es e estas verdades
tem sua origem e a razão de sua existência no ser infi­
nito que os creou e que nol-os revela. Prostro-me a seus
pés, e adoro-o.
Para o sabio atheu, esta mesma synthese é o im-
possivel e o desespero; escaparia-lhe se pudesse, como
o pretende e espera em vão, entrar em o nada.
Para o sabio christão, o mysterio é eminentemente
razoavel e consolador, por que é a manifestação pelo
espelho e pelo enigma da eterna verdade, que um dia
ha de ver face a face. In lumine tuo videbimus lumen.
Em summa, a sciencia tem seus mysterios, impene­
tráveis, medonhos, desoladores, muito embora o cam­
po de suas observações seja o mundo do finito, o mun­
do da matéria e da alm a! Estes mysterios são factos
que ella acceita, poroue sua existência está demonstra­
da, embora não lhes conheça a causa e a natureza inti­
ma ! E todavia orgulha-se d’elles, porque constituem o
progresso, e são o resultado da conquista do tempo e
dos homens! Multi transibunt, et Scientia augebitur! Pro-
pôe-nos, impõe-nos, mesmo áquelles que estão menos
em estado de os comprehender e ainda quando nenhu­
ma aplicação recebessem que mostre a estabilidade
que tem!
Mas isto não é tudc. N’este século positivista em
que se gabam de ter abandonado a via, no estudo das
sciencias, do raciocínio e das theorias á priori, para se
ater unicamente á observação e á experiencia, estamos
condemnados a acceitar os factos os mais inverosimeis
da sciencia, sem que nos seja permittido remontar a
suas origens e a suas causas. E será então caso para es­
pantos que a religião, cujo campo é o infinito, cujo ob-
jecto é Deus, tenha também os seus mysterios, factos
grandiosos que acceita, fiada na auctoridade da mesma
Verdade, factos que são para o espirito humano con­
OS MYSTERIOS EM GERAL 305

quistas inesperadas e gloriosas, factos que se ufana de


propor e impor tanto mais quanto é certo serem para
a humanidade uma fonte de felicidade, inesperada, eter­
na, e de alguma sorte infinita!!!
Inclinar-se perante o mysterio quando apenas é
uma abstracção em um campo de investigações, onde
parece absurdo que exista, e rspellir o mysterio d'uma
ordem de concepções, onde constitue uma necessidade
natural e imperiosa, quando tem como resultado mos­
trar-nos Deus a verdade, a bondade, a belleza infinitas,
e volvendo-se todo, digamol-o assim, ao sabor de S.Tho-
maz, para nossa felicidade, como se o homem fosse o
Deus do proprio Deus! não será o cumulo da sem-razão
e da injustiça?
CAPITULO VIGÉSIMO SEGUNDO

Deus!

A idéia de Deus. Nada mais natural, mais familiar


ao homem que a ideia de Deus. Quando contemplamos
o ceo, já dizia Cicero, não é possível deixar de reco­
nhecer com evidencia que ha uma intelligencia sobe­
rana que o dirige. S. Paulo diz a seu turno: « As per-
feições invisíveis de Deus, tornadas comprehensiveis
pelas cousas que foram feitas, patentearam-se á nossa
vista, assim como seu poder eterno e sua divindade, de
sorte que elles (os philosophos) são inescusaveis, porque
tendo conhecido a Deus, o não glorificaram como Deus,
nem lhe deram graças, mas desvaneceram-se em seus
proprios pensamentos. Seu coração insensato obscure-
ceu-lhes a intelligencia!»
Pelo facto de na linguagem do grande apostolo es­
tarmos em Deus, nos movermos em Deus, vivermos em
Deus, e sermos do genero de Deus, n’este sentido que
temos o ser por Deus e com Deus, a alma humana é
naturalmente crente em Deus. Tudo n’ella proclama
Deus. Um philosopho celebre, Hemsterhuys, não re-
ceiou dizer: Um unico suspiro para o futuro e melhor
é uma demonstração mais que geométrica da divindade !
DEUS 307

Porque Deus creou o liomem á sua imagem, e lhe deu


a plenitude da intelligencia para pensar, e creou riette a
sciencia do espirito, e concedeu a seus ouvidos a honra de
ouvirem sua voz mysteriosa (Eccl. xvn, 4-11), o homem
foi desde a origem iniciado na ideia e no sentimento
de Deus. Eis ahi porque sempre e em toda a parte, o
homem em seu espirito, em seu coração, e em sua lin­
guagem, em seu culto, tem estado em relação com Deus.
«Obrigado pelo ensino, diz o sr. dr. Quatrefages, em
sua obra da Especie humana, a passar em revista todas
as raças humanas, tive de procurar o atheismo tanto
nas raças mais inferiores, como nas mais elevadas. Não
o encontrei em parte alguma, a não ser no estado indi­
vidual, ou no de escolas mais ou menos restrictas, como
na Europa no ultimo século, ou ainda em nossos dias.»
Tanto isto é verdade que um heterogenista, positi­
vista dos que o são mais, invocava ha pouco a preten­
dida ausência da ideia de Deus como caracter distin-
ctivo das raças humanas, differentes da raça adamica.
A Existência de Deus. — Já atraz fizemos a exposi­
ção das provas certas da existência de Deus. As mais
palpáveis são aquellas que resultam do facto d’estes
grandes dogmas scientificos:
O numero actualmente infinito é impossivel: houve
uma primeira revolução de cada um dos astros; um
primeiro homem, e em cada cathegoria de seres vivos
um protoparente.
A vida nem sempre existiu á superfície da terra.
A geração espontânea ou o desenvolvimento da
vida sem outra vida anterior é impossivel.
O universo sem Deus, a theoria puramente dyna-
mica do mundo ou dos mundos conduz a monstruosos
absurdos.
A causalidade é um primeiro principio da razão ; a
finalidade é uma lei da natureza.
A finalidade, o designio, as causas finaes osten­
308 OS ESPLENDORES DA FÉ

tam-se por toda a parte, e proclamam uma intelligen-


cia infinita.
O instincto dos animaes é inexplicável sem Deus.
Os átomos e as moléculas são productos manufa-
cturados, obras de Deus.
Cada uma das obras dos seis dias exigiu imperiosa­
mente a intervenção divina.
A existência de Deus é ainda mais irrefragavel-
mente estabelecida por cada um dos quinze esplendo­
res da Fé, que são a um tempo prophecias refulgentes
e milagres da omnipotencia divina.
Deus resplandece em cada pagina das sanctas Es-
cripturas; o conjuncto dos textos, em que os escripto-
res sagrados enumeram os nomes, e celebram os attri-
butos do Deus de Adão, de Abrahão, de Jacob, do
Evangelho, nomes e attributos que o espirito humano
não era capaz de inventar, são de per si sós uma su­
blime manifestação do dogma fundamental de nossa fé,
porque sobrepujam infinitamente a intelligencia hu­
mana.
Instituição divina de um divino fundador, a Egreja
catholica crê e professa que ha um só Deus, verdadeiro
e vivo, omnipotente, eterno, immenso, incomprehensi-
vel, infinito em intelligencia, vontade e em todas as
perfeições. Poder espiritual, um, singular, absolutamente
simples e immutavel. (Constituição dogmatica do concilio
do Vaticano).
Definição e attributos de Deus. — Ao momento, em
que vai confiar a Moysés o papel de libertar os filhos
de Israel da escravidão, Deus diz-lhe: «Vem, e enviar-
te-hei a Pharaó. — Quem sou eu para que vá ter com o
Pharaó, e tire do Egypto os filhos de Israel? —Eu serei
comtigo —Direi aos filhos de Israel: O Senhor Deus de
vossos paes envia-me para vós. Se elles porem me per­
guntarem qual é seu nome, que lhes direi ? —Dir-lhes-
has: Eu sou o que sou. Aquelle que é envia-me para vós.
DEUS 309

Teria sido impossível conceber e enunciar uma de­


finição tão precisa e tão bella. Convem admiravelmente
ao ser definido — Deus! Só a elle convem! Caracterisa-o
por seu genero proximo, o Ser, Eu sou e por sua diffe-
rença próxima, 0 que sou! Aquelle que é!
D’esta definição incomparável decorrem immedia-
tamente todos os attributos divinos.
Sua intelligencia. —Elle conhece-se, affirma-se.
Sua personnalidaãe. —Manifesta-se a Moysés; fala-
lhe, ordena-lhe, diz-lhe: Eu sou, eu envio-te.
Sua unidade. — Elle é aquelle que é ! Se houvesse
dois ou muitos deuses, já não seria aquelle que é, seria
apenas uma parte do que é. Em outra occasião poz
ainda na bocca de Moysés esta declaração formal: Vêde
que sou unico e que não ha outro Deus senão eu!
Sua simplicidade. — Se Deus fosse composto, have­
ría n’Elle ser e não ser, e não seria já aquelle que é.
Se fosse extenso, poderia conceber-se sua metade, sua
quarta parte. O Eu é simplesmente simples e indivi­
sível.
Sua eternidade. —Aquelle que é, é essencialmente o
presente: não ha para elle nem passado, nem futuro.
Se não fosse eterno, não teria existido sempre, e não
seria aquelle que é! Elle accrescenta em outro logar: o
que é, eis meu nome desde a eternidade. Elle é! E’ o
eterno presente!
Sua immensiãade. — Elle é! E’ por toda a parte,
como é desde sempre! Por toda a parte é Elle! Assim
como sua eternidade comprehende eminentemente, vir­
tualmente, todo o passado, sua immensidade compre­
hende virtualmente o espaço e o logar, que só hão de
existir, quando tiver creado seres finitos.
Sua necessidade. — Elle é, logo é necessariamente. E
para o ser necessário não ha nem tempo, nem logar. O
tempo e o logar só aos seres contingentes faz falta, são
acçidentes que os acompanham.
310 OS ESPLENDORES DA FÈ

Sua immutabUidade. — Aquelle que é, é necessaria­


mente o que é, tudo o que pode ser. E ’ immutavel em
sua essencia, em suas perfeiçoes divinas que são sua
essencia; em seus actos interiores ou acl intra, que são
elle mesmo; mas não em seus actos exteriores, ad extra,
que são d’elle, n’elle, por elle, mas que não são elle. A
causa primeira de todas as cousas essencial mente una,
simples, indivisivel, immutavel, pode por um só acto
eterno como elle produzir ao defóra seres successiveis e
mudaveis, sem elle mesmo mudar. Os seres creados por
Deus mudam, mas Deus fica sempre o mesmo, o que é !
Perecem, mas Deus permanece.
Sua verdade, sua bondade, sua belleza. — O ser creado
pode ser e é verdadeiro, bom e bello! Logo o ser infi­
nito, aquelle que é, é infinitamente verdadeiro, infinita­
mente bom e infinitamente bello! a verdade, a bondade
e a belleza infinitas! Para que me interrogaes acerca
do bom? dizia Jesus Christo. Só Deus é bom, a mesma
bondade, como é a própria verdade, e a própria bel­
leza. O verdadeiro, o bom e o bello, são o ser debaixo
de diversas denominações. Bonum et ens convertuntur. E ’
sempre o ser.
Sua força ou poder, sua scienda.—-Todos estes attri-
butos são perfeiçoes do ser creado, logo são com maio­
ria de razão perfeiçoes do ser essencial, d’aquelle que é,
do ser dos seres.
O ser infinito é pois omnipotente, omnisciente! Deus
pode tudo, Deus sabe tudo, ou antes Deus vê tudo em
uma visão intuitiva, porque vê tudo em seu ser, que é
o ser dos seres, em uma visão essencial, eterna! Por isso
mesmo que não ha para Deus futuro, não ha falando
com rigor para Deus previsão ou presciencia; mas só­
mente sciencia e visão!
Sua liberdade. —A liberdade é uma qualidade essen­
cial das intelligencias finitas, e uma qualidade ou peu-
DEUS 311

íeiçào aperfeiçoante; logo a intelligencia infinita é infi­


nitamente livre.
Não em seus actos interiores que são elle mesmo,
mas nos actos exteriores ou relativos á creação. Deus
creou o mundo livremente, creou-o livremente tal qual
é ; governa-o livremente, como lhe apraz.
Deus é livre n’este sentido, que por um só e mesmo
acto eterno decretou livremente tudo o que devia exis­
tir fóra d’elle; mas não n’este sentido, que elle possa
mudar de resolução ou de vontade.
E’ a um tempo livra e immutavel! E por isso mes­
mo que estas duas períeições coexistem em Deus, não
são incompatíveis, embora não possamos ver o como
d’este mysterioso accordo.
Deus na creação, como no governo do mundo, pô­
de e deveu fixar sua escolha sobre o imperfeito ou o
menos perfeito, porque o mais perfeito só em Deus po­
de existir, e porque de resto o imperfeito do ser finito
não attinge de maneira alguma o ser infinito. Basta que
toda a obra de Deus seja boa. E assim foi que cada um
dos períodos da creação teve por coroa este dicto su­
blime : *E Deus viu que tudo era bom.-»
Sua sabedoria e sua justiça. — São também qualida­
des ou períeições aperfeiçoantes dos espíritos finitos,
logo estão em grau infinito no ser dos seres, Aquelle
que é. A sabedoria consiste na proporção e harmonia
perfeita entre o fim a conseguir e os meios que a elle
conduzem. Ora Deus abrange com força sua obra de
uma extremidade a outra, e tudo dispõe com irresistí­
vel suavidade. Deus é infinitamente justo, i é, infinita­
mente fiel a si mesmo, a seus decretos e promessas. Re­
compensa a virtude e pune o vicio. Livre em seus dons,
não exige de suas creaturas o que não lhes deu ; se pune
essencialmente o peccado, não o pune necessariamente
n’este mundo; é paciente porque é eterno.
Em resumo, a intelligencia, a personalidade, a uni­
312 OS ESPLENDORES DA FÉ

dade, a simplicidade, a eternidade, a immensidade, a


necessidade, a immutabilidade, a verdade, a bondade,
a belleza, a omnipotencia, a omnisciencia, a liberdade,
a sabedoria e a justiça infinitas de Deus, são conse­
quência lógica e immediata da definição revelada a
Moysés: «Eu sou o que sou!» Estas grandes vozes, estes
attributos mysteriosos hoje familiares ás intelligencias,
não puderam ser invenção do liomem. Logo são essen­
cialmente realidades objectivas, e o sentimento que
d’ellas temos não pode ser senão o resultado da «illu-
«minaçâo de nossas almas, feitas á imagem e similhança de
«Deus, pelo Verbo divino ao entrar no mundo.»
Personalidade divina. — O que mais revolta o livre
pensamento é que Deus seja tanto e mais que outros
seres, uma natureza distincta e infinita, subsistente em
si mesma; o mais alto, o mais accentuado, o melhor
caracterisado de todos os Seres! que opera, que faz,
que manda, que se impõe a todos os seres, os quaes só
tem sua razão de ser n’Elle, por Elle, e para E lle! E
no emtanto Platão, á luz de sua razão paga, escrevia
estas palavras solemnes: «Nunca nos poderão conven­
cer de que não ha nada debaixo do nome de Deus!
Que aquelle que existe absolutamente, não tem nem movi­
mento, nem vida, nem alma, nem pensamento, que é
inerte, que é privado da augusta e sancta intelligencia.
Diremos que tem intelligencia, mas que não tem a vi­
da VDiremos que possue uma e outra, mas que não tem
personalidade? Diremos que é pessoal, intelligente,
vivo, mas que é inactivo! Tudo isto é absurdo.»
Mas, dirão, a personalidade diminue Deus, e di-
nnnuindo-o, supprime-o! E ’ uma aífirmaçao gratuita e
falsa, uma blasphemia, uma loucura. O ser que não sub­
siste em si, que não é uma pessoa, que não diz eu, que
não ó elle, não tem realidade senão fóra de si e não é
nada.
Mas, accrescentam, se Deus fosse distincto de sua
DEUS 318

obra, não seria sua obra, não seria o ser ou o infinito.


Sim, se nem toda a realidade da obra procedesse do
obreiro! se nem todo o ser das creaturas estivesse emi­
nentemente em Deus! se nem toda a creatura existisse,
se movesse, e vivesse em Deus! se supprimindo Aquelle
que é, se não supprimissem por esse facto todos os seres,
a obra inteira de Deus!
A obra honra, exalta o obreiro, não o supprime!
A obra sem o operário é uma chymera: Raphael sem
suas obras primas não seria Raphael, não seria nada. O
poder da obra ou das obras denuncia o genio da per­
sonalidade. Deus está em suas obras por seu poder
que do nada as tirou, por sua presença que as faz sub­
sistir, por sua essencia que lhes dá o ser, o movimento
e a vida.
Quanto á pretenção do pantheismo moderno de
que o ser infinito, universal, perfeito, immutavel, supe­
rior ao tempo e ao espaço, não pode ser senão um
«ente ideal!» conceder-lhe realidade mas negar sua in­
finidade! n’este sentido que a realidade e a perfeição
implicam contradição! que a perfeição não existe, nem
pode existir senão na ideia! que o Deus real por con­
seguinte não pode ser senão o coniuncto dos entes que
o manifestam, o «Cosmos,» com suas imperfeições e suas
loucuras! que n’uma palavra, Deus é a ideia do mundo,
e o mundo a realidade de Deus! (Yacherot, Metaphysi-
ca) é um sophisma absurdo, um trocadilho de palavras
incoherentes! E ’ sem duvida melhor existir, do que ser
simplesmente imaginado por um outro ser, pois que o
ser que existe em si tem ao mesmo tempo sua ideali-
dade e sua realidade. O ideal não passa de mera mo­
dificação do espirito que o concebe, e ó forçosamente
menor do que o espirito que o concebe. O espirito que
produz o ideal Deus, ha de ser infinito ou finito. Se in­
finito, será uma realidade infinita, sua concepção será
em si mesma uma realidade infinita, subsistente em si
314 OS E6PLEHDORES DA FÉ

mesma. Deus! existirá realmente, e não só idealmente.


Se finito, essa concepção será em si mesma finita, e não
será a perfeição ideal infinita. Deus ideal infinito não
passa de vã chymera! Deus Natureza ou Cosmos não
tem realidade senão no espirito finito que o concebe e
perece com elle! Não é o pantheismo, é o materialismo
brutal com todas as suas consequências.
Em resposta ao raciocínio impio: o perfeito, Deus,
não passa de uma ideia do espirito, elevando-se do im­
perfeito que elle vê a uma perfeição que não tem rea­
lidade senão no pensamento, Bossuet invocava sua al­
ma! «Dize-me, minha alma, como entendes tu o nada
senão pelo ser? a privação senão pelo bem de que ella
priva; a imperfeição senão pela qualidade que des­
maia ; o erro senão pela negação da verdade; a duvida
e a obscuridade senão pela falta de luz e de saber; a
desordem senão pela violação da ordem... Ha pois an­
teriormente a tudo um ser, uma verdade, uma regra,
uma ordem, n’uma palavra, uma perfeição, antes de
toda a perfeição, um perfeito que é o primeiro! E este
é Deus!»
Nada mais absurdo com effeito do que admittir
que a negação precede a affirmação, que o finito pre­
cede o infinito. * O finito accrescentado ao finito nunca
fará senão um ser ideal, o indefinido! que é forçosa-
mente a negação do infinito, do ser, do que é.
Fica pois no fim de contas um materialismo gros­
seiro, que decreta sem pestanejar e sem se importar
com a observação, a experiencia e a razão, etc., que a
matéria é eterna; que todos os seres da natureza são
apenas modificações, evoluções da matéria; que todas
as operações physicas, physiologicas, psychicas, cujo

* Deve e n ten d e r-se realm en te e não id ealm en te, p o rq u e id eal­


m ente o infinito é p o ste rio r ao finito.
N. do T.
DEUS 315

mecanismo o homem ignora completamente: a vila, o


instincto, as idéias, os juizos, os raciocinios, os senti­
mentos, o querer, são phenomenos devidos ao jogo das
forças atômicas ou moleculares da matéria.
São tão cegos que não vêem que fazendo a maté­
ria eterna a fazem necessária, que fazendo-a necessária,
a fazem illimitada, a fazem infinita, que fazendo-a infi­
nita e causa de tudo quanto existe, a fazem omnipo-
tente, que a fazem Deus, eterno, necessário, infinito,
omnipotente!
Um montão de átomos existe em numero necessa­
riamente finito, pois que o numero actualmente infinito
(que não pode ser ao mesmo tempo par e impar) é im­
possível! Infinito o que é essencialmente numero e li­
mite, emquanto que o infinito só se concebe excluindo
ao mesmo tempo o limite e o numero! Perfeito esse
mesmo numero finito de átomos, que por isso mesmo
que é finito, pode ser concebido maior ou menor, que
se pode imaginar mais ou menos mudado ou transfor­
mado, que é sempre em esforço ou em futuro; etc.! Ah !
não, não ha n’isto mysterios, ha absurdos monstruosos!
Em summa, Aquelle que é, o ser por essencia, ne­
cessário, eterno, infinito, immenso, immutavel, omnipo­
tente, etc., Deus, é um mysterio grandioso, magnífico,
que impondo-se á intelligencia, a eleva e exalta ao
mesmo tempo. Que admiravel necessidade para a razão
humana a de um primeiro ser! e quanto, por outra
parte, se assim nos podemos exprimir, esta necessidade
é conforme á razão! Com effeito, se em um instante
dado nenhum ser existia, jamais teria existido, pois que
o nada nada pode produzir. Assim vemos que o atheu
não hesita em fazer a matéria eterna, cada atomo de
matéria eterno! A matéria e o atomo são finitos, e o fi­
nito é o indeterminado quanto a sua natureza, quanto
a sua forma, e ao tempo, quanto ao logar e ao movi­
mento, quanto ás qualidades, etc., etc. Ora necessário
316 OS ESPLENDORES DA FÉ

e limitado, eterno e indeterminado, é ao mesmo tempo


a affirmação e a negação !
E7 o impossivel no mais alto grau! Em quanto que
o ser, aquelle que é, e o ser necessário, eterno, infinito,
immenso, immutavel, omnipotente, omnisciente, são
uma e mesma afíirmação esplendida.
E este primeiro mysterio que tão bem se harmonisa
com a razão, uma vez admittido, todos os outros mys-
terios se harmonisam a seu turno, porque tem sua ra­
zão de ser em Deus, e nos são revelados por Deus.
Para o materialista, pelo contrario, um abysmo chama
outro abysmo, precipita-se de cataracta em cataracta,
até desaparecer envolto nas ondas da demencia e do
desespero.
CAPITULO VIGÉSIMO TERCEIRO

Os inysterios da SS. Trindade

Deus é um! Basta a razào para o demonstrar. Mas


o que nenhuma intelligencia contingente e finita teria
podido suspeitar, se o proprio Deus não se tivesse di­
gnado revelar-nol-o é que n’essa unidade infinita ha
uma mysteriosa triplicidade; n’esta natureza essencial­
mente una ha tres pessoas distinctas, o Padre, o Filho,
o Espirito Sancto.
Já na historia da creação se nota certa mistura
imprevista do singular e do plural, que oaracterisa a
multiplicidade na unidade divina. «Façamos o homem á
nossa imagem e semelhança!» E Deus creou o homem.
Mais tarde assentado á sombra do carvalho de Mam-
bré, o pai dos crentes viu passar pela sua frente como
um symbolo ou uma sombra da SS. Trindade. Deus
mostrou-se a Abrahão debaixo de tres formas humanas,
ás quaes falou no singular, como se fossem um, ne tran-
seas, Domine; e que lhe respondem como se fossem um,
revertar. Viu tres, diz um sancto Padre, e adorou um.
Em seguida vem os prophetas que celebram em seus
cânticos, ainda que vagamente, o Padre, o Verbo, o Es­
pirito, até que afinal vem Jesus Christo levantar o veo.
318 OS ESPLENDORES DA FÉ

Ide, ensinai todas as nações, batipzai-as em nome do


Padre, do Pilho e do Espirito Sancto. Echo fiel da di­
vina revelação, S. João Evangelista diz a seu turno:
Tres dão testimunho no ceo, o Pai, o Filho e o Espirito
Sancto, e estes tres são um !
Enfim os apostolos, em seu symbolo divino, fazem
esta solemne profissão de fé: «Creio em Deus Padre
omnipotente, em Jesus Christo, seu unico Filho, e no
Espirito Sancto.»
S. Athanasio no symbolo da fé que nos deixou, e
que toda a Egreja recebeu, definiu com admiravel pre­
cisão este dogma sublime da SS. Trindade.
A Fé catholica exige que adoremos um só Deus na
Trindade, e a Trindade na Unidade. Não confundindo
as Pessoas, nem separando a substancia. Porque uma é
a pessoa do Padre, outra a pessoa do Filho, outra a
pessoa do Espirito Sancto. Mas o Padre, o Filho e o
Espirito Sancto tem uma mesma divindade, uma gloria
egual, uma magestade coeterna. Qual o Padre, tal o Fi­
lho, tal o Espirito Sancto. Increado o Padre, increado
o Filho, increado o Espirito Sancto. Immenso o Padre,
immenso o Filho, immenso o Espirito Sancto. Eterno o
Padre, eterno o Filho, eterno o Espirito Sancto. E no
entanto não são tres increados, tres immensos, tres
eternos, mas um só increado, um só immenso, um só
eterno. Omnipotente, Deus, Senhor, é o Padre; omni­
potente, Deus, Senhor, é o Filho; Omnipotente, Deus,
Senhor, é o Espirito Sancto. E não são tres omnipoten-
tes, tres deuses, tres senhores, mas um só omnipotente,
um só Deus, um só Senhor. O Padre por ninguém foi
feito, nem creado, nem gerado. O Filho é do Pai, não
feito, nem creado, mas gerado. O Espirito Sancto é do
Padre e do Filho, não feito, nem creado, nem gerado,
mas procedente. Um Padre, e não tres padres, um Fi­
lho, e não tres filhos, um Espirito Sancto, e não tres
espíritos sanctos. E n’esta Trindade não ha nem ante­
OS MYSTER10S DA SS. TRINDADE 319

rior, nem posterior, nem maior, nem menor! Estas tres


Pessoas são coeternas e eguaes, de forma que é mister
em tudo adorar a Unidade na Trindade, e a Trindade
na Unidade. Um em tres! tres n’um! mas tres Pessoas
n'uma só natureza ou substancia, e uma só natureza
em tres Pessoas!
A fé não ensina que tres deuses fazem um só Deus,
que tres substancias fazem uma só substancia, o que
seria contradictorio em si, e contrario á razão: mas
que uma só e mesma natureza é nas tres pessoas, e
que estas tres pessoas, o Padre, o Filho e o Espirito
Sancto, não são mais que um só Deus!
E ’ por certo um mysterio acima da razão, um mys-
terio ineffavel, mas um mysterio glorioso, de que a
nossa razão esclarecida pela fé pode até certo ponto
conceber a soberana conveniência ou mesmo a necessi­
dade absoluta, a existência portanto !
A alma humana, da qual Deus disse tel-a feito a
sua imagem e semelhança, revela sua trindade na uni­
dade! Existe, conhece, quer ou ama. A ideia ou o co­
nhecimento é o quer que seja distincto do ser; a von­
tade é também algo distincto da ideia e do ser.
Mas por isso mesmo que minha alma é suseeptivel
de soffrer e soffre de mil modos diversos, no eu o ser,
a ideia, a vontade são simples accidentes, modos ou
números de ser, que não subsistem em si mesmos, mas
na alma, não tres pessoas, mas uma só pessoa, e uma só
natureza. Pelo contrario em a natureza divina, onde
não é possivel conceber nem accidentes, nem modos,
porque é infinita, porque é tudo: o ser, o conheci­
mento e o amor: Deus existindo, Deus conhecendo-se
ou gerando o seu Verbo, Deus amando o seu Verbo e
amado do seu Verbo, constituem tres pessoas em uma
só natureza, o Pai, o Filho e o Espirito Sancto. A aguia
de Meaux disse em uma linguagem cheia de inspira­
ção: «Se eu fosse como Deus uma natureza infinita, in­
320 OS ESPLENDORES DA FÉ

capaz de todo o accidente, e exigindo que tudo fosse


substancial n’ella, meu poder (meu ser), minha intelli-
gencia e meu amor seriam alguma cousa de subsistente!
e eu seria tres pessoas subsistindo em uma só nature­
za.» E ’ a suprema palavra do genio do homem sobre o
mysterio da SS. Trindade!
A unidade de pessoa na alma humana resulta
egualmente de uma natureza finita; quando uma de
suas faculdades predomina extraordinariamente, no­
ta-se uma tendencia irresistível para a personificar,
para lhe dar uma subsistência distincta. E ’ assim que
do genio de Sócrates se fez um demonio, da sabedoria
de Numa a nympha Egeria, etc.
E’ opportuna a citação d’estas palavras de S. Agos­
tinho: «Em nós deparamos verdadeiramente uma ima­
gem de Deus, i é, d’essa soberana Trindade, e ainda
que não lhe seja egual, ou antes, que esteja muito longe
d’ella, nem por isso deixa de ser d’entre as suas obras
a que mais se lhe approxima.»
Com effeito nós existimos, conhecemos que existi­
mos, amamos nosso ser, o conhecimento que d’elle te­
mos. Ser, Conhecimento, Amor! Já dissemos porque
n’alma humana estas tres cousas não são senão uma
natureza e uma pessoa!
Como Deus se conhece necessariamente e eterna­
mente, gera de toda a eternidade seu Filho ou Yerbo.
Como o Pai ama eternamente seu Filho, e como o Fi­
lho ama eternamente seu Pai, o Espirito Sancto, amor
mutuo do Pai e do Filho, procede eternamente do Pai
e do Filho. E como é sempre Deus, Deus ser, Deus in-
telligencia, Deus amor, deve affirmar-se uma só e mes­
ma natureza em tres pessoas consubstanciaes e coeter-
nas, um só Deus, a quem é devido um só culto, uma
só adoração, um só amor.
« Sem a SS. Trindade, dizia ainda Bossuet, Deus, no
qual toda a .paternidade toma sua origem, á quo omnis
OS MYSTERIOS DA SS. TRINDADE 321

paternitas nominatur, Deus que é mais pai que todos os


outros pais, não teria Filho. Ora porque motivo é que
a natureza divina não ha de ter essa perfeita fecundida-
de que dá a suas creaturas? O nome de pai será pois
tão deshonroso e tão indigno do primeiro ser, que lhe
não possa convir na accepção natural ? « Eu que faço
gerar os outros, não poderei gerar ? » (Is. lxvi, 9.) E se
é tão bello ter filhos por adopção, não será ainda mais
bello e melhor produzil-os?.. ■ Produzir por abundan-
cia, por plenitude, pelo effeito de uma inexhaurivel com-
municação, n’uma palavra, pela fecundidade e pela ri­
queza de uma natureza feliz e perfeita?...
Deus de Deus, luz da luz, Filho perfeito de um
Pai perfeito, que é pai desde que existe, que concebe
em si proprio seu filho coeterno.»
Nada ha portanto mais racional que o mysterio da
SS. Trindade, que dá a Deus um Filho unico, que ama
infinitamente e de quem é infinitamente amado, ao mes­
mo tempo que d’este amor mutuo procede eternamente
o Espirito Santo.
Se para a alma esclarecida pela fé o mysterio da
SS. Trindade é eminentemente razoavel, se ha em Deus
uma necessidade maravilhosa e gloriosa de communicar
sua natureza infinita, é ella para a humanidade regene­
rada um mysterio de amor infinito. Porque nos amou
com um amor eterno, Deus Padre tirou-nos do nada! E
em sua misericórdia, amou tanto o mundo, que lhe deu
seu proprio Filho! O Filho amou-nos, fez-se carne e en­
tregou-se á morte por nós. O Pai e o Filho amaram-nos
tanto, que nos enviaram o Espirito Sancto, Espirito de
consolação, Espirito de amor, Espirito que faz seu tem­
plo de nossas almas e de nossos corpos sanctificados
pela graça, por suas virtudes e suas dores, que ora in­
cessantemente em nós por gemidos inenarráveis!
Encontramos a SS. Trindade na Revelação, na ra­
zão esclarecida pela Fé, na alma humana feita á ima-
VOL IV 31
322 OS ESPLENDORES DA FÈ

gem de Deus, encontramol-a também na tradição cujas


trevas illumina, e na synthese das sciencias, onde a
unidade na trindade occupa um logar realmente extra­
ordinário.
A tradição. — Aristóteles: Que pensa Deus? pensa-
se a si proprio! Seu pensamento é o pensamento de seu
pensamento, e este numero T r e s , é a lei da natureza:
nós applicamol-o a nossas devoções para com os deuses.
P l a t ã o : O primeiro bem é Deus; a intelligencia é
o filho d’este primeiro bem que o gerou semelhante a
si, e a alma (o espirito) do mundo, é o termo entre o
Pai e o Pilho. —N’uma inscripção grega celebre lia-se :
0 Grande Deus, o Gerado de Deus, o todo refulgente,

|j.c'faç Qeoc;, 0£(q£vrco<;, TtavcpsYfoc;.

— No Egypto, o famoso oráculo de Serapis dizia:


Primeiro Deus, depois o Verbo, em seguida o Espirito,
tres Deuses gerados junctamente e reunindo-se n’um só.
— O Oupneckat dos índios diz que Deus é Trabat,
1 é, T r e s , formando um só.
Os Thibetanos invocam Deus debaixo de tres no­
mes : Om, o braço ou o poder; Hu, a palavra ou o Ver­
bo ; H um, o coração ou o amor.
Encontra-se no Lautseu dos Chinezes este texto sin­
gular: Sabe-se commummente que tres são tres, mas
ignora-se que tres são um. A primeira pessoa conside­
rando-se a si mesma quer a segunda; a primeira e a
segunda amando-se mutuamente respiram a terceira
Accrescentemos por ultimo que vemos escripto por
toda a parte em a natureza e na sciencia, no mundo
abstracto e no mundo concreto, este dogma ineffavel
da Unidade na Trindade, da Trindade na Unidade. En­
contra-se esta these admiravelmente desenvolvida na
excellente obra, a Sciencia sagrada, do sr. P.e Berseaux,
OS MYSTERIOS DA SS. TRIND AD E 323

tomo ii, pagina 302 e segg. Bospuejemos alguns traços


d’este quadro magninco.
Na sociedade espiritual:
Jesus Christo, a Egreja, os fieis.
Na alma humana: o ser, a intelligencia, o amor.
Existimos, conhecemos, amamos. O fundo de nossa alma
operativa comprehende : uma primeira ideia, a ideia de
ser; uma primeira vontade a vontade de possuir o ser,
o desejo da beatitude; um primeiro sentimento, o senti­
mento de nosso corpo.
As operações da intelligencia são em numero de
tre s: a ideia, o juizo, o raciocínio.
A ideia comprehende: um sujeito que percebe; um
objecto a perceber; a percepção ou o objecto percebido.
O juizo suppõe o sujeito, o verbo e o attributo.
O raciocinio comprehende tres proposições: a primeira,
o maior, produz a segunda, a menor, a terceira, a con­
clusão, nasce da maior e da menor.
O ser em si é puramente espiritual, puramente mate­
rial, ou mixto.
Os tres mundos, espiritual, material e mixto, perfazem
um só universo.
Todo o ser tem sua substancia, sua forma ou especie,
sua ordem.
Todo o ser increado ou creado manifesta-se-nos
debaixo de tres qualidades: bom, cujo typo é o Padre;
verdadeiro, cujo typo é o filho ou o Verbo; bello, cujo
typo é o Espirito Sancto.
O mundo material comprehende tres grupos de se­
res, os mineraes, que existem; os vegetaes que existem e
vivem; e os animaes que existem, vivem e sentem.
Os espíritos celestiaes dividem-se em tres classes ou
grandes hierarchias; cada hierarchia divide-se em tres
ordens.
O ser considerado relativamente é ou causa, ou
meio, ou effeito.
324 OS ESPLENDORES DA F É

Considerado como successivo, o ser é passado, pre­


sente ou futuro.
ISÍa grammatica ha tres pronomes: eu, tu, elle; meu,
teu, seu; mim, ti, lhe ; nós, vós, elles.
Ha tres term os: substantivo, adjeetivo, verbo.
O substantivo é masculino, feminino, ou neutro.
O adjeetivo é positivo, comparativo, ou superlativo.
O verbo é activo, passivo, ou neutro.
Nas Sciencias mathematicas: A Arithemetica com-
prehende tres operações principaes: a numeração, a ad-
ãicçâo, a subtracção.
Todo o corpo tem tres dimensões: comprimento, lar­
gura, profundidade. As grandezas geométricas são tres:
a linha, a superfície, o volume.
A linha tem seu principio ou ponto de partida, seu
meio, seu fim, ou ponto de chegada.
A linha é recta, quebrada, ou curva.
A recta é horizontal, vertical, normal,ou inclinada.
Duas linhas formam tres ângulos, agudo, recto ou
obtuso.
Um triângulo tem tres ângulos, tres lados, tres vérti­
ces.
Todo o polygno é divisivel em triângulos, como
todo o numero é decomponivel em números triangula­
res.
Todo o circulo tem um centro ou foco, raio, e cir-
cumferencia.
A mecanica comprehende tres grandes divisões:
a estatica ou sciencia do equilibrio, a cinematica ou
sciencia do movimento, a dynamica ou sciencia das for­
ças, causas do movimento
As leis do mundo planetar são em numero de tres,
a lei de um movimento elliptico em redor de um centro de
attracção, a lei das areas, a lei dos tempos de revolução.
A chimica rege-se por tres leis correspondentes á
acção de Deus, que tudo fez com numero, peso e medida:
OS MYSTERIOS DA SS. TRIND AD E 325

a lei das proporções múltiplas, a lei dos equivalentes, a lei


dos volumes.
Todos os corpos, objectos da physica e da chimica,
são solidos, líquidos ou gazosos.
Em cristallographia, todas as formas cristallinas se
se podem reduzir a tres typos o tetraedro, o cubo, e o
rhombo.
Em acústica, o som é caracterisado por tres ele­
mentos: o tom, a intensidade e o timbre.
Ha tres notas fundamentaes: a dominante, a terça e
a quinta, formando accorde perfeito.
Os instrumentos de musica são de sopro, de corda
ou de percussão.
Em physiologia e psychologia ha tres grandes obje­
ctos de estudo: o corpo, a alma, a união d'alma e do
corpo.
A vida depende de tres orgãos que Bichat chama
centros da vida: o estomago, orgão do poder; o cerebro.
orgão da intelligencia; o coração, orgão da affeição ou
do amor.
Teus orgãos principaes estão presentes em todas
as partes do corpo, o estomago pelos vasos chyliferos, o
cerebro pelos nervos, o coração pelas artérias e veias. *
A familia é constituída pelo pai, pela mãe, e pelo
filho.
O homem, o pai, creado independente, em sua for­
ça, representa o Padre eterno. A mulher, creada do ho­
mem, sua imagem, sua gloria, sua belleza, carne da sua
carne, sangue do seu sangue, osso do seu osso, figura o
Verbo divino, gerado do Padre; o filho precedendo do

* Os tre s orgãos q ue B ichat co n sid e ra c e n tro s da vida são o c e re ­


b ro , os pulm ões (e não o estom ago) e o co ração . Alem d ’isso é e rro at-
tr ib u ir ao estom ago vasos chyliferos.

N . do T .
326 OS ESPLE5D 0R ES DA F É

pae e da mãe, de seu amor mutuo, é a imagem do Es­


pirito Sancto.
A sociedade civil é constituída por tres cousas: o
poder, o ministro, o súbdito.
Poderiamos multiplicar ao infinito certas aproxi­
mações, e verificar d’est’arte que a Trindade na Uni­
dade é lei essencial da natureza. Um auctor, animado
das melhores intenções, o sr. P.e Bouverat, em um volu-
mesinho intitulado Speculum Trinitatis, ou resumo da uni­
versalidade das cousas, nas quaes a SS. Trindade impri­
miu seu sello divino (Haton, Paris, 1871), multiplicou
enormemente as manifestações singulares da Trindade
divina, no mundo physico, moral e metaphysico!... E’
logo verdade e muito, que sobre o mais profundo e
inaccessivel dos mysterios, os testimunhos do Senhor
se volveram extremamente acceitaveis .. A trindado
das pessoas na unidade da natureza divina é em. Deus
um facto não só essencial e necessário, mas fecundo e
vivificante ; e em suas relações com a humanidade uma
fonte infinita de grandeza, de sanctidade, de divindade.
Adoremos, pois, e repitamos incessantemente, com
a sancta Egreja catholica, a antiga e amavel doxolo-
g ia : Gloria ao Padre, ao Filho, e ao Espirito Sancto, co­
mo era no principio, agora, e sempre, pelos séculos dos sé­
culos ! Kedigamol-a sobretudo em nosso ultimo suspiro,
quando chamando sobre nós a misericórdia de Deusf
seu ministro, disser: « Peccou muito, mas não negou o
Pai, nem o Filho, nem o Espirito Sancto. Elle acredi­
tou, e será salvo!»
CAPITULO VIGÉSIMO QUARTO

Deus creador

O livro inspirado do Genesis oomeça por esta affir-


mação solemne e inesperada, que o espirito humano
não teria com certeza inventado: «No principio creou
Deus o ceo e a terra.» Este grande dogma da creação
reapparece em seguida, para assim dizer, em cada pa­
gina das sanctas Escripturas; constitue uma tradição
do genero humano, que a mãe dos Machabeus resume
admiravelmente n’esta exhortação sublime ao mais jo-
ven de seus filhos. « Conjuro-te, filho meu, a que con­
temples o ceo e a terra e todas as cousas que n ’elles
existem, e a que comprehendas bem que de nada fez
Deus todas as cousas e o genero humano.»
O facto da creação era tão conhecido, tão univer­
salmente adoptado e crido, que Jesus Christo pôde
preteril-o, suppondo-o estabelecido por toda a parte !
Reapparece todavia no ensino dos apostolos; prégam
aquelle que creou todas as cousas, e seu symbolo come­
ça por este acto de fé : « Creio em Deus Padre todo
poderoso, Creador do Ceo e da terra.» O quarto con­
cilio de Latrão, querendo formular de novo este dogma
828 OS ESPLENDORES D A F É

capital, exige que todo o catholico confesse que nào


ha njais que ura Deus, principio de todas as cousas,
creador dos seres visiveis e invisiveis, que por seu po­
der omnipotente no começo de todas as cousas fez do
nada uma e outra substancia, a substancia espiritual e
a substancia material, o mundo angélico e o mundo
m aterial; em seguida a substancia humana commum
d’alguma sorte aos dois mundos, constituida por um es­
pirito e por um corpo.
Emfim o concilio ecumenico do Vaticano renovou
n’estes termos o ensino do concilio de Latrão: « E ’ por
sua bondade e virtude omnipotente, e não por augmen-
tar sua felicidade ou adquirir uma nova, mas para ma.
nisfestar sua perfeição, pelos bens que outhorga a suas
creaturas, que este unico Deus verdadeiro, pelo conse­
lho o mais livre, formou de nada, tudo a um tempo, no
principio as duas especies de creaturas, espiritual e cor-
porea, a saber, os anjos e o mundo, e em seguida os
homens cuja natureza, a um tempo espiritual e corpo-
rea, participa de toda a creação.»
Os cânones do concilio do Vaticano e os anathe-
mas que pronuncia, definem ainda melhor o mysterio
do Deus creador.
«l.° Se alguém negar um verdadeiro Deus creador
das cousas visiveis e invisiveis, seja anathematizado.
« 2.° Se alguém não se envergonhar de affirmar que
alem da matéria nada existe, seja anathematizado.
« 3.° Se alguém disser que apenas ha uma substan­
cia ou essencia de Deus e de todas as cousas, seja ana­
thematizado.
«4.° Se alguém disser que as cousas tanto corpo-
reas como espirituaes, são emanações da substancia di­
vina, seja anathematizado;
«Ou que a divina essencia por suas emanações ou
evoluções se volve em todas as cousas;
* Ou emfim que Deus é o ser universal e indefini­
DEUS CREADOR 329

do que por sua determinação constitue a universalida­


de das creaturas distinctas em goneros, especies, indi­
víduos, seja anathematizado.
« 5.° Se alguém não confessar que o mundo e todas
as cousas que estão no mundo, tanto as materiaes, co­
mo as espirituaes, foram quanto a sua substancia pro­
duzidas por Deus, seja anathematizado.
« 6.° Se alguém disser: Deus creou não por vonta­
de isenta de toda a necessidade; mas creou tão neces­
sariamente como se ama a si necessariamente, seja ana­
thematizado.
« 7.* Se alguém negar que o mundo foi creado para
gloria de Deus, seja anathematizado.
As provas tão multiplices que demos da existência
de Deus são ao mesmo tempo provas do Deus creador
ou da realidade da creação. E podemos dizer sem he­
sitar que todas as sciencias, a mecanica. a astronomia,
a physica, a chimica, a geologia, a biologia, etc., etc.
demonstram irrefutavelmente a verdade do dogma da
creação.
Deus existe! o mundo existe! e existe porque Deus
o creou! São tres grandes verdades indubitaveis, affir-
madas ao mesmo tempe pela revelação, pela razão,
pela sciencia. O desconhecido é o começo da creação.
Como é que a immutabilidade infinita e essencial de
Deus se harmonisa com o acto das creações súcoessi-
vas? Como é que o ser das creaturas pôde ser realisa-
do por Deus, e tornado subsistente em si mesmo ? N’u-
ma palavra, como é que os seres creados estão em
Deus e fóra de Deus? E’ a grande e importante ques­
tão que é mister esclarecer d’algum modo. O ser das
creaturas não pode ser alguma coisa, accrescentado ao
ser divino, de sorte que o ser das creaturas accrescen­
tado ao ser divino seja alguma coisa mais do que
Deus; porque se isto assim fosse, Deus não seria nem
aquelle que é, nem o infinito. Não ha pois mais ser que
330 OS ESPLENDORES DA PÉ

no singular, plus entis, depois da creação, ha porem


mais seres, no plural, plura entia, plura habentia ms. O
ser das creaturas não pode pois ser senão uma espeoie
de participação no ser, de copossessão do se r; qual­
quer cousa que a creatura possue com o ser dos se­
res, com Deus, mas de maneira differente.
«E ’, diz S. Agostinho, (De Diversis Quaestioni-
bus L x x m , quaest. x l v i , n.° 2), sua participação, actual
no ser de Deus, o que faz que as cousas sejam o que
são e como são.»
S. Agostinho diz ainda (De Genesi ad litteram, 515):
« Todas as cousas que foram feitas existiam antes da
sua creação na mente do Creador, e com certeza são
melhores lá onde são mais verdadeiras. Porque Deus
não as teria feito se as não tivera conhecido, não as te-
ria conhecido se as não houvera visto, não as teria vis­
to se as não houvera tido. »
« Cada natureza, diz S. Thomaz, tem sua essencia
própria, n’aquillo, pelo que participa d’alguma sorte da
semelhança divina.» (Summa, primeira parte, quest. 16
ad j.um) O Padre Monsalmé, commentando S. Thomaz,
diz: «As idéias são a própria essencia divina, em quan­
to é participavel e pode ser imitada pelas creaturas.»
A creatura participa do ser em limites finitos; em
Deus o ser é sem limites. Pode-se, deve-se applicar ao
ser o que S. Agostinho diz do bem : Ser este, ser aquelle,
tirai este e aquelle, e contemplai, se vos é dado, o mesmo
ser (Aquelle que é !) ser não de um outro ser, mas ser de
todo o ser. O que é assim interpretado pelo cardeal Ger-
d il: « Basta reüectir no que se passa dentro de nós, e
consultar a ideia de Deus para ficar plenamente con­
vencido de que o ser sem restricção, aquelle que é deve
comprehender toda a realidade, á qual o nome de ser
pode ampliar-se; porque se houvesse alguma realidade
fóra de Deus, que não estivesse em Deus, é claro que
DEUS CREAD 0R 331

Deus não seria a plenitude do ser; seria uma especie


de ser e não o mesmo ser.
Ora a realidade dos seres finitos não pode estar for­
malmente em Deus, tal como está nos seres finitos, i é,
acompanhada de defeitos e de negações, porque em
Deus não ha por certo nenhum defeito, nenhuma nega­
ção de realidade, pois seria contradictorio que no pro-
prio ser houvesse negação do ser; é mister pois que a
realidade dos seres finitos esteja em Deus sem defeitos
e sem imperfeições.» (Cardeal Gferdil, Defezà de Male-
branche.) Citemos enfim Suarez: «As creaturas podem
ser consideradas debaixo de dois pontos de vista: em
primeiro logar, segundo o ser que tem em Deus, ser que
está formalmente em Deus, o proprio Deus; em razão
d’este ser, diz-se que a creatura está eminentemente
em Deus, e d’esta maneira a creatura não é creatura
mas a própria essencia creadora, consoante este pensa­
mento de S. João: O que foi feito tinha vida n’elle (no
Yerbo divino.) Em segundo logar, as creaturas podem
ser consideradas em suas próprias essencias, mettendo
em conta não só a perfeição que tem em Deus, mas
aquella que ellas mesmas possuem, mesclada de imper­
feições, i é, com limites, e com distincção uma da ou­
tra. Em resumo, o ser é participavel em tal ou tal grau,
é a ordem dos possiveis; o ser é participado em tal ou
tal grau, é a ordem das existências. Mas como pode
realisar-se esta participação ? Que ideia fazer da crea-
ção ?
Supponhamos uma intelligencia finita, um genio hu­
mano, um poeta, um orador, um pintor, um esculptor,
um engenheiro mecânico. Concebeu a ideia de um
poema, a Illiada; de um discurso, pro Milone; de um
quadro, a Transfiguração; de uma estatua, Moysés; de
um mecanismo, a Machina de cálculos, etc., etc. Sua con­
cepção surge-lhe no espirito, elle vê-a, contempla-a viva,
animada! Desejaria poder effectual-a fóra de si, fazer
332 OS ESPLENDORES DA F É

cTella uma creação subsistente em si mesma, fazel-a


admirar de todos.
Mas impossível. Sua creação é um modo de ser de
sua alma. Para que pudesse existir fora d’elle, seria pre­
ciso separar-se de si ou reduzir-se a si proprio ao nada.
E como a faria subsistir fóra de si? elle não existe, elle
não é nada onde desejaria collocal-a. Se lhe dais uma
penna, tinta e papel, uma tela, um pincel e cores; már­
more e una cinzel ou martello; metal e fogo, realisará
até certo ponto sua ideia; mas será uma realisação
morta, abstracta, que exigirá para ser comprehendida
outros espíritos como o seu. De nenhum modo será uma
creação.
A verdadeira creação, o ser gerado do nada ficou
em seu genio, em sua alma, é elle! Mas o que não pode
uma intelligencia finita, porque o não poderia uma in-
telligencia infinita? Em Deus as razões próprias das
cousas, os typos divinos de toda a perfeição creada
existem eterna e invariavelmente. Elle vê — é lingua­
gem de Bossuet —todas as participações differentes que
pode realisar! E as idéias divinas não são modos de seu
ser infinito! são elle mesmo !
Elle existe por toda a parte, elle existe sempre
onde lhe approuver realisal-os! Se não pudesse fazer
existir fóra de si, e em seus proprios limites, o ser que
n’elle é sua essencia infinita, seria menos que o poeta,
o orador, o pintor, e o esculptor, que dá uma certa
existência fóra de si a sua obra, quando achou para ella
um apoio. O apoio da creatura é o Creador! A multi­
plicidade encontra sua razão de ser na Simplicidade de
Deus, como o tempo em sua Eternidade, como o logar
em sua Immensidade!
Mais uma vez: o ser da creatura está ao mesmo
tempo no ser creado com limites, e em Deus sem limi­
tes. Nada accrescenta ao ser infinito de Deus. Mais en­
tes, mas não mais ente!
DEUS CREADOR 333

Uma outra comparação dará relevo á possibilidade,


e projectará alguma luz sobre o como da creação, sem
que esse como deixe de ser um mysterio impenetrável.
Um rei governava seu reino, onde exercia toda a
auctoridade. Era ao mesmo tempo general do exercito,
juiz, etc., etc., ou melhor ainda, não havia então nem
general, nem juiz, etc. Não quer isto dizer que a aucto­
ridade que constitue e distingue o general, o juiz, etc.,
não existisse já; mas estava comprehendida na aucto­
ridade do rei, que possuia toda a realidade, estava n’elle
porem sem formas, sem os limites, que definem o gene­
ral, o juiz, etc.
Um dia chegou, em que ao soberano approuve di­
vidir seu império em departamentos, districtos e con­
selhos, etc., e conceder parte de sua auctoridade a um
certo numero de seus súbditos, creando a uns generaes,
a outros juizes, a outros prefeitos, a outros presidentes
da camara, etc. Seria desarrazoado dizer depois d’estas
creações que havia então no reino mais auctoridade, por­
que nada com isto se acrescentou á auctoridade do rei;
ha sómente mais audoridades, mais homens tendo au­
ctoridade, em participação ou copossessão da auctori­
dade, mas sem participarem d’ella de egual maneira. O
general é a auctoridade do rei limitada ao commando
de tal corpo de exercito; o juiz é a auctoridade do rei
limitada ao exercício da justiça; o prefeito é a aucto­
ridade do rei limitada á administração de tal departa­
mento, etc. Tirai os limites que separam estas auctori-
dades umas das outras; que o conselho se torne em de­
partamento, e o departamento em reino, que a admi­
nistração em vez de se limitar á ordem civil, se estenda
á ordem judiciaria, militar, etc., encontrareis sempre a
auctoridade. E notemos alem d’isso que a auctoridade
do general, do prefeito, do juiz, etc., não são uma parte
alíquota, a metade, a quarta parte da auctoridade do
rei, cada uma d’ellas é a auctoridade do rei limitada
334 OS ESPLENDORES DA F É

de tal ou tal maneira, participada em tal ou tal grau.


Se á auctoridade do rei substituirmos o ser divino ou
simplesmente o Ser, ás auctoridades parciaes do gene­
ral, do juiz, do prefeito, etc., os diversos seres que com­
põem a creação, encontramos tudo o que dissemos das
relações dos entes contingentes com o ente necessário.
Esta comparação, coxa como todas as comparações, dif-
fere da verdade sobretudo n’isto, que na participação
da auctoridade, tracta-se da copossessão de um ente
abstracto ou moral, a auctoridade, em quanto que na
creação tracta-se da participação do ente real, physico
ou concreto. Mas é de primeira intuição que é mister
affirmar do ser necessário, infinito, todas as perfeições
verdadeiramente aperfeiçoantes dos seres contingentes
finitos. E como é para a auctoridade uma perfeição
aperfeiçoante o fazer-se participar, o poder delegar, e
tanto mais quanto mais extensa e soberana é, o ser dos
seres, o ser por essencia, no livre exercicio de sua omni-
potencia, deve poder communicar-se indefinidamente,
mas não infinitamente, quer dizer que Deus pode cha­
mar livremente uma multidão de creaturas a possuir
com elle, por elle, n’elle, mas de modo finito, o ser illi-
mitado e infinito que é sua essencia.
Deve dar-se n’uma palavra co-possessão real do
«ser», como ha participação moral do ser moral e abso­
luto que significa a palavra auctoridade.
Longe de implicar os monstruosos erros do epicu-
risino e do pantheismo, a doutrina que acabamos de
expor é a sua negação e refutação a mais formal. De
facto: l.° Assim como é absurdo dizer que a auctorida­
de do rei não é senão a somma, a totalidade das aucto­
ridades dos generaes, dos prefeitos, dos juizes, etc., de
seu rjeino, seria também absurdo e impio dizer que o
ser divino não é senão a somma, a totalidade dos seres
da natureza.
Ao contrario d’isso, assim como a auctoridade do
DEUS CREADOR 335

rei é uma realidade distincta da das auctoridades que


governam n’ella, por ella, com ella; realidade que de­
veu preceder e que de facto precedeu essas auctorida­
des subordinadas, e lhes deu a existência; assim o ser
divino, essencialmente e absolutamente distincto do
conjuncto das creaturas, é o ser necessário, eterno, in­
finito, que precedeu da eternidade as creaturas existen­
tes; e estas creaturas não existem senão porque Deus
as chamou á copossessão do ser.
2. ° Assim como seria absurdo dizer que tudo no
reino é o rei, porque os generaes, os prefeitos, os juizes,
etc., participam de modo finito da auctoridade do rei,
assim também as creaturas não são Deus, precisamente
porque não participam senão de modo finito do ser in
finito que é Deus.
3. ° Assim como é inexacto e absurdo dizer que a
auctoridade do general, do prefeito, do juiz é uma ema­
nação espontânea e natural, uma evolução necessária,
um desenvolvimento regular, uma determinação da au -
ctoridade indeterminada do re i; e como forçoso é dizer
pelo contrario que todas estas auctoridades só existem
pelo exercício livre da vontade do soberano, por uma
participação, uma delegação livre de sua auctoridade
própria e indefinida, da mesma maneira seria impio
affirmar, como o prohibe com anathema o concilio do
Vaticano, que o ser das naturezas é uma emanação,
uma evolução, um desenvolvimento necessário, uma de­
terminação do ser divino. A limitação da auctoridade
encontra-se não na auctoridade do rei, mas em cada
auctoridade individual! Assim também é na creatura e
não no Oreador que o ser é limitado, determinado, etc.
E até creio firmemente que, quando S. Paulo diz: Nós
temos em Deus a vida, o movimento e o ser; quere en­
sinar-nos que Deus está inteiramente presente em cada
ser para causar n’elle o ser, a acção e a vida; mas não
diz que os seres são uma parcella de Deus, que Deus
336 OS ESPLENDORES DA F É

hes faz compartilhar sua substancia e sua vida por


emanação, por effusão, por limitação, por determina­
ção do seu ser. Deus está presente em todas as cousas,
porque é a causa necessária de tudo o que existe.
Convem notar que esta doutrina projeeta muita
luz sobre todas as questões da philosophia e da theolo-
gia natural.
1. ° Todas as creaturas são de Deus e em Deus, Deus
exerce sobre ellas um dominio de tal sorte essencial e
soberano, que deixaria de ser Deus se deixassem de ser
suas; como um rei deixaria de ser rei, se um general,
um prefeito, um administrador de concelho, um juiz
cessassem de administrar em nome d’elle, e se decla­
rassem independentes.
2. ° Deus deve necessariamente exigir de todos os
seres que tenham por fim ultimo sua gloria, e mór-
mente dos seres racionaes, que o conheçam, o amem e
o sirvam, porque o ser divino que se communica á crea-
tura ama-se essencialmente e honra essencialmente sua
gloria.
3. ° O peccador que prefere uma participação do
ser ao ser infinito, que contra Deus volta o que recebeu
de Deus, que o força virtualmente e tanto quanto é da
sua parte a negar-se, é incomparavelmente mais culpa­
do, que o general, o prefeito, o juiz que voltassem con­
tra o rei a auctoridade que d’elle tinham recebido.
4. ° A creatura que se comprazesse em si mesma,
como creatura, que não puzesse toda a sua gloria e
grandeza em sua participação finita no Ser, seria como
o administrador de concelho assaz louco para glorifi­
car-se não de que participa em certo grau da auctori­
dade do rei, mas de que sua auctoridade é limitada á
administração de um conselho, ou que se gloriasse de
uma negação.
5. " Deus não é mais auctor do peccado, Deus não
é mais responsável pelo peccado da creatura, do que
DEUS CREADOR 337

um rei dos abusos da auctoridade d’aquelles que o re­


presentam; abusos que resultam necessariamente de
que reparte sua auctoridade com seres livres e imper­
feitos, abusos que o não obrigam necessariamente a
conservar para si só a auctoridade, sem a participar,
abusos que tolera e que lhe basta reprimir punindo-os
com castigos proporcionados a sua gravidade.
Estas approximações enfim melhor nos fazem cora-
prehender: Como Deus é um rei benevolente e sabio,
que se multiplica seus representantes, coinmunioando-
lhes sua auctoridade é só para se ofterecer sob diver­
sas formas ás homenagens e ao amor de seus vassallos,
para vigiar minuciosamente em suas necessidades, para
se consagrar inteiramente a seus interesses: Totus in
nostros usus expansus!
Accrescentemos para complemento d’este con­
fronto, por insufficiente que pareça, entre a auctorida­
de do rei e o ser de Deus, esta derradeira consequên­
cia. Assim como depois da constituição do general, do
do juiz, do prefeito, etc., o rei ficou o que era, afóra o
acto de sua vontade n’um momento do tempo, e que
foi um modo contingente de sua alma; e assim como
todas quantas mudanças estas delegações occasionaram
se realisaram fóra do rei, etc.; assim também nada tem
mudado em Deus, e Deus não perdeu a sua immutabi-
lidade infinita na creação, effeito de uma vontade eter­
na como elle. A successão e a mudança não podem ter
logar em Deus, que é um, simples, indivisivel e immu-
tavel! Deus quiz desde toda a eternidade as leis que no
tempo hão de presidir ás successões e evoluções de suas
creaturas, em quanto que elle permanece sempre o
mesmo.
Mais arrojado do que a maior parte dos apologis­
tas da religião christã, tentei dar uma ideia do como
formidável da creação no intuito sobretudo de melhor
fechar a porta ao pantheismo. Se algumas das minhas
vol xv 32
338 OS ESPLENDORES DA F É

expressões porventura não rebatem e enfraquecem as-


saz este monstruoso erro, retracto-as desde já e de todò
o coração.
Um sabio muito illustre, sir Charles Babbage, pro-
jectou um feixe de intensa luz sobre a conciliação da
immutabilidade divina com a mobilidade incessante da
creação, fazendo intervir a machina de cálculos analy-
ticos, assombrosa creação de seu genio, que não pôde
construir ah! senão em pequeníssima escala! O modelo
que provocou tamanha admiração, apenas mostrava
quinze algarismos, e elle desejava trinta! Movida por
um peso, a machina fazia aparecer automaticamente em
certos vãos series de números, succedendo-se consoante
uma lei determinada: a serie dos números naturaes, a
serie de seus quadrados, de seus cubos, etc., a serie dos
números triangulares, pyramidaes, etc. etc. Depois de se
ter visto uma mesma serie de números succederem-se
milhares e milhares de vezes, quando se esperava vel-a
continuar indefinidamente, tal qual a successão dos
phenomenos da natureza, ficava-se de súbito surpre-
hendido ao ver por um salto brusco no resultado, mas
não na machina, a aparição do primeiro numero de
uma serie inteiramente differente da primeira. Nada
mudou na machina, é o que o genio do seu creador
quiz que fosse em sua origem; a razão da mudança
está n’outra parte, em os números dos vãos, que são o
producto natural e como espontâneo de sua acção,
acção sabida etemamente (se pudesse ser eterna) do
pensamento de seu auctor. Seria bom ler na obra do
sr. Ch. Babbage: N o n o I r a c ta d o Bridgewater, todo o se­
gundo capitulo — A rg u m en to em f a v o r do desíg n io , d ed u ­
z id o d a m u d a n ça de lei n os ph en om enos n a tu r a e s ; bastará
porem este breve extracto para mostrar o alcance de
suas considerações realmente originaes.
«Em presença de resultados tão simples é impossí­
vel não perceber a aplicação que d’elles se pode fazer
DEUS CREADOR 339

ao conjuncto mais grandioso e mais complexo dos phe-


nomenos da creação. Chamar á existência todas as va­
riedades das formas vegeta es, á medida que são aptas
para existir, pela adaptação successiva da terra que as
nutre, é indubitavelmente o exercicio do poder creador.
Quando uma rica vegetação tem coberto o globo, crear
animaes apropriados para esta morada, os quaes nutrin­
do-se d’estas plantas luxuriantes, enfeitam a natureza,
não é um exercicio menos elevado e menos benevolente
do poder creador. Mudae de epocha, passados períodos
de tempo mais ou menos longos, as raças existentes, á
proporção que a alteração das circumstancias physicas
torna sua habitação menos conforme a seus hábitos, per-
mittindo a extincção natural de algumas raças para dar
logar por uma nova creação a outras raças melhor
apropriadas ao local previamente abandonado, é sem­
pre o exercicio benevolente do poder creador. Causar
uma alteração d’estas circumstancias physicas para au-
gmentar a somma do bem estar dos animaes recente­
mente creados, etc., etc., todos estes aptos implicam um
poder da mesma ordem, uma superintendência benevo­
lente, attenta a tirar proveito das modificações de
meios, no intuito de procurar uma felicidade maior.
— Mas ter visto no momento da creação da natu­
reza, que chegará um periodo, que, entrando em con­
dições melhores e previstas, ha de ser susceptível de
vir a ser o supporte de formas vegetaes; que estas
depois de tempo sufficiente hão de poder servir de ali­
mento a formas animaes; que formas gigantescas ou mi­
croscópicas deverão, em períodos de antemão assigna-
dos, chegar successivamente á existência para em se­
guida se extinguirem definitivamente; que esta extincção
e esta morte, partilha de cada existência individual, se
ha de exercer com egual poder sobre as raças que cons­
tituem, que a extincção de cada raça é tão certa como
a morte de cada indivíduo, e o advento de novas raças
340 OS ESPLENDORES D A F É

tão natural como a desaparição de suas antecessoras;


prever todas estas mudanças e tel-as previsto por leis
que a todos abrangem no que deve succeder tanto ás
próprias raças, como aos indivíduos que as compõem,
e ao globo que habitam: é a manifestação de uma
sciencia e de um poder infinitos. E, n’estas condições
perfeitamente dignas de Deus, pode adoptar-se como
conclusão indubitavel: «Que as mudanças por lentas e
innumeras que sejam, assim como as transições em apa­
rências as mais consideráveis e as mais brusôas, são
consequência necessária de algumas leis mui extensas
e mui geraes, decretadas na aurora da existên cia do m u n ­
do por seu Creador.» Fica pois cimentada pelo genio
humano e illustrada pela Machina de cálculos analyti-
cos, obra prima da mecanica, a conciliação perfeita da
liberdade e da mobilidade da creação com a eternida­
de e a immutabilidade divina. A evolução da matéria
em Deus é um absurdo desolador. A evolução da maté­
ria com Deus, por Deus, em Deus, é uma synthese ma­
gnífica do universo que satisfará todos os espíritos,
quando for completa pela creação immediata dos espí­
ritos e das almas.
CAPITULO VIGÉSIMO QUINTO

A Providencia

Deus ordena, dispõe e rege todos os acontecimen­


tos do universo que creou. Dá a cada ser seu logar, sua
cathegoria, sua medida, seu grau, sua proporção; gover­
na-os a todos por uma acção tão forte como suave; ope­
ra nos homens, para os homens, muitas vezes pelos ho­
mens e mau grado dos homens, tudo o que lhe apraz,
quando lhe apraz, como lhe apraz, sem nunca ser em­
baraçado em seus designios pela resistência de suas
creaturas, attingindo tudo de uma a outra extremidade
fortemente, e conduzindo tudo suavemente a seus fins.
Não ha dogma tão claramente enunciado pela razão e
pelo consentimento unanime de todos os povos. Todos
tem reconhecido que a Divindade governa o mundo!
Por toda a parte e em todos os tempos os homens lhe
tem endereçado deprecaçoes como ao soberano mode­
rador de todas as cousas; sua acção sobre a creatura
só é negada por aquelles que dizem não em sua intel-
ligencia, mas em seu coração : Não ha Deus!
Na Sagrada Escriptura aparece também indubio e
refulgente: «Senhor, vós firmastes a terra, a qual está
342 OS ESPLENDORES DA F É

solida debaixo dos nossos pés. E’ a vosso beneplácito


que o dia subsiste, porque todas as creaturas estão ás
vossas ordens.» «Deus envia a luz, e ella p a rte ; cha­
ma-a e ella vem tremendo (sic, ondulando)! As estrellas
refulgem com todo o seu brilho, eada uma no posto que
lhe foi assignado; mostraram prazer em luzir em honra
d’Aquelle que as fez.» «Deus toma egualmente cuidado
de todos os homens; dá a cada um a vida, a respiração
e todas as cousas.» «Foi elle que fez nascer de um só
homem o genero humano para que habitasse toda a
terra, tendo determinado o tempo preciso e os limites
de sua habitação sobre o globo...» «Vós regulastes to­
das as cousas, diz a sabedoria, com medida, numero e
peso, porque o soberano poder pertence-vos e para
sempre! Quem poderá resistir á força do vosso braço ?
0 universo é no vosso computo como um grãosinho que
a custo pode fazer pender a balança, e como a gota de
orvalho da manhã que cahe sobre a terra. Mas vós ten­
des compaixão de todos os homens, porque tudo podeis ;
se dissimulais seus peccados, é afim de que façam pe­
nitencia.
«Vós amais tudo o que existe, nada aborreceis do
que fizestes, porque se o tivesseis aborrecido não o te-
rieis creado. Que cousa poderia subsistir, se o não qui-
zesseis! Mas sois indulgente para com todos, porque
tudo, ó Senhor, vos pertence a vós, que «amais as al­
mas /» Quem poderá dizer-vos: porque fizestes isto ? Ou
quem protestará contra vosso juizo ? Quem se levanta­
rá na vossa presença para tomar a defeza dos homens
injustos? Porque juncto de vós que tendes cuidado de
todos os homens, não ha outro Deus, perante o qual se
possa apellar dos juizos que pronunciaes. Não ha rei,
nem principe que possa levantar-se contra vós a favor
d’aquelles que deixastes perecer.»
Jesus Christo Deus, a verdade, a sabedoria, a scien-
cia, a bondade infinita, pinta-nos a divina providencia
A PROVIDENCIA 343

em traços tão simples e tocantes, que seria preciso ser


insensato e cruel para não sentir emoção profunda. «Não
vos inquieteis para vossa vida do que haveis de comer,
nem para vosso corpo do que vestireis. A vida não será
mais do que o alimento, e o corpo mais do que o ves­
tido ? Olhai para as aves do ceo; não semeiam, nem
ceifam, nem congregam em celleiros, e todavia vosso
Pai celestial nutre-as! Não sereis vós muito mais do
que ellas? E quanto ao vestido, para que vos inquie­
tais? Yêde os lirios do campo, como cresçem! Não
fiam, nem tecem, e Salomão em toda a sua gloria não
vestiu como um d’elles. E se á herva dos campos que
hoje existe e amanhã será lançada no fogo, Deus a veste
assim, quanto mais a vós, homens de pouca fé ?
Não vos inquieteis dizendo que comeremos? que
havemos de beber? ou com que vestir-nos? Isso são
cousas por que os pagãos andam inquietos! Vosso Pai
celestial sabe que de todas ellas precisais! Procurai pois
em primeiro logar o reino do ceo e sua justiça; e todas
estas cousas vos serão dadas por accrescimo! A cada
dia basta sua malicia!...»
Aquelle, a quem estas palavras divinas não enter­
necerem não é digno de se confiar á boa Providencia!
Torna-se victima voluntária da fatalidade. Que magni-
fico commentario d’estes deliciosos convites dos Livros
SapctoSf! «Deixai ao Senhor todos os vossos cuidados,
e elle vos nutrirá!» «Lançai-vos nos braços de vosso
Deus, que elle não os retirará para vos deixar cahir!»
«A mãe poderá esquecer seu filho, de sorte que não te­
nha piedade do fructo de suas entranhas? Pois ainda
que ella o esquecesse, eu não o esquecerei jamais!»
«Deus lhe levará soccorro a seu leito de dor! Vós, Se­
nhor, remexestes-lhe a cama em sua enfermidade!» Eis
o divino em sua mais bella expressão.
Que haverá tão admiravel como esta serie ininter­
rupta de dias e de noites, este curso invariável dos as-
>

344 0 8 ESPLENDORES DA FÈ

tros, sem que o sol recuse nunca sua luz, sem que a lua
antecipe ou retarde jamais seu curso, sem que nenhum
dos astros saia jamais do logar que lhe foi assignado!
E esta successão variada de producções da terra:
as arvores, as plantas, as hervas, as folhas, os fructos,
cada um e cada uma segundo sua especie, e no tempo
assignado para as necessidades e os desejos do homem!
Do seio d’esta terra tão vil e tão esteril por si mesma,
o calor e a chuva, o sol e os ventos fazem surgir os ali­
mentos dos animaes e do homem. E’ evidentemente
Deus quem dá na abundancia sua subsistência a todas
as creaturas, quem faz nascer o sol, cahir a chuva sobre
os bons e sobre os maus. E como a vida de tantos mi­
lhares de seres que cobrem a superfície da terra teria
sido deixada ao acaso ? 0 acaso não passa de um vo­
cábulo, menos do que um vocábulo, uma ridicula des­
culpa da incredulidade ou da tolice humana!
Se os grandes phenomenos da natureza não fossem
governados pela sabedoria infinita, e por leis tão anti­
gas como o mundo, onde estariam as garantias da per-
petuidade dos seres VE na verdade, o que seria mister
para fazer desaparecer todo o vestígio de vegetação e
de vida da superfície da terra?
Menos de um anno de secca absoluta ou de chuvas
continuas. Que homem haverá bastante insensato ou
bastante desnaturado para abandonar ao acaso a sub­
sistência de sua familia, e não ter mais cuidado d’ella,
que se lhe fosse de todo extranha? Mas observações
seculares demonstram que as medias de temperatura e
de chuva são sensivelmente constantes, e o acaso por
certo que não podia produzir esta successão regular
das estações. A própria sciencia qualifica-a de lei da
natureza, ora toda a lei suppõe um legislador, uma
causa, e esta causa não pode ser senão a Providencia
divina.
0 P.e Baudrand dá um relevo admiravel a este en-
A PROVIDENCIA 345

cadeiamento providencial dos phenomenos da natureza


por um exemplosinho.
A carriça precisa para viver de alguns grãos de
milho painço; mas estes grãos não existiriam se a her-
va não crescesse. A herva não cresceria se a terra a
não produzisse; a terra não a produziria se não fosse
regada pela chuva; a chuva não cahiria sem as nuvens
e os ventos que a carrêam. As nuvens e os ventos não
se íormariam sem os vapores, e os vapores não subi­
ríam do oceano para a atmosphera, se não fossem gera­
dos e levantados pelos ardores do sol.
Eis pois em que ordem divina o ceo e o sol, o ar e
os ventos, as nuvens e as chuvas, o mar e os rios, a
terra e seus fructos, todo o universo, eníim, concorre de
concerto para a producção dos grãos de painço ne­
cessários á sustentação da carriça. Mas de que servi­
ríam os grãos, se ella não estivesse nas condições de os
buscar, de os discernir, de os apanhar, de os triturar?
se não tivesse um papo para os engulir, um estomago
para os digerir, um grande numero de pequenos or-
gãos, de canaliculos, de veiasinhas, pelas quaes os sumos
dos grãos digeridos, espalhando-se por todo o corpo, o
nutrem, o vivificam, o animam e se transformam em
osso, em carne, em bico, em unhas, em plumas, etc., etc.?
Ha infinitamente mais arte e industria na organi-
sação d’este passarinho, do que em todas as obras da
industria humana, que jáinais será capaz de fazer um
grãosinho de areia, que existe; uma fevera de herva,
que existe e que vive; uma ave que existe, vive, sente
e voa. Uma tal ordem que nenhuma industria humana
pode imitar, que nenhuma intelligencia creada pode
conceber, que nenhum obstáculo pode suspender em
seu curso, que nenhum poder é capaz de alterar, der-
ribar e destruir, é evidentemente obra de uma intelli­
gencia infinita.
O que oppõem ao dogma da providencia divina ?
346 OS ESPLENDORES DA F É

l.° os veos impenetráveis e aparentemente desoladores


que tantas vezes encobrem seus caminhos.
A Providencia que se estende a tudo, que a tudo
provê, que tudo regula, o mundo moral e o mundo phy-
sico, é o desconhecido, é o mysterio: a voz do genero
humano, a razão, o ceo e a terra, a revelação, são o
conhecido que nol-a annuncia e a faz brilhar a nos­
sos olhos como um sol refulgente. As contradicções e
os escândalos aparentes da terra, eis outro mysterio,
são nuvens um instante amontoadas que nos occultam
o sol, é o eclipse momentâneo que breve ha de cessar:
nuvens ou eclipses que de modo algum são um argumen­
to contra a existência do sol!
1. 0 T riu m p h o dos t y r a n n o s ! « O rei de Assur diz:
«Em minha sabedoria concebi; em minha força execu­
tei; devastei as fronteiras dos povos, despojei os prín­
cipes; mais potente do que elles, fiz descer aquelles
que estavam sentados sobre thronos elevados. Meu bra­
ço attingiu como em seu ninho a força das nações; co­
mo quem apanha cegos abandonados, assim eu apanhei
as'nações da terra, ninguém estrebuchou, abriu a boc-
ca para soltar o menor grito! Eis a tyrannia no maior
auge! «Cala-te, diz o Senhor! Deverá o machado glo­
rificar-se ou levantar-se contra aquelle que d’elle se
serve para fender, ou a serra contra aquelle que a põe
em movimento para serrar, ou a vergasta ou o lenho,
vis pedaços de madeira, contra aquelle que os levanta
para ferir? Vou enviar a magreza para entre essas gor­
duras! Acima d’esse orgulho se inflammará e arderá
como brazeiro ardente. Os espinhos e os aculeos de
Assur serão devorados em um só dia.»
2. A p r o s p e r id a d e d o s m au s. «Meus pés quasi que
hão trepidado, e meus passos quasi que hão cambalea­
do ao ver e quasi invejar a paz dos impios. Para elles
não ha ideia de morte, nenhum flagello os ameaça. Não
tocam com a ponta de seu dedo no labor dos huma­
A PROVIDENCIA 347

nos, e nenhum mal lhes acontece. Eis a razão porque


estão cheios de orgulho, e se adornam com a impuni­
dade como se fôra ornamento de gloria. A iniquidade
sahe de sua abundancia! Entregam-se a todos os des-
regramentos de seu coração; não pensam, nem falam
senão de malignidade, e falam com emphase. Sua bocca
está no ceo, e sua lingua toca a terra. Meu povo olha
para elles, ao ver seus dias tão plenos. E entrediz-se:
Deus, sabel-o-ha? No Altíssimo haverá sciencia? Por­
que é que elles, peccadores, nadam na riqueza e na
abundancia ? E ’ pois debalde que eu tenho conservado
meu coração na justiça, e que tenho lavado toda a noi­
te minhas mãos na sociedade dos innocentes ? Pois que,
depois de haver durado o dia inteiro, minha afiicção e
meu castigo recomeçam logo pela manhã! Falar assim
seria condemnar toda a familia de vossos filhos á re­
provação.
Puz-me então a aprofundar mais este mysterio. Era
bem rude minha tarefa; mas concebi a feliz ideia de
entrar no sanctuario do Senhor e de interrogar os no­
víssimos dos homens. Era aquillo um laço que lhes ar-
maveis, pois querieis reservar-vos um pleno triumpho.
Eil-os cahidos em ruina e devastados completamente.
Desappareceram subitaneos, victimas de seus crimes, e
desappareceram como o sonho do homem que desper­
ta! Na cidade não deixastes vestígios de sua imagem,
restos de sua passagem!!! »
Aqui está o segredo da Providencia! Ella abraça
ao mesmo tempo a vida presente e a vida futura! A
vida presente, tempo de prova, de combate e de expia-
ção, tempo em que cada um deve completar em si mes­
mo o que falta á Paixão e Redempção de Jesus Chris-
t o ! A vida futura, onde a justiça divina será satisfeita e
vingada; onde cada um ha de receber a recompensa
ou o castigo de suas obras! Em tudo, diz o pio auctor
da Imitação de Christo, olha ao fim.
348 OS ESPLENDORES DA F É

O fim para a religião catholica é o juizo derradei­


ro, a reprovação dos peeeadores, e a glorificação dos
justos; a homenagem solemne prestada por uns e ou­
tros á sanctidade, á providencia, á justiça de Deus!
Nos ergo erravimus! Montes cadite super nos!
3. ° A desegualdade das condições. E ’ uma exigencia
absoluta da ordem social; não existe ou quasi não exis­
te no estado selvagem, onde se dá apenas uma inferio­
ridade ou superioridade relativa, consequência natural
da inferioridade ou superioridade dos espíritos ou dos
caracteres. E’ tanto mais accentuada quanto a socieda­
de é mais civilisada! Se por impossível a fizessem ces­
sar, renascería maior. Seria como um parque cortado
ou incendiado, o carvalho ficará sempre carvalho! a moi­
ta será sempre moita!
4. ° A desegualdade dos bens. E ’ também uma neces­
sidade, largamente compensada na tei'ra e na eterni­
dade. Os mais felizes nem sempre são ou mesmo não
são nunca os que se pensa. O christianismo é a glorifi­
cação e a beatificação dos pobres.
5“ A existência do mal sobre a terra. O mal é causa­
do no mundo pelos espíritos. Já Euler, o maior, o mais
eminente, o mais sabio, o mais honesto dos mathema-
ticos physicos do seu tempo, e talvez dos tempos mo­
dernos, dizia: « A liberdade é uma qualidade essencial
de todo o espirito, o proprio Deus não o poderia pri­
var d’elle sem o aniquilar; assim como não pode des­
pojar um corpo de sua extensão ou a matéria de sua
inércia. O mal é devido essencialmente á natureza fi­
nita dos seres creados! Deus pode e deve permittil-o
com a condição de tirar bem d’elle em sua misericór­
dia e em sua justiça. » (Cartas a uma princeza d’Allema-
nha.)
Quanto ás loucas affirmações do determinismo ho-
dierno: «Uma necessidade absoluta domina a matéria.
A lei da natureza é uma lei mecanica! E’ a expressão
A PROVIDENCIA 349

a mais rigorosa da necessidade! Não ha poder algum,


seja de que especie fôr, que escape a esta necessidade,
que não reconhece excepção, nem restricção!» é o so­
nho do universo sem Deus, cuja extravagancia mos­
trámos. Seus apostolos depararam a negação do do­
gma da Providencia n’esta celebre concepção de La-
place : «Uma intelligencia, que, para um instante dado,
conhecesse todas as forças, que animam a natureza, e a
situação respectiva dos seres que a compõem; se por
outra parte fosse bastante vasta para submetter estes
dados á analyse, abraçaria na mesma formula os movi­
mentos dos maiores corpos do universo, e os do mais
leve atomo.
Nada para ella seria incerto, e o futuro, como o
passado estaria presente a seus olhos. O espirito humano
oíferece na perfeição a que tem sabido elevar a astro­
nomia um esboço Testa intelligencia infinita. Suas des­
cobertas em geometria, juntas ás da gravidade, tem-no
posto ao alcance de comprehender nas mesmas expres­
sões analyticas os estados passados e futuros do systema
do M undo... Aplicando o mesmo methodo a alguns
objectos dos nossos conhecimentos, conseguiu trazer a
leis geraes os phenomenos observados e prever aquel-
les que circumstancias dadas podem determinar.» Pois
bem, esta concepção é uma homenagem solemne pres­
tada á Providencia divina, e aquella intelligencia sobe­
rana é certamente a intelligencia divina, Deus. Laplace
accrescenta ( Vêde t. ih) : «Todos os esforços do espirito
humano, na indagação da verdade, tendem a aproxi-
mal-o incessantemente da intelligencia que acabamos
de conceber, mas da qual ficará sempre infinitamente
affastado!» Se ha determinismo, só Deus pôde no acto
da creação, constituir um estado inicial, atomico ou mo­
lecular, tal que em cada estado subsequente, em todos
os pontos do espaço e da duração, os factos fossem per-
feitamente o que são. E se o determinismo deve esten­
350 OS ESPLENDORES DA F É

der-se aos actos dos seres ou das causas livres, é muito


mais indispensável ainda, que Deus intervenha com sua
sciencia e sua omnipotencia.
Aqui fica o governo da Providencia nobremente
vingado pela sciencia a mais profunda, e tornado evi­
dentemente compativel com a universalidade e a inde-
fectibilidade das leis naturaes.
Prestemos pois attenção á voz do Sabio! Não diga­
mos :
«Não ha providencia» com receio de que Deus ir­
ritado de nossa linguagem impia, não destrua todas as
obras de nossas mãos. Se somos espectadores das op-
pressões dos pobres e das injustiças violentas dos maus,
por elevados que estejam, os oppressores e os maus tem
acima de si alguém mais elevado. Ha um rei supremo
que manda em tudo, ao qual a terra é forçada a obe­
decer.
CAPITULO VIGÉSIMO SEXTO

A Oração

Que haverá de mais natural ao espirito e ao co­


ração do homem do que a prece ? O filho implora a
seu pai, a esposa a seu esposo, o escravo a seu senhor,
o súbdito implora a seu soberano! Todo o universo
o ra! O mundo que passou, como o actual está cheio de
preces, de invocações, de e x - v o to ! Os soldados roma­
nos, como os soldados carthaginezes deixaram sobre os
penedos dos Alpes testimunhos indiscutíveis da eleva­
ção de suas almas a seus deuses!
O instincto innato da oração encerra a convicção
intima de que pode ser ouvida; e como a oração ouvi­
da é uma suspensão, uma derogação ao menos aparente
ás leis da natureza, esta suspensão, esta derogação não
são em si nem impossíveis, nem absurdas. A derogação
aparente não é mais impossível, ou mais absurda, do
que é impossível ou absurdo que por vontade de seu
auctor a machina de cálculos analyticos, depois de ter
escripto durante séculos a serie dos números quadrados,
faça de repente aparecer um numero triangular, para
voltar de repente ou depois de certo tempo mais ou
352 OS ESPLENDORES DA F É

menos longo á serie dos números quadrados, ou a uma


outra serie de números quaesquer.»
A Sagrada Escriptura superabunda em preces sa-
hidas das boccas as mais sanctas e puras e em preces
como as de Moysés, prompta e miraculosamente ouvi­
das.
O Evangelho é o codigo da oração curta, ardente,
seguida sempre de prodigios:
A lithurgia da Egreja catholica é a seu turno um
arsenal de orações apropriadas a todas as necessidades
dos indivíduos, das famílias, das sociedades; e a histo­
ria da Egreja é a historia de innumeros milagres, favo­
res ou graças concedidas á oração.
Mas ha no Evangelho em favor da oração um testi-
munho infinitamente mais auctorisado, que deveria des­
armar os espíritos os mais prevenidos: o testimunho de
Jesus Christo, que os inimigos da sua divindade vene­
ram pelo menos como sabio legislador. «E’ mister orar
sempre e não desfallecer jamais. Pedi e recebereis,
buscai e achareis, batei e abrir-se-vos-ha. Porque todo
aquelle que pede recebe, quem busca encontra, e
abrir-se-ha a quem b a te r... Qual de vós dá um escor­
pião a seu filho que lhe pede um ovo; ou uma pedra se
lhe pede pão, ou uma serpente se lhe pede um peixe ?
E se vós, que sois maus, sabeis dar cousas boas a vos­
sos filhos, quanto mais vosso pai que está nos ceos da­
rá a seus filhos os bens que lhe pedirem!... Se dois ou
tres d’entre vós se reunirem para orar, peçam o que
pedirem, ser-lhes-ha deferido por meu Pai que está nos
ceos. •. Tende fé em Deus! Em verdade vos digo : todo
aquelle que disser a este monte, levanta-te, e lança-te
ao mar! se não hesitar em seu coração, se crer que o
que mandou deve fazer-se, será feito!... Tudo quanto
pedirdes na oração, estai certos de que o alcançareis e
sereis ouvidos... Se algum de vós tendo um amigo, for
ter com elle de noite, e lhe disser: Amigo presta-me
A OEAÇÃO 353

tres pães, porque um parente meu acaba de chegar, e


não tenho que lhe dar. Se este amigo falando lá de
dentro, lhe gritar: Não são horas, a porta já está fe­
chada, meus filhos e meus servos accommodados, não
posso levantar-me e dar-te o que me pedes! Se não obs­
tante o sujeito continuar a bater; ainda que se não le­
vantasse por ser seu amigo, levantaria-se por causa de
sua importunação, e dar-lhe-hia os pães de que tinha
necessidade. Também eu vos digo por minha vez: Pedi
e recebereis, buscai e achareis, batei e abrir-se-vos-
h a !... Em verdade, em verdade, vos digo, tudo o que
pedirdes a meu Pai em meu nome, ser-vos-ha concedi-
dó.. . Até hoje ainda não pedistes, pedi e recebereis!»
Assim Jesus Christo, a Verdade, a mesma Sanctida-
de, impõe-nos como dever rigoroso orar, e orar inces­
santemente até importunar! Increpa-nos a falta de ora­
ção! Affirma-nos com juramento que tudo quanto pe­
dirmos na oração, ainda que seja um milagre, tão gran­
de como a deslocação de um monte, nós o obteremos.
Não basta. Jesus Christo que bem sabia que quando a
oração não fosse ouvida, seria porque aquelle que ora
é mau, ou oraria mal, ou pediria o que para elle seria
mal, quiz ensinar-nos elle mesmo a orar! E este ensino
foi a obra prima de seu amor. «Quando orardes, entrai
em vosso cubículo, e com a porta fechada, orai a vosso
Pai em segredo, e vosso Pai, para quem não ha segre­
do, vos ouvirá! Não faleis muito quando orardes, por­
que vosso Pai sabe aquillo de que tendes necessidade,
antes que lh’o peçais!»
Eis como haveis de o rar:
«Pai nosso, que estais no ceo, sanctificado seja o
vosso nome! venha o vosso reino! seja feita a vossa
vontade sobre a terra, como no ceo.
«Dai-nos hoje o pão quotidiano. Perdoai-nos nos­
sas offensas, como nós perdoamos áquelles que nos
offenderam! Não nos deixeis cahir na tentação. Livrai-
YOL IV 33
354 OS ESPLENDORES DA F É

nos de todo o mal. Assim seja!» Que vosso nome seja


sanctificado; que venha o vosso reino; que vossa von­
tade seja feita! Tres actos de charidade perfeita de­
baixo de uma forma, a que nenhuma boa natureza
pode recusar-se, e que por si bastam para nos tornarem
agradaveis a Deus! Volveremo-nos assim bons. Perdoai-
nos como perdoamos, condição indispensável para ser­
mos ouvidos! Porque, accrescenta Jesus Christo, se
não perdoardes aos homens, vosso Pai celestial tam­
bém vos não perdoará! Orar, depois de terperdoado, é
orar bem ! O pão quotidiano, o pão consubstanciai, o
pão do corpo e da alma, o abrigo contra as tentações,
a protecção efficaz contra o mal, é o bom por excel-
lencia. Impossível é pois não ser ouvido. Quantos esco­
lhidos não terá feito esta brevíssima oração! E’ o divino
em sua potência infinita. Choro lagrimas de alegria,
adoro e amo! Aquelle que não chorar de alegria, que
não adorar e amar comigo, só tenho a lastimal-o de
toda a minha alma e sem esperança de que abra os
olhos!
Que pode oppor o livre pensamento, a falsa scien-
cia ou a meia sciencia a estes oráculos da própria ver­
dade?
O sr. Tyndall encontrou certo dia em seus queri­
dos Alpes dois padres ainda moços, um Valaisiano e
outro Tyrolez, que na forma de um antigo costume vi­
nham abençoar um as fontes do Rhodano, pedindo a
Deus que lhe cavasse profundamente o leito, que ob-
stasse a inundações desastrosas ou produzisse alguma
derivação benefica; o outro os cimos cobertos de neve
para conjurar as avalanches e as inundações. Não se pe­
dia mais do que a deslocação da montanha por Jesus
Christo prometida! No fundo pedia-se apenas o pão
quotidiano! Taes bênçãos não estavam pois fóra da es-
phera traçada á oração pelo Salvador dos homens. Por
outra parte conformavam-se com a lithurgia da sancta
, A ORAÇÃO 355

Egreja catholica, apostólica, romana. Para que pois ta-


xal-as de loucuras ou pelo menos de bugiarias sob o
pretexto inconsiderado e atheu de que as leis da natu­
reza são invioláveis, e de que o proprio Deus não pode
suspender ou alterar seu curso?
Algumas semanas depois o Conselho da Rainha
preceituava á nação dias de lucto e de preces para
obter que o cholera, que avançava do Oriente para o
Occidente, não invadisse a Inglaterra, ou para que a
variola e a peste bovina cessassem de fazer estragos-
Este apello á fé dos christãos escandalisou não menos
a sciencia do illustre physico. Protestou de novo, invo­
cando sempre o grande principio da invariabilidade
das leis da natureza: «Ha seis mil annos que o sol nasce
e se poe todos os dias, logo ha de nascer e por-se sem­
pre. E’ uma injuria á razão acreditar que as preces são
capazes de produzir eifeito algum physico, qualquer
modificação, qualquer suspensão das leis da natureza.»
E cousa notável, o sr. Tyndall é um dos physicos que
ensinou que o mundo havia de acabar pelo fogo ! Que
ha de chegar um dia, e talvez não longe, em que o sol
não mais nascerá, nem mais se porá! Como se vê, a
sciencia é realmente o pobre soberbo! O sr. Tyndall
concorda no entanto que está absolutamente acima da
sciencia demostrar que os dois padres ou a egreja an­
glicana peçam 'o impossivel. (Fragments of Science, pag-
361, linhas 12 e seguintes.) Já é alguma cousa, mas não
basta.
Porque é que depois de haver nascido o sol ha seis
mil annos se não recusaria um dia a fazel-o ? A machina
de cálculos de sir Babbage depois de ter registado du­
rante dez mil annos a serie dos números quadrados,
pode em um momento dado fazer aparecer de repente
um cubo, pela vontade anterior de seu auctor, vontade
consignada na machina no momento de sua constru-
356 OS ESPLENDORES DA FÉ

cção. E o Creador e Motor Supremo do universo não


havia de poder fazer o que é possivel ao genio do ho­
mem creado a sua imagem! Um confrade do sr. Tyn-
dall deu-lhe na Pall Mall <razette, sob o véo do anonymo
uma resposta mui simples, mas que ficou sem replica.
No mundo physico ha só matéria, moléculas que se
atrahem e se repellem, mas ha acima d’elle espiritos
essencialmente livres que não podem entrar nas equa­
ções do determinismo! As vontades dos homens por
exemplo, sem cessar em acção, exercem uma influencia
pequena em aparência, mas real e visivel, sobre os phe-
nomenos naturaes, e moderam o curso das leis que os
regem. Os fogos que elle acende, os arroteamentos que
opera, as florestas que planta ou corta, os pantanos
d’agua doce ou salgada que enxuga, as perfurações das
montanhas, etc., modificam, e algumas vezes profunda­
mente, o clima de uma localidade determinada ou de
regiões inteiras. A chuva era rara antes da abertura do
canal de Suez, hoje é lá frequente!
Fala-se do restabelecimento do mar do Sahará para
de novo fecundar o deserto! Uma geleira, atraz da qual
fazia pressão uma enorme massa d’agua, estava a pique
de esmagar e engulir a aldeia de Nieges. Um habil en­
genheiro depois de haver por uma perfuração dado sa-
hida á agua represada, mandou serrar a geleira, e fel-a
cahir em pedaços inoffensivos; estava conjurado o fla-
gello! Ora aquillo que pode de modo limitado a von­
tade livre, mas tão fraca do homem, porque o não po­
derá a vontade omnipotente de Deus em maior escala ?
Porque é que a supplicas do homem, a quem prometeu
ouvir, não ha de intervir Deus mysteriosa, mas sobera­
namente ?
O argumento era irrefragavel, o sr. Tyndall só lhe
achou um supposto defeito, o de alentar a crença dos
antigos pagãos e dos modernos selvagens, que attribuem
A ORAÇÃO 357

cada mudança de aspecto da natureza á entrada em


scena de uma divindade arbitraria!!! (Fragmente of
sciencie, p. 368).
Ah! quanto melhor inspirado não era o grande Eu-
ler, alma tão candida, espirito tão lúcido, mathematico
tão eminente, physico tão experimentado, quando es­
crevia ha já cem annos, o que os sábios de hoje deviam
córar de não ter lido! «A religião prescreve-nos o de­
ver da oração, dando-nos a segurança de que Deus ha
de ouvir nossos votos, com tanto que sejam conformes
ás regras que nos preceituou. Por uma parte, a philo-
sophia ensina-nos que todos os acontecimentos d’este
mundo se succedem conformemente ao curso da natu­
reza estabelecido desde o principio, e que nada pode
impedir o que Deus quiz e previu. Mas respondo que
quando Deus estabeleceu o curso do mundo, e dispoz
todos os acontecimentos que deviam dar-se, attendeu
sem duvida a todas as circumstancias que haviam de
acompanhar esses acontecimentos, e particularmente
ás disposições, aos votos, ás preces de todo o ser intel-
ligente, e o arranjo de todos os acontecimentos foi
posto perfeitamente de accordo com todas estas cir­
cunstancias. Quando pois um fiel dirige a Deus uma
oração digna de ser ouvida, não deve pensar-se que
esta oração só agora chegue ao conhecimento de Deus;
já a ouvira desde a eternidade, e se como pai de mise­
ricórdia a julgou digna de despacho, dispoz expressa­
mente o mundo em favor d’esta oração, de forma que
seu despacho fosse uma consequência do curso regular
dos acontecimentos.
«E’ assim que Deus attende ás orações dos fieis
sem operar milagres; muito embora não haja razão al­
guma para que Deus não haja feito e faça ainda verda­
deiros milagres.» (Cartas a uma princeza d'Allemanha.
Carta nonagésima.) Aqui está a verdadeira sciencia, e
é a sciencia christã.
358 OS ESPLENDORES DA F É

O sr. Tyndall nega que possa haver ou que haja


um elo entre a oração, entre as disposições das vonta­
des humanas e os phenomenos physicos: é um desmen­
tido gratuito dada á Sagrada Escriptura. «Recusei-vos
a chuva, diz Deus pela bocca do propheta (Amós, iv,
7), tres mezes antes das ceifas ... Mandei chuver sobre
uma primeira cidade e não sobre uma segunda. Sobre
uma terceira não chovi senão em parte, e a parte so­
bre a qual não choveu, seccou-se completamente.»
«Elias diz o apostolo S. Thiago (Ep., v, 17), era homem
como nós, tendo as mesmas paixões; orou com instân­
cia que não chovesse sobre a terra, e não choveu durante
tres annos e seis mezes.
Orou de novo, e o ceo deu chuva, e a terra produ­
ziu seus fructos!»
A illusão da sciencia é rebaixar Deus a seu nivel,
tão baixo! Para Deus eterno e immenso não ha nem es­
paço nem tempo, nem passado nem futuro. Elle existe
e nós existimos, nós movemo-nos e vivemos n’elle. E ’ o
mysterio dos mysterios, diante do qual todos os outros
mysterios, e todas as outras objecções se desvanecem.
CAPITULO VIGÉSIMO SÉTIMO

O Milagre

Dissemos do milagre, de sua possibilidade, necessi­


dade, realidade, tudo o que d’elle se pode essencial­
mente dizer; portanto apenas nos resta desfazer aqui
certas objecções e esclarecer por uma comparação feliz
que as recentes descobertas da sciencia nos fornecem,
a natureza e o modo da producção do milagre.
«Que necessidade ha de recorrer ao milagre? disse
Diderot. Para mim basta-me o syllogismo. Uma só de­
monstração satisfaz-me e bem mais que cincoenta factos!
Para que apertar-me com prodigios, quando podeis
subjugar-me com syllogismos? Pois que! seria mais fá­
cil dar pernas a um coxo, do que esclarecer-me ?
O syllogismo, como já observámos, não se impõe á
convicção da intelligencia por causa da intervenção da
• vontade; e o raciocinio é privilegio de um pequeno nu­
mero ! Por outra parte como La Harpe respondia a Di­
derot, o milagre é o syllogismo em acção, o melhor de
todos. Se Deus me conferiu um poder que só a elle per­
tence e que não pode ser attributo do homem, com cer­
teza que foi elle que me enviou, e que a palavra que eu
360 OS ESPLENDORES DA F E

annuncio é sua: a maior é evidente. Ora eu recebi de


Deus este poder: provo a menor: Lazaro sahe do tu-
mulo! E o cadaver de Lazaro morto havia quatro dias,
á vista e conhecimento de uma cidade inteira, levanta-
se e sahe do sepulchro; logo, etc.
O syllogismo é cabal! Mas admiremos de passagem
a grande predilecção que tem pelo syllogismo aquelles
que o não entendem e ao mesmo tempo a estulta aver­
são que tem do syllogismo aquelles que sabem fazer
uso d'elle ! (Curso de litteratura)
2.° O milagre é impossível! Não, e é violar todas as
regras da lógica, quando o mundo está cheio de mila­
gres, concluir de uma supposta impossibilidade para a
não existência dos factos.
Não é assim que tem pensado o genero humano,
que sempre e por toda a parte acreditou no sobrena­
tural, na intervenção directa de Deus no governo do
universo, e que nunca pensou que o mundo fosse qual­
quer machina material funccionando sem Deus. Não,
porque não ha povo algum que não tenha levantado
para o ceo as mãos supplicantes. Não, porque as leis da
creação não são absolutas, immutaveis, geométricas, e
Deus, longe de ter as mãos atadas a seu respeito, pode
derogal-as ou melhor, pode tel-as derogado desde toda
a eternidade por um decreto livre de sua vontade.
Deus pôde crear, creou! E a creação é o maior
dos milagres. Como então não havia de poder fazer
todos os milagres imagináveis V O Deus que não pu­
desse fazer milagres seria um Deus antiscientifico, an-
tihistorico, pois não seria o Deus creador. Se as leis e
as forças da natureza são absolutas e eternamente in- •
variaveis, se não podem ser impedidas em sua marcha,
como explicar que nós mesmos em muitos casos as
mudamos, as submettemos, e desviamos de nós seus
effeitos nocivos, e até remontamos a sua origem para
as supprimir? Como actuamos sobre o espirito de nos-
O MILAGRE 361

sos semelhantes, e chegamos a modificar suas condi­


ções e suas vontades? .
Se Deus tem dado ás coisas creadas a virtude de
produzir seus effeitos, não deverá ter essa virtude em
si mesmo ? E se possue essa virtude, não devemos pen­
sar que pode a seu grado produzir os effeitos das cou-
sas creadas sem as cousas creadas, queiram ou não
queiram estas cousas: multiplicar o trigo sem a inter­
venção da terra, curar as enfermidades sem remedios,
etc., etc.? Demais, em que ficaria perturbada a ordem
da natureza, se Deus previu as excepções; se para si
as reservou, se as fez entrar na ordem geral da natu­
reza; se por uma excepção prevista, o fogo, conser­
vando a sua propriedade de consumir, não consome;
se a agua do rio, conservando a propriedade de correr,
sobe para a sua origem; se tal doença é curada sem
médicos nem remedios; se um morto resuscitado vem
retomar o logar que alguns dias antes occupava entre
os vivos? Longe de perturbar a ordem, o milagre fa­
vorece-a, porque é um dos meios os mais efficazes, pe­
los quaes Deus executa o plano que formou, e conduz
os seres a seu fim ultimo e universal: sua gloria e sua
felicidade! Quando Deus faz milagres, dizia S. Agosti-,
nho, muda sua obra, mas não muda. de desígnio! Seria
grande honra, são palavras de Rousseau, punir aquelle
que negasse a possibilidade do milagre ; bastaria encer-
ral-o.
3.° A possibilidade do milagre ou de uma derogação
ás leis continuas da natureza, é menor do que a probabili­
dade de um erro da parte das testimunhas que affirmam
esta derogação ou este milagre! Logo o milagre tem a seu
favor uma probilidade não só nulla, mas negativa, quer
dizer, que tem contra si toda a probabilidade / Este sophis-
ma é do muito celebre philosopho inglez Hume, so-
phisma tantas vezes repetido e tão interesseiramente
gabado! Mas não deixa de ser um sophisma, porque
362 OS ESPLENDORES DA P É

oppõe a um facto affirmado, o milagre, não sua impos­


sibilidade —Hume não a nega —mas sua improbabili­
dade, o que é ainda mais absurdo do que oppor ao
movimento ou deslocação no espaço sua pretendida
impossibilidade.
Pois não estará em a natureza essencial de certos
factos em geral, e do milagre em particular, serem
improváveis, iirverosimeis ? Não affirmará a razão como
axioma que o verdadeiro pode ser completamente in-
verosimil e por conseguinte improvável? Sir Charles
Babbage, em seu nono tratado de B r id g e w a te r , nota 1,
pag. 131, não ficou por aqui; a esta resposta philoso-
phica accrescentou a prova rigorosa de que o cacare-
jado argumento de Hume era mathematicamente falso.
No tempo de Hume, o calculo das probabilidades es­
tava muito pouco adeantado para que se ousasse ten­
tar sequer a comparação rigorosa das duas probabili­
dades oppostas uma á outra por Hume, probabilidade
do milagre e probabilidade do erro das testimunhas.
Mas as fecundas theorias de Laplace tornaram possivel
este calculo.
Sir Charles Babbage fel-o, e pôde estabelecer a
seguinte proposição: Por grande que seja a probabili­
dade fornecida pela experiencia contra a occorrencia
de uma derogação ás leis da natureza ou de um mila­
gre, é sempre possivel conceber um numero de testi­
munhas bastante considerável para que a improbabili­
dade do erro de seu testimunlio seja maior do que a
improbabilidade da occorrencia do milagre. Por outras
palavras: é sempre possivel conceber ou assignar um
numero de testimunhas independentes tal, que a impro­
babilidade da falsidade de seu testimunlio concordante
seja maior que a improbabilidade da occorrencia do
proprio milagre, tal por consequência que na theoria
de Hume viria a provar a verdade do milagre.
Sir Charles Babbage não se limitou á analyse, pas-
O MILAGRE 363

sou aos números, e os números deram um desmentido


brutal ao sophista.
4.' E’ impossível verificar o milagre, e por isso adqui­
rir a certeza d’elle! Esta asserção é o cumulo do absur­
do. Serão precisos muitos mais milhares de olhos para
attestar a morte e a vida de Lazaro, do que a morte e
a vida de outro qualquer? Serão precisos muitos mi­
lhares de ouvidos para ouvirem a voz potente que o
chamou á vida ? Será mister mais bom senso do que o
do commum dos mortaes para comprehender que se
um homem pode passar naturalmente do somno á vi­
gília, não pode passar da morte á vida senão por uma
virtude sobrenatural? Affirmar que é mister para que
um milagre seja certo, que se faça n’um amphitheatro,
á vista dos médicos, dos physiologistas, dos physicos e
dos chimicos, na presença de uma commissão compos­
ta de homens especiaes, exercitados na observação e
analyse, que façam selecção do cadaver, que escolham
a sala, regulem o programma da experimentação, é
simplesmente caricato e indecente.
Diremos até, que o homem do povo, o homem da
multidão é mais competente do que o sabio, porque
o sabio, muito orgulhoso, nunca admittirá factos fóra
de suas theorias e de suas formulas! Deus revela-se
aos pequenos e dispensa suas graças aos humildes.
3.° Os milagres podem ser explicados pelas vias da
natureza hoje melhor conhecidas! Não! Sua explicação
não pode aplicar-se a nenhum dos milagres de Jesus
Christo e dos apostolos, e muito menos aos Esplendo­
res da E é !
Invoquem os sábios, quanto quizerem, as leis ainda
desconhecidas da natureza, appellem para o poder da
imaginação, emquanto não demonstrarem que um me­
dico pode curar um doente só pelo poder da sua pala­
vra, resuscitar um morto por um mero acto de sua von­
tade, etc., ou que a imaginação pode consolidar uma
364 OS ESPLENDORES DA FÉ

fractura, fechar uma ferida, dar vista a um cego, fazer


cahir a chuva, ou trazer o bom tempo, nada terão feito.
6. ° Hoje nâo se fazem já milagres! Basta que os
houvesse para que a Religião christã seja divina. Mas
o milagre nunca deixou de brilhar no seio da Egreja
de Deus.
Vêde-me LoUrdes e as canonizações dos sanctos
continuas, que nunca dispensam milagres bem estabele­
cidos. E os quinze esplendores da fé, prophecias a rea-
lisarem-se no decurso dos séculos, milagres incessantes,
mais fulgentes que a resurreição dos mortos.
7. ° Os milagres podem ser feitos pelo demonio! A
existência do demonio é de per si um milagre, pelo
menos um facto sobrenatural, conhecido principalmente
pela Revelação! O demonio não pode ter sido o auctor
dos milagres de Jesus Christo, dos apostolos, da san-
ctissima Virgem, dos sanctos, porque são operados con­
tra elle, e ninguém é contrario a si mesmo.
Mais tarde teremos occasião de ver o que são os
pretendidos milagres do magnetismo e do espiritismo,
etc.
18.° Todas as religiões, mesmo aquellas que são evi­
dentemente falsas tem seus milagres! Semblante de mila­
gres, rasgos de força e de destreza, effeitos de prestidi-
gitação, sim! Verdadeiros milagres, não!
De resto as pretensões de todas as religiões ao mi­
lagre prova que sempre se acreditou que o milagre é
possível e necessário, porque é como a assignatura posta
por Deus na sua obra! E que são esses pretendidos mi­
lagres do paganismo em comparação da serie imponente
d’aquelles desde Moysés a Jesus Christo, e desde Jesus
Christo até nós que tem sido operados publicamente e
em pleno meio dia deante de milhares de testimunhas
interessadas em contraditai-os, tanto mais que visavam
não a afagar as paixões, mas a reformar os costumes ?
Digamos por fim como por uma comparação mui
O MILAGRE 365

tocante e apellando para a obra prima por excellencia


da mecanica-mathematica, sir Charles Babbage, o im-
mortal auctor da Machina de cálculos analyticos, chegou
a esclarecer a uma nova luz a questão da natureza e
da possibilidade do milagre.
«O leitor está pois assentado em frente da machina
de cálculos, posta em movimento por uma manivela, e
vê aparecer nos vãos dos algarismos, representando
números, que se succedem segundo uma lei determina­
da, a serie, por exemplo, dos números quadrados 2, 4,
9, 16, 25, 36.
«Pode prolongar a experiencia tanto tempo quanto
quizer, supponhamos que durou annos e séculos, sem
que jamais deixasse de ver que o numero escripto a
cada instante é o numero quadrado que se segue de
tal forma que esta producçào dos números quadrados
é como uma lei da natureza, a successão indefinida dos
movimentos e occasos do sol, e que se poderá apostar
mil contra um em como o numero seguinte ha de ser
ainda um numero quadrado. Mas eis que o constructor
da machina exclama de súbito: O primeiro numero que
vai aparecer nas casas, e que julgaveis seria um numero
quadrado, não o será. Quando a machina foi originaria-
mente creada para marcar estes números, imprimi-lhe
uma lei que coincide em todos os casos com a dos nú­
meros quadrados, mas lavrei excepção para o numero
que agora vai aparecer. Depois de este se haver mos­
trado, a lei dos números quadrados retomará sua mar­
cha ordinaria e invariável até á destruição da própria
machina.
Aquelle que presenciar este facto extraordinário
não poderá deixar de conceder ao artista que soube
realisar o cumprimento d’este facto e o previu um tão
grande numero de séculos antes, um mais alto grau de
potência do que se a machina apenas registrasse uma
serie. E se o inventor explica que na construcção da
366 OS ESPLENDORES DA F É

machina, pode á sua vontade fazer aparecer a seu tem­


po qualquer numero que seja uma excepção ás leis es­
tabelecidas, para todos os períodos futuros, por affasta-
dos e deseguaes que se imaginem; se a isto accres-
centar que deu este modo de construcção á machina
para a pôr de perfeito accordo com os acontecimen­
tos em cada um dos periodos respectivos, o observa­
dor não poderá deixar de reconhecer um poder mais
considerável do que se na occasião de se dar um das­
tes acontecimentos fosse preciso intervir para perturbar
momentaneamente a marcha dos cálculos da machina,
Se alem d’isso o inventor para a perfeita intelligencia
da machina produzisse elle mesmo por um simples pro­
cesso, v. gr., deslocando-se um eixo, estes desvios apa­
rentes, toda a vez que lhe aparecessem determinadas
combinações; se enfim fosse dotado do poder de pre­
nunciar os casos excepcionaes que dependem só da
vontade do observador, muito embora debaixo de ou­
tras relações ultrapassem os limites de seu poder e in­
telligencia, dever-se-ha concluir que uma tal machina
suppõe um poder inventivo acima de toda a compre-
hensão.
A machina de cálculos analyticos que offereço aos
olhos do leitor possue semelhantes qualidades. Foi feita
para obedecer a qualquer lei dada, e para produzir em
periodos, tão affastados quanto se queira, uma ou mui­
tas excepções aparentes á lei. E’ mister no entanto
observar que esta lei aparente, que chegou a impor-se
á attenção do espectador em consequência de uma in-
ducção illimitada não é a plena expressão da lei, em
virtude da qual funcciona a machina; também deve
notar-se que o caso de excepção é tão absoluta e irre­
sistivelmente a necessária consequência da organisação
primitiva da machina como qualquer calculo individual,
tomado no conjuncto d’aquelles que ella pode even'
tualmente produzir.
O MILAGHE 367

Não foi intenção minha dar á machina em seu pla­


no primitivo o poder de fazer cálculos tanto acima da
analyse mathematica, como aquelles de que acabo de
falar; não entrevejo mesmo actualmente o periodo de­
pois do qual esta extensão poderia ser util ao espirito
humano. Apenas me circunscreví a dar á invenção um
grau de generalidade, que encerrasse uma grande ma­
nifestação de poder mathematico.
Estou intimamente convencido de que as genera-
lisações mecanicas que é susceptível de receber vão
muito alem d’aquellas que estudei. Puz também de
parte certas combinações que não poderão ter utilida­
de senão a grandes intervallos.
Por entre aquellas que me chamaram a attenção,
observei as possibilidades de que acabo de falar; e as
reflexões por ellas produzidas em meu espirito anima­
ram-me a proseguir minhas investigações. Se o leitor
concordar comigo em que estas especulações conduzem
a uma concepção mais elevada do grande Auctor do
universo, do que todas as outras até hoje ensaiadas, con­
virá egualmente em que o estudo dos ramos os mais
abstractos da mecanica pratica, combinado com o das
mathematicas no que de mais profundo ellas contem,
não embaraça de modo algum o espirito humano na
percepção das razões evidentes da verdade dos dogmas
da religião natural. Ouso mesmo afíirmar que estes ca­
racteres proporcionam provas quiçá mais extensivas da
grandeza da creação, do que as fornecidas até hoje pe­
las sciencias de observação, ou a physica.
Aqui está mais uma vez a ultima palavra da scien-
cia, nec-plus-ultra da sciencia a mais adeantada; nada
tenho a accrescentar. A sciencia pronunciou-se, a causa
está julgada!
CAPITULO VIGÉSIMO OITAVO

0 Peccado Original

Adão e Eva, o primeiro homem e a primeira mu­


lher, foram collocados no paraiso terreal. Depois de um
certo tempo de prova fixo por Deus, deveríam sem
morrer entrar de posse da felicidade sobrenatural dos
ceos. Mas desobedeceram comendo o fructo prohibido.
Perdendo em consequência d’isso a vida da graça
e a justiça original, foram expulsos do paraiso terrestre,
condemnados aos trabalhos, ao soffrimento e á m orte;
cahiram sob o poder do demonio, que os estimulara á
desobediencia.
O castigo e suas funestas consequências, a ignorân­
cia, a concupiscencia, a privação da graça sanctificante,
a escravidão do demonio, etc., alcançaram toda a pos­
teridade de Adão e Eva. Nascemos todos concebidos
no peccado, filhos de ira, excluidos da felicidade sobre­
natural dos ceos: E’ o dogma e o mysterio do peccado
original! dogma, mysterio claramente affirmado e de­
finido na sagrada Escriptura, nos ensinamentos da
Egreja, nas tradições do genero humano. «Porque eu,
dizia David, fui concebido em iniquidade, e minha mãe
O PECCADO ORIGINAL 369

concebeu-me no peccado. » (Ps. l .) « Quem, exclamava


Job, poderá tornar puro o homem nascido de immundo
semen? Como poderá o homem, nascido de pais cul­
pados, ser immaculado e justo?» (xiv, 4; xv, 14.) «O
peccado entrou no mundo, dizia S. Paulo, por um só
homem, em quem todos peccaram, e pelo peccado a
morte que a ninguém poupa.» (Bom. v, 12.) «Nós so­
mos por natureza filhos de ira.» (Epist. li, 3.)
Resumindo o ensino das sanctas Escripturas, dos
sanctos Padres, dos concilios anteriores, o juizo e o sen­
timento da Egreja universal, o concilio de Trento for­
mula assim seus anathemas : « Se alguém não reconhe­
cer que Adão, o primeiro homem, depois de haver
transgredido no paraizo terrestre o mandamento de
Deus, perdeu por isso a sanctidade e a justiça nas
quaes fora investido; que por esta prevaricação incor­
reu na cólera de Deus, e por conseguinte na morte,
com que Deus antes o ameaçara, e na servidão d’aquelle
que desde então teve o império da morte, o demonio;
e que por este peccado Adão todo, em seu corpo e em
sua alma, ficou reduzido a um estado peior; seja ana-
thematizado.
2.° Se alguém affirmar que a prevaricação de Adão
a elle só prejudicou e não a sua posteridade pela perda
da sanctidade e da justiça que de Deus recebera, ou
que inquinado por um peccado de desobediencia, não
transfundiu em todo o genero humano senão a morte e
as penas do corpo, e não assim o peccado que é a morte
d’alma; seja anathematizado.
E’ pois de fé: l.° que Adão foi creado não no estado
de natureza pura, mas na sanctidade e na justiça sobre-
naturaes, dons de Deus gratuitos; 2.° que por seu pec­
cado decahiu do estado sobrenatural de justiça e de
sanctidade, e que ficou reduzido ao estado de natureza
pura, ou mesmo a um estado peior que o de natureza
VOL IV 34
370 OS ESPLENDORES DA FÉ

pura (é pelo menos a opinião do maior numero de


theologos, e quer-nos parecer que o comparativo peior
do concilio de Trento não soffre outra interpretação);
3.° que a prevaricação de Adão se tornou commum a
toda a sua raça não só quanto á pena e á morte, mas
também quanto á culpa ou mancha inherente e própria
de cada um; n’este sentido que todos peccaram real­
mente em Adão e nascem peccadores, filhos de ira, não
por imitação, mas por propagação.
Esta historia da queda do homem, da degradação
da raça humana, é demais a mais attestada pelo con-
juncto de todas as tradições. Encontramos de-factopor
toda a parte o homem primitivo creado no estado de
innocencia, de felicidade e civilisação; collocado em
um logar de delicias; rei da natureza, dando aos ani-
maes nomes convenientes; conversando familiarmente
com Deus, etc., a primeira mulher prestando ouvidos á
voz da serpente e introduzindo o mal no mundo; Adão
perdendo toda a sua posteridade por uma fatal condes­
cendência aos desejos de Eva; Adão e Eva envergo­
nhando-se de sua nudez, e cosendo vestidos para a oc-
cultar; Eva condemnada ás dores de parto; Adão e
Eva entregues á ignorância, á concupiscencia, ao sof-
ífimento e á morte; a denuncia de uma inimizade
eterna entre o homem e o demonio; a promessa do
perdão e de um mediador entre Deus e o homem, etc.,
etc.
Pode enfim invocar-se em favor do dogma christão
o estudo psychologico da alma humana e a prova ex­
perimental. Dizem-nos de feito que a perturbação, a
desordem, a contradicção, e por conseguinte a queda
estão na alma humana.
A Phedra antiga, como Job, como S. Paulo, lasti­
mam-se amargamente de não poderem fazer o bem que
querem, e de se verem fatalmente arrastados ao mal
que reprovam. «Nada nos choca tão rudemente, dizia
O PECCADO ORIGINAL 371
Pascal, como esta douctrina do peccado original, e não
obstante ser este mysterio de todos o mais incompre-
hensivel, ficamos sem elle incomprehensiveis a nossos
proprios olhos... O homem é mais incomprehensivel
sem este mysterio, do que o proprio mysterio o é para
o homem... Confesso que depois que a religião christã,
descobre este principio — o da corrupção e queda da
natureza humana—os olhos se abrem para ver por toda
a parte o caracter d’esta verdade, porque a natureza
mostra por toda a parte um Deus perdido no homem e
fóra do homem.» Bossuet diz a seu turno: «D’onde esta
discordância, e porque sé me ofierecem estas partes
tão mal accommodadas ? Estas medidas tão discordan­
tes, com fundamentos tão magnificos, não estarão a
clamar bem alto que a obra não é absolutamente divi­
na, que o peccado se intrometteu n'ella, que o homem
quiz a seu modo edificar sobre a obra de seu creador,
e se desviou do seu plano V aqui está a palavra do eni­
gma, eis solta a difficuldade!»
Enfim Chateaubriand: « Ü peccado original é bem
palpavel, porque o homem tal como o vemos não é o
homem primitivo. Elle contradiz a natureza, desregrado
quando tudo está regulado, duplice quando tudo é sim­
ples; mysterioso, mudavel, inexplicável, está visivel­
mente no estado de uma cousa que um accidente esbar-
rondou. E’ um palacio em ruinas e sobre ellas reedifi-
cado ... A confusão e a desordem de todos os lados,
sobretudo no sanctuario.» O proprio Bayle vencido pela
evidencia, disse: «A vida presente não é mais do que
uma lucta perpetua das paixões com a consciência, na
qual esta fica quasi sempre vencida. O que ha de mais
singular n’este combate é que a victoria se declara
muitas vezes a favor do partido que affronta as idéias
que se tem da honestidade, e o conhecimento que se tem
do seu interesse temporal.
O verdadeiro systema dos christãos é o único que
372 06 ESPLENDORES DA EE

pode resolver estas difficuldades. Ensina-nos que depois


de haver cahido o primeiro homem do estado de inno-
cencia, todos os seus descendentes ficaram eivados de
tal corrupção, que se não for a graça sobrenatural se­
rão necessariamente escravos da iniquidade, propensos
ao mal, etc.»
Este facto psychologico extraordinário — que somos
seres contradictorios comnosco—não pode provir de
Deus que é a ordem por essencia. Xão provem da fra­
queza inherente a todo o ser finito, porque a alma feita
á imagem de Deus ha-de propender naturalmente para
Deus. Xão vem do abuso que tivéssemos feito pessoal­
mente da nossa liberdade, porque nos sentimos propen­
sos ao mal desde a infancia, logo que fazemos uso do
nossas faculdades, como se o vicio nos fosse connatural,
e nascesse em nossa alma como os espinhos e abrolhos
nascem da terra sem cultura. Logo esta contradieção
não pode vir senão de uma falta primitiva que se nos
transmitte hereditariamente pelo nascimento.
Advertiremos porem que esta prova fornecida pela
psychologia e pela expeiiencia não tem valor sem que
primeiramente se prove: l.° que o estado de natureza
pura é contrario á natureza de Deus e do homem: 2.°
que nascemos em um estado de degradação peior que
o estado de natureza pura; ora 1." todos admittem e é
quasi dogma de fé que Deus teria podido dar ao ho­
mem sahido de suas mãos o que constituo essencial­
mente sua natureza, largiens naturain, sem lhe acrescen­
tar gratuitamente, benevolamente a graça, donans gra-
tiani; 2.° muitos theologos não duvidam conceder que
o estado actual do homem não é debaixo de nenhum
ponto de vista intrinseco peior que o estado de natu­
reza pura; que não ha entre o homem da natureza
pura e o homem decahido outra differença que a de
um homem nú e de um homem espoliado; que nossa
corrupção não é o effeito nem da privação de um dom
0 PECCADO ORIGINAL 373
natural, nem de uma qualidade mórbida, de que a alma
esteja affectada.
X'cste sentir bastante commum e tolerado pela
Egreja, todo o peccado original consistiría na privação
causada pela desobediencia de Adão da vida da graça,
e dos dons sobrenaturaes da alma. Havia entre Adão e
nós uma solidariedade essencial; em virtude d’esta so­
lidariedade nascemos na indigencia em que elle cahia;
a justiça divina retira-nos privilégios gratuitos, e des­
poja-nos dos dons sobrenaturaes.
E’ claro que debaixo d’este ponto de vista as. obje-
cções, com que se combate o dogma ou mysterio do
peccado original perdem toda a sua força.
A ao mais se dirá: l.° que este dogma é um dogma
barbaro, visto a privação de dons gratuitos e sobrena­
turaes não ser contraria nem aos attributos de DeusT
nem aos direitos essenciaes do homem; 2.° que o filho
seria contra toda a justiça culpado pelo peccado que
não commetteu, porque a transgressão é obra de Adão:
que ha apenas um peccado original; que o filho nasce
tão somente na privação de bens gratuitos; 3." que não
se poderia explicar a cumplicidade do filho senão pela
preexistencia das almas ou por uma especie de pan-
theismo humanitário; porque não ha participação al­
guma do filho na falta adamica: 4.° que nós explicamos
a concupiscencia pela concupiscencia, porque não é á
eoncupiscencia, mas á liberdade só que vamos buscar
a razão da possibilidade da culpa original.
Mas vejo-me forçado, mau grado meu, a admittir
que esta theoria é muito indulgente, que o peccado ori­
ginal não pode ser uma simples denegação ou privação;
que entre o homem decahido e o homem de natureza
pura ha maior differença do que entre o homem espo­
liado e o homem n ú ; que a resposta ás objecções corre
de seu; que numa palavra as explicações fazem des­
374 OS ESPLENDORES DA FÉ

aparecer ou antes supprimem os mysterios do peccado


original.
Esta douctrina não se harmonisa sufficientemente
nem com a idéia do semen immundo de Job, nem com
a concepção na iniquidade e no peccado de David, nem
com a expressão formidável de S. Paulo filhos de ira,
por natureza, nem com o genero humano, inficionado ori­
ginalmente por algum peccado, de S. Thomaz de Aquino;
nem finalmente com o homem ferido em suas faculda­
des naturaes e constituído em um estado peior do conci­
lio de Trento. Quanto a mim a transmissão a todos os
homens do peccado original implica mais do que uma
simples espoliação, implica uma alteração intrínseca,
uma diminuição verdadeira e profunda das faculdades
naturaes. A concupiscencia do homem decahido é mais
ardente e desenfreada; a promptidao ao mal de suas
sensações e pensamentos, que inspirava a Deus pie­
dade profunda, é mais accentuada; a malícia em que o
mundo jaz alagado é mais espantosa do que o teria
sido no estado de natureza pura. Sim, ha perversidades
humanas que sahem da ordem natural, e que se podem
chamar sobrenaturaes, porque são a consequência neces­
sária de uma natureza viciada ou de uma influencia, de
uma obsessão diabólica exagerada, á qual o homem não
teria sido sujeito no estado da natureza pura. Não é em
odio da creação, mas em odio da redempção que o in­
ferno se encarniça contra o genero humano, e vagueia
sem cessar como leão avido da preza. Resta mostrar
como esta alteração da natureza humana em Adão e a
transmissão d’ella a sua posteridade são razoaveis,
justas, conformes ás leis geraes da creação, da gera­
ção, etc., ou o que vale o mesmo — que ellas são real­
mente a consequência necessária das idéias universal­
mente admittidas sobre a solidariedade inherente á so­
ciedade physica, physiologia, moral e social do genero
humano.
0 VECCADO ORIGINAL 375

A íé e a razão dizem-nos que a alma humana é a


forma substancial do corpo, o agente pelo qual o ser
humano existe, vive, sente : o principio de todos os seus
actos, de todas as suas operações ou funcções, nutrição,
crescimento, geração, etc., etc. Pelo facto de ser a for­
ma substancial do corpo, o principio de seus actos, se
a alma soffrer no proto-parente do genero humano uma
profunda modificação, esta modificação profunda terá
seu retinimento em toda a natureza humana; ora que
maior modificação na alma, do que a cessação brusca da
vida sobrenatural da graça?
Logo é muito natural que pelo peccado a natureza
humana haja sido profundamente alterada; que o im­
pério da alma sobre o corpo e os sentidos do corpo
haja diminuído em proporção considerável; que a intel-
ligencia se haja tornado menos accessivel á verdade, a
razão menos recta, a consciência menos esclarecida, os
sentidos menos sujeitos á razão, etc., etc. Assim com-
prehendida a mysteriosa alteração da natureza humana,
comprehende-se sua transmissão hereditária sem diffi-
culdade, porque não passa de uma consequência natu­
ral da geração. A alma como forma do corpo determi­
na esta funcção mysteriosa, e o germen que a consti-
tue é passivo da alma, modificado ou alterado, quando
a alma soffreu uma alteração profunda! Aão será esta
a razão do semen immundo de Job ? Já atraz vimos que
a concepção está na dependencia das impressões rece­
bidas do exterior; foi d’este modo que explicamos a
parturição, reputada impossível, dos cordeiros malhados
de Jacob, e hoje proclamada um phenomeno quotidiano,
confirmado pelo facto immenso de que em a natureza o
pello dos animaes e a plumagem das aves são de uma
uniformidade assombrosa, em quanto que na domesti­
cidade uma tal uniformidade desaparece para dar lo-
gar a uma indefenida variedade. Se uma simples im­
pressão physica actua tão profundamente sobre a con­
376 OS ESPLENDORES DA FÉ

cepção, como deixaria de o fazer o estado da alma,


forma do corpo? E’ uma lei geral da natureza que todo
o ser gera um ser semelhante a si, e que todo o ser ge­
rado se encontra, a todos os respeitos, no estado do ser
que o gera, a nào ser que se declare algum desvio de
natureza.
Este principio governa o mundo vegetal e o mundo
animal; depara-se-nos também no reino humano, mas
com uma mobilidade maior, sob todos os pontos de
vista, physico, physiologio, moral, social. Existe incon-
testavelmente no seio da humanidade, em consequência
da unidade de origem, uma lei de hereditariedade que
tudo abraça: a constituição physica com a saude e a
doença; o caracter e o natural bom e mau, a nobreza
e a degradação, o mérito e o demento, a liberdade e
a escravidão, a riqueza e a pobreza, a verdade e o erro,
os bens do corpo e os bens da alma, os bens do tempo
e os bens da eternidade. A lei de solidariedade consi­
derada como tendo origem na unidade moral ou social
depara-se-nos entre o corpo e a alma, entre os mem­
bros de um mesmo corpo, entre os cidadãos de uma
mesma nação, estado, e até da humanidade, entre o ho­
mem e o mundo material, entre o homem e o mundo
espiritual. Em summa visto que por uma parte a soli­
dariedade está em todos os logares, e por outra a scien-
cia multiplica incessantemente os exemplos ordiná­
rios e extraordinários de atavismo, i é, de transmissão,
atravez de muitas gerações, de condições secundarias
mesmo de organisação physica, physiologia, psychica,
como deixar de crer na transmissão da queda original?
O simples facto sem excepção e tão profundamente
mysterioso da perpetuidade dos generos, das especies,
das variedades, obriga d’alguma sorte a admittir que a
realidade de todos os seres successivamente gerados
está contida no primeiro p ai; é por conseguinte natu­
ral que todo o genero humano haja peccado em Adão.
O PECCADO ORIGINAL 377
«O ovo, dizia Claude Bernard que aliás passava por ser
positivista ou mesmo materialista, * é a primeira condi­
ção da lei organogenica que preside á evolução de todo
o ser vivo... E’ sem contradicção de todos os elemen­
tos liistologicos o mais maravilhoso, porque vemos que
elle produz series inteiras de organismos inteiros.»
E poderiamos invocar em reforço do mysterio do
peccado original a pangenese de Darwin, ultima pala­
vra da sciencia, a mais aventurosa, que pretende que a
simples cellula elementar continha não só os elementos
ou principios constituintes dos corpos, mas também de­
baixo da forma de gemmulas tóxicas os principios dos
estados morbidos, das doenças hereditárias, das defor­
midades, das monstruosidades, etc., etc.
Mas dirão: o peccado original é uma affecçao das
almas, e estas não são transmittidas ou geradas, pelo
contrario são immediatamente creadas e infundidas nos
corpos quer no momento da concepção, quer no in­
stante da organisação. Para desvanecer de todo a difi­
culdade, poderiamos admittir com muitos philosophos.
Padres da Egreja, douctores, que a transmissão das al­
mas se faz como a dos corpos por geração e propaga­
ção; mas sustentando como incomparavelmente mais
provável a creaçào immediata das almas, não será per-
mittido acreditar que a alma creada directamente, mas
infundida no semen que Job denominara tão sabia e
tão eloquentemente immundo, semen de que ella é a
forma evolutiva, não possa evolver senão um ser degra­
dado e decahido? E’ n’isto que consiste real mente o
segredo do peccado original, o como do qual é também

* Mas con v ertid o m ais ta rd e ao e sp iritu alism o pela im possibili­


dade de co n co rd ar o facto da renovação co n tin u a dos elem entos a n a tô ­
m icos do corpo com a p e rsistên cia dos p h en o m en o s d ’alm a, accu sad o s
pela consciência, m as co nservados pela m em ória.
N. do T.
378 OS ESPLENDORES DA EÉ

um mysterio profundo! Certamente que se o peccado


original fosse um peccado actual — o que envolve ccn-
tradicção nos termos — seria de facto absurdo attri-
buil-o ás almas que não existiam. Tracta-se porem não
de um acto, mas de um estado; ora comprehende-se
muito bem que a alma seja constituída n’este estado de
queda e de degradação, pelo facto de se volver a forma
de um germen infecto: De immundo conceptum semine /
Em resumo, o peccado original ou a transmissão a
todo o genero humano da transgressão de Adão é uma
consequência legitima e natural das leis da geração e
da solidariedade humana. Nada tem de injusto, e esta­
mos até no direito de exclamar com a Egreja: Felix
culpa! ditosa culpa! que tão divina e superabundante-
mente foi compensada pelos augustos mysterios da In-
carnação e da Redempção; pois que ali onde o pecca­
do abundou, a graça superabundou; poisque se pelo
peccado de um só a morte reinou, a vida pela morte
de um só reinou superabundantemente e para a eterni­
dade.
CAPITULO VIGÉSIMO NONO

O Mysterio da Incaruação

A Incarnação é o mysterio do Filho de Deus feito


homem; foi-nos revelado por S. João no principio de
seu Evangelho em termos taes como estes: «No princi­
pio era o Verbo e o Verbo estava em Deus, e o Verbo
era Deus. Todas as cousas foram feitas por Elle, e nada
do que foi feito se fez sem E lle! E o Verbo se fez carne
e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vi­
mos sua gloria, a gloria do Filho unico do Padre. > O
mesmo apostolo diz em sua Epistola: «Aquelle que era
«desde o principio, aquelle que ouvimos, aquelle que vimos
«■com nossos proprios olhos, aquelle que contemplámos e
«tocámos com nossas mãos, o Verbo da vida, nós vol-0 an-
«nunciamos.» Os apostolos ensinam-nos a repetir inces­
santemente: «Creio em Jesus Christo, o Filho unico de
Deus, que foi concebido do Espirito Santo; que soffreu
sob Poncio Pilatos; que foi crucificado; m orto; sepulta­
do ; que resuscitou; que subiu aos ceos; que está assen­
tado á direita do Padre Omniponte, d’onde ha de vir a
julgar os vivos e os mortos.»
I

380 OS ESPLENDORES DA FÈ

Este dogma mysterioso é ainda mais claramente


definido no symbolo de S. Athanasio. «E’ indispensável
á salvação eterna crer fielmente na Incarnação de Nosso
Senhor Jesus Christo. Uma fé recta obriga-nos pois a
crer e a confessar que Nosso Senhor Jesus Christo, Fi­
lho de Deus, é Deus e homem. Deus gerado antes dos
séculos da substancia de seu Pai, e homem nascido no
tempo da substancia de sua mãe. Deus perfeito e ho­
mem perfeito, subsistente por uma alma racional e uma
carne humana. Egual a seu Pai pela divindade, menor
que seu Pai pela humanidade, não são dois, mas um só
Christo. Um não pela conversão da divindade em car­
ne, mas pela assumpção por Deus da humanidade. Um
absolutamente, não pela confusão da substancia, mas
pela unidade da pessoa. Porque assim como a alma ra­
cional e a carne são um só homem, Deus e o homem
são um só Christo.» Eis aqui a definição do mvsterio e
ao mesmo tempo a comparação natural que nos faz en­
trever a sua possibilidade.
De facto, visto que o homem é uma especie de in­
carnação, um espirito unido a uma carne na unidade
• de pessoa ou do eu, porque em Jesus Christo não esta­
ria a divindade unida á humanidade na unidade do eu
divino, como a alma está unida ao corpo para formar
um só eu humano ? A alma é simples, activa, indivisi-
vel, indestructivel; o corpo é inerte, extenso, divisível,
corruptivel! Como pôde a alma congregar-se com elle ?
Certo dia o espirito foi infundido ou insufflado na
matéria, e ambos ficaram compondo um só homem,
sem que se possa jamais destrinçar o modo de consti­
tuição d’esta unidade mysteriosa.
Tenho um corpo, tenho uma alma, e sinto que an­
dam intimamente unidos. Sinto sua absoluta distincção,
mas sinto porventura ainda melhor sua penetração re­
ciproca. A sciencia vê-a até ao ponto de a exagerar!
Não ha em meu espirito um pensamento, um sonho,
OS MYSTERIOS DA INCAKNAÇÃO 381

etc., não ha, em meu coração uma emoção, um senti­


mento que não deixem um qualquer vestigio nos meus
orgãos. A seu turno não ha uma só molécula do cora­
ção que não reaja, sobre meus pensamentos ou affeições.
Outrotanto posso dizer de todos os demais orgãos, são
de sua natureza materiaes; mas unidos a minha alma
adquirem uma certa espiritualidade. 0 que observamos
na incarnação humana, porque não se dará na Incarna-
ção divina? Deus é espirito, a alma é espirito, Deus fez
a alma humana á sua imagem, é de seu genero!
No instante, em que a alma humana de Jesus ia
unir-se ao corpo formado do mais puro sangue de Ma­
ria pela intervenção do Espirito Sancto para o elevar á
cathegoria de pessoa humana, porque não teria podido
o Verbo divino unir-se a esta alma humana, e eleval-a
na união com seu corpo á dignidade infinita de pessoa
divina, onde o homem não mais subsiste já em si mesmo,
mas no Verbo divino? ÍTesta união tão extraordinária,
não ha mais do que uma pessoa, o Christo, Homein-
Deus! Jesus Christo é verdadeiramente homem, tem um
espirito como o nosso, uma imaginação, uma sensibili­
dade, uma vontade, um coração e também um corpo
semelhantes aos nossos! N’elle a natureza humana é
completa, nenhum homem é mais homem do que elle!
E ao mesmo tempo ó Deus, plenamente Deus, perfeita-
mente Deus, e basta uma simples vista para disso ficar
certo, como basta um olhar para ver n’elle o homem.
« Elle nasce, diz Bossuet, mas nasce de uma Virgem e
seu nascimento é anuunciado pelos anjos. Come, mas
quando lhe apraz, e é servido quando quer pelos anjos.
Pode passar sem alimento material, seu alimento é a
vontade de seu Pai.
Pede agua á Samaritana, mas descobre-lhe os sen­
timentos que o coração d elia esconde e converte-a.
Escuta a accusação feita contra a mulher adultera, mas
ao mesmo tempo escreve na areia os crimes secretos
382 OS ESPLENDORES DA FÉ

dos accusadores! Dorme, mas durante o somno não deixa


sossobrar a barca. Marcha, mas quando o ordena, a
agua firma-se-lhe debaixo dos pés. Cospe, mas com a
saliva faz um lodo e unta os olhos do cego de nasci­
mento que cobram, vista. Chora Lazaro, mas resusei-
ta-o. Morre, mas incute nessa occasião o espanto no
coração de toda a natureza. Reparte o pão com os dis­
cípulos de Emaús, mas enche-lhes o coração de divi­
nos ardores. Mantem sempre um justo meio, de forma
que mostrando-se homem, se revela Deus; declaran­
do-se homem, manifesta-se Deus.
A economia é tão sabia, a dispensaçã» tão prudente,
todas as cousas tão admiravelmente feitas, que aparece
inteira a divindade e inteira a humanidade.»
Eis todavia algo de mais admiravel ainda, do que
a coexistência das duas naturezas.
Ha em mim duas naturezas, uma espiritual, outra
material. Mas creio sentir alem d’isso como uma união
intima d’estas duas naturezas. Ha uma terceira que diz
minha alma e que diz meu corpo, que fala d’aquella e
d’este como seus. Esta terceira é o eu, que pertence á
alma, mas á alma como dupla causa de acções, cuja res­
ponsabilidade acceita, é a pessoa humana. Ora a Eé tam­
bém nos mostra em Vosso Senhor Jesus Christo dois
princípios de acções, um de acções humanas, porque é
homem, outro de acções divinas, porque é Deus; mas
com um centro unico de responsabilidade, um só eu,
uma só pessoa, o eu do Verbo divino, a pessoa do Filho
de Deus. Logo todas as acções de Jesus Christo, espi-
rituaes e corporaes, humanas e divinas são acções do
Verbo, do Filho de Deus.
Vasce, ora, pensa, ama, soffre; mas uma lagrima de
seus olhos, um suspiro de seu coração, um acto de ado­
ração e de amor, tem um valor infinito.
E se a incarnação humana, a união hypostatica do
corpo e da alma escapa a toda a investigação do espi-
OS MYSTERIOS DA INCAKNAÇAO 383
rito, que admiração deverá causar que aincarnação di­
vina, a união hypostatica da natureza divina e da natu­
reza humana, tique um mysterio impenetrável? Assim
pois o que é um enigma insolúvel no homem não é a
presença do corpo, nem a presença da alma, nem a
transpiração da alma em todo o corpo, mas o como da
fusão do corpo e da alma em sua harmoniosa unidade?
da mesma sorte o que é um mysterio na Inearnação di­
vina não é nem a presença em Jesus Christo da divin­
dade, nem a presença da humanidade, nem mesmo a
união hypostatica da divindade e da humanidade, mas
o como d’esta união ineffavel, o como do Yerbo feito
carne.
Este adoravel mysterio da Inearnação é perfeita-
mente digno de Deus, a quem Jesus Christo, o Homem
Deus, presta homenagens proporcionadas a sua sobe­
rana magestade; é uma fonte de grandeza, ventura e
gloria para a humanidade, á qual offerece um Deus que
não se perde em longínquos impossíveis, nos raios de
uma luz inaccessivel, pois é homem e responde sympa-
thicamente a todas as exigências da natureza humana,
e tanto mais que o Homem-Deus se não dedignou de a
tomar decahida, miserável, humilhada, sofiredora; que
se dá por mãe a mais bella e pura de todas as creaturas
humanas; que nasce infante, cheio de bondade e do­
çura ; que consagra trinta e tres annos a fazer o bem;
que se digna morrer pelos homens que tanto amou.
E que admiráveis não são as consequências da In­
earnação ! O mundo viu de súbito reaparecer, levantada
das ignomínias da queda, a belleza do homem divina­
mente fundida na belleza de Deus, e era alguma cousa
de tão elevado, puro e arrebatador, que os apostolos
foram conquistados por um simples olhar, e as multi­
dões eram attrahidas.
O que se adorava no semblante do Mestre, contem­
plou-se a breve trecho e com assombro no semblante
384 OS ESPLENDORES DA FE

dos discípulos; apareceram typos novos, de belleza des­


conhecida, de uma graça, dignidade, paz, modéstia,
energia e serenidade inauditas; e o sorriso dos ceos os­
tentou-se nesses rostos de creanças, de donzellas, vir­
gens, pontífices e confessores. Pela Incarnação em sum-
ma o homem torna-se participante da natureza divina,
herdeiro de Deus, coherdeiro de Jesus Christo e de sua
gloria eterna.
Como pois não amar com transportes de admira­
ção e de alegria este mysterio abençoado da Incarnação
que nos deu Jesus Christo, o Verbo feito Carne!
Jesus Christo! Seu espirito é o mais bello, o mais
elevado, o mais vasto, o mais penetrante, o mais uni­
versal, o mais perfeito! Nada aprendeu e tudo sabe! Vê
a Deus, sua unidade adoravel, sua simplicidade infinita,
a Trindade das divinas pessoas e suas operações myste-
riosas; tudo o que o espirito humano ha de descobrir
na serie dos séculos, esses mundos immensos que entre­
vê vagarosamente e por etapes o olhar do philosopho,
do mathematico, do geometra, do astronomo, do geo-
logo, do chimico, do physico, do naturalista, do physio-
logista!
Essas bellezas exquisitas da natureza que o poeta
anceia cantar, o artista-desenhador, pintor, esculptor,
reproduzir fascinavam-lhe os bellos olhos, e arrebata­
vam-lhe a alma, a mais sensível das almas, junctamente
inundada por toda a luz creada e increada, alma que
tudo aprendera de seu Pai!
Jesus Christo! Seu coração é tão amante, que não
pode vericoxrer uma lagrima que não se enterneça. Pos-
sue todas as purezas, e não pode considerar o pecca-
dor sem se lhe abrir. Tem todas as impaciencias, todas
as sanctas pressas do amor. Desiderio desideravi! ■..
Quomodo coarctor!... Não se cansará de bater á porta,
feliz se depois de vinte annos, de trinta annos chega a
conquistar uma alma. Nada pode esfrial-o nem o es-
OS MYSTERIOS DA ÍNCARNAÇÃO 385

quecimento, netn a indifferença, nem a revolta, nem a


traição.
A ingratidão, ainda do mesmo Judas, lhe não ex­
tingue os impetos. Abandonado, menosprezado, de ne­
nhum esforço carece para amar ainda mais e até ao
excesso.
Antes de ter dado até á ultima gota de sangue, já
scismava em sobreviver-se no amor! Por uma admirá­
vel industria condemnar-se-ha voluntariamente a amar
sempre, em todo o tempo, em todos os logares e até ao
fim do mundo, no adoravel sacramento do seu amor.
Que gloria e que felicidade para a terra possuir
um coração que ama a Deus, como Deus se ama, e que
ama os homens com um amor infinito!
Jesus Christo! Sua vontade é sancta, de sanctidade
absoluta, essencial! Dons ineffaveis do Espirito Sancto,
dons de sabedoria, de intelligencia, de conselho, de
força, de sciencia, de piedade, de temor filial de Deus,
a constituíam em um estado de vida toda divina e de
extase incessante. O Espirito Sancto não se lhe com-
municou em parte e por medida, repousou sobre elle,
na phrase energica de Isaias.
Jesus Christo! Seu corpo immaculado está em per­
feita harmonia com a magestosa belleza de sua alma.
Raciocinava debaixo da acção de um pensamento po-
tentissimo, que a inundava de imagens as mais lumino­
sas e verdadeiras; enviava ao mais ardente dos cora­
ções excitações de um sangue puríssimo e quente. Ima­
ginai o organismo o mais harmonioso que possa exis­
tir, o mais delicado e o mais forte, o mais sensível e o
mais inalterável: ponde-o ao serviço da mais bella das
almas, e tereis o corpo sanctissimo e formosíssimo de
Jesus Christo. Muito embora um veo discreto rodeasse
providencialmente este foco de irradiações divinas,
ainda assim não obstava a que o cingisse uma atmos-
vol iv 35
386 OS ESPLENDORES DA FÉ

phera de luz, de graça, de virtude, e algumas vezes,


como sobre o Thabor, uma auréola de raios de extraor­
dinária brancura. Seu rosto andava habitualmente ba­
nhado em doce luz, um só de seus olhares conquistava
os corações, uma só de suas palavras arrebatava as al­
mas. Que imaginação, que palheta, que cinzel, que
penna, poderia esboçar a belleza divinal de Jesus
Christo! Desde que me puz a contemplal-a, dizia S.
Thereza, essa ineffavel belleza está-me sempre deante
dos olhos.
Seu soberano esplendor volve-nos despreziveis to­
das as bellezas d’este mundo. «Ah! como sois bello meu
bem amado, exclamava Bossuet, como sois bello e ca-
ptivante! Esta admiração attrahe a alma a um certo si­
lencio, que faz emudecer todas as cousas para só se
occupar da belleza d’Aquelle a quem ella ama. De sorte
que tudo o que a alma pode, nesta feliz admiração, é
deixar-se attrahir cada vez mais pelos encantos de Je ­
sus Christo e de só responder ao attractivo por um certo
ah! de admiração! O Jesus Christo, ó Jesus Christo, ó
Jesus Christo! é tudo o que se pode dizer. Pouco a
pouco, todo e qualquer outro objecto se esvae do cora­
ção; ou antes o coração diz: isto é bello, mas não é J e ­
sus Christo! Então em uma sancta impaciência, parece-
nos instar com as creaturas para que falem altamente
d’este bem amado. Ah! falai, falai! Dizei mais! E a tudo
o que d’elle não fala, silencio! Depois, não se consente
que nos falem d’elle, porque nem todas as creaturas
junctas nos falariam, como deveriam falar, e a alma não
pode supportar que d’elle se fale tão frouxamente.
Pede enfim que tudo se cale, e roga a Jesus que
fale elle só do que elle é. Em seguida roga-lhe que não
mais fale, pois que poderia dizer em linguagem humana
que fosse digno d’elle! Pede-lhe portanto que se cale, e
que se imprima no fundo do seu coração, e de lhe so-
0 8 MYSTERI0S DA INCARNAÇÃO 387

breexcitar todas as potências e de a deixar dizer em


segredo: 0 ’ Jesus Christo! O’ Jesus Christo!» Que es­
plendor da fé que são estes accentos inspirados de um
dos mais bellos gênios da humanidade!
E eis que já vão decorridos dezoito seçulos, depois
que a arte debaixo de todas as formas tenta reprodu­
zir a divina figura do Deus feito homem sem o haver
podido conseguir. Nada lhe tem faltado, nem o genio,
nem a sanctidade, nem a sanctidade unida ao gehio. 0
beato Angélico de Piésole consagrou a esta obra su­
blime tudo quanto Deus lhe dera em talento, tudo
quanto seu casto coração pudera idealisar, tudo quanto
a mais ardente contemplação pudera lobrigar. Ajoelha-
mo-nos involuntariamente deante do seu Ecce Homo,
cujo olhar da mais terna belleza, nada recorda que não
se haja visto sobre a terra; mettemo-nos sem dar por
isso n’esse cortejo ineffavel d’aquelles que amaram a
Jesus Christo, e que o levam ao sepulchro.
Mas até mesmo n’essa obra d’arte realments ce­
leste, vê-se que ficou longe da verdade; a arte foi ven­
cida! Nada pode comparar-se á calma, á grandeza, á
serenidade, á ternura infinita do Christo na Ceia de
Leonardo de Vinci. Seus olhos de uma belleza arreba­
tadora, seus lábios dilatados pelo amor, suas mãos es­
tendidas, não sei que terna inclinação de todo o corpo
para o lado do coração dá a esta imagem uma uncção
irresistível! mas não é ainda Jesus Christo! A palheta
de Raphael jamais se prestou, como no quadro da
Transfiguração, a melhores combinações, nunca sua al­
ma se inundou, como ali, das mais luminosas visões da
belleza: contrastes admiráveis dão todo o realce á ce­
leste aparição do Homem-Deus.
Com que arte elle põe a seus pés esse joven tortu­
rado pelo mau espirito; e aquella mãe sublime, cujos
braços estendidos respiram tanta fé! Como esse ente
388 OS ESPLENDORES DA F É

que soffre, e essa belleza dão relevo á luz, á calma, á


gloria da humanidade transfigurada em Jesus Christo.
Mas, ó arte humana, confessa tua derrota, isso não é
mais do que a sombra da belleza adoravel de Jesus
Christo, que esclarece com uma rutilante luz o myste-
rio da Incarnação. Devo declarar que os mais bellos
traços d’este retrato magnífico de Jesus Christo foram
extrahidos da obra do sr. P.e Bougaud.
CAPITULO TRIGÉSIMO

A Rederapção

O Verbo encarnado, o Filho de Deus feito homem,


morreu voluntariamente sobre a cruz por nós e por
nossa salvação. Homem, soffreu; Deus communicou um
preço infinito a seus soffrimentos.
Por sua paixão e morte reparou superabundante-
mente a injuria feita a Deus seu Pai pelo peccado; e
resgatou-nos da eterna condemnação: eis o mysterio
da Redempção!
Deus tinha dicto á serpente : «Porei inimizades en­
tre ti e a mulher, a tua posteridade e a d’ella, tentarás
mordel-a no calcanhar, mas ha de esmagar a tua ca­
beça!» Tal foi a primeira promessa do Redemptor.
Isaias disse do Messias: «O Senhor poz sobre elle as
iniquidades de todos nós. Foi offerecido em sacrifício,
porque assim lhe aprouve; foi ferido por causa de nos­
sas iniquidades; foi esmagado por causa de nossos cri­
mes, e nós fomos guarecidos por suas feridas.»
O proprio Jesus Christo se dignou declarar-nos:
«Amou Deus de tal sorte o mundo, que lhe deu seu
Filho unico, afim de que todo aquelle que crê n’elle,
390 08 ESPLENDORES DA F É

não pereça, mas tenha a vida eterna. . Deus enviou


seu Filho ao mundo, para que o muudo seja salvo por
elle.» S. Paulo põe na bocca de Jesus Christo esta so-
lemne oblação a seu Pai: «Não quizestes hóstias, nem
offerendas, mas adaptastes-me um corpo. Os holocaus-
tos pelo peccado não vos tem aprazido, então disse:
«Eis-me aqui!»
Todos os symbolos da Fé catholica nos obrigam a
crer que Jesus Christo, Filho unico de Deus, por nós e
por nossa salvação padeceu no governo de Poncio Pi-
latos, foi crucificado, morto e sepultado! Nada pois
mais certo do que o dogma da Redempção. Como pôde.
Jesus Christo Deus soffrer e morrer?
E' o mysterio da Redempção, o qual debaixo d’este
ponto de vista se confunde com o da Incarnação. Jesus
Christo pôde soffrer e morrer, porque era real mente
homem! Posto isto, a razão esclarecida pela fé, não he­
sita em formular as proposições seguintes, ás quaes
nada pode oppor-se:
1. ° Deus que tinha necessariamente creado o ho­
mem para sua gloria, que se tinha constituído necessa­
riamente seu fim ultimo, não podia deixar de exigir a
reparação da injuria que lhe fôra irrogada! O homem
tinha peccado, era absolutamente indispensável que sua
falta fosse expiada, e que a expiação fosse proporcional
á offensa, infinita como a offensa, ao menos por substi­
tuição e reversibilidade.
2. ° Era conveniente que Deus perdoasse ao ho­
mem, ou que o homem fosse resgatado e rehabilitado,
n’este sentido que Deus que não perdoara aos anjos re­
beldes, podia perdoar ao homem. O homem de factó
ficava depois de sua queda a obra prima e como o epi-
tome de toda a creação. Era ainda uma grande cousa:
conservava os grandes traços da imagem divina, inde-
level nelle. Fora solicitado ao mal por um poder exte-
A REDEM PÇÃO 391

rior que abusara de sua simplicidade e inferioridade


para o fazer cahir no laço.
Adão cedera ás seducções da companheira que o
proprio Deus lhe tinha dado, osso de seus ossos, carne
de sua carne, sangue de seu sangue, coração de seu co­
ração, alma de sua alma. Em si encerrava uma nume­
rosa posteridade. Não era um puro espirito, mas um
espirito estreitamente unido á matéria, o que tornava
sua falta mais desculpável do que a do anjo.
3. ° A Redempção exigia imperiosamente duas
cousas: satisfação plena e inteira da divina justiça, e
rehabilitação completa do homem, isto é, volta ao es­
tado sobrenatural, á justiça original, á sanctificação
pela graça habitual e actual, apello á vida futura, á
restauração gloriosa, á visão intuitiva, á eterna feli­
cidade.
4. ° Esta satisfação e esta rehabilitação não podiam
ser adquiridas nem pelo mesmo homem, nem por uma
simples ereatura por mais perfeita que a concebamos.
De facto, como o peccado, a offensa commettida con­
tra Deus reveste malicia virtualmente infinita em ra­
zão da dignidade infinita da pessoa offendida, a repara­
ção devia ser também infinita pela dignidade infinita
do Redemptor. Não era bastante que a victima fosse
sancta, immaculada, era mister que fosse Homem-Deus;
homem para poder no pé da solidariedade humana as­
sumir sobre si a responsabilidade de todos os peccados
dos homens; Deus para dar um valor infinito á expia-
ção. O Redemptor só podia ser o ente universal ao
mesmo tempo Deus e homem, possuindo em si de modo
ineffavel a divindade e a humanidade, o ceo e a terra,
todos os tempos e todos os logares, todos os crimes e
todas as innocencias para tudo purificar e tudo recon­
ciliar.
5. ° E porque o peccado, separação violenta da
392 OS ESPLENDORES DA F É

alma e de Deus, tinha tido por consequência e punição


a morte, separação violenta da alma e do corpo; por­
que a morte é o maior acto pelo qual Deus podia ma­
nifestar seu supremo dominio sobre o homem, e seu
odio infinito ao peccado, convinha, para que a redem-
pção fosse perfeita, que a morte fosse voluntariamente
acceite pelo redemptor. Venlia pois a grande victima,
ao mesmo tempo divina e humana, e morra sobre a
cruz, para que a salvação, como o peccado desça da
arvore ao mesmo tempo occasião do crime e instru­
mento do perdão, e então e só então é que a redem-
pção será completa, e a sancta Egreja de Jesus Christo
exclamará em seu reconhecimento enthusiasta: Feliz
culpa! O’ peccado necessário de Adão!
E porque no momento em que Jesus Christo expi­
rava no Calvario, nós todos estavamos n e lle ; porque o
sangue que corria de suas veias tinha sido tirado das
nossas, não alterado, pois Maria, sua mãe, fora imma-
culada em sua conceição, mas supernaturalisado e dei-
ficado d’alguma sorte por sua união com a divindade;
porque aquelle que morria era nosso chefe, a cabeça e
o coração da humanidade; porque no dogma christão
as dores, a tristeza, a agonia da humanidade vem com­
pletar o que falta á paixão de Jesus Christo, para que
se torne individual ou nossa; n’uma palavra, porque
Jesus Christo fez de sua morte e das nossas uma só
immolação, um só holocausto, immenso, no qual victima
unica, ao mesmo tempo divina e humana, innocente e
criminosa, por uma só oblação, a sanctificação dos es­
colhidos está consummada para a Eternidade. Consum-
matum est!
O dogma da Redempção assenta, é verdade, sobre
este principio de substituição ou de reversibilidade,
que os méritos da innocencia são aplicáveis ao peccador;
que o innocente pode soffrer, morrer, merecer, expiar
A KEDEMPÇÃO 393

em logar do culpado, etc.; mas este principio é incon-


testavelmente uma lei da natureza e da justiça hu­
mana.
Em Roma Decio depois de ser votado pela Repu­
blica aos deuses Manes e a Tellus, avança armado so­
bre o seu cavallo e precipita-se nas fileiras inimigas:
fez o sacrifício de sua vida e fel-o pelo ministério do
pontífice na crença de que salvaria sua patria dos ma­
les que a ameaçavam, e depois de haver dirigido suas
deprecações aos deuses. Em Athenas sob a fé do orá­
culo que promete a victoria áquelle dos dois exérci­
tos que perder seu general na batalha, Codro corre
voluntariamente á morte para salvar a sua patria.
Agamemnon está prompto a sacrificar sua filha
Iphigenia para assegurar aos Gregos ventos propícios
que o levem a Troia. Na Judêa Deus em uma admirá­
vel communicação com Abrahão, apenas exige a pre­
sença de dez justos em Sodoma para não descarregar
o golpe que já acenava a essas cidades indignas. O
grande sacerdote Caiphaz não duvida asseverar que
era mister que um homem morresse por todo o povo.
Entre os Phenicios e entre os antigos em geral era cos­
tume nos grandes perigos que os príncipes das nações
e das cidades, para prevenirem a ruina de seu povo, se
mostrassem promptos a sacrificar á cólera dos deuses
aquelle de seus filhos que mais amavam. Todos os dias
estamos vendo o homem perdoar ao culpado por causa
do innocente que o implora, deixar-se abonançar pelos
rogos da virtude formosa. Sempre e por toda a parte
se tem acreditado que o justo suspende os flagellos, o
raio das vindictas, e faz pender o prato da balança
para a misericórdia. Sempre e por toda a parte se tem
offerecido sacrifícios, que no fundo não passam de uma
substituição, tendo sua razão de ser na solidariedade
humana, porque todo o animal, toda a creatura tem o
quer que seja do homem.
394 OS ESPLENDORES DA F É

Que ha pois que estranhar que o novo Adão nos


transmitta sua vida regeneradora, logo que o primeiro
Adão nos pôde transmittir sua vida corruptora? Se a
desobediencia de Adão nos fez peccadores, porque é
que a obediência de Jesus Christo não nos faria justos?
Condemnados em Adão, muito embora sua natureza
tão sómente, e não sua pessoa, fosse a nossa, porque
razão não havíamos de poder ser justificados em Jesus
Christo que conservando sua personalidade divina, fez
sua nossa natureza? Porque motivo o que tem logar
na ordem do mal, não o ha de ter na ordem do bem ?
Porque razão a bondade não ha de ser tão poderosa
como a justiça ?
O que a bondade no entanto não pode fazer é que
os méritos de Jesus Christo nos sejam aplicados indi­
vidualmente e pessoalmente só pelo facto de sua mor­
te, sem uma cooperação livre da nossa parte. De forma
que é absolutamente preciso que acabemos em nós o
que falta á paixão de Jesus Christo, pelo cumprimento
de seus preceitos e conselhos, pela imitação de suas
virtudes. Debaixo d’este ponto de vista, quem deixará
de admirar essas almas generosas que á semelhança
dos cartuxos, dos trappistas, dos carmelitas, das clarissas
abraçam por estado o soffrimento voluntário, para me­
lhor cumularem em si e nos outros o déficit indicado
pelo grande Apostolo ? Desempenham na ordem social
a missão a mais elevada e mais sublime, substituindo-se
aos culpados, e devotando-se por elles. Exalta-se o sol­
dado que affronta o perigo e a morte por seu paiz, e
não se admiram os martyres da penitencia que na or­
dem divina fazem o papel dos defensores da patria na
ordem moral! Perguntar para que servem estes heroes,
quando se crê em Deus, na alma, na liberdade, na que­
da, na incarnação, na redempção, no grande mysterio
do justo expiando em logar do culpado, é perguntar
para que serve o proprio christianismo. E como com-
A REDEMPÇÃO 395

prehender egualmente essa revolta contra o dogma


catholico da indulgência, que outra cousa não é senão
uma aplicação mais ou menos extensa dos méritos de
Jesus Christo, feita pela Egreja em virtude das leis da
reversibilidade e da substituição, com a condição de
que havemos de cooperar na obra de Jesus Christo
com alguma boa obra nossa! (Imitado do P.e Berseaux
em sua Sciencia Sagrada).
CAPITULO TRIGÉSIMO PRIMEIRO

A presença real do corpo e do sangue de Jesus Christo


debaixo das especies do sangue e do vinho

E’ o mais assombroso dos mysterios, porque parece


offerecer ao espirito tres grandes impossibilidades: l.°
a transubstanciação ou a conversão da substancia do
pão e do vinho na substancia do corpo e do sangue de
Jesus Christo; 2.° a presença ou a concentração de­
baixo do volume de uma molécula de pão e de vinho,
de todo corpo e de todo o sangue de Jesus Christo; 3.° a
persistência dos accidentes interiores e exteriores, visí­
veis e invisíveis, aparentes ou não aparentes, da subs­
tancia do pão e do vinho, depois de ter sido convertida
no corpo e sangue de Jesus Christo; 4° a presença do
corpo de Jesus Christo debaixo da hóstia inteira e de­
baixo de cada uma das partes separadas ou moléculas;
5.° enfim a multilocação do corpo e do sangue de J e ­
sus Christo, ou sua presença simultânea, debaixo de
cada uma das moléculas do pão e do vinho nos logares
os mais distantes. Mas por uma parte estas impossibili­
dades só o são para o espirito humano necessariamente
limitado; por outra parte os progressos modernos das
CORPO E SANGUE DE JESUS CHRISTO 397

sciencias longe de as vigorisar, enfraquecem-nas cada


dia mais.
O desconhecido é o mysterio com todas as suas
impossibilidades; o conhecido é, segundo o testimunho
divino de Jesus Christo e a declaração infallivel de sua
sancta Egreja, a presença real do corpo e do sangue
de Jesus Christo com transubstanisação, concentração
e persistência dos accidentes ou aparências do pão e
do vinho, com fragmentação do corpo e do sangue de
Jesus Christo, com dissimulação completa dos acci­
dentes, aparências ou propriedades do corpo e do san­
gue de Jesus Christo; com multilocação, etc., etc.
Por outras palavras, o desconhecido é : a essencia
da matéria, a essencia dos corpos ou o que constitue
sua própria substancia, a molécula ou o que é tal que
quando se tem, se possue toda a substancia do corpo,
que quando se não tem senão em parte, a substancia
do corpo não está na integra; 2.° a natureza real dos
accidentes, especies, propriedades e aparências da ma­
téria e dos corpos; 3.° os diversos estados debaixo dos
quaes pode existir um corpo em si mesmo ou relativa­
mente ao tempo, ao logar, etc., etc.
Ora todas estas cousas são, por confissão dos mais
sábios, incógnitas, mysterios inaccessiveis, impenetrá­
veis ; logo seria absurdo adduzir estas incógnitas e mys­
terios para pôr em duvida o facto incontestavelmente
revelado e divino da presença real! Pelo contrario a sã
razão impõe-nos como dever induzir dos factos revela­
dos e incontestáveis da Eucharistia a verdadeira natu­
reza, embora na aparência inacceitavel, da matéria e
dos corpos. Logo: i é da essencia do corpo poder, inter­
vindo o milagre, encontrar-se em estados mui differen-
tes, estado natural ou material; estado de corpo glori-
ficado, espiritualisado, de algum modo participante das
qualidades dos espíritos, ii Logo a substancia de um
corpo vivo pode estar concentrada em unj espaço d’al-
398 OS ESPLENDORES DA FÈ

guma soi’te indivisível, m Logo um corpo pode estar


realmente presente sem sua extensão natural e sem seus
accidentes ou propriedades especificas, rv Logo os acci-
dentes de um corpo podem ser fragmentados e suas
qualidades especificas podem deixar de estar, sem que
o corpo deixe de estar todo em cada um de seus fra­
gmentos! v Logo a multilocação nada tem de absurdo
ou de impossível, e um corpo pode existir ao mesmo
tempo em muitos logares.
Accrescentarei que se dermos ouvidos ao bom
senso, veremos frestas cinco propriedades novas da ma­
téria e dos corpos, conquistas imprevistas, as quaes a
razão e a sciencia deveríam agradecer summamente á
Revelação, e tanto mais que os progressos incessantes
da razão e da sciencia as justificam já hoje quasi ple­
namente, ou tendem a justifical-as cada vez mais.
E ’ o que vamos demonstrar mui perfunctoriamente,
depois de ter ouvido da Revelação, da Sagrada Escri-
ptura, da tradição, do ensino infallivel da Egreja ca-
tholica, apostólica, romana as provas irrefragaveis da
presença real, debaixo das especies eucharisticas, do
corpo, sangue, alma, divindade de Nosso Senhor Jesus
Christo.
Promessa da divina Eucharistia. S. Jo. vi, 5: «Vossos
pais comeram o maná no deserto; mas em verdade, em
verdade vos digo, Moysés não lhes deu o verdadeiro
pão do ceo. Só meu Pai dispensa o verdadeiro pão do
ceo, aquelle que desceu do ceo e dá a vida ao mundo.—
Senhor, dai-nos d’esse pão.. Eu sou esse pão, descido
do ceo. De forma que todo aquelle que tiver comido
d’este pão não morrerá. Viverá eternamente... E o pão
que eu lhe der ê a minha carne que eu hei de dar pela vida
do mundo. — Como poderá este homem dar-nos a sua
carne a comer ? — Em verdade, em verdade vos digo que
se não comerdes a carne do Filho do homem e se não be-
berdes seu sangue não tereis vida em vós... Porque minha
CORPO E SANGUE DE JESUS CHRISTO 399

carne é realmente um alimento e meu sangue realmente uma


bebida. Aquelle que comer a minha carne e que beber
meu sangue, permanece em mim, e eu n’elle... Como o
Pai que me enviou é a mesma vida, e como por elle
tenho a vida, assim aquelle que me come terá a vida
por mim. —Esta palavra é muito dura, quem poderá
ouvil-a? Muitos retiraram-se. e não mais o seguiram.
— Jesus disse então aos doze: E vós? Querereis tam­
bém abandonar-me ?—Senhor, exclamou Pedro, a quem
iremos nós? Vós tendes as palavras da vida eterna...
Nos acreditamos e conhecemos que sois o Christo, o
Pilho de Deus...»
Perguntamos a todo o espirito razoavel e não pre­
venido, se se tractasse não da presença real, não de co­
mer seu corpo e de beber seu sangue, mas de comraun-
gar sómente com elle por um symbolo de seu corpo e
de seu sangue, se Jesus Christo, a probidade e a ver­
dade infinita, que tinha uma sêde ardente da salvação
das almas, que chamava todos os homens a si, se não
teria apressado a dissipar o escândalo, causado por suas
affirmações, a delir a impressão revoltante de uma
manducação carnal, que todos tinham aprehendido.
Teria elle deixado escapar muitos discipulos, cujo unico
erro ou falta tinha sido tomar muito á lettra, que mata,
suas palavras mysteriosas, affastarem-se e abandona­
rem-o para sempre? Tractava-se por conseguinte n’esta
promessa da presença real, da manducação real de sua
carne espiritualisada.
Instituição da divina Eucharistia. Sabendo Jesus que
era chegada sua hora de passar d’este mundo para seu
Pai, como amasse os seus amou-os até ao extremo! Le­
vantando-se da meza, tirou seus vestidos, e tendo cin-
gido os rins com uma toalha lançou agua n’uma bacia,
e começou a lavar os pés dos apostolos. Quando aca­
bou, tornou a tomar seus vestidos, e a por-se á meza.. •
«Durante a ceia, tomou pão, abençoou-o, partiu-o e
400 OS ESPLENDORES DA FÉ

deu-o a seus discipulos dizendo: Tomai e comei, este é


o meu corpo, que será entregue por vós! Fazei isto em
minha memória... Egualmente tomando o calix, deu
graças a Deus e entregou-lho dizendo: Bebei todos
d’elle, este é o meu sangue, o sangue do Novo Testamento,
que será derramado por muitos em remissão dos pec-
oados.
Jesus Christo dissera: «O pão que eu der, é minha
carne que hei de entregar para a salvação do mundo;
aquelle que come minha carne e bebe meu sangue tem
a vida em si, porque minha carne é verdadeiramente
um alimento e meu sangue é verdadeiramente bebida.»
O que havia promettido cumpriu- o. « Tomai e comei, este
é o meu corpo! Tomai e bebei, este é o meu sangue!...»
E ’ claro que o contexto, a energia das expressões,
a clareza de cada uma das palavras tomadas separada­
mente ou em conjuncto, affastam toda a ideia, toda a
possibilidade de allusão a uma metaphora, a um sym-
bolo, a uma figura, a uma imagem sem a realidade.
Melanchton dizia: «Estas palavras são fulminantes de
clareza! O espirito subjugado nada tem a objectar-
lhes!»
S. Paulo recebeu do proprio Jesus Christo a se­
guinte revelação: «Na mesma noite em que devia ser
entregue tomou o pão, partiu-o, e dando graças a Deus,
disse a seus discipulos: Tomai e comei, este é o meu
corpo, que será entregue por vós!... Este calix é a
nova alliança em meu sangue... Todas as vezes que co­
merdes este pão e beberdes este calix, annunciaes a
morte do Senhor. Todo aquelle que comer este pão e
que beber este calix indignamente, será reo da profa­
nação do corpo e sangue de Jesus Christo:... come e
bebe sua própria condemnação não discriminando o
corpo do Senhor.»
Taes palavras não tem sentido se a Eucharistia não
é uma realidade viva e divina. Eis porque o Evangelho
CORPO E SANGUE DE JESUS CHRISTO 401

e S. Paulo foram assim interpretados por toda a tradi­


ção e pela Santa Egreja catholica, apostólica, romana,
reunida em concilios geraes ou particulares, a quem
pertence exclusivamente definir o verdadeiro sentido
das Escripturas e da tradição.
O concilio de Reims, no xi século, impoz a Beran-
ger, que foi o primeiro a infirmar o dogma da presença
real, esta formula de fé: «Creio de coração e confesso
de bocca que por força das palavras da consagração,
o pão e o vinho que repousam sobre o altar são con­
vertidos substancíalmente na carne própria e vivificante
e no sangue de Jesus Christo. Creio que depois da con­
sagração é o verdadeiro corpo de Jesus Christo, nascido
da Virgem Maria, offerecido sobre a cruz para a salva­
ção do mundo, e assentado á direita do Padre; que é
seu verdadeiro sangue que de seu lado correu; e que
todos estes mysterios não são sómente signaes, mas que
existem em propriedade de natureza e em verdade de
substancia.» E o sagrado concilio de Trento: «Se al­
guém negar que no Sacramento da Eucharistia estão
contidos verdadeira, real, e substancialmente, o corpo
e sangue de Jesus Christo com sua alma e divindade...
Se alguém pretender que n’este sacramento o Salvador
está sómente como n’um signal, n’uma figura, ou por
effeitos maravilhosos, seja anathematizado!» (Sessão
x iii , cap. x iv , decreto 1.)
O dogma da presença real, dizia Leibnitz embora
protestante, foi recebido de toda a antiguidade christã.
A’ excepção dos reformados, a unanimidade das egre-
jas é tal sobre este ponto, e tão perfeitamente estabele­
cida, ou antes affirmada, que nunca se poderá demons­
trar nada contra esta especie de verdades!
E como admittir que durante quinze séculos os
maiores sanctos, os mais sábios doutores hajam po­
dido devanear em ponto tão capital, e adoptar cren­
ças tão monstruosas! Porque se a Eucharistia não é
vol iv 36
402 OS ESPLENDORES DA FÈ

uma verdade, é a mais grosseira das idolatrias, o mais


vergonhoso dos fetichismos. «Pretender que os Apos-
tolos, os Ambrosio, os Agostinho, os Gregorio, os João
Chrysostomo, os Thomaz d’Aquino, os Francisco de Sa­
les, os Bossuet. os Fenelon, se teem tão mdecentemente
illudido, seria equivalentemente abjurar o christianismo
e pretender que a humanidade haja sido o titere, na se­
rie dos séculos, do mais estupendo gracejo. Que argu­
mentação, por outra parte, poderia produzir sobre um
espirito não obcecado pela incredulidade, um effeito
comparável ao do espectáculo de um milhão de ponti-
fices sábios e veneráveis, de padres instruídos e piedo­
sos, que prostrando-se todas as manhãs de joelhos, ele­
vam para o ceo, nas mãos puras, em um sentimento
profundo de adoração e amor, a hóstia e o calix que as
palavras sacrosanctas tem consagrado !
Mostremos agora quão grande é o accordo dos da­
dos da sciencia a mais adeantada com os dados e as
exigências euçharisticas.
1. ° Essência da matéria. Já provámos á sociedade:
que quanto maiores são os progressos das sciencias do
raciocínio e da observação, mais propendem invencivel­
mente para inculcar que a matéria, debaixo de qual­
quer forma que nos apareça, se reduz em ultima ana-
lyse, por toda a parte e sempre, a átomos ou a pontos
inextensos, a monadas sem dimensões, perfeitamente
idênticas umas ás outras, inertes, i é, incapazes quer de
se darem a si mesmas o movimento, quer de o perde­
rem quando o hajam recebido.
2. ° A essencia ou a substancia dos corpos. Devemos
distinguir na matéria e nos corpos tres cousas: o atomo
ou átomos; a molécula simples, ou substancia dos cor­
pos simples; a molécula composta ou substancia dos
corpos compostos, formada da combinação de duas ou
mais moléculas de corpos simples. Posto isto, a sub­
stancia de um corpo qualquer, o que é tal que quando
CORPO E SANGUE DE JESUS CHRISTO 403

se tem, se tem o corpo, que quando se tem só em parte,


nào se tem já o corpo, é a molécula, resultado da combi­
nação de um certo numero de átomos, se se tracta de um
corpo simples, de moléculas simples ou grupos de mo­
léculas simples, se se tracta de um corpo composto.
Admittimos que a molécula ou substancia dos corpos
simples, dos elementos, é no dizer de Herschell, um ar­
tigo manufacturado, uma verdadeira creação divina.
Admittimos também com a Escola que é constituída
por duas cousas, sua Matéria, os átomos de que é com­
posta, que por si a deixariam indeterminada, e sua
Forma, um quid analogo aos espíritos que a determina,
a limita, a faz subsistir por si, que lhe dá o supporte.
A molécula ou substancia dos corpos compostos é o re­
sultado, o producto, da combinação dos corpos simples
debaixo da acção ou jogo das forças da natureza. E’
também constituída por sua matéria que outra cousa
não é senão a dos componentes, e por sua forma par­
ticular, individual.
A Escola thomista pensa que no acto da combina­
ção as moléculas simples perdem sua forma simples e
individual. A Escola scotista admitte que as moléculas
simples conservam sua forma própria e individual em­
bora informadas em seu conjuncto pela forma própria
do composto. São prováveis um e outro systema; mas
o segundo é talvez mais provável, mais harmonico com
os dados das sciencias modernas que tendem a inculcar
que as moléculas componentes conservam na combina­
ção sua individualidade e suas propriedades essenciaes.
Deverá admittir-se alem d’isso que os átomos ou as
moléculas dos corpos tem uma certa actividade, ou que
são o que Faraday denominava centros de força P Não
me parece ; admitto sem repugnância que todos os phe-
nomenos da natureza inorgânica se explicam pela ma­
téria e o movimento ou a matéria em movimento. Em
todo o caso a sciencia moderna é unanime em admittir
404 OS ESPLENDORES DA FÉ

com Dumas esta proposição geral: podemos considerar


todos os phenomenos physicos e chimicos como devi­
dos á acção de certas forças, aplicadas a mover molé­
culas de matéria inerte por si mesma.
A molécula ou a substancia do corpo não é de
modo algum o que nos aparece no corpo, não é a ex­
tensão ou o volume, não é a cor, não é o gosto, etc.
A molécula d’agua ou a substancia d’agua não
muda de modo algum com o estado d'agua, é a mes­
ma n’agua solida ou no gelo, n’agua liquida, n’agua no
estado gazoso. A molécula tem extensão, volume, mas
este volume é extremamente pequeno, muito abaixo de
tudo o que possamos imaginar. Muitos sábios creem ter
provado que o numero de moléculas contidas em um
millimetro cúbico d’agua, é expresso por um numero
maior do que a unidade seguida de vinte zeros! Mas
por pequeno que seja o volume da molécula, em razão
da inextensão absoluta das monadas ou átomos, pode
não obstante dar logar em caso de concentração mys-
teriosa aos innumeraveis átomos ou moléculas de um
corpo qualquer, ou mesmo aos átomos e ás moléculas
em numero indefinidamente grande de todo o mundo.
0 continuo, essencialmente extenso, não é impossí­
vel, ideal ou abstractivamente fallando, n’este sentido,
que é sómente divisível ao infinito ou ao indefinido, e
não composto de partes actualmente separadas em nu­
mero infinito, o que seria absurdo. Mas o continuo não
passa realmente de um ente de razão como a linha, a
superfície, o volume geométrico, como o tempo e o es­
paço e sempre entendi que Deus o não pode crear.
Com effeito, se Deus o creasse, Deus estaria no
continuo; ora não pode estar no continuo sem ser elle
proprio continuo e composto de partes distinctas. Só­
mente pode e deve affirmar-se que o continuo está vir­
tualmente na simplicidade divina, como ò tempo na
eternidade divina, como o espaço na immensidade di-
CORPO E SANGUE DE JESUS CHRISTO 405

vina. E como o continuo, se fosse a essencia da matéria (


constituiría uma objecção insolúvel contra o mysterio
da presença real, força é que a sciencia o desconfesse
e se desarme. Se a matéria se reduz em ultima analyse
a pontos physicos, rnonadas sem extensão, nada obsta
a que se não possa conceber que um corpo qualquer,
ou mesmo o conjuncto de todos os corpos, a matéria
de todo o universo seja por um acto da divina vontade
concentrada em um espaço tão pequeno quanto se
queira, ou mesmo em um ponto indivisível, como ella
o é substancialmente, porem real e eminentemente em
Deus.
In ipso sumus.
3. ° Essência ou substancia de um corpo organisaâo.
Se se tracta de um corpo organisado e vivo, do corpo
humano, por exemplo, sua substancia formada de mo­
léculas e em ultima analyse de átomos, deve ser sem­
pre definida, o que é tal que quando se tem ou conce­
be, se tem ou concebe o corpo organisado; que quando
se não tem realmente ou pelo pensamento senão em
parte, se não tem já o corpo organisado. Que é real­
mente essa substancia ou essencia do corpo humano ?
Qual é sua constituição intima, qual é seu volume ou
extensão ? Só Deus o sabe!
Talvez, já algures o deixámos dicto, que toda a
realidade do corpo humano preexistisse no germen vi­
vo que a alma veiu informar. Oppor, em vista do que
precede, o volume do corpo de Jesus Christo a sua pre­
sença real no lugar occupado por uma molécula de
pão, é mentir á sciencia verdadeira ou adquirida, ou
pelo menos é abusar da sciencia e tirar argumento do
que ella ignora.
4. ° Os diversos estados de um corpo. Os estados de
um corpo qualquer da natureza são multiplices. Quasi
todos os corpos podem passar alternativamente ao es­
tado solido ao liquido ou gazoso, ou vice-versa. O corpo
406 OS ESPLENDÜKES DA EE

organisado ou vivo está primeiramente no estado de


germen ou de embryão; desenvolve-se em seguida de­
baixo da acção ou direcção do ser simples que o in­
forma e o faz subsistir pela adjuncção de partes ou
moléculas adventicias, que se succedem e substituem
constantemente, sem que o corpo perca um instante
sua identidade, ou o que constitue sua substancia pró­
pria ou individual. Mais tarde virá a ser um cada ver
inanimado, depois entrará em decomposição, e enfim
cinza e pó. Se se tracta do corpo humano, a tradição
e a revelação dizem-nos que não acaba ali sua evolu­
ção. Jesus Ohristo prometteu-nos a resurreição no ul­
timo dia, e a sua é penhor seguro da nossa. O corpo
ue Jesus Christo resuscitado, typo do que hão de ser
os nossos, está d’algum modo espiritualisado, pois pe­
netra atravez dos corpos impenetráveis ao ar e á luz!
E no entanto, quando quere, torna a assumir os acci-
dentes dos corpos vivos. Jesus Ohristo resuscitado co­
mia com seus apostolos mel e peixe; mostrava a S.
Thomé as chagas de suas mãos e de seu lado e convi­
dava-o a que as tocasse com os dedos e a mão. S.
Paulo directamente inspirado por Jesus Christo, diz-
nos a seu turno: «Todos havemos de resuscitar! .. O
corpo é semeado na corrupção, mas resuscitará na in­
corruptibilidade; é semeado na abjecção, mas resusci­
tará na gloria; é semeado na fraqueza, mas resuscitará
no vigor; é semeado animal, mas resuscitará espiri­
tual.» As propriedades ineffaveis d'este corpo espiritua­
lisado serão a impassibilidade, a subtileza, a agilidade,
a claridade, etc.
Posto isto, a fé ensina-nos que o corpo de Jesus
Christo está presente na sancta Eucharistia real e
substancialmente, mui provavelmente debaixo de cada
molécula do pão e do vinho, não á maneira própria
dos corpos, com seu volume, seu peso, seus accidentes
ou propriedades naturaes, mas incorporalmente, á ma-
COEPO E SANGUE DE JESUS CHRISTO 407

neira dos espíritos, por sua substancia, pelo agregado


de átomos ou moléculas que constituem a substancia
do corpo glorificado. Embora condensados debaixo do
volume de uma molécula de pão ou de vinho, os áto­
mos ou as moléculas do corpo glorioso de Jesus Christo
ficam distinctos uns dos outros, não soffrem confusão j
constituem seu corpo verdadeiro com seu sangue, alma
e divindade.
5. * Os accidentes do corpo. Por isso mesmo que a
substancia do corpo consiste essencialmente no agre­
gado de seus átomos constituintes, a extensão não é
essencial, como o não são também as propriedades
physicas, chimicas, organolepticas etc. O maior numero
de sábios admitte hoje quu os effeitos, exercidos pelos
corpos em nossos sentidos, tem sua explicação suffi-
ciente na hypothese de que os átomos ou as moléculas
dos corpos são centros inextensos de força ou acção a
distancia; ou ainda, nos movimentos, de que estes áto­
mos ou moléculas são primitivamente dotados ou acci-
dentalmente animados. A extensão resultaria da dis­
tancia entre os centros de força, inextensos e activos
(ao menos pelo movimento que é para elles uma se­
gunda essencia).
A impenetrabilidade teria sua razão de ser na rea-
cção opposta pelos centros de forças aos átomos ou ás
moléculas que tendem a aproximar-se d’elles. Se em
contrario das douctrinas scientificas actualmente rece­
bidas, os átomos e as moléculas dos corpos fossem es­
sencialmente extensos, ou formassem núcleos contínuos,
sua divisibilidade seria necessariamente infinita, sua im­
penetrabilidade absoluta, sua condensabilidade nulla,
emtal caso o dogma da presença real levantaria obje-
cções muito mais graves; d’onde se infere que a scien-
cia moderna está completamente de accordo com a fé.
6. ° Transubstanciação. E’ de fé na Eucharistia que a
substancia do pão e a snbstancia do vinho se mudam
408 OS ESPLENDORES DÁ FÉ

na substancia do corpo e do sangue de Jesus Christo,


e que depois da consagração nada resta das especies
ou substancias do pão e do vinho senão accidentes ou
aparências. Este dogma tão mysterioso está claramente
definido no canon n, sessão xxm do concilio de Trento:
«Se alguém disser que no SS. Sacramento da Eucharis-
tia a substancia do pão e do vinho fica junctamente
com o corpo e o sangue de Jesus Christo Nosso Senhor,
e negar esta admiravel e singular conversão de toda a
substancia de pão no corpo, de toda a substancia do
vinho no sangue de Jesus Christo, ficando apenas as es­
pecies, accidentes ou aparências do pão e do vinho, a
qual conversão a Egreja catholica apellida com o nome
muito proprio de transubstanciação; seja anathemati-
zado!» Só pois a substancia do pão e a do vinho se mu­
dam na substancia do corpo e do sangue de Jesus
Christo. Só pois a substancia do corpo e do sangue do
Salvador e não as dimensões d'este corpo e d’este san­
gue nem seus accidentes ou aparências estão presentes
debaixo das aparências ou accidentes do pão e do vi­
nho.
O corpo e o sangue de. Jesus Christo estão onde
estavam a substancia do pão e a substancia do vinho,
i é, debaixo de cada molécula de pão e de vinho tran-
substanciada. E ainda que todos os átomos componen­
tes do corpo de Jesus Christo estejam reunidos n’um
espaço quasi indivisivel, ahi estão sem confusão, perfei-
tamente distinctos e separados uns dos outros. Se toda e
qualquer comparação não fosse defeituosa, debaixo de
certos respeitos, diriamos que estão ali como toda a
superfície do sol com seus accidentes, manchas, faculas,
grânulos, calor e luz, está presente no íoco infinita­
mente pequeno de uma lenta amplificadora; como uma
paizagem immensa, com todos os seus accidentes e por­
menores é reproduzida nitida e distinctamente na ima­
gem photo-microseopica, onde uma lupa forte nol-os
CORPO E SANGUE DE JESUS CHRISTO 409

mostra em toda a harmonia. E visto que, diz S. Tho-


maz, quando diversas cousas estão estreita e indivisivel-
mente unidas, onde umas se encontram devem estar as
outras, o corpo, o sangue, a alma, a divindade de J e ­
sus Christo vivo no céo, encontram-se ao mesmo tempo
e por concomitância debaixo de cada molécula de pão
ou de vinho transubstanciada.
Bossuet disse em termos grandiloquos: «Jesus
Christo na Eucharistia é tão idêntico ao corpo humano
por sua substancia e tão dissimelhante por suas quali­
dades, que se pode dizer que é o mesmo e que não é o
mesmo a diversos respeitos; que n'um sentido, e não
attendendo senão á substancia, é o mesmo corpo de
Jesus Christo nascido de Maria; mas que n’outro sen­
tido, e attendendo só aos modos, é outro, tal como se
fez elle mesmo por sua palavra.»
Não ha que duvidar, o dogma da unidade da ma­
téria de todos os corpos do universo, da identidade in­
trínseca dos átomos ou últimos elementos inextensos,
nos quaes se decompõem, é um passo immenso para o
mysterio da transubstanciação.
7.° A multilocação. Não ha evidentemente nem con-
tradicção em affirmar que o corpo de Jesus Christo
está ao mesmo tempo presente no ceo e em todas a.s
hóstias consagradas, do que em affirmar que Jesus
Christo está todo debaixo de cada uma das moléculas
de uma hóstia consagrada. O logar é um ente de razão
que não tem realidade virtual senão na immensidade
divina, e realidade actual senão no corpo que o occu-
pa. Porque razão Deus que está presente em todos os
logares não podería crear no logar A. o ser que já creou
ou que ha de crear no logar B ? Porque razão não po­
derá participar seu ser ao mesmo tempo, da mesma
maneira, no mesmo grau, em muitos logares A e B ?
O logar A não cessará de ser distincto do logar
distante B, ainda mesmo que estes dois logares fossem
410 OS ESPLENDORES DA FÉ

occupados pela presença de um mesmo corpo. Já fica


estabelecido que o ser infinitamente perfeito deve pos­
suir todas as perfeições aperfeiçoantes dos seres reaes
ou mesmo moraes, como a auctoridade.
Ora é da essencia da auctoridade fazer-se partici­
par onde quer, crear onde lhe aprouver governadores,
administradores, juizes, etc., multilocar-se n’uma pala­
vra : logo Deus com maioria de razão deve ter o poder
da multilocação de suas creaturas.
A transubstanciação é uma especie de creação;
toda a tradição compara as palavras da consagração
ao fiat lux creador; nada pois obsta a que operem a
multilocação. como o faria a creação, se Deus o qui-
zesse.
Os annaes da Egreja offerecem-nos exemplos de fa­
ctos certos de multilocação. S. Francisco Xavier livra
ao mesmo tempo do naufragio, da fome e da sede as
equipagens de dois navios mui distantes um do outro.
Em tempos, proximos de nós, quasi contemporâneos, S.
Affonso de Ligorio esteve presente ao mesmo tempo
em uma cadeira do paço episcopal, e á cabeceira do
papa Clemente xiv, a quem assistiu na agonia.
Concluamos: longe de affrontar a razão, o myste-
rio da divina Eucharistia, pelo contrario completa-a,
revelando-nos muitas propriedades da matéria e dos
corpos, quer naturaes quer sobrenaturaes, que podem
ser-lhe miraculosamente communicadas.
E já que invocamos o milagre, acrescentaremos que
a historia ecclesiastica está cheia de milagres, que at-
testam a presença real de Jesus Christo debaixo das
sagradas especies: ciborios ou custodias suspensas no
ar; e Jesus Menino mostrando-se visivel no meio da
hóstia; hóstias tornadas incorruptíveis ou incombustí­
veis; gotas de sangue correndo de uma hóstia atassa-
lhada, etc., etc. Uma especie de milagre em favor da
presença real é que os mais impios intimados em prova
CORPO E SANGUE DE JESUS CHRISTO 411

de sua incredulidade a calcar aos pés a sancta hóstia


ou a derramar o sangue do calix, offereeem uma resis­
tência obstinada a fazei-o. Creem, mau grado seu, e a
Magestade de Deus occulto debaixo das aparências eu-
charisticas fal-os tremer!
E’ que de facto a Eucharistia é em si um milagre
extraordinário, continuação ou renovação da Incarna-
ção e da Redempção, o sobrenatural em seu supremo
poder, o compêndio em summa de todos os mysterios e
de todos os milagres; domina todo o christianismo, é o
sol da Revelação.
Mgr. Landriot em sua excellente obra, a Eucharis-
tia, pag. 202, diz admiravelmente: « Que prazer para
mim ver o Verbo de Deus, planeando sobre toda a
creação, banhando todos os seres como fluido gerador
e omnipotente, com a faculdade não só de crear, mas
de modificar, de mudar, de transformar, de multilocar
todas as substancias, todos os seres que tem na mão,
como um physico omnipotente que tivesse um direito
illimitado de vida, de morte, de mutação sobre todos
os elementos submettidos a sua acção soberana!
Quando me propondes d’essas pequenas objecções
de uma razão apoucada, parece-me ver uma creança
que dispõe sobre a areia não sei que castello de cartas,
e que ordena ao mar que não passasse alem, quando
elle se approxima bello. magestoso, em toda a pleni­
tude de sua força, elevado como se fôra uma serra
fluctuante e marchando como um exercito que não
sabe recuar.»
CAPITULO TRIGÉSIMO SEGUNDO

Accordo da liberdade com o concurso divino, natural


e sobrenatural, a presciencia divina, a graça e a
predestinação.

Ser livre é querer uma cousa com o poder de a


nao querer.. , a faculdade de escolher entre isto e
aquillo, de se determinar por isto ou aquillo, apoz deli­
beração ... Eis porque nós a denominamos livre arbí­
trio : sua essencia é a eleição. Que o homem delibera,
escolhe e se determina, é senhor de suas acções, é o
que a revelação nos ensina de maneira precisa. Mesmo
depois da queda dizia Deus a Cain: «Tuas inclinações
te ficarão sujeitas, e poderás sempre dominal-as.» (Gen.
iv, 3.) Quando Moysés acabava de intimar ao povo he-
breu a vontade de Deus, dizia-lhe: «A lei que vos im-
ponho, nem está acima de vós, nem longe de vós. Está
perto de vós, está na vossa bocca, em vosso coração,
afim de que a cumprais. •. Chamo o ceo e a terra por
testimunhas em como vos propuz o bem ou o mal, as
bênçãos ou as maldições, a vida ou a morte.. Esco-
ACCORDO DA LIBERDADE 413

lhei portanto a vida.» (Deuter., xxx). O auctor do, Ec-


clesiastico diz a seu turno (xvm, 14:) «Desde o princi­
pio creou Deus o homem, e lhe poz nas mãos sua con-
ducta. O homem tem diante de si o bem ou o mal, a
vida ou a morte; o que escolher, isso terá.» Todas as
paginas das sanctas Escripturas, do Antigo e do Novo
Testamento, proclamam altamente que o homem é li­
vre. Vemos continuamente Deus queixar-se de seu
abandono e de suas revoltas, increpar-lhe as resistên­
cias a suas vontades, dirigir-lhe ternos convites, fazer-
lhe propostas de vida ou de morte, ameaças de casti­
gos ou promessas de recompensa, etc., etc. Para que
tudo isto, se não temos a escolha e a liberdade de nos­
sas acções?
A tradição e os Concilios sempre ensinaram que a
vontade fica livre, perfeitamente livre, em face da pre-
sciencia divina ou da predestinação, debaixo da in­
fluencia da acção divina, sem a qual não haveria acção
humana, debaixo da influencia da acção sobrenatural
da graça, etc. E tudo depois como antes da queda de
Adão. «Seja anathematizado todo aquelle que disser
que o livre arbítrio do homem foi extincto e se perdeu
com o peccado de Adão, e que não passa de um vão
nome, uma ficção introduzida naEgreja por Satanaz!»
(Concilio de Irento, sessão iv, Canon v.) «Seja anathe­
matizado todo aquelle que disser que o livre arbítrio
do homem, movido e excitado por Deus, em nada
coopera consentindo na graça que o excita e chama,
que não pode recusar seu consentimento se o quizer,
mas que á semelhança de um ser inanimado, nada
absolutamente faz, e é totalmente passivo.» (Canon xx.)
«Anathema contra todo aquelle que disser que não está
no poder do homem tornar suas vias más, mas que Deus
opera o mal e o bem, não só permittindo-o, mas real­
mente e por si mesmo, de tal sorte que a traição de
414 OS ESPLENDORES DA FÉ

Judas é tanto obra sua como a vocação de Paulo; seja


anathematizado b (Canon vi.)
O testiinunho da razão é forçosamente conforme
com o da Bscriptura, da tradição e dos Concilios; aqui
não se tracta de uma d’essas verdades inaccessiveis, a
respeito das quaes devamos ater-nos á palavra de Deus!
Consultai vossa natureza, invocai vossa experiencia,
de um e outro lado ouvireis a mesma resposta: somos
livres! .. Se o não fossemos, pensariamos todos nas
mesmas circunstancias de egual modo, e por uma con­
sequência inevitável, obrariamos todos da mesma ma­
neira. Ora tal não ha. O livre arbitrio descobre-se no
estudo de nossas faculdades, e sente-se em todas as nos­
sas acções. Sente-se ainda depois da acção, quando
nossa alma está altiva e contente do bem que practi-
cou, confusa ou tremendo pelo mal de que não soube
precatar-se.
O logar que occupa a liberdade humana em as
crenças, as preoccupações, a linguagem, o respeito de
todo o genero humano, basta para nol-a tornar venerá­
vel e sagrada. Supprimi o livre arbitrio, tudo se volve
inextricavel, ridículo, odioso, na vida theorica e pra-
ctica dos povos. Tentai explicar sem elle a historia e
os monumentos, os louvores enthusiastas, os vituperios
indignados, escriptos ou gravados... não o poderieis fa­
zer ... Querer o que se poderia não querer, não querer
o que se poderia querer, a virtude e a gloria, o crime e
a vergonha .• tudo isso é ella! .. 8e o homem obedece
á fatalidade, nada mais odioso que a pompa indigna e
hypocrita de que o rodeiam para lhe imputarem seu
crime ou sua virtude, para o recompensarem ou o cas­
tigarem.
Já atraz vimos no tomo n, o que a falsa sciencia
oppõe a esta douctrina do bom senso, do senso com-
mum e da fé !
ACCORDO DA LIBERDADE 415

A duvida em theoria, mas a tolerância na practica;


uma negação brutal, a affirmação insensata da necessi­
dade absoluta dos actos humanos; um determinismo
cego das intelligencias individuaes e nacionaes...
A liberdade humana em todas as condições da vida,
em face da presciencia divina, debaixo da acção e do
governo soberano de Deus, debaixo da influencia ornni-
potente da graça, debaixo do peso esmagador da pre­
destinação, é por conseguinte um dado certo, o conhe­
cido, na sua mais elevada significação, impossivel de ne­
gar sem critne ou demencia.
O desconhecido, pelo contrario, e o mysterio, é o
como do accordo do livre arbítrio com a presciencia
divina, o governo divino, a graça, a predestinação, etc,,
que são á sua parte verdades certamente conhecidas. E
aquillo, a que a razão nos obriga, é a concluir da co­
existência d’estas duas ordens de verdades certas para
seu accordo pleno e inteiro, ainda mesmo que este ac­
cordo ou o como d’este accordo ficassem inaccessiveis
a nossa intelligencia.
«A primeira regra de nossa lógica, diz Bossuet, é
nunca abandonar verdades conhecidas, sejam quaes fo­
rem as difficuldades que sobrevenham para as conciliar;
devem se pelo contrario conservar sempre com firmeza
as duas extremidades da cadeia, embora se não veja
sempre o meio, por onde o encadeiamento prosegue..
(Tratado do livre arbítrio, cap. iv.)
Que admiravel linguagem esta! tem sido sempre a
minha norma. Ora de um lado temos na mão os do­
gmas da soberania divina, da presciencia divina, da ne­
cessidade e efficacia da graça; do outro o dogma do li­
vre arbítrio. E’ possível que o nó invisível que une as
duas cousas não seja bem dado pelas opiniões, mas es­
tai certos de que o laço está bem dado...
Resta provar que a razão esclarecida pela fé der­
rama bastante luz sobre estas questões mysteriosas
416 OS ESPLENDORES DA FÉ

para fazer desaparecer toda a sombra de contradi-


cção.
l.° O livre arbítrio e o governo ou concurso divino. E ’
mister acreditar que Deus que nos deu o ser, em
quem estamos, nos movemos, e vivemos, que não pode
ficar inactivo nas determinações livres de nossa von­
tade.
Seria fóra de toda a razão, diz Bossuet, attribuir-
lhe o que vale menos, o ser, e tirar-lhe o que vale mais,
o bem estar e o bem viver. Sua soberania exerce-se
pois sobre nossas decisões ao mesmo tempo que as di­
rige ou provoca por sua lei. Assim é que a Escriptura
não receia dizer que Deus opera em nós o querer e o
perfazer. (Phil. n, 13.) Advirta-se porem que esta ope­
ração de Deus sobre um ser livre não é a mesma que
sobre um ser puramente passivo; que ella se propor­
ciona á nossa natureza e deixa intacta nossa liberdade.
Como ? Alguns pretendem que Deus se contenta com
um concurso geral, concurso aplicado simultaneamente
a todos os seres. Cada qual, operando, particularisa-o
e determina-o segundo sua natureza, de tal sorte que
o acto produzido é o ac to de Deus, ao mesmo tempo
que é o acto do homem. Este concurso seria como o
do vapor sahindo do gerador e indo animar toda a
classe de motores; ou como a irradiação solar que a
todos os seres eommunica as condições de existência.
Como todo o agente, a liberdade toma sua parte de
concurso divino, apropria essa parte, e determina esse
concurso. Um tal concurso reduzir-se-hia por intermé­
dio da liberdade a isto, a saber, que Deus quer de toda
a eternidade practicar por meio d’ella o acto que ella
mesma ha de querer produzir espontaneamente. Aqui
nada ha difficil de conceber. N’este systema, o concurso
divino nada tem que esteja em contradição com a liber­
dade ; mas não amesquinhará a soberania absoluta de
Deus; não deveremos ir um pouco mais alem ?
ACOORDO DA LIBERDADE 417

Não estamos nós todos os dias a ser testimunhas


do facto da palavra humana pela persuasão que exerce
adquirir uma influencia directa sobre nossas determi­
nações, permanecendo no entanto livres? Ella move
milhares de almas a dizerem não só creio, mas quero e
quero livremente... Ora se o homem tem o poder de
persuadir, inundando-nos subitamente de uma viva luz,
communicando-nos sentimentos imperiosos de alegria,
de tristeza, de temor, de amor; exercendo sobre nós
uma attracção irresistivel que leva o coração a gritar
Rabboni, meu m estre... como recusaremos um tal po­
der a Deus?
Analysando a persuasão no seu maior auge, encon­
tramos-lhe dois actos distinctos: o acto de uma força
que provoca uma determinação de liberdade, e o acto
da liberdade que se determ ina... E ’ o eu que cede á
persuasão, é o eu que faz sua efficacia... D’onde se se­
gue que Deus, se sua soberania se reduzisse a persua­
dir, não seria tão senhor como pode e deve sel-o. Uma
grande escola, a escola thomista, ciosa ao excesso das
prerogativas divinas, quer que a soberania absoluta de
Deus consista em elle ser rigorosamente causa primeira
de todas as cousas; que a determinação eflicaz a tal ou
tal acção não possa ter logar senão por virtude su a...
Esta virtude fazem-na sim consistir no decreto eterno
e infallivel, pelo qual Deus quere e predetermina cada
um de nossos actos; outros em uma especie de myste-
rioso toque que dá o impulso a nossa actividade e a
toma eflicaz.
E não haja sustos por causa d’esta acção directa,
pois Deus faz em nós o acto e o modo do acto; faz
que obremos e obremos livremente; faz que tomemos
uma determinação e que esta determinação seja nossa
própria determinação. E accrescenta S. Thomaz, este
concurso directo não faz de maneira alguma pesar so-
voi. iv 37
418 OS ESPLENDOKES DA FE

bre Deus a responsabilidade de nossas más acções, por­


que não é a Deus, causa primeira e indefectível de
meus actos, mas ao meu livre arbítrio deficiente que
se deve attribuir meu peccado. Deus não é responsável
senão pelo que ha de bom no acto material do pecca­
do, do mal moral tenho eu toda a responsabilidade.
Em resumo, d’estas tres opiniões tão differentes so­
bre o concurso divino, principalmente as duas primei­
ras salvam sufficientemente a honra de Deus e a honra
da liberdade. A honra de Deus que fica senhor abso­
luto de todas as cousas, que nos tem em uma completa
dependencia, de quem todos recebemos tudo, sem re­
ceber de nós cousa alguma. A honra de nossa liberda­
de, porque ficamos senhores de nossas deliberações, es­
colhas e decisões, porque a vontade movida por Deus
permanece uma força activa que efficazmente coopera,
e não um instrumento inanimado e puramente pas­
sivo.
2.° A liberdade e a presciencia divina. E' infinita­
mente provável que em Deus e para Deus não haja
nenhuma successão, nem passado, nem futuro, mas um
presente eterno; que vê, comprehende e quere tudo o
que tem sido, é ou será por um só acto; que não haja
n’elle presciencia, mas sómente sciencia, como dizia S.
Agostinho: Res non sunt in eo (Deo) futurae, sed praesen-
tes, ac per lioc non jam prrescientia, sed tantum scientia dici
potest. ■
N’estas condições evidentemente a lucta entre a
presciencia e a liberdade não existe... O homem não
opera, porque Deus o vê operar; mas Deus vê o ho­
mem obrando livremente porque obra de facto livre­
mente.
Deus não faz as cousas vendo-as, mas vê-as feitas.
Pretende-se, o que é impossível, que haja para Deus
duração successiva, presente, passado e futuro, e por-
ACCORDO DA LIBERDADE 419

tanto presciencia; esta presciencia, embora eterna, não


pode ser um obstáculo á nossa liberdade, porque é evi­
dentemente não o principio, mas a consequência dos
nossos actos.
jSão é porque nossas acções hajam sido previstas
como futuras que nós as fazemos, é pelo contrario por­
que devemos fazel-as que Deus as viu como futuras.
Deus faz tanto uma cousa quando prevê que se fará,
como se a visse fazer.
Vejo um navio caminhar a velas cheias para um
escolho, onde vai despedaçar-se; de certo não foi
por eu o ter visto ou previsto que elle se perdeu, vi-o-
sim perdido porque ia perder-se. A.presciencia divina,
embora infallivel, e infinitamente mais perfeita que a
do homem, também não influe mais sobre nossa deter­
minação, do que o acto pelo qual se vê infallivelmente o-
navio correr a despedaçar-se no recife. A previsão ou
a visão não muda a natureza de nossos actos. E’ bem
verdade que tudo quanto Deus previu ha de acontecer,
mas ha de acontecer da maneira que Deus previu. O
que previu que devia acontecer necessariamente, ha
de necessariamente acontecer; e o que previu que de­
via acontecer livremente, livremente ha de aconte­
cer.
A liberdade e a graça. A doutrina catholica sobre a
graça resume-se nas seguintes proposições que são ver­
dades de fé.
Deus quero por uma vontade antecedente, séria,
sincera e activa a salvação de todos os homens. Os ho­
mens a quem Deus quere salvar, não os abandona a si
mesmos, porque o fim a que os chama é própria e abso­
lutamente sobrenatural. O meio proporcionado a este
fim, a graça debaixo de suas formas diversas, não per­
tence á ordem da natureza.
A graça com a qual o homem coopera, chama-se
420 OS ESPLENOOKES O A EH

graça efficaz, porque obtem seu effeito; mas o livre ar­


bítrio debaixo de sua influencia não é um instrumento
puramente passivo; opera por uma acção própria, e se
de íacto não resiste, conserva o poder real de resistir;
as obras de salvação por conseguinte são imputaveis á
liberdade, e aquelle que nos creou sem nós, não nos
salvará sem nós...
Alem da graça efficaz, ha uma graça verdadeira­
mente sitfficiente, que dá ao homem relativamente ás
circunstancias presentes um poder completo, apropria­
do aos actos bons que deve practicar; de sorte que
realmente esta graça, se é ineffieaz, é por culpa de nossa
vontade.
O problema a resolver na ordem theologica, o ac-
cordo do concurso da graça sobrenatural e da liberda­
de, é o mesmo que o problema a resolver na ordem
philosophica, o accordo do concurso divino e da deter­
minação hum ana... O homem não cessa de ser livre
ainda quando tem sido influenciado por fora, persua­
dido, attrahido, arrastado. Xào cessa também de ser li­
vre, porque acceita a influencia da graça, luz e força
provenientes de fóra.
Não seria desconhecer os dados da psychologia
pensar que a liberdade para ser perfeita carece de ser
subtrahida a toda a influencia, e que será tanto mais
livre, quanto for menos influenciada? Longe de se ex­
cluírem a ideia de liberdade e a ideia de uma influen­
cia exterior que a determina, ao contrario suppõem-se,
porque a liberdade, se não fosse determinada por moti­
vos de obrar, seria como uma balança sem braços, sem
ponto de apoio, sem pesos.
E que não se diga que a acção da graça, que é a
acção de Deus, é infinita e necessariamente efficaz. De
feito, como advertem S. Thomaz e S. Agostinho, a acção
de Deus humanisa-se e proporciona-se a nossa fraqueza.
ACCORPO DA LIBERDADE 421

Deus modera-a de tal sorte, que triumpha da liberda­


de com a cooperação da mesma liberdade. Não só a
graça não prejudica a liberdade, mas pelo contrario é
ella que torna a alma livre, libertando-a da escravidão.
Em consequência da queda original, a liberdade como
todas as outras faculdades, está languida e enferma: o
equilíbrio entre o bem e o mal não existe. Sem o soc-
corro da graça, só existe a liberdade do m al; a liber­
dade do bem só pode existir com a condição de que,o
soccorro da graça nos livre da tyrannia do erro, do
vicio, e dos demonios, para os quaes o homem é um
captivo fazendo-lhes todas as vontades. Aqui está o se­
gredo d’estas palavras de S. João (vm, 36): «Não so>reis
verdadeiramente livres, senão na proporção em que
vos libertar o Filho do Homem.»
Não só a graça não prejudica a liberdade, mas
aperfeiçoa-a. A liberdade de facto é o poder de adhe-
rir ao verdadeiro, ao bom e ao bello, depois de delibe­
ração e de escolha.
Seu exercicio presuppõe o exercício da intelligen-
cia, da vontade ou do amor, da imaginação, etc.; pre-
suppòe por isso mesmo a influencia de uma luz que il-
lumina, de uma força que attrahe ou impulsiona, de
uma belleza que seduz: ora a graça é a luz, a força, o
attractivo no grau o mais alto.
Em ultima analyse, na theoria de S. Agostinho, o
douctor da graça por excellencia, a acção da graça re­
duz-se á attracção exercida por uma especie de dei ei-
tação, trahit sua qttemque voluptas. Somos como o car­
neiro qué vae livremente para a pedra de sal que lhe
mostrais, ou como a creança que fica livre correndo
para as nozes que tendes na mão. A deleitação é o
grande segredo da acção divina em nossas almas, e o
nó gordio do mysterio da liberdade e da graça.
Um philosopho christão,o sr. Henrique Martin, disse
422 OS ESPLENDORES DA. FE

com aplauso: «A verdadeira noção da liberdade moral


não contradiz o principio da razão sufficiente, compre-
hendido como deve sel-o. De feito, assim como a razão
sufficiente das determinações eternas e livres da von­
tade de Deus está na conveniência de sua bondade com
a bondade divina; assim também, a razão sufficiente
das determinações livres dos seres inclinados ao mal e
sujeitos ao erro está em algum objecto apetecível, não
mettendo em conta a disposição moral, em que lhes
apraz collocarem-se livremente. A razão sufficiente
basta em philosophia, como a graça sufficiente na tlieo-
logia para tornar o acto possivel, mas não para tornar
a acção necessária.» (Vida futura. 2.a edição, pag. 368.)
A’um a palavra, a acção do concurso natural com a do
concurso sobrenatural da graça resume-se em effeitos
de illuminação, de attracção, de deleitação, os quaes
não implicam de modo algum a necessidade.
A liberdade e a predestinarão. Antes de toda e qual­
quer determinação dos acontecimentos e das cireums-
taneias, quer Deus a salvação de todos os homens. Sua
bondade chama-os em eommum amplexo á eterna feli­
cidade, e prepara-lhes os meios necessários para lá che­
gar. A graça não lhes falta; o livre arbítrio, esse sim
pode faltar. Deus preoccupa-se de modo particular de
seus escolhidos; predestinou-os, e preparou-lhes desde
antes da creação do mundo o reino que devem possuir
com elle livremente, gratuitamente. Deus não quer a
gloria sem merecimentos, e não quer os merecimentos
senão para a gloria. Em uma obra immensa como a sua,
Deus é livre em manifestar todas as suas perfeições,
sua justiça e sua misericórdia. Onde tudo é gratuito, o
bemfeitor pode sem injustiça dar a seu grado mais ou
menos, com tanto que não prive ninguém do que lhe é
devido. Nada obsta a que se admitta em Deus uma
força supercomprehensiva, por meio da qual sonda de
ACCORDO DA LIBERDADE 423

algum modo nossa liberdade, e conclue infallivelmente


as determinações que ella ha de tomar, se for collo-
cada em tal ou tal meio, e se receber do alto tal ou
tal soccorro. Esta sciencia condicional precede racio­
nalmente o livre decreto da predestinação divina.
Deus vé assim em sua presciencia infinita aquelles
que hão de usar bem de sua graça, e a estes predesti­
na-os para a gloria. A graça não se merece d’outra
sorte, é gratuita; mas a gloria merece-se pela graça, e
Deus toma em conta este mérito na ordem da predes­
tinação.
A’quelles, a quem conhece por sua presciencia,
predestinou-os a serem conformes á imagem de seu Fi­
lho. «Aquelles que predestinou, chamou-os, aquelles a
quem chamou, justificou-os; aquelles a quem justificou,
glorificcu-os.»
Presciencia, vocação, justificação, glorificação, aqui
está a ordem do decreto eterno; n’estas condições,
como é evidente, nada ha que não seja mui conforme
á razão.
Em resumo: Deus, querendo por uma vontade ge­
ral, antecedente e sincera, a salvação de todos os ho­
mens, promptifica os soccorros que deve conceder-lhes.
Sua sciencia infinita, penetrando toda a natureza, os
tempos, os logares, as circumstancias, vê aquelles que
correspondendo fielmente a sua graça, hão de merecer
a gloria, e decreta dar-lhes a graça e a gloria. Mas a
graça que concede não é uma moção directa e physica
que a alma recebe de modo que seus actos sejam por
ella determinados, é um auxilio que prevalece, um con­
curso que acompanha, deixando á liberdade pleno po­
der de deliberar, de tomar uma decisão, de se deter­
minar por si mesma a obrar... Presciencia, eleição, vo­
cação, justificação, glorificação, tudo isso é obra gra­
tuita da divina misericórdia... Accrescentemos que é
ainda Deus que em nós opera o querer e o perfazer,
424 OS ESPLENDORES DA FÈ

porque sua omnipotencia dirigida por sua sciencia me­


dia, * dispoz todas as c ousas para que nós quizessemos
e obrássemos livremente.
B não se diga que o dogma da predestinação ex­
tingue na alma humana toda a actividade fecunda de­
baixo do pretexto de que o homem que crê na predes­
tinação poderá dizer de si para comsigo: Ou sou pre­
destinado, ou não. Se sou predestinado, faça o que fizer
hei-de salvar-me! Se o não sou, faça o que fizer, hei-de
condemnar-me. Este discurso é como o do insensato
que dissesse: Ou Deus tem determinado que eu morra
hoje, ou d’aqui a vinte annos. Se decretou que hei-de

* Nem todos os leito res te rã o co n h ecim en to da id eia signiticada


p o r este, te r m o ; só p a ra estes d ire m o s q u e foi assim q u e o c e le b re
Molina d esignou em Deus o c o n h ecim en to de todos os fu tu ro s condi­
cionados, i é, d e p e n d e n te s d a d e te rm in a ç ã o das cau sas segundas. E
cham ou-lhe m e d ia , p o rq u e a collocava e n tre as d u as scien cias d e i n -
te lü g e n c ia e de v is ã o , pelas q u a e s segundo S. Thomnx Deus co n h ecia
tudo q u aid o existia ou e ra possível.
Se a cousa ex istia, ou ex istira , o u houvesse de ex istir, Deus co­
nhecia-a p o r scien cia de v is ã o ; se n u n c a houvesse de ex istir, em bora
fosse possível, então denom inava-a S. Thom az sciencia de in te llig e n -
cia. Molina porem excogitou o u tra divisão, o n d e e n tre a sciencia de
visão e de in tellig en cia m ettia a sua sciencia m edia p a ra todos a q u el-
les fu tu ro s q u e, alem de possíveis e c o n tin g en tes, d ep en d ia m d a d e te r­
m inação de u m a cau sa liv re, se se dessem taes ou taes condições.
E sta d isco rd ân cia pode p a re c e r de pouco m om ento e p ró p ria a satis­
fazer cu rio sid ad e s de escola, m as no desígnio e inten ção dos a u eto res
prefaciava os desenvolvim entos do c o m o Deus co n h ecia o univ erso
physico e m oral e tu d o q u an to n ’elle se produzisse.
O ra S. Thom az pen sav a q u e D eus via tu d o em si e nos seus d e­
creto s sem re feren cia algum a às c re a tu ra s, e p o r isso bastava-lhe a
divisão acim a in d icad a, te n d e n te só a d isc rim in a r o possível do exis­
te n te ; Molina ao co n tra rio p ro fessav a q u e D eus p o r um a m p e r e o m p r e -
h c n sã o das cau sas seg u n d as c o n h ecia os fu tu ro s co n d icio n ad o s, de
form a que o co n h ecim en to de D eus ó não só s u b j e c ti v o , m as o b je c tiv o .
P recisava p o r isso da su a scien cia m edia. O A. encosta-se nos d esen ­
volvim entos que dá n ’este p a ra a ra p h o à d o u trin a de Molina.
' N . do T.
ACCORDO DA LIBERDADE 425

morrer d’aqui a vinte annos, faça eu o que fizer, hei-de


viver até lá. Posso pois deixar de comer, viver de ar e
de tempo, atirar-me á agua, ao lume, ou pela janella
fó ra... A previsão de minha salvação, como a previsão
de minha vida ou de minha morte, presuppõe necessa­
riamente que devo empregar antes de mais nada os
meios necessários e sufficientes para segural-a.
O determinismo. Já atraz dissemos algumas palavras
da pretendida theoria mecanica do universo, formulada
n’estas celebres palavras de Laplace : «Umaintelligencia
que para um instante dado conhecesse todas as torças,
que animam a natureza, e as situações respectivas dos
seres (quer dizer, dos átomos simples que compõem o
mundo e os mundos), abraçaria em um mesmo çonjun-
cto de equações differenciaes os movimentos dos maio­
res corpos do universo, como os do mais leve átomo!
Nada para ella seria desconhecido, e o futuro como o
presente, seria sempre visivel a seus olhos!»
Deram a esta theoria o nome de determinismo, se
fosse verdadeira, tudo com effeito a cada instante esta­
ria determinado em a natureza, e a liberdade nío pas­
saria de um mero vocábulo. Vimos como o snr. Phi-
lippe Breton mostra que esta doutrina implica o phe-
norneno extremo da reversão, e conduz aos mais extra­
vagantes absurdos, suppondo mesmo que só se estende
ao mundo material, ao mundo physico inorgânico ou
orgânico.
Estamos também no direito de accrescentar que
estender esta theoria aos seres intelligentes e livres, que
ter a pretensão de comprehender nas famosas equações
differenciaes da dynatnica geral os actos dos seres do­
tados de vontade, seria o cumulo da sem-razão. Gomo
de facto por em equação o pontapé com o qual faço
desaparecer da fauna universal muitos centos de formi­
gas ou milhões de seres microscopicos? Ha no entanto
geometras ehristãos, dos quaes se citam dois muito ceie-
426 OS ESPLENDORES DA FI5

bres, o sr. de Saint-Venant, da Academia das sciencias,


e o sr. Boussinescq, professor de inathematica, na uni­
versidade de Lille, para quem o determinismo compre-
hendido dentro de certos limites, não repugna e que
chegam até a estabelecer um accordo mui sufficiente
das leis da mecanica e da liberdade dc homem em sua
acção sobre a matéria. Pode vêr-se nos Mundos, fasci-
cnlo de 22 de março de 1877: l.° como nenhuma das
tres leis geraes da mecanica : a conservação da quanti­
dade de movimento, a conservação das areas, a conser­
vação da energia, tanto potencial como actual ou cine-
tica, é violada por qualquer acto humano supposto li­
vre ; 2." como também, pela consideração das soluções
singulares das equações differenciaes, soluções que se
accrescentam ás soluções particulares que dão as inte-
graes geraes, as leis fuudamentaes do movimento se
harmonisam também com as leis particulares de inten­
sidade que parecem ligar as accelerações das molécu­
las com suas posições relativas de cada instante; 3.°
como enfim pela introducção de um principio director,
podendo arbitrariamente e por sua própria eleição, pro­
longar as suspensões de movimento, se determina sua
reiteração sem trabalho pliysico; o que é bastante para
effectuar o accordo das leis physicas com a liberdade
das acções dos espíritos. Mas é levar muito longe a
condescendência com os devaneios de uma sciencia im­
possível.
CAPITULO TRIGÉSIMO TERCEIRO

Os Espíritos

Mais um rnysterio ou uma incógnita são os espíri­


tos bons e maus, os anjos e demonios; sua existência,
sua acção physica, moral, psychica; suas relações com
o homem, etc. Todo o homem sensato que no mundo
descobre algo mais do que matéria, poderá pôr em du­
vida a existência de puros espíritos ? Elles são possíveis!
Nós concebemol-os! Nossa mesma alma é um espirito!
Porque razão pois não hão-de existir? Se existem, foram
necessariamente creados livres, porque a liberdade é da
essencia dos espirites, como a inércia é da essencia da
matéria. Se foram criados livres, e foram collocados
n’um estado de transição ou de prova, uns puderam fa­
zer bom uso de sua liberdade, e serem confirmados no
bem, taes os bons anjos ou os anjos; os outros puderam
abusar de sua liberdade, e volverem-se confirmados no
mal, são os maus anjos ou demonios.
No Antigo como em o Novo Testamento a cada
passo se deparam allusões aos bons e maus anjos; J e ­
sus Christo esteve incessantemente em contacto com
uns e outros.
428 OS ESPLENDORES DA FÉ

Repete-nos as virtudes e benefícios dos anjos; con­


ta-nos a impiedade e o castigo dos demonios; muitas
vezes acautela-nos contra sua malicia.
A tradição humana, como a tradição revelada e di­
vina, affirma a existência dos espíritos bons e maus.
Esta existência enfim é um dogma da Egreja ca-
tholica, apostólica, romana. <E’ mister crer de fé firme,
diz o quarto concilio de Latrão, que no começo dos
tempos tirou Deus do nada uma e outra creatura espiri­
tual e corporal, angélica e mundana.
Os anjos bons. Eis em breves palavras o que a Re­
velação nos ensina, e o que é razoavel acreditar. Estas
nobres intelligencias rodeavam a Magestade de Deus
quando assignava á Terra seu logar na immensidade, e
derramava a ondas a vida em seu seio. Formam in-
numeraveis phalanges, agrupadas em nove ordens ou
hierarchias: Seraphins, Cherubins, Tlmonos, Domina­
ções, Principados, Potestades, Virtudes, Archanjos e
Anjos. Com a immaterialidade, a immortalidade, e a
incorruptibilidade, os anjos receberam sua missão de
poder e de protecção sobre o mundo. As naturezas cor-
poreas e inferiores estão-lhes sujeitas em limites pres-
criptos por Deus. Presidem aos movimentos dos ceos,
dirigem o curso dos astros; imperam nos ventos e tem­
pestades: superintendem no governo dos impérios. Da­
niel falia dos anjos que presidem aos destinos dos Per­
sas, dos Gregos, dos Hebreus. As egrejas também tem
sen anjo protector, cada um de nós enfim tem um anjo
tutelar ou da guarda.
A Sagrada Escriptura mostra-nos os anjos de Deus
capazes de uma energia, e força physica considerável.
Um anjo lucta com Jacob até de manhã; não o po­
dendo vencer, toca-lhe o nervo da coxa e secca-lh’o, o
que o tornou claudicaute, facto memorável, sempre
vivo na lembrança dos hebreus.
Um anjo atravessa n'uma só noite todo o Egypto,
OS ESPÍRITOS 429

e fere todos os primogênitos do homem e dos animaes.


O anjo do Senhor ataca de noite o campo de Senna-
cherib, e mata cento e oitenta e cinco mil homens. *
Um anjo toma Habacuc pelos cabellos e com a rapidez
do espirito vae-o collocar á entrada do fosso dos leões.
Heliodoro é derribado e fiagellado por anjos. Porque
não será tudo isto possível e real? Deus, puro espirito,
em sua eterna immobilidade, e precisamente porque ê
immovel, é o exclusivo auctor da multiplicidade de mo­
vimentos que se executam nos espaços celestes. Sábios
illustres, Ampere e outros, não se acobardaram quando
aflirmavam que só os espíritos desenvolvem força viva
no mundo!
Mens agitai molein, dizia o poeta: o espirito põe em
movimento as massas pesadas. Nossa alma faz mover o
nosso corpo. Esta faculdade motriz dos espíritos é uma
qualidade mysteriosa, porém real, pois o mundo está
todo em movimento e a matéria é essencialmente inerte.
Os demonios. Jesus Christo, attendendo á queda dos
anjos, diz: «Vi a Satanaz precipitando-se do ceo como
um raio, e abysmado no inferno preparado para elie e
seus anjos.» A tradição da queda dos anjos tem-se con­
servado na lembrança da humanidade, e deixado vestí­
gios em todas as theogonias.
Os maus anjos teem conservado depois da queda
suas vantagens naturaes e seu poder sobre o mundo
material, mas só d’elle se servem para fazer mal. Tor­
naram-se soberbos, embusteiros, invejosos, ardentes em
grangear cúmplices, em arrânjar companheiros de sua
desgraça e de seus tormentos. O poder de Satan aug-
mentou notavelmente pelo peccado original, que na

* 0 A. diz o iten ta e cinco m il lio m e u s; m as o iv L. dos Reis


eleva este num ero a cento e o iten ta e cinco iníl.
N. do T.
.

430 OS ESPLEÍ.DORES DA FÉ

expressão energica de Jesus Christo, nos constituiu «fi­


lhos do diabo,» e a elle nosso amo, príncipe e reitor do
mundo, potência do ar e das trevas, leão rugindo, cir­
culando impertinentemente em busca de alguém que
devore.
Quem se nào sente surprehendido e assombrado de
o ver exercer seu despotismo desastroso sobre o pro-
prio Jesus Christo, apoderar-se de seu corpo virginal e
innocente, transportal-o ora ao tecto do templo, ora
ao cume de uma montanha e solicital-o para o mal?
O homem deveria reputar-se muito feliz, quando
pode desencarregar-se na pressão estranha e tyrannica
do demonio da responsabilidade dos excessos aos quaes
por vezes se abandona. Ha crimes tão hediondos, que
não tem explicação se não admittirmos com o apostolo
que o peccador de tal modo se escravisou ao demonio,
que lhe faz todas as vontades.
O primeiro grau d'esta escravidão é a tentação
ou a simples solicitação para o mal. A segunda é a
obsessão, quando sem se ter apoderado do corpo da
victima, exerce sobre ella uma acção sensível e dolo­
rosa. E' assim porventura que o espirito maligno agi­
tava Saul, e não se retirava senão quando David o ti­
nha d’algum a sorte eonjurado, tocando harpa, e pondo
a mão em Saul. Sara, filha de Kaguel, estava assediada
pelo demonio Asmodeu, que deu a morte a seus sete
maridos, e ao qual o anjo Raphael poz em fuga,
O terceiro grau enfim da escravidão do demonio é
a possessão, quando se tem apoderado do corpo e da
alma de um infeliz, para d’elles se servir como de ins­
trumentos pelos quaes opera, produzindo effeitos mais
ou menos extraordinários, por exemplo, lançal-o por
terra, transportal-o a distancia, conserval-o suspenso no
ar, ou agarrado ao tecto, em opposição ás leis da gra­
vidade; fazer-lhe fali ar uma lingna que nunca apren-
OS ESPIHITOS 431

dera; ensinar-lhe factos ignorados, distantes ou secre­


tos, etc., etc.
O possesso também se chama demoníaco. 0 Evan­
gelho cita notável numero d’elles, e Jesus Christo ad-
duzia como signal de sua missão divina o expulsar os
demonios. Deu a seus apostolos, que o transmittiram
a seus successores, esse mesmo poder de expulsar os
demonios. Citemos algumas das possessões do Evange­
lho.
].° (S. Math., vin, 25.) Dois demonios saliern furio­
sos dos sepulchros, irritados de verem o Filho de Deus
vir atormental-os, pedindo-lhe, se quer expulsal-os, que
os deixe entrar em um vara de porcos; invadem-n’a
com effeito, e precipitam-se com elles no mar. 2.° (8.
Math., xvii.) Certo homem desde a infancia estava su­
jeito aos mais graves accidentes: surdo e mudo era
lançado por terra, cahindo na agua e ao lume, rangen­
do os dentes, etc., etc. Jesus Christo ordena ao espirito
que o possuia que saia d’elle. O demonio sahe imme-
diatamente dando grandes gritos, depois de haver con­
torcido a creança e de a ter deixado por morta. 3.° (S.
Marc., i, 24.) jSTa synagoga de Capharnaum certo ho­
mem interpella Jesus Christo, proclama-o o sancto dos
sanctos, e increpa-o por ter vindo para o perder. O es­
pirito impuro atira com sua victima para o meio da
assembléia, dá um grande grito e sahe. Quem poderá
ver n’estas possessões e em outras muitas que poderia­
mos citar, simples casos de hysteria, de epilepsia, de
loucura, doentes ou maníacos e não possessos do de­
monio ? Quasi sempre no Evangelho tem os possessos
do demonio logar á parte dos demais doentes, e são
designados em termos que caracterisam nitidamente
espíritos. (S. Marc., xnr, 39): « Pela tarde, já depois do
sol posto, trouxeram todos os enfermos e os demonía­
cos » E no v. 34: « Elle curou muitos doentes vexados
por diversas enfermidades, e expulsou muitos demonios
432 OS ESPLENDORES DA FÉ

sem lhes permittir que dissessem que o conheciam. »


Ora só espiiitos, evidentemente, e não enfermos, é que
podiam conhecer a Jesus Christo. A interpretação da
exegese e da critica moderna é absolutamente gratuita
e ridícula. A posse do mundo antigo, do mundo idola­
tra, pelos demonios, é um dos factos melhor attestados
da historia. O demonio desempenhava um papel impor­
tante no governo de Roma. As manifestações do poder
infernal, deificado por seus adoradores, produzia-se por
manifestações sobrenaturaes, de que ninguém tinha a
menor duvida.
«Vossos mágicos, dizia Tertulliano, evocam phan-
tasmas, interpellam as almas dos mortos em apparições
sacrílegas, dão seus oráculos pela bocca de creanças,
operam maravilhas girando em um circulo cheio de
prestígios, mergulham á vontade suas victimas no so-
mno: eis o que podem elfectuar por intervenção dos de­
monios, é d’esta sorte que exercitam a arte divinitoria
em volta de suas mezas. Se apparece um d’estes infeli­
zes que julgais atormentados por uma divindade, que
se acham subitamente invadidos por uma potência oc-
culta, aos pés dos altares... que se agitam quasi sem
folego, e predizem o futuro porf entre convulsões espan­
tosas, então dizeis que é Juno, Esculapio, ou qualquer
outro de vossos deuses, que manifesta sua vontade por
este modo. Pois bem ! se o christão que os interpellar
os não compellir a confessar deante de todos que são
demonios, agarrai o christão e entregai-o ao algoz.»
Todos os Padres da Egreja, desde Tertulliano até
S. Bernardo, tem assim fallado, e nunca nem Porphyrio,
nem Celso, nem Juliano Apóstata pensaram em negar
a realidade Testes phenomenos. Os apostolos e os mis­
sionários, sobretudo nos paizes idolatras, encontraram
frequentemente possessões de que a historia dos sanctos
está cheia.
A Egreja catholica, infinitamente sabia que possue
OS ESPÍRITOS 433

em grau divino a simplicidade da pomba unida á pru­


dência da serpente, crê firmemente na possibilidade de
relações intimas, voluntárias ou não, entre os demonios
e o homem; mas não se pense que admitta sua reali­
dade sem discernimento e provas certas.
Crê na possibilidade de um pacto, formal ou tácito,
com o demonio ; crê na conjuração ou na evocação ex­
plicita ou implicita do demonio no intuito de produzir
effeitos admittidos por todos e que são universalmente
designados com os nomes seguintes: adivinhação ou pre-
dicção do futuro; encantamento ou fascinação exercida
por palavras, figuras ou operações mysteriosas; evoca­
ção ou necromancia, appello e interrogatório dos mortos;
fascinação que não deixa ver as cousas como são; male­
fícios, sortilégios, practicas supersticiosas, etc., emprega­
das no designio de fazer mal ao proximo em sua pes­
soa ou bens.. . ; magia, feiticeria, produeção de effeitos
superiores ás forças da natureza, etc., etc.
E o que temos visto ? No momento em que a cri­
tica moderna, a exegese racionalista e o livre ‘pensa­
mento negavam a pés juntos a existência do demonio,
a obsessão, a possessão, todas as suas malignas influen­
cias, assistia o mundo açodado e fremente a algumas
das mais estranhas manifestações das potências infer-
naes: o magnetismo, adormecendo suas victimas e trans­
formando-as em adivinhos, em prophetas, em médicos
improvisados; as mezas ginantes e percutoras, escrevendo
as revelações do mundo invisivel; o espiritismo, preten­
dendo ter á sua disposição todos os grandes espíritos
dos tempos antigos e modernos, e fazendo-os fallar por
interferencia de médiuns encantadores, etc., etc.
Tenho lido tudo quanto se escreveu sobre demono-
logia, tenho assistido a bastantes experiencias, não de
espiritismo—affiguravam-se-me ridiculas demais por ab­
surdas — mas de magnetismo e de mezas girantes. Mem­
bro de uma commissão encarregada de adjudicar um
vol iv ' 38
434 OS ESPLENDORES DA FE

prêmio de dez mil francos áquelle que lesse uma carta


lacrada, especie de penetração que aliás se diz ser muito
commum, tenho estado em condições de pôr á prova a
pretensão e o talento de afamados magnetisadores; pois
nunca deante de mim se produziu semelhante maravi­
lhoso. Os outros physicos não tem sido nem mais feli­
zes, nem mais privilegiados. Pelo contrario toda a vez
que um sabio grave ou uma sociedade scientifica tem
sido convidada a verificar os factos extraordinários do
magnetismo ou do espiritismo, não só nada tem visto,
mas tem sempre posto em evidencia a iná fé ou o em­
buste. *
Poderia-se talvez pensar que taes factos não se tem
dado, mas seria fóra de toda a razão, depois de um tes-
timunho tão contundente como o da revelação, da tra­
dição, da historia; em vista de um tal testimunho não
soífre duvida a existência da terrível acção dos demô­
nios no mundo e sobre o homem, nem a possibilidade
de pactos culpaveis com as potências infernaes.
Alma, Espirito. Como vem a proposito, resumirei
em poucas palavras uma demonstração muito clara da
espiritualidade d’alma por um sabio mathematico, o sr.

* Não sei qual é a opinião q u e o inundo sabio form a do sr. L!ou-


c h e r de P e rlh e s, se o tem n a co n ta de uni sab io , se de u m e ru d ito fe­
liz, se de um in tru jã o ; o que não padece d u v id a, lem b ran d o o que o
A. disse no seu Tomo u a proposito da sessão de esp iritism o convo­
cada p a ra so n d ar a ed ad e da m axilla de M olin-Q uiguon. é q u e a essa
sessão assistiram alem do sr. de 1’e rlb e s h o m en s de s d e n c ia e p ro­
fessores q u e evocaram a alm a de C uvier e do selvagem , que. se d eu
pelo info rm an te do corpo a que p e rte n c e u a tal m axilla.
Parece-m e pois dem asiado a sse rto ria esta p arte d a o b ra do A., e
n atu ralm e n te , em b o ra não in te n c io n a lm e n le , e n c a m in h ad a a c ria r um
scepticism o in su sten táv el n a in terv en ção do dem onio em c e rta s ph ases
do m agnetism o e do e s p iritis m o ; m as prova a sua leald ad e, pois essa
in terven ção é o que elle d eseja p ro v a r.
N . do T.
OS ESPÍRITOS 435

Fua de Bruno, * hoje abbade de Bruno, professor na


universidade de Turin.
«A alma sente, pensa, quer, imprime movimento ao
corpo; ora a substancia que pensa, sente, quer, move,
não pode ser matéria. Com effeito: l.° se a matéria, ne­
cessariamente composta de partes, sentisse ou cada
parte percebería o objecto inteiro, ou cada parte não
percebería senão uma parte do objecto: no primeiro
caso haveria tantas percepções distinctas, quantas as
partes do corpo, e estas percepções seriam ou todas
completas, ou em parte completas e em parte incom­
pletas. Ora nossa percepção é unica e completa; logo
a alma não é composta de partes, não é matéria. 2.° A
alma humana pensa, compara entre si as sensações que
recebe dos diversos sentidos: ora esta comparação se­
ria impossível, se o principio que compara fosse mate­
rial e composto de partes. Porque ou cada uma d’estas
partes seria própria para receber as duas sensações ao
mesmo tempo, e então para que partes distinctas ? ou
as sensações seriam recebidas por partes differentes, e
então quem compararia e distinguiria as duas sensa­
ções? 3.° A alma quer: o raciocínio é o mesmo que para
o pensamento; porque a vontade suppõe também ne­
cessariamente a comparação. 4." A alma dá movimento.
Digo a um homem que o perseguem para o matar, e
elle muda de direcção, e foge a todo o íolego! Um ge­
neral faz um gesto, e todo o seu corpo de exercito, in-
fanteria, cavallaria, artilheria avança, e faz cahir sobre
o inimigo uma chuva de balas, de granadas, de bom­
bas. Se a alma do general fosse matéria, sua quantidade

* Se este sábio é o m esm o que, no tom o ui fala como a u c to r do


calculo algébrico sobre a população do globo, n a b y p o th ese de todos
os lm m ens d escen d erem de u m ú nico p a r e tc ., cham a-se lá F áa de
B ru a o , e Rã© F ua de B runo. D ecidam os e ru d ito s.
N . do T.
43G OS ESPLENJJOltKS J>A l'K

de movimento seria o producto tia massa pela veloci­


dade, e esta quantidade de movimento seria forçosa-
mente egual á de todas as forças que põe em jogo Ora
entre a fraca impressão da minha voz. ou a do gecvo do
general, e a carreira desapoderada do fugitivo, e a carga
do combate, não lia senão uma relação infinitamente
pequena. De pé e immovel sobre meus pés, marcho e
corro. Se minha alma é material, sua massa é infinita­
mente pequena, pois que um cadaver pesa tanto como
um corpo vivo; sua velocidade é nulla, sua quantidade
-de movimento nulla é também, eniquanto que a quan­
tidade de movimento do corpo que marcha ou que
•corre é grande; logo não poderia marchar e correr. B
no entanto marcho e corro 1Como pois esta quantidade
de movimento infinitamente pequena e cega poderia
coordenar os movimentos da marcha, dirigir com tanta
habilidade os deslocamentos de meus membros, quer
no ataque, quer na defesa, proporcionar tão perfeita-
mente os meios ao fim? Logo, em mim o principio do
movimento é um principio espiritual.» Um jornal de
medicina dava com a assignatura do sr. Claude Ber-
nard, o grande physiologista, esta ultima demonstração,
que já esboçámos, mas que pedimos venia para tornar
a adduzir:
«O corpo humano é um composto de matérias que
incessantemente se movem. Todas as partes do corpo
estão submettidas a um perpetuo movimento de trans­
formação. Cada dia perdeis um pouco de vosso ser phy-
sico, e reparais pela alimentação essa perda. E por tal
arte, que no espaço de cerca de oito annos, vossa carne,
e ossos são substituidos por nova carne e novos ossos
em consequência d’essas addicções successivas.
A mão, com que escreveis hoje, já não é composta
das mesmas moléculas que tinha ha oito annos. A forma
é a mesma, mas a substancia que a enche é outra. O
que digo da mão, diria do cerebro. Vossa caixa cra-
OS ESPÍRITOS 437

neana já não é occupada pela massa cerebral, que ha


oito annos continha.
Posto isto, se tudo muda no cerebro em oito an­
nos, como explicar o facto da memória de cousas que
vistes, ouvistes, aprendestes, ha oito annos V Se estas
cousas estão—como pretendem certos physiologistas re­
alojadas, incrustadas nos lobulos do cerebro, como so­
brevivem á desaparição completa d’esses lobulos? Es­
ses lobulos não são os mesmos d’ha oito annos, e não
obstante vossa memória guardou intacto vosso deposito.
Logo ha no homem algo differente da matéria, e
esse quid é immaterinl, permanente, sempre presente, in­
dependente da matéria. Esse quid é a alma.»
E pois que o sr. Claude Bernard invocou a memó­
ria, uma faculdade tão mysteriosa, será opportuno re­
sumir em algumas linhas o argumento invencível que
o sr. Tremaux (T. xi dos Mundos, pag. 443) soube tirar
d’ella a favor da espiritualidade d’alma:
«O cerebro é impressionado de modo analogo por
todos os sentidos; assim possue esse fundo persistente-
de impressões que constituem a memória; uma quanti­
dade de impressões de todas as edades, de todos os
dias, mobilam o cerebro, e formam uma especie de bi-
bliotheca das impressões de nossa vida. Ora nós ternos,
a faculdade de nos reportarmos a tal ou tal d’estas im­
pressões, consoante o quizermos. Logo esta bibliotheca
tem o seu bibliothecario que vae buscar no ponto de­
sejado a impressão a que nos queremos referir, e que a
põe debaixo das vistas de nosso pensamento, só, com
exclusão de todas as outras, ou combinada com outras.
Eis-nos pois mais urna vez em presença dos dois prin­
cípios seguintes: a acção material e a faculdade de
nos servirmos d'ella. Para distinguir uma faculdade tão
extraordinária, não vejo nada melhor, do que conser­
var o velho nome dado instinctivamente por todos os
povos, e que não ha ninguém que não comprehenda.
438 OS ESPLENDORES DA FE

chamando-lhe alma.» Se se negar a existência e a acção


da alma, será forçoso admittir que existem no mundo
milhões de bibliothecas sem bibliothecario, que põem
constantemente nas mãos dos leitores os livros que de­
sejam consultar. E não será este um grande milagre?
«A alma é o mecânico da machina calorica que dá sa­
bida á corrente de sangue oxygenado, fonte da força
motriz, necessária para o exercício das funcções physi-
cas ou physiologicas do coração, do cerebro e dos ou­
tros orgãos! Ella é o electricista da machina electrica,
que abre o circuito á corrente do fluido nervoso! E- o
bibliothecario da memória! E' n uma palavra o agente
que opera e o espirito que vivifiea.»
CAPITULO TRIGÉSIMO QUARTO

Os Sacramentos

Os Sacramentos em geral. — Jesus Christo é o foco


da vida. divina ou sobrenatural. «Eu sou, dizia, o cami­
nho, a verdade e a vida ... Eu vim para que os homens
tenham a vida e a tenham em superabundancia ... Eu
sou a videira, vós os ramos, que viveis, cresceis, e fru-
ctificaes em mim e por mim . . . Se alguém não vive em
mim, seccará como o sarmento, será cortado e arrojado
ao fogo. E a vida de que Jesus Christo é a fonte es­
tende-se até á eternidade, pois elle é também a resur-
reição.» «Eu sou a resurreição e a vida!»
A sanct-a Egreja, interprete infallivel do Evangelho
ensina-nos que Jesus Christo communica a nossas al­
mas pelos sacramentos, agentes e signaes sensíveis, a
vida, ou a graça invisível. Ritos mysteriosos, ao mes­
mo tempo materiaes e espirituaes, como o homem ao
qual devem dar a vida, que exigem e encerram por
conseguinte tres cousas: um elemento material, a ma­
téria do sacramento; uma palavra viviíicante, a forma do
sacramento; o ministro do sacramento, o delegado de Je­
sus Christo encarregado de unir a matéria á forma; e
440 OS ESPLENDORES DA FE

enfim o sujeito do sacramento, o homem resgatado por


Jesus Christo, para quem é um rigoroso dever embe­
ber-se nos sacramentos do elemento vivificante, repara-
dor e deificador.
As condições da vida sobrenatural, como as da
vida natural do homem ou da humanidade são sete:
Deve elle: l.° nascer para a vida; 2.° nascer viável ou
com uma vida que possa continuar; 3.° conservar sua
vida ou nutril-a por um alimento e bebidas conserva­
doras ; 4.° restabelecer ou tornar a haver a vida, quando
está compromettida pela doença, ameaçada ou mesmo
extincta pela morte, se se tracta da vida sobrenatural
para a qual a resurreição é possível. 5.° Na vespera das
luctas ou combates pela existência, o homem precisa de
um auxilio especial que o fortifique, de uma especie de
embriaguez que o disponha para o combate. 6.° E’ mis­
ter que a vida se propague ou passe de uma geração
para outra por uma instituição particular, a união dos
esposos ou o matrimônio. 7.° Enfim porque o homem é
essencialmente chamado á vida da familia ou á vida so­
cial, carece de que uma consagração nova e especial
constitua, e invista de uma graça necessária e sufficiente
os chefes ou directores da sociedade espiritual das al­
mas, chamadas a viver a vida de Jesus Christo.
Devia portanto haver e ha sete sacramentos: l.° o
Baptismo que nos faz nascer para a vida espiritual
pela agua e pelo Espirito Sancto; 2.° a Confirmação que
nos dá a viabilidade ou a virilidade sobrenatural, e nos
eleva na linguagem expressiva de S. Paulo á plenitude
da edade de Jesus Christo; 3.° a Eucharistia, na qual
nos deixou no seu proprio corpo e sangue o alimento
e a bebida necessários para a conservação e permanên­
cia em nós da vida sobrenatural e divina; 4.° a Peni­
tencia que repara em nós a vida d'alma, quando lân­
guida ou compromettida, e que nol-a restitue quando
perdida ou extincta; 5.° a Extrema-Uncção, que apaga
OS SACRAMENTOS 441

os mesmos resquícios do peccado, obstáculo a nossa en­


trada no ceo, e nos fortifica na passagem do tempo
para a eternidade; 6.° a Ordem que consagra os minis­
tros da sociedade espiritual, os apostolos, os doutores,
os pastores, os directores de nossas almas; 7.° o Matri­
mônio enfim que propaga a vida divina ou sobrenatural
ao mesmo tempo que a vida natural. Ha pois sete sa­
cramentos, e não mais de sete.
D’esta vez ainda, como sempre, a revelação está
em perfeito accordo com a razão. Tres d’estes sacra­
mentos por sua própria natureza, o baptismo, a confir­
mação, a ordem, não podem ser recebidos mais de uma
vez. A Egreja para melhor qualificar esta unidade de
recepção, affirma d'estes tres sacramentos que impri­
mem caracter indelevel n’alma.
Os outros quatro, por sua natureza também, devem
e podem com effeito ser recebidos mais de uma vez.
Os cânones do concilio de Trento resumem admi­
ravelmente o ensino da tradição e da Egreja sobre os
sacramentos em geral, e este ensino é a seu turno per-
feitamente racional.
Se alguém disser que os sacramentos da nova lei
não foram todos instituídos por Jesus Christo Nosso
Senhor, e que são mais ou menos de sete, seja anathe-
matizado... iii Se alguém disser que os sacramentos
da nova lei não são necessários para a salvação, e que
sem eiles ou sem o desejo de os receber, os homens só
pela fé obtem de Deus a graça da justificação, muito
embora nem todos sejam necessários para cada um,
seja anathematizado... Se alguém disser que os sacra­
mentos da lei nova não conferem a graça própria
áquelles que nenhum obstáculo lhe oppõem, dando a
entender que não passam de signaes exteriores da gra­
ça ou da justiça recebidos pela fé, seja anathematiza­
do ... ix Se alguém disser que não ha tres sacramentos,
o baptismo, a confirmação e a ordem, que imprimem
442 OS ESPLENDORES DA FÉ

caracter n alma, i é, um certo sello que não permitte


que estes sacramentos possam ser reiterados, seja ana-
thematizado... xn Se alguém disser que o ministro que
está em peccado mortal, com tanto que tenha obser­
vado tudo o que é essencial á forma e á collação dos
sacramentos, os não faz ou os não confere, seja anathe-
matizado... xui Se alguém disser que os ritos da Egreja
catholica, recebidos, approvados e usados na administra­
ção solemne dos sacramentos, podem ser menospreza­
dos ou omittidos pelos ministros, se bem lhes parecer,
ou substituídos por outros novos, porque são pastores
presidentes das egrejas, seja anathematizado.
I. O Baptismo, sua instituição e necessidade... Ide,
ensinai todas as nações, baptizai-os em nome do Padre,
do Filho e do Espirito Sancto... Aquelle que acredi­
tar e for baptizado, será salvo (S. Math. xxvm, 19).
A necessidade do baptismo é uma consequência neces­
sária do peccado original. O homem nasce filho de ira,
morto para a graça. Todo aquelle que não renasce
d’agua e do Espirito Sancto não pode entrar no reino
de Deus.
Matéria do baptismo. A agua pura, symbolo natu­
ral da purificação e da vivificação d'alrna.
Forma do baptismo. «Eu te baptizo em nome do
Padre, do Filho e do Espirito Santo.» Eu te baptizo,
quer dizer eu te purifico, eu te vivifico.
Ministro do baptismo. Habitualmente o padre: em
caso de necessidade um leigo qualquer, ainda herege
ou infiel, porque o baptismo é absolutamente necessá­
rio á salvação.
O sujeito do baptismo. Todo o homem sem distin-
cção, para quem é um dever baptizar-se, logo que co­
nheça esta condição essencial para a salvação.
Effeitos do baptismo. Na ordem divina a vida dalina
pela graça sanctificante, o transito da ordem natural
para a ordem sobrenatural, para sempre; a qualidade
OS SACRAMENTOS 443

de filho de Deus, de irmão de Jesus ühristo, de templo


do Espirito Sancto.
Na ordem moral, um germen ou principio de san-
ctidade, de incorruptibilidade, de vida nova e celeste.
Na ordem social, a creança volve-se uma cousa grande
e sagrada, uma especie de encarnação de Jesus Christo :
o que se lhe faz, faz-se ao proprio Jesus Christo.
As ceremonias do baptismo. Como são mysteriosas e
tocantes! O padrinho e a madrinha, um segundo pai e
uma segunda mãe de adopção; o nome de um anjo, de
um sancto ou sancta de virtudes heróicas; o exorcismo
ou a expulsão violenta do demonio, de que a creança
era d’alguma sorte propriedade. Na bocca o sal, sym-
bolo da sabedoria; nos ouvidos e nos narizes' a saliva
para abrir estes sentidos á voz de Deus e aos sanctos
perfumes da virtude; em seu corpinho e cabeça un-
cçoes para d’elle fazerem um ungido do Senhor e um
athleta; a renuncia de futuro a Satanaz e suas obras;
a profissão de fé; a túnica branca, emblema da inno-
cencia e da candura; o círio acceso, porque esta creança
deve ser a seu turno luz e calor; a inscripção nos re­
gistos, ao mesmo tempo que Deus o inscreve no livro
dos escolhidos. Eis o que é o baptismo, sacramento de
regeneração, que toma o homem da esphera terrestre
para o introduzir na esphera celeste, que o levanta a
seu mais alto poder, muito acima de si mesmo.
II. A Confirmação. Este sacramento torna-nos viá­
veis na ordem sobrenatural, e perfeitos christãos, dan­
do-nos a força de confessar a fé, e communicando-nos
a plenitude dos dons do Espirito Sancto.
Sua matéria. Oleo misturado com balsamo. O oleo
que nutre, que aquece, que illumina e guarece; o bal­
samo, symbolo do bom cheiro das virtudes que o chris-
tão deve diffundir em redor de si.
Sua forma. Estas palavras: «Eu te assignalo com a
marca da cruz, e eu te confirmo pelo chrisma da salva-
444 OS ESPLENDORES DA PE

ção, em nome do Padre, do Pilho e do Espirito Sancto


Com o signal da cruz, pelo qual sahirás vencedor do
inferno e do mundo. Eu te confirmo, isto é, eu te forti­
fico, aperfeiçoo e consummo em ti a vida christã... Em
nome do Padre, do Filho e do Espirito Sancto; do Pa­
dre que te creou, do Filho que te resgatou, do Espirito
Sancto que te sanctiíica; da SS. Trindade que deves
adorar e amar.»
Seu ministro: ordinário, o bispo que possue a pleni­
tude do sacerdócio, que deve ter alcançado a sanctida-
de, e a quem por excellencia compete fazer sanctos;
extra-ordinario e por delegação, o padre que haja rece­
bido um poder especial.
Seu *sujeito. Todo o homem já baptizado, nascido
para a vida da Graça: é preciso viver para ser viável.
Muito embora a confirmação não seja absolutamente
necessária para a salvação é um dever rigoroso rece-
bel-a podendo-o.
Seus effeitos. Resumem-se admiravelmente n’essas
virtudes infusas, que a linguagem ecclesiastica chama
os sete dons e os doze fructos do Espirito Sancto : sa­
bedoria, entendimento, sciencia, conselho, piedade, for­
taleza, temor de Deus... Caridade, alegria, paz, paciên­
cia, benignidade, bondade, longanimidade, doçura, fé,
modéstia, continência, castidade.
Suas ceremonias: A imposição das mãos. A mão é 0
signal e o instrumento geral da força e do mando: im­
por as mãos sobre o confirmado é attrahir sobre elle com
auctoridade a força de Deus. A uncção com 0 sancto
chrisma. mistura de oleo de oliveira e de balsamo so­
bre a fronte, sede do pudor e da vergonha, para que
d’aqui se estenda a todo o corpo: a uncção faz-se em
forma de cruz, porque toda a força e toda a graça vem
da cruz, porque d’ella não. deve a fronte córar.
Batendo-lhe tres vezes na espadua, como para ex­
perimentar a calma e a paciência do confirmado, o
OS SACRAMENTOS 445

pontiflce diz-lhe: «Sê guerreiro pacifico e bravo, fiel e


devotado a Deus.» Apoiando-se-lhe docemente na face,
como para melhor provar ainda sua paciência, diz-lhe:
«Que a paz seja contigo.» Em seguida abençoa-o n es­
tes termos: «Que do alto da celeste Sião o Senhor te
abençoe, afim de que disfruetes os bens de Jerusalem
todos os dias de tua vida e durante a vida eterna.»
III. Sacramento da Eucharistia. A Eucharistia, cha­
mada também manjar mystico, banquete divino, pào
celeste ou transubstancial, pão de Deus, pão da vida,
etc., etc., é um sacramento que debaixo das aparências
do pão e do vinho occulta o corpo, o sangue, a alma,
a divindade de Nosso Senhor Jesus Christo, que o ins­
tituiu para se fazer o alimento de nossas almas.
■Sua matéria: o pão e o vinho, elementos essenciaes
da alimentação do homem : o pão, o principal alimento
do homem; o vinho, sangue da terra e sangue da vi­
deira: o pão, que nutre, fortifica, renova e continua a
vida; o vinho que aquece, que alegra e enebria: o pão
que faz os fortes; o vinho que faz germinar as virgens:
o pão e o vinho, que se transubstanciam em carne e
sangue, symbolos da transubstanciação de todo o nosso
ser em Deus.
Sua forma: as próprias palavras de Jesus Christo
repetidas pelo sacerdote, e tornadas soberanamente ef-
ficazes: Tomai e comei; este é o meu corpo (pie será entre­
gue por vós. Tomai e bebei todos, este é o calix do meu san­
gue; Testamento novo e eterno, mysterio de fé, que será der­
ramado por vós e por muitos em remissão dos peccados;
todas as vezes que fizerdes estas cousas, fazei-as em minha
memória. Forma esta toda divina e divinizante.
Seu ministro. A Eucharistia é ao mesmo tempo sa­
cramento e sacrifício: um sacramento, porque o pão e
o vinho pela transubstanciação são mudados no corpo
e no sangue de Jesus Christo, alimento de nossas almas.
Ora o milagre da transubstanciação exige e impõe a
446 OS ESPLENDOKES DA FE

delegação, por transmissão legitima de um poder di­


vino : um sacrifício em quanto é offerecido, e o padre é
essencial mente o ministro do sacrifício.
Ninguém pode, diz o quarto concilio de Latrão,
fazer o sacramento da Eucharistia se não for padre,
ordenado conforme o rito recebido na Egreja.
Seu sujeito. Todos os fieis, todos os christãos, na
edade da discripção, sufficientemente instruídos, e con­
venientemente preparados, podem e devem ser admit-
tidos á communhão eucharistica.
Não é necessária de necessidade de meio, mas de
necessidade de preceito. Jesus Christo disse: «Se não
comerdes a carne do filho do homem e beberdes seu
sangue, não tereis a vida em vós.»
O sagrado concilio de Trento. sessão décima ter­
ceira, formulou o canon seguinte: «IX. Se alguém dis­
ser que nem todos os fieis christãos ou cada um d’elles,
quando chegados já ao uso de rasa o, são obrigados a
commungar cada armo, ao menos pola Paschoa, assim
como o estatue nossa santa Madre Egreja, seja anathe-
matizado!» O sagrado concilio accrescentu: «Canon XI.
Aquelles, a quem sua consciência accusa de peccado
mortal, seja qual for a contricção que julguem ter, de­
vem necessariamente, quando podem, recorrer a um
confessor, fazer preceder a communhão da confissão sa­
cramental ; se alguém tiver a pretensão de sustentar o
contrario, seja anathematizado.» O espirito da Egreja,
declarado pelo concilio de Trento, é que os fieis possam
commungar a todas as missas que desejem.
Suas ceremonias essenciaes. A offerenda feita pelo sa­
cerdote em seu nome, em nome do povo e em união
com Jesus Christo ; a consagração que faz aparecer so­
bre o altar a Yictima que se substituiu a todas as victi-
mas humanas; a hóstia divina, viva e vivifieante, que
nos dispensa toda a luz, toda a força, todo o perdão,
todo o remedio, toda a graça.
OS SACRAMENTOS 447

A eommunhào enfim, consummação dos elementos


da offerenda; manducação da victima presente por ef-
feito da consagração, união inteira de nossa alma com
sua alma, de nossa carne com sua carne, de nosso san­
gue com seu sangue, de tal modo que podemos dizer:
Já não sou eu quem vive, é Jesus Christo que vive em
mim.
Os effeitos da Eucharistia. Estão admiravelmente re­
sumidos n’esta deliciosa antífona; O sacrum conviviam!
O' festim sacrosancto, em que Jesus Christo se volve
nosso alimento, onde se renova o sacrifício da cruz ; em
que a alma é cheia de graça e onde recebemos o pe­
nhor seguro da resurreição e da gloria futura! Attentai
no catliolico fervente e pio que se levanta da meza sa­
grada: sai todo abrazado num sancto ardor que brilha
em suas faces purpurinas, que n"elle desperta uma ter­
nura inaudita, e lhe faz verter lagrimas de ventura. Se
chora internecido, se nada em alegria é porque Jesus
Christo, seu divino Salvador, o envolve intimamente em
seu amor.
Ah! poder dizer: Deus está comigo! Sentil-o! Isto
vale um mundo! Nas almas sanctas, os ardores do co­
ração por vezes irrompem e traduzem-se em transpor­
tes de alegria, em chammas e extases. E quando se pos-
sue assim a Deus no coração, está-se disposto a tudo
soffrer, a tudo arrostar, a tudo esperar, e a tudo empre-
hender. Ah! eis como a divina Eucharistia foi e será
sempre no seio da Egreja catholica, apostólica, romana,
uma semente fecunda de martyres, de confessores e de
virgens. Digo a Egreja catholica, apostólica, romana,
porque só ella possue o segredo e a practica da união
eucharistica.
A Eucharistia não é só um sacramento, é também
um sacrifício, como o concilio de Trento o define nos
termos que seguem: <Na ultima ceia, e na mesma noite
em que foi entregue, querendo deixar á Egreja, sua es-
448 OS ESPLENDORES DA F E

posa querida, um sacrifício visivel, como o exige a na­


tureza humana, e que representasse o sacrifício san­
grento que devia offerecer uma vez na cruz e que lhe
perpetuasse a memória até ao fim dos tempos, e appli-
casse sua virtude salutar á remissão dos peccados com-
mettidos, declarou que elle fora constituído sacerdote
eterno segundo a ordem de Melchisedec. Depois de ter
celebrado a antiga Paschoa, estabeleceu como Paschoa
nova a imrnolação que debaixo de signaes visíveis a
Egreja deve fazer por mão do sacerdote em memória
d ’aquelle transito que efíectuou d’este mundo para
seu Pai, quando pela effusão de seu sangue nos resga­
tou, nos arrebatou ao poder das trevas. E’ uma só e
mesma victima a immolada sobre o altar e no calvario.
Só o modo de imrnolação é diffcrente. Os fructos da
imrnolação sanguinolenta são recebidos com maior
abundancia pela imrnolação não sanguinolenta.»
E"ossa mãe a Santa Egreja estabeleceu certos ritos,
certas ceremonias, ornamentos sacerdotaes, e outros em
grande numero, afim de dar realce á magestade de um
tão grande sacrifício, e de excitar por estes signaes sen­
síveis de piedade e de religião, o espirito dos fieis á
contemplação dos mysterios que ali se occultam.
Este sacrifício satisfaz ao mesmo tempo a todas as
exigências de nossa natureza. Holocausto põe-nos em
condição de podermos prestar perfeitamente a Deus as
homenagens devidas a sua soberana grandeza; a agra­
decer-lhe plenamente os favores que d’elle temos rece­
bido, e outros de que temos necessidade na ordem es­
piritual e temporal; a expiar pelos vivos e mortos as
penas devidas ao peccado. E’ portanto simultaneamente
— e que ideia tão consoladora —um sacrifício de ado­
ração e de louvores, de acção de graças, de impetração
c de propiciação, e um sacrifício de um valor infinito!
Que não possa reproduzir n’este logar as ora­
ções tão admiráveis, tão tocantes, de preparação, de

w.
mm h v a ■■■

OS SACRAMENTOS 449

celebração, de acções de graças, que a sagrada lithur-


gia põe no coração e nos lábios do sacerdote, e outro-
sim a prosa e os hymnos do SS. Sacramento que a fé e
a sciencia de mãos dadas inspiraram ao genio de um
S. Thomaz! E’ que são outros tantos esplendores reful-
gentes da divindade da sancta Egreja catholica, apostó­
lica, romana. Ao menos seja-nos permittido dar a amos­
tra d'estes nobres e pios ardores das almas eucharisti-
cas.
Eis o pão dos anjos também feito pão dos viajan­
tes, o verdadeiro pão dos filhos, que não deve ser dado
aos cães. Bom pastor, pão verdadeiro, Jesus, de nós te
amisera, apascenta-nos, defende-nos, faze que possua­
mos na terra dos vivos os bens que nos destinas. ;>
« Que em virtude da sanctissima Eucharistia, o Se­
nhor omnipotente e misericordioso nos conceda a ale­
gria com a paz, a correcção de vida, o tempo de uma
sincera penitencia, a consolação do Espirito Sancto, a
perseverança nas boas obras, um coração contricto e
humilhado, a consummação feliz de nossa vida!» Taes
são os segredos, e todos os desejos de um coração
christão...
« Conjuro-vos, ó meu dulcissimo Jesus, a que vossa
paixão seja a força que me revista, me proteja e de­
fenda. Que vossas chagas sejam o alimento e a bebida
que me nutram, inebriem e façam ditoso! Que a effusão
de vosso sangue seja para mim a ablução de todos os
meus peccados! Que vossa morte seja para mim a
eterna vida! Que em vossos sacramentos e sacrifícios
divinos esteja toda a minha alegria, saude e a doçura
de meu coração...» Jesus, a quem entrevejo sob o veo
eucharistico, concedei-me, peço-vol-o, aquillo de que
tenho sêde tão ardente.
Que vendo-vos um dia face a face, seja feliz com a
perspectiva e gozo de vossa gloria!
«O pão dos anjos está feito o pão dos homens: o
VOL IV 39
450 OS ESPLENDORES DA FE

pão dos ceos põe fim ás figuras. O’ cousa estupenda! o


pobre, o escravo, o humilhado manduca seu senhor.»
Nascendo, volveu-se companheiro de nosso exilio;
comendo comnosco, fez-se nosso alimento; morrendo,
fez-se nosso resgate; reinando nos ceos, é nossa recom­
pensa.»
«O Yerbo feito carne com uma só palavra fez de
sua carne o pão verdadeiro; o sangue de Jesus Christo
toma-se nossa bebida; e se nossos sentidos nada nos di­
zem, a fé só de per si basta para socegar nossa con­
sciência.»
IY. 0 Sacramento ãa Penitencia, A penitencia é o
sacramento da nova lei, instituído por N. S. Jesus Chris­
to, para remir os peccados commettidos depois do ba­
ptismo.
Sua instituição transluz d’estas palavras de Jesus
Christo a S. Pedro: Dar-te-hei as chaves do reino dos
ceos; tudo o que ligares sobre a terra será ligado no
ceo.» (S. Math. xvi, 19); aos outros apostolos: «tudo o
que ligardes na terra será ligado no ceo, e tudo o que
desligardes na terra será desligado no ceo.» (S. Math.
xvni, 18). «Como meu Pai me enviou, assim eu vos en­
vio.» Dizendo estas palavras, soprou sobre elles e dis­
se-lhes : «Recebei o Espirito Sancto ! Os peccados serão
perdoados áquelles a quem os perdoardes; e serão re­
tidos áquelles a quem os retiverdes.» (S. Jo. xx, 22 e 23).
Interprete infallivel da sagrada Escriptura, dos Padres
e da Tradição, o concilio de Trento declara: «Se al­
guém disser que a Penitencia não é um verdadeiro sa­
cramento, instituído por Nosso Senhor Jesus Christo,
para reconciliar os fieis com Deus todas as vezes que
cahirem em peccado, depois do baptismo, seja anathe-
matizado!
Sua matéria. A quasi-materia do sacramento da pe­
nitencia são os actos do penitente, a contricção, a con­
fissão e a satisfação. Estes mesmos actos, necessários de
OS SACRAMENTOS 451

direito divino no penitente para inteira e perfeita re­


missão dos peccados, são chamados partes da peni­
tencia.
Contricção. Dor d'alma e detestação do peccado,.
sempre foi necessária para obter o perdão de Deus, e
ao homem cahido em peccado depois do baptismo serve
de preparação para a graça da reconciliação. Deve ser
interior ou partir do coração: sobrenatural em seu prin­
cipio e em seu motivo; universal ou estender-se a todos-
os peccados mortaes que se tem commettido. Summa,
quer dizer que a dor do peccado deve ser superior a
qualquer outra, não intensiva ou sensivelmente, mas
virtualmente n’este sentido, que nos devemos affligir
mais por ter offendido a Deus do que por qualquer ou­
tra desgraça. Distinguem-se duas especies de contricção:
a contricção perfeita e a imperfeita ou attricçao.
A contricção perfeita, que tem por motivo a chari-
dade que nos faz amar a Deus sobre todas as cousas-
por ser quem é, por ser infinitamente bom, reconcilia
directamente, iminediatamente o homem com Deus,
com a condição de que ha de comprehender o desejo e
a vontade de receber o sacramento da penitencia.
A attricçao, detestação do peccado por causa de
sua torpeza e dos castigos que attrahe, basta; é um be­
neficio immenso, juncto ao sacramento da penitencia
para justificar o peccador.
A confissão é a accusação dos peccados, feita a um
sacerdote aprovado, para d’elles obter o perdão. «Se
alguém affinnar que a confissão sacramental não é uma
instituição divina, ou que não é necessária para a salva­
ção de direito divino; ou que a maneira de se confessar
secretamente ao padre só, tal com a Egreja catholica o
observa e sempre o observou, não é conforme á insti­
tuição e ao preceito de Jesus Christo, mas que é sim
uma invenção humana ... ou que a confissão de todos
os peccados mortaes, cuja recordação é possivel.,. é
452 OS ESPLENDORES DA. F É

não só inútil... impossível... mas que deve ser abolida,


seja anathematizado ...»
A confissão! O padre, medico das almas, não pode
curar as doenças sem as conhecer e não pode conhe-
cel-as sem a confissão. A confissão! O padre, juiz, po­
dendo ligar ou desligar, deve antes de mais nada co­
nhecer os peccados, e pelo mais suave dos processos, a
accusação voluntária do culpado.
A confissão! é uma necessidade do coração humano!
O homem culpado de um crime e d’elle arrependido,
busca por toda a parte um amigo, um confidente; sente
uma fatalidade imperiosa de o manifestar para obter o
perdão! Quantos assassinos se tem tornado os revela­
dores conscientes ou inconscientes de seu crime, e por
•conseguinte seus proprios verdugos! «De tantas reli­
giões differentes, dizia Yoltaire, não ha uma uuica que
não tenha tido por objectivo a expiação: o homem tem
experimentado sempre a necessidade da clemencia...
A confissão das faltas foi desde sempre auctorisada,
quasi em todas as nações. Encontra-se eífectivamente
na índia, no Japão, na Grécia, etc.; tem a seu favor o
testimunho dos mais iilustres philosophos, dos maiores
pensadores da humanidade;» etc. (Vej. Berseaux, S'ciên­
cia sagrada, tomo m, os Sete Sacramentos, 536 a 558.)
*A satisfação. Embora o peceado haja sido remit-
tido, resta sempre uma pena temporal a soffrer, quer
n’este mundo por obras expiatórias, quer no outro pe­
las penas do purgatório; esta expiação tão racional eí-
fectua-se pela satisfação. O Concilio de Trento fulmina o
anathema contra aquelles que pretendem «que as satis­
fações, pelas quaes os penitentes resgatam seus pecca­
dos, não fazem parte do culto de Deus..., que não são
mais que tradições humanas. ..; que os padres que im­
põem penitencias áquelles que se confessam... obram...
■contra a instituição de Jesus Christo-..» Esta peniten­
cia reparadora do passado, confirmativa do presente,
OS SACRAMENTOS 453

preserva clora do futuro, é eminentemente racional, suave


e salutar.
Sua forma. A absolvição! Eis sua formula revelada:
«Nosso Senhor Jesus Christo te absolva de todo o
vinculo de excommunhão, suspensão ou interdicto; e
eu te absolvo nos limites do meu poder e consoante a
tua necessidade, de todos os teus peccados em nome
do Padre, do Pilho, e do Espirito Sancto.» Se alguém
affirmar, diz o Concilio de Trento, que a absolvição sa­
cramental do sacerdote não é acto de um juiz, mas o
de um ministro. •. pronunciando e declarando que os
peccados são perdoados ao penitente que os accusa,
com a simples condição de se acreditar absolvido, seja
anathematizado!»
A absolvição! que prodigioso presente do céo! O
peccador sentira, vira, tocara seu peccado, e por con­
seguinte sua condenmação. Em quanto não sentir, não-
vir, não tocar seu perdão, ficará inquieto, perturbado,,
desesperado. O perdão pela íé em Deus, que se não-
sente, que se não vê, que se não toca, pode ser pura il-
lusão! Condemnar o homem a este perdão insensível,,
invisível, impalpavel, é um homicídio, uma negação in­
sensata da natureza humana.
O homem está longe de ser um anjo! Assim é que-
uma atmosphera de chumbo, um spleen desolador, pesa
sobre todos os povos protestantes, para quem não ha
absolvição ! Ao passo que essa mesma absolvição excita
transportes de alegria na alma dos peccadores catholi-
cos os mais desesperados, que a recebem.
Note-se ainda esta belia invocação, que segue a
absolvição: «Os soffrimentos de Nosso Senhor Jesus.
Christo, os méritos da bemaventurada Virgem Maria e-
de todos os sanctos; todas as tuas boas obras, todos os-
teus soffrimentos suportados com paciência, te sirvam
para pagares a divida de teus peccados, para augmen-
454 OS ESPLENDORES DA EÉ

tar em ti a graça, e para te merecer a gloria eterna.


Vai em paz, não peques mais!»
A estas palavras Lazaro sahe do seu tumulo; o fi­
lho prodigo volta a casa de seu p a i; o peccador recon­
ciliado com seu Deus, em paz consigo mesmo, com o
coração alliviado de um fardo enorme, frue uma ven­
tura que parecia reservada só á innocencia. O inferno
fechou-se-lhe debaixo dos pés, o ceo abriu-se-lhe acima
•da cabeça, os anjos regosijam-se, o sancto tabernaculo
descerra-se, e o banquete divino aguarda este irmão
que estava perdido e que foi novamente encontrado,
•que estava morto e que resuscitou!
Seu ministro. E’ o padre, delegado da Egreja, tendo
a necessária jurisdicção, e alem d’isso a aprovação. «Se
alguém disser... que nem só os padres são os ministros
da absolvição,... e que todos os christãos tem o poder
de perdoar os peccados por simples correcção, se são
públicos, e se o culpado se submette; pela confissão es­
pontânea se são secretos, seja anathematizado!» Concilio
de Trento. sessão xiv, canon x.) O sagrado Concilio ac-
crescenta para tirar ao peccador todo o pretexto de
inquietação: «Se alguém disser que o padre em estado
de peccado mortal não tem o poder de ligar ou desli­
gar, seja anathematizado.» E o que é altamente profí­
cuo, canon xi: «Se alguém disser que os bispos não tem
o direito de reservar certos casos... e que portanto a
reserva não obsta a que o padre absolva validamente
dos peccados reservados, seja anathematizado!» «Toda­
via, accrescenta o concilio, sempre a Egreja tem obser­
vado que não ha caso reservado algum na hora da
•morte, e que qualquer padre pode então absolver o pe­
nitente de todo e qualquer peccado!»
Nada mais razoavel que os casos reservados. O pec­
cador comprehende melhor a gravidade de suas culpas,
quando se vê obrigado a ir buscar o perdão ao longe.
OS SACRAMENTOS 455

Um enfermo comprehende muito melhor a gravidade


do seu estado, quando sabe que os médicos ordinários
nada podem fazer para o melhorar, e que é forçoso
recorrer com grande custo e despezas a homens de arte
experimentados!
Seu sujeito. São todos aquelles que depois de haverem
sido baptizados, commetteram algum peccado mortal.
«O sacramento da penitencia, diz o Concilio de Trento,
é necessário á salvação para todos aquelles que cahi-
ram depois do baptismo, como o baptismo o é para
aquelles que ainda não foram regenerados.» Necessário
de necessidade de preceito e de necessidade de meio; mas
não de necessidade absoluta, n'este sentido, que em caso
de impossibilidade pode ser supprido pelo desejo com
a contricção perfeita.
A razão esclarecida pela fé demonstra sem diffi-
culdade que para todo o homem baptizado e manchado
de peccado é um dever, no ponto de vista natural e no
ponto de vista sobrenatural, recorrer ao sacramento
da penitencia para pedir ao padre a cura do passado e
a direcção ou regras de hygiene espiritual para o futu­
ro, porque é o meio por excellencia de purificação, de
pacificação, de renovamento, de preservação e de per­
severança. (Berseaux, vol. cit. p. 511 e seg.).
Seus effeitos. No ponto de vista m oral: «Instituição
admiravel, diz o padre Berseaux, p. 527, tu és o tumulo
do vicio, a mãe da sabedoria, a nutriz da virtude, o re-
medio aos males dos mortaes. Amigo excellente do ho­
mem, fazes mais pela felicidade do genero humano, do
que os sábios os mais afamados e as escolas de maior
noine. Todo aquelle que ama a humanidade, ama-te
necessariamente; todo aquelle que te aborrece, abor­
rece a humanidade.» No ponto de vista social (Ber­
seaux, p. 532): «A confissão penetra no interior das al­
mas, e sonda os mais secretos pensamentos do cidadão;
restitue-lhe o império de sua vontade, quando é domi-
456 OS ESPLENDORES DA FE

nado por uma paixão tyrannica; vigia sobre as inten­


ções e os motivos de suas acções para as depurar,
elevar, enobrecer; desperta o remorso, para o ca­
lar em seguida pelo arrependimento; tudo ve, tudo
ouve, tudo governa, fazendo observar não só a lei de
Deus, mas as leis do Estado; amiga dos bons, fortifi­
ca-os ; inimiga dos maus, condemna suas más obras;
vingadora inexorável, exige satisfação; guia seguro, di­
rige nas veredas divinas da verdade e da virtude...»
E' impossivel, diz lord Fritz-William, em suas bel-
las Cartas a Attico estabelecer a virtude, a justiça, a
moral, em bases um tanto solidas sem o tribunal da
Penitencia, porque este tribunal, o mais terrivel dos
tribunaes, apodera-se da consciência dos homens, e di­
rige-a de maneira mais efficaz do que nenhum outro
tribunal. Ora este tribunal pertence exclusivamente aos
catholicos. .
Entre elles ha leis de uma auctoridade imperiosa
que não se limitam a punir os crimes, mas que os pre­
vinem ... Estas leis consistem... na confissão, na peni­
tencia, na absolvição e na communhão. Toda a econo­
mia da ordem social gyra n’esta couceira. E ’ a estas
maravilhosas instituições que elles devem sua solidez,
segurança e felicidade.
Suas ceremonias. Sendo, como é, a Penitencia, o sa­
cramento da misericórdia, os ritos, conforme aos quaes
é administrado, devem respirar a bondade e clemencia
divina.
E assim é ; que admiravel differença entre o pro­
cesso dos tribunaes civis e criminaes e o do tribunal da
Penitencia!
Segundo as regras inflexíveis do direito penal, o
cidadão suspeito de crime é procurado, preso e met-
tido em prisão!-.. O juiz encarregado da instrucção
do seu processo usa de astúcia e destreza para conven-
cel-o, espia lhe os gestos e os passos, revê-lhe a corres-
OS SACRAMENTOS 457

pondencia, procura ler em seus olhares e em seus pas­


sos; chama testimunhas que íorceja por intimidar para
arrancar confidencias comprometedoras. O indiciado é
traduzido á presença dos magistrados, cujo rosto aus­
tero, toga imponente e attitude grave, etc., mostram ao
vivo que estão ali para vingar a le i; tudo move ao te­
mor e até mesmo ao terror; a victimaj a sociedade, o
bem publico, estão ali com seus altares, sobre os quaes
ha de ter logar o sacrifício... Juridicamente convenci­
do, o culpado é inexoravelmente condemnado. A pena
é sempre cruel, a prisão, as galés, a deportação, a
morte.
O castigo infligido nem inspira arrependimento do
passado, nem a confiança no presente, inem segurança
no futuro; pelo contrario lança no abatimento e no
desespero.
jSTo tribunal da penitencia: o peccjador vem pros­
trar-se aos pés do seu juiz livremente, aj grado seu, mo­
vido pelo arrependimento e pelo amor. E ’ ao mesmo
tempo accusado, accusador e testimunlia; de si só de­
pende o dar-se a conhecer, tal como a si mesmo se co­
nhece e é de Deus conhecido. Confessa-se a Deus, á
sanctissima Virgem, aos sanctos, ao sacerdote, a quem
chama Pai; ao sacerdote, a quem está defeso pronun­
ciar sentença de condemnação, pois só lhe é permittido
pronunciar uma sentença de perdão, que levanta em
vez de abater, que rehabilita em vez de desprezar, que
impõe quando muito depois do perdão uma leve pena,
tendo em menos por fim punir do que guarecer, que
restitue o filho prodigo á sociedade religiosa e civil,
depois de o ter tornado digno d’ella e de si mesmo. Eis
aqui como os ritos divinos da Penitencial transformando
o peccador por sua influencia suave e í^ua efficacia so­
berana, prestam á sociedade os mais rélevantes servi­
ços, até mesmo debaixo do ponto de visita de seus inte­
resses temporaes.
458 OS ESPLENDORES DA FÉ

Objecções. A confissão é uma invenção sacerdotal


que data do vra século! Não é verdade, pois já nos sé­
culos anteriores se encontra. Não, porque aquelle que
tentasse invental-a teria levantado contra si uma oppo-
sição formidável, que o desacreditaria na opinião dos
bons, sempre precatados contra qualquer innovação;
na opinião dos maus, que todos teriam repellido com
horror esse jugo tão insupportavel; na opinião dos pa­
dres, para quem é um fardo pesado e fadigoso, motivo
bastante para mil vezes a abolir, se não fosse uma
instituição divina. Se o inventor de uma practica tão
universal houvesse existido, seu nome, século e sua pa-
tria teriam sido conhecidos; e a historia desconhe­
ce-o !...
A confissão activa o crime, facilitando o perdão!
Triste sophisma! a suppressão da confissão, esse sim
que tem multiplicado os crimes a ponto de espantar os
heresiarchas e os povos! Leibnitz disse: «A necessidade
de confissão affasta a muita gente do mal, quando ainda
não estão endurecidos.»
Luthero não hesitava em dizer que antes queria
soffrer o jugo do papa, do que consentir na abolição
d'este sacramento. Ecolampadio declarava que suppri-
mindo a confissão, se tinham multiplicado os vicios e
a libertinagem ao excesso. Lê-se na lithurgia sueca:
«Logo que affrouxaram desmedidamente as regras
prescriptas para a confissão auricular, as celebrações
das festas foram acompanhadas de uma tão espantosa
libertinagem, que todos se julgam auctorisados a satis­
fazer suas paixões.» Os lutheranos de Nuremberg as­
sustaram-se por tal forma da onda de crimes, sem re­
presa, logo depois de abolida a confissão, que despa­
charam uma embaixada a Carlos v para lhe pedir que
restaurasse o uso d’ella. Os ministros de Strasburgo,
em 1670 em memória aos magistrados, emittiram o
mesmo voto. Tanto os magistrados, como o imperador
OS SACRAMENTOS 459

responderam, que seu poder não chegava a tanto, e que


visto haverem supprimido a confissão estabelecida por
Deus, muito melhor supprimiriam a restabelecida pe­
los reis.
As confissões dos philosophos não são menos con­
tundentes do que as dos heresiarchas e dos hereges. Mar-
montel: «Que mais salutar preservativo para os costu­
mes da adolescência do que o uso e a obrigação de ir
todos os mezes á confissão! A vergonha da humilde
confissão de suas culpas as mais secretas extingue tal­
vez maior numero d’ellas, do que todos os outros moti­
vos por mais sanctos que sejam.» «A confissão, diz Vol-
taire, é um freio para crimes inveterados. A maior
«parte dos homens, quando cahidos em grandes crimes, tem
«naturalmente horror cTelles. Se ha cousa que neste mundo
«os console» é de certo poderem reconciliar-se com
Deus e consigo mesmos.» (Cartas sobre Olympia.) «Os
inimigos da Egreja romana, que se tem revoltado con­
tra uma instituição tão necessária (a confissão) tem ti­
rado aos homens o maior freio que é possível, ao que
me parece, pôr-se a seus crimes secretos.» (Annaes do
Império.)
O padre pode trahir o segredo da confissão! Não o
ignorava Jesus Christo, quando estabelecia seus apos-
tolos juizes e senhores de ligar e desligar. A sancta
Egreja catliolica sabia-o e sabe-o quando definiu a in­
stituição divina de que se tracta, e a necessidade abso­
luta da confissão! Pois que! Se o padre em um mo­
mento de irreflexão dissesse uma palavra indiscreta,
seguir-se-hia d’ahi que não mais devemos confessar-
nos ? Também o medico pode trahir os segredos temí­
veis de sua a rte ! e por isso deixaremos de o consultar ?
Mas a historia diz-nos que similhante susto é chymeri-
co! Yai em dezenove séculos que todos os dias, entre
as nações christãs. milhares de peccadores se confes­
sam a milhares de padres, e todavia o segredo da con-
460 os e spl é n d ó k e s da fé
- N

fissão não é violado! Pode haver fãcto mais significati­


vo para mostrar que Deus vela pelos lábios do sacer­
dote, e que mesmo debaixo d’este ponto de vista o sa­
cramento da penitencia é realmente divino ?
O padre pode ser, e tem sido por vezes corruptor
no tribunal da Penitencia! Tudo isso é possível; mas
que conclusão tirarV ... Não abusamos do que ha de
melhor? Entre os doze apostolos houve um Judas! E
por causa de Judas deveria o Salvador dos homens re­
nunciar aos outros apostolos, que converteram o mun­
do? Üs médicos não tem muitas vezes abusado do seu
ministério para seduzir e corromper? Porque não ana-
thematizais por isso a medicina e os médicos?
Ha objecções que o respeito da humanidade e uma
certa dignidade prohibem formular.
Y. 0 Sacramento da Extrema- Uncção — A Extre-
ma-Uncção é um sacramento instituído por Nosso Se­
nhor Jesus Cliristo para remittir aos enfermos em pe­
rigo de vida os restos de seus peccados, guarecer-lhes
os languores d'alma, e mesmo restituir-lhes a saude,
quando for conveniente para a salvação.
O momento da morte é o signal da crise terrivel
da agonia, do combate, da grande luct-a contra os ini­
migos da nossa salvação, os demoníos, tão poderosos,
tão activos, tão numerosos, tão hábeis e encarniçados.
E’ a extremidade, a hora em que todas as dores physi-
cas e moraes attingem um grau summo, em que a vida
vai despedaçar-se contra sua ultima barreira. E ’ a hora
também das derradeiras vontades, das ultimas despedi­
das, do ultimo suspiro.
ü tempo cede o logar á eternidade, o juizo do ho­
mem ao juizo de Deus; a terra foge debaixo dos pés
do pobre moribundo e abandona-o suspenso entre o
ceo e o inferno. O bom mestre, que durante sua vida
mortal tamanha ternura mostrara pelos enfermos, que
por experiencia conheceu quanto a morte é acerba,
OS SACUAMÓN.TOS 461

devia ter preparado para o moribundo um calmante


divino, -que torne menos vivos os soffrimentos do corpo,
ou mesmo restituil-o á vida; que guareça os males ex­
tremos de sua alma, que extinga as derradeiras macu­
las, e o defenda contra os últimos assaltos do inimigo.
8. Thyago, primeiro echo da bondade infinita de
Jesus Christo, allude ao sacramento da Extrema-Un-
cção nos seguintes termos: «Se algum de vós adoecer,
chame os presbyteros da Egreja; que estes orem por
elle; que em nome do Senhor o unjam com oleo, e a
oração da fé salvará o enfermo; o Senhor alliviará seus
soffrimentos e se tem peccadoss er-lhe-hão perdoados.»
{Epístola cath. v, 13 e segg.) Se alguém, diz o concilio
de Trento, sessão xiv, cap. i, sustentar que a Extrema-
Uncção não é, realmente e no sentido proprio, um sa­
cramento instituido por Nosso Senhor Jesus Christo, e
promulgado pelo bemaventurado S. Thyago, apostolo,
mas que é apenas um rito transmittido peles Padres,
ou uma invenção dos homens, seja anathematizado!»
«Se alguém disser que a Sancta-Uncção dos enfermos,
não confere a graça, nem perdoa os peceados, nem alli-
via os enfermos, seja anathematizado!» «Se alguém dis­
ser que os presbyteros da Egreja, que S. Thyago cha­
ma para juncto dos enfermos afim de os ungirem não
são os padres ordenados pelo bispo, mas sim as pessoas
mais edosas da communidade, e que portanto o padre
não é o ministro proprio da Extrema-Uncção, seja ana­
thematizado !»
A matéria da Extrema-Uncção, o oleo que suavisa,
acalma, fortifica, guarece, que mana da oliveira, sym-
bolo da paz.
Sua forma. Ao ministrar a uneção a cada um dos
cinco sentidos, olhos, ouvidos, nariz, lábios, peito, mãos
e pés, o sacerdote diz: «Pela virtude d’esta sancta un­
eção, e por sua piissima misericórdia te perdoe o Se­
nhor as faltas que commetteste pela vista, o ouvido, o
462 OS ESPLENDOKES DA FÉ

olfacto, o gosto e a palavra, os ardores da concupis-


cencia, o toque e a marcha.»
Não é possivel exprimir de maneira mais simples,
mais tocante e mais efficaz, o effeito do perdão supre­
mo e universal do sacramento dos que morrem.
Seu ministro. O padre, e só elle, pode guarecer o
enfermo, animal-o, consolal-o, só elle o evangelisa, o
faz concentrar em si mesmo, o reconcilia com Deus;
dedica-se, affronta, se é preciso, as doenças mais con­
tagiosas, a angina cuenosa, a variola, o typho, o chole-
ra, a peste, a raiva e suas fúrias, as balas, os obuzes,
as granadas, os combates! Eis o que practica o padre
catholico, e que practica elle só. No sitio de Sebasto-
pol um official superior do exercito inglez dizia ao pa­
dre Parabére e na pessoa d’elle a todos os padres:
«Nossos ministros fogem do perigo que vós arrostais,
tem medo do cholera que vós não temeis! Não ha
vel-os onde vós estaes sempre! Nossa religião não faz
nem padres nem irmãs da caridade.»
Seu sujeito. Os fieis perigosamente doentes, princi­
palmente aquelles, diz o Tridentino, que o estão de tal
sorte que parecem em perigo de vida: motivo porque
a Extrema Uncção se chama o sacramento dos mori­
bundos. Não é necessário de necessidade de meio, sem o
qual não ha salvação; mas é só de necessidade de pre­
ceito e de preceito grave. Porque é de obrigação rigo­
rosa para o homem no momento em que a terrivel sen­
tença vai ser pronunciada — tempus non erit amplius,
não haverá mais tempo! — adoptar todos os meios de
fazer que a arvore tombe para o lado, onde ha de per­
manecer eternamente.
Seus effeitos. Na ordem physica: allivio, e algumas
vezes cura da enfermidade; cura, cuja origem pode es­
tar na paz e na segurança restituidas ao coração. Obri­
gado a ministrar os últimos sacramentos pelo espaço
de quinze annos em uma grande parochia de Paris, vi
OS SACRAMENTOS 463

doentes desesperados, já abandonados dos médicos


voltarem quasi milagrosamente á vida depois de have­
rem recebido a Extrema Uncção. Na ordem moral pa­
cificação, tantas vezes maravilhosa. Na ordem domes­
tica, allivio de todos os corações que se levantam fir­
mes para o ceo.
Suas ceremonias. U padre, acompanhado de um pe­
queno grupo de fieis piedosos, entra dizendo: A paz,
seja convosco! Expulsa os demonios, aspergindo a casa
com agua benta; encommenda o christão que soflre á
milicia dos anjos, á assembléia dos eleitos; pede para
elle a saude d’alma e do corpo; ministra-lhe as uncções
sagradas; dá-lhe a beijar o crucifixo, Deus morto por
elle, e aplica-lhe uma ultima indulgência plenaria.
Depois se a agonia começa, repete as mais tocantes
deprecações: «Parte, alma christã, em nome do Padre que
te creou, de Jesus Christo que te remiu, do Espirito Saudo?
de quem és templo; em nome de todos os anjos e de todos os
sanctos: Hoje, sê em paz.-» E as admiráveis invocações
postas na bocca do moribundo! litanias ardentes e apai­
xonadas, que na linguagem de Bossuet são «como o
supremo grito, com que a Egreja nos dá a luz da eter­
na vida.>
Objecções. São de recear no enfermo as emoções,
que podem impedir o effeito dos remedios e causar a
morte.—A experiencia prova que estes temores são as
mais das vezes chymericos! O enfermo segundo a pro­
messa do apostolo é quasi sempre alliviado e cheio de
alento. E a fé não nos impõe como um dever resignar-
nos, se preciso for, a perder o corpo para salvar a
alma V
O doente está no goso de todos os seus sentidos,
ámanhã ainda é tempo !—A Extrema-Uncção é o sacra­
mento dos enfermos e não dos moribundos. E não será
uma felicidade que o doente esteja no pleno gozo de
seus cinco sentidos para melhor se assegurar uma boa
464 OS ESPLENDORES DA EE

m orte! Aguardais que entre na agonia para mandar


-chamar o medico do corpo ?
A alma será menos do que o corpo? Materialismo
desolador!
Não se deve affligir mais a familia! — Af&igir a fa­
mília quando o padre é portador de esperanças im-^.
mortaes, o allivio d’alma e do corpo! E se os falsos
melindres da familia causarem a morte eterna d7aquelle
que amam? Amam-no e choram-no aqui, onde já não
existe, e pouco se lhes dá que elle seja atormentado
para sempre onde está. Quão sensato era esse grito de
fé de nossos paes: «Queimai, cortai, não poupeis ireste
mundo, com tanto que me perdoeis na eternidade!»
Accusar a Egreja de imprudência, de dureza e de
crueldade, quando ostenta todos os ardores de seu
zelo, todas as riquezas de sua ternura para abrir as
portas do ceo a um de seus filhos que apenas está
preso á terra por um fio prestes a partir-se! Que injus­
tiça! Na Extrema-Uncção como nos demais sacramen­
tos tudo é esplendor!
VI A Ordem. A Ordem é o sacramento instituído
por Nosso Senhor Jesus Christo para formar o padre,
para lhe conferir o poder e a graça de consagrar seu
corpo e sangue, desempenhar outras funcções sacerdo-
taes; de representar Jesus Christo e a Sancta Egreja,
ensinar, dispensar a vida eterna, perdoar os peccados:
funcções estas que evidentemente não é possível exerci­
tar sem vocação, sem delegação, sem instituição divina!!!
«Que ninguém, diz o Apostolo, usurpe esta honra, se
não for chamado por Deus como Aarão.» Introduzido
no sanctuario sem vocação celeste, diz o concilio de
Trento, o padre seria um lobo voraz e um intruso!!!»
Por haver tocado sem missão as cousas sanctas Choré
foi engulido, Saul precipitado do throno, Jeroboão fi­
cou com a mão arida e paralytica.
Jesus Chisto ordenou sacerdotes a seus apostolos,
OS SACRAMENTOS 465

quando lhes disse: «Toda a vez que comerdes este pão


e beberdes este calix, fazei-o em minha memória.»
«Tudo o que ligardes e desligardes na terra será
ligado ou desligado no ceo.» Quando depois da imposi­
ção das mãos, lhes disse: «Ide, ensinai todas as nações,
baptizai-as.. ■»
Na sessão xxm, o Concilio de Trento formulou os
cânones seguintes: «Canon i. Se alguém disser que não
ha na lei nova sacerdócio visivel ou exterior; ou que
não existe poder algum de consagrar e de offerecer o
verdadeiro corpo e o verdadeiro sangue do Senhor, ou
de perdoar os peccados, seja anathematizado.» Canon n.
Se alguém disser que não ha na Egreja alem do sacer­
dócio outras ordens maiores e menores, pelas quaes,
como por outros tantos degraus se chega ao sacerdó­
cio. seja anathematizado... Canon iii. Se alguém disser
que a ordem ou a ordenação sagrada não é verdadeira
e propriamente um sacramento instituido por Nosso
Senhor Jesus Christo, mas uma invenção humana, seja
anathematizado... Canon iv. Se alguém disser que o
Espirito Sancto não é dado pela ordenação e que não
imprime caracter, ou que aquelle que foi padre neu­
tro tempo, pode tornar-se leigo, seja anathematizado...
Canon vi e seguintes. Se alguém disser que na Egreja
catholica não ha hierarchia divinamente ordenada e
instituída, a qual se compõe de padres, bispos e minis­
tros: que os bispos elevados a esta dignidade por au-
ctoridade do Pontifice romano, não são verdadeiros
bispos, que não são superiores aos padres, ou que não
tem o poder de confirmar e de ordenar... ou que o po­
der que tem lhes é commum com os padres, seja ana­
thematizado ...»
A matéria do Sacrammto ãa Ordem: a imposição
das mãos, signal material, é convencional ou humano,
da transmissão como do exercício do poder e da graça.
vol iv 40
466 OS ESPLENDORES DA F É

A apresentação dos instrumentos proprios de cada


funcção: o ostiario toca as chaves; o leitor o livro da
palavra de Deus; o exorcista o livro dos exorcismos;
o acolyto o cirio, o castiçal e as galhetas; o subdiacono
o cálice e a patena vazios, o livro das epístolas; o dia-
cono o livro dos Evangelhos; o presbytero a patena
com o pão, o cálice com o vinho e agua.
As formas do Sacramento da ordem. O bispo diz ao
ostiario: «Obra como quem tem de dar contas a Deus
dos objectos que estas chaves servem para fechar!» Ao
leitor: «Recebe este livro, sê o echo da palavra di­
vina!» Ao exorcista: «Tem o poder de impor as mãos
sobre os energúmenos, quer hajam recebido o baptis­
mo, quer sejam ainda do numero dos cathecumenos!»
Ao acolyto: «Recebe o castiçal com o cirio, e sabe que
d’ora em diante estás encarregado de acender os lumes
da Egreja; recebe estas galhetas afim de ministrares
em nome do Senhor o vinho e a agua que devem ser­
vir para celebrar o mysterio eucharistico do sangue de
Jesus Christo!» Ao sub-diacono: «Vê bem estas cousas
(o cálice e a patena) cujo ministério te é confiado!» Ao
diacono: «Recebe o poder de ler o Evangelho na Egreja
de Deus, tanto pelos vivos como pelos defunctos!» Aos
presbyteros em geral: «Que tudo o que abençoardes
seja abençoado; que tudo o que consagrardes e sancti-
ficardes seja consagrado e sanctificado!» A cada um
em particular difíundindo-lhe nas mãos o oleo sancto:
«Senhor, pela virtude d’esta uncção e de vossa benção,
dignai-vos consagrar e sanctificar estas mãos, afim de
que tudo quanto abençoarem seja bento, e tudo o que
consagrarem seja consagrado e sanctificado em nome
de Nosso Senhor Jesus Christo.» E mandando-lhe to­
car os vasos do sacrifício e os dons a consagrar: «Re­
cebe o poder de offerecer a Deus o sacrifício, e de cele­
brar pelos vivos e defunctos em nome do Senhor.»
OS SACRAMENTOS 467
O ministro da Ordem: é o bispo, o unico que possue
a plenitude do poder sacerdotal; verdadeiro pastor do
rebanho de Jesus Christo.
Sujeito da Ordem: só os homens que receberam o
baptismo. Mas a ordenação, embora valida, não será li­
cita se os ordinandos não estiverem isentos de certas
irregularidades; não homicidas, ou voluntariamente
participantes na morte de algum de seus similhantes;
não filhos de nascimento illegitimo; não attingidos de
defeito corporal notável; não escravos; não infamados
ou bigamos; não muito jovens; não sem sciencia e vir­
tude sufficientes, etc.
Semelhantes reservas e ritos são evidentemente ra­
zoáveis, sábios e divinamente inspirados.
O levita, geralmente educado no pequeno seminário
antes de sua ordenação terá de passar muitos annos no
grande seminário para provar sua vocação, estudar a
philosophia e a theologia, adquirir o espirito de oração,
exercitar-se pouco a pouco nas funcções do ministério.
Outr’ora a sanc-ta Egreja exigia do ordinando que pro­
vasse ter meios de subsistência, mostrando ou que dis­
punha de um patrimônio conveniente, ou que estava
de posse legitima de um beneficio sufficiente para sua
sustentação, ou que pertencia a uma ordem religiosa
aprovada. Eram os tres títulos de patrimônio, de bene­
ficio ou de pobreza. Àlgares exprimimos o desejo de
que os senhores bispos exigissem dos candidatos que
se apresentam sem nenhum d’estes titulos a promessa
de se consagrarem durante um certo numero de annos
ao ensino superior, secundário ou primário.
Seus effeitos. Confere áquelles que o recebem o po­
der e a graça necessários para continuar sanctamente a
missão de Jesus Christo e dos apostolos; para offerecer
o divino sacrificio, administrar os sacramentos, e ensi­
nar de viva voz ou por exemplos; ser o sal da terra e
a luz do mundo; exercitar todas as obras de caridade
468 OS ESPLENDORES DA FÉ

e de misericórdia, etc.; e tudo isto com efficacia di­


vina.
As ceremonias da Ordem. Que tocante não é esta
exhortação preliminar: «Meu filho, pesa attentamente,
e pesa bem os encargos que pretendes. Até agora és
livre, mas uma vez recebido o sacramento, deverás
guardar castidade, e para sempre, ficarás consagrado á
Egreja... Se é da tua vontade perseverar em tua reso­
lução, approxima-te...» O passo está dado, o levita
acaba de renunciar a si e ao mundo.
Cahe como ferido de morte sobre o chão do tem­
plo : a Egreja militante conjura a Egreja triumphante
a que lhe assista com seus suffragios, e insta com o Se­
nhor para que o abençoe, o sanctifique e o consagre:
«Venerável bispo, exclama o arcediago, nossa mãe a
sancta Egreja pede que imponhaes a este diacono que
vos apresentamos o cargo do sacerdócio.» «E vós sabeis
que é digno d’elle?» «Tanto quanto a fragilidade hu­
mana permitte semelhante conhecimento, sei e attesto
que é digno.» — «Demos graças a Deus, diz o bispo!»
Em seguida consulta o povo, e se não ha opposição,
impõe as mãos sobre o eleito. Depois d’isto todos os
padres presentes estendem sua mão direita sobre a ca­
beça do ordinando, e em seguida a um prefacio sublime,
em que a origem e a historia do sacerdócio são dados
em resumo, o pontífice assentado reveste-o da estola e
da casula, dizendo: «Recebe o habito sacerdotal, sym-
bolo da caridade; que Deus fia augmente, e a torne
fecunda em obras perfeitas.» Depois da uncção e da
consagração das mãos, da entrega dos vasos sagrados,
etc., o novo presbytero celebra com o bispo os formi-
dandos mysterios e communga com elle, em quanto o
coro canta: «A partir d'este dia, não mais vos chamarei
servos, mas sim amigos.» Em seguida á communhão de­
baixo das duas especies, o ordinando de pé deante do
altar, recita em voz alta o symbolo dos apostolos, e
OS SACRAMENTOS 469

logo pondo-se de joelhos deante do pontífice, ouve de


sua bocca as seguintes palavras: «Recebe o Espirito
Sancto! Os peccados que perdoares serão perdoados! e
os que retiveres serão retidos!...» A casula do ordi-
nando ainda dobrada desdobra-se nas mãos do bispo
que lhe diz: «Que o Senhor te revista dafòtunica da in-
nocencia.» \
Depois tomando-lhe as mãos: «Prometes-me a mim
e a meus successores respeito e obediência?» E abra­
çando-o depois de lhe ter declarado: «Prometo: «Que
a paz do Senhor seja sempre contigo!»
Tudo está consummado!
Quem poderá negar que estes testimunhos não são
criveis até ao excesso? Esplendor!
VIL 0 Sacramento do Matrimônio. — O matrimônio
é um sacramento que consagra a união do homem e da
mulher, e lhes confere a graça necessária para se san-
ctificarem no seu estado. E’ de fé que o matrimônio é
um verdadeiro sacramento da nova lei, instituido por
Nosso Senhor Jesus Christo. O apostolo S. Paulo, escre­
vendo aos de Epheso, diz-lhes: «Maridos, amai vossas
mulheres, como Jesus Christo amou sua E greja... O
homem deixará seu pae e sua mãe, e unir-se-ha a sua
esposa; e serão dois ibuma só carne... Este sacramento
é grande em Christo e na Egreja.» O concilio de Trento
depara n’este texto a prova de que o matrimônio é um
verdadeiro sacramento: «Foi o proprio Jesus Christo,
Auctor e Consummador de nossos mysterios, quem por
sua paixão nos mereceu a graça necessária para aper­
feiçoar esta união natural, para firmar esta união indi­
vidual e sanctificar os esposos. E é isto o que o apos­
tolo S. Paulo quiz dar a entender, quando diz: «Este
sacramento é grande em Christo e na Egreja.» . .. (>
casamento na lei evangélica, avantajando-se aos casa­
mentos antigos pela graça que vem de Jesus Christo, é
com razão considerado pelos sanctos Padres, pela tra-
470 OS ESPLENDORES DA FÉ

diçao da Egreja universal e pelos eoncilios um dos sa­


cramentos da lei nova.» (Sessão xxiv.) O sagrado con­
cilio accrescenta:
«Se alguém disser que o matrimônio não é própria
e verdadeiramente um dos sete sacramentos instituídos
por Nosso Senhor Jesus Christo, mas que não passa de
uma invenção dos homens na Egreja, seja anathemati-
zado!» Sessão xxiv, canon i.)
Nada mais conforme á razão esclarecida pela fé.
De feito, não é de mais a dispensação de uma graça
particular aos esposos para cumprirem reciprocamente
os novos deveres, cuja obrigação contrahem, e sem os
quaes a sociedade conjugal não podería subsistir; para
dar aos filhos o nascimento e a educação, e com reforço
de razão uma educação christã; para os tornarem filhos
fieis da Egreja e eleitos para o ceo. Que dedicação,
quanta coragem, de que heroísmo não carecem! se se é
opulento para ver a fortuna dividida entre um grande
numero de filhos; se se é pobre para aventar onde ha­
verá meio de nutrir e vestir uma numerosa familia;
rico ou pobre, para educar até á edade de vinte annos
um filho, que talvez venha a ser uma fonte perenne de
magoas. E não é a sociedade domestica a base e o fun­
damento da sociedade publica? Não é o sanctuario,
onde se formam as gerações, e ao qual o homem per­
tence por todos os titulos, de pae, mãe, esposo, filho,
irmão e de irmã? Contestar a necessidade de um sacra­
mento que auxilia os esposos a attingirem fins tão san-
ctos, tão múltiplos, tão imponentes do casamento; pre­
tender que o amor conjugal, paterno e materno para
tudo chegam, é rematada loucura!
A historia mostra-nos por toda a parte, fóra do
christianismo, não só na antiguidade, mas ainda hoje, a
polygamia, o divorcio, a morte ou o abandono das
creanças, etc., etc. ■
Matéria do sacramento do matrimônio. E ’ o contra-
OS SACRAMENTOS 471

cto formado pelo consentimento mutuo dos esposos, ou


a manifestação sensivel cfeste consentimento. Onde este
contracto for nnllo, não ha sacramento. As condições
essenciaes d’este contracto são a uniãacle, a indissolubi-
lidade, a legitimidade.
l.° Unidade ou monogamia. Deus creou um só ho­
mem, e a este homem unico deu uma só mulher, di­
zendo-lhe : O homem deixará seu pae e sua mãe, e umr-
se-ha a sua esposa, e serão não dois, mas um em uma
só carne. E quando Jesus Christo quiz reformar o ca­
samento, que as paixões tinham profundamente desna-
turado, apenas lembrou aos judeus o que fora no
principio: «Se alguém, diz o concilio de Trento, affir-
mar que é permittido aos christãos ter ao mesmo tempo
muitas mídheres, e que tal cousa não ó prohibida por
nenhuma lei divina, seja anathematizado!» (Sessão xxiv,
canon n.) Que haverá de mais conforme á natureza e á
razão do que a monogamia ? Que de mais homicida do
que a polygamia? l.° destroe no casamento a egualdade
entre o homem e a mulher; com effeito cada mulher
se dá ao homem integralmente, em quanto que o homem
repartido entre muitas mulheres, só se lhes dá em parte.
2.° Onde a polygamia reina, a mulher é escrava, é con­
siderada não como pessoa, mas como cousa, como ins­
trumento de trabalho e de prazer; como besta de car­
ga, que entra como mercadoria, para se comprar e
vender. 3.° Não é demais um homem só para educar os
filhos que uma só mulher lhe dá. Debaixo do regimen
da polygamia, vê-se a cada passo o filho repudiado por
seus pais, que d’elle fazem menos caso do que os ani-
maes dos seus. 4.° A polygamia é uma fonte perenne
de discussões e de ralhos domésticos, como eloquente­
mente o demonstra a historia dos haréns. Pelo facto
geral da egualdade numérica dos homens e das mulhe­
res, Deus significa nitidamente que destina a cada ho­
mem uma só mulher. A polygamia, dando muitas mu-
472 OS ESPLENDORES DA F É

lheres a um só homem, çondemnaria um certo numero


de homens a não se casarem, e prival-os-hia do exer­
cício de um direito que receberam da natureza; seria
apanagio exclusivo do rico, unico que pode, mercê de
seus rendimentos ter um serralho. Nào alleguem em fa­
vor da polygamia, argumentos illusorios de falsidade e
de propagação da especie humana. De facto nào ha
homem, a quem Deus haja querido proporcionar maior
felicidade do que a Adào sahido de suas mãos inno-
cente e puro; não houve nunca uma epocha em que a
propagação do genero humano fosse tão necessária,
como na origem do mundo, e não obstante Deus não
doou a Adão mais do que uma companheira. Alem
d’isso na Turquia, onde a polygamia reina, ha, guarda­
das as proporções, menos habitantes do que na Europa.
2.° Indissolubilidcide do contracto. Jesus disse aos
pharizeus: « Que o homem não separe o que Deus
uniu. . .» (S. Math. xix, 6.)» Todo aquelle que despedir
sua mulher e esposar outra, e todo aquelle que esposar
aquella que seu marido repudiou, commette adulté­
rio.» (S. Luc. xvi, 19.) S. Paulo diz a seu turno: «Quan­
to áquelles que são casados, não sou eu, mas o Senhor,
quem lhes ordena: « Que a mulher se não separe de seu
marido. Está presa pela lei do matrimônio a seu ma­
rido emquanto vivo fôr.» (Ep. aos Colossenses, vii, 10 e
seg.) O concilio de Trento formulou o seguinte anathe-
ma: «Aquelle que disser que a Egreja erra, quando
ensina, como sempre tem ensinado, segundo a doutri­
na do Evangelho e dos apostolos, que o laço matrimo­
nial não pode ser dissolvido por causa de adultério de
uma das partes... que nem uma nem outra parte pode
contrahir novo casamento em quanto vivo o outro con­
sorte; que o marido que despede sua mulher adultera
e esposa outra, também elle adultéra, assim como a
mulher que, tendo deixado seu marido adultero, contra-
hiu segundo casamento, seja anathematizado!» (Ca-
OS SACRAMENTOS 473

non, vil.) « Se alguém disser que o laço matrimonial


pode ser quebrado por causa de heresia, de cohabita-
ção pouco supportavel, ou de ausência affectada de
uma das partes, seja anathematizado!» (Canon, v.)
Esta lei da indissolubilidade repousa ao mesmo
tempo sem a menor duvida sobre a natureza e sobre a
do homem, sobre a natureza da sociedade domestica e
civil. A indissolubilidade é um dos caracteres da fami-
lia divina da SS. Trindade, typo da familia humana.
Formando Eva da costella de Adão, quiz Deus si­
gnificar que o homem e a mulher são menos dois que
um, que são indivisiveis e inseperaveis. Um dos gran­
des fins do matrimônio é a educação dos filhos; ora
será sempre uma grande desgraça para os filhos que
seguirem o pai, viverem longe dos cuidados da mãe,
e para os que seguirem a mãe viver longe da tutella,
da protecção do pai. Se não houver partilha dos filhos,
nem por isso serão menos bem educados, regra geral,
por um só, do que o teriam sido pelos dois.
Um outro fim do matrimônio é a mutua assistên­
cia dos esposos: se souberem que podem separar-se,
cuidarão menos de examinar se convirão um ao outro,
amar-se-hão menos, se não contarem com a perpetui-
dade do seu amor; acabarão por duvidar um do outro,
ao sentirem que o capricho e a paixão podem despeda­
çar a cada instante os laços que os unem.
Nada mais facil por outra parte do que estabele­
cer com certeza as proposições seguintes:
O divorcio em as nações christãs nunca foi exi­
gido por lei senão nas epochas de revolta ou decrepi-
tude. No fundo não passa de um concubinato legal, de
uma concessão vergonhosa feita á volúpia, á custa do
dever. Seria uma causa puramente de divisões entre os
esposos, as famílias e os filhos. Separando o homem e
a mulher sem lhes deixar a segurança de approxima-
ção, gerará implacáveis odios, ao mesmo tempo que
474 OS ESPLENDORES DA FE

aniquila todo o sentimento de piedade filial no cora­


ção do filho que é separado do pae ou da mãe.
A historia mostra que a população diminue em
razão da facilidade dos repúdios. Uma lei que auctori-
sasse o divorcio sem vivas reclamações e sem opposi-
ções vehementes da nação, seria um dos symptomas os
mais temerosos de sua degradação. A sancta Egreja
procede portanto com grande tacto, quando repelle
todo o pensamento de divorcio por incompatibilidade
de humor, por esterilidade da união contrahida, por
adultério de um dos esposos, e mesmo por attentado
de um dos esposos contra a vida do outro. Apesar d’is-
so, mostra-se admiravel e conciliadora ao mesmo tem­
po; porque proveu á segurança das pessoas, permittin-
do a separação quanto á habitação e não quer que se
attente contra a estabilidade do casamento mantendo
o vinculo, vinculum.
Aos pharizeus que lhe perguntavam a razão por­
que Moysés permittia ao marido repudiar sua mulher?
Jesus Christo respondia: «por causa da malicia de
vosso coração; mas ao principio não foi assim, e não o
será daqui em diante.»
3. ‘ A legitimidade do contracto. Deve ser ao mesmo
tempo valido e licito, quer dizer, que não deve ser con-
trahido com impedimentos formulados pela Egreja. Se
o impedimento é dirimente, o casamento é nullo.
Se o impedimento é sómente prohibitivo, o casa­
mento é valido, mas illicito. E’ um dogma catholico,
um artigo de fé, que a Egreja pode em virtude de um
poder que lhe é proprio estabelecer estas duas espe-
cies de impedimentos. «Se alguém disser que as causas
matrimoniaes não são da alçada da Egreja, seja anathe-
matizado!» (Concilio de Trento, sess. xxiv, can. ii.) A Bulla
Auctorem Fidei, de 28 d’agosto de 1794, dirigida a todos
os fieis por Pio vi, e que foi recebida por todas as egre-
jas, sem reclamação, condemna como hereticas e contra-
OS SACRAMENTOS 475

rias aos cânones âo concilio de Trento as douctrinas


do concilio de Pistoia, que sustentava que o direito de
appor impedimentos dirimentes ao contracto de casa­
mento não pertence originariamente senão ao poder
civil. Declara que a Egreja sempre pôde e pode em
virtude de um direito que lhe é proprio, estabelecer
impedimentos, que não só suspendam o casamento, mas
que o tornem nullo.
«E que prudentemente formulados elles não são!
O erro: é claro que o erro substancial sobre a pessoa
vicia na origem o consentimento e anulla o contracto.
A condição: esposar uma pessoa escrava, quando se
julgava esposar uma pessoa livre, é um erro substan­
cial. 0 voto solemne de castidade: pronunciado depois de
todas as provas canônicas, esse voto constitue a voca­
ção divina; convirá deixar uma porta trazeira, áquel-
les que se tem mettido no caminho da dedicação e do
sacrifício ? 0 parentesco : os perigos da consanguinidade
são enormes! «E’ uma regra commura em todas as na­
ções, diz o sr. Troplong, que o sangue tem horror de
si mesmo nas relações dos sexos; é por um sangue es­
tranho que quer perpetuar-se para não degenerar.» 0
crime: o assassinio e o adultério são crimes gravíssi­
mos! Seria actival-os e multiplicai-os não declarar
nullo o casamento entre duas pessoas, que d’elles fos­
sem culpadas. A disparidade de culto ou a differença de
religião: o fim do matrimônio é a sanctificação dos. es­
posos e a educação ehristã dos filhos; ora um christão
unindo-se a um infiel, não ficaria exposto a perder-se ?
terá bastante influencia sobre o infiel para conseguir
que seu filho seja christão? Estas mesmas razões tão
graves tendem a impedir os casamentos entre os ca-
tholicos e os hereges, mas a Egreia não os declara
nullos, torna-os somente illicitos. A violência: se a li­
berdade deve presidir a todos os actos humanos, deve
476 OS ESPLENDORES DA FÉ

com dobrada razão presidir ao casamento, que é um


dos actos mais importantes da vida. A Ordem: a missão
do padre é sublime e divina, urgia pol-o na feliz neces­
sidade de nunca pensar no casamento, e deíendel-o
efficazmente contra a seducção. 0 ligamen: se na fami-
lia só deve haver um marido e uma unica mulher, é
evidente que o vinculo do primeiro casamento deve
ser um obstáculo absoluto ao segundo. A loucura: um
alienado não pode nem contrahir validamente casa­
mento, nem cumprir-lhe as obrigações. A affmiãade:
os esposos que fazem um numa só carne, devem ser
considerados como membros da familia, á qual se
alliam. .4 clandestinidade: sempre e em toda a parte o
casamento tem sido acompanhado de ceremonias pu­
blicas. E ’ de facto da mais alta importância que os ca­
samentos que se contrahem, recebam uma publicidade
legal. A impotência: aquelle que não pode attingir o
fim essencial do matrimônio, não pode contrahil-o va­
lidamente.
Em suas Cartas sobre a historia da terra e do homem,
t. i, p. 48. Deluc diz mui reportadamente : «A religião
prestou o maior serviço ao genero humano, estatuindo
sobre o casamento uma lei, debaixo de cujo império a
inconstância dos homens é forçada a submetter-se: e
não é esta de certo a unica vantagem de um codigo fun­
damental de moral, que não pode ser por elles alterado.
A favor das leis fundamentaes do matrimônio, e de
cada um dos seus impedimentos dirimentes a Egreja
pode invocar o testimunho da tradição universal, pois
que em meio das mais densas trevas da humanidade se
entrevê a luz, ao lado da realidade a menos perfeita
surprehende-se o sentir do ideal christão.
Os effeitos do sacramento do matrimônio. Antes do
christianismo, o marido era um tyranno, a mulher uma
escrava, o filho uma victima. A esposa estava fatal-
OS SACRAMENTOS 477

mente predestinada a soffrer a tyrannia do marido, o


filho a crueldade do pai e da mãe.
O pai sentia-se invencivelmente arrastado a exage­
rar sua auctoridade, a mãe a sacudil-a ou a usurpal-a,
e o filho a subtrahir-se a ella.
O christianismo fez entrar a auctoridade paterna
em seus limites naturaes, subordinando-a á auctoridade
divina, á lei da dedicação e do sacrifício. Mantem a
mulher dentro da sua esphera, prescrevendo-lhe o de­
ver de obedecer ao marido; impõe ao filho o dever de
respeitar a auctoridade do pae e de não esquecer os
gemidos da mãe.
Rehabilitou a familia mettendo-a na ordem divina,
mostrando-lhe na familia divina o typo, incitou-a pro­
pondo-lhe por modelo a sancta familia de Nazareth,
José, o verdadeiro modelo do pai, Maria, o verdadeiro
modelo da mãe, Jesus, o verdadeiro modelo do filho;
condemnadas todas as seitas hereticas ou philosophicas
que negam as leis eternas, fóra das quaes não ha para
o homem senão degradação e miséria; chamando con­
tinuamente a seus deveres cada um dos seus membros,
ao pai dizendo que deve a seus filhos a educação phy-
sica; á mãe que deve educar e nutrir ella mesma seus
filhos tanto quanto puder, e prodigar-lhes os mais ter­
nos cuidados; ao filho, que deve á semelhança do Me­
nino Jesus na submissão a seus pais crescer na edade,
progresso physico; em sabedoria, progresso intelle-
ctual; em graça, progresso moral, deante de Deus e dos
homens.
As ceremonias do sacramento do matrimônio. A pri­
meira é a dos esponsaes, na qual, quarenta dias antes
do casamento, a Egreja abençoa a promessa que os fu­
turos esposos fazem de se unir. Chegado o dia do casa­
mento, os noivos acompanhados dos votos de seus pa­
rentes e amigos, ajoelham ao pé do altar. O seu pastor
que conhece todas as suas ovelhas por seus nomes e as
478 OS ESPLENDORES DA FE

ama, aproxima-se e aviva-lhes a ideia da sanctidade


dos compromissos que vão tomar por juramento na
presença de Deus, dos seus anjos e dos fieis presentes;
das novas virtudes que deverão practicar para serem
mutuamente felizes; o grande fim do matrimônio, sua
sanctificação e a de seus filhos; o termo a que devem
tender, o ceo, destinado a reunir para sempre aquelles
que vínculos tão fortes e tão doces uniram na terra. De­
pois de os haver assim exhortado, abençoa a moeda
que representa o dote da esposa, e o annel que o es­
poso vai passar ao dedo da esposa em signal da união
que contrahem. Emfim em quanto os noivos se dão a
mão, une-os e abençoa-os fazendo sobre elles o signal
da cruz:
Em nome do Padre, do Pilho e do Espirito Sancto.
Objecções. O casamento é um contracto puramente
civil! —Não, Montesquieu estabelece que em todos os
tempos e logares a religião presidiu ao casamento; que
foi objecto de uma benção particular; que á religião
pertence decidir se o laço será indissolúvel ou não.
A Egreja nada tem com isso!
Tem, evidentemente! pois o matrimônio é um sa­
cramento da nova lei! Pode-se por abuso de liberdade
secularisar o casamento, a familia e o Estado; mas o
indivíduo, a familia e o Estado, collocados queiram ou
não queiram na ordem sobrenatural da Kedempção, fi­
caram dependentes da lei eterna e divina e por isso
mesmo da Egreja, unica interprete official e infallivel
d’esta lei.
A Egreja não pode appor ao casamento nenhum
impedimento dirimente! — E’ falso, absolutamente falso!
Sociedade divina e infallivel estabelecida por Jesus
Christo, guia divino da humanidade, a Egreja tem o
duplo poder de formular impedimentos e de dispensar
n’elles quando o julgue a proposito. «A natureza deca-
hida, abandonada a si mesma, não será jamais senão o
OS SACRAMENTOS 479

que tem sido, predestinada á barbarie. O casamento ci­


vil tende fatalmente, a pôr em risco a civilisação, a de­
gradar a humanidade que separa de seu principio rege-
nerador e sanctificador. E ’ um passo a mais para a ani­
malidade, em quanto que o matrimônio christão é um
passo adeante para a divindade. Se o attractivo que ap-
proxima os dois sexos fosse abandonado ao delirio dos
sentidos, a degradação da especie depressa correría pa­
relhas com sua depravação.» (Troplong, da Influencia
do christianismo sobre o direito civil, cap. v ii .) «A secula-
risação do casamento, sua usurpação pela auctoridade
civil é, dizia Mirabeau, o maior attentado do poder po­
lítico contra o poder civil.»
A Egreja estabeleceu os impedimentos ao matrimô­
nio para abrir uma fonte de rendimento pelas dispen­
sas que concede! — Calumnia !
Toda a administração civil e religiosa tem o direito
e o dever de viver á custa de seus administrados. A
Egreja faz o que fazem todos os poderes estabelecidos»
quando diz a seus súbditos: Dispenso-vos de observar
a ordem tal como está regulada, mas com a condição
de que por uma esmola concorrais para a manutenção
e triumpho d’esta ordem.
A Egreja com taes prohibições attenta contra a li­
berdade!—Em todo o caso se attentasse, fal-o-hia em
nome de Deus que é o Soberano Senhor! Mas não; não
attenta contra a liberdade; regula-a; desvia-a do mal
e faz que d’ella se use só para o bem. A eterna verdade
disse: Se vossa liberdade não fôr a de Jesus Christo,
não sereis verdadeiramente livres. Tudo conspira para
demonstrar a verdade do christianismo: os Esplendo­
res da fé, os factos da historia, as profundezas d’alma,
as entranhas da terra, a magnificência de seus dogmas,
a sanctidade de sua moral, a efficacia de seu culto, sua
influencia civilisadora, etc., etc., etc. Nada portanto
mais feliz e glorioso, do que obtemperar a suas leis.
0 celibato e os votos religiosos

O Evangelho mostra sem rodeios que o celibato


entrava nos designios do Salvador.
Espantados de verem que proclamava altamente a
indissolubilidade do matrimônio, seus discípulos disse­
ram-lhe : «Se tal é a condição do homem pelo que res­
peita á mulher, não é bom casar. » Jesus disse-lhes
então: «Nem todos comprehendem esta palavra, só
aquelles, a quem foi dado comprehenderem isto é que
entendem que é melhor não casar. Ha homens que se
tem feito eunuchos (renunciando ao casamento) por
causa do reino dos ceos. (Esses taes escolheram a me­
lhor parte)» Certo dia, em que S. Pedro exclamava:
«Tudo deixámos e seguimos-te, que recompensa será a
nossa?» Jesus Christo responde: «Aquelle que abando­
nar sua casa,... sua mulher... por minha causa, rece­
berá o centuplo.» Jesus Christo chega a impor esta re­
nuncia a alguns de seus discípulos como uma condição
indispensável de salvação. S. Paulo, a quem as leis evan­
gélicas foram directamente reveladas por Jesus Christo,
diz da maneira a mais explicita ( i Cor. v i i , i e segg.):
O CELIBATO E OS VOTOS RELIGIOSOS 481

*E’ vantajoso para o homem não tocar na mulher, de­


sejaria que todos fosseis como eu! Mas cada um tem
seu caminho particular... Digo áquelles que não são
casados... que é melhor para elles ficarem assim,
como e u . .. Aquelle que está sem mulher, põe todo o
seu cuidado nas cousas do Senhor... para ver como
ha de agradar ao Senhor. Da mesma sorte a mulher
não casada e a virgem pensam nas cousas que são do
Senhor, afim de serem sanctas de corpo e de espirito;
em quanto que aquella que é casada pensa nas cousas
do mundo, como ha de agradar ao marido. Aquelle
que casa sua filha virgem, faz bem, mas aquelle que a
não casa faz melhor.»
Conformemente á douctrina de Jesus Christo e dos
apostolos. os antigos Padres e doutores de todos os
tempos tem exaltado á porfia a continência e o celibato
como algo de mais perfeito, de mais digno aos olhos
da religião, que o estado matrimonial, aífirmando una­
nimemente que é mais feliz e melhor ficar na virgin­
dade ou no celibato, do que casar.
Resumindo e definindo a douctrina evangélica e a
tradição, o concilio de Trento formulou os dois câ­
nones seguintes (Sessão xiv): Canon n : « Se alguém
disser que o estado matrimonial deve ser preferido ao
estado de virgindade ou de celibato; ou que não é me­
lhor ou mais feliz ficar na virgindade ou celibato, do
que unir-se em casamento, seja anathematizado.» Ca­
non ix : « Se alguém disser que os clérigos de ordens
sacras ou os regulares que fizeram profissão solemne de
castidade podem contrahir matrimônio; e que áquelles
que não sentem em si o dom da castidade podem ca­
sar, ainda que hajam feito voto de a guardar, seja ana­
thematizado. Porque Deus não recusa este dom áquel­
les que lh’o pedem, como devem, e não permitte que
sejamos tentados acima de nossas forças.» A incógnita
era a bondade e a possibilidade do celibato e da vir-
VOL IV 41
482 OS ESPLENDORES DA FÉ

gindade.. . ; o conhecido é a divindade de Jesus Cliris-


to e de sua sancta Egreja. Jesus Christo e a Egreja af-
firmam a bondade e a possibilidade do celibato, a in­
cógnita está desembaraçada !
A causa ah! hoje tão impopular e tão mal compre-
hendida do celibato do clero foi pleiteada tão brilhan­
temente pelo sr. padre Berseaux na Sciencia sagrada,
(t. iv, p. 60 e seg.), que me limitarei a esboçar mui per-
funetoriamente sua defeza: « Todos os povos, diz o con­
de de Maistre, acreditaram que ha 11a continência al­
guma cousa de celeste que exalta o homem e o torna
agradavel á divindade, que por uma consequência ne­
cessária toda a funcção sacerdotal, todo o acto religio­
so, toda a cerimônia sancta se casa pouco ou nada com
o matrimônio, » {Do Papa) Interrogando sobre este pon­
to a Judeia, a índia, a Pérsia, a Arabia, o Egypto, a
Grécia e Roma, as nações barbaras falam exactissima-
mente idêntica linguagem... Os philosophos, Pythago-
ras, Plutarcho, etc., pensam a tal respeito como 0 povo.
Se a gentilidade está d’accordo com a Egreja, os sá­
bios com os sanctos Padres, Athenas com Jerusalem,
não será porque o celibato é cousa sabia e sancta ?
Um consentimento universal suppõe uma causa
universal; ora não ha no mundo senão duas causas uni-
versaes, Deus e a natureza; logo 0 celibato das pessoas
consagradas a Deus repousa n'um fundamento divino,
E que serie de razões intrínsecas a militarem a favor
d’esta grande verdade! 1.® O Padre é 0 representante
de Jesus Christo, e Jesus Christo viveu virgem. 2.° J e ­
sus Christo quiz nascer de uma virgem. Se o grande
mysterio da Incarnação se realisou por intermédio de
uma virgem, não será conveniente que o ministério da
divina Eucharistia, que é a continuação e a extensão
d’aquelle mysterio se effectue pelo ministério de um
sacerdócio virgem? 3.° O padre é o pontífice encarre­
gado de offerecer a Deus 0 duplo sacrifício da oração
0 CELIBATO E OS VOTOS RELIGIOSOS 483

e da Eucharistia; ora debaixo d’este duplo ponto de


vista ó conveniente que elle guarde castidade. Origenes
dizia: «Só áquelle, que se votou a uma castidade per­
petua, pertence offerecer o sacrifício perpetuo. 4." O
padre é a luz do mundo, deve ensinar e defender a
verdade; e para ensinar e defender a verdade é preci­
so que a conheça; para a conhecer é preciso que a es­
tude ; para a estudar precisa livros, tempo e uma espe-
cie de solidão. Ora tudo isto é impossível para o padre
casado. A experiencia justifica a theoria: attesta que a
castidade dispõe o espirito para a perfeição das opera­
ções intellectuaes.
Os homens, de facto, que mais tem brilhado pela
sciencia, na antiguidade e nos primeiros séculos da
Egreja, tem sahido todos das fileiras do celibato. 5.° O
padre não é sómente o doutor da alma humana: de­
pois de a ter esclarecido e animado á, virtude, deve de-
terminal-a com o exemplo; e debaixo ainda d'este as­
pecto novo, de que immensa utilidade nào será o celi­
bato? E’ sem duvida a instituição do celibato, e a honra
que o christianismo tributa á virgindade, a alavanca po­
tente que arrancou o vellio mundo á podridão. Eram
necessários estes excessos divinos para mostrar ao ho­
mem, escravo dos sentidos, que a carne pode ser do­
mada. 6.° O padre catholico é um mensageiro celeste
que deve exercer o império de Jesus Christo. Para exer­
citar este império com fructo, carece da consideração,
da independencia e da coragem precisa para exclamar:
Não é permittido! Não podemos!
Tirai o celibato, e estas qualidades gloriosas nào
existem! Ninguém se apresentará para vir em auxilio
da verdade divina opprimida! Attentai no que se passa
no seio do protestantismo. Desde o dia, em que pediu
ou acceitou o casamento dos padres, consentiu logo em
que o poder civil estendesse mão sacrílega sobre as ver­
dades reveladas, redigisse e impuzesse symbolos. 7.° O
484 OS ESPLENDORES DA FÉ

padre é um homem publico que deve dedicar-se á hu­


manidade inteira; ora só o padre celibatário pode fazer
o sacrifício inteiro do tempo, de sua fortuna e vida. A
natureza grita constantemente aos ouvidos do padre
casado, que deve tudo, seus bens e sua vida áquelles, a
quem deu o ser! Assim é que por toda a parte se nota
no padre virgem a dedicação; no padre casado o aban­
dono cobarde das almas.
E visto que o celibato dos padres, debaixo de qual­
quer ponto que se encare, é absolutamente indispensá­
vel, e altamente profícuo, só a religião que impõe o
celibato a seus ministros é a divina, é a de Jesus Christo.
Mas dizem: l.° A observância do celibato é impos-
sivel! —l)eus declara a S. Paulo o contrario: «Minha
graça basta-te.» E a prova irrefragavel da continência,
é que ella é universal na Egreja. Hão só a continência
é possível, mas é fácil, facillima para áquelles que a
querem seriamente.
O proprio liousseau disse:
«Essa necessidade das relações sexuaes ó chyme-
rica, e sómente confessada por pessoas de má conducta.
Todas essas pretendidas necessidades não tem origem
em a natureza, mas na voluntária depravação dos sen­
tidos.» S. Agostinho disse uma grande verdade: «E’
muito mais fácil abster-se, do que usar com modera­
ção ..» E' um facto constante, que ha maior distancia
do celibato á copula, do que do casamento ao adul­
tério.
2.° Mas ha infracções o desordens secretas! — Que
importa, pois, se aparecem de longe em longe, como
nuvens ligeiras em ceo sereno! Ha infracções ao celi­
bato, como as ha na fidelidade conjugal; como as ha
para todos os compromissos os mais sagrados da terra.
Apesar d!essas infracções, o celibato não deixa de ser a
mais elevada das instituições em si mesma, e a mais sa­
lutar em seus resultados.
0 CELIBATO E OS VOTOS RELIGIOSOS 485

Yoltaire não duvidava dizer:


«A vida secular tem sido sempre mais viciosa do
que a dos padres, mas as desordens d’estes tem sido
sempre mais reparadas pelo contraste com a regra.»
3.° A Egreja pelo celibato faz de seus padres ou­
tras tantas victimas de sua tyrannia! — Aunca a Egreja
obrigou ninguém a fazer voto de castidade. E bem sabe
ella que uma vez feito aquelle voto, não pode ser obser­
vado sem uma grande perseverança na corajosa resolu­
ção tomada; por isso apella sómente para as almas de
boa vontade, para os violentos!
Receia-se extremamente dos compromissos temerá­
rios, e ordena muitos annos de reflexões e de provas
áquelles que desejam consagrar-se á virgindade.
A0 O jugo é muito mais tyrannico ainda, a escravi­
dão mais dura, para os habitantes do claustro!—Era a
aceusação calumniadora do xvm século. IJma experien-
cia memorável deitou por terra a calumnia: as portas
dos conventos foram arrombadas e os religiosos decla­
rados livres para poderem sahir! Mas foi preciso recor­
rer á violência para os arrancar á sua solidão querida;
preiiriram o martyrio á liberdade, a morte ao perjúrio.
5. ° Se todos se consagrassem á virgindade, que se­
ria do genero humano ? — A isto poderiamos responder:
Se todos guardassem continência no casamento ou se
condemnassem á viuvez, que seria do genero humano?
Ora tanto se pode receiar que todos se consagrem ao
celibato, como ha a temer que todos sejam continentes
no regimen matrimonial.
A virgindade é cousa difficil, e porque é difficil é
cousa rara: o proprio Jesus Christo declarou que muito
poucos a comprehendem. E se alguém a ella se não
consagrasse, que seria das misérias innumeras que alli-
via e soccorre ?
6. ° A Egreja, prescrevendo o celibato e exaltando a
virgindade, irroga um ultraje á sanetidade da união
486 OS ESPLENDORES DA RE

conjugal — Pois não tem a Egreja honrado sempre e


protegido o matrimônio, elevado por Jesus Christo á
dignidade de sacramento, contra os sophistas e os he-
reges que tem combatido, desde os gnosticos até aos
phalansterianos ? O fim do casamento é conservar o ge-
nero humano pela reproducção ; o fim do celibato con-
serval-o pela sanctificação: são dois agentes egualmente
dignos de benção, de conservação.
7. ” Todos os homens são chamados ao casamento
pela natureza e por Deus —Que Deus fizesse o homem,
considerado genericamente, para o casamento, é uma
verdade incontestável; mas que haja destinado e obri­
gado cada um em particular, é um erro ou uma lou­
cura, que só pode formular um homem que nunca re-
liectiu sobre as grandes cousas humanas, sobre a har­
monia geral da natureza. Se quizessemos tomar álettra :
o Crescite et multiplicamini, então todo o ser humano
deve casar-se logo que é nubil! então os esposos deve­
rão ter tantos filhos quantos puderem! então toda e
qualquer pessoa que não puder casar, deverá recorrer
ao concubinato! dois esposos affastados d’ha muito ou
pouco, estariam no direito de ser infiéis á fé jurada! en­
tão as leis que prohibem o casamento aos cidadãos cha­
mados ao serviço militar seriam homicidas.
8. ° Difficultando o desenvolvimento da população,
o celibato difficulta o desenvolvimento da industria, a
riqueza e a prosperidade das nações.
— O celibato christão não é obrigatorio senão para
alguns espiritos de eleição, cujo numero mal se nota,
quando se compara com a multidão que segue a lei
commum e concorre para o desenvolvimento da popu­
lação. O celibato que favorece os bons costumes favo­
rece por isso mesmo o desenvolvimento da população...
Falam nos dos filhos que o celibato rouba ao Estado!
Melhor era falar do numero infinitamente maior d’a-
quelles que elle conserva ao Estado. Accusam o celi-
O CELIBATO E OS VOTOS RELIGIOSOS 487
bato de cercear os braços á agricultura! Mas não falam
das terras que elle surribou, das lagoas que enxugou,
das charnecas que fertilisou, dos fraguedos que ornou
de vinhas, dos caminhos que abriu!
Accusam-no de ser prejudicial á riqueza das na­
ções! E é elle que em todos os paizes do globo préga
incessantemente o amor do trabalho, o espirito de or­
dem e de economia, o respeito pela propriedade, a pro­
bidade nos negocios, etc. Accusam-no de homicida, de
oppor obstáculos á longevidade! E estatísticas exactas
estabelecem que os celibatários são aquelles que attin-
gem em maior numero os setenta annos.
O que prova que o celibato catholico está no justo
meio que caracterisa a virtude e a ordem divinft, é o
terem-se levantado contra elle as mais contradictorias
accusações.
O xviii século dizia a todos:
Casai-vos, o celibato é contra a natureza; o celi­
bato é impossivel de observar; gerai, gerai; quanto
mais um povo proliíica, mais feliz é ; observar a conti­
nência é contrariar as vistas do Creador; se o celibato
se generalisasse, o mundo acabaria.
O xix século exclama por sua vez:
E’ dever de todo o individuo pensar no casamento
sómente quando tem com que satisfazer ás necessida­
des de sua futura familia. A observância quer perpe­
tua, quer temporária do celibato, é um dos meios mais
efficazes de prevenir catastrophes sociaes, a degreda-
ção, a corrupção e a fome!
Dizer que o celibato é indispensável á felicidade
do mundo, é mais do que affirmar que pode ser obser­
vado !
Se é certo que o Creador deseja que o mundo se po­
voe ; não o é menos que deseja que se povoe de uma
raça sã e virtuosa: o que é impossivel sem a continên­
cia. Se o casamento se tornasse geral, e se cada casa-
488 OS ESPLENDORES DA FÉ

mento produzisse tudo o que pode produzir, a terra se­


ria impotente para nutrir os seus habitantes. Em certos
paizes só se permitte o casamento áquelles que justifi­
cam possuir meios de subsistência para si e a futura fa~
milia! Em todos se recommenda a prudência no casa­
mento, se aconselha o onanismo, o mais odioso dos pec-
cados a sangue frio, a multiplicar de maneira aterra­
dora o infanticidio voluntário ou involuntário, san­
grento ou simulado.
Só o celibato catholico tem a coragem de protes­
tar contra estes vicios vergonhosos e contra estes cri­
mes, como também é o unico que vem em soccorro das
innumeraveis misérias que esses vicios causam!
Que outros diques oppor á miséria, se não obriga,
o que seria absurdo e cruel, todos áquelles que nào po­
dem sustentar familia a viver no celibato ?
A caridade particular? Daria a todos alguma cou-
sa, não dará a todos o necessário.
A caridade publica e legal ? Seus soccorros concor­
rerão para estimular a preguiça; promoverão o accres-
simo da mendicidade. Para prova a taxa dos pobres em
Inglaterra e as fabricas nacionaes de 1848.
A generosidade dos mestres e dos patrões? Como pa­
garão um trabalho de que não tiram proveito ? Se ven­
derem por baixo preço, como hão de dar um salario
elevado ? Se de todo não venderem, como poderão dar
um salario qualquer? Será a emigração? A historia
attesta-o: O caminho da emigração está semeado de
cadaveres; é um mal e uma vergonha! Não será muito
melhor prevenil-a do que soffrel-a ?
Os votos de Religião. —Ü apello á vida religiosa sahe
indubitavelmente do coração e dos lábios de Jesus
Christo. No fundo é o mesmo que o apello á virgin­
dade. Diz a todos, ao grand e numero!
Se quizerdes entrar na vida eterna, observai os
mandamentos. Diz aos privilegiados, ao pequeno nu-
0 CELIBATO E OS VOTOS RELIGIOSOS 489

m ero: Se quizerdes ser perfeitos, vendei tudo o que


possuis, dai o producto da venda aos pobres, vinde e
segui-me! Segui-me! eis o apello á castidade, á pobreza
e á obediência.
Jesus Christo diz com effeito, (S. Luc. xtv): «Se al­
guém vem a mim e me segue, e não aborrece seu paiT
sua mãe, sua mulher e seus filhos, seus irmãos e irmãs
e a sua própria vida, não pode ser meu discipulo...
Todo aquelle que não renuncia a tudo o que possue,
não pode ser meu discipulo.»
No espirito de Jesus Christo esta renuncia é para
aquelles que chama uma necessidade de salvação, pois
a compara ao capital necessário para a edificação de
uma casa ou para a entrada em campanha.
Jesus Christo, como auxiliares de sua missão divi­
na, como instrumentos de sua redempção, quiz pobres
voluntários que tivessem auctoridade para consolar os
pobres indigentes, e fossem os canaes por onde as es­
molas dos ricos chegassem até elles.
Jesus Christo quiz virgens que fossem mães dos
orphãos, filhas dos velhos, irmãs de todos os desgra­
çados.
Jesus Christo quiz obedientes que trocassem sua
fraqueza por sua força, e com elle alcançassem todas
as victorias.
E assim é que a historia nos diz com sua potente
voz que os pobres, as virgens e os obedientes tem sido
os salvadores temporaes e espirituaes da humanidade.
Os pobres, as virgens e os obedientes tem sido
evocados por Deus para reagir, realisando em sua vida
o heroísmo do sacrifício christão, contra o egoismo pa­
gão, origem profunda de todas as desordens e ao mes­
mo tempo de todos os desastres da humanidade.
A obediência, a pobreza, a castidade são os únicos
diques que se podem oppor ás tres grandes correntes
400 OS ESPLENDORES DA F.É

que arrebatam as existências humanas, riqueza, sensua­


lidade e independencia.
As congregações religiosas são na ordem moral os
mais fortes baluartes da humanidade, porque praticam
perfeitamente os grandes deveres que pesam sobre
ella:
1. ° O dever de glorificar a Deus no tempo, espe­
rando glorifical-o na eternidade. A Egreja desempe­
nha-se d?este dever pelas ordens contemplativas, que
consagram a vida a louvar e a glorificar a Deus. Quem
não admirará essas almas consagradas á contemplação,
essas Magdalenas bemditas que de joelhos adoram e
supplicam ? Jesus Christo disse d’ellas que haviam es­
colhido a melhor parte. São os justos que poderíam
salvar Sodoma ou Gomorrha. São Moysés no alto da
montanha sancta, levantando os braços ao ceo e pe­
dindo que ltfios ajudem a sustentar, porque a cada mo­
mento de cansaço correspondia outro de suspensão no
triumpho das armas de Josué. São os para-raios da pa-
tr ia !
2. ° O dever de satisfazer á justiça divina; é forçoso
que a humanidade faça penitencia ou que seja punida!
Este dever é cumprido pelas ordens penitentes que
se applicam principalmente a offerecer-se pela mortifi­
cação como victimas pela salvação do genero humano.
Seus grandes meios de expiação vem a ser: o celibato,
o jejum, os sofffimentos, o trabalho, a pobreza, a obe­
diência,
A humanidade necessita da verdade, sobretudo da
verdade sobrenatural, e de apostolos que a transpor­
tem até ás extremidades do mundo.
A humanidade necessita de virtudes e de modelos
que a incarnem, de almas sanctas, que elevanclo-se ao
exercício do que a moral christã tem de mais perfeito,
demonstrem a possibilidade da sua practica. A huma­
nidade necessita de mestres que se devotem á educa-
O CELIBATO E OS VOTOS RELIGIOSOS

ção das classes elevadas e pobres da sociedade; neces­


sita de beroes que se consagrem ao allivio da innume-
ravel multidão de outras misérias que pesam sobre ella.
As ordens religiosas, debaixo de mil nomes diver­
sos, debaixo de mil vestuários differentes, são os únicos
que podem desempenhar e desempenham estas missões
sublimes. D’esses claustros tão calumniados tem sahido
os espíritos os mais elevados e magnânimos, os missio­
nários os mais desprendidos e fervorosos, os mais arre­
batadores e eloquentes dos oradores, os pensadores
os mais profundos, os sábios os mais eminentes, os san­
tos de virtudes as mais heróicas.
Ha quem lhes deite em cara suas riquezas! — Fo­
ram legitimamente adquiridas pelo direito do primeiro
occupante, a doação, o trabalho, a compra, a heran­
ç a ... E, com rarissimas excepções, sabiam fazer d’ellas
um emprego muito nobre.
Censuram-lhes também concentrarem-se em si mes­
mos, e não terem outro horizonte que os muros de seu
convento!—... Mas todas as instituições monásticas ti­
nham um fim social, e em nenhuma outra parte se mos­
trou uma compaixão mais terna pela humanidade, maior
ardor em a servir.
Lançam-lhes em rosto attentarein contra a liber­
dade e a dignidade humanas, aniquilando-se e reduzin­
do-se pela obediência a não serem mais do que meros
instrumentos e automatos, sem vida nem movimento!
—Mas a que devemos comparar as ordens religiosas
senão a exercitos chamados a combater Satanaz e seus
anjos, o mundo, seus erros e seus vicios? Ora qual é a
alma e a força de um exercito se não a disciplina mili­
tar, uma obediência absoluta, passiva, cega, que faz do
soldado um cadaver? Perinde ac cadaver!
Os conventos tem dado logar a graves abusos e
numerosos, tem degenerado, e era quasi uma obra san-
cta destruil-os!
492 OS ESPLENDORES DA FE

Na hypothese cTaquelles que pensara que os frades


levavam vida alegre e airada, levantam-se dois proble­
mas insolúveis, dois enigmas indecifráveis: d’um lado a
veneração profunda, de que eram objecto as ordens re­
ligiosas; do outro as espantosas maravilhas que obra­
ram !
Algumas perguntas, a que os factos respondem elo­
quentemente, bastarão para pôr em evidencia a acção
altamente benefica atravez os séculos do clero secular
e regular.
Quem assentou no mundo o programma de todas
as idéias sãs e progressivas, quem fez da Europa o que
é ? Jesus Christo!
Quem venceu e fez desapparecer lentamente o po­
der discricionário e tyrannico dos imperadores roma­
nos ? Os martyres da Egreja!
Quem destruiu a escravidão physica ou social, des­
pedaçando os grilhões da escravidão; a escravidão mo­
ral, libertando a consciência ? Quem creou a dignidade
humana? Quem libertou a intelligencia humana, substi­
tuindo o verdadeiro, o bello, e o bom dos dogmas
christãos ao falso, ao mau, ao disforme do naturalismo
pagão? Quem suavisou o rigor e atrocidade do direito
pagão ? O christianismo.
Quando hordas de barbaros apertando-se uns aos
outros em longas e frementes vagas inundaram a Eu­
ropa, quem lhes sahiu ao encontro e as civilisou?
Quem foi o mediador entre esses brutaes conquis­
tadores e os povos conquistados? O episcopado e o
clero catholico.
Que homem foi esse, deante do qual estacou res­
peitoso Attila, o flagello de Deus ? um papa, S. Leão o
Grande ?
Quem levantou esses monumentos soberbos, essas
magestosas basilicas, tão dignas de admiração ? a
Egreja.
O CELIBATO E OS VOTOS RELIGIOSOS 493

Quem nos tempos modernos, quando o racionalis-


mo heretico ou philosophico inundou o mundo para
destruir a um tempo o edifício das verdades divinas e
humanas, se oppoz a essa torrente devastadora?
Quem se postou debaixo dos fogos do inimigo e lhe
resistiu com todas as armas de que o genio do homem
pode dispor? o clero catholico principalmente.
E é quando a sociedade está n’um estado de de­
composição, de desorganisaçào, que se desejaria pôr de
parte o clero, uuico que possue os meios de guarecer e
de rehabilitar ?! Não seria o mesmo que apartar o me­
dico do enfermo pretender curar o mal destruindo o
remedio ?
Para governar e salvar a humanidade, é mister um
symbolo, em volta do qual se agrupem todas as intelli-
gencias; um codigo de moral indiscutivel; um conjun-
cto de meios que alcancem toda a humanidade; minis­
tros legítimos, convictos, zelosos, confiando na effícacia
dos meios de acção de que dispõem. Ora a Egreja ca-
tholica é a unica que está de posse d’estas gloriosas
prerogativas, a que a philsophia e o livre pensamento
são completamente estranhos.
A Egreja é a unica depositaria do symbolo que il-
lumina! E’ a unica fonte das graças omnipotentes, a
mãe de todas as instituições "beneficas, a guarda das
almas, desde o berço ao tumulo, o refugio de todos os
espíritos agitados, do todas as consciências perturbadas,
de todos os corações ulcerados.
A philosophia é a abstracção que arremessa o ho­
mem para fóra da realidade.
A heresia é o formalismo sem vida e sem virtudes.
Já atraz o consignámos: um dos factos mais signi­
ficativos da historia do xix século, é o movimento de
conversão de grande numero de protestantes instruí­
dos, imparciaes, devotos, pertencendo a todas as
condições: á nobreza, á burguezia, á litteratura, á phi-
494 OS ESPLENDORES DA FE

losopkia, á sciencia, á magistratura, á classe militar-


Um publicista allemão não duvidou dizer: «A Egreja
protestante some-se, e do alto da cathedral de S. Paulo
parece ouvir-se ao longe o som dos sinos do futuro cha­
mando á casa de Deus todos aquelles que antes da re­
forma se reuniam para só formar um e mesmo povo
christão.» (Alzog, Diccionario Encyclopedico, art. Volta
á Egreja catholica.) E’ o grito geral na Allemanha que
o Cultur-Kampf infundiu nova vida á Egreja catholica
e deu um golpe mortal na egreja estabelecida.
CAPITULO TRIGÉSIMO SEXTO

Os novíssimos do homem

Em todas as tuas acções, diz o Ecclesiastes, lem­


bra-te dos teus novíssimos, e não peccarás. (Cap. viu 40.)
Os novíssimos, novíssima, do homem são as scenas
ultimas de sua existência: <A morte», passagem do
tempo para a eternidade, com confirmação no bem ou
no mal. «O juízo particular,» que fixa sua sorte, con-
demnando-o á felicidade ou á desgraça eterna. «Ojuízo
«universal ou ultimo,» manifestação dos méritos ou de­
méritos de cada um, consagração solemne dos juizos
individuaes ou particulares. «0 purgatório,» logar ou es­
tado de expiação final, para as almas justas das penas
devidas ainda ao peccado, especie de etape entre a
terra e o ceo. «0 inferno,» habitação, estado ou logar
de tormentos para os condemnados. «O paraizo,» estado
ou logar de delicias para os escolhidos.
Estes novíssimos são factos, realidades grandiosas.
E quem ousaria affirmar que estes factos não são entre­
vistos como possíveis ou mesmo como necessários pela
razão humana, ou ao menos pela razão esclarecida á
luz da fé?
496 OS ESPLENDORES DA PÉ

«A morte.» A morte existia no mundo antes do


peccado de Adão, testimunhas os innumeraveis fosseis
animaes, sepultados nas camadas do globo terrestre. Es­
tamos até no direito de affirmar que para todo o orga­
nismo animal ou vegetal, a morte é a consequência
natural e necessária do exercício da vida, tal como a
fez o Creador, ou do funccionamento regular dos or-
gãos, cujo movimento não poderia ser eterno. Debaixo
deste ponto de vista, o proprio homem era natural­
mente mortal, a perpetuidade ou a immortalidade não
lhe era essencial ou natural. Só a fé nos desvenda que
se elle não devia morrer, é porque aprouvera a Deus
creal-o não no estado de natureza pura, mas no estado
sobrenatural. A Egreja condemnou aquelles que pre­
tendiam que embora Adão não houvesse peccado, ti­
nha de morrer pela condição de sua própria natureza.
E ’ dogma de fé que a morte foi pena do peccado origi­
nal. Prohibindo a Adão e Eva que comessem do fructo
de uma certa arvore, Deus accrescentara: «No dia em
que d’elle comerdes, morrereis.» (Gen. n. 17.) Quando
Adão desobedeceu, formulou Deus a terrível sentença :
«Porque comeste do fructo vedado, comerás o pão com
o suor do teu rosto, até que voltes á terra de que fos­
tes formado... Porque és pó, e em pó te has de tor­
nar.» (Gen. iii, 17, 19.) S. Paulo volveu-se o echo solemne
do dogma christão: «O peccado entrou n’este mundo
por um só homem e pelo peccado a morte.»
A morte pois será o apanagio triste de todos os
que peccaram em Adão. Mas o que deve consolar-nos
é que a morte, pena do peccado, é também a sua ex-
piação, e que assim como todos morreram em Adão
todos hão de ser vivificados em Jesus Christo. (i Cor.
xv, 22.)
E ’ de fé também que a morte é uma. ou que cada
homem só ha de morrer uma vez. «Está decretado que
os homens só uma vez hão de morrer,» diz S. Paulo.
os n o v ís s im o s d o hom em 497

A hypothese da metempsycose, conforme a qual


as almas depois da morte, hão de passar do corpo que
deixam para um ou muitos outros corpos, humanos,
animaes, ou vegetaes, até á purificação inteira, não
passa de um sonho insensato de alguns philosophos da
antiguidade, gregos ou indús. Se este decrepito erro
tem encontrado em nossos dias algum favor, é porque
debaixo de uma forma precisa traduz o pensamento
vago dos adversários do dogma terrivel da Eternidade
das penas.
O concilio de Perigueux, reunido a 8 d’abril de
1856, condemnou no livro Ceo e Terra de João Rey-
naud, entre outros erros grosseiros a douctrina que af-
firma que «a natureza angélica ou humana, em razão
da liberdade e da actividade de que é dotada pela es­
sencial e immutavel condição de sua natureza, está e
estará sempre n’um estado de prova sem poder chegar
nunca ao termo de seu destino.»
A vida futura. A immortalidade d1alma. Pretender
que o dogma da immortalidade d’alma não vem clara­
mente enunciado no Antigo Testamento ou pelo menos
no Pentateuco de Moysés, é mentira impudente e blas-
phemia.
A verdade pelo contrario é que a immortalidade
d’alma tresanda em cada pagina, em cada versículo do
Antigo e do Novo Testamento, que era crença tão vul­
gar que ninguém pensava em affirmal-a, porque nin­
guém pensava em negal-a.
No principio do Genesis a alma é chamada o sopro
de Deus, ora o sopro de Deus não morre.
Depois do peccado, diz Deus a Cain: « Se fizeres
o bem, não terás por isso recompensa? Se fizeres o mal,
teu peccado será contra ti.» (Gen. iv, 7.) Ora Abel não
recebeu sua recompensa sobre a te rra ; logo recebeu-a
alem-tumulo.
Deus disse a Abrahão: « Serei eu mesmo tua re-
vol iv 42
498 OS ESPLENDORES DA r é

compensa muito grande. > Jacob designava os dias de


sua vida neste mundo dias de sua peregrinação; quer
ser sepultado no tumulo de Sara, para ali dormir
com seus pais! Ora quem diz somno, diz despertar. Mo­
ribundo, dizia a Deus: «Eu espero de vós meu livra­
mento e minha salvação.» (Gênesis, xlviii, 69.) Moysés
prohibe aos judeus interrogar as almas dos mortos!...
A alma de Samuel, evocada por Saul, diz-lhe: « Ama­
nhã, tu e teus filhos estareis comigo.» O propheta Ba-
laão pronuncia este voto: Que minha alma morra da
morte dos justos, e que meus derradeiros momentos
sejam semelhantes aos seus. » Deus annunciando a mor­
te a Moysés, diz-lhe: «Dormirás com teus pais, como
teu irmão Aarão morreu na montanha de Hor, e assim
foi congregado a seu povo. > (Deut, xxxii, 49.) David
achou o segredo do escandalo da prosperidade dos
maus em seu ultimo fim e no futuro que os espera...
Diz a Deus que ha de ver um dia os ceos que elle for­
mou e todas as suas maravilhas. Diz do peccador que
m orre: « O peccador verá e entrará em cólera, range­
rá os dentes, myrrhará de despeito, o desejo do peccador
perecerá eternamente. »
Salomão dá ao homem este prudente conselho:
«Lembra-te do teu Creador antes que chegue o mo­
mento de voltar o pó á terra, e o espirito a Deus que
o deu.» (Eccles. ix.) «Deus ha de entrar em juizo com
o homem por todo o bem e mal que fizer.» xn, 14.) Põe
ainda este grito de desespero na bocca dos condemna-
dos: «Insensatos que nós éramos, quando julgavamos
que a vida dos justos não passava de loucura, e que seu
fim era sem honra! E agora eil-os adnumerados entre os
filhos de Deus... Viverão eternamente. Sua recompen­
sa está no Senhor, seu pensamento está no pensamento
do Altíssimo... Assim exclamavam aquelles que se vi­
ram sepultados nos infernos.» (Sab. v, 4-17.) Elias que­
rendo resuscitar uma creança, diz a Deus: «Senhor,
os n o v ís s im o s d o h o m e m 49h

fazei que a alma d’este menino volte a seu corpo.» O


escriptor sagrado accrescenta que a alma d’este meni­
no voltou e que tinha resuscitado. ( m dos Reis, x v i i . )
Isaias affirma que os justos mortos repousam no logar
de seu somno, porque caminharam direitos nas vias do
Senhor, (xi, 57, 62.) Põe-lhes na bocca increpações ao rei
de Babylonia, qne vae ter com elles na outra vida. Ju ­
das Machabeu na firme crença da resurreição futura e
da vida eterna, offereceu a Deus sacrifícios pelos mor­
tos. A mãe dos Machabeus, afim de tornar o ultimo de
seus filhos inabalavel, mostra-lhe o ceo, onde Deus o
espera, vencedor dos tormentos e da morte.
Jesus Christo dá-se o titulo de resurreiçao e de
vida; promete a resurreiçao eterna a todos aquelles
que comerem sua carne e beberem seu sangue. Annun-
cia a vida eterna aos justos e o fogo eterno aos maus.
Aos Sadduceus, que negavam a futura resurreiçao, res­
ponde: «Não lestes o que Deus vos disse: Eu sou o
Deus de Abrahao, de Isaac e Jacob; ora Deus não é
Deus dos mortos, mas dos vivos;» logo Abralião, Isaac
e Jacob vivem.
Martha, n'um impeto de fé espontânea, diz que
sabe que seu irmão Lazaro ha de resuscitar no ultimo
dia, etc., etc. S. Paulo préga que todos hão de resusci­
tar, uns na gloria, outros na ignomínia; assevera ter
sido transportado aos ceos, onde Deus inunda de deli­
cias o coração de seus escolhidos.
Os apostolos no symbolo que traz seu nome, im-
põem-nos um aoto de fé na communhão dos sanctos,
na resurreição da carne, na vida eterna. Todos os sym-
bolos, todas as profissões de fé impõem a mesma
crença.
Em seu excellente livro: Da vida f utura segundo a
fé e a razão, 3.a ed., Paris, Delagrave 1870, o sr. Henri­
que Martin, decano da Faculdade de lettras de Ren-
nes, demonstra irrefragavelmente que os Chananeus,
500 OS ESPLENDORES DA FÉ

os Chaldeus, os Persas, os índios, os Chinezes, os Scy-


thas, os Celtas, os antigos BretÕes, os Gaulezes, os Gre­
gos e os Bomanos, os mesmos selvagens, sempre acre­
ditaram na immortalidade d'alma; e era sobre esta
tradição universal, mais ainda do que sobre suas de­
monstrações que Platão, Cicero e os outros philoso-
phos, fundavam sua crença na vida futura.
Este dogma enfim é affirmado e supposto pela ra­
zão. Para destruir nossas almas seria preciso um acto
excepcional da vontade de Deus. Com efieito substan­
cias simples, puros espíritos, nossas almas não podem
cessar de existir a não ser pelo aniquilamento e para
as aniquilar, ao mesmo tempo que se admitte que ne­
nhum atomo é aniquilado no universo, seria mister uma
vontade especial de Deus. Ora semelhante vontade não
existe em Deus, porque não convem nem a sua justiça,
nem a sua sabedoria, nem a sua bondade. Alem d’isso,
para que um aniquilamento da substancia d’alma, a
cessação da vida do corpo implicasse a cessação da
vida d’alma, cujas funcções mais elevadas nenhuma re­
lação necessária tem com o corpo, mas apenas relações
contingentes de influencia reciproca, seria também mis­
ter uma vontade expressa de Deus. Ora semelhante
vontade não pode suppor-se em Deus, porque iria di-
rectamente contra os desígnios claros da Providencia.
O homem, tal como a Providencia o fez, tem outros
destinos, aos quaes não pode falhar por culpa de Deus,
mas só por culpa sua.
Enfim Deus não nos deu sómente a liberdade mo­
ral e a responsabilidade, deu-nos também n’esta vida 0
pensamento de uma continuação indefinida de nossa
existência, 0 desejo de uma ventura sem fim. Ora: l.°
é naturalmente impossível que este pensamento e este
desejo cessem em nós n’uma vida melhor; 2." é impos­
sível que o Ente infinitamente sabio e infinitamente bom
queira enganar este pensamento e este desejo, arreba-
os n o v ís s im o s d o h o m e m 501

tando a cada alma bemaventurada a existência ou a


personalidade.
Em resumo, tudo na alma humana aspira á im-
mortalidade, á eternidade. O coração humano, como
já dizia S. Agostinho, está irrequieto em quanto não
repousar em Deus! Logo ha para elle uma outra vida.
0 juizo particular. —E’ de fé que cada alma no mo­
mento da morte comparecerá na presença de Deus
para ser julgada por tudo aquillo que fez, disse e pen­
sou durante a vida: «Assim como está decretado, diz
S. Paulo (Ep. aos Heb. íx, 27), que todo o homem ha de
morrer uma vez, assim também que a morte será segui­
da do juizo.» E’ o juizo que se chama juizo particular.
Nada mais conforme á razão do que este dogma chris-
tão. A vida é um deposito.
Aquelle que nol-o confiou tem o direito de exigir
que lhe prestemos conta do uso que d’elle fizemos. Da
parte de Deus abdicar d’este direito tão legitimo e tão
essencial, dar-nos a vida como propriedade nossa, seria
abdicar sua sabedoria infinita, e introduzir entre os ho­
mens a confusão, a desordem, o transbordar de todos
os crimes. Se cada um fosse senhor absoluto de suas
acções, sem ter de dar conta d’ellas, as leis divinas e
humanas não teriam sancção; as sociedades civis não
seriam possiveis, fosse qual fosse o rigor das leis, e a
vida dos homens não estaria em segurança.
Como se fará este juizo?
Ao mesmo instante da morte, a alma esclarecida
por uma luz superior, verá como n’um espelho brilhante
seus méritos e demeritos, seus peccados, seu numero,
suas circumstancias, sua enormidade, a sentença, seus
motivos, sua equidade, sua extensão, sua sorte fixa, irre­
vogável, eterna.
0 Purgatório. — A Egreja catholica entende pelo
purgatório um logar, ou ao menos um estado, em que
estão retidas por certo tempo as almas dos justos que
502 OS ESPLENDORES DA FÉ

não expiaram inteiramente sobre a terra a pena devi­


da, depois de perdoada a culpa ou a offensa, a seus
peccados mortaes ou veniaes. E’ de fé que nem toda a
pena do peccado é perdoada com elle, que o que res­
tar d’esta pena ha de ser expiado ireste inundo ou no
outro, porque nada inquinado pode entrar no ceo
(Ap. xxr, 27); que esta expiação se effectua no purga­
tório; que as almas do purgatório podem ser suffraga-
das pelas orações da Egreja e preces dos lieis.
«A Egreja catholica, diz o concilio de Trento, ses­
são xxv. instruída pelo Espirito Santo, sempre ensinou
consoante as Escripturas e a antiga tradição dos Pa­
dres, nos sanctos concilios e ainda ha pouco n’este con­
cilio geral, que ha um purgatório, e que as almas 11’elle
detidas recebem allivios pelos suffragios dos fieis e maior­
mente do sacritício do altar.»
E no canon xxx, 11: «Se alguém disser que a todo
o peccador penitente, que recebeu a graça da justifica­
ção, lhe foi perdoada a culpa ou offensa de tal modo
que nenhuma pena temporal lhe resta a soffrer n’este
mundo ou no outro, no purgatório, antes de entrar no
reino dos ceos seja anathematizado!» S. Paulo por certo
que quer alludir ás chammas do purgatório, quando
diz (Cor. 111. 13-..): «O dia do Senhor fará conhecida a
obra de cada um, e 0 fogo provará o que ella é : se sua
obra permanece, receberá a recompensa; se exposta ao
fogo experimentar damno, será salvo, mas atravez do
fogo.»
Como negar a legitimidade, a efficacia das orações
pelos mortos, se Judas Machabeu exclamava já: «E; um
sancto e salutar pensamento orar pelos mortos, afim de
que sejam livres de seus peccados.» Esta passagem é
pelo menos um testimunho da crença do povo de Deus
na utilidade das orações pelos mortos e na existência
do purgatório; ó ainda hoje também crença dos ju­
deus.
OS NOVÍSSIMOS DO HOMEM 503

A affirmaçào dos reformadores que pretendia que


as orações pelos mortos eram na Egreja uma innova-
vação relativamente recente, tem recebido um cruel
desmentido das inscripções tumulares, encontradas nas
catacumbas romanas, primeiros cemitérios dos chris-
tãos, inscripções recolhidas em tão grande numero,
classificadas, commentadas, confrontadas com tanto es­
mero pelo sr. de Kosse. Desde os fins do primeiro sé­
culo, estes epitaphios offerecem á vista de todos o sym-
bolo da esperança, uma ancora esculpida, ou grosseira­
mente aberta na pedra, com essas sortidas breves e ra-
pidas de um coração christão, echo das saudações apos­
tólicas : Pax lecum! Pax tibi! Vivas in Deo! As pedras
tumulares dos séculos 11 e iii, desenvolvimentos elo­
quentes d!estas idéias fundamentaes, proclamam com
uma accentuação cheia de fe que a alma do querido
defuncto já frue a sorte ditosa aos justos reservada, e
que já se reuniu aos sanctos; ou então murmuram uma
prece humilde e amorosa para que possa sem delon­
gas ser admittida a gozar de tão grande ventura. Pe­
dem para aquelle que partiu a paz, a luz, o refrigerio,
o repouso em Deus.
O leitor achará uma collecção preciosa d’estas ins­
cripções na visita ás catacumbas do Reverendo Spencer
Northcote, traduzida do inglez pelo sr. P.° Leclerc; Pa­
ris, Eorestier, 1878, in-8.°, pag. 128 a 129. Eis uma: l.°
Aemrinus Rufinae. Deus refrigeret spiritum tuum. Inscripsi
id quisquis de fratribus legerit oret Deum. As catacumbas
são monumentos vivos e incomparáveis da immutabili-
dade e infallibilidade da sancta Egreja catholica, apos­
tólica; um acto solemne de fé em todos os seus dogmas,
um echo glorioso dos Esplendores da Fé.
Que haverá de mais racional do que a crença no
purgatório ?
Será justo, por exemplo, que um peccador que
toda a sua vida viveu na desordem, mas que á hora da
504 OS ESPLENDORES DA F É

morte convertido entra em estado de graça por uma


contricção sincera, goze logo da mesma felicidade
eterna que o justo que viveu sempre na practica da
virtude, e que morreu nos sentimentos do mais perfeito
amor de Deus ?
Pretender que entre os catholicos se faz tudo para
evitar as penas do purgatório e nada para evitar as do
inferno, é um verdadeiro dislate! Como poderia o medo
de uma pena temporal embotar o de uma pena eterna ?
Affirmar que a certeza da efficacia da oração pelos
mortos tem sido a origem de todas as superstições da
Egreja romana é uma calumnia odiosa. A Egreja ro­
mana é inimiga de todas as superstições. E ainda
quando esta crença necessária e saneia desse occasião
a alguns abusos, seria criminoso pretender conjural-os
pelo embuste ou pelo silencio.
Mas será o purgatório um logar ou simplesmente
um estado de soffrimento ? E' muito provável que seja
ao mesmo tempo um estado e um lo g ar... Este logar
confundir-se-ha com os Limbos, essa região inferior,
esses infernos passageiros, nos quaes as almas dos jus­
tos do Antigo Testamento aguardavam a chegada e a
redempção do Messias, e que Jesus Christo visitou
para consigo os trazer e conduzir ao ceo, nos tres dias
que decorreram entre sua morte e sua resurreição ?
Pode muito bem ser!
A pena do purgatório, alem da demora tão insoffri-
vel da entrada no ceo e do gozo da visão intuitiva,
alem da dor viva e acerba de ter offendido a Deus, será
também uma pena physica ou physiologica, a pena ou
sensação do fogo? A opinião mais commum compre-
hende nas penas do purgatório a pena de fogo, ou pelo
menos uma analoga. Qual a intensidade e a duração
d’esta pena? A pena do purgatório varia com o Quan­
tum da divida a pagar. Segundo S. Thomaz e S. Agos­
tinho, a dupla pena do purgatório, de damno e de sen-
OS NOVÍSSIMOS do ho m em 505

tido, ainda que temperadas pelo amor de Deus e pela


esperança do ceo mais ou menos proximo, excede to­
das as d’esta vida.
«A Resurreição geral ãos corpos.» Já tratei esta gran­
de questão, t. ii , mas não posso deixar de a resumir
aqui. O patriarcha Job dizia: «Sei que o meu redem­
ptor está vivo, e que no ultimo dia hei de resurgir da
terra ; que novamente serei revestido do meu corpo;
que hei de ver meu Salvador com os olhos de minha
própria carne! Esta esperança fulge no intimo de meu
ser.» (Job xxix, 25.) O propheta Daniel a seu turno:
«Aquelles que dormem no pó hão de despertar um
dia; uns para a vida eterna, outros para um opprobrio
sem fim.» (Dan. xir, 3 e segg.) Martha dizia sem hesita­
ções a Jesus Christo: «Sei que meu irmão ha de resus-
citar no ultimo dia.» (Jo. xi 24.)
Jesus Christo depois de nos ter dado na sagrada
Eucharistia pela manducação de seu corpo e sangue o
penhor e o germen da futura resurreição, pronunciou
esta sentença irrevogável: «Os mortos que estão no se-
pulchro ouvirão a voz do Filho de Deus, e irão os que
fizeram o bem para a resurreição da vida, e os que fi­
zeram o mal para a resurreição do juizo.» (Jo. v, 24.)
S. Paulo, enfim, echo fiel da revelação evangélica, ex­
clama: «Todos nós havemos de resuscitar, mas nem to­
dos seremos mudados! Semeado na ignominia, o corpo
ha de resuscitar na força; semeado animal, ha de re­
suscitar espiritual. N’um momento, n’um abrir e fechar
d’olhos, os mortos hão de resuscitar. O corpo corruptí­
vel será revestido de incorruptibilidade. O corpo mor­
tal será revestido de immortalidade. E quando o corpo
morto for revestido de immortalidade, então se cum­
prirão estas palavras da Escriptura: A morte foi absor­
vida na victoria que ella pensava loucamente alcançar.
O’ morte, onde está o teu aguilhão? O’ morte, onde o
teu triumpho?»
506 OS ESPLENDORES DA F É

Uma tal linguagem não pode ser de invenção hu­


mana, Cahe do ceo!
Todas as communhões são unanimes em crer com
a Egreja catholica na resurreição dos corpos e na vida
eterna. Todas ensinam como dogma revelado que assim
como Jesus Christo resuscitou, assim todos os homens
hão de resuscitar, i é, todas as almas serão de novo
unidas aos corpos de que a morte as separou, muito
embora estes corpos depois da resurreição assumam
propriedades muito differentes das que tinham tido em
vida.
Que propriedades serão essas? A impassibilidade,
a subtileza, a agilidade, a claridade, etc., etc., Não me
demorarei a definil-as. Nem tão pouco tentarei levan­
tar a ponta do veo que involve o mysterio d’estas
terriveis palavras de S. Paulo: «Todos havemos de re­
suscitar, mas nem todos seremos mudados... O homem
ha de recolher o que houver semeado. O que houver
semeado na carne, colherá da carne a corrupção, o que
houver semeado no Espirito, colherá do Espirito a vida
eterna.»
Qne será o corpo dos reprobos, mescla espantosa
de vida e de morte, a um tempo animado e cadaveri-
co ? só Deus o sabe! Mas que moral tão admiravel! E
que assombrosa doutrina forçosamente revelada. Es­
plendor !
O dogma da resurreição dos corpos é mui consen-
taneo com a razão. A alma só de per si não é uma pes­
soa humana, um eu humano! Não é pessoa, não é eu, se­
não em sua união com o corpo que a exige e que ella
exige, completa e é por elle completada.
Se pois a alma é destinada a viver eternamente,
poderá transitoriamente estar separada de seu corpo,
mas seu corpo deverá completal-a de novo quando hou­
ver de encetar sua nova e eterna existência.
Quem merece ou desmerece é o homem, o todo hu-
OS NOVÍSSIMOS do ho m em 507

mano, a alma unida ao corpo; o que deverá por conse­


guinte ser recompensado ou punido, na hora da supre­
ma justiça, é o homem, o todo humano. O corpo foi
não só o companheiro, mas sempre o instrumento e
muitas vezes a occasião senão a causa do acto crimi­
noso ou virtuoso, deve portanto tomar parte na gloria
ou na ignomínia.
Relativamente ao dogma da resurreição, a sciencia
estabelece desde logo o facto de que a ideia da im-
mortalidade e da resurreição é como inseparável da
humanidade, e que por toda a parte se nos depara. . •
Se em alguns indivíduos, ou mesmo em alguns povos
selvagens, esta ideia se tem completamente obscureci-
do, é um mero accidehte, devido á influencia mórbida
do corpo sobre o espirito. Mas embora não exista em
acto, essa fé persiste ainda assim no estado virtual ou
latente, prompta a renascer quando o homem tiver vol­
tado a uma condição normal.
Estabelecido este facto da tradição, a verdadeira
sciencia vela o rosto e adora; a meia sciencia ou a falsa
formulam objecções sem valor.
1. Como não admittir que os mesmos elementos
solidos, líquidos e gazosos, entraram successivamente
na formação dos corpos de grande numero de homens ?
E até mesmo que um certo numero d’esses corpos
nenhum elemento novo contem, que lhes pertença co­
mo seu? Que não podem reclamar para si elementos
já possuídos por outros? Que por conseguinte são in­
capazes de resurreição ?
A isto respondem a physiologia e a razão: o que
faz com que o corpo de um homem seja seu ou o seu
verdadeiro corpo, não é a identidade numérica das mo­
léculas ou dos átomos que o compõem, mas seu modo
de organisação e sua união com a alma. A prova está
no phenomeno mysterioso, mas incontestável das mu-
508 OS ESPLENDORES DA F É

danças incessantes, migrações perpetuas que se effe-


ctuam nos ccrpos vivos.
Posto não estar rigorosamente demonstrado que
meu corpo não é já numericamente o mesmo, não é me­
nos certo que meu corpo de hoje, apesar de sua reno­
vação absoluta, e pelo facto de não ter cessado de es­
tar unido a minha alma, de ser informado, vivificado e
regido por ella, constitue com ella um mesmo eu hu­
mano, sempre o mesmo e indivisivel.
No corpo de cada homem ha o quer que seja de
essencial, e alguma cousa de adventicio ou de acciden-
tal. O que ha de essencial, o que não tem de commum
com ninguém, o que elle só possue, e o que possuirá
para sempre é o que a’elle existia no momento em que
foi informado, animado e vivificado por sua’alma. Estes
elementos essenciaes ha de sempre conserval-os, hão de
ser sempre seus. O resto, o que é trazido pela nutrição,
pela digestão, assimilação e circulação, não é elle. Pode
perdel-o e perde-o, sem deixar de ser o que é. E por­
que terão sempre sido essencialmente elle, o corpo re-
suscitado nada terá que reclamar a nenhum outro cor­
po. E ’ com estes elementos pessoaes ou essenciaes que
Deus ha de reconstituir o corpo resuscitado ou glorioso
como também a immortal corrupção do corpo do re-
probo. A alma sendo a mesma, sendo o mesmo o ger-
men proprio ou o elemento constitutivo, o resto pouco
importa, a identidade em tal caso subsiste eternamente.
Além disso está rigorosamente demonstrado: l.° qúe
em um corpo volumoso como a terra, ha bastantes va­
zios ou poros, para que seja possivel concebel-o reduzi­
do a um gião de areia; 2.° reciprocamente, em um grão
de areia ha bastantes partes, moléculas ou átomos se­
paráveis ou actualmente separados para que se possa
com elles formar um corpo tão volumoso como a terra,,
e no qual a distancia entre duas moléculas ou átomos
contiguos seja tão pequena quanto se quizer.
03 NOVÍSSIMOS do ho m em 509

Em presença (Testes dois mysterios da natureza,


mysterios de uma força esmagadora, ousaremos nós dis­
cutir a possibilidade ou a impossibilidade da reconsti­
tuição do corpo humano com seus elementos essenciaes
e primitivos?
Ha um outro systema, muito antigo e muito novo,
que enfraquecería consideravelmente a objecção dos
chimicos pliysiologistas. Platão e Berkeley querem que
o corpo seja uma especie de involucro limite da alma,
um não sei quê de que a alma é a forma, tal que tiran­
do a alma, única monada real e essencial, se tiraria tu­
do. ISTesta hypotliese que refugamos, mas que muitos
adversários da Revelação defendem, não tem logar no
acto da vida essas passagens de elementos de um corpo
para outro pela geração e nutrição. A objecção pois
fundada sobre a materialidade do corpo desvanece-se.
ü sr. Darwin aventou n’estes últimos tempos um sys­
tema chamado Pangenese, que reduz o corpo de cada
ser infinitamente pequeno a uma cellula...! E esta sim­
ples cellula não só contem todos os elementos ou prin­
cípios constituintes do corpo, encerra também sob a
forma de gemmulas tóxicas os principios de seus esta­
dos morbidos, das doenças hereditárias, das deformi­
dades congenitaes, etc., etc. Ora ahi tem com certeza
um mysterio natural, um mysterio humano, que espanta
a imaginação, e no qual não obstante isso muitos acre­
ditam ! Inclinemo-nos, pois, sem resistências nem re-
pugnancias diante do mysterio sobrenatural da resur-
reição dos corpos; sua credibilidade necessária e sufh-
ciente depara-se-nos quer na velha tlieoria dos germens,
quer na hypotliese moderna da cellula geradora! Em
todo o caso não ultrapassa de certo os limites da omni-
potencia de Deus.
Que substituem ao dogma mysterioso, mas tão ra­
cional da resurreição dos corpos esses sábios e livres
pensadores que ainda admittem que a alma não morre
510 OS ESPLENDORES DA FÉ

com o corpor Vou dizel-o embora me custe. Um escri-


ptor em voga, o sr. Luiz Figuier, em uma obra que fez
bastante ruido : 0 dia seguinte ao da morte, ou a vida fu­
tura segundo a sciencia! Paris, Hachet, 1872, formula
nestes termos o que crê ser a ultima palavra ácerca de
nossos destinos: «Se durante a vida a alma perdeu
parte de sua força e de suas qualidades, se foi o apana-
gio de um indivíduo preverso, não deixará a terra.. De­
pois da morte dVste indivíduo, irá alojar-se em outro
corpo humano, perdendo a memória de sua anterior
existência. Estas incarnaçoes em um corpo humano po­
dem ser numerosas. Repetir-se-hão até ao momento, em
que as faculdades se houverem desenvolvido assaz, ou
em que seus instinctos se houverem melhorado e aper­
feiçoado ; Só então é que esta alma poderá abandonar
a terra, e lançar-se no espaço para transitar em um or­
ganismo novo, que se segue immediatamente acima do
homem na hierarchia da natureza. O espaço onde habi­
tam as almas assim justificadas está cheio do ether pla­
netário.
Possuem um corpo, mas é um corpo dotado de qua­
lidades infinitamente superiores ás que são o apanagio
do corpo humano.
Depois de um intervallo, cuja duração não ousare­
mos fixar, o ser sobrehumano morre e entra em um
corpo novo, exornado de faculdades ainda mais podero­
sas. E não é num a terceira ou n‘uma quarta geração
que acaba esta cadeia de creações sublimes que entre­
vemos, fluctuando no infinito dos ceos... Depois de ter
percorrido esta longa successão de etapes e de estações
nos ceos, os seres que estamos considerando, devem fi­
nalmente chegar a um logar. Este logar, termo defini­
tivo de um cyclo immenso atravez dos espaços, a nosso
ver, é o sol!. •.
O que alimenta a radiação solar, são os comboios
d’almas que chegam continuamente ao so l... Estes ar-
os novíssimos do homem 511

dentes e puros espíritos vem substituir as emanações


incessantemente despedidas do sol atravez do espaço so­
bre os globos que o rodeiam. Os seres espiritualisados
reunidos no sol enviam para a terra e para os ares a
vida, a organisação, o sentimento e o pensamento!!!»
Já é extravagancia! E seria também sciencia! Passando
á differenciação dJesta douctrina da metempsycose dos
antigos e do transformismo de Darwin, Figuier todo an-
cho, accrescentã: «Gfuiou-nos não a ideia materialista,
que dirige e inspira os sábios, mas a de um espiritua-
tismo raciocinado!» Espiritualismo raciocinado! o sys-
tema absurdo, que concede ás almas por origem d’onde
emanam, e por termo, onde vão abysmar-se, o Sol! E
este livro exdruxulo obteria as honras de uma quarta
edição! Que symptoma tão melancólico dos tempos,
de que fala o apostolo S. Paulo: «Não soífrerão a
sã douctrina; buscarão mestres que lhes preguem em
linguagem rendilhada fabulas doutas, e tomarão a ver­
dade em odio.»
0 Juizo Universal ou Ultimo.—E ’também um dogma
de fé, que alem do juizo particular que se segue logo á
morte, ha de haver um segundo juizo chamado gei’al ou
ultimo, para todo o genero humano, ou porventura para
toda a creação, os anjos e os homens.
No fim dos tempos realisar-se-ha a segunda vinda
de Jesus Christo; descerá dos ceos como para lá ascen­
deu, e virá visivelmente julgar todas as creaturas ín-
telligentes, recompensar os justos e punir os peccado-
res: «Quando voltar o Filho do homem, diz S. Mat-
theus, xni, 37, em sua magestade, acompanhado de to­
dos os seus anjos, assentar-se-ha no throno de sua glo­
ria: E todos os povos da terra se congregarão na sua
presença, e ha de apartar uns dos outros como o pas­
tor aparta as ovelhas dos cabritos. E collocará as ove­
lhas á sua direita e os cabritos á sua esquerda. Então
o Rei dirá áquelles que estão á sua direita: Vinde,
512 OS ESPLENDORES DA FE

bemditos de meu Pai, possuir o reino que vos está pre­


parado desde o principio do mundo; porque tive fome
e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber,
estava nú e vestistes-me, sem asylo e recolhestes-me,
doente e visitastes-me, prisioneiro, e viestes ver-me;
porque em verdade vol-o digo, que aquillo que fizestes
ao minimo de meus irmãos, a mim o fizestes... Dirá em
seguida áquelles que estão á sua esquerda: Retirai-vos
de mim, malditos, ide para o fogo eterno preparado
para Satanaz e seus anjos. Pois tive fome e não me
destes de comer, sêde e não me destes de beber; não
tinha pousada e não me recolhestes; estava nú e não
me vestistes; doente e prisioneiro e não me visitastes.
Então estes irão para o supplicio eterno, e os justos
para a vida eterna!»
Para melhor inculcar a seus discipulos que seu man­
damento por excellencia, o mandamento da lei nova,
era a caridade para com o proximo, Jesus Christo quiz
que o unico motivo explicito da recompensa e do castigo
fosse o allivio ou o abandono do proximo. Mas a sa­
grada Escriptura diz em outras partes que os injus­
tos, os adúlteros, os perjuros, áquelles que retem o
salario dos obreiros, o oppressor da viuva e do orphão,
o espoliador do estrangeiro, os idolatras, os impudicos,
os fornicadores, os ladrões, os avaros, os ebrios, os mal-
dizentes, todos os viciados emfim serão excluídos do
reino dos ceos, e condemnados ao supplicio eterno...
S. Paulo afhrma que todos havemos de comparecer
deante do tribunal de Jesus Christo, afim de que cada
um receba o que é devido ás boas e ás más acções que
tiver feito em quanto esteve revestido do corpo, (n Cor.)
S. Pedro prophetisa nos seguintes termos o fim do
mundo e a formidável tragédia do juizo derradeiro:
« Os ceos e a terra estão destinados a ser abrazados
pelo fogo no dia de juizo e da ruina dos impios...
O dia do Senhor virá como o ladrão... E então
os novíssimos do homem 513

por entre o estrondo de uma horrorosa tempestade os


ceos passarão, os elementos se dissolverão, e a ter­
ra com tudo o que encerra, será consumida pelo
fogo... O ardor do fogo dissolverá os ceos, e fundirá
todos os elementos. Pois nós aguardamos novos ceos e
nova terra, onde a justiça ha de habitar (n Ep. m, 10.)
Cousa singular: ha dezenove séculos que as abóba­
das de nossas egrejas repetem este julgamento dos sé­
culos pelo fogo, e só d’alguns annos para cá é que esta
formidável sentença echoou nos amphitheatros da scien-
cia.
S. João Evangelista, em seu Apocalypse (xx, 1 e xxi,
1), desenha por sua vez um quadro grandioso e terrí­
vel das scenas do juizo derradeiro: «Vi um grande
throno rutilante, e aquelle que lá se assentava. Ao seu
aspecto a terra e os ceos fugiram, e não deixaram vestí­
gios ! Em seguida vi os mortos, grandes e pequenos,
comparecerem deante do throno!... Os livros foram
abertos, e abriu-se ainda um outro que é o livro da
vida... e os mortos foram julgados por aquillo que es­
tava escripto n’estes livros, consoante suas obras. E o
mar restituiu os mortos que tinha engulido; e o infer­
no e os sepulchros restituiram os mortos que possuíam;
e cada qual foi julgado segundo suas obras ... E aquel­
le que não estava escripto no livro da vida, foi arro­
jado no lago de fogo... E vi um novo ceo e uma nova
terra, porque o primeiro ceo e a primeira terra haviam
desapparecido e o mar já não existia!...»
Os Symbolos dos Apostolos, de S. Athanasio, de
Constantinopla e de Nicêa impõe-nos a crença de que
o Filho de Deus feito homem ha de voltar uma outra
vez á terra, mas em sua gloria para julgar os vivos e
os mortos, para dar a cada um, aos eleitos como aos
reprobos, segundo suas obras.
Mas ainda mesmo que este grande acontecimento
não nos houvesse sido claramente revelado e predicto,
VOL IV 4ü
514 OS ESPLENDORES DA F É

nossa razào, esclarecida pela fé, affirmaria sua conve­


niência, e até sua necessidade absoluta como conse­
quência e coroa do governo da divina Providencia.
Os juizos da historia são uma especie de juizo uni­
versal, mas longe de excluir o juizo derradeiro e de o
supporem redundante, exigem-no imperiosamente como
indispensável complemento, como plena e inteira con­
sagração.
A historia universal não passa de umas abstracções
que poucos lêem. Seus juizos não são públicos; são in­
completos, por vezes contradictorios: são sentenças
mortas ou pelo menos mudas que a ninguém se im­
põem; não comportam execução. O juizo universal, tal
como o Evangelho nol-o offerece, esse sim constituirá
uma sentença visivel, magnifica, solemnemente execu­
tada. Será mercê d'elle que o juizo da historia se vol­
verá uma pagina viva, aberta aos olhos de todos, onde
apparecerá tal qual é, e não tal como a entreviam os
olhos interesseiros e apaixonados do homem. Ao mesmo
tempo que será o grande dia da glorificação ou da con-
detnnação do homem, será o grande dia da glorificação
de Deus, do triumpho de sua sabedoria admiravel, que
conduz todos os seres a seu destino com doçura e sem
tolher a acção de sua liberdade, mas com uma força
irresistível que derriba todos os obstáculos! O triumpho
de sua justiça, que nenhum mérito deixa sem recom­
pensa, o nenhum demerito sem castigo! O triumpho de
seu amor que tudo empenhou para salvar o homem
perdido, em quanto o homem tudo fazia para se per­
der! O triumpho de seu poder, que até do mal se ser­
viu para o comprimento de seus designios eternos. Que
hyrnno de feito á gloria de Deus será esse grito una­
nime de todas as creaturas intelligentes no dia da con-
summação dos séculos! «Vós sois justo, Senhor, e v o s -
sls juizos soberanamente equitativos!»
os n o v í s s i m o s do h o m e m 515

Que reparação grandiosa não será a confusão dos


ímpios e seus gritos de desespero: «Logo errámos!»
Onde terá logar o juizo derradeiro? Ninguém o
sabe; mas se tomarmos á lettra esta passagem do pro-
pheta Joel (tu, 12): «Que todos se ergam e encaminhem
para o valle de Josaphat, porque lá hei de julgar as
nações!» poderemos suppor, como atraz (t. ra) indicá­
mos, que Jerusalem, logar da creação do homem, de
sua queda, de sua redempção, será também o theatro
da ultima scena do mundo e do juizo universal.
Quando será o fim do mundo ? Ninguém o sabe,
nem pode saber; mas uma interpretação legitima da
grande prophecia de Daniel, e também de certos si-
gnaes mysteriosos, descobertos pelo sr. Piazzi Smith no
corredor ascendente da grande pyramide, conduziríam
a este resultado, que o fim do mundo não vem longe;
que os acontecimentos que devem preludial-o já come­
çaram a cumprir-se; emfim que a ultima palavra do
mundo estará dita antes do fim do anno 6000.
A vida eterna.—E ’ uma consequência natural e for­
çada do dogma da immortalidade d’alma. Vida eterna
bemaventurada para os justos, vida eterna desgraçada
para os maus, é ou paraizo eterno para uns, ou inferno
eterno para outros.
Aquelles, os justos, collocados á direita, no acto da
terrível e eterna separação dos bons e dos maus, irão
para a vida eterna.
Estes, os maus, apartados para a esquerda, irão
para um supplicio eterno. E ’ a sentença final! E ’ a ul­
tima palavra do mundo. E’ também a fé catholica e a
crença universal do genero humano.
Quem o diria? certos philosophos, os partidários
antihumanos ou homicidas da moral independente, que
professam, que devemos evitar o mal só por causa de
sua deformidade, da desordem que traz, e que devemos
fazer o bem só por causa da sua bondade e belleza in-
5 16 OS ESPLENDORES DA FÉ

trinseca, pondo de lado a própria natureza, e o desejo


innato de felicidade e o horror instinctivo da dor, cen­
suram ao christianismo preoccupar-se demasiadamente
das penas e das recompensas da outra vida, da vida
eterna!
Haveria na opinião d’elles maior generosidade e
grandeza em fazer tudo o que se faz na perspectiva só
do dever, sem esperança alguma de recompensa, sem
nada esperar de Deus e sem nada lhe pedir.
Ora isto é talvez menos impio do que barbaro. Que
cegueira esta que não quer ver que a grande lei da na­
tureza inorgânica, attracção e repulsão, é também a
grande lei da natureza organica, do animal e do ho­
mem? O homem é essencialmente attrahido pelo pra­
zer, voluptate trahitur, e repellido ou sustido pelo receio
da dor ou do supplicio.
Quão cego e funesto, quão absurdo não é este des­
interesse, mesmo attendendo só á vida presente! Effe-
ctivamente, como é que o amor do dever, da virtude,
da ordem, do bem em todas as cousas, deixaria de se
tornar mais energico e mais poderoso n’alma, quando
em vez de só attentar no dever, na virtude, na ordem,
no bem abíoluto, como puras absíracções sem maldade
fóra do pensamento movei e fallivel do homem, sus­
penso entre a existência e o nada, reconhecesse em
tudo isso a vontade immutavel e sancta do ser eterno
e perfeito, do Deus Creador, do Legislador, do Kemu-
nerador supremo? Ora é este amor do bem que posto
em acção constitue o bem moral!
Sem fé em Deus e na vida futura, este amor é fraco
e esteril, como um ramo despegado da arvore. Só a
fé em Deus lhe communica uma seiva divina, o torna
forte e fecundo em boas obras. A sancta Egreja con-
demnou em Fenelon como exageração piedosa, como
illusão perigosa, a falsa ideia de que o grau o mais su­
blime do amor de Deus consiste em renunciar inten-
os n o v ís s im o s do hom em 517

cionalmente a tudo, mesmo á salvação eterna. E como


seria permittido ao homem renunciar ao estado de
bemaventurança, a que sabe Deus o chama, para o qual
lhe impõe como dever aspirar incessantemente, e que
tem a certeza de alcançai1a não ser que livremente
se torne inimigo de Deus?
A Vida Eterna Bemaventurada, o Ceo, o Paraizo. —
Em quasi todas as paginas do Antigo e do Novo Tes­
tamento se faz allusão ao ceo. «Onde eu estou, dizia
Jesus Christo, lá devem estar meus servos... Eu vou
preparar-vos um lo g ar... Todo aquelle que for fiel nas
pequenas cousas entrará na alegria do Senhor... na
vida eterna... Tomará posse do reino que lhe está pre­
parado desde o principio... Os eleitos receberão uma
coroa immarcescivel... Descançarão de seus traba­
lhos. .. Não haverá mais para elles tristeza, nem pran­
to, nem d o r... Todas as penas se trocarão para elles
n’uma alegria que ninguém lhes poderá tira r... Hão
de ver a Deus; hão de assentar-se em thronos... To­
marão parte em sua gloria, em sua magestade, em seu
império... Conhecerão a Deus, como d’Elle são conhe­
cidos, ser-lhe-hão semelhantes como participes da na­
tureza divina-..» S. Paulo que fora arrebatado ao ter­
ceiro ceo, ao paraizo, affirma que nunca os olhos viram,
nem os ouvidos ouviram, nem coração algum experi­
mentou ou comprehendeu o que Deus reserva áquelles
que o amam.
O concilio de Latrão decreta «que toda a alma pura
de peccado é logo admittida no ceo, e vê a Deus na
Trindade adoravel, tal qual é, segundo a medida de
seus méritos, um de maneira mais perfeita, outro de
maneira menos perfeita...; que esta visão de Deus de
modo algum procede das forças da natureza; que se
effectua sobrenaturalmente, e não impede que Deus fi­
que sempre incomprehensivel para todo o espirito
creado.»
518 OS ESPLENDORES DA F É

S. Agostinho (Sermão xxxvn) dá-nos em poucas pa­


lavras uma ideia da magnificência da vida futura: «A
gloria, a belleza, a magestade, que ha de aureolar a
nossa felicidade, excede toda a ideia, todo o senti­
mento, toda a palavra: o que Deus reserva para aquel-
les que o amam está acima de toda a crença e vai
muito alem de nossa esperança, de nosso amor, votos
e desejos... A felicidade do ceo consiste essencial­
mente na visão de Deus. Ao mesmo tempo que hão de
ver a Deus tal qual é, os eleitos hão de ver em Deus
todas as maravilhas da creação e os mysterios augus­
tos da Revelação, a historia do universo e a de cada
um dos seres do universo. Yer-se-hão a si proprios em
primeiro logar! Como Deus os tem amado desde a
eternidade, como os creou porque os amava, como
sempre os cobriu com olhares de pai, etc., etc. A his­
toria de sua vida desdobrar-se-ha a seus olhos até nas
menores insignificâncias... Sua fé está mudada em vi­
são, sua esperança em posse, mas sua caridade essa
permanece! Recordam-se d’aquelles que lhes estiveram
unidos pelos vinculos do sangue e de amizade; seguem-
nos com o olhar e o coração. Deus, a mesma luz, es-
parze sobre todos sua claridade, e penetra-os com seu
fulgor. Reconhecem-se, encontram-se com alegria, com-
prehendem-se, amam-se. Todos tem uma sêde inextin-
guivel de conhecer, de amar, de gozar; e esta sêde a
cada instante é apagada; vão de claridade em clarida­
de, de gloria em gloria, de amor em amor, de delicia
em delicia.»
E não se diga com Strauss que «uma ventura pro­
longada acaba por se tornar ao principio indifferente,
depois cheia de enojo, e logo em seguida insupporta-
vel, pois uma vida sem progresso é uma vida soberana­
mente mono tona e languida.» (Dogmatica, p. 687.) Isto
não passa de aberração de espirito, porque a bemaven-
turança do ceo ha de ter seu progresso incessante, que
OS NOVÍSSIMOS DO HOMEM 519

não será das trevas para a luz, da pobreza para a ri­


queza, do soffrimento para o bem estar, mas da vida
para a vida mais abundante, da alegria para a alegria
mais plena, da claridade para a claridade mais viva, do
amor para o amor mais ardente... Ao mesmo tempo
que Deus é a simplicidade e a unidade infinita, é tam­
bém a variedade e a multiplicidade infinita! B a prova
está em que o mundo e os mundos jorraram de seu seio.
E’ o oceano eterno e eternamente incommensuravel da
vida, o movimento perpetuo no repouso absoluto, a
carreira ainda quando o fim está attingido.
«Deus, diz S. Ireneu (Adversas Hoereses, n, 47) não
cessa de instruir seus escolhidos, e elles não cessarão
de aprender durante a eternidade, porque suas rique­
zas não tem medida, e sua sciencia não conhece limi­
tes. Será por conseguinte um progresso eterno! N’esta
vida do tempo ha incompatibilidade entre a acção e o
repouso, entre o desejo e a posse! Na vida futura a
acção e o repouso, desejo e posse são uma e mesma
cousa. Os bemaventurados desejam e possuem, e des-
fructam; são felizes, e cada vez o são mais e sempre!»
No entanto nem todos os eleitos são geralmente
bemaventurados; porque na casa do Pai ha muitas
mansões. Todos veem a Deus, a Deus inteiro, a Deus
que faz a felicidade de cada um : mas vêem-no diver­
samente, em differentes graus, e a felicidade maior de
um não causa a outro nem tristeza, nem inveja! A ale­
gria de um é a alegria de todos, e esta alegria é infini­
tamente variada em suas manifestações.
A humanidade resgatada combate n’este'mundo
tres mortaes inimigos: a carne, o mundo, o erro. No
ceo haverá também tres especies de triumphadores!
Os triumphadores da carne, as virgens que seguem o
Cordeiro para qualquer parte para onde vá, e cantam
um cântico que os outros não podem cantar. Os trium­
phadores do mundo, o coro dos martyres que deante
520 OS ESPLENDORES DA F E

dos homens confessaram o Senhor, e que o Senhor con­


fessa por sua vez na presença de seu Pai celestial. Os
triumphadores da verdade, o coro dos doutores, que
brilharão como estrellas em perpetuas eternidades. O
apostolo S. Paulo compendiou este ensino em poucas
palavras: «Os olhos do homem nunca viram, nem seus
ouvidos ouviram, nem seu coração suspeitou o que
Deus reserva para os escolhidos.»
Por certo que damos valor demasiado ao habito
de attribuir á bemaventurança do ceo um caracter de
inactividade ou de quietação, que se cifra n’estas tres
palavras, aliás mui significativas: videbimus, laudabimus,
amabimus! e que porventura melhor exprime o eterno
Ah! de Bossuet. Veremos, louvaremos, amaremos! Mas
ao mesmo tempo faremos outras muitas cousas e mu1
admiráveis.
Nada se oppõe a que admitíamos a pluralidade
dos mundos habitados e resgatados ou sobrenatura-
lisados.
S. Paulo affirma sem rodeios que Deus resolvera
na plenitude dos tempos restaurar no Christo tudo o
que está nos ceos, e tudo o que está sobre a terra, pu­
rificar, reconciliar, pacificar todas as cousas por Elle.
Um velho hymno do Breviario romano convida-nos
a cantar a gloria da onda sanguínea sahida do coração
do Redemptor, e que pacificou os continentes, as ilhas,
os astro3 e todo o universo!
David em um encantador psalmo que a Egreja de
Paris cantava outr’ora nas exequias das creancinhas,
exclama cheio de enthusiasmo: «Oh! Senhor, Deus
nosso, quão admiravel é vosso nome!... quanto vossa
magnificência é mais elevada que os ceos... Veremos
um dia esses ceos que vossas mãos estenderam, a lua e
as estrellas que vós consolidastes, etc., etc.»
E para que seriam os corpos dos eleitos resuscita-
dos, dotados de agilidade e revestidos de claridade, se
os n o v ís s im o s do hom em 521

peregrinações mysteriosas atravez os espaços celestes


os não estivessem a convidar? Onde será o paraizo, o
ceo ? Se a alma de Jesus Christo, diz Bergier, gozava
de gloria celestial sobre a terra, não é o logar que faz
o paraizo! Em rigor o paraizo é antes um estado, do
que logar. Pode ser o universo interio, no qual Deus
se deocobre aos sanctos e faz sua eterna ventura.
Pode também ser que o paraizo consista n’essa
nova terra e n’esses novos logares que Deus nos pro-
mette, como diz S. Pedro, e onde morará a justiça
cternamente. S. João, em seu Apocalypse, exalta ma-
gnificamente a gloria da Jerusalem celeste, morada de
Jesus ühristo, o cordeiro eternamente immolado e vivo,
e dos redimidos pelo cordeiro.
0 Inferno. A Eternidade das penas.
O grande dia da eternidade não nascerá só para os
justos, surgirá também para os peccadores. «Aquelles
que houverem feito o bem, diz o Syinbolo de S. Atha-
nasio, entrarão na vida eterna, e os que tiverem feito
o mal irão para o fogo eterno.»
Nenhum dogma da fé choca mais profundamente o
que fallazmente se denomina a consciência moderna. O
dogma do inferno no presente é o que ha de ser no ul­
timo dia a partida para o inferno: Ite, maledicli! a
joeira que separa os eleitos dos reprobos! Strauss, e de­
pois d’elle todos os racionalistas modernos, vão repe­
tindo que o inferno revolta o senso humano e injuria a
sanctidade e a bondade de Deus.
E não obstante a eternidade das penas é admittida
como indubitavel, como certa, pela tradição de todos
os povos da terra, pelo vulgo como pelos gênios os
mais famosos: Prometheu, Sisypho, Ixion, Tantalo, The-
seu, as Danaides, são testimunhos vivos e solemnes des
tormentos eternamente reservados aos inimigos de
Deus.
O dogma do inferno apparece claramente enun-
I

522 OS ESPLENDORES DA FÈ

ciado por Jesus Christo, que é infinitamente Sancto,


Justo, Bom, como seu Pae eterno é infinitamente San­
cto, Justo e Bom! e que amou os homens até ao extre­
mo de morrer por elles.
Que grave e eloquente é a licção da parabola do
mau rico e do pobre Lazaro! (S. Luc., xvi, 20): Havia
um homem rico, que vestia de purpura e linho, e que
todos os dias se banqueteava esplendidamente. Havia
também um mendigo chamado Lazaro, deitado á porta
d’e!le, coberto de úlceras, desejando, para matar a fo­
me, as migalhas que cahiam da meza do rico, e que
ninguém lhe dava. Ora aconteceu que o mendigo mor­
reu e foi levado pelos anjos para o seio de Abrahão. O
rico morreu também, mas foi sepultado no inferno.
Quando estava em tormentos, levantou os olhos e viu
dc longe a Abrahão e a Lazaro em seu seio. E gritando
disse: « Pai Abrahão, tem dó de mim! Manda a Lazaro
que molhe a ponta do dedo n’agua e me refrigere a
lingua, porque soffro horrivelmente n’estas chammas.»
E Abrahão disse-lhe: «Entre vós e nós ha para sem­
pre um grande abystno, aquelles que quizessem passar
d’ahi para aqui ou d’aqui para ahi não o poderiam ef-
fectuar.» E o rico tornou: « Pai Abrahão, tenho cinco
irmãos, despacha-lhes alguém que lhes falle d’estas cou-
sas afim de que não venham elles também parar a este
logar de tormentos.» Abrahão replicou: «Lá tem Moy-
sés e os prophetas, que os ouçam!»— «Não, pai Abra­
hão, se um morto lhes apparecer, dar-lhe-hão credito.»
— Abrahão respondeu-lhe: « Se não ouvirem Moysés e
os prophetas, ainda mesmo que um morto resuscitassei
não o acreditariam! »
Será apologo? Será historia? Uma e outra cousa,
sem duvida. O que é apologo é o sentimento de com-
miseração do mau riço por seus irmãos, que desejaria
premunir contra a eterna condemnação, sentimento que
não pas3a de figura, porque confirmado no mal como

/
os n o v ís s im o s do hom em 523

Lucifer, o reprobo deseja que todos compartilhem de


seu supplicio. Porem este sentimento devia ser occasião
de ouvirmos este ensinamento incomparável: « Lá tem
Moysés e os prophetas; lá tem os esplendores da fé e
a Egreja! Se não crêem na Egreja, nos Esplendores da
fé, também não aoreditarão, ao menos de fé efficaz, na
apparição de um m orto!
Parecerão ter sido victimas de uma illusão, e tal­
vez córassem de fallar d’isso, porque se ririam d’elles,
Logo as penas do inferno são eternas! Entre o ceo
e o inferno ha um abysmo insondavel. Não ha para o
condemnado sequer allivio ou refrigerio. *
E note-se: o mau rico não era um grande crimi­
noso, era simplesmente um homem do mundo, amigo
da vida regalada e egoista.
Jesus Christo affirmou debaixo de outras formas e
mais explicitamente o dogma capital da eternidade das
penas, «Não temais aquelles que não podem matar
mais do que o corpo, temei sim aquelle que pode lan­
çar a alma e o corpo no inferno.»
«Vale mais entrardes no ceo com um só olho, uma
só mão, um só pé, do que ir com os dois olhos, as duas
mãos e os dois pés, para o inferno, onde o verme roe­
dor não morre, onde o fogo que arde não se extingue.»
(S. Marc. ix, 24)
Mas a sentença do ultimo dia é soberanamente de­
cisiva :» Eetirae-vos de mim, malditos, ide para o fogo
eterno, que foi preparado para o diabo e seus anjos.»
E estes irão para o supplicio eterno!
Não será eterno sómente o fogo, sel-o-ha também
o supplicio! E esta sentença, este desfecho sahiram da

* E ’ um a opinião, a (Teste ultim o perio d o , que vê o u tra na sua


fren te, e qu e não foi c o n d em n a d a pela E greja.
N . do T.
524 OS ESPLENDORES DA F É

bocca de Jesus Christo, que é a sanctidade, a justiça,


a bondade e a doçura infinita. Logo o inferno é eterno,
soífrer sempre, morrer sempre.
Embora seja um terrivel mysterio, o inferno não
nega, antes affirma o Deus sancto, justo e bom ! Este
dogma é de tacto a chave, o fecho da abóbada de todo
o edifício christão, a coroa indispensável da historia do
mundo.
Tirae o inferno eterno como termo inevitável do
mal, e supprimis do mesmo traço equivalente, necessa­
riamente, toda a differença entre o bem e o mal, o anjo
e o demonio. O edifício do plano divino e da divina
providencia é totalmente transtornado. No fundo, o ceo
e o inferno eternos são a consagração pratica do prin­
cipio fundamental da moral natural, a distincção entre
o bem e o mal, entre o erro e a verdade, entre a ne­
gação e a affirmação. O inferno é a base do christia-
nismo. Se o inferno não fosse eterno, dizia S. Bernardo,
o Filho de Deus não se teria feito homem para nos
resgatar. Se a pena do peccado fosse temporal e finita,
para que teria vindo o Infinito e o Eterno soífrer essa
pena em nosso logar?
O Infinito soflre, morre, logo a causa, pela qual dá
sua vida ha de ser algo de infinito! Mas a pena tempo­
ral soffrida por um ser finito nada tem de infinita!
Deus é infinitamente bom, infinitamente misericor­
dioso!— De certo; mas sua justiça é tão infinita como
sua bondade e sua misericórdia. Assim como premeia
de um modo digno d’elle, também deve punir de modo
digno d’elle!
Como o ceo dos eleitos é eterno, o inferno dos pre-
citos também o deve ser.
Por maior que supponhais o supplicio, se lá deixar­
des a esperança, o inferno não será o inferno da justiça
de Deus.
Se houvesse de chegar o dia em que o justo e o
os n o v í s s i m o s do hom em 525

peccador, o martyr e seu algoz, o perseguidor e sua vi-


ctima disfructassem egual ventura, Deus deixaria de
ser justo e misericordioso.
E não se diga que o algoz só depois da expiação
pelo soffrimento meritorio é que se volvería o egual da
victima. Esta egualdade suppõe de feito antes de mais
nada que o algoz desconfessou seu crime e o expiou!
Pois o arrependimento, a expiação meritória exigem
necessariamente a liberdade. Ora a liberdade para o
homem acaba com a vida terrestre, expira no termo
de sua peregrinação, quando soar esta formidável voz:
não ha mais tempo! Tempo para o trabalho, tempo
para o negocio. A porta está fechada para sempre ! Não
te conheço!
Demais, e é a ultima palavra, tornemos patente a
suprema consagração do dogma da eternidade das pe­
nas! Onde caliir a arvore, ahi ficará! Fóra da vida não
ha liberdade, nem mérito, nem arrependimento, nem
expiação. A vontade será para sempre confirmada quer
no bem, quer no mal. Confirmada no bem e no amor
pela vista e posse de Deus. Confirmada no mal e no
odio pela certeza de haver perdido a Deus para sem­
pre. E esta confirmação no mal não é outra cousa no
fundo do que a perpetuidade e a eternidade do p ec­
oado.
Sim a razão ultima, a causa legitima do inferno
eterno está na vontade essencial e eternamente má do
peccador. De forma que o que me aterra não é tanto o
inferno, como é a confirmação no mal da alma que
morreu no peccado. O reprobo ha de querer sempre
seu supplicio, e ha de repellir todo o perdão, seme­
lhante aos grandes criminosos políticos que recusam
com indignação a graça que lhes é outhorgada pelo
soberano, que é mister arrancar, á força da cadeia, e
que só d’ella sahem para se condemnarem ao exilio,
526 OS ESPLENDORES DA FÉ

exilio que apeteceríam eterno, se eternamente houvesse


de reinar o soberano.
ÍTestas condições a eternidade das penas é um acto
de justiça, mas será também, dirão, um acto de cruel­
dade ; só cessaria de ser cruel, se Deus aniquilasse o
reprobo. Não! Deus não aniquila suas creaturas. Ani­
quilando o homem, contradir-se-hia a si mesmo, porque
lhe deu o presentimento e o desejo innato de sua eter­
nidade, e lhe assignou destinos immortaes! O airquila-
mento não seria uma expiação.
Não será inútil apresentar debaixo de outro aspe­
cto com Mgr. de Pressy, bispo de Boulogne, o resumo
das provas metaphysicas da equidade das penas eternas
do inferno.
I. O peccado mortal por sua gravidade infinita
exige uma pena infinita, e como esta pena não pode
ser infinita em intensidade, deve sel-o em duração. A
malicia do peccado mortal é infinita. De feito: l.° o
peccido mortal junta á revolta o desprezo: não quere
quo Deus seja seu ultimo fim; ora é de essencia de Deus
ser o fim ultimo do homem. O peccado encerra implici­
tamente o implacável desejo de que Deus não conheça
o crime commettido, ou que o conheça sem o querer
punir; ou que o queira punir sem o poder, quer dizer,
que nega ao mesmo tempo a sciencia, a justiça e o po­
der infinito, todos attributos essenciaes de Deus. 2.°
A ingratidão do peccador é infinita, porque recebeu de
Deus bens rigorosamente infinitos, a creação, a incar-
nação, a redempção, a promessa de uma bemaventu-
rança eterna: uma tal ingratidão provoca uma pena in­
finita tanto quanto o pode ser.
II. Aquelle que pecca mortalmente quer, tanto
quanto o pode, peccar sempre, logo merece ser punido
sempre. O peccador, diz S. Bernardo, nunca deixaria
de querer seu peccado, se nunca morresse; ou antes
querería viver sempre para poder peccar sempre. De
os novíssimos do homem 52 7

modo que pode dizer-se d’elle que em um pequeno es­


paço de tempo, encheu a medida dos tempos infinitos
e mereceu soffrer sempre.
III. A alma impenitente, não podendo depois da
morte nem apagar a mancha, nem abolir a culpa, nem
perder a memória do seu peccado, deve soffrer-lhe sem­
pre a pena. Os reprobos, como outros tantos furiosos,
sentirão vivamente sua desgraça, mas gabar-se-hão de
sua conducta, e antes quererão ser sempre o que são
do que não ser. De tal modo terão prevertida sua intel-
ligencia, que será absolutamente incapaz de bem ajui­
zar das cousas. Dos reprobos pode dizer-se o que Bos-
suet diz dos demonios: «Espíritos maldictos, aborreci­
dos de Deus e aborrecendo-o! Como cahistes tanto ?
Quizestel-o, e quereil-o ainda, pois que quereis ser sem­
pre soberbos, o por um indomável orgulho ficais sem­
pre obstinados em vossa desventura! Não sois capazes
senão d’esse prazer negro e maléfico, se se lhe pode dar
o nome de prazer, que facultam um orgulho cego e um
baixo ciume.»
IV. As penas infligidas ao peccado devem ser eter­
nas, porque recompensas magníficas e sobrenaturaes,
promettidas por mera graça á virtude, são egualmente
eternas. De feito: l.° um crime de lesa magestade divina
não é digno de menos castigo do que um ado heroico de
amor divino é digno de recompensa ; 2.° não ha injus­
tiça em augmentar a duração do castigo alem do tempo
durante o qual o crime, considerado só em sua natu­
reza, merece ser punido, com tanto que se auginente
em proporção egual a duração do tempo durante o qual
o acto de amor divino, considerado só em sua natureza,
merece ser recompensado.
0 Logar do Inferno. — Onde está situado o inferno?
Só Deus o sabe! A revelação cala-se a tal respeito, e
apenas nos ficam conjecturas. Muitos collocam o inferno
no centro da terra, foco incandescente do calor central-
528 OS ESPLENDORES DA FÉ

Esta opinião pretende fundamentar-se n’estas palavras


do Salvador: «Eu via a Satanaz precipitado do ceo
como um raio!» Cahir, precipitar-se, aplica-se sobretudo
ás quedas para a terra. S. Agostinho que em sua obra
de Genesi ad litteram, tinha dito que o inferno não está
situado no interior da terra, reconhece em suas retra-
ctações que deveria antes ter dicto o contraído. E ac-
crescenta: Só Deus que preparou o inferno, sabe o que
é e o que será o inferno. Só elle conhece seu logar,
comprimento, largura e profundidade.
As Penas do Inferno. — São de duas especies: as pe­
nas de privação, penas de damno, e as corporaes ou
dos sentidos.
Penas de damno. — O reprobo perdeu a Deus. A
perda de Deus é só de per si o inferno. Deus perdido,
perdida está a consolação, a esperança, a felicidade. O
condemnado só vive para os tormentos, o proprio e o
dos outros. Está feito um vaso de cólera, do qual diz o
Psalmista: «Calix cheio de mistura amarga, que se en­
torna ora para um lado, ora para outro, mas cujas fe­
zes nunca se esgotam; todos os peccadores da ferra o
hão de beber.» (Ps. l x x i v , 9).
Penas dos sentidos. — Alem da pena de damno, será
o reprobo atormentado em todas as potências d’alma.
Sua imaginação representa-lhe sem cessar as alegrias
dos escolhidos. Sua memória está toda occupada do seu
peccado, que revolve sem descanso. Sua razão desdo­
bra adeante d’elle a eternidade. Sua vontade consome-
se em uma lucta desesperada contra sua sorte irrevo-
gavelmente fixa. E ’ o verme roedor que não morre,
juncto ao fogo que, jamais se extinguirá. Este fogo será
um fogo metaphorico, ou um fogo physico ? E ’ de fé ou
quasi de fé, que o fogo cujos ardores sentem os demô­
nios e as almas dos condemnados, é physico, ateado
pela justiça de Deus, ardendo sem combustível; tor­
nado apto pela vontade e omnipotencia de Deus para
OS NOVÍSSIMOS DO HOMEM 529

se fazer sentir até dos puros espíritos. Não será um acon­


tecimento verdadeiramente providencial, que uma das
maiores descobertas da sciencia moderna haja sido a
de um fogo excitado só pela concentração no foco de
uma lente, no ar ou no vasio, de um fogo que consiste
unicamente nas vibrações do fluido luminoso ou ethe-
reo, fogo assaz intenso para tornar a platina incandes­
cente, fogo que se identificaria tanto melhor com o fogo
do inferno, quanto é certo ser invisível e obscuro, como
o exige a estranha e horrida associação das trevas e
dos ardores eternos, a que os livros sanctos tantissimas
vezes alludem?
Mas como explicar o mysterio da conservação eter­
na da existência dos condemnados e dos demonios, no
seio de um fogo tão ardente, e de soífrimentos physicos
tão atrozes? Segredo de Deus! Ha todavia no Evange­
lho uma palavra extraordinária que tudo explica: «Seu
verme roedor não morre, seu fogo não se extingue*por­
que a victima é salgada e conservada pelo fogo, como
a carne é conservada pelo sal.» E’ Jesus Christo que
fala. Por sua omnipotencia Deus, motor supremo, ex­
cita e alimenta eternamente estas vibrações ardentes.
E por outro effeito de sua omnipotencia conserva aquel-
las tristes victimas, sem que jamais se embote n’ellas o
sentimento da dor. Deus dizia S. Agostinho tortura e
poupa, atormenta e preserva; de sorte que, passados
milhões de séculos, sua pena será tão nova e tão intole­
rável como no primeiro instante. O reprobo morre e
vive. Succumbe e subsiste.
Allivio das penas dos condemnados. S. Agostinho.
(Enchiridion, cap. c x i i ) , não censura aquelles que
crêem que as penas afflictivas dos reprobos são de tem­
pos a tempos alliviadas ou mitigadas; permitte susten­
tar esta opinião, com tanto que se defenda como sim­
ples hypothese, e que não se negue a eternidade d’es-
vol iv 44
530 OS ESPLENDORES DA FÉ

sas penas, ü mesmo sancto doutor ensina que as preces


que se fazem pelos condemnados lhes aproveitam não
para abreviar sua condemnação, mas para a tornar sup-
portavel. Não tolhe que se pense que para um grande
numero de condemnados, menos criminosos do que Ju ­
das, é melhor ser do que não ser, de modo que não la­
mentariam haverem sido tirados do nada. Não estra­
nha que Deus em logar de os tratar com dureza, use
com elles de uma certa misericórdia, punindo-os menos
do que merecem. Não discutiremos esta opinião; con-
tentar-nos-hemos de a consignar, accrescentando que
não nos é sympathica, que a nosso ver não tem nenhuma
probabilidade, porque tomamos á lettra o «abysmo in-
vadeavel entre o ceo e o inferno> e a recusa ao mau rico
de uma gota d’agua que lhe refrigerasse por um instante
a lingua; assim como esta sentença do Apocalypse (xiv,
11): «Serão atormentados noite e d ia ... Não terão re­
pouso nem de dia, nem de noite»: mas remettemos o
leitor que quizer aprofundal-a para as instrucções pas-
toraes de Mgr. de Pressy, bispo de Boulogne (Obras
completas, ed. de Migne) ou para as obras do snr. ab-
bade Emery (ed. Migne). O sr. Emery conclue assim:
«Hoje que se disputa mais sobre a natureza e o exces­
sivo rigor das penas do inferno, do que sobre sua reali­
dade, a charidade, a prudência estão a aconselhar que
se advirta que o que mais parece revoltar na especie e
duração das penas não pertence á fé; que no seio das
escolas catholicas se debatem ácerca da natureza do
fogo do inferno, da intensidade de suas penas, e parti­
cularmente sobre a possibilidade de lhes procurar alli-
vio, opiniões a que se pode adherir sem escrupulo, e
que são mui próprias para socegar o que mais revolta
a imaginação.»
Mas para que tantas transacções? E’ conveniente
que o espirito do reprobo encontre um castigo mui
1

OS NOVÍSSIMOS DO HOMEM 531

atroz. Sim, sentir-se-ha eternamente esmagado sob o


peso da justificação divina. Dizem: «O Senhor é injusto!
Eu é que sou o injusto!... e não o serão seus caminhos
corrompidos. O’ ceos, estremecei de horror! Pranteai
portas do ceo, sêde inconsoláveis, porque meus filhos
fizeram dois grandes males: abandonaram-me a mim,
que sou fonte d’agua viva, e cavaram para si cisternas
lodosas que não podem conservar a agua que se lhes
deita... Sobre a terra passam-se cousas estranhas, e
que não podem ouvir-se sem o maior assombro... O
milhano conhece no ceo quando é chegado o seu tempo;
a andorinha e a cegonha sabem discernir a quadra de
suas migrações e meu povo não conheceu o tempo
de meu julgamento! Nutri filhos, e em seguida despre­
zaram-me. O boi conhece o dono; o asno o estábulo
d’aquelle a quem pertence; meus filhos porem não me
conheceram...! Quebraram meu jugo, despedaçaram
meus vínculos, e disseram: Não servirei!... A mim é
que elles irritam? diz o Senhor. Não dão antes em si,
cobrindo-se de confusão?... Quantas vezes lhes tenho
dito: Chamai-me pois ao menos agora, e invocai-me,
dizei: vós sois nosso Pai! Não deixeis escapar o dia de
minha misericórdia; buscai o Senhor, em quanto pode
ser achado; invocai-o emquanto está proximo; conver­
tei-vos, tornae para vosso pae, e guarecerei o mal que
vos tendes feito apartando-vos de mim. Porque são as
vossas iniquidades que tem seccado muitas graças e os
vossos peccados que se tem opposto ao bem que dese­
java fazer-vos. Quantas vezes tenho dito aos ministros
de minha justiça: Instrui, instrui ainda! Esperai, espe­
rai ainda! E vós obstinados em proferir: Não tenho
peccado, estou innocente!. . Então chegou o fim, o fim
veiu!.-. Entrarei em juizo comvosco! Vossa própria
malicia vos accusará; é do meio de vós que hei de ti­
rar o fogo que vos devore as entranhas... Então a af-
532 OS ESPLENDORES DA F É

flicção dar-vos-ha a intelligencia, e toda a iniquidade


fechará a bocca ao mau, compellido a dizer: A h! infe­
liz de mira; minha chaga é maligna e incurável; e eu
sou a unica causa de meu mal, é justo que eu soffra!»
Que dizer em presença d’esta linguagem evidente­
mente divina?
Calar, tremer e adorar.
CAPITULO TRIGÉSIMO SÉTIMO

A Egreja. Fóra <la Egreja não ha salvação. — A Egreja


e a civilisação. — A civilisação sem a Egreja é a bar­
bárie.—A Egreja e o Estado. — O Poder temporal
do Papa.

A E g re ja . D efinição e m issã o d a E g reja . — A Egreja,


na definição de S. Paulo, é o corpo mystico de Jesus
Christo. Este corpo tem sua organisação harmônica,
perfeita, com distincção de ordens e de funcções, for­
mando uma hierarchia celeste e terrestre ao, mesmo
tempo.
Christo, cabeça d’este corpo, habita os ceo«, d’onde
irradia as ondas de sua luz divina. O successor de Pe­
dro, chefe visivel da Egreja, é o primeiro que estes
raios illuminam. Seus lábios, orgão do Espirito Sancto,
descerram-se para promulgarem os oráculos da sabe­
doria eterna.
Abaixo d’este chefe supremo, presos a elle por vín­
culos sagrados, movem-se orgãos illuetres, cujas multi-
plices funcções concorrem para diffundir a vida divina
do Deus Salvador.
E porque Jesus Christo, a cabeça, é um, a Egreja
é uma, e porque Jesus Christo é sancto, a Egreja é
534 OS ESPLENDORES DA FÉ

sancta: sancta em suas origens e em seus fins; sancta


pelo espirito que a inspira e pelas virtudes que flore-
cem ao sopro d’este espirito; sancta em sua doutrina e
preceitos; sancta na melhor parte de seus filhos.
Jesus Christo é o caminho, a verdade e a vida,
logo a Egreja com exclusão de qualquer outra socie­
dade é o caminho que conduz á verdade sem sombra e
á vida sem declinar. Quem a não tem por mãe, quem
não íor alimentado a seus peitos, quem não for vestido
por suas mãos virginaes e maternaes da branca túnica
do Cordeiro, não tem a Deus por pae. não entrará na
sala do festim, não se assentará á meza dos filhos de
sua familia...
Jesus Christo tinha uma obra grande e capital a
fazer, era a missão de tudo libertar', de tudo resgatar,
de tudo purificar e edificar. A Egreja, irradiação e am­
pliação de Jesus Christo, é por isso mesmo universal
ou catholica. Para ella são todos os tempos e todos os
logares. Em qualquer sitio, onde puzer o pé, está em
dominio proprio, porque toda a descendencia de Adão
lhe foi dada em herança, a seu cargo está a humani­
dade inteira.
As nações e os povos não tem o direito de se ate-
rem á vida de pura natureza, sujeitas unicamente ás
leis da razão: como os individuos devem acceitar com
a revelação uma forma de vida superior e sobrenatu­
ral, que longe de absorver sua existência natural, a am­
plia, ennobrece e coroa ..
Mas como se eífectuará esta posse da humanidade
pela Egreja? Estas palavras ioram dietas, poderosas e
fecundas como as de Deus: «Ide, ensinai todas as nações.
Conquistareis as almas pelas almas; as sociedades pe­
las sociedades, e até o solo, no qual vivem. E conquis­
tareis tudo isto não para dominar á maneira dos des-
postas da terra, mas para me assimilardes o genero
humano.» A Egreja para cumprir a ordem recebida,
A EGREJA 535

tem direito á liberdade de ir e vir, de pregar, liber­


dade plena e inteira, sem restricções, liberdade que
não é obrigada a solicitar dos poderes temporaes por­
que é de direito seu absoluto e divino. Nada de barrei­
ras, nada de empachos, é mister que a Egreja seja li­
vre ; e para a tornar livre, Deus, que quer salvar o
mundo, empregará a força de seu braço! -..
A Egreja ê uma sociedade e uma sociedade perfeita.—
A Egreja é uma sociedade, i é, uma multidão de seres
intelligentes e livres, unidos no proseguimento do mes­
mo fim. Membros da Egreja, não somos unidades isola­
das, lançadas ao acaso sobre todos os pontos do globo,
não dependendo senão de nós mesmos, entregues a
nossas próprias forças ou melhor a nossa fraqueza. For­
mamos uma sociedade universal e immensa... Esta
sociedade, a Egreja, é divina, espiritual, sobrenatural,
mas não obstante isso pelos membros que recruta, pe­
los vínculos exteriores que ata com elles e entre elles,
pelos meios sensíveis que emprega, é uma sociedade
humana; vive sobre a terra; respira na atmosphera
que nos cerca; desenvolve-se no tempo e no espaço; é
uma voz que falia, echo fiel da voz do alto e que reti­
ne até ás extremidades do globo: é o braço que se es­
tende, governa, abençoa, e pune; é a luz, não escon­
dida debaixo do alqueire, mas posta sobre o candela­
bro ; é a cidade edificada sobre a montanha, exposta
ás vistas de todos; o aprisco onde devem todos entrar
como filhos, devem poder reconhecel-a, discernil-a...
Mas como discernil-a, se ella não tiver na fronte si-
gnaes inimitáveis, o diadema cingido por mão divina?
Tirai á Egreja este brilho, este resplendor, esta vi­
sibilidade, não mais haverá sociedade universal ou ca-
tholica.. ■
Toda a sociedade é constituída pelo principio que
a especifica, a determina, a distingue, lhe imprime um
536 OS ESPLENDORES DA FÉ

caracter particular, lhe dá uma physionomia própria, a


caracterisa em summa na hierarchia das sociedades.
Este principio determinante e constitutivo de uma
sociedade é essencialmente seu fim. O fim da Egreja é
Deus visto em sua essencia, Deus possuído em sua pró­
pria felicidade pelos hom ens... Conduzir os homens a
este fim superior, eis sua missão.
Toda a sociedade implica uma organisação.. . Na
Egreja ha um povo governado e um governo consti­
tuído por mandado divino, governo dotado de um du­
plo poder: de um poder de ordem indelevel, immedia-
tamente deputado para a sanctificação das almas, pela
administração dos sacramentos: um poder de jurisdi-
cção, cuja funcção é reger o rebanho de Jesus Christo^
quer propondo de maneira obrigatória á intelligencia
humana a doutrina da verdadeira fé, quer dirigindo efíi-
cazmente a vontade humana por mandamentos pro­
priamente dictos.
D’aqui duas hierarchias: hierarchia de Ordem, hie­
rarchia de Jurisdicção.
No fastigio o Pontífice romano, vigário de Jesus
Christo, Príncipe ou Padre supremo, que possue sobre
toda a Egreja um pleno e universal poder, que se chama
Primado.
Abaixo d’elle estão os bispos, pastores verdadeiros
e propriamente dictos. Instituídos na Egreja para se­
rem os cooperadores do summo pontífice, para com
elle partilharem o peso do munus pastoral, tem em vir­
tude de instituição divina aptidão necessária para diri­
gir perfeitamente os fieis, elevados como estão ao mais
alto grau da hierarchia da Ordem...
Em seguida vem os presbyteros, cooperadores dos
bispos em virtude de sua instituição, na administra­
ção dos sacramentos, á excepção da Ordem e da Con­
firmação.
A EGREJA 537

A constituição da Egreja é uma constituição mo-


narchica, a Egreja é uma monarchia... Mas que mo-
narchia? Absoluta, temperada, representativa? Pode
seguir-se a opinião de Bellarmino, que diz ser uma mo­
narchia temperada de aristocracia e de democracia.
Deixemos porem estes confrontos; o melhor é dizer
com o concilio de Florença, cuja definição o do Vati­
cano reproduziu, que o papa possue pleno poder de go­
vernar toda a Egreja.
E esta Egreja será uma sociedade perfeita? Na
linguagem do direito social entende-se por sociedade
perfeita uma sociedade autonoma, independente, que a
si só se pertence; cujo fim e meios necessários para o
attingir não estão subordinados ao fim e aos meios de
outra qualquer sociedade. Dada esta definição, dire­
mos que a Egreja é uma sociedade perfeita. Não nas­
ceu da vontade dos homens, mas da vontade de Jesus
Christo.
Ella é o reino de Deus sobre a te rra ; está livre por
direito de toda a humana sujeição; possue soberana­
mente o tríplice poder legislativo, judiciário e executivo,
até por meios physicos. Porque se respectivamente a sua
origem é um poder espiritual, é também uma sociedade
temporal, visto que nas condições do tempo seus súbdi­
tos são homens feitos de matéria e espirito. Em razão
de sua perfeição, a Egreja não está de modo algum su­
jeita á lei universal da mudança, permanece firme e
immutavel em meio d’essa torrente de séculos que ar­
rebata homens e impérios. Mas longe de ser a inércia
immutavel da matéria, é antes a viva e fecunda imrnu-
tabilidade de Deus.
A Egreja é uma sociedade viva e fecunda. — A Egreja
é regularmente uma obra prima, a obra prima de Deus!
E ’ viva; traduz-se e revela-se em virtude de uma força
intima, secreta, que jorra do mais profundo do seu ser e
538 OS ESPLENDORES DA FÉ

a impelle para deante, a vida. Move-se por si mesma.


Fala, e os effeitos provam que sua palavra não é um
vão som, mais ou menos echoante, mas que está ani­
mada pelo sopro de um peito vivo. Pelo passo, repleto
de graça e de magestade, mostra-se rainha. Opera, e sua
acção traz consigo o signal irrecusável de uma energia
vital, que reflecte e exprime no exterior. A Egreja é
dotada em summa de movimento espontâneo, que é o
caracter proprio da vida. Esta vida da Egreja é inde­
pendente de todos os poderes humanos. E’ certo que
no decorrer das edades, tem ell'a muitas vezes contra-
hido allianças intimas com os poderes da te rra !
Ella crê, ella ensina que a união entre a Egreja e
o Estado está em a natureza essencial das cousas; que
é da vontade de Deus; que d’esta intelligencia cordeal
resultam grandes bens para a vida das almas e para a
A’ida dos corpos, para a vida dos indivíduos e para a
vida das nações.
Não cessa de dizer aos governos que a renegam.
Não quereis auxiliar-me, marchar de concerto comigo,
promover comigo a grande obra da civilisação christã,
tanto peor para vós! Nunca mostrei mais vida do que
quando despojada de todo o signal externo, entregue
ao desprezo dos sábios e aos maus tractos da multidão
sanguisedenta, flagellada pelas mentiras e calumnias
dos doutos, esbofeteada pela mão dos biltres, de novo
ostentei aos olhos do mundo a nobre e sanguinolenta
imagem de Christo coroado de espinhos, entregue pelo
fraco proconsul romano á plebe judia, dizendo: Eis o
homem! E’ também a minha condição actual! Indigi-
tando-me gritam : Eis o inimigo! E no entanto estou
viva e bem viva! Ao meu lado surgem egrejas rivaes!
Aparentemente fazem grande figura sobre a terra.
Ao seu dispor estão as tres grandes potências, o ouro
que tudo compra, a força que tudo faz vergar, a diplo-
A EGREJA 539

macia que tudo consegue! A bandeira da Inglaterra, a


espada do imperador da Allemanha, e o sceptro do
autocrata de todas as Russias, protegem-nos!
E vivem? sem autonomia, sem independencia, sem
acção própria, circunscriptas nos limites que o dedo do
homem lhes traçou; felizmente mettidas debaixo do
jugo, vegetam desprezíveis na deshonra da escravidão,
e no opprobrio da esterilidade!
A Egreja catholica, essa vive; possue a vida no
mais alto grau, com bem distinctos caracteres: a uni­
dade e a fecundidade.
A vida da Egreja é uma vida una e sempre idênti­
ca comsigo mesma; uma vida perpetua e de fecundi­
dade inexhaurivel! Uma só fé! um só baptismo! um só
altar. Um só ensino!
Só a Egreja submetteu a tal ponto o entendimento
do homem, que este nos espíritos os mais altos como
nos mais humildes tem vivido de seu sopro e se tem
alimentado de sua palavra. Uma só fé acceite por mi­
lhões e milhões de homens, proclamando o mesmo en­
sino sempre idêntico, nos tempos os mais diversos e sob
as mais variadas formas, determinando a unidade das
intelligencias na adhesão á mesma verdade; a união
dos corações n’um só e idêntico amor de Deus e de
nossos irmãos; a unidade da obediência na mesma sub­
missão á auctoridade suprema, trazendo estampado na
fronte o sello da auctoridade divina e submettendo as
vontades humanas tão rebeldes e tão orgulhosas, sob a
magestade do mesmo eommando; finalmente a unidade
das almas em a mesma adoração.
Um altar! sempre o mesmo, embora levantado so­
bre todos os pontos do globo! Uma victima sempre a
mesma, embora offerecida todas as manhãs no oriente,
no occidente, no septemtrião, no meio-dia! um sacerdó­
cio, de todos os tempos, de todos os logares, perpassan­
do em seu coração e murmurando com os lábios a prece
540 OS ESPLENDORES DA FÉ

de todos os degradados filhos de Adão; haurindo no


coração aberto de Jesus Christo as ondas do sangue re-
generador, para o derramar pelos canaes dos sete sa­
cramentos nas veias exhaustas da humanidade. Cada
corpo vivo occulta em suas entranhas uma força se­
creta que o dota com uma certa immortalidade; pois
mercê d’ella, pode reproduzir-se em outros corpos, e
fazer brotar ondas de vida até ás mais remotas gera­
ções. Da mesma sorte Jesus Christo deu á sua Egreja a
gloria de uma fecundidade sem exemplo, que escapa a
todo desliz e que ultrapassa todos os limites. Por sua
catholicidade e sanctidade, a Egreja patenteia-nos este
duplo milagre de uma vida universal sempre conquista-
dora, sempre tomada de folhas, flores e fructos!
Catholicidade de vocação: Escolhi-vos e colloquei-
vos, para que vades e deis fructos, e taes fructos perma­
neçam !
Catholicidade de missão: Ide, ensinai todas as na­
ções, baptizai-as e ensinai-lhes a observar os meus pre­
ceitos !
Esta dupla catholicidade de vocação e de missão
de aptidão e de facto, só a Egreja a possue! Assim
como é um unico o sol que se ergue acima de nossas
cabeças e illumina o mundo com sua luz, assim tam­
bém uma é a religião que abraça todos os tempos, to­
dos os logares, todas as almas, sobrevivendo vai em dois
mil annos a todas as gerações, adaptando-se a todas as
edades e a todas as raças da humanidade; satisfazendo
a todas as necessidades, tomando dia a dia mais amplo
logar no espaço; experimentando aqui e acolá perdas
e diminuições, mas reparando estas deficiências de hoje
pelas conquistas do dia d’amanhã; arrojando até ás ul­
timas fronteiras do mundo as legiões pacificas e con-
quistadoras de um apostolado que nenhum obstáculo
entibia, que nenhuma selvageria amedronta, que ne­
nhuma resistência desanima, que nunca diz: basta!
A EGREJA 541

Outrotanto pode affirmar-se de sua sanctidade.


Possue ella uma sanctidade interna, fundamental, que
é a origem de sua sanctidade exterior, que é a substan­
cia de sua vida, que por Jesus Ohristo lhe foi transfun-
dida. D’este manancial profundo e vivo extravasam-se
as aguas fecundantes, que sobre esta nossa terra, turgi-
da pelo orgulho, deshonrada pela luxuria, esfriada pelo
egoismo, devorada pela cupidez, no seio d’esta humani­
dade roida e carcomida de mil paixões sensuaes, faz
brotar legiões de sanctos.
A Egreja é uma sociedade necessária. Fóra da Egreja
não ha salvação. Nada mais certo do que esta maxima:
fóra da Egreja não ha salvação! Jesus Ohristo disse:
Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ora a Egreja
não é mais do que a extensão, o ampliamento de Jesus
Ohristo a todos os pontos da duração e do espaço. Logo
é ella o caminho, fóra do qual força é perder-se um ; é
ella a verdade, a unica que pode illuminar o homem
com uma luz brilhante e inextinguivel; é ella a vida
que jorra até á eternidade. E’ de facto á Egreja só que
Jesus Ohristo disse: Ide, ensinai todas as nações, bapti-
zai-as, instrui-as acerca da observância dos meus pre­
ceitos, aquelle que acreditar e receber o baptismo será
salvo.
A Egreja é a sala do banquete, o aprisco, o reino,
a cidade, a casa, o corpo de Jesus Ohristo! Fóra do
banquete não ha viveres! Fóra do aprisco não ha ove­
lhas amadas, defendidas, nutridas! Fóra do reino não ha
cidadãos dos ceos! Fóra da casa não ha filhos do pai de
familia! Fóra do corpo não ha membro vivo. E’ o signi­
ficado d’esta tocante imagem. (S. Jo. xv, 1 e seg.)
«Eu sou a videira, meu Pai o agricultor... vós os
sarmentos. Aquelle só que permanece em mim e eu
n’elle, dará muito fructo... se alguém não permanece
em mim, será lançado fóra como sarmento cortado e
542 OS ESPLENDORES DA FÉ

seccará; depois será enfeixado, arrojado ao fogo, e ar­


derá !»
Aqui está o dogma: Fóra da Egreja não ha salva­
ção, enunciado de maneira cathegorica pelo Senhor Je ­
sus que amou os homens até ao excesso, até morrer
por sua salvação, até se volver o companheiro perpetuo
da sua peregrinação, até se lhes dar em alimento para
os conduzir ao ceo.
E ainda ha mofinos que se atrevem a dizer que
este dogma é cruel! embora tudo o que tem havido de
grande, de sancto na humanidade regenerada, se haja
tornado echo fiel e submisso d’elle. Ouçamos um só, S.
Agostinho: «Fóra da Egreja catholica, o herege pode
ter tudo, excepto a salvação. Pode ter honra; pode
cantar alleluia, e responder amen; pode guardar o Evan­
gelho; pode em nome do Padre, do Filho e do Espirito
Sancto prégar a fé. Mas a fé só na Egreja catholica a
poderá encontrar.» (Serm. v ao povo de Cezarêa.) Al-
gures lê-se este bello arroubo de seu coração: «Ame­
mos, amemos o Senhor Deus como Pai! Amemos a
Egreja como nossa mãe! Que importa que confesseis
o Senhor, que o honreis e prégueis, se blasphemaes a
Egreja?» (Serm. n sobre os Ps.) E’ esta licção severa
dada aos livres pensadores e aos apostolos da moral in­
dependente de seu tempo que iam dizendo:
«De Deus recebemos o ser de homens, mas de nós o ser
justos!» «Cautela com as illações! E se vos resta ainda
algum sentimento, atemorisai-vos! aquelle que julga
produzir de si mesmo fructos, não está na videira;
aquelle que não está na videira não está em Christo;
aquelle que não está em Christo não é christão! Eis as
profundezas e abysmos de vosso partido.»
«E’ mister escolher ou a videira ou o fogo.» (Tra­
tado 82 sobre S. João).
E ainda este anathema que parece de antemão pre-
A EGREJA 543

parado contra os eclecticos do décimo nono século:


«Tem havido pois certos philosophos, tractando longa
e subtilmente das virtudes e dos vicios, dividindo, defi­
nindo, propondo razões e formulando as mais agudas
conclusões, publicando livros, fazendo soar por trombe-
tas de estentor a sabedoria de que se criam possuidores,
ousando affirmar aos demais homens: Se quereis ser fe­
lizes, segui-me, filiai-vos na minha seita. Entravam não
pela porta, mas pela janella ou atravez das paredes;
queriam perder, degollar, matar. Perdere volebant, ma-
ctare et occidere! !!»
A razão juncta aqui sua voz á da revelação e da
tradição. Se a Egreja é a verdade, poderá acceitar a
falsidade ? Pois a verdade não será por indole exclusiva,
intolerante? Pois o sim e o não poderão jamais dar-se
a mão e caminhar junctos pacificamente? A Egreja é
não uma religião, mas a Religião! Ora qual é o fim da
Religião? Reatar os vínculos que prendem o homem a
l)eus e salval-o. Logo que o lançardes fóra da Egreja,
por esse facto apartail-o de D eus... O catholico ha de
forçosamente dizer: Fóra da Egreja não ha salvação!
O protestante dirá: Fóra de Jesus Christo não ha sal­
vação ! O deista: Fóra da crença em Deus não ha sal­
vação ! Só o atheu ou o materialista, que não aspiram
á salvação, mas ao nada, são de tolerância dogmatica
absoluta, porque para elles não ha dogma. Mas se fo­
rem republicanos ou socialistas (o que tantas vezes suc-
cede) dirão a seu turno: Fóra da republica ou do socia­
lismo não ha salvação, e será feroz 11’esta sua intolerân­
cia politica.
Quanto á objecção de Rousseau tão misera: «Yós
annunciais-me um Deus nascido e morto ha dois mil
annos! Para que realisou Deus tão longe e tão tarde
um acontecimento, que me quereis obrigar a aprender.
Dizeis que vindes a ensinar-m’o! Mas porque não viestes
ensinal-o a meu pai?
544 OS ESPLENDORES DA FÈ

Porque prejudicar assim o bom do velho - .. Ponde-


vos no meu logar, e vede se, a julgar pelo que dizeis,
eu posso conciliar tanta injustiça com o Deus justo que
annunciaes! Não, eu jamais prégarei a intolerância».
(Emilio, liv. iv). Uma tal objecção é ridicula, paradoxal,
de má fé ! Porque o principio fóra da Egreja não ha
salvação não significa de modo algum que todos aquel-
les que tem ignorado invencivelmente a historia da vida
e da morte de Jesus Christo e sua douctrina, os antigos
pagãos, os povos selvagens, os idolatras da índia e da
China, os mahometanos, os scismaticos e os hereges de
boa fé, o bom do velho de Rousseau debaixo de todas
as suas formas, mortos sem infracção voluntária e grave
das leis que conheceram, fossem por isso condemnados.
De facto, respectivamente á Egreja, é mister distinguir
entre seu corpo e sua alma.
O corpo da Egreja compreliende todos os homens
que desde a origem dos tempos tem vivido em seu
seio. A alma da Egreja compreliende também os justos
que desde a origem dos tempos tem pertencido ao cor­
po da Egreja, e os infiéis que vivendo fóra do seu seio
tem acreditado todas as verdades que puderam conhe­
cer, tem practicado todo o bem, que a consciência lhes
dictava, e prestaram a Deus em boa fé o culto que se
lhes affigurou verdadeiro.
D’onde se segue: l.° que os gentios que viveram
fóra do corpo da Egreja, puderam pertencer á sua alma
e salvar-se; que os hereges e os scismaticos que vivem
fóra do corpo da Egreja podem pertencer a sua alma
e estar no caminho que conduz ao ceo.
Logo o sacerdócio catholico dizendo : fóra da Egreja
não ha salvação, não condemna aos fogos eternos nem a
todos os christãos separados, nem a todos os homens
que não tiveram conhecimento do Evangelho. Pode-se
pertencer ao corpo da Egreja sem pertencer a sua al­
ma, e vice-versa. Um bom pagão está mais proximo do
A EGREJA 545

reino do ceo, do que um mau catholico! 0 bom pagão


tem por desculpa legitima a boa fé ! 0 mau catholico
nenhuma tem, porque o sol da verdade brilhou para
elle em todo o seu fulgor, e todavia fechou os olhos á
luz!
Como é consolador pensar que a alma da Egreja
abrange todos aquelles que estão de espirito e de cora­
ção com Deus e Jesus Christo; todos aquelles que di­
zem implicitamente, se não explicitamente, de coração,
se não de bocca: que vosso nome seja sanctificado!
Que venha o vosso reino! Que seja feita a vossa vonta­
de ! Porque em sumina n’isso se contem o segredo e a
sciencia da salvação!
Ha mais ainda : A Egreja pronuncia anathema con­
tra todo aquelle que disser que se pode ser condem-
nado por aquillo que se não pôde conhecer; que por
conseguinte a ignorância invencivel é uma causa de
condemnação; que a fé é a primeira das graças; que
fóra da Egreja Deus não concede graça nenhuma etc.
(Proposições de Baio condemnadas).
E de facto a douctrina da Egreja é a de S. Paulo:
« Deus ha de dar a cada um consoante as suas obras.
Dará a vida eterna aquelles que... nas boas obras
procuram a gloria, a honra e a incorruptibilidade. Hon­
ra, gloria e paz a todos aquelles que fazem o bem aos
judeus.. ■ aos gentios etc., etc., porque deante de Deus
não ha accepção de pessoas... Aquelle que tiver pec-
cado debaixo da lei, será julgado segundo a le i... A ira
de Deus inflammar-se-ha contra aquelles que houverem
conhecido de Deus o que de Deus pode descobrir-se
pelo conhecimento que d’elle dá a natureza... e que
tendo-o conhecido, o não glorificaram... mas se desva­
neceram em futeis raciocínios.» (Ep. aos Rom. i, 2).
Logo o principio: Fóra da Egreja não ha salvação,
absolutamente verdadeiro, dogmaticamente falando,
traduz-se na aplicação por uma questão de intenciona-
vol iv 45
546 OS ESPLENDORES DA FÉ

lidade e de boa fé! E a tolerância da Egreja vai tão


longe como a verdade, como a justiça, e a razão! Yae
mais longe: porque depois de haver proclamado que o
principio não attinge senão aquelles que estão volunta­
riamente, intencionalmente fóra da alma da Egreja,
se lhe perguntardes quaes são nominativamente aquel­
les que pelo vicio da intenção estão fóra do seu grêmio
e da salvação, abster-se-ha de vos responder. Se a aper­
tardes para que vos assignale em todo o universo e na
serie das edades um só homem, que com certeza se
condemnasse, só Judas vos nomeará.
Se lhe perguntardes o motivo d’esta excessiva to­
lerância, dir-vos-ha com um celebre orador: «Sejam
quaes forem a patria, o procedimento de um homem,
em sua alma, nos umbraes da eternidade, passam-se
mysterios divinos de justiça sem duvida, mas também
de misericórdia e de amor.»
Dirão talvez: Esta douctrina é muito bella, mas a
Egreja desmente-a por sua conducta; ahi está todos os
dias a fulminar excommunhòes; a lançar anathemas
contra os infiéis, os hereges, e até contra os seus pró­
prios filhos.
A excommunhão não é de modo algum uma sen­
tença de oondemnação, e o anathema também não é
um juizo de maldição. Os raios da Egreja não ferem o
homem senão no tempo, não em os umbraes da eterni­
dade; não são lançados contra o peccador, para que
pereça, mas para que se converta e viva.
Pois não fecha ella as portas das egrejas, não re­
cusa as preces e a sepultura ecclesiastica áquelles que
não querem reconciliar-se com ella?—As orações publi­
cas sobre o feretro, a sepultura ecclesiastica são signaes
exteriores de religião, repellidos pelo desgraçado que
se separou livremente do corpo da Egreja. Se o padre
fecha ao escandalo as portas da egreja, ajoelha e ora
no interior d’ella, com fervor e lagrimas, por aquelles
I

A EGREJA 547

que a maldizem ao de fóra e por aquelle, cujos despo-


jos estão servindo para acirrar o odio e o desprezo da
religião. A Egreja succumbiria no proprio dia em que
se prestasse a fazer de suas pompas uma representação
de theatro.
Hoje bem vingada está! Esses mesmos homens que
queriam forçar as portas de suas egrejas para lá intro­
duzirem os desgraçados, mortos renegando a fé por
suas blaspiiemias ou por suas obras, condemnam-se
hoic com mais ruido ainda á sepultura civil, á inhuma-
çao do muladar. Outrora odiavam a Egreja, hoje vão
mais longe, desprezam-n’a e desejariam exterminal-a.
Fazem semblante de quererem confiar ainda seus cadá­
veres á terra benta dos cemitérios christãos, mas não
tardará que sejam os primeiros a exigir que nos cemi­
térios não apareça signal religioso. Mentir-se-hão a si
mesmos, ter-se-hão excommungado! A separação será
consummada; mas ainda então a Egreja os não conde-
m nará!
Clamará com S. Paulo: «Cahiu, mas não é impos­
sível que se levante, porque Deus é bastante poderoso
para o levantar!» ,
Tu quis es, qui judicas servum alienum? Domino suo
stat aut cndit! Stabit autem: potens est enim Deus estatue-
re illum. (Ep. aos Rom.)
Alguém dirá: Se a salvação é possível fóra da
Egreja, a Egreja não é necessária, a mediação de Je­
sus Christo não é indispensável. Falar assim seria blas-
phemar. Porque a boa fé não desculpa sómente que se
esteja fóra da Egreja, faz que se esteja cleutro d’ella,
que se pertença a sua alma, pois a Egreja abraça em
sua sociedade todo o homem, catholico, judeu ou gen­
tio, que honra a Deus consoante o que d’elle sabe ou pode
saber. E’ uma verdade fundamental da fé que Jesus
Christo, cordeiro immaculado, diz S. João, desde o prin­
cipio do mundo, morreu por todos os homens sem ex-
548 OS ESPLENDORES DA FÉ

cepção, na universalidade dos tempos e dos logares; de


sorte que se pode dizer que todos os homens pertencem
a Jesus Christo e são christãos.
S. Agostinho não receiou dizer: «A cousa que hoje
se dejiomina religão christã, existia entre os antigos, e
nunca deixou de existir desde a origem do genero hu­
mano até á vinda de Jesus Christo em carne; então
começou-se a denominar christã a verdadeira religião,
que já d'antes existia.» (Retract., liv. i, cap. xiu, n.° 3.)
Donde tirava S. Jeronymo esta illação tão consola-
dora: Jesus Christo, o Filho único, o Primogênito de Deus,
é a Suprema Razão, de que todo o genero humano par­
ticipa. Todos aquelles, pois, que viverem conforme­
mente a esta razão são christãos, ainda quando os
accusassem de ser atheus. Todos os homens que vive­
ram e que vivem segundo a razão (na ignorância inven-
civel da lei evangélica) são verdadeiramente christãos,
e podem estar ao abrigo de todo o receio... Pelo con­
trario aquelles dos antigos que não tiverem regrado
sua vida pelos ensinos do Verbo e da razão eterna, são
os únicos exc-luidos do ceo.
Mas se a razão e a lei natural bastam, se são o
Verbo de Deus falando a nossa intelligencia e a nosso
coração, pelas creaturas e pelas tradições sociaes, para
que exigis mais do christão ? Para que o submetteis a
crenças mais mysteriosas e a practicas mais austeras V—
A religião natural é o Verbo de Deus, mas não é
todo o Verbo de Deus. Illuminando as intelligencias,
que vem a este mundo, o Verbo divino não se inhibia
de outras revelações mais explicitas, de se fazer ho­
mem, de habitar entre nós, de se mostrar cheio de
graça e de verdade, de nos propor artigos de fé, de
confirmar os antigos preceitos, de nol-os dar novos, de
nos impor a crença em seus mysterios, a obediência a
seus mandamentos, por austeros que sejam. Esta dupla
obrigação constitue toda a essencia do christianismo.
A EGREJA 540

O pagão que se teria podido salvar por se haver


conservado fiel á religião natural, porque estava na
boa disposição de procurar a verdade e de a seguir,
por esquiva que se lhe affigurasse, se, depois de ter co­
nhecido a Revelação, se recusasse a seguil-a, ficando o
que era, não estaria, é claro, d’ora era deante na mesma
boa fé, e portanto não bastaria a religião natural para
o salvar.
O que dizemos do pagão e do judeu applica-se ao
herege com relação ao catholicismo, e ao catholico de
nome respectivamente á íé viva e practica.
Todos nós somos dignos de desculpa, quando esta­
mos em erro involuntário, na ignorância invencivel, na
boa fé!
Mas desde o momento em que recusamos abrir os
olhos á luz da verdade, se não nos esforçamos por aca­
bar de a conhecer e de a abraçar, os vínculos que nos
prendem a Jesus Christo e á sua Egreja rompem-se, e
nossa salvação está gravemente comprometida. «Se eu
não tivesse vindo, disse Jesus Christo, e não lhes tivesse
falado, não commetteriam o peccado que commettem,
mas desde agora não tem desculpa de seu peccado! Se
eu não tivesse feito entre elles obras que nenhum ou­
tro fez, não teriam o peccado que tem; mas viram-n’as
e odiaram-me, a mim e a meu Pai.»
Jesus Christo, o Salvador por excelleneia, teria
pois vindo para perder-nos, pois que sem elle seria­
mos escusaveis, e por elle somos capazes de culpa. —
E’ um sophisma. A sabedoria eterna, revelando-se mais
completamente em sua Incarnação e em sua Egreja,
propoz-se cumprir um designio de bondade. Quiz tor­
nar-nos o accesso juncto d’ella mais facil. a fé mais ex­
plicita, a virtude mais attrahente. Trouxe-nos auxílios
mais poderosos, sem os quaes muitos teriam permane­
cido na desordem; tornou os maus bons, e os bons per­
feitos; tem sido para a pobre humanidade a causa de
550 OS ESPLENDORES DA FÉ

progressos evidentes na verdade e na sanctidade; deu-


llie um valor moral immenso.
Se um grande numero se obstina em se volver
mais culpado, não será culpa do bemfeitor. E ’ fora de
toda a duvida que o numero de homens que tem alcan­
çado a felicidade eterna, natural ou sobrenatural, pela
simples practica da religião natural, com o soccorro
da graça que Deus concede superabundantemente a
todas as suas creaturas, será infinitamente pequeno em
comparação d’aquelles que a conseguiram por sua fide­
lidade sincera aos ensinos e preceitos de Jesus Christo.
Ora a liberdade e a justiça requeriam imperiosamente
que Jesus Christo fosse ao mesmo tempo principio de
resurreição e de ruina: Positus cst hic in ruinam et resur-
rectionem multormn.
Mas se a revelação evangélica é tão grande bene­
ficio, porque não são a elle chamados effectivamente
todos os homens?—São-no! E para melhor o fazer com-
prehender, empregarei a linguagem do R. P.e Faber,
um dos mais famosos convertidos de Inglaterra. «Faz
bem pensar na rede d’amor, com que a cada instante
Deus cerca toda a alma que creou sobre a terra. Se
contemplarmos o mundo com toda a sua geographia
pitoresca, com os recortes caprichosos de suas cartas,
os cursos prolongados de seus rios profundos, suas im-
mensas planícies, suas vastas florestas, as cadeias das
montanhas azuladas, nosso coração expandir-se-ha, ven­
do na creação as primeiras malhas da rede de amor,
com que Deus circumda toda a alma humana. Todos
sim, o Europeu atarefado, o silencioso Oriental, o Ame­
ricano aventuroso, o Hottentote degradado, o selvagem
sarapintado pela picadura, * o feroz Malaio, todos o

* T a t o u é , que se pode v e rte r m enos p u ra m e n te , o q u e soffreu a


tatu ag em .
N . do T.
A EGREJA 551

tem perto. Opera de modo differente com cada um,


mas sempre com ternura, indulgência, generosidade,
prodigalidade. As differenças entre uns e outros são
innumeraveis, mas são menos múltiplas que as multi­
plicações de sua incessante affeição. A biographia de
cada uma d’estas almas é uma historia milagrosa da
bondade de Deus. Se nos fora permittido, como o é mui
provavelmente aos bemaventurados, ler essas tocantes
historias, aprenderiamos quasi uma nova sciencia de
Deus, tantas luzes inesperadas e faiscantes projectariam
sobre suas diversas perfeiçoes. Yel-o-hiamos estreitar
até o mais feroz dos idolatras nos vinculos do seu
amor. Yel-o-hiamos occupar-se da mais brutal prever-
sidade, do mais fanatico erro, da mais estúpida insen­
sibilidade e dispor todas as cousas favoravelmente com
a excessiva delicadeza de um amor creador.
«Mas ha o quer que seja de tão assombroso, de tão
inebriante na torrente da divina luz e no vasto oceano
de eterna predilecção, com que inunda sua Egreja, que
tudo aquillo que está fóra d’ella parece obscuro aos
olhos oífuscados pelo brilho da sua magnificência.
«Cega-nos a ponto que não podemos reconhecer
que as pretensas trevas são uma verdadeira luz illumi-
nando todo o homem que vem a este mundo. (Faber, A
Creaçâo e o Creador, xxv, cap. m.)»
Certamente, que o corpo, a sociedade visivel da
Egreja, depositaria dos meios de sanctificaçao, possuin­
do em seu ensino infallivel, em seus sacramentos, em
seu governo espiritual os instrumentos ordinários da
salvação dos homens, é o poço d’agua viva, o paraizo
cheio de fructos saborosos, onde as almas se desalteram
e se nutrem, sem jamais receiarem nem a fome, nem a
sêde.
Mas quantos seres racionaes vagueiam em redor
d’este jardim fechado, vivendo dos perfumes que exhala
debaixo da bafagem do Espirito Santo ? Quantos rece-
552 os esplen d o res da f é

berão, por mysteriosas infiltrações, algumas gotas do


sangue redemptor, e por isso pertencerão á alma da
Egreja? Só Deus o sabe.
Resumindo: Todos os homens estão na Egreja, na
sociedade de Deus e do seu Verbo, pela redempção de
que são objectivo, quando acoeitam um tal beneficio,
practicando todo o bem que devem practicar, adherin-
do a toda a verdade que podem conhecer. De forma
que todos aquelles que, sciente e systematicamente,
estacam para aquem da verdade religiosa, cujo ponto
de partida está na lei natural, e cujo apice está na lei
evangélica, na sancta Egreja catholica, apostólica, ro­
mana, são os únicos excluidos da salvação.
Consignemos enfim que d’esta vez ainda, como
sempre, a iniquidade se mentiu a si mesma; que os fal­
sos apostolos da tolerância universal, os adversários os
mais exaltados da pretendida intolerância da Egreja,
tem sido os mais intolerantes dos homens. Apenas cita­
remos dois, Rousseau e Luthero, embora pudéssemos
citar milhares d’elles.
Rousseau chegou a dizer: «Se alguém se portar
como quem não crê na religião do paiz, seja con-
demnado á morte.»
Luthero parece um echo do inferno quando es­
creve: «As almas piedosas que fazem o bem para ga­
nhar o reino dos ceos, não só o não conseguirão jamais,
mas devem contar-se no numero dos impios! E’ neces­
sário prevenirmos-nos antes centra as boas obras, do
que contra os peccados... Todas as cousas acontecem
pela eterna vontade de Deus, que reduz a nada o livre
arbitrio.. . Deus cria em nós o mal e o bem. A mais
alta perfeição da Fé consiste em acreditar que Deus é
justo, embora nos torne fatalmente condemnaveis por sua
vontade, embora pareça folgar com os tormentos dos repro-
bos... Deus agrada-vos quando coroa os indigentes,
força é que também vos agrade quando condemna os in-
A EGEEJA 553

nocentes. Aqui está o verdadeiro evangelho, o resultado


de uma inspiração que me dispensou o Espirito San-
cto! Nem o imperador, nem o papa, nem todos os dia­
bos poderão nada contra isto.» (Luthero, de libero Arbí­
trio, ed. de Iena, t. ir, folio 170.)
E ha governos illustrados que fazem gala de luthe-
ranos!
E por uma consequência movem guerra descarada
á sancta Egreja de Jesus Christo !
Calvino não era menos implacável: «Nem todos os
homens foram creados na mesma condição; uns são
preordenados para a vida eterna, outros para a eterna
reprovação.» {Inst. liv. xvi, cap. xxi, n." 5.°) E’ de certo
para honrar este heroe que a Suissa calvinista perse­
gue encarniçada e expulsa os ministros inoffensivos da
Egreja catholica!
E que revoltante injustiça, que cumulo de intole­
rância é que se proscreva a unica Egreja, á qual vai em
dezenove séculos os judeus, os imperadores romanos, os
reis barbaros, os 'imperadores da Allemanha, todas as
heresias conjuradas, a philosophia, a revolução, etc.,
não tem cessado de gritar: «Abjura ou morre!»
A Egreja e a Civilisação. Venha pleitear e ganhar
esta grande these S. Em.a o cardeal Pecei, ao tempo
bispo, hoje Sua Santidade Leão xm. Eis o resumo de
sua excellente carta pastoral para a quaresma de 1877.
«Se se expõe á irrisão a palavra de Deus e d’aquelle
que sobre a terra o representa, faz-se, dizem, em nome
da civilisação. E’ a civilisação que exige que se restrin­
ja o numero das egrejas e que se multipliquem pelo con­
trario os logares do peccado ! E’ a civilisação que exige
theatros sem gosto e sem pudor! Em nome da civilisa­
ção larga-se o freio á mais desavergonhada usura e ás
ganancias indecentes! E ’ ainda em nome da civilisação
que uma imprensa abominável corrompe os espíritos, e
que a arte, prostituindo-se, queima os olhares por in-
554 OS ESPLENDORES DA FÉ

íames imagens, e abre caminho á corrupção dos costu­


mes. Com o veo de palavras seductoras, balsão reputa­
do legitimo e venerável, o parto envenenado circula li­
vremente, e em meio da celeuma clamorosa da anar-
chia das idéias, parece logico que é culpa nossa se a
civilisação não progride mais rapidamente, se ella não
attinge mais altos destinos. Aqui a origem, a causa do
que chamam a «Lncta da civilisação», mas que deveríam
denominar antes a oppressão violenta da Egreja. Não
vos admireis pois se discorrermos longamente e de pre-
ferencia a qualquer outro assumpto sobre esta civilisa­
ção de geito a provar-vos por provas evidentes que
todo o bem, de que esta civilisação é a expressão, nos
veiu do passado pelas mãos da Egreja, e que no fu­
turo será só pela solicitude maternal da Egreja que
nos será conservado.
«E’ uma verdade de facto que o homem, vivendo
em sociedade deve aperfeiçoar-se debaixo do tríplice
aspecto do bem estar physico, das relações moraes com
seus semelhantes e das condições políticas. Os diffe-
rentes graus d!este desenvolvimento sucoessivo, que
attingem os homens reunidos em sociedade, consti­
tuem a civilisação. Esta civilisação é nascente e rudi­
mentar, quando as condições em que o homem se aper­
feiçoa debaixo d’este tríplice ponto de vista, são pouco
desenvolvidas. E’ elevado, quando estas condições são
mais amplas. Seria completa se todas estas condições
tossem de todo preenchidas.
«Será verdade que a civilisação não pode produzir
seus fructos n’uma sociedade que vive do espirito de
Jesus Christo, e no meio da qual a Egreja catholica faz
ouvir sua voz de mãe e mestra ? ... Será verdade que
na Egreja e seguindo seus ensinamentos, o homem fique
inhibido de chegar sob o ponto de vista do bem estar
physico, ao grau de civilisação que lhe teria sido facil
A EGKEJA 555

attingir, se estivesse livre de todo o vinculo e de toda


a dependencia da Egreja ?
«Ah! facil e mui facil nos é responder com as pa­
lavras bem conhecidas de um escriptor não suspeito de
ternura pela E greja: «Cousa admiravel! A religião
christã que parecia não alvejar a outro fim do que ao
da nossa felicidade na outra vida, assegura-a também
n’esta.» (Montesquieu, Espirito das Leis, xxiv, m.)
Reputa-se como fonte de prosperidade o trabalho,
d’onde manam as riquezas publicas e particulares, os
aperfeiçoamentos da matéria e as engenhosas descober­
tas. Ora o trabalho, quer se encare na sua forma a mais
humilde, que é o trabalho manual, quer na mais nobre,
que é o estudo da natureza, para lhe surprehender as
forças e applical-as aos usos da vida, quem o estimu­
lou jamais tanto como a religião de Jesus Christo, a
qual se conserva pura e inalterável na Egreja? O tra­
balho foi e é sempre desprezado, onde o christianismo
não exerce o seu império. Aristóteles proclamava-o illi-
beral; Platão infligia-lhe a mesma nota. Os operários
que foram sempre da parte da Egreja objecto de soli-
citudes tão affectuosas, não eram considerados entre os
Gregos como cidadãos, confundiam-se lá para as baixas
camadas dos escravos.
Cicero desprezava o trabalho a tal ponto, que re­
putava os operários como barbaros e gente de nada. Te-
rencio, testimunha esclarecida e fiel das usanças recebi­
das e que tinham curso em Roma no seu tempo, dá a
entender que para ser respeitado e honrado, era mister
viver vida ociosa, e não ser obrigado a trabalhar para
viver. Juvenal diz-nos qual era a occupaç.ão a mais es­
timada dos Romanos livres: «Rojar-se ou ser insolente
com os ricos, para d'elles obter pão e divertimentos
deshumanos.»
Em nossos dias vemos que a mesma antipathia se
perpetua nos povos privados das luzes do Evangelho.
556 OS ESPLENDORES DA F È

Na índia um brahmine, i é, um homem que pertence á


casta a mais elevada, julgar-se-hia maculado se tocasse
sómente um paria. Os selvagens da America do Norte
abstem-se do trabalho, que impõem ás mulheres, tra-
ctadas como os escravos ou como bestas de carga!
Por confissão de uma famosa Revista, a Revista dos
Dois Mundos (t. lx i , p. 70) mesmo entre nós, aliás che­
gados a uma elevada cultura, o trabalho é apenas hon­
rado em palavras; em quanto que se dobra a espinha
deante do rico, ou que se faz má cara áquelles, cujas
mãos endurecem ao contacto dos instrumentos de tra*
balho.
Este estado de cousas desapareceu logo que no
vasto corpo social se fez sentir o sopro da religião
christã.
«Desde então o trabalho foi honrado como uma di­
gnidade sobrehumana, porque Jesus Christo, verdadeiro
Pilho de Deus, quiz estar sujeito a um pobre artista da
Gfalileia, porque elle proprio na officina de Nazareth
não córou de manejar com suas bemditas mãos a ferra­
menta do aprendiz e do operário.
Ao trabalho pediram os apostolos de Jesus Christo
a sua subsistência, afim de não serem pesados a seus
irmãos, e de poderem soccorrer ainda os pobres.
Os Padres da Egreja mais tarde parecem receiar
não ter expressões assaz vehementes para encarecer e
glorificar o trabalho, tanto é o apreço, em que o tem!
S. Ambrosio e S. Agostinho exaltam-no por sua utili­
dade. S. João Chrysostomo accentua bem que o traba­
lho, alem de nos ser imposto como expiação, é também
indispensável para fortificar nossa natureza moral. Pelo
trabalho obtem o homem para si o sufficiente, para os
seus semelhantes o auxilio. Os monges do Occidente e
do Oriente, devotados de um modo especial ao traba­
lho, e designadamente ás explorações agrícolas, vieram
depois implantar-se na sociedade, e trazer o seu pode-
A EG E E JA 557

roso concurso ao bem estar commum. Esses homens


unidos debaixo da disciplina da Egreja viviam em tem­
pos barbaros e perturbados, em uma epocha, em que
ninguém tinha gosto pelo trabalho, e em que todo
aquelle que dispunha de um braço robusto entendia
que o não podia empregar melhor do que pondo-o ao
serviço de algum aventureiro pouco escrupuloso, para
semear por toda a parte a ruina e a devastação. E to­
davia apezar de condições tão desastradas diffundi-
ram-se pela Europa inteira, tornada um vasto deserto,
e mudaram-lhe o aspecto cobrindo-a de ricas e flo­
rescentes culturas. Que exemplo tão efficaz e profícuo
davam estes homens, que contentes de um pobre ves­
tuário, satisfeitos com um alimento suffíciente para
os preservar da morte, suspendiam a oração para ras­
garem a terra com a charrua, confiando-lhe a semente
que no tempo da ceifa devia fornecer o pão aos pobres,
aos peregrinos, a paizes inteiros. Alem dfisso emprega­
vam esforços para abrir caminhos e ligal-os com pon­
tes. afim de tornarem mais commodas as connnunica-
ções de seu paiz para outro, e de que o commercio fosse
mais faeil e mais seguro. Que vantagens não tem tirado
a sociedade da experiencia d’estes homens, que multipli­
cando seus trabalhos e ensaios com uma paciência que
nada fatigava, e pondo em commum suas forças e suas
luzes, conseguiram enxugar pantanós, regular as cor­
rentes fluviaes, recolher as aguas dispersas para as for­
çar á irrigação das encostas e dos valles, e isto por ma­
neira tão engenhosa, que sob palavra de um historiador
illustre, os mesmos modernos, apezar dos progressos das
sciencias naturaes, tem muito que aprender desses ve-
nerandos habitantes dos claustros.
As artes mecanicas e as bellas artes não tiveram
mais seguro asvlo nem campo melhor preparado para
se desenvolverem, do que as egrejas, os paços episco-
paes, os mosteiros, nos quaes as primeiras se poliram e
558 OS ESPLENDORES DA FE

as segundas projectaram fagulhas que mais tarde se tro­


caram em raios de candidissimos fulgores.
A sociedade na Italia nunca se elevou tão alto em
seus vôos para a civilisação, do que quando estava ani­
mada do sopro christão, e como que saturada do espi­
rito catholico. Yeneza, Gênova, Pisa, Lucques, Florença
e as outras Communas e Provincias italianas, em quanto
foram respeitosas para com a auctoridade da Egreja e
cheias de fé, como o attestani as magnificas basílicas e
as instituições tão numerosas da piedade christã, tive­
ram um tal poder que, respectivamente aos tempos e
aos meios imperfeitos d'esta epocha, excedia a das na­
ções modernas as mais florescentes. A Jonia, o Mar Ne­
gro, a África, a Asia eram o theatro das relações com-
merciaes e das expedições militares dos nossos ante­
passados. Lá fizeram importantes e fecundas conquistas,
e em quanto que no estrangeiro fluctuavam suas ban­
deiras honradas e temidas, dentro não ficavam inacti-
vas ; cultivavam as artes e o commercio, accrescentando
por todos os meios honestos a riqueza publica e priva­
da. As industrias da lã, da seda, da ourivesaria, dos vi­
dros pintados, das fabricas de papel, em Flerença, em
Pisa, em Bolonha, em Milão, em Veneza, em Nápoles,
forneciam a milhares de milhares de obreiros trabalho
lucrativo, e attrahiam aos nossos mercados o ouro e a
concorrência do estrangeiro.
A Egreja porem não tem sómente o mérito indis­
cutível de haver enobrecido e sanctificado o trabalho;
não se gloria sómente de haver levado a sociedade, por
ella conduzida e inspirada a dar passos rápidos nas
vias da civilisação; assiste-lhe gloria ainda mais pura,
méritos mais levantados: conteve os homens dentro da
moderação rasoavel, impedindo que esta moderação
não fosse esquecida por um amor excessivo do lucro
de forma a converter n’uma fonte de oppressão bar­
bara o que, practicado com discrição, é meio de gran-
A EGKEJA 559

gear vantagens apetecíveis e uma honesta prosperi­


dade. ..
As escolas modernas de economia política conside­
ram o trabalho como o fim supremo do homem, e no
proprio homem apenas vêem uma machina mais ou
menos preciosa, consoante é mais ou menos productiva.
D’ahi o desprezo pela moralidade do homem; d’ahi
esse indigno abuso da pobreza e da fraqueza por aquel-
les que a querem explorar em seu proveito.
Quantas lastimas, que justas objurgatorias não te­
reis ouvido mesmo nos paizes que são reputados como
indo na vanguarda da civilisação, sobre o numero exa­
gerado de horas de trabalho, impostas áquelles que de­
vem ganhar o pão com o suor do seu rosto, sobre essas
creanças entaipadas nas manufacturas, onde se atro-
phia em precoces fadigas...
A’ força de trazer os homens acorrentados á maté­
ria, desvanece-se a vida do espirito, e essas pobres vi-
ctimas do trabalho volvem-se pagãos...
Pergunta-se com dor se esses partidários da civili­
sação divorciada da Egreja e sem Deus, em logar de
de nos fazerem progredir, não nos fazem retrogradar
muitos séculos, reconduzindo-nos a esses tempos deplo­
ráveis, em que a escravidão manietava uma tão grande
parte dos homens, em que o poeta Juvenal lamentava
sentidamente que o genero humano vivesse para diver­
timento de alguns cidadãos...
A Egreja catholica pelo contrario consegue suavi-
sar a amargura do trabalho, interromper sua fatigante
continuação pelo repouso do domingo e as solemnida-
des christas, que de onde a onde vem diffundir uma
alegria religiosa na vasta familia dos crentes.
No regaço da Egreja, aonde o chama a voz da re­
ligião, encontra delicias que em outra parte lhe não é
dado encontrar: a harmonia dos cânticos sagrados en-
levam-n’o ; os olhos vão-se-lhe atraz do encanto causa-
560 OS ESPLENDORES DA FÉ

do pelos mármores preciosos, pelos ricos dourados, pe­


las elegantes ornamentações, pela severidade das linhas
architecturaes; mas sobre tudo, commove-se-lhe e pu-
rifica-se-lhe o coração ao ouvir as palavras do ministro
de Deus que lhe commemoram sua redempção, seus de­
veres e suas esperanças immortaes...
Por isso que aperto de coração ao vermos os do­
mingos e os dias de festa perturbados por escândalos
deploráveis; as lojas abertas, os artistas occupados nos
seus trabalhos liabituaes; as machinas continuando a
funccionar, os negocios não abandonados ; todos n’uma
palavra inhibidos de pensar nos negocios bem mais im­
portantes d'alma, e de se aplicarem ao estudo das verda­
des que devem guiar-nos pelos caminhos árduos do
tempo aos destinos certos e ditosos da eternidade...
A sciencia, mercê de estudos quotidianos e de há­
beis experiencias, está senhora de muitas forças da na­
tureza, que eram desconhecidas ou que escapavam ao
dominio do homem. Estas forças empregadas com arte
com o auxilio de machinas engenhosas, tem tornado a
producção mais rapida, mais baratos os objectos pro­
duzidos, e por conseguinte mais fácil a satisfação das
necessidades, menos rude a vida d'aquelles que não po­
dem gastar muito.
Nada melhor do que semelhantes descobertas, mas
os incrédulos tem pretendido servir-se d’essas nobres e
pacificas conquistas da sciencia sobre a natureza, como
se taes conquistas houvessem sido realisadas a despeito
da Egreja e contrariamente a seus desejos...
Mas na Egreja também ao lado do zelo pela gloria
de Deus, se infiamma um outro amor não menos pode­
roso, o amor pelo homem, o ardente desejo de o ver
restabelecido em todos os direitos que lhe foram con­
feridos pelo Creador...
A palavra que retinia 11a manhã da creação: «Su­
jeitai a terra e dominai-a» nunca foi revogada. Se hou-
'

A EGREJA 561

vera permanecido no estado de innocencia e de graça,


o homem teria exercido seu dominio’sem esforço e a su­
jeição das creaturas teria sido espontânea; agora porem
este dominio é penoso, porque as creaturas só recebem
o freio constrangidas pela violência. E a Egreja que é
mãe, nada pode ter mais a peito do que o exercício
d’esse constrangimento, que o homem mostre que de
facto é o senhor e o amo da creação. E realmente o se­
nhor das creaturas exercita seu direito quando rasgan­
do os veos que encobrem sua possessão, não parando
no que está á superfície e no que toca com as mãos,
penetra dentro das próprias entranhas da natureza, co­
lhe os thesouros da fecundidade das forças que ahi se
encontram, empregando-as em vantagens suas e dos
seus semelhantes.
Que bello e magestoso não é o homem quando
apanha o raio e o faz cahir impotente a seus pés;
quando chama a faisca electrica e a despede mensa­
geiro de suas ordens atravez dos abysmos do Oceano,
para alem de montanhas escarpadas e de planícies in­
termináveis! Como se ostenta glorioso, quando ordena
ao vapor que de alguma sorte prenda azas a sens hom-
bros, e que o leve com a rapidez do relampago atravez
dos mares e dos continentes! Como é poderoso, quando
por engenhosos processos captiva essa mesma força e
a conduz por veredas maravilhosamente combinadas
para dar o movimento e para assim dizer a intelligen-
cia á matéria bruta, a qual d’est’arte se substitue ao
homem, e lhe poupa as mais duras fadigas! Dizei-me
se não ha n’elle como uma faúlha de seu Creador,
quando evoca a luz electrica, e a obriga a dissipar as
trevas da noite, e a orn ar com seus esplendores as vas­
tas salas e palacios.
A Egreja, essa mãe affectuosa que conhece tudo
isso, está tão longe de querer oppor obstáculos a esses
vol iv 46
562 OS ESPLENDORES DA FÉ

progressos que pelo contrario estremece de júbilo e de


alegria a esse espectáculo.
E que razão poderia ter a Egreja para se sentir in-
commodada pelos maravilhosos progressos que nossa
edade realisa por seus estudos e descobertas? Haverá
n’isso o quer que seja, que de perto ou de longe possa
prejudicar as noções de Deus e da fé, de que a Egreja
é a guarda e a doutora infallivel? Bacon de Yerulam,
que se illustrou na cultura das sciencias physicas, es­
creveu que pouca sciencia aftásta de Deus, porem que
muita conduz a Elle. Esta reflexão aurea é sempre
egualmente verdadeira, e se a Egreja se assusta pelas
ruinas que podem causar os vaidosos, que pensam ha­
ver já comprehendido tudo, porque de tudo tem uma
leve tintura, confia plenamente n’aquelles que applicam
sua intelligencia a estudar seria e profundamente a na­
tureza, porque bem sabe que no fundo de todas as in­
vestigações lá acharão a Deus, que em suas obras se
deixa ver com os attributos irrecusáveis de seu poder,
sabedoria e bondade...
Taes são os pensamentos e sentimentos da Egreja
Porque pois luctam contra ella ? Em que vistas organi-
sam a lucta? Será para lançar os homens no exhauri-
mento de um trabalho tomado como fim supremo,
adoptado como um instrumento para se guindarem
acima das cabeças baixas dos outros homens, e sobre
seus corpos calcados aos pés? Luctar contra a Egreja!
mas para que ? Para confiar o povo a mãos de uma
bondade incerta e fatalmente incapaz, arrancando-o
aos peitos da religião que inspira e aviventa os prodi-
gios da caridade divina? Luctar coutra a Egreja! mas
para que? Para apagar a historia gloriosa da civilisa-
çào ohristã e restaurar uma civilisação que só teve o
brilho e fulgor bastante para melhor deixar ver as pro­
fundas chagas do coração do hom em ?...
A EGREJA 563

Pois é bem sabido que essa civilisação, que o sobe­


rano Pontífice condemnou, não é a verdadeira civilisa­
ção, a qual brota como flor das raizes do christianismo,
o que elle condemnou foi essa cousa bastarda que da
civilisação só tem o nome, e que é a inimiga pérfida e
implacável da legitima civilisação...
A sciencia em si mesma, longe de ser proscripta
pela Egreja, é por ella favorecida. Ha uma no entanto
que ella reprova o com razão, é essa que engendra uma
philosophia que diz com satanico orgulho: «A razão
humana é, sem se importar com Deus, o unico arbitro
do verdadeiro e do falso, do bem e do m al; é sua lei,
basta-se a si mesma para graugear a felicidade dos ho­
mens e dos povos...»
Ah! os factos ahi estão para mostrar aonde nos
conduziu essa lucta insensata, einprehendida contra a
Egreja em nome da civilisação. Por uma parte vêem-se
multidões, ás quaes arrebatara toda a esperança do fu­
turo, todo o lenitivo que a fé proporcionava ao infor­
túnio ; multidões que não podem colher porção bastante
dos gozos da terra, muito pobre para tantos apetites,
muito pródiga de misérias e contrariedades; por outra
um pequeno numero de homens, a quem a fortuna sorri,
que não possuem o menor sentimento de caridade em
seus corações, preoccupados sómente em enthesourar e
gozar! De um lado homens fremindo desesperados, que
parecem uns selvagens; do outro alegrias indecentes,
dansas e hábitos pagãos que excitam a indignação do
pobre abandonado e esquecido, e provocam castigos
divinos! Eis ahi o que nos tem dado, eis o que nos pro-
mette essa guerra declarada á Egreja em nome da ci­
vilisação, vinda em má hora para nos tornar a mergu­
lhar nos horrores da barbarie,
Quem pois poderá negar que o fructo da verdadeira
civilisação deve ser a melhoria dos costumes, o enobre-
cimento e a purificação das almas, a urbanidade das
564 OS ESPLENDORES DA EE

maneiras, a doçura e a generosidade das relações pri­


vadas, domesticas, civis e políticas V
Ninguém por certo negará que o homem é susce­
ptível de aperfeiçoamento, e obrigado a aperfeiçoar-se í
•e ninguém teria também a coragem de desconfessar os
progressos realisados n'esta via. Todo o mundo, penso
eu, concorda n'isto; mas o desaccordo aparece quando
um certo partido reputa estes augmentos como incom­
patíveis com o christianismo, ou o que quer dizer o
mesmo, com o Magistério da Egreja, a tal ponto que
se organisa a lucta para o aniquilar, como se fora um
perigo e um óbice aos progressos que se desejam .. E
no entretanto é pela acção constante da hierarchia ca-
tholica que foi fundada a civilisaçao, fatalmente deno­
minada christã. nome que lhe é tão proprio, que os es­
forços do nosso tempo não tem podido conseguir sepa­
rar uin do outro, por tal forma que falar de civilisa-
ção é subintender o epitheto de christã...
Já não temos essa praga nefanda da escravidão,
que condemnava mais de dois terços da especie huma­
na a uma vida de esforços penosos e a indiziveis ultra-
ges: aquelle estado de cousas foi reformado pela Egreja
com tanta perseverança como sabedoria.
Já não temos jogos sangrentos onde eram trucida­
dos centenares de infelizes; onde tantos outros eram
arrojados em pasto ás feras, para distracção de ociosos,
e activar mais sua sêde de sangue, paginas vergonho­
sas que para sempre rasgou o sangue dos martyres
christãos.
Já não temos o odio inveterado do pobre, transfi­
gurado pela religião de Jesus Christo.
Já não temos divorcios fáceis, tyrannias maritaes,
o aviltamento legal dos esposos...
E ’ mais facil aperfeiçoar as cousas que já existem,
do que creal-as de novo. Para que pois declamar agora
que a Egreja perdeu o direito de animar com seu sopro
A EGKEJA 565

a obra da civilisação, e pretender que já não é idônea


para dirigir as almas nas vias do progresso moral e em
suas ultimas evoluções'? Será acaso verdadeiro que as
forças da Egreja diminuiram e que perdeu essa pujan­
ça de juventude e de vida que outr’ora penetrou a or­
dem civil, dispensando-lhe os benefícios que nos conta
a historia, e que nós estamos contemplando ?. .
O apostolo S. João adverte que tudo o que ha no
mundo de criminoso e propino para causar sua ruina,
se reduz ao desregra mento dos prazeres bestiaes, á con-
cupiscencia, e ao orgulho que nenhum freio supporta.
Ora para ordenar o homem, como se porta a Egre­
ja, seguindo a moral ensinada por Jesus Christo? Abri
a tal respeito os livros sanctos, ou esse sublime resu­
mo dos livros sanctos que é o nosso Cathecisrno.
A’quelles que se deixam ir atraz das suggestões dos
sentidos lem bra: que se prohibe até um olhar, um mau
pensamento, um desejo!
Ao homem, atormentado pela avidez do ouro, diz
egualmente: que a avareza é uma escravidão, e que
não é possivel servir ao mesmo tempo a Deus e ao di­
nheiro.
Enfim ao orgulho prescreve-se-lhe que abata sua
soberba, que imite da creança sua simplicidade ingê­
nua, para entrar no reino dos ceos.. •
Assim preparado o indivíduo, vencidas suas abje-
ctas paixões, causa de tantos perturbações, a Egreja
sem se apartar um apice das licções do Salvador, es­
força-se por metter em ordem as relações mutuas.
O que desde logo se offerece a nossa consideração
é o fundamento muito firme que ella assenta para con­
servar perduraveis essas relações e volvel-as irremedia­
velmente profícuas á verdadeira civilisação. Este fun­
damento é a Caridade, a qual fóra do christianismo
nem sequer de nome é conhecida, e se o é, na cousa
5 66 OS ESPLENDORES DA F É

passa tomada num sentido muito differente d’aquelle


que lhe damos.
O que o mundo ganhou e ainda hoje ganha n’essa
escola de amor inexprirnivel, é por nós bem sabido: é
o respeito do homem ainda que pobre, ainda mesmo
de baixa e desprezível condição; é o perdão facil e sin­
cero das almas depois de terem soffrido sangrentos ul-
trages; são as vinganças em menor numero ou torna­
das impossíveis, porque são severamente julgadas por
nossa própria consciência e pela dos outros; são a equi­
dade chamada a mitigar os rigores do direito, as fadi­
gas e as privações acceites de coração alegre no in­
tuito de attender á suavisação do indigente, do operá­
rio honrado, do orphão, e do velho. Eis factos palpá­
veis, que saltam aos olhos, e a mais leve reflexão basta
para lhes descobrir a fonte, a qual evidentemente não
é outra senão a moral de Jesus Christo, ensinada pela
Egreja.
Terão esses que querem substituir uma civilisação
inteiramente humana áquella que se elevou a tão gran­
de altura, graças á acção e trabalho da Egreja, terão
obtido por suas tentativas uma só d’essas vantagens
moraes? Serão porventura symptomas de suavisação
dos costumes e dos caracteres essa inveja e esse odio
que invadem e inundam cada dia mais o coração d’a-
quelles que são desprovidos dos bens da terra contra
aquelles que são ricos? Serão prova de sentimentos de
fraternidade sincera esses frêmitos de tigre, essas amea­
ças de incêndio e de morticínio que chegam a nossos
ouvidos?... •
Mas apartemos nossos olhares d’estes signaes de
uma barbarie nascente para os fixar com prazer e,
praza ao ceo, com fructo para as almas, sobre as in­
fluencias salutares que possue a moral christã, para san-
ctificar e tornar prosperas as sociedades humanas.
A primeira e a mais importante é a sociedade con-
A EG EEJA 567

jugal, da qual nasce primeiramente a familia, e que em


seguida determina a formação da sociedade civil.
Graças á egreja o casamento, depois de longas igno­
mínias, apareceu toucado de um diadema real. Assim
transformado, só podia ser uma fonte perenne de insi-
gnes vantagens para a própria civilisação... JDai-me
esposos attentos por um lado a secundar os designios
de Christo, e do outro a exercer o ministério maternal
da Egreja e então a civilisação será salva. Os filhos que
saliirem dos lares domésticos para povoar a terra leva­
rão profundamente gravadas em seu coração as maxi-
mas da justiça, base da sociedade civil; irão acostuma­
dos por uma prudente educação a guardar a disciplina,
a respeitar a auctoridade e a observar as leis equitati-
vas. dSTas mãos d’estes pais se formarão os caracteres
energicos e firmes, que não se deixarão nem abalar,
nem arrebatar pelos ventos das douctrinas mudaveis.
N’esses lares domésticos, sanctificados pela fé e pelos
exemplos dos paes, os filhos terão a dita de beber os
sentimentos da lealdade nas relações, da constância em
guardar a palavra dada, etc., com que muito lucrará a
sociedade...
E não será realmente um attentado contra a civi­
lisação abrir a porta ao divorcio, consequência fatal e
inevitável do casamento profanado? Não será uma ci­
vilisação entoxicada, essa que nos dá um casamento
despojado de seu esplendor e magestade religiosa,
abandonado ás mãos de cálculos obscenos que de­
baixo do pretexto da liberdade e da instabilidade da
natureza, vem com egoismo e impudencia falar-nos de
relações temporárias, ou para falar sem euphemismo
de brutaes deleites ? N'estas condições, as pobres crian­
ças ou ficariam expostas, na previsão das vistas mate-
riaes, de perecer antes de tempo, como flores a quem
os raios do sol não podem dar vida, ou cresceríam sem
uma orientação determinada, sem vínculos solidos de
568 OS ESPLENDORES DA F É

affeição que os prendam á familia e pela família á pa-


tria !
E é para nos presentearem com uma tal civilisa-
ção, que os inimigos da Egreja se metteram n’uma afa-
nosa lu cta!...
As vantagens que a civilisação encontra nas dou-
ctrinas, pelas quaes a Egreja pauta as relações dos ho­
mens n’essa sociedade mais ampla que é a sociedade
civil, não são menos consideráveis.
O poder, diz a Egreja, vem de Deus. Mas se o po­
der vem de Deus, deve reflectir a magestade divina
para se mostrar respeitável, e a bondade de Deus para
se mostrar acceitavel e suave áquelles que lhe estão
sujeitos. Todo aquelle que tem em suas mãos as redeas
do poder, quer seja um indivíduo, quer seja uma pessoa
moral, quer receba suas funcções do nascimento ou de
eleição, no seio de um Estado democrático ou da mo-
narchia, não deve buscar no poder a satisfação de sua
ambição e o vão orgulho de estar superior a todos, mas
ao contrario d’isso deve buscar o meio de servir a seus
irmãos, como o Filho de Deus que não veiu para ser
servido, mas para servir os outros. Palavras, maximas
bem curtas, mas onde se encontra a transformação do
poder a mais feliz e consoladora que é possível dese­
jar. ..
O poder, conforme o ensino christão é modesto, la­
borioso, attento em favorecer o bem, prudente na con­
cepção de que. no juizo derradeiro, castigos estão reser­
vados para aquelle que mal houver governado... Se o
poder tira de Deus sua razão de ser, sua magestade,
sua solicitude em investigar todo o bem, é impossível
acreditar que é permittido revoltar-se contra elle, por­
que seria revoltar-se contra Deus.
A obediência do súbdito deve ser franca e leal,
deve manar de um sentimento intimo, e não do temor
servil dos castigos; deve implicar a prova de sua since-
A EG REJA 569

ridade e receber da melhor vontade os sacrifícios re­


clamados por aquelle que exerce o poder para desem­
penhar-se de seu ministério... A Egreja não approva
os fautores de desordens, os inimigos systhematicos da
auctoridade, e a obediência que inculca encontra uma
poderosa compensação na transformação do poder, o
qual tornado christão e despojado de suas velhas e ver­
gonhosas inclinações para a ambição e a tvrannia, re­
veste o caracter de um ministério paternal, sabiamente
contido nos limites da justiça do mando. Se franquear­
mos estes limites, invadindo o dominio da consciência,
ouve-se uma voz de dentro, respondendo com os apos-
tolos: E’ mister obedecer acima de tudo a Deus. Os
súbditos pusillanimes, attentos a temores baixos, não
são educados nos braços da Egreja! Nascem fóra d’ella,
no seio das sociedades que não reconhecem outro di­
reito exterior alem do da força b ru ta ...
Benjamin Franklin. no termo de uma vida, consu­
mida no manejo dos negocios públicos e amadurecida
por uma longa experiencia, escrevia de Philadelphia:
«Uma nação não pode ser verdadeiramente livre se
não for virtuosa, e quanto mais corrompidos e depra­
vados se tornarem os povos, maior é a necessidade que
tem de amos.» Um outro escriptor, Ugo Picolo, cujo
nome é venerado pelos fautores da lucta pela ávilisa-
ção, dizia tam bém : «Não se deve destruir a religião,
porque um povo sem religião cahe depressa nas garras
de um governo absolutameute m ilitar!...»
De forma que, interrogando o homem como indiví­
duo, ou o homem em suas relações com seus semelhan­
tes, o homem na sociedade domestica ou civil, basta
um exame por alto para nos convencermos de que as
douctrinas da Egreja encerram os mais preciosos ger-
mens da civilisação, e de que postas em practica, con­
duziríam inevitavelmente á mais alta perfeição moral
que é dado esperar sobre a te rra ...
570 OS ESPLENDORES DA F É

E que fructos tem colhido os costumes públicos,


que vantagens tem auferido as relações domesticas e
sociaes da funesta lucta, emprehendida sob o especioso
pretexto de abrir á civilisaçâo novos e mais altos des­
tinos ?
A moral arrebatada das mãos da Egreja e despo­
jada traiçoeiramente de seus fundamentos religiosos,
tem ficado fluctuante e incerta; tem deixado de ser a
regra auctorisada das acções; tem-se volvido o joguete
e o vil instrumento de todos os apetites!... «O homerm
ousou dizer um impio do nosso tempo, sanctifica o que
escreve, e enfeita com as flores da imaginação tudo o
que ama.» Não pode ser licito, como os auctores d e s­
tas theorias o suppõem pelo seu procedimento, fazer
tudo o que é deshonesto; apellidar de divino o prazer
dos sentidos; insultar as leis do pudor, para correr em
poz da belleza que foge como sombra e que em seu
destino primeiro deveria elevar nossa mente para Deus,
como escada bemdita que a Elle nos conduz, a Elle,
fonte suprema de tudo o que é precioso e encantador.
«Eis aqui os fructos causados pela immensa rebellião
nascida no mundo.»
Dado este resumo da Carta particular de Sua San-
ctidade Leão xtii, seja-me permittido accrescentar
aquillo que minha longa experiencia me tem ensinado,
quer da civilisaçâo em geral, quer da civilisaçâo com­
parada das nações catholicas e das nações protestantes,
arma que tantas vezes tem sido brandida contra a
nossa fé.
Já lobrigava o projecto de meus Esplendores da
Fé, quando no prefacio da primeira edição de minha
Telegraphia electrica, deixava escapar de minha alma e
de minha penna este grito de terror que devia retinir
aqui.
Estava eu em setembro de 1845 sobre o ponte de
Londres, centro e ponto culminante da civilisaçâo ma-
A EGREJA 571

terial a mais adeantada que houve jamais. Minha ima­


ginação estava vivamente sobre-excitada pelo espectá­
culo, unico no mundo, d’esses centenares de barcos a
vapor que fendiam com rapidez vertiginosa as aguas
do grande rio ! de tantas locomotivas que partiam mu­
gindo para devorar o espaço! d'esses fios metallicos sul­
cados pelo raio, que despachavam para todos os pon­
tos do horizonte mensagens mais velozes que o relâm­
pago! d’essas mil chaminés mais elevadas que os obelis­
cos do velho mundo, que arrojavam sobre a enorme
cidade ondas de espessa fumarada!
Minha alma no entanto estava como nunca illumi-
nada pelas luzes da fé!
Meu coração vibrava como nunca em accorde das
inspirações consoladoras e eminentemente humanitá­
rias da religião christã e catholica!
Mas eu comprehendia então melhor do que até ali
comprehendera esse hymno celestial: Gfloria a Deus!
Paz aos homens de boa vontade! Só o reino de Deus
pode trazer á terra o reino da justiça e da felicidade!
A única verdadeira liberdade é a dos filhos de Deus
e irmãos de Jesus Christo!
E eis aqui o sentimento que me emocionava.
Mais talvez pela invenção da telegraphia electrica,
do que pelo emprego do vapor, o homem volveu-se gi­
gante. Ora as sagradas Escripturas dizem-nos que elle
o fora já nos tempos primitivos. Sim. houve outr’ora
uma raça de gigantes e sua historia deplorável poderá,
se nos não precatarmos, volver-se a nossa. Os filhos de
Deus acharam bellas as filhas da terra! Um louco amor
depravou de súbito seu coração e obscureceu sua ra­
zão. O espirito chegou por fim a identificar-se com a
carne. Esta união insensata e criminosa produziu os
gigantes.
E de feito quando o genio do homem concentra
toda a sua actividade, toda a sua energia sobre a ma-
572 OS ESPLENDORES DA F É

teria, quando a acirra de alguma sorte com o sopro de


sua vida divina, torna-se como um gigante! Mas é en­
tão que na ebriedade de seu triumpho se crê deus;
não mais ergue para o ceo os olhos agradecidos; vol­
ta-se para sobre si mesmo; encarna-se cada dia mais
na matéria, cuja massa acaba de alguma sorte pelo
absorver. Não tarda que se pronuncie uma reacção es­
pantosa. A matéria, tornada rainha, enerva e subjuga
seu rei! Escravisado, embruteeido pelos sentidos, o es­
pirito perde todo o seu ardor! a sciencia extingue-se!
a industria fenece! e a barbaria recomeça!
E não será fóra de duvida que a civilisação do xix
século se não é, materialmente fallando, a barbarie, toca
já pelo menos nas suas fronteiras ?
O que se passa n’uma estação de caminho de ferro,
a locomotiva com o olho flamejante e sangrento, o fo­
gão incandescente, as torrentes de vapor que se escapa
assobiando, ou antes mugindo e rugindo, não será a
barbarie ? Essas longas fiadas de vagons, rápidos como
a flecha, que um descarrilamento imprevisto ou calcu­
lado despede algumas vezes violentamente esmagando
uns contra os outros, ou que a ruptura de uma ponte
precipita no abysmo, não serão a barbarie? E não será
barbaro esse comboio da mala-posta de Londres ou das
índias, que ao vel-o passar causa vertigens, e vos pene­
tra de terror até á medulla dos ossos? Não é possivel
sem uma barbarie requintada condemnar milhares de
empregados, mecânicos, fogueiros, guarda-freios, con-
ductores, a permanecerem por tres dias e tres noites de
pé sobre a locomotiva, sempre inquietos, sempre desaso-
cegados, sempre esmagados ao peso de uma responsa­
bilidade terrivel? Não será barbaro ter as estações
abertas aos domingos e dias de festa, a todos os com­
boios de viajantes e de mercadorias, a todos os carros
de grande e de pequena velocidade, sem jamais inter­
romper os serviços nocturnos, que impõem a tantos
A EGREJA 573

operários mal retribuídos tão longas e penosas vigí­


lias? Não serão barbaros esses intermináveis tunneis de
doze a quinze kilometros de comprimento, abertos á
força de braço, de tempo e de dinheiro atravez dos
Alpes, e que podem tornar-se a cada instante o tumulo
dos carros que por elles se mettem ?
Barbaros são esses vapores enormes atulhados de
passageiros, em numero por vezes superior a mil e qui­
nhentos, condemnados a atravessar o Oceano atravez
de espessas brumas, assaltados por violentíssimos fura­
cões, escoltados por blocos immensos de gelo, em risco
de irem despedaçar-se contra os rochedos, ou de cahi-
rem uns sobre os outros em collisões espantosas. Bar­
baros esses monitores, esses navios couraçados, verda­
deiros monstros marinhos, com sua armadura de ferro
de trinta e cinco a quarenta centimetros de espessura,
suas torres cobertas de aço, seus canhões de cem a du-
zentas toneladas, com seu centro de gravidade tão ele­
vado, sua instabilidade tão grande, que basta o menor
abalroamento de um outro para os metter a pique com
seus exercitos de marinheiros e soldados. Barbaras es­
sas couraças de cincoenta, sessenta, setenta, e oitenta
centimetros de espessura, que desprezam as balas de
peça de oitenta, cem, cento e vinte toneladas! Sim, bar­
bara. ultrabarbara a lucta encarniçada e interminável
da bala que force ja por atravessar a couraça e da cou­
raça que desaüa a bala, lucta que provocou este dicto
de um grande poeta: «Quando se houverem descober­
tas couraças capazes de cuspir todas as balas, fabricar-
se-lião balas capazes de furar todas as couraças!»
Barbaras essas collossaes industrias do vidro, do
ferro e da hulha, com suas immensas torrentes de me­
tal liquido inflammado, que se diriam torrentes de lava
enfurecida! Barbaros esses blocos enormes de ferro in­
candescente que torram os homens que os puxam para
os lançarem em pabulo aos laininadores e aos martel-
574 OS ESPLENDORES DA F É

los! Barbaros esses martellos-pilões que fabricam arvo­


res de ferro da grossura do tronco humano! (A massa
activa do martello-pilão exposta pelo Creuzot * no
Campo de Marte pesava oitenta toneladas, oitenta mil
kilogrammas! A altura da queda do pilão era de cinco
m etros! Esta altura de queda multiplicada pelo peso
de 80,000 kilogrammas dá um trabalho de 400,000 kilo­
grammas ! **) Barbaras essas ondas de grandes faúlhas,
mensageiras do incêndio! Barbaras essas planícies ou-
trora verdejantes, hoje devastadas e nuas, despojadas
de seu minério de ferro e de carvão, listradas noite e
dia de fogos lugubres, cobertas de nuvens sinistras e de
fumaradas empyreumaticas! Barbaros esses poços de
quatro mil metros de profundidade, para onde conver­
gem vastas e compridas galerias subterrâneas, periodi­
camente invadidas pelo hydrogenio carbonado, agente
cruel de formidáveis explosões, que estalam quando
menos se espera, e fulminam toda a população operaria
lá sepultada, pela maior parte amparos de numerosa fa­
mília ! Barbaras essas machinas a vapor cada vez mais
monstruosas das fabricas, dos navios e dos vapores!
Uma das machinas de um navio a vapor expostas no
Campo de Marte, attingiu a fabulosa cifra de 8,000 ca-
vallos-vapor!
Barbaras, barbaras as exigências e arrebatamentos
da civilisação que tornam as cidades todos os dias des-
conformes! Quem se não tem sentido perdido, aniqui­
lado, despojado de sua personalidade, vagabundo, de­
solado como o homem que perdeu o seu reflexo ou sua
sombra atravez d’esses omnibus, d’esses tramways, d’es-

* Povoação in d u s tria l im p o rta n te do d e p a rta m e n to do Saone-et-


L o ire.
** O A. quiz de c erto dizer o trab a lh o de 400,000 kilogram m e-
tros.
N. do T.
A EG REJA 575

ses trens de praça, d’esses mil vehiculos de toda a es-


pecie, que sulcam as ruas de nossas grandes cidades ?
Hoje não se pode ir de um passeio da rua a outro sem
perigo de yida. Já se crearam refúgios; não tardará que
seja preciso estabelecer pontões. Um jornal parisiense
estygmatisa esta barbarie em termos mui espirituosos:
«Ao canto das ruas mais frequentadas, taes como as de
Montmartre, Richelieu, etc., é costume que os guardas
da paz façam passar, alternativamente, uma fornada
de peões e outra de carruagens. Acontece porem algu­
mas vezes que os guardas esquecem completamente a
infanteria, de sorte que esta não pode desembocar se­
não quando o desfilar da cavallaria está inteiramente
acabado, o que é mui pouco agradavel para os infelizes
peões.»
Barbaras essas admiráveis avenidas, delicias dos
parisienses e dos estrangeiros, onde passeavam ou res­
piravam á vontade, hoje porem impedidas e sulcadas
por milhares de linhas de tramways, cujas cornetas en­
surdecedoras reboam com enfadonho estalejar!
Barbaras essas estações do caminho de ferro dos
suburbios, onde milhares de homens, mulheres, e crean-
ças esperam apinhados o signal da sahida. Todos estre­
mecem de alegria ao ouvirem o silvo da locomotiva!
Mas esta alegria converte-se em desespero, quando se
sabe que o trem vai já trasbordando de passageiros!
Barbaras essas caudas intermináveis condemnadas
a esperar debaixo de chuva, gelo ou neve, a abertura
dos postos onde se vendem bilhetes (guichets) de thea-
tros, salas de concertos ou de outras publicas reuniões.
Mais barbaras ainda essas longas fiadas humanas, aco­
tovelando-se, no fim do cerco, em redor das casas de dis­
tribuição para obter passada meia hora, uma hora de
espera, alguns bocados de pão negro ou de carne com
uma gota de vinho !
Barbaros esses armazéns immensos do Louvre, da
576 OS ESPLENDORES DA F É

Bella Jardineira, da Ponte Nova, do Bom Mercado,


etc., onde tudo se remexe de alto a baixo, onde ha de­
moras iuterminaveis, etc., etc., e que occasionaram a
ruina de grande numero de pequenas industrias de que
viviam honrosamente seus pacíficos possuidores.
Barbaros esses hotéis continentaes onde a ordem
está na fusão e na confusão!
Barbaros, barbaros esses grandes cafés, transforma­
dos em cidades permanentes, onde se passa o dia e uma
parte da noite cavaqueando sempre, fumando sempre,
bebendo sempre!
Barbaros esses restaurantes, onde comem esbafori­
dos, fascinados, aturdidos milhares de convivas!
Barbara essa Bolsa estonteante, onde os gritos tu­
multuosos de compra e venda, de alta e baixa, se cru­
zam selvagens em todos os sentidos, e onde desapare­
cem de repente tantas fortunas!
Barbaros esses bancos nacionaes, aos quaes um só
desfalque pode subtrahir dezenas de milhões sem da­
rem por isso, ou sem d’isso se queixarem!
Barbaro esse ardor irresistível que rouba os habi­
tantes dos campos a suas tranquillas choupanas e os
golfa nas cidades para os empilhar nas fabricas, nas of-
ficinas, nos armazéns, nos canos de esgoto!
Sim barbara, cem vezes barbara essa civilisação ex'
cessiva, insensata! O velho Boileau achava já barbara
a Paris do seu tempo. De certo fugiría horrorisado da
Paris do décimo nono século.
Mas todas essas baubaries que apenas bosquejamos
são barbaries materiaes, necessidades fataes dos tem­
pos, consequências forçadas do progresso, inspiradas,
realisadas pelo espirito de insurreição, por obras de gê­
nio que fazem a maior honra á humanidade. São du­
ras, extravagantes, mas são boas em si humanas. Ha
outras barbaries moraes, necessidade também dos tem­
pos, que não são essencialmente más, mas que nem por
A EG REJA 577

isso são menos desastrosas. Por exemplo, barbaros mo -


ralmente os exercitos permanentes, o serviço militar
universal que arranca, e por cinco longos annos, ao lar
domestico, o melhor das populações, para o condemnar
á caserna, á vida dos quartéis, com suas consequências
homicidas. Sim, barbaras são essas leis draconianas que
votam quinhentos mil homens jovens e vigorosos, (*) na
maior parte arrancados á agricultura, a maÍ6 fecunda,
a mais salubre, a mais morigeradora de nossas indus­
trias, não ao celibato propriamente, mas á libertina­
gem !
Attentado material contra Deus e contra a huma­
nidade.
Mais barbaro ainda esse ardor de nossa juventude
pelas funcções assalariadas da centralisação e da buro­
cracia. E’ a quem mais desertará de sua aldeia natal! E ’
a quem mais abandonará sua pequena cidade natal,
desgostoso do commercio a retalho, monotono, mas
honesto, e que proporcionaria uma existência modesta.
Não, isso não basta, é preciso correr para as capitaes
da província, ou para a capital do reino, e viver estio-
lado no seio das grandes repartições, na meia ociosi­
dade da uma vida deleteria. Quem ignora ah! que as
sanguesugas do Estado, como todos os seres parasitas,

(*) 500 000 h om ens diz o A., 12.600.000 d ev eria d izer e só p a ra


as cinco g ran d es p o tên cias c o n tin e n ta e s d a E u ro p a !
E pro m p to s a a v a n ç a r, a d e sp e d a ç a r-se , a serv irem de alvo ás
C hassepot, ás K rupp ás m e tra lh a d o ra s, e a o u tro s tan to s in stru m e n to s
de m orticínio c d e s tru iç ã o ! E tu d o isto em nom e do p ro g resso , d a c i-
vilisação e da paz! m as é do p ro g resso sem D eus, da civilisação m a te ria ­
lista e pagã, já infam ada pela h isto ria, da civilisação sem Je su s C hristo,
o unico q u e pode realm en te d a r a paz, a lib e rd a d e , a fra te rn id a d e , o
u aico q ue pode e n fre a r a força, as am bições d a co n q u ista , os odios en ­
tre as nações, e p re p a ra r a victoria do ju sto , o triu m p h o do d ir e ito !

N . do T.
VOL IV 47
578 OS ESPLENDORES DA F É

são não só seus servidores os mais inúteis, mas os seus


maiores inimigos ?
Mais desoladoras talvez outras barbaries, para
vergonha da sociedade moderna em geral, da socie­
dade franceza em particular, são essas que eu denomi­
nei peccados a sangue-frio: o trabalho do domingo que
torna as nações athêas; o descanço á segunda-feira que
leva ao seio das familias a tristeza e a ruina; o esque­
cimento voluntário dos preceitos da Egreja, da absti­
nência e do jejum, preceitos aliás muito hygienicos, e
de boa economia publica; o beneficio illicito sobre o
preço das compras e vendas em prejuízo dos amos, in­
delicadeza requintada que suffoca 11a alma dos creados
todo 0 sentimento de honestidade; a alteração dos pe­
sos e medidas; as falsificações e as sofisticações de to­
dos os artigos alimentícios, e outros semelhantes cri­
mes de lesa-humanidade!
Enfim, e sobretudo a violação das leis que devem
presidir á união do homem e da mulher, crime abomi­
nável, lucta horrenda do calculo atheu contra a reli­
gião, a razão, a natureza e até a própria paixão, fonte
ruinosa de uma infinidade de males, cancro devorador
no coração da nossa querida França, a quem prepara
activamente sua queda próxima. Ha ainda um facto in­
contestável que devemos consignar aqui, e que prova
até á evidencia a barbarie da civilisação. Hoje na Eu­
ropa, onde sobe ao seu acume, não se diria que a
grande occupação do homem é attentar contra a sua
vida ? Mata-se pela sede das grandezas, pelo afan dos
negocios, pelas preoccupações da industria e do com-
mercio, pela demora quasi habitual nas atmosp heras
empestadas dos theatros, dos cafés e tabernas por
dansas effrenes que se prolongam noite inteira, pelo
abuso do tabaco e das bebidas alcoólicas, e sobretudo
pelo absinto; pela paixão dos cavallos e das corridas,
A EG REJA 579

pelas exaltações do jogo, pelos attentados directos


contra a própria vida que sc vão multiplicando em pro­
porção assombrosa.
E essas doenças terríveis, quasi desconhecidas n e u ­
tros tempos, que ceifam á sua parte mais de metade
das victimas da m orte! A syphilis, os abortos, as febres
puerperaes, o garrotilho, a febre typhoide, a anemia, a
chlorose, a phtisica pulmonar sobretudo, á qual de boa
vontade chamaria o sello da besta, o passe de morte da
civilisação. Um celebre medico inglez urdiu a historia
da etiologia e como a theoria das doenças dos tempos mo­
dernos ! Diseases of moderne life, pelo doutor Richardson
in-12, 520 paginas Londres, Mac-millan, 1875.
Mais uma palavra da civilisação comparada das na­
ções latinas e das nações germânicas ou anglo-saxonias,
por outras palavras, das nações protestantes e das na­
ções catholicas. As nações catholicas avantajavam-se
outrora sem a menor duvida ás nações protestantes. A
Italia, a França, a Hespanha, Portugal tem na historia
paginas de ouro.
Abraçavam ou possuíam o mundo inteiro, quando
a Inglaterra, a Allemanha e a America mal tinham sa-
hido as próprias fronteiras. Que haverá de mais surpre-
hendente, do que a Hespanha de Philippe v, ou a Fran­
ça dos primeiros annos de Luiz xiv ? E note-se que fora
sua fé catholioa, apostólica, romana o principal fautor
da grandeza d’estas nações. Os povos, senhores do mun­
do, são sómente aquelles que porfiam em cumprir esta
divina missão: «Ide, ensinai todas as nações, baptizai-as
e ensinai-lhes a observar os meus preceitos.» Ora o
apostolado da fé e da civilisação, já o provámos á sa-
ciedado, é o característico do genio catholico, está
acima das forças do genio heretico ou scismatico. O
apostolo deve ser sancto; ora o inglez, o allemão, e o
anglo-saxonio protestantes não tem no mesmo grau das
nações latinas o sentimento da sanctidade.
580 OS ESPLENDORES DA F É

Gabam-se até de nem a tanto aspirar!


Mas os tempos vão mudados! Se as raças latinas
dominaram no passado, perderam o império do presente
e mais ainda do futuro. No fim da guerra de 1870, o
Germano na embriaguez da victoria gritava á nossa
bella França: «Teu reinado acabou, o meu começa; as
raças latinas tiveram sua epocha, as raças allemãs vão
aparecer transfiguradas, o futuro pertence-lhes!» Quando
isto acontecesse, quando esta inferioridade actual fosse
um facto, não se poderia manejar como arma contra a
religião catholica. Porque é evidente pelo contrario
que se a Italia, a França, Hespanha e Portugal tem dei­
xado de occupar a primeira plana entre as nações, é
porque perderam o espirito catholico. Pela fé conquis­
tou a Hespanha o novo Mundo e as Philippinas. Portu­
gal, as índias e o Brazil; a França, uma parte da Ame­
rica e do Canadá. Hoje com o espirito catholico essas
mesmas nações perderam o sentimento da auctoridade,
da auctoridade religiosa, da auctoridade politica, da
auctoridade civil, da auctoridade domestica, e uma tal
perda é a causa de sua decadência. (*)
(*) Q uanto a n o ssa infeliz p a tria é o exem plo frisa n te , vivo e
eloquente d ’esta b ella c ritic a h is to r ia ! Que povo h ouve ja m a is tão li­
vre, tão feliz e tão glorioso, como o p ortuguez n a ep o ch a dos p rim eiro s
reis da seg u n d a d y n astia ? A essa ep o ch a ta m b é m p e rte n c e m os te m ­
pos hero ico s da fé cath o lica, os form osos dias do Grão M estre de C hristo,
o im m ortal Infante D. H e n riq u e ; n ’essa tela se d estacam as figuras
m ais acab ad as de p o rtu g u ezes ou m e lh o r são os d ias da ju v e n tu d e do
P ortugal C avalheiro s a n s p e u r e s a n s r e p r o c h e ! Com as riq u ezas do
O riente v ieram -n ’os o luxo, a p reg u iça, a co rru p ç ã o , a d eg en erescen -
cia dos c a ra c te re s, os e rro s de ad m in istra ç ã o , a su p e rstiç ã o n o s s e n ti­
m entos sim ples e cân d id o s do c h ris tia n is m o ; ao m esm o tem p o e n tra ­
vam -nos as fro n te ira s os ju d e u s sem itas, q u e haviam de e m p o lg a r nos­
sos b en s pela u s u ra e m in a r a fé e os costum es ch ristã o s p ela d e sc re n ­
ça e pelo viver de um sensualism o re le s, baixo, sem ideaes; m ais ta rd e
com as id éias philo so p h icas do xviii século, a p o litica p ag ã, e sc ra v i-
san te, ty ra n n ie a e d esp rezad o ra d a h u m a n id a d e do m arq u ez d e P o m ­
bal, seg u id a do falso liberalism o da R evolução fran ceza.
A EG REJA 581

As nações latinas, mórmente a França, possuem to­


das as qualidades de um conquistador. São a um tempo
corsel, torrente, rio. Ora para que levem não a morte,
mas a vida, é mister que a torrente haja cavado seu
leito proíundamente, que o rio tenha seus diques, e o
corsel um freio.
O genio das nações latinas e mais do que qualquer
outro o genio francez, é ao mesmo tempo razão, lógica
e acção; e se lhes inoculardes as theorias revoluciona­
rias ou philosophicas, suas qualidades nativas volver-se-
hão energicos disolventes. Em quanto que para os es­
píritos mais tardios e mais broncos das raças anglo-sa-
xonicas ou germânicas, estas doutrinas podem ficar por
muito tempo no estado de theoria sem entrar na pra-
ctica, erros antes do que crimes.
Que será pois necessário para restituir á França,
á Hespanha, á Italia e a Portugal, a paz, a prosperi­
dade e a grandeza? simplesmente, eu não direi ani­
quilar, nem mesmo converter, mas tornar impotentes
para o mal em Hespanha cem, em Italia duzentas, em

Hoje a n a rc h ia na política, não h a id éias, n em c re n ç a s, u ein p a r ti­


dos ; a n a rc h ia m oral nos c a ra c te re s, p o rq u e a m oral do positivism o é
triste e abafada com o o a m b ien te de um sarco p h ag o , e essa m o ral é da
m aior p a rte dos h o m en s d irig e n te s do esp irito p u b lic o ; a a n a rc h ia eco­
nôm ica, resu ltad o de esb an jam en to s, de au g m en to louco p o r p a rte dos
governos das classes in activ as e do fu nccionalism o, de m e lh o ram en to s
m ateriaes p recip itad o s e já em p a rte irnproductivos, d a im p rev id en -
cia dos nossos fin an ceiro s, im itad o res atoleim ados do system a de L aw ;
da falta de p ro tecção d ire c ta á nossa a g ric u ltu ra e in d u s tria ; a n a rc h ia
no bello cam po cath o lico , o nde o clero e os fieis secu lares su b o rd in a m
os in te re sse s da E g reja e do c h ristia n ism o aos seus p ro p rio s in teresses.
Qual será o re su lta d o final de to d as estas a n a rc h ia s? A h is to ria tem
e scrip to m ais de u m e p ita p h io , e no tum u lo de povos m ais a n tig o s ;
m as tam bém tem p re se n c e a d o e ap lau d id o a re s u rre iç ã o de o u tro s.
Oxalá qu e este novo L azaro re s u rja á voz de Deus p a ra b rilh a n te s d e s­
tinos !
N. do T.
582 OS ESPLENDORES DA F É

França quinhentas, ou talvez um milhar de más vonta­


des !
Façamos um confronto directo entre as raças lati­
nas e as raças germânicas.
A superioridade intrínseca das raças latinas é evi­
dente.
Os solos da França, da Hespanha, de Portugal, da
Italia, bastam e com muito para a subsistência de seus
habitantes.
O ceo é lá puro, clemente, o clima temperado, a
atmosphera amena. A carne, o peixe, o trigo, o vinho,
o azeite, o mel, o assucar, todos os artigos de conforto
abundam. A necessidade imperiosa da emigração não
as dizima annualmente.
O meio ou o elemento do genio allemão é a nuvem,
sonha!
O meio, onde vive o genio inglez, é o nevoeiro,
enoja se! O meio do genio francez, é o sol, opera! O
meio do genio italiano, é o ar, canta! O meio do ge­
nio hespanhol, é o ceo, o ra !
Estudemos de mais perto as nações protestantes, e
vejamos o que é no fundo sua pretendida superiori­
dade.
A Inglaterra. Um poeta, o snr. marquez de Jouf-
froy, disse da Inglaterra com muita razão:
Salve, fria Albion, terra d’industria, d’um povo me­
cânico insípida patria; tua obra piãma a meu ver é o
navio a vapor, que me permitte fugir-te apesar da vaga
em furor.
0 paiz. O solo de Inglaterra mal produz o indis­
pensável para a vida, seu clima é triste, a bruma está
ali como em sua casa. Encerrados em sua ilha fria e
húmida, onde a abordagem é sempre com perigo, os
inglezes estão condemnados a ir buscar ao longe o con­
forto e a alegria.
A religião. Como nação a Inglaterra é christã. Or-
A EG REJA 583

ganisa missões, mas sem apostolos. Espalha profusa­


mente biblias, tracts religiosos. Mas individualmente
falando, não tem fé, ninguém ora. Reparai no inglez
que vae á Judeia; lá se dirige na mesma attitude for-
malista, com que vae aos seus negocios; mas vê-se,
palpa-se, que não pensa n’aquillo.
Entrando no templo, occulta por um instante o
rosto no chapeo, assenta-se, eis tudo!
Quanta verdade n’este remoque

.. -E rirei sempre
d’este povo devoto uma vez por sete dias

Sua riqueza. O grande afan da Inglaterra é tudo


quanto ella crê poder enriquecel-a, o consummo com
suas crises desastrosas, a grande industria com suas
greves ruinosas, a colonisação com a emigração e suas
innumeraveis victimas.

.. .Um homem baixou á terra!


Mas que importa? ao commercio lá vai mais uma
tonellada de ferro!

Em Londres, diz o sr. J. Pecchio, em logar de di­


zerem que tal indivíduo emprega tal numero de operá­
rios, dizem commummente que tal numero de hands,
i. é, braços, como se os obreiros fossem simples machi-
nas ou escravos, sem cabeça, sem coração, sem alma,
o que é realmente assim. « Eis aqui como nossas cida­
des populosas, dizia o douctor Pusey, nossos portos,
nossas minas, nossas fabricas estão mergulhadas em
profunda desolação; salvo a suspensão das penas são
typos do inferno. >
A Inglaterra é rica, muito rica, mas esta opulência
territorial ou commercial é o privilegio exclusivo, quer
de um pequeno numero de famílias aristocráticas que
584 OS ESPLENDORES DA F É

a apostasia da fé catholica e o favor de Henrique vm


tornaram senhores absolutos do solo, quer de algumas
personalidades em evidencia, cujos milhões de libras
esterlinas fazem um excellente contraste com a extre­
ma penúria das multidões que os enriquecem com suas
fadigas, suores, lagrimas e sua extenuação.
Em Londres, o numero de indivíduos reduzidos a
extrema pobreza, a miséria espantosa, é incalculável.
A estatística official accusa um indigente por cada oito
habitantes; pode dizer-se que ha um para quatro!Mesmo
no tempo ordinário, milhares de operários ficam sem
trabalho, e os desgraçados leave men vivem a ceo des­
coberto de immundicies e da rapinagem. 0 publico é
informado todos os annos de que milhares de habitan­
tes morrem de fome. Em tempo de crise é bem mais
medonho ainda.
Para referir um facto de entre mil outros: Em
1857, grupos mui numerosos de operários percorriam a
rua Oxford, gritando a cada instante com voz sepul-
chral: All out of work! (todos sem trabalho!); All star-
ving! (todos a morrer de fome!) E lá iam cruzando as
ruas da cidade, e gritando sinistramente: Woe! Woe!
Maldição! Maldição!
E o que ha de mais triste, e horrível é que o po­
bre inglez é esse pobre soberbo que Deus tanto abor­
rece ! Todos esses mendigos, inclusivé aquelles que ap-
parecem todos os dias mortos sobre as calçadas das
ruas, tem seu chapeo, seu chale e vestido com guarni­
ções.
Como consequência natural d’esta horrível misé­
ria, o vicio não se occulta, escancara-se impudente, não
só pelas ruas tortuosas da cidade, mas até nas mais es­
paçosas e illuminadas. A prostituição tem tomado pro­
porções verdadeiramente assustadoras.
Muito embora a taxa dôs pobres seja um imposto
extremamente oneroso, os soccorros dados aos indigen-
A EG REJA 585

tes são irrisórios. Os habitantes, ou melhor os presos


das Works-Houses estão empilhados em logares aper­
tados, mal arejados e infectos. E jamais esses infelizes,
ainda quando soffrendo de graves enfermidades, tem a
esperança de receber os carinhos de uma irmã da cha-
ridade! E’ que em Inglaterra a charidade é uma pa­
lavra sem sentido; o que a substitue com a heresia é a
mais glacial philantropia.
Sua moralidade. A cubiça, que é o vicio commum
do povo inglez. O abuso das bebidas alcoólicas é geral
nas diversas classes da sociedade. As próprias mulhe­
res, mesmo as da alta sociedade, enfermam de amores
pelo gin. Veem-se todos na necessidade de ter creadas
muito novas, porque aos trinta annos a temperança é
excepção rarissima.
Em Gflascow, dez mil individuos se embebedam to­
dos os sabbados á noite, logo depois da feria, e ficam
n’este estado domingo, segunda-feira e ás vezes terça-
feira. N’essa mesma cidade, anda por vinte mil o nu­
mero das mulheres presas por bebidas e a tal ponto,
que não podem ter-se em pé. Em Edimburgo, cidade
aliás puritana, foram creados vastos estabelecimentos,
onde se põem por obra em larga escala a arte de per­
derem a razão por um penny, trinta reis. Quaes são as
consequências fataes d’estas abomináveis estatísticas?
A mais profunda miséria, a promiscuidade dos sexos,
a loucura e o crime! A alienação mental, causada pela
embriaguez, attingia ha annos esta proporção formidá­
vel: sobre 1271 orates, cujos antecedentes puderam
ser conhecidos, 649, i é, mais de metade, tinham per­
dido a razão por causa das bebidas alcoólicas. Na clas­
se indigente, é bem peior ainda! Os dois terços de in-
glezes pobres são intemperantes.
A probidade. Em 1834, já a Revista Britannica apre­
sentava a seguinte estatística dós roubos commettidos
n’esse anno: Furtos por domésticos 17.000:000; roubos
586 OS ESPLENDORES DA FÉ

sobre o Tamisa, 12.000:000; roubos nas dokas e nas


vias publicas, 13.000:000; roubos por moeda falsa,
5.000:000; roubos por falsos bilhetes de Bancos, 4.000:000.
N’aquelle anno a cidade de Londres contava 1.200:000
habitantes, era portanto um imposto de 43 francos,
75 c. por cabeça. E note-se que n’esta bonita estatísti­
ca ainda ficam de parte os furtos de caixeiros! O que
dariam as estatísticas de 1890 ou 1891!
A família. O Jornal dos Debates, aliás grande admi­
rador de Inglaterra, não pôde deixar de dizer certo dia
que se houvéssemos de fazer juizo por aquillo que
transluz cá fóra, sem devassar o lar domestico, tinha-
mos de concluir que quasi todos os maridos inglezes
batem nas mulheres.
Na sessão de 1853, o snr. Fitz-Roy dizia em pleno
parlamento: «Não se podem ler os jornaes sem um
sentimento de horror, tão numerosos são os exemplos
de tratamento brutal infligido ao bello sexo por ho­
mens, cujas atrocidades nos deveríam fazer córar. As
mulheres são vendidas pelos maridos, os filhos pelo pai
e pela m ãe; ha mercados públicos, onde as creanças
dos dois sexos são offerecidas a quem mais der.»
A justiça. Em Inglaterra não ha codigos, ninguém
pode gabar-se de saber as leis. A magistratura ingleza
é fartamente remunerada; ha juizes que vencem o or­
denado fabuloso de setecentos e cincoenta mil francos.
O presidente do tribunal do Banco da Rainha vence
dois milhões e quinhentos mil trancos; e em parte al­
guma do mundo a justiça corre mais lenta e ruinosa.
O mais insignificante processo, julgado no supremo tri­
bunal de justiça, custa ao que o ganha a bagatella de
quinhentas libras sterlinas ou doze mil francos! Nossas
Irmãs do Bom Soccorro de Angers, estabelecidas em
Hammers-Smith, foram accusadas por uma rapariga
que estivera na má vida, de sevicias, porque a obriga­
vam a levantar-se ás seis horas da manhã! Não são
A EG REJA 587

condemnadas, mas as custas do processo importaram-


lhes em doze mil francos. Um processo de falsificação
por mais bem fundado que seja, arruina aquelle que
ousar intental-o.
No tribunal supremo, a Chancellaria, as causas
correm tão morosamente e as despezas montam a uma
conta tão fabulosa, que só o fallar em Chancellaria
causa calafrios. E ’ um antro devorador, d’onde se não
pode sahir desde que para lá se entrou. Já é !
Evidentemente as nações latinas ou catholicas nada
tem a invejar á Inglaterra, debaixo do ponto de vista
do bem estar, dos costumes, das leis e instituições. Con­
siderada de perto, tudo quanto podia seduzir ou enga­
nar o olhar do observador pouco attento, perde muito.
Digamos ao terminar com Montesquieu: « Cousa
admiravel! a religião christã, sobretudo a catholica,
que parece não ter outro objecto senão a felicidade da
outra vida, faz ainda a nossa ventura n’esta.» (Espirito
das Leis, cap. xxiv, pag. 33.)
A Allemanha. Quanto á Allemanha, limitar-me-hei
a resumir um pequeno trabalho que publiquei com este
titulo — O povo-rei do futuro. — No começo revestiu a
forma de uma conferência dada no salão do Grande
Hotel de Pariz em plena guerra de 1870.
A Germania g rita: * As raças latinas passaram,
soou a hora das raças germânicas, d’or’avante serão o
povo do futuro.» Vejamos o que ha de verdade n’estas
aspirações insensatas... A força de um povo, o que o
unge como rei do futuro é seu genio. O ponto de ap-
poio da força ou do genio é o solo. O instrumento da
força e das conquistas do genio é a lingua. Ora a Prus-
si-\ embora representasse toda a Allemanha, não tem
o genio, nem o solo, nem a lingua que dão a força. Co­
mecemos pelo solo.
0 solo allemão é impotente para alimentar seus fi­
lhos.
588 OS ESPLENDORES DA PÉ

O que respondia o sr. de Bismarck áquelles que


lhe increpavam o sacrificar tresentos mil homens ao
ciume odiento que tinha á França? «Tresentos mil ho­
mens! é isso o que a Allemanha arroja cada anno nas
fauces da hydra da emigração!» Quantos hespanhoes,
francezes ou italianos contais na Allemanha ? Pouquís­
simos! E esses raros emigrados morrem lá de aborreci­
mento! Quantos prussianos contaveis antes da guerra
em França? milhares d’elles, centenas de milhares
d’elles.
E que faziam entre nós esses milhares de prussia­
nos, de allemaes? tudo aquillo que nós não queremos
fazer. A França extrahiu de seu solo em menos de dois
annos os cinco milhares de milhões de francos de in.
demnisação da guerra!
A Allemanha enguliu esses cinco milhares, e já
solta gritos de angustia nas garras da crise financeira!
0 gênio. O futuro pertence ao genio de invenção;
ora o genio allemão não inventa. Avanço mais, não crê>
ou crê difficilmente na possibilidade da invenção. Isto
é tão verdade, que na Prússia — e é uma anomalia tão
revoltante, que tem mil vezes feito desesperar nossos
inventores francezes — é quasi impossível obter a san-
cção de uma descoberta estrangeira.
A Prússia não tem realmente inventado ou melhor
fabricado senão a peça Krupp, monstro ingente, infor­
me e horrendo! E já que fallámos n’elle, não o deixe­
mos sem dizer — o que prova eloquentemente a barbá­
rie da civilisação do xix século —é que a peça Krupp
rende a seu auctor a bagatella de dois milhões de fran­
cos annuaes, e que paga ao Estado de contribuições
mais de 70,000 francos.
Mas os allemaes são sábios! E’ certo que contam
sábios de primeira ordem. Porem esses sábios de pri­
meira ordem, os Jacob, os Glauss, os Dirichlet, não
eram da raça germanica, pertenciam á somitica. E os
A EG REJA 589

outros são sábios a seu modo, sábios terra a terra, á


maneira dos eruditos. Estabelecem e analysam pacien­
temente os factos, á caça meuda. O espirito allemão
habita demasiadamente a região das nuvens e dos fu­
mos do tabaco, vive muito de sonhos. E o reino do so­
nho é um reino ephemero, de illusões.
Por isso é de sua feição desvanecer-se nos proprios
pensamentos, e assim precipitar-se em todas as enor­
midades do erro. Yêde Kant, Hegel, Pitche, Peuerbach,
Strauss! Devem todo o seu prestigio ás nuvens em que
se envolvem. Suas mais famigeradas theorias são nega­
ções delirantes. Para elles as sanctas e grandes cousas,
Deus, Universo, não são de certeza objectiva; não são
realidades distinctas do espirito que as concebe. Atre­
vem-se a affirmar que seu pensamento produz Deus, o
Mundo, a Sociedade. Sonhos, abstracções puras, e por
corollario d’estes sonhos e abstracções o desespero e o
nada! E’ o espirito prussiano no máximo da sua força!
A língua. A lingua allemã é uma lingua riquíssima,
philologicamente, ousada na composição, original e até
extravagante na grammatica, como se receasse que
comprehendessem muito depressa o que ella quer di­
zer. Mas de nenhum modo é a lingua do apostolado e
do ensino. Não é mesmo uma lingua popular; fica fa­
talmente ignorada da maioria d’aquelles que a falam
quasi tanto como o chinez!
E’ que na realidade a lingua allemã não está feita,
está e estará sempre por fazer.
Aprehendel-a-hão por necessidade, hão de a falar
por força das circumstancias, mas logo que for possível
será posta de parte...
A minha these está provada até á evidencia: o solo,
o genio, a lingua das raças germânicas não caraçteri-
sam de modo algum o povo do futuro. A Prússia tão
arrogante, é bom ou mau grado seu, o que tem sido
n’estes últimos annos, o flagello de Deus que ha de
590 OS ESPLENDORES DA FÉ

acabar, a força que se ha de exliaurir, a vergasta que


se ha do quebrar.
A supremacia no futuro, como no passado, perten­
cerá, quando tiverem expiado seus desvarios, quando
tiverem sacudido o jugo de uma audaciosa minoria, ás
raças latinas, e entre estas á raça franceza, á França.
E que diriamos se eu tivesse invocado em favor de
minha these os symptomas de decomposição, digamos
antes, de barbárie que resumam de todas as partes da
Allemanha? A invasão do socialismo, a exaltação das
reuniões populares, a emancipação das mulheres, o
abandono da egreja nacional, o despreso dos ministros
do culto, ou seu isolamento das massas, os vicios que
trasbordam, o pauperismo que augmenta a olhos visto,
o exhaurimento das caixas do Estado, etc.
E’ um grito universal, o de que os perfumes de Ber­
lim ameaçam supplantar os de Paris, Londres e New-
York, etc,
Os E stados-U nidos . Quanto mais assustador não
seria o quadro comparativo das raças anglo-saxonicas,
se eu tivesse confrontado as raças latinas com os Esta­
dos Unidos da America do Norte! Este povo, cuja in­
dependência data apenas d’ha um século, já attingiu os
requintes da mais avançada civilisação. O deus dollar
reina como soberano senhor sobre todas as classes da
sociedade.
Quando se pedem informações ácerca de alguém,
não se pergunta, como na Europa, se tal pessoa, é hon­
rada, mas se é habil, smart? Isto diz assaz que entre os
americanos a moral pouco vale. Tem pela vida um des-
dem absoluto, como se d’ella fossem senhores. Dois ca­
pitães de navios encontrando-se em uni d’esses bellos
rios que sulcam magestosamente a America em todos
os sentidos, não sentirão o menor escrupulo em sacrifi­
car cem ou duzentos passageiros só para terem o pra­
zer de deixar atraz o navio rival.
A EG REJA 591

Practicam á lettra o que encerra esta phrase de


Bonaparte: «Os homens não são nada, os minutos são
tudo.» Assim é que entre elles não ha crenças!
Aos doze annos vereis um adolescente gravemente
assentado ao mostrador, falando e respondendo com os
modos de um homem de quarenta annos. Os america­
nos não vivem, queimam a vida. O sentimento n’elles
está morto; só são capazes de sensação. A justiça é ve­
nal; e bastas vezes a corrupção dos juizes tem sido des­
mascarada. A instrucção é por atacado; a educação vi­
ciosa. Que pensar de feito d’esses vastos collegios, onde
os dois sexos frequentam os mesmos cursos, e juncta-
mente se recreiam? A caridade não existe lá. Nada
mais frequente do que encontrar de manhã estendidos
nas ruas muitos infelizes mortos de fome. E se desapa­
receu a vergonha da escravidão, depois de uma guerra
de extermínio, não foi isso resultado de melhores sen­
timentos nos estados do Norte, do que nos do Sul, se­
ria erro grosseiro. Foi a política a que determinou a
attitude tomada pelos estados do Norte. E esse horror
dos filhos que todos os dias medra no seio das classes
abastadas! E esses innumeraveis abortos practicados
insolentemente por proxenetas millionarios recostados
faustosamente em landaus puxados a seis cavallos!
O que ha de salvar a joven America da decadên­
cia absoluta é seu respeito pela liberdade religiosa.
Graças a esta tolerância de todas as religiões, o catho-
licismo arvorou altivo sua bandeira sobre essa verda­
deira terra de licença, e á sombra de suas gloriosas
prégas, tem vindo congregar-se todos os elementos de
uma regeneração próxima, d’esses bellos e grandes Es­
tados, cuja população multicolor tanto se parece com
a da cidade fundada pelos filhos de Khéa.
592 OS ESPLENDORES DA F É

A EGREJA E O ESTADO.— O DIREITO QUE A EGREJA


TEM DE POSSUIR — O PODER TEMPORAL DOS PAPAS

A Egreja e o Estado. Que bello e profícuo não é o


segundo psalmo de David, que eu nunca pude ler ou
ouvir cantar sem um grande temor: «Porque fremem
as nações, e urdem vãs conspirações? Porque se le­
vantaram os reis da terra, e se colligaram os príncipes
contra o Senhor e o seu Christo ? Despedacemos os la­
ços que a elles nos prendem, e atiremos para longe de
nós seu jugo! Aquelle que habita os ceos rirá de sua
revolta, o Senhor escarnecerá d’elles! O Christo falar-
lhes-ha em sua cólera, e seu furor os ha de confundir.
Eu fui posto rei por Deus meu Pai sobre Sião e sua
montanha sancta, para lhe intimar suas ordens. Elle
disse-me: Tu és meu filho, eu te gerei (em teu nasci­
mento humano, como te gerei no divino e eterno.) A
petição tua, dei-te as nações da terra em herança, e
tua possessão estender-se-ha até aos confins da terra.
Governal-as-has com uma vara de ferro, e despeda-
çal-as-has como o oleiro despedaça (quando lhe apraz)
o vaso (por elle moldado.) (Quer dizer, que tu serás
para ellas salvação ou ruina!) E agora, reis, compre-
hendei (vossos deveres)! Príncipes, instrui-vos! Servi ao
Senhor no temor, e que vossa alegria n’elle não ande
separada de um certo tremor. Abraçai sua doutrina,
com receio de que algum dia se não irrite, e de que
surprehendendo-vos fóra dos caminhos da justiça, não
vos faça perecer. Felizes aquelles que quando sua có­
lera se inflammar de súbito, tiverem posto n’elle sua
confiança!»
Que sentença tão clara e tão terrível! Não são só­
mente os indivíduos, mas as nações, os povos, os esta­
dos, os governos, que pertencem a Jesus Christo, que
devem obedecer bom ou mau grado a Jesus Christo. E
A EG REJA 393

como Jesus Christo transmittiu todos os seus direitos a


sua Egreja, todas as nações, governos, Estados, sobera­
nos devem pertencer á Egreja, obedecer á Egreja. E’ o
grande oráculo de Isaias e de David: «Elle dominará
sobre todas as nações! Todas as nações o hão de ser­
vir!» Não é sómente aos particulares, é também ás
cidades, ás nações, aos impérios, que se applicam estas
palavras do Salvador: Aquelle que não é por mim, é
contra mim! E o oráculo de S. Pedro: «Não ha salva­
ção senão em Jesus Christo. Nenhum outro nome foi
dado debaixo do ceo aos homens, pelo qual possam
ser salvos.»
Jesus Christo na personificação de Jerusalem diz
a todas as cidades: «Jerusalem, Jerusalem, quantas ve­
zes quiz eu congregar teus filhos, como a gallinha re­
une seus pintainhos debaixo das azas, e tu não qui-
zeste!... Pois eis que todas as tuas casas te ficarão de­
sertas, e serás calcada aos pés dos gentios!•..»
Jesus Christo disse a todas as nações, falando a
Corozain e a Bethsaida: «Maldição sobre ti, Corozain,
maldição sobre ti, Bethsaida, porque não tendes feito
penitencia, porque não tendes prestado ouvidos á ver­
dade, apezar dos milagres brilhantes que em vós foram
operados!»
As consequências tiradas dos sanctos Padres, de
toda a tradição, dos concilios, dos summos pontífices,
falando ex-cathedra a toda a Egreja, são muitas e ca­
pitães; aqui apenas daremos d’ellas um resumo, extra-
hido fielmente e até nos proprios termos, do tratado
dogmático do R. P. Liberatore, S. J . : a Egreja e o Es­
tado, Paris, Yictor Palmé, 1877.
A Egreja é uma sociedade perfeita e suprema, não
deve estar subordinada a nenhuma outra sociedade in­
ferior.
Toda a sociedade deve submetter-se á Egreja. Para
nada vem ao caso a differença entre as duas ordens de
■v o l iv 48
594 OS ESPLENDORES DA F É

sociedade, uma espiritual, a outra temporal. Em suas


relações mutuas, esta diversidade implica para o Estado
uma independencia relativa, mas não absoluta, nas cou-
sas que por si mesmas se referem exclusivamente á vida
presente. Mas nas cousas que respeitam directamente e
por si mesmas á religião, á justiça e aos costumes, o
Estado deve conformar-se com as prescripções da
Egreja. Enfim mesmo nas cousas que são da sua com­
petência, o dever do Estado é nada fazer que seja pre­
judicial á moralidade de seus súbditos e ao culto de
Deus. E a Egreja tem o direito de corrigir e de anul-
lar todas as disposições injustas e immoraes, que mesmo
na ordem temporal foram tomadas. Haveria confusão
da Egreja e do Estado, se a Egreja estivesse subordi­
nada ao Estado; mas nenhuma confusão resulta da su­
bordinação do Estado á Egreja: o corpo não se confunde
com a alma, embora lhe ande subordinado.
Separado da Egreja, o Estado não pode attingir o
proprio fim da sociedade civil.
A ordem natural deve ser subordinada á ordem
sobrenatural, a natureza á graça, a vida presente á vida
futura. A doutrina catholica não admitte nem a supre­
macia do Estado sobre a Egreja, nem a independencia
absoluta do Estado, nem mesmo a separação da Egreja
e do Estado, porque toda a sociedade instituida para o
bem do homem não pode abstrahir do que constitue o
bem supremo da humanidade. E ’ mister ser demente
para imaginar que tendo ambos sua origem em Deus,
sendo o poder espiritual o mais nobre, possa estar su­
jeito ao poder temporal. A humanidade é um corpo
unico, a Egreja é o corpo de Jesus Christo. Logo, muito
embora no seu grêmio existam diversos poderes, diver­
sas magistraturas, é forçoso que todas ellas estejam
subordinadas entre si, afim de que sejam d’algum modo
reconduzidas á unidade.
Pelas palavras dirigidas a Pedro e seus successo-
A EGREJA 595

res: «Apascenta minhas ovelhas,» os reis e os impera­


dores ficam como súbditos sujeitos a Pedro, visto serem
ovelhas do rebanho de Christo.
ü governo temporal para ser justo e bom, deve ter
uma regra espiritual, logo deve ser regulado pelo poder
espiritual. Os papas, de seu lado, encarregados de re-
prehender e de corrigir os reis e os imperantes, não só
como homens, mas também no exercicio de seu poder,
devem dar a Deus conta por elles.
Taes as relações do corpo e da alma no homem,
taes são também as relações dos dois poderes, tempo­
ral e espiritual, na Egreja. O poder espiritual não se in-
tromette nos negocios temporaes, com tanto que os ne­
gócios temporaes se não opponham ao fim, que o po­
der espiritual deve conseguir, etc. Se as medidas tem­
poraes forem necessárias para obter este fim, o poder
espiritual pode e deve reprimir o poder temporal, e
constrangel-o por todas as vias e maneiras necessárias.
(Bellarinino, de Romano Pontífice, Lib. vi, c. vi.)
Estas palavras de Jesus Christo: «Como meu Pae
me enviou, assim eu vos envio...! Foi-me dado todo o
poder no ceo e na terra! ide pois e ensinai todas as na­
ções!» assemelha o poder da Egreja ao poder de Deus,
a auctoridade dos pontífices romanos á de Jesus Christo;
logo estende-se a todos, aos indivíduos e ás nações, aos
Estados e aos soberanos.
Como homem, o soberano deve servir a Deus, vi­
vendo segundo a fé; como rei, deve servir a Deus pau­
tando suas leis — governo em conformidade com a lei,
sem jamais se subtrahir a sua subordinação para com
a Egreja.
Esta subordinação espiritual não é nem exclusão
nem absorpção dos poderes temporaes; pelo contrario
enobrece-os e dá-lhes força.
No governo dos povos resgatados, Deus uniu o Es-
tauo á Egreja; e uma tal união deve ser mantida. Sem
596 OS ESPLENDORES DA FÉ

a Egreja, o Estado moderno semelhar-se-hia a um oa-


daver.
Uma vez constituída a Egreja por Christo, dois po­
deres, o poder ecclesiastico e o poder civil coexistem;
e suas relações mutuas não podem ser senão a subordi­
nação do segundo ao primeiro.
Inventae systemas para destruir esta subordinação,
não podem dar outro resultado que não seja excitar a
guerra, e a guerra só pode acabar pelo triumpho do
império que deve durar eternamente. Se o colosso ten­
tar erguer-se de novo, lá irá a pedra cahida da monta­
nha reduzil-o a pó! A Egreja é o reino de Deus sobre
a terra, reino de que Jesus Christo‘ é o rei invisível e
seu vigário o rei visivel. Quando Christo declarou pe­
rante o presidente romano que era rei, não diz como
adverte S. Agostinho: «Meu reino não é aqui, mas sim
meu reino não é d’aqui! Meu reino não é n’este mundo,
mas sim meu reino não é d’este mundo!» Porque real­
mente meu reino é n’este mundo, e ha de durar até ao
fim dos séculos.»
O território d’este reino comprehende o universo.
Em virtude do dominio universal e absoluto que lhe
pertence, Jesus Christo conferiu á sua Egreja auctori-
dade sobre todos os homens, vivam onde viverem. Em
vista do exposto, não será demencia qualificar de es­
trangeira a auctoridade do papa? Como será a cabeça
estranha aos membros?
A falarmos com rigor, não é a Egreja que está no
Estado, é pelo contrario o Estado que está na Egreja.
De facto não é o todo que está nas partes, mas sim as
partes que estão no todo. Ora a Egreja é um todo, uma
sociedade universal, destinada a receber todo o genero
humano em seu seio. A Egreja é catholica, universal; o
Estado ao contrario d’isso é sempre limitado, quanto ao
território, ás pessoas e ao poder.
Os juizos sobre causas espirituaes, i é, aquellas que
A EGREJA 597

dizem respeito á fé, á administração dos sacramentos,


aos ritos, á moral, á direcção dos fieis na practica da
virtude, de tudo quanto se refere ao culto de Deus e á
salvação das almas, não cahem debaixo da alçada do
poder temporal, mas pertencem exclusivamente á au-
ctoridade da Egreja ou espiritual: verdade catholica, e
porventura, diz Suarez, dogma de fé.
Por conseguinte: l.° as apellações como de abuso, em
virtude das quaes o magistrado leigo se arroga o poder
de citar perante o seu tribunal e de julgar os ministros
sagrados por actos de jurisdicção ecclesiastica e practi-
cados no exercício de seu ministério, são uma usurpa-
ção inconsiderada.
2.° Outrotanto diremos do Beneplácito regio ou dos
Exequatur, exigidos para a publicação e execução das
bullas, breves ou sentenças emanadas da Santa Sé.
Todo o Estado catholico, ou todo e qualquer go­
verno que representa uma nação catholica, está obri­
gado por esse facto a defender e a proteger a Egreja.
O grande erro do espirito moderno é o Naturalis­
mo, ou a reivindicação do supposto direito innato ou
adquirido de viver na esphera da ordem de pura natu­
reza, e de romper com a ordem sobrenatural, não se
importando de modo algum com o vinculo necessário,
posto por Deus, entre a ordem natural e a ordem so­
brenatural. A natureza humana separada e isolada da
Redempção, é apenas aquillo que na linguagem das
sanctas Escripturas se apellida o mundo, do qual não
é Jesus Christo, pelo qual Jesus Christo não ora, ao
qual brada: Maldição! do qual o diabo é pae, o prín­
cipe e a cabeça; cuja sabedoria é inimiga de Deus; cu­
jos caminhos vão dar aos infernos.
Pio ix, denunciou e condemnou aquelles que, apli­
cando á sociedade civil o principio impio e absurdo do
naturalismo, não trepidam professar que a melhor con­
dição da sociedade civil e o progresso social requerem
598 OS ESPLENDOKES DA F É

absolutamente que as sociedades humanas sejam cons­


tituídas e governadas sem pesadellos religiosos, como
se a religião não existisse, ou ao menos sem estabelecer
differença alguma entre a verdadeira e a falsa religião.
(Encyclica de 8 de dezembro de 1864.)
Esta separação, diz o sancto pontífice, daria em re­
sultado : obscurecer e obliterar a concepção e o senti­
mento do dever; substituir ao direito a força; condu­
zir á fatal theoria da Opinião publica e dos factos con-
summados; determinar a affirmação de que a sociedade
domestica ou a familia tira sua razão de ser do direito
civil sómente: que só da lei civil dependem todos os
direitos dos pais sobre os filhos. D’onde se infere que a
separação de Deus e da Egreja conduz fatalmente á
negação do fim individual e á preversão do fim social.
Direito de existir e de possuir. — A Egreja, estabele­
cida por Jesus Christo debaixo da forma de uma socie­
dade publica e de um reino visível, tem o direito de
existir e de se desenvolver no mundo. Este direito, este
dever de existir, de se conservar e dilatar, implica o
direito ás cousas terrestres, necessárias para a man-
tença da vida, e por conseguinte o direito á posse de
recursos suficientes para conservação de sua existên­
cia em conformidade com seu fim...
O sacerdócio de todos os tempos, de todos os lo-
gares, tem exercido o direito de propriedade, e todos
os povos tem considerado este direito como sagrado.
A Egreja, ainda mesmo nos tempos das perseguições,
possuia já importantes propriedades.
O concilio de Trento fulminou anathema contra
todos aquelles, fossem imperadores ou reis, que por
avareza, força ou ameaças, artifícios, pretextos ou
quaesquer outros disfarces, violassem ou usurpassem a
propriedade ecclesiastica, debaixo de qualquer forma,
bens, censos e direitos, emolumentos e rendas. (Sess. xxn,
cap. xi.)
A ÈG K EJA 599

A Egreja, sociedade suprema de instituição divina,


possue de direito divino e por conseguinte independen­
temente de todo o direito humano. Mesmo na quali­
dade de mera associação humana, tem o direito natu­
ral de possuir, de que não pode ser despojada, e cujo
exercício não pode sem injustiça ser perturbado. O go­
verno, usurpando os bens ecclesiasticos, ataca o direito
de propriedade dos mesmos cidadãos.
Festividades e concordatas. — A obrigação de absti­
nência de obras servis nos dias de festa é essencial no
seio das sociedades christãs, e com razão é sanccionada
pelo poder civil: não contradiz, pelo contrario affirina
os princípios de uma sã economia política; o odio que
lhe tem o naturalismo político é no fundo impio e
atheu.
A escola sem Deus e sem religião é para a juven­
tude um mal grande; dá incremento e desenvolve as
faculdades e os instinctos, sem indicar e regrar-lhes o
emprego, e entrega-os á usurpação facil das tendências
viciosas da natureza corrompida. O ensino deve ser ne­
cessariamente fornecido na dependencia e inspecção
da Egreja.
As concordatas são uma legislação ecclesiastica
especial, outhorgada a um reino pelo mesmo pontífice,
a instâncias do chefe d’esse mesmo reino, e confirmada
pelo compromisso tomado por este de a manter sem­
pre. As concordatas, visto estipularem interesses sagra­
dos ou espirituaes, não podem ser consideradas como
contractos synallagmaticos. Alguns papas deram-lhes
feição de contracto bilateral, mas esta forma não é es­
sencial, é meramente accidental, de sorte que as con­
cordatas nada perdem de sua natureza de simples con­
cessões ou privilégios com obrigação de fidelidade con-
trahida pelo papa.
E ’ falso que no caso do papa, quando o bem da
Egreja o exige imperiosamente, retirar no todo ou em
600 OS ESPLENDORES DA F É

parte as prerogativas concedidas a um príncipe ou a


um governo, este tenha o mesmo poder pelo que res­
peita ás obrigações por elle contrahidas em virtude
d’essa mesma concordata. A razão de semelhança dis­
paridade está em que o summo pontífice obra como
legislador supremo, em quanto que o príncipe ou o
governo permanece sempre súbdito. O papa procede
como chefe do povo, e o príncipe como seu represen­
tante.
hnmunidade do clero.— O clero é isento por direito
divino da jurisdicção dos príncipes seculares, e só do
soberano pontífice depende; tal é a doutrina formal da
Egreja e dos concilios: «A immunidade da Egreja e das
pessoas ecclesiasticas, diz o concilio de Trento, foi es­
tabelecida por disposição divina e pelas leis canôni­
cas.» O concilio de Latrão dissera que a prescrevia o
direito divino e humano. Esta immunidade não obsta
aliás a que não estejam sujeitos á obrigação de obser­
var as leis civis indispensáveis á manutenção da ordem
e da justiça na sociedade. Eis porque a immunidade
ecclesiastica é objecto especial das concordatas, vindo
a um accordo os dois poderes supremos na medida, em
que deve ser respeitada.
De todas as immunidades a mais razoavel, a mais
legitima e essencial, é a que isenta os ordinandos do
serviço militar.
Abolir esta immunidade é da parte do Estado uma
injustiça flagrante, um sacrilégio, uma profissão de
atheismo, um attentado contra o povo e sobretudo
contra a população pobre, cujas esperanças estão todas
nas mãos do clero.
Immunidade do Summo Pontífice.—A. immunidade do
summo pontífice é mais essencial ainda que a do clero,
que ella suppõe necessariamente. Pertence-lhe essen­
cial e absolutamente, e deve consistir n’uma perfeita
independencia. O papa foi posto no fastigio supremo
A EGREJA 601

da soberania: «Tudo o que ligares ou desligares sobre


a terra será ligado ou desligado no ceo.» O juiz supre­
mo e universal, o soberano dos soberanos não pode es­
tar sujeito a nenhum tribunal, ou auctoridade; quer
dizer que não pode estar sujeito a nenhum outro po­
der humano. «A primeira Sé, dizia o Concilio Romano
no tempo do papa Sylvestre, não será julgada nem por
Cezar, nem por toda a clerezia, nem pelo rei, nem pelo
povo, mas só por Deus.»
A forma social da immunidade ou da independencia
papal é a soberania temporal, não honorífica, porem
real. A destruição da soberania temporal arrasta con­
sigo a destruição da immunidade e reciprocamente.
De forma que a espoliação do poder temporal não
pode perpetuar-se. Não ha forças humanas que possam
luctar contra a acção e tendencia da natureza de uma
instituição divina e indefectível. Não é possivel que
uma tão alta dignidade, que um poder tão extenso es­
teja subordinado a um poder qualquer, que lhe regule
a natureza, a uma força extranha que lhe possa emba­
raçar o passo. O promulgador soberano e universal, o
pacifico ordenador que abraça todos os povos no amor
de p ai; o director espiritual dos indivíduos, povos e
nações; o centro e o principio da unidade; o primeiro
motor d’este grande corpo que é a Egreja, deve ser li­
vre como o ar.
E no logar onde residir não pode lá reinar nenhum
soberano temporal.
E ’ absolutamente indispensável que haja em Roma,
no centro da Europa um logar sagrado em face dos
tres continentes do antigo mundo, uma sede augusta e
soberana, d'onde fale ora aos povos, ora aos príncipes,
uma voz omnipotente, a voz da justiça e da verdade,
imparcial, e sem preferencias, forra de toda a influen­
cia arbitraria, que não possa ser corrompida nem pelo
terror, nem pelas blandicias.
602 OS ESPLENDORES DA EÉ

Poder temporal dos papas. — E’ incontestável que a


Egreja tem um certo poder sobre o temporal dos im­
peradores e dos reis, e que o exercício d’este poder
pertence ao pontífice romano. Este poder pode ser d1'
recto ou indirecto.
O poder directo supporia reunidas na mão do papa
as duas espadas, os dois poderes espiritual e temporab
sob a condição de que o papa não exercerá o poder
temporal em pessoa, mas o delegará n’um leigo.
O poder indirecto suppõe a coexistência, parallela
e independente dos dois poderes, cuja união se effectua
em Deus.
Ainda assim, n’esta ultima bypothese a indepen­
dência do poder temporal só existe sob condição de
que não ha de estorvar o fim que o poder espiritual
tem a missão de proseguir, porque n’isto fica sujeito
ás penas do poder espiritual. Pode-se acreditar que
Jesus Christo submetteu o poder temporal ao poder
espiritual sómente o preciso para proseguir o seu fim
sobrenatural; ora o poder indirecto basta para conse­
guir este fim.
O poder directo que se manifestou em plena edade
media, ponto culminante da civilisação christã, entre
S. Dregorio vji e S. Pio v, conta illustres partidários,
taes como S. Bernardo, S. Thomaz, etc. Aquelles dois
grandes pontífices que o exercitaram eram dois gran­
des sanctos, e seguiam n’este exercício a opinião pu­
blica de todos os Estados christãos.
A minha consciência impunha-me o dever de enun­
ciar os princípios fundamentaes das relações entre a
Egreja e o Estado; o leitor que desejar maiores desen­
volvimentos encontral-os-ha na bella obra do P.e Libe-
ratore. Taes douctrinas talvez se affigurem antipathicas
a alguns de meus leitores, mas são a expressão da ver­
dade, e não tinha duvida em dar minha vida por ellas.
O direito está ali. Quanto á practiea, ao facto, exporei
A EGKEJA 603

um resumo d’esta grave matéria, já por mim dado, em


1845, em publicação intitulada: Princípios fundamentaes,
pelos quaes devem resolver-se no tempo actnal as duas gran -
des questões das relações entre a Egreja e o Estado, e da li­
berdade de ensino; estas paginas já tomaram logar no ca­
pitulo da Egreja revolucionaria, mas são necessárias aqui.
«Qual é a ordem natural das idéias em facto de go­
verno? O ente que foi o objecto immediato da vontade
divina, o ente que Deus creou para sua gloria, que des­
tina á felicidade, é o indivíduo, ou o homem individual.
Para o indivíduo constituiu Deus o pai e a mãe ou a
família, que é de direito divino. As famílias como os in­
divíduos reclamam por essencia a sociedade. A sociedade
estabelece entre os indivíduos e a familia interesses par­
ticulares e communs, que devem ser regulados e garanti­
dos. A necessidade d’esta regulamentação, d’esta garan­
tia, implica a existência de um poder superior ou go­
verno, que presida á totalidade das famílias. O governo
não é essencialmente de direito divino, como é a fami­
lia, não é por forma alguma indispensável que, á seme­
lhança dos juizes e dos primeiros reis de Israel, seja
instituído immediatamente por vontade de Deus, pode
ser estabelecido pela vontade commum das famílias e
dos indivíduos que rege. Mas nenhum espirito razoavel
deixará de confessar que a auctoridade exercida por
um poder qualquer é forçosamente uma emanação, uma
delegação da auctoridade divina; é que todo o poder
deve governar em nome de Deus que creou os interes­
ses particulares e communs, de Deus origem de todo o
ser e auctoridade, de Deus que sancciona, garante e
vinga todos os direitos.
«Deus, o Indivíduo, a Familia, o Estado, eis por­
tanto a ordem immutavel que a razão deve reconhecer
e confessar, que a vontade deve acceitar e respeitar.
Os governos hão de passar, a familia ha de passar, Deus
e o indivíduo hão durar eternamente. O indivíduo deve
604 OS ESPLENDORES DA EÉ

obedecer a Deus que é o seu fim; a familia deve auxi-


lial-o n’esta tendencia divina que é o direito de Deus e
o dever do individuo; o governo ou o Estado deve tor­
nar possivel e fácil á familia esta sagrada tutella, que
é o direito do individuo e o dever da familia. Entre o
Estado e o individuo ha pois a familia, e é absurdo por
isso aífirmar que o individuo pertence ao Estado, como
seria absurdo dizer que o fim pertence ao meio.
«Os direitos do Estado fluem natural e exclusiva­
mente dos interesses privados, ou communs, das famí­
lias e dos indivíduos, ser-lhes-hão correlativos. Não tem
outro poder senão aquelle que é imperioso e stricta-
mente necessário para tornar efficazes a regulamenta­
ção e a garantia d’estes interesses: ultrapassa seus di­
reitos, usurpa desde que manda ou prohibe fóra da es-
phera dos interesses privados ou communs; commette
uma injustiça mais ou menos flagrante, faz se tyranno,
quando os desconhece ou calca aos pés.
«Governo perfeito será evidentemente aquelle que
considerando o homem em sua synthese, tal como a na­
tureza, a razão e a fé o definem e apresentam, o homem
material e espiritual, o homem do tempo e da eterni­
dade, da natureza e da graça, o homem n’uma palavra
de interesses materiaes, moraes, religiosos e sobrenatu-
raes, quere por todos os meios ao seu alcance, regular e
garantir egualmente estes interesses diversos e múlti­
plos que são para elle egualmente sagr;1dos. Tal foi por
exemplo nos séculos xvi e xvn, o governo que tornou
a Hespanha tão sancta, tão forte e tão grande.
«Em um governo perfeito, a religião conhecida e
recebida como a unica verdadeira, a unica divina, por
todas as famílias, é lei do Estado, não no sentido de
que a lei possa entrar no dominio intimo da consciên­
cia, prescrever actos interiores, punir infracções que
não se hajam exteriorisado; o sanctuario da consciên­
cia é só governamentalmente accessivel a Deus; mas
A EGREJA 605

no sentido de que toda a desobediencia á religião ma­


nifestada por actos exteriores se torna punivel; que a
lei deve castigar um attentado exterior contra a fé de
um indivíduo. como pune um attentado contra sua honra
ou sua bolsa. N’um tal governo um poder ou tribunal
intermediário entre o Estado e o individuo, com a mis­
são de conhecer por meios honestos e legítimos das in-
fracções exteriores á lei religiosa, de as julgar e punir,
é uma instituição tão natural como os tribunaes desti­
nados a perseguir os delictos contra os indivíduos, suas
pessoas, reputação e fortuna. N’esta ordem de cousas
alem d’isso, o individuo que denuncia aquelle que teve
o atrevimento de armar laços a sua íé, não está menos
no direito de o fazer, do que se denunciasse um atten­
tado commettido contra sua pessoa e bens.
«Não será evidente por si mesmo, não provará a
historia superabundantemente que o governo perfeito,
tal como acabamos de o definir, é altamente favoravel
á fé; que tende efficazmente a conserval-a, a dar-lhe
incremento, que é para ella como um impulso univer­
sal e irresistível? Mas ah! o reino do bem, como o de
Deus, não é d’este mundo, e a corrupção do optimo
torna-se fatidicamente a peior das corrupções, corruptio
optimi péssima.
Quando n’um paiz a religião cessou de ser unica,
quando a fé já não é geral, quando a preponderância
dos interesses sobrenaturaes e eternos é posta em du­
vida, os governos não querem ou não podem considerar
senão o homem do tempo, de interesses materiaes e so-
ciaes, e de modo algum o homem da eternidade. O Es­
tado apenas vê no homem seu presente, sua fortuna,
sua honra, e não quere por forma alguma occupar-se
de sua fé e de seu futuro immortal. Então deslisa-se
mais ou menos abertamente no regimen de separação
da Egreja e do Estado, da egualdade de todos os cul­
tos perante a lei, etc., etc. E’ impossível negal-o, ainda
606 OS ESPLENDORES DA FÉ

que factos innurneros, mais brilhantes que a luz do sol,


o não provassem de maneira contundente e irrefutável,
uma tal secularisação mais ou menos absoluta da legis­
lação é bem menos favoravel ao exercício da fé.
«Pelo facto do governo, do poder supremo se
constituir equivalentemente atheu, guarda entre to­
dos os cultos uma neutralidade official, e não se oc-
cupa do homem religioso, sendo para elle como se não
existisse, etc., a fé e os interesses sobrenaturaes baixam
ao infimo plano, e cedem o passo aos interesses mate-
riaes e sociaes.
A negação, ou se assim o querem, a indifferença do
Estado tende invencivelmente a instillar a negação e a
indifferença das famílias e dos indivíduos.
A fé apouca-se e extingue-se em proporção e com
uma rapidez medonha; mas ao mesmo tempo a aucto-
ridade exercida pelo Estado perde em poder e presti­
gio. Não se protege no mesmo grau o caracter da au-
ctoridade divina; deixa de ser, permitta-se-me a ex­
pressão, um dogma visivel e palpavel para ser um fa­
cto de força material; os vínculos que a prendem ás
famílias e aos indivíduos aífrouxam; a anarchia ganha
terreno dia a dia e a ordem social periclita.
No entanto, como por uma parte este governo pu­
ramente humano não é essencialmente mau, e por ou­
tra é talvez o unico governo d’or’avante exequível, en­
tendemos que é indispensável lembrar em que condi­
ções poderá manter a ordem, e cumprir sua missão pro­
videncial, n’uma palavra declarar os princípios que de­
vem presidir a seu exercício regular.
«I. Desde que uma acção, seja qual for, não é de
maneira alguma contraria aos interesses privados e
communs, constitue direito certo e inviolável dos indi­
víduos e das famílias. O Estado não pode sem crime
estorvar o exercício d’este direito; pode sómente e
deve vigial-o no intuito de que nunca venha a ser con-
A EGREJA 607

trario aos interesses de todos e de cada um ; qualquer


outro modo ou escopo d’aquella fiscalisação seria ille-
gal. Se um terceiro pretender oppor-se ao exercicio
d’este direito legitimo, o Estado deve punil-o.
«II. Pelo facto de o Estado abdicar relativamente
de certos interesses que não quiz ou não deve regular,
os direitos relativos a estes interesses voltam a encor-
porar-se á familia e ao indivíduo, e portanto é dever
rigoroso do governo garantir plenamente á familia e
ao indivíduo o livre exercicio d’estes direitos.
«III. Quando um governo repudiou o que respeita
aos interesses sobrenaturaes; que por conseguinte reco­
nheceu a liberdade de consciência, a egualdade de to­
dos os cultos perante a lei prevarica se consente que
os homens investidos de seu poder, attaquem um culto
qualquer. Seu crime será maior, se o culto attacado for
a religião da maioria das famílias que governa.
«IV. A intervenção do Estado na Egreja deve fi­
car puramente ao de fóra; haverá usurpação ou violên­
cia e por conseguinte perigo toda a vez que em suas
relações com a Egreja e os diversos cultos, o governo
sahir da esphera dos interesses materiaes e civis, seu
exclusivo dominio.
Na ordem de cousas lógica e consequente oomsigo
mesma, que acabamos de definir, as diversas commu-
nhões religiosas conservariam plenamente sua indepen­
dência ; o proprio Estado exercería mais livremente sua
auctoridade soberana; manteria sobre todos os cultos
essa fiscalisação paternal, cujo effeito unico deve ser
salvaguardar os interesses materiaes e moraes de que
é arbitro reconhecido. A Egreja como os consistorios,
como as synagogas, não mais seria um Estado no Es­
tado ; o bispo, o presidente do consistorio, o grande ra­
bino exerceríam poder n’uma esphera, em que o go­
verno não pode nem deve penetrar. Fóra d’esta esphera
serão simples indivíduos ou súbditos, para quem de
608 OS ESPLENDORES DA PÉ

modo algum será necessário crear a jurisdicção exce­


pcional do Conselho de Estado, ficando sujeitos á dos
simples tribunaes, quando por qualquer forma attentas-
setn na ordem material ou moral, contra os direitos do
governo ou de terceiras pessoas.
«Se uma tal ordem de cousas fosse possível em
França; se o governo depois de haver restituido ao
clero catholico uma parte sufficiente dos bens, de que
a Revolução violenta e injustamente o espoliou deixan­
do-lhe a liberdade de adquirir e possuir; se velhas e
mesquinhas tradições lhe não impuzessem prevenções
injustas; se o respeito dos direitos de todos e de cada
um pudese entrar em nossos costumes, a fé talvez viesse
a ganhar com uma tal liberdade, visto como ah! tantas
vezes é compromettida e vexada sob o regimen incon­
sequente e perseguidor da interferencia do Estado no
governo da Egreja.
«Por effeito do destino que sua origem e seu fim
sobrenaturaes lhe assignam n’este mundo, destino que
seu divino Fundador como que auctorisou n’esta dolen­
te prophecia: Sereis até ao fim dos séculos objecto de odio
por minha causa, a Egreja não tem menos a receiar do
favor do que da repulsa dos poderes estabelecidos.
Pouco faltou para que em 1830 não expiasse cruel­
mente as sympathias, aliás bem timidas do governo da
Restauração! E as desconfianças do governo de julho
valeram-lhe em 1848 uma completa ovação, quando pa­
recia ter só a esperar perseguições violentas!»
Uma sociedade franca e largamente liberal, tal
como a definimos, seria porventura um terreno neutral
que a Egreja cultivaria com exito, salvando as almas e
consolando todas as dores.
E’ o que se está dando na America, onde a liber­
dade, menos seductora por certo vista de perto do que
de longe se estende á religião. «Em 1875 escrevia ha
pouco o correspondente do Jornal o « Universo » havia
A EGREJA 609

duzentos catholicos em New-York, hoje somos cem m il!


"Vede do norte ao sul este cinto, com que Deus adorna o
Atlântico, e que do Meno ao Texas tantas joias di­
gnas da admiração do ceo contem! Que divinos raios
partem d’estes solios episcopaes, levantados pelos suc-
cessores de S. P edro!... Yêde mais alem o pharol da
fé diffundir seus fogos atravez de planícies infinitas,
Albani, Rochester, Buffalo, Cincinnati, S. Luiz! E ain­
da para lá, mais longe ainda, para alem dos grandes
lagos, n’esses prados sem fim no meio das montanhas
Rochosas, até n’esses desertos sem nome, pisados so­
mente pela planta das feras, a Egreja estabeleceu, e
não tardará, é convicção minha, que converta as po­
bres seitas, cujos mais distinctos membros, vem todos
os dias ter comnosco para se desalterarem nas fontes
da vida, de balde procuradas por elles n’outra parte.»

VOL IV 49
ADEUS A MEUS ESPLENDORES

hle-vos meus queridos «Esplendores», ide-vos!


Possam: 0 pensamento de fé que vos inspirou,
0 ardor com que vos emprehendi,
0 trabalho excessivo, a que me condernnastes,
As angustias que me causou a temeridade de vossa edi­
ção,
As dores de vosso dolorosissimo parto,
vis cruéis contràdicções que me preparais, etc.,
Merecer-me que sejais a lei immacidada do Senhor, que
converte as almas, o testimunho fiel de Deus, que dá a sabe­
doria aos pequenos!
Irei depor-vos sobre o altar da capella provisória de
Montmartre, prelúdio do Monumento de salvação, que a
França arrependida eleva ao Sagrado Coração de Jesus,
cm quem puz todas as minhas esperanças.
Irei offerecer-vos a Nossa Senhora de Lourdes, á Vir­
gem Immaculada, que ao escrever-vos todos os dias invoquei.
Irei de joelhos por-vos sobso patrocínio do glorioso
successor de Pio xx, que se dignou honrar-me com a
sua nffeicçào, que previamento vos abençoou.
Depois direi na plenitude de meu reconhecimento
e de minha alegria:
ADEUS A MEUS ESPLENDOIÍES 611

Agora, Senhor, deixai morrer c vosso servo em


paz!
Se porem ainda for util a vosso povo, não me re­
cuso ao trabalho; de novo voltarei a vella, exclamando
com um enthusiasmo cada vez mais accentuado e gene­
roso :
E ’ preciso que Elle cresça, e quanto a mim que di­
minua.

F rancisco M aria J osé M oigno .

Dia do Nalal de 1878.

f
APPENDICES AO TOMO IV

APPENDICE A

Do Poder temporal dos Papas

Allocução dirigida a sua Sandidaãe Pio I X pelos bis­


pos reunidos em Roma em 1862, em numero de cerca de
tresentos, por occasião de serem canonizados os martyres
ão Japão.
Vemos-vos, Sanctissimo Padre, pelo crime d’uns
usurpadores que só professam a liberdade para melhor
encobrir sua protervia, despojado d’essas províncias,
com as quaes justamente attendieis á dignidade da San-
cta Sé e á administração de toda a Egreja. Vossa San-
ctidade repelliu com inexprimível coragem essas violên­
cias indignas, por cuja attitude em nome de todos os
catholicos vos damos os mais vivos agradecimentos.
Porque nós reconhecemos que a soberania tempo­
ral da Sancta Sé é uma necessidade, e que foi manifes­
tamente uma disposição da divina Providencia, não he­
sitando em declarar que no estado presente das cousas
humanas, essa soberania temporal é absolutamente re­
querida pelo bom e livre governo da Egreja e das al-
614 OS ESPLENDORES DA FÉ

mas. E ’ mister sem a menor sombra de duvida que o


Pontífice Romano chefe de toda a Egreja, não seja nem
súbdito, nem mesmo hospede de nenhum príncipe, mas
senhor em sua própria casa e em seu proprio reino,
não reconheça outro direito senão o seu, e possa em
nobre, pacifica e calma liberdade, proteger a fé catholi-
ca, defender, reinar e governar toda a christã republica.
Quem haverá ahi que se atreva a negar que, no
conflicto das cousas, das opiniões e das instituições hu­
manas, é mister que haja no centro da Europa como
um logar sagrado, collocado entre os tres continentes
do antigo mundo, uma Sé augusta d’onde se levante al­
ternativamente para povos e reis uma voz grande e po­
derosa. a voz da justiça e da verdade imparcial e sem
preferencia, livre de todas as arbitrarias influencias,
que não possa nem ser abafada pelo temor, nem sedu­
zida pelos artifícios ?
Como de feito, mesmo n’esta occasião, teriam po­
didos os prelados da Egreja, vindos de todos os pontos
do universo, chegar aqui em segurança para conferen­
ciar com Vossa Sanctidade acerca dos mais graves inte­
resses, se, congregados de tantos paizes e nações diver­
sas, encontrassem aqui um príncipe, dominando sobre es­
tas plagas, e suspeitoso do legitimo soberano ou a este
suspeito e hostil? Ha certamente deveres do christão e
deveres do cidadão, deveres que de modo algum são
contrários; mas sim differentes. E como poderiam os
bispos cumpril-os se em Roma não houvesse uma sobe­
rania pontifícia], isenta de toda a jurisdiçção estranha
e centro da concordia universal, não tendo nenhuma
ambição humana, nada emprehendendo por desejo de
dominio universal ?
Eis-nos pois aqui livres deante do Pontifice-Rei li­
vre, provendo egualmente ás cousas da Egreja como
pastores e ao bem da patria como cidadãos, não fal­
tando a nossos deveres, de pastores nem de cidadãos.
APPENDICE A 615

E sendo isto assim, quem ousaria atacar esta sobe­


rania tão antiga, fundada sobre uma tal auctoridade,
sobre uma tal ordem de cousas? Que outro poder se
lhe poderá comparar, mesmo que só se attenda ao di­
reito humano sobre o qual repousam á segurança dos
príncipes e a liberdade dos povos? Que poder haverá
tão venerável e sancto ? Que inonarchia ou que repu-
publica pode nos séculos passados ou modernos gloriar-
se de direitos tão augustos, tão antigos e tão inviolá­
veis ? Se direitos semelhantes viessem a ser menospre­
zados e calcados aos pés, que príncipe estaria seguro
em seu proprio reino, que republica em seu território?
Assim é pois, Sanctissimo Padre, que vósluctais e com­
bateis pela religião, e não só por ella, mas também
pela justiça e pelo direito que são entre as nações
christãs os fundamentos das cousas humanas.
APPENDICE B

0 Dinheiro tle S. Pedro

O sr. arcebispo de Aix depois de ter consultado a


Sancta Sé sobre um projecto de organisação do Di­
nheiro de S. Pedro, recebeu do cardeal Secretario de
Estado uma resposta calma e grandiloqua, onde a ques­
tão é considerada debaixo de todos os seus aspectos.
Recusando por delicadeza intervir pessoalmente na
organisação proposta, deixando isso ao cuidado dos bis­
pos e dos fieis, o Sancto Padre acceita seus soccorros
absolutamente necessários.
A Egreja está n’elle, e ninguém pode duvidar d’isso.
A politica moderna tem destruido agora o edifício sa­
grado, tanto quanto o pode destruir. E’ um facto. O
pão de cada dia é incerto. Pode faltar a qualquer hora.
O que resta de pé não é mais que um muro prestes a
esbarrondar-se, a queda, a ruina total não pode tardar
muito. Os escombros serão taes que poderão arrasar o
mundo. Será a demão final da obra da Revolução. Et
dixit qui sedebat in throno: Ecce nova facio omnia.
O sr. arcebispo de Aix, compenetrando-se do al­
cance da carta do eminente secretario de Estado, re­
produziu-a litteralmente em pastoral dirigida ao seu re-
APPENDICE 13 617

banho. E ’ de lá que a vamos extrahir hoje, festa da De­


dicação.
Luiz Y euillot.

«lL L .m0 e R e v e r e n d is s im o S e n h o r ,

«Sua Santidade recebeu em suas augustas mãos o


respeitoso escripto assignado por Yossa Senhoria Illus-
trissima e Reverendissima, e de quatorze seus collegas,
escripto, cujo fim é representar a necessidade de dar
uma nova impulsão á obra do Dinheiro de S. Pedro, e
de fazer assim face ás crescentes necessidades da San-
cta Sé, fructos da perseguição, com que a Sancta Egreja
todos os dias é mais vexada, da parte d’aquelles que
governam esta malfadada Península. O desejo esponta.
neo, que por este acto prelados francezes tão distinctos
mostram de vir em auxilio da Sé apostólica, emocionou
profundamente o coração de Sua Santidade. Este de­
sejo prova mais uma vez que sempre que as privações
d’esta sancta Sé se tem agravado, os bispos de vossa
nobre e generosa nação logo sahem a campo para de­
fender e proteger os direitos do chefe da Egreja, para
o consolar em suas aflic-ções, para o soccorrer nas an­
gustias financeiras, em que o poz a Revolução, a ponto
de lhe tornar sempre difficil e por vezes practicamente
impossível o governo da Egreja universal.
«Não é possível duvidar de que a dedicação filial
d’este venerando episcopado para com o Sancto Padre,
e o vivo interesse que toma pela sorte de toda a catho-
licidade, não sejam as verdadeiras e principaes causas
das bênçãos e graças celestes, com o que o Senhor vi­
sivelmente o cumula. De feito não só o clero e o povo
francez o respeitam mais do que em qualquer outra
epocha da historia, mas os mesmos adversários de nossa
sancta religião, com tanto que não estejam dominados
de vis paixões, se inclinam deante d’elle em signal de
618 OS ESPLENDORES DA EE

respeito e de veneração, e reconhecem que é das mais


puras e brilhantes glorias do nosso século.
«Quanto á pergunta que fonna o objecto da men­
cionada representação, a saber: se convem em presença
do incremento das necessidades da Sancta Sé dar ás
collectas do Dinheiro de S. Pedro uma organisação es­
tável, geral, legal, sanccionada pelo Soberano Pontífice
com sua auctoridade indiscutível, afim de que a em-
preza seja coroada de maior exito, o Sancto Padre, de­
pois de tudo maduramente pesado, não crê em sua alta
sabedoria, dever pronunciar-se sobre a proposta que
lhe fazeis.
«Até hoje, isto é fóra de duvida, toda a vez que
quer em França, quer em outro qualquer paiz da ca-
tholicidade, o episcopado tem dirigido um apello á de­
dicação filial dos fieis para com o Pai commum, tem
sempre respondido com uma espontaneidade e uma ge­
nerosidade, de que só são capazes os povos que avaliam
profundamente a ventura incomparável e o beneficio
inapreciavel de serem Estados resgatados pelo sangue
de Jesus Christo, e de fazerem parte da verdadeira
Egreja fundada por nosso divino Salvador.
«Este facto honra grandemente a fidelidade e a de­
dicação dos povos catholicos para com a cadeira su­
prema da verdade, mas parece também aconselhar o
Summo Pontífice a que deixe como no passado a sua
sua espontaneidade o generoso concurso das piedosas
offerendas, que depositam a seus pés com tanto zelo e
constância.
«Ha também outro facto incontestável: toda a vez
que os inimigos da Egreja tem por sua acrimonia obri­
gado o Soberano Pontífice a fazer novas despezas, e
buscado tornar-lhe ainda mais penoso o exercício do
seu sancto ministério, as populações catholicas tem
logo correspondido maravilhosamente aos convites de
seus ordinários, e recebido da melhor vontade os meios
APPEXDICE 15 619

os mais efficazes, que lhes eram propostos, de realisar


qualquer grande e nobre iniciativa.
«E’ por isso que o Sancto Padre prefere deixar in­
teiramente ao zelo e prudência do episcopado catholico
o cuidado de organisar na forma que julgar mais op-
portuna as subscripções destinadas a animar as offer-
tas, tornando-as mais fáceis quer aos collectores, quer
ás pessoas que para ellas contribuirem, tomando alem
d’isso em consideração as condições locaes das diversas
partes do mundo catholico.
«Por outra parte, nada repugnaria tanto ao cora­
ção do Pai commum dos fieis, como seria o parecer
que lhes impunha não só taes offertas, como também
as proporções e o modo de as effectuar.
«A confiança immensa de que gozam os bispos dos
nossos dias, justamente honrados por todos os povos da
catholicidade torna mais que certo o pleno successo da
iniciativa em questão, seja qual for o meio que os bis­
pos adoptem. Se os povos não esquecerem que expo-
liaram o Soberano Pontífice do dominio temporal, fonte
dos meios necessários para sua honesta sustentação e
para o governo da Egreja universal, ser-lhes-ha facil
comprehender que a Sancta Sé não poderá viver e
cumprir sua benefica missão em todo o mundo sem o
generoso concurso dos fieis, emquanto não tiverem a
consolação de o ver outra vez de posse de seus legíti­
mos domínios.
«Alem d’isso, quem o ignora? para o governo da
Egreja, para tranquillidade das consciências, para o
andamento regular do governo das dioceses, as congre­
gações romanas, compostas de cardeaes, de prelados,
de consultores e funccionarios, são indispensáveis.
«O numero d’estes últimos é bem restricto, se o
confrontarmos com o dos funccionarios de qualquer go­
verno secular. Todavia o zelo verdadeiramente sacer­
dotal e o espirito de sacrifício de que dão constantes e
620 OS ESPLENDORES DA FE

innumeraveis provas, supprem tanto quanto possível, á


falta sempre crescente de braços; acerescente-se a isto
que percebem emolumentos e remunerações muito mó­
dicas. De mais, a falta de braços nasce da privação dos
meios subtrahidos quasi todos, um apoz outro, ao go­
verno da Egreja universal.
«A usurpação da soberania temporal do Pontifica­
do, mau grado das promessas, tantas vezes repetidas,
d’aquelles, que d’ella se quizeram tornar culpados, foi
a pouco prazo seguida do confisco dos bens ecclesiasti-
cos, da desaparição das ordens religiosas, da usurpação
dos conventos, bibliothecas, museus e outros bens que
lhes pertenciam; e o que é mais desolador, quando se
olha ao futuro, é que essa usurpação da soberania tem­
poral collocou essas mesmas instituições na impossibili­
dade em que se acham de abrir seminários, collegios,
noviciados; ao passo que antes d’isso todos esses the-
souros vinham em soccorro do chefe da Egreja no pe­
sado encargo do governo de duzentos milhões de al­
mas.
«Hoje, quem o ignora? nada resta de tudo isso, e
portanto as necessidades são maiores.
«De facto, alem dos auxílios a dar aos religiosos e
religiosas, pobres, também por sua vez tão cruelmente
provados, o Papa deve prover á subsistência pessoal
d’aquelles bispos que se recusam a reconhecer aquell es
que governam actualmente a Italia, e muitas vezes
ainda a outras necessidades de suas dioceses e á sus­
tentação dos respectivos seminários. A uma tão grande
tyrannia junctam ameaças, já eífectuadas em alguns lo-
gares, do não pagar a congrua aos mesmos ecclesiasti-
cos, nomeados para qualquer oíficio e beneficio por bis­
pos não reconhecidos. Ho meio de tão grandes tempes­
tades, a alma do Sancto Padre é ainda transverberada
pela vista do horrível espectáculo, que offerecem as es­
colas athêas, onde o povo d’esta capital da christan-
APPENDICE B 621

dade é educado, sem que permittam ao Supremo Hie-


rarcha, ao Mestre infallivel e ao Guarda de nossa san-
cta Doutrina oppor-Jhes escolas, onde seus filhos e súb­
ditos possam receber uma educação christã.
«A este respeito não será fóra de proposito tornar
isto conhecido a saber: que em quanto das Américas e
dos paizes ainda não christãos, o Sancto Padre recebe
todos os dias petições afim de que lhes envie missioná­
rios, delegados, representantes da Sancta Sé, quer para
salvaguardar n’estas longínquas paragens o que lá cons-
titue o interesse da Egreja, quer para ganhar novas al­
mas para a fé e para a civilisação, o coração sangra-
lhe por não poder attender a estas petições por causa
de sua extrema penúria de recursos.
«Finalmente r. Sancta Sé, com aplausos merecidos
dos catholicos e até dos homens honestos dá um orde­
nado, modesto é verdade, mas que para elle é um pe­
sado encargo, aos antigos empregados do governo tem­
poral. Sem estes subsidios ficariam abandonados á
maior miséria, e soffreriam com maior difficuldade as
cruéis vexações da Revolução triumphante; porque
ella não pode perdoar-lhes sua fidelidade e dedicação
ao Soberano Pontífice, fidelidade e dedicação que pro­
vam á evidencia quão grande é a affeição que o go­
verno dos Papas soube inspirar a seus súbditos.
«As encyclicas, as allocuções, os discursos do Sum-
mo Pontífice e todos os actos da Sancta Sé revelam
bastantemente as dores que o alanceiam.
«Se os bispos os puzerem deante dos olhos dos ca­
tholicos, estes sem duvida alguma sentirão a necessi­
dade de continuar, como o tem feito até aqui, a en­
viar-lhe espontaneamente suas offertas. Em vista do
exposto, o Sancto Padre agradecendo aos bispos sua
attenç.ão, pelo pensamento de redobrarem de zelo e de
cada vez mais animarem as collectas do dinheiro de
S. Pedro, quer deixar-lhes, como já atraz dicto fica, o
622 OS ESPLENDORES DA F É

cuidado de tornarem conhecido o accrescimo das neces­


sidades da Só Apostólica e de adoptarem os meios que
lhes parecerem mais practicos e proprios para attingir
o desejado fim. Recommenda-lhes que se soccorram
também da imprensa catholica, a qual é credora de to­
dos os elogios pelo que tem feito ha tantos annos e até
em favor do dinheiro de S. Pedro.
«Depois d’isto, só me resta declarar a Vossa Se­
nhoria Illustrissima e Reverendissima, sempre no pri­
meiro plano, quando se tracta de tomar nobres e ge­
nerosas iniciativas para bem da Egreja, que Sua San-
ctidade lhe concede, assim como a todos os seus vene­
ráveis collegas, signatários do precitado escripto, uma
benção particular. Queira Vossa Senhoria dignar-se
dar-lhes communicação da presente carta.
«Aguardando, tenho a honra de me assignar com
os sentimentos da mais alta estima de Vossa Senhoria
Illustrissima c Reverendissima servo.

«L. C ardeal N ina .

«Roma, 4 cFoutubro de 1878.


APPENDICE C

A Obra Franceza das Escolas Christãs

Carta do sr. Garnier de Cassagnac, pai

Como o Instituto dos irmãos das Escliolas christãs


é n’este momento, rm França, o ponto principal de mira
aos ataques virulentos da Revolução, cabe-me a honra
de ter dado bem a conhecer o logar realmente miracu­
loso, que este sancto instituto occupa no mundo chris-
tão.
F. M o ig n o .

«Os Irmãos das Escliolas christãs, aos quaes dão


alguns o nome de Irmãos Jgnorantinhos, que n’outro
tempo adoptaram por humildade, estão hoje á frente
do ensino primário, não só em França, mas em todo o
mundo.
Sem soccorros do orçamento do Estado, com os re-
ctinfcs devidos ao interesse que inspira seu zelo, abne­
gação e suas luzes possuem n’este momento mil e du­
zentos e nove estabelecimentos ou casas de residência,
624 OS ESPLENDORES DA FÉ

que lhes pertencem; só em França mil e sessenta e qua­


tro, e cento e oitenta e cinco no estrangeiro; e estes esta­
belecimentos fornecem Irmãos, mestres ou professores^
a duas mil cinzentas e trinta e quatro Escliolas, assim dis­
tribuídas :
Mil oitocentas e setenta e nove em França;
Quarenta e tres nas Colonias francezas;
Trezentas e doze no estrangeiro.
Sim, estes Irmãos, a quem os republicanos de Blois
tiraram a escola municipal primaria, ensinam o francez
em dez escolas em Roma; em doze, em Turim; em
duas, em Tunis; em tres, 11a Prússia; em duas, na Áus­
tria ; em cinco, na Inglaterra; em vinte e seis, no Ca­
nadá; em trinta e uma, em New-York; em doze, em S.
Luiz; em tres, no México; em cinco, na Califórnia; em
cinco, em Madagascar e na Mauricia; em dez, no Equa­
dor e no Chili.
«Estes exilados de Blois tem dez escolas na Alge-
ria, i é, em Alger, em Blidah, em Constantina, em El-
Bar, em Oran, em Sidi-Bel-Abbés, em Tlemcen. em
Mostaganem, em Stora, em Phillipeville; tem tres no
Egypto, i é, em Alexandria, Ramlé e Cairo; tem qua­
tro na Turquia, i é, em Constantinopla, Kadikeny,
Smyrna e Jerusalem; tem tres na Conchinchina, i é,
em Saigon, Mytho e Yisals-Long; tem duas em Ceylão,
i é, no Combe e Negombo; tem tres 11a Birmania, i é,
em Bassein, Rairgoon e Monlmain; tem duas no Indus-
tão, i é, em Cananor e Calicut; duas 11a Malasia, em
Penang e Singapura; enfim, tem duas na China e deze-
seis na ilha da Reunião.
«Eis aqui homens que ensinam a lingua, a littera-
tura e a eivilisação da França a todos os povos do
mundo!
«Depois de haver exposto 0 desenvolvimento
enonne que tem tomado fóra da França as escolas
christãs, na Europa, na Asia, na África e na America,
APPENDICE C 625

devo tornar conhecido o espirito que presidiu a sua for­


mação, e a situação legal de que gozam em França.
«As escolas christãs consideradas como instituições
caritativas, destinadas a instruir gratuitamente as crean-
ças pobres foram fundadas em 1680 por um venerável
conego de Reims, chamado João Baptista de la Salle,
que consagrou sua fortuna a esta obra. Formam uma
congregação religiosa, mas não ecclesiastica; quer dizer
que os Irmãos pronunciam votos referentes á profissão
do ensino que abraçam; mas não podem aspirar nem
ao sacerdócio, nem á pregação. O altar e~o púlpito fi­
cam-lhes absolutamente defesos.
Afim de se poderem consagrar exclusivamente ao
estudo e ao ensino, e de não serem embaraçados por
qualquer interesse exterior, renunciam á familia e ao
mundo e fazem voto de castidade, de pobreza e obe­
diência. Uma unica occupação, um unico fim, trabalhar
incessantemente para se habilitarem a bem ensinar, e
ensinar depois até ao fim da vida.
Passadas as horas d’aula, os professores leigos des­
cançam de tard e; passados dez mezes de ensino esco­
lar, os professores leigos tem suas ferias.
Os Irmãos nada d’isso tem.
A’ noite reunem-se em conferência para prepara­
rem as aulas do dia seguinte; nos mezes de ferias reco­
lhem á casa-mãe de sua província, onde se fortificam
em conferências, estudos novos, no intuito de manter
ou elevar o nivel do ensino.
E que aposentação é d'estes servos das creanças
pobres, depois de trinta, quarenta e cincoenta annos de
trabalho? Nenhuma... Como vivem então ao cabo de
sua carreira? á hora das refeições, quando o velho, que
já não pode trabalhar entra no refeitório, apertam-se
os que lá estão para lhe dar logar, e fazem-se os qui­
nhões mais pequenos.
«A situação dos Irmãos é perfeitamente legal. São
VOL IV 50
626 OS ESPLENDORES DA FÉ

collaboradores regulares da Universidade. Banidos de


França em 1792, depois de lhes confiscarem os estabe­
lecimentos que possuíam, tornaram a ser chamados e
abriram suas escolas em 1802. Em 1808 o decreto de
reorganisação do ensino geral, deu-os como adjunctos
á Universidade para o ensino primário, deixando-lhes
livres os estatutos e os inethodos.
Até 1883, os Irmãos dirigiram suas escolas em vir­
tude de cartas de obediência, entregues pelo superior
geral, em conformidade com seus estatutos; mas a lei
de 28 de junho, elaborada e sustentada por Guizot, im­
pondo aos professores leigos garantias diversas, entre as
quaes diploma de capacidrde, passado depois de um
exame feito perante uma com missão departamental, os
Irmãos não quizeram para si nenhum privilegio, nem
dar o exemplo de nenhuma excepção. Apresentaram-se
portanto deante das commissões e obtiveram os diplo­
mas de fórma que hoje não ha em França, na Algeria.
ou nas colonias uma unica escola, regida por Irmãos,
onde o Irmão director não seja diplomado, tal qual
como nas escolas leigas.
Em França, todas as escolas primarias são publicas
ou livres. As escolas publicas, chamadas também com-
munaes, são aquellas, cujo ensino é pago total ou par­
cialmente pelos cofres do Estado, do departamento ou
do município. As escolas livres são as devidas á inicia­
tiva privada.
Mil e dezeseis escolas communaes estão em França
confiadas aos Irmãos, para cuja regencia não podem
delegar menos de tres membros. São geralmente esco­
las de sede de concelho. Os Irmãos dirigem também
em Franca tresentas e dezeseis escolas livres, que lhes
pertencem. Paris, só á sua parte, tem cento e quarenta
e uma escolas communaes; oitenta e uma estão confia­
das a professores leigos; sessenta são dirigidas por I r ­
mãos, os quaes possuem alem d’estas vinte escolas livres.
APPENDICE C 627

«Comprehende-se facilmente que enorme pessoal


um tal desenvolvimento impõe ás escolas christãs; é
um exercito.
As escolas christãs empregam 21:250 professores a
saber:
Em França..................... 9:387
Em Alger e nas Colonias. 223
No estrangeiro . . . . 11:640
Total . . . . 21:250

«Tal é a organisação das escolas christãs.


Mostremos agora a superioridade immensa e in­
contestável do ensino, dado pelas Escolas christãs, so­
bre o ensino dado pelas Escholas leigas, e argumen­
tando com cifras authenticas que provam esta superio­
ridade, vou primeiramente explicar, o methodo espe­
cial, de que é o resultado, methodo inconciliável com
o ensino leigo.
«Os dois methodos differem n’isto, que o profes-
sorado leigo, nas Escolas normaes, só pode receber a
instrucção: em quanto que o Irmão, nos noviciados da
ordem, recebe ao mesmo tempo a instrucção e a voca­
ção.
«Não é diffamar o professor leigo dizer que em ge­
ral o que elle procura no ensino primário é uma car­
reira, bastante honrosa e remuneradora. Concebe-se
que no ensino secundário ou no ensino superior, o gosto
ardente das lettras baste para crear e conservar a vo­
cação do professorado; mas a perspectiva de viver ob­
scuro no retiro do campo, e de ahi dar todos os dias
seis horas de aula a creanças dos sete aos doze annos,
não é de certo assaz attrahente para se deixar tentar
das vantagens affectas á carreira do professor de instru­
cção primaria, vantagens, a primeira das quaes é a dis­
pensa do serviço militar, e a segunda é um ordenado
628 OS ESPLENDORES DA F É

quasi egual ao do parocho, com direito á jubilação,


que este não tenv
« Por outra parte, não é rebaixar ou desconhecer
a missão do governo em matéria de instrucção prima­
ria, dizer que todos os seus esforços se limitam neces­
sariamente a formar um professor instruído. Consegue
este resultado com o auxilio das escolas nonnaes, a
grandes expensas edificadas, mobiladas, e sustentadas
pelos departamentos, e n^is quaes os jovens, que se des­
tinam ao ensino, vem receber uma instrucção geral­
mente gratuita, paga em verbas do orçamento do de­
partamento ou do Estado.
«Depois de tres annos de estudos, os alumnos da
escola normal apresentam-se a exame perante uma
commissão departamental, cujos membros são nomea­
dos pelo governo, e se estão conveniente mente prepa­
rados recebem um diploma de capacidade ou habilita­
ção que é do primeiro ou do segundo grau, segundo o
programma; depois d’isto o approvado recebe a dire­
cção d’uma escola.
« Ora qual é, debaixo do ponto de vista pedagó­
gico e do ensino pratico, o valor d’este diploma de ca­
pacidade e que garantia offorece ás famílias o Estado ?
— Em assumpto tão delicado convem dar a palavra á
própria Universidade. Eis qual é a apreciação do snr.
Gréard, inspector geral da instrucção e director do en­
sino primário do Sena:
«Se o diploma de capacidade é a significação de
que um candidato possue o minimo dos conhecimentos
exigidos na lei, não dá nenhuma garantia, nem quanto a
seu valor profissional, nem quanto a suas aptidões moraes.
O legislador, é verdade, presci’eveu que se verificasse
por um interrogatório sobre os processos de ensino das
diversas matérias comprehendidas no programma, se o
candidato tem noções pedagógicas. Alem d’isso, antes
de poder ensinar, a lei submette toda a sua vida a um
APPEN D ICE A 629

inquérito profundo. Estão tomadas sabias e uteis medi­


das, destinadas a pôr de parte os individuos incapazes
ou indignos, mas insuficientes para formar um corpo de
professores e professores irreprehensiveis e para propagar
as sãs douctrinas do ensino.
A profissão do ensino primário não pode dispensar
o que outrora se designava com um nome tão elevado,
que só se applicava aos apellos de ordem divina: A v o ­
c a ç ã o ! Ora para se ficar certo de a ter, é mister que a

vocação haja sido posta a uma prova demorada. (1) »


Pois bem, um appello, quasi de ordem divina, que
a profissão do ensimo primário não pode dispensar, a
vocação, ou esse caracter que as Escolas nortnaes não
sabem dar aos professores leigos, d|o-no os Noviciados
das Escolas christãs aos Irmãos. De feito, se os esfor­
ços do governo tendem a crear um professor instrui do
os esforços das escolas christãs tendem principalmente
a crear professores religiosos, e o noviço só depois de
longas provas, de reflexões profundas, de experieneias
concludentes dos deveres que vai contrahir é que pode
dizer-se um Irmão. Só então, depois de os superiores
julgarem que o noviço tem de facto a vocação que elle
acceita não só sem reluctancia intima, sem murmurios,
mas até com convicção, com amor ás obrigações affe-
ctas aos tres votos de castidade, pobreza, e obediência,
adquiriu o caracter de religioso, é admittido como Ir­
mão ; mas nem por isso é considerado já professor.
«Como se vê, é enorme a difíérença de preparação
de um professor entre as escolas normaes e os novicia­
dos. O leigo offerece quando muito como garantia o di­
ploma de capacidade; em sua juventude, ficou entregue
á sua própria direcção, sem superintendentes, sem for­
mação effectiva; e ao sahir da escola acabam para elle

(1) G réard, M e m ó r ia d i r i g i d a a o s r . P r e f e ito d o S e n a . p . 270.


630 OS ESPLENDORES DA FÉ

as licções. Não se dá outrotanto com o professor con-


greganista. Este offerece as mais solemnes garantias;
voluntariamente se sujeitou a um regulamento penoso;
abraçou um estado de abnegação, de pobreza e dedica­
ção ; conta que ha de sempre obedecer, que ha de vi­
ver e morrer trabalhando, separado do mundo e sem
possuir de seu cousa alguma. Alem d’isso, já professor,
estudará ainda e sempre, porque toda a communidade
docente é uma escola normal praetica, onde cada pro­
fessor estuda constantemente, e se assenta nos bancos
da aula para se aperfeiçoar conforme o seu grau.
«Mas o ponto culminante que ainda mais accentua
a difíerença dos methodos empregados no ensino leigo
e no ensino congreganista, é que n’esta applicam-se ju-
diciosamente as aptidões especiaes do professor ás di­
versas matérias do ensino.
F um a escola leiga, todos os professores são diplo­
mados, i é, são eguaes, nenhum d’elles se sujeitaria á
humilhação de consagrar a vida a ensinar o abc, a ta-
boada de Pythagoras, ou os rudimentos caligraphicos.
Nas escolas christãs, onde o voto de obediência é a re­
gra dominante, cada Irmão é obrigado a ensinar o que
sabe melhor, a calligraphia, a leitura, a arithmetica, a
grammatica; de forma que cada matéria do ensino é
ensinada pelo professor que melhor a conhece e mais
claramente a explica.
«D’onde, a superioridade incontestada dos resulta­
dos do ensino ministrado nas escolas christãs, superio­
ridade posta em toda a luz nos concursos que todos os
annos tem logar em Paris entre os educandos das esco­
las primarias leigas e os das escolas congreganistas,
quer para obter as pensões nas escolas superiores, quer
para obter certidões de habilitação, quer para o estudo
do desenho.
«Apenas tenho aqui á minha disposição os resulta­
dos officiaes dos concursos de 1875; mas são todos os
mesmos; eil-os:
APPEXD IC E C 631

Pensões postas a concurso: 80

«As 81 escolas leigas obtiveram. 25


«As 54 escolas congreganistas . 55

Approvações

«As 81 escolas leigas obtiveram. 593


«As 54 escolas congreganistas . 711

Concursos de desenho

«As 81 escolas leigas obtiveram: prêmios, 2; — ac-


cessits, 9; distincções, 11; total—22 recompensas.
«As 54 escolas congreganistas obtiveram: prêmios,
8; accessits, 12; distincções, 25; total, 45 recompensas.
«Taes são o principio e os resultados comparativos
do ensino primário leigo e do ensino congreganista.
«Haverá ahi pessoa illustrada, pai de família sen­
sato que em presença d’estes tactos, não se insurja in­
dignado contra a perseguição systematica de que as Es­
colas da Doutrina christã estão sendo alvo com tole­
rância dos governos V»

FIM DOS APPENDICES DO TOMO IV


ÍNDICE
D A S M A T É R IA S C O N T ID A S N ’E ST E TOM O IV

P r e f á c i o s ............................................................................................................... 5
0 a u c to r , a u t o b i o g r a p h i a .......................................................................... 5
0 fu n d a d o r d o s M u n d o s e d a S a la d o P r o g r e s s o . . . . 12
A o b r a , s e u fira, s e u p la n o , s e u m e th o d o . . . . 30
A F é e a R a z ã o .................................................................................................. 37
C ap itu lo i. E sta d o d a q u e s tã o . M eth o d o a s e g u ir . . . 37
D isc u s sã o e E x p o s i ç ã o ...................................................................................... 37
A s p a r a b o la s d o E v a n g e l h o .......................................................................... 40
Os E s p le n d o r e s d a F é ...................................................................................... 41
C a p itu lo ii. A d iv in d a d e d a fé d e m o n s tr a d a p e la s p r o p h e c ia s . 43
C a p itu lo u i. A d iv in d a d e d e n o s s a fé p r o v a d a p e lo s m ila g r e s . 43
O s p r in c ip a e s m ila g r e s d o E v a n g e lh o . . . . 48
C a p itu lo ív . A s n o ta s o u s ig n a e s c a r a c te r ís tic o s d a v e r d a d e ir a
E g r eja d e J e s u s C l i r i s t o ......................................................................... 59
— V i s i b i l i d a d e .................................................................................................. 60
— A p o s t o l ic i d a d e ................................................. . . . 60
— U n i d a d e .............................................................................................................. 61
— S a n c tid a d e • ..................................................................................... 62
— C a t h o l i c i d a d e .................................................................................................. 02
— I n d e fe c tib ilid a d e e i n f a l l i b i l i d a d e ................................................. 63
— In fa llib ilid a d e d o S u m m o P o n t í f i c e ................................................. 63
C a p itu lo v . P r im e ir o E s p le n d o r d a E é. — T o d a s a s g e r a ç õ e s m e
c h a m a r ã o b e m a v e n t u r a d a ................................................................ 65
A n a r r a ç ã o e v a n g é l i c a ...................................................................................... 65
O S y m b o lo d o s A p o s t o l o s ................................................., . 67
634 ÍNDICE

A A v e M a ria .............................................................................................................. 67
Os p r im e ir o s te m p lo s e m h o n r a d e M aria . . . . 68
M aria n a s c a t a c u m b a s ...................................................................................... 68
M aria e x a lta d a p e lo s S S . P a d r e s ............................................................. 68
M aria n a lith u r g ia c a t h o l i c a .......................................................................... 69
A s fe s ta s d e M a r i a . ...................................................................................... 69
A s a n tífo n a s em h o n r a d e M a r i a ............................................................. 69
M aria v in g a d a d o s h e r e g e s ......................................................................... 70
A s p e r e g r in a ç õ e s d e M a r i a ......................................................................... 70
M aria g lo rifica d a n a e d a d e m e d i a ............................................................. 71
M aria g lo r ific a d a p e la R e n a s c e n ç a ................................................. 71
U n iv e r sa lid a d e d o n o m e d e M a r ia ............................................................. 72
M aria g lo r ific a d a p e la s fa m ília s r e lig io s a s . . . . 72
M aria g lo r ific a d a n o x i x s é c u l o ............................................................. 73
I n flu e n c ia d o c u lto d e M aria, a lm a d o m u n d o c h r is t ã o . . 74
C a p itu lo v i, S e g u n d o E s p le n d o r d o F è.
— Meus olhos viram o
Salvador que vem de vós, que preparastes em face das nações,
a luz que se ha de revelar o todos os povos . . . . 76
A n a r r a çã o e v a n g é lic a , o o r á c u lo , a p r o p h e c ia , o c u m p r im e n to
do o r á c u l o .................................................................................................. 76
l . ° J e s u s C h rislo é e te m sid o a s a lv a ç ã o d e D e u s . . . 78
J e s u s C h rislo te m s id o a lu z r e v e la d a á s n a ç õ e s • . 79
C a p itu lo v ii . T e r c e ir o E s p le n d o r d a Fé —Este está posto para
ruína e resurreição de muitos . . . . . . 88
A r u in a d e m u ito s. Os j u d e u s .............................................................. 88
R o m a p a g ã .............................................................................................................. 89
Os d e i c i d a s ......................................................................... . . 89
Os ty r a n n o s e o s p e r s e g u id o r e s . . . . . 90
Os in im ig o s d a E g r eja e d o s P a p a s ................................................. 92
Os h e r e g e s e o s s c i s m a t i c o s .......................................................................... 96
O s i m p i o s .............................................................................................................. 96
O s c o r y p lie u s da g r a n d e R e v o lu ç ã o fr a n c ez a . . . . Í00
O s c o r y p h e u s d a u n id a d e it a lia n a .............................................................. 101
Á r e s u r r e iç ã o d e m u i t o s .......................................................................... 101
N a ç õ e s e s o b e r a n o s ...................................................................................... 102
C o n v er tid o s i i l u s t r e s ...................................................................................... 102
Os s a u c to s e as s a n c t a s ...................................................................................... 110
C a p itu lo v iii . Q uarto E s p le n d o r d a F é — Este menino será o alvo
da contradicção . . . . . . . . 112
C o n tra d içã o d a p a r te d o s p e r s e g u id o r e s . . . 114
— d a p a r te d o s h e r e g e s . . . . • . 114
— d a p h ilo s o p h ia d o x v m s é c u lo . . . . 116
— d a c r itic a m o d e r n a . . . . . . . 117
ín d ic e 635

— do sr. R e n a n ................................................................. 118


— dos scelerad o s m o d e r n o s ........................................... 119
Capitulo ix. Q uinto E sp le n d o r d a Fé — V in d e a p o z d e m i m , e
f a r - v o s - h e i p e s c a d o r e s d e h o m e n s ..................................................................122
Os A postolos e seu s su ccesso res p escad o res de h o m e n s. . 122
— Nas m issões a p o s t ó l i c a s .......................................................123
— No p ú l p i t o ............................................................................130
— No c o n f e s s i o n á r i o ................................................................. 130
0 p escad o r de hom en s é desco n h ecid o no grêm io do scism a
e da h e r e s i a ..................................................................................... 131
E sterilid ad e pasm osa das m issões p ro te sta n te s . . . 132
Capitulo x. Sexto E sp len d o r da F é — S ê d e ( o u s e r e is ) p e r f e i t o s ,
c o m o v o s s o P a i c e le s tia l é p e r f e i t o . . , . . 136
Os san cto s do Antigo T e s ta m e n to ................................................................. 138
As v irtu d es h e r ó i c a s .......................................................................................139
Os d ecreto s de beatificação e de canonização dos sanctos . 139
Sanctos illustres em todas as condições da vida . . . 140
Typos creados pela religião cath o lica, apostólica, ro m an a . 1il
Capitulo xi. Sétim o E sp len d o r da Fé — Os p o b r e s s e r ã o era n c je -
l i z a d o s ............................................................................................................ 160
Jesu s nascido revela-se aos p o b r e s ....................................................... 161
Jesu s C hristo identifica-se com os p o b res . . . . 162
O p o b re divinisado, o rico a m a ld iç o a d o ...........................................163
Os m onum entos da ca rid a d e c h r i s t ã ...................................................... 165
O ensino dos pobres e dos p e q u e n o s ........................................... 167
As C ongregações d o cen tes . 168
Os sanctos m estres do e n sin o dos p o b res . . . . 168
O ensino dos pequenos e dos p o b res a n tes da R evolução . 171
O pobre sem fé, o m onstro do p au p erism o . . . . 172
Capitulo x ii . Oitavo E sp len d o r da F é — S e r e is a b o r r e c i d o s d e
to d o s p o r c a u s a d o m e u n o m e ..................................................................174
A n arração evangélica e o o rácu lo de Je su s C hristo . . 175
O odio no coração dos J u d e u s ................................................................. 176
O odio no coração dos R o m an o s: O odio no coração dos p e r­
seguidores pagãos . . . . . . . 178
O odio no coração dos h ere g e s e dos scism alicos . . . 180
O odio no coração dos p h i l o s o p h o s .......................................................181
O odio no coração dos re v o lu c io n á r io s .......................................................182
O odio no coração dos f r a n c - m a ç o n s ....................................................... 183
O odio em acção sob todos os governos que se tem succedido
h a sessen ta a n n o s .......................................................................................184
O odio sob o governo da C o m m u n a .......................................................185
636 OS ESPLENDORES DA F É

0 odio p o r toda a p a rte debaixo do céo plúm beo da h o ra p re ­


sen te ......................................................................................................................186
O odio no coração do s o l i d á r i o ................................................................. 189
Capitulo xiii . Nono E sp len d o r d a F é. — T u es P e d r o e s o b r e e s ta
p e d r a e d if ic a r e i m in lta E g r e j a e a s p o r t a s d o i n f e r n o n ã o p r e ­
v a le c e r ã o c o n t r a e l l a .......................................................................................192
A n a rraçã o evangélica, o o r á c u l o ..................................................................192
O cu m p rim e n to do o r á c u l o ............................................................................193
P rim e ira T em pestade. Conjuração d a svnagoga e dos ju d e u s
r e b e l d e s ................................................................................................ 194
S egunda T em pestade. C onjuração dos ty ra n n o s . . . 194
T erceira T em pestade. C onjuração das h eresias e dos scism as. 195
Q uarta T em pestade. C onjuração do M ahom etism o . . . 196
Q uinta T em pestade. C onjuração e invasão dos B arb aro s. . 197
Sexta T em pestade. Os escân d alo s d a ed ad e de ferro . . 197
Sétim a T em pestade. O g ra n d e scism a do o ccid en te . . 198
Oitava T em pestade. As v iolências d a refo rm a p ro te sta n te . 199
Nona T em p estad e. O d e se n c a d e a r da P hilosophia no século
x v iii ........................................................................... . . 201
D écima T em p estad e. Os excessos da R evolução franceza . 202
U ndecim a T em pestade. Os a tte n ta d o s do D irecto rio e do im ­
p e ra d o r Napoleão c o n tra a S anta S é ...................................................... 204
D uodécim a T em pestade. As p re te n ç õ e s e au d a c ia s da falsa
sciencia e d a m e i a - s c i e n c i a ..................................................................204
A C onjuração do actu a l m om ento. O triu m p h o . . . 205
Capitulo xiv. Décimo E sp len d o r d a Fé. — E e u , q u a n d o f o r le ­
v a n t a d o d a t e r r a , lie i d e a t t r a h i r t u d o a m im . . . 208
A n arraçã o ev angélica, o o r á c u l o ..................................................................208
O c u m p r i m e n t o ................................................................................................. 209
O C hristo g o v ern a, re in a e m a n d a ................................................................. 210
Jesu s C hristo a ttra h iu a si as naçõ es e os povos . . . 210
— o i n d i v í d u o ................................................................................................. 210
Jesu s C hristo a ttra h iu sua in te llig e n c ia ...................................................... 210
— sua v o n t a d e ................................................................................................. 211
— se u c o r a ç ã o ................................................................ . 212
— seu c o rp o ........................................................................................................... 214
As attracçõ es do C oração de J e s u s ...................................................... 215
Capitulo xv. U ndecim o E sp len d o r d a F é. - S e r á p o r i s t o q u e
to d o s liã o d e r e c o n h e c e r q u e s o is m e u s d is c íp u lo s , se r o s a m a r ­
des uns aos o u t r o s ...................................................................................... 218
N arração evangélica, o o r á c u l o ................................................................. 218
R egras da c h a rid a d e e v a n g é l i c a ..................................................................219
Os p rim eiro s c h ristã o s reconheciam -se p or sua c h a rid a d e . 221
ín d ic e 637

Os h ero es da c h arid a d e c h ristã , esp len d o res d a fé. . . 224.


C baridade ex ercida pela E g reja d esd e o berço ao tum u lo e
p ara l á ............................................................................................................225
Capitulo xvi. Décimo E sp len d o r d a F é. — E m v e r d a d e , e m v e r ­
d a d e vos d ig o : a q u e lle q u e c r e r e m m im f a r á a s o b r a s q u e
e u f a ç o e f a l- a s - h a a i n d a m a i o r e s ................................................................. 243
A n a rra ç ã o evangélica. O « ra c u lo .................................................................243
Os m ilagres dos A p o s t o l o s ............................................................................ 244
Os g ran d es th a u m a tu rg o s da E g r e j a .......................................................245
Meu g ran d e p ra tro n o , S. F ran cisco d ’Assis . . . . 250
Capitulo xvii. Décimo p rim eiro E sp len d o r d a F é .— I d e , e n s in a i
to d a s a s n a ç õ e s , b a p t i z a i - a s e m n o m e d o P a d r e , d o F illio e d o
E s p i r i t o S a u c to , e n s in a i- lh e s a a b s e r v a r o s m e u s m a n d a m e n to s
e e is q u e e u e s to u c o m v o s c o a t é á c o n s u m m a ç ã o d o s sé c u lo s . 257
A n a rração evangélica. O o rá c u lo ................................................................. 257
0 cu m p rim en to . Os A postolos p a r t e m ...................................................... 2oi
G randeza da e m p r e z a ...................................................................................... 261
Exito da e m p re z a ................................................................................................. 262
R apidez d a e m p r e z a .......................................................................................262
C onsequências d a em p reza . . . . . . . 263
P e rp e tu id a d e da e m p r e z a ............................................................................ 264
C apitulo xvm . Décimo oitavo E sp le n d o r da F é. — J e r u s a le m ,
d ia s v ir ã o e m q u e te u s filh o s h ã o d e c a h i r a o g u m e d a e s p a d a
e h ã o d e s e r le v a d o s e m c a p t i c e i r o p a r a e n t r e a s n a ç õ e s . J e r u ­
s a le m , s e r á s c a lc a d a a o s p é s d o s g e n tio s . . . . 207
A n a rra ç ã o evangélica. O o rá c u lo ................................................................. 26’
O cu m p rim en to . Jeru salem foi d e stru íd a . . . . 264
Jeru salem foi d e stru íd a nas condições p re d ic ta s . . . 269
C ontraste singular, a m aldição e a riq u eza dos ju d e u s . ■ 273
A conversão dos ju d e u s no fim dos tem pos . . . . 274
Capitulo xix. Décimo Q uinto E sp len d o r da Fé — E tu , c o n v e r ­
t i d o , c o n f ir m a te u s i r m ã o s . . . . . . • 276
A n a rração evangélica. O o r á c u l o ................................................................. 276
O cu m prim ento. Pedro confirm a seus irm ã o s. . . . 277
A g ran d e confirm ação. S egunda episto la de S. P e d ro a todos
os fieis do u n i v e r s o .......................................................................................28$
A p rim eira epistola de S. P e d r o ..................................................................286
C onfirm ação pelos su ccesso res de P ed ro . . . . 289
Pio ix, o S y lla b u s . . • ......................................................290
Leão x iii , echo fiel das confirm ações de Pio ix . . . 290
Capitulo xx. O alcance dos E sp len d o res d a F è — Q u i n z e p r o -
p h e c ia s b r ilh a n te s c o m o o S o l. Q u in z e m ila g r e s ta m a n h o s c o m o
638 OS ESPLENDORES DA F É

o m u n do, ou q u e s ã o o m u n d o t r a n s f o r m a d o . C o n s e q u ê n c ia s
dos E s p le n io r e s . . ...................................................... 291
Capitulo xxi. O s m y s te r i o s e m g e r a l . . . . . . 297
A conven iên cia divina dos m y sterio s . . . . 297
O conhecid o e o d e s c o n h e c i d o ..................................................... 298
Os m y sterio s da s c i e n c i a ................................................................ 299
— m ais esm ag ad o res q u e os m ysterios d a F é . . . . 299
C apitulo xxii . D e u s ........................................................................... 306
A ideia de Deus ........................................................................... 306
A existência de D e u s ........................................................................... 307
A definição e a ttrib u to s de D e u s ...................................................... 308
P erso n alid a d e d i v i n a ........................................................................... 312
P a n th e i s m o ............................................................................................... 313
M a t e r i a l i s m o ..................................................................................... 314
Capitulo xxm . M y s te r io d a S S . T r i n d a d e . . . . 317
A Sagrada E sc rip tu ra e os Symbolos da Fé . . . . 317
A alm a h u m a n a , im agem da SS. T rin d a d e . . . . 319
A ultim a p alav ra do juizo h u m an o so b re o m ysterio da SS.
T r i n d a d e ................................................................................................ 320
A tradição dos povos e dos gênios da h u m a n id a d e . . . 322
Symbolos in n u m e ra v e is da U nidade n a T rin d a d e . . . 323
— da T rin d a d e n a U n i d a d e ................................................................ 323
Os testim u n h o s do S e n h o r são m uito criv eis . . . . 325
A an tig a e am orosa d o x o l o g i a ..................................................... 326
Capitulo xxiv. D e u s C r e a d o r . ........................................... 327
O dogm a d a creação definido pela sag ra d a E sc rip tu ra e pelos
c o n c i l i o s ................................................................................................. 327
O se r das c re a tu ra s e o se r de D e u s ........................................... 331
P rim e ira ideia do com o do m ysterio da crea ç ã o . A creação
pelo genio do hom em . ...................................................... 332
Segunda co m p a ra ç ã o : a p a rticip ação na a n c to rid a d e . . 333
Como esta com paração exclue to d a a ideia de p an th eism o . 334
Luz que esta d o u trin a p ro jecta so b re todas as q u estõ es da
philosophia e da theologia n a t u r a l ........................................... 334
C onciliação d a im m u tab ilid ad e d iv in a e da m o bilidade in c e s­
sante da creação com auxilio da m ach in a de cálculos analy-
ticos de sir Ch. B a b b a g e ................................................................ 336
C apitulo xxv. O M y s te r io d a P r o v i d e n c i a ........................................... 341
O dogm a d a P r o v i d e n c i a ................................................................ 341
A divina p ro v id en cia en sin ad a p o r Jesu s C hristo . . . 342
A ordem ad m irav el e o en cad eiam en to p ro v id en cial da n a tu ­
reza . , 344
ín d ic e 639

0 desconhecido e o c o n h e c i d o ......................................................345
O bjecções. O triu m p h o dos t y r a n n o s ...........................................346
— a p ro sp erid ad e dos m a u s ............................................................................ 346
— a desegualdade das c o n d iç õ e s .................................................................34S
O determ inism o m o d e rn o ; a In tellig en cia e a form ula de L a-
place, hom enagem à p ro v id en cia d ivina . . . . 348
Capitulo xxvi. A O r a ç ã o ............................................................................351
À san cta Bihlia e o E vangelho su p e ra b u n d a m em orações sa­
b id as das boccas as m ais n o b res e as m ais p u ra s . . 352
T estim u n h o de Jesu s C hristo em favor da oração . . . 353
A oração das o r a ç õ e s ...................................................................................... 353
As objecções do livre p en sam en to , d a falsa scien cia e da
m eia s c i e n c i a .................................................................................................354
A acção da vontade h u m a n a em a n atu re z a . . . . 355
T estim unho do bom e g ra n d e E u l e r ........................................... 357
A g ran d e illusão da s c i e n c i a ................................................................. 358
Capitulo xxvii O m i l a g r e ............................................................................ 359
P a ra q ue re c o rre r ao m ilagre ? . . . . . 359
O m ilagre é i m p o s s í v e l ? ............................................................................3 H0
A p robabilidade do m ilag re será m enor, do q u e a p ro b a b ili­
dade de um erro da p arte das to stim u n h a s? . . . 361
R esposta m ath em atica de sir Ch. B abbage . . . . 362
E’ im possível verificar o m i l a g r e ................................................................. 363
Os m ilagres não p o d erão explicar-se pelas leis da n a tu re ­
za? ........................................................................................................... 363
Já não h a m ilagres ? ....................................................................................... 364
Os m ilag res podem v ir do d e m o n i o ........................................... 364
T odas as religiões terão seus m ila g r e s ? .......................................................364
Como é q ue a m a c h in a d e cálculos analyticos e sclarece a q u e s­
tão da n atu reza e da possib ilid ad e do m ilag re . . . 366
Capitulo xxix. O p e c c a d o o r i g i n a l ................................................................. 368
O dogm a do peccado o r i g i n a l ................................................................... 369
A E sc rip tu ra e a T radição co m p en d iad as pelo concilio de
T r e n t o ................................................................................................ 369
A Q ueda referid a por to d as as tra d iç õ e s . . . . 3?0
T estim u n h o d a alm a h u m an a, prova e x p e rim e n ta l. . . 371
A differença e n tre o hom em d a n a tu re z a e o hom em d ecaindo
será aquella que se dá e n tre o hom em n ú e o hom em d e s ­
p o jad o ? ..........................................................................................373
O peccado original não é um a sim ples den eg ação ou priv ação . 37 4
Como a transição do peccado o riginal é racio n al, ju s ta e co n ­
form e às leis g eraes d a n atu reza . . . , , 37 6
640 ÍNDICE

Todo o se r vivo g e ra um se r sem elh an te a si. . . . 376


O segredo do peccado o r ig in a l: con ceb id o de um se r im -
m u n d o ! ............................................................................................................ 377
Feliz c u lp a ! ........................................................................................................... 378
C apitulo xxix. O m y s te r i o d a i n c a r m ç ã o ...................................................... 379
Definição do d o g m a ...................................................................................... 379
In carn ação da alm a, im agem da In c a rn a ç ã o do V erbo . . 379
A Incarnação é d igna de Deus e gloriosa p a ra a h u m an id ad e . 383
Jesu s C h ris to ! Seu e sp irito , seu co ração, su a vontade, seu
corpo im m a c u la d o ! Magnífico rasgo de B o s s u e t!. . . 384
In cap acid ad e d a a rte h u m a n a p a ra re p ro d u z ir os tra ç o s de J e ­
sus C h r i s t o ................................................................................................. 387
C apitulo xxx. A R e d e m p ç ã o ............................................................................ 389
A R edem pção p a ra a razão e sc la re c id a p ela fé . . . 389
A substitu ição e a re v e r s ib ilid a d e ................................................................. 392
N ecessidade de cooperação in d iv id u al na R edem pção . . 391
Capitulo xxxi. .1 p r e s e n ç a r e a l d o c o r p o d e J e s u s C h r i s t o d e b a ix o
d a s a p p a r e n c ia s d o p ã o e d o v i n h o .......................................................396
O desconhecido e o c o n h e c i d o ................................................................. 396
As cinco p ro p rie d a d e s fu n d am en taes da m até ria . . . 398
A prom essa da d ivina E u c h a ristia ................................................................. 398
In stitu ição da d iv in a E u c h a r i s t i a ................................................................. 399
Os concilios, a tradição, a p r e s c r i p ç ã o ...................................................... 400
A ccordo dos dados da scien cia a m ais ad e a n ta d a com os d a­
dos e u c h a r i s t i c o s ...................................................................................... 401
E ssência da m atéria. S u b stan cia dos co rpo s . . . . 402
S ubstancia de um corpo o r g a n i s a d o .......................................................405
D iversos estados de um c o r p o ................................................................. 405
Os accid en tes dos c o r p o s ............................................................................407
T r a n s u b s t a n c i a ç ã o .......................................................................................407
M u ltilo cação ........................................................................................................... 409
C apitulo xxxii. A ccordo d a lib e rd a d e h u m a n a com o co n cu rso
divino n a tu ra l e so b re n a tu ra l, a p rescien cia, a g ra ç a e a
p r e d e s t i n a ç ã o ................................................................................................. 412
Definição d a lib e rd a d e ...................................................................................... 412
Dogma da lib e rd a d e , affirm ado pela sag ra d a E sc rip tu ra , os
concilios, a trad iç ã o , a r a z ã o ................................................................. 413
O conhecid o e o d e s c o n h e c i d o ................................................................. 415
O livre a rb ítrio e o co n cu rso d i v i n o ...................................................... 416
A lib erd a d e e a p resc ie n c ia d i v i n a ...................................................... 418
A lib e rd a d e e a g r a ç a .......................................................................................419
A lib erd a d e m oral e a razão s u f lic ie n te ...................................................... 420
A lib erd a d e e a p r e d e s t i n a ç ã o ................................................................. 422

t
ÍNDICE 641

A lib erd ad e e o d e t e r m i n i s m o ...................................................... 42a


C apitulo xxxiii. Os E sp írito s................................................................. m
P o rq u e razão não havia de e x istir e sp írito s b ons e m au s ? . 427
São citados a cada passo na sag rad a E sc rip tu ra . . . 428
Os bons a n j o s ...................................................................................... 428
Os m aus, ou d em o n io s........................................................................... 429
Os diversos g ra u s de escravidão do dem onio. . . . 430
Posse do m undo id o latra pelo d e m o n io ........................................... 432
P ossibilidade de relaçõ es m ais ou m enos in tim a s e n tre o h o ­
m em e o d e m o n i o ........................................................................... 433
A alm a, esp irito . D em onstração d a sim plicidade e e sp iritu a li­
dad e d ’a l m a ...................................................................................... 434
Capitulo xxxiv. Os S a c r a m e n t o s ...................................................... 439
Os S acram entos em g e r a l ................................................................. 439
O B a p tism o ................................................................................................ 442
A C o n f i r m a ç ã o ...................................................................................... 443
A E u c h a r i s t i a ...................................................................................... 445
A E uch aristia, s a c r i l i c i o ................................................................ 447
A P e n i t e n c i a ...................................................................................... 450
A Confissão, necessid ad e do coração h um ano. . . . 452
A A bsolvição, m aravilhoso dom do c e o ........................................... 153
Os adm iráveis effeitos da c o n f i s s ã o ........................................... 455
A confissão será in v en çã o dos h o m e n s ? .......................................... 458
A confissão estim u lará o crim e ? ...................................................... 458
O Sacram ento de extrem a-U ucção. . . . . . 400
Seus effeitos................................................................................................ 462
D everem os re c e ia r em o cio n ar o en fe rm o ? . . . . 463
A m anhã ain d a hav e rá tem po ! ...................................................... 463
D everem os ra c e ia r a te r r a r a f a m i l i a ........................................... 464
O S acram ento d a O rdem . . . . . . . 464
As C erim ônias da O rd em ...................................................................... 468
O S acram ento do M a t r i m ô n i o ...................................................... 469
O divorcio só tem sido erigido em lei nas ep o ch as de rev o lu ­
ção e de d e c r e p i t u d e , ................................................................. 473
Quão p ru d e n te s são os im p ed im en to s fo rm ulados pela E greja. 475
Sabedoria da legislação c h ristã e cath o lica do casam en to . 478
O casam ento será um co n tracto p u ra m e n te civil ? . . . 478
A E greja n a d a te rá de v e r com elle ? ........................................... 479
Não p o d erá oppôr im p ed im en to s d irim e n te s ? . . . 479
E stabelecería im ped im eu to s só no in tu ito de fontes de re c e ita ? 479
A tten tará co n tra a lib e rd a d e com as su as p ro h ib içõ es ?. . 480
Capitulo xxxv. O Celibato e os votos de religião . . . 480
VOL IV 51
642 OS ESPLENDORES DA FÉ

0 Celibato e a v irg in d ad e são de in stitu iç ã o d iv in a . . 482


T odos os povos têm exaltado a c o n tin ên cia . . . . 483
Razões in trín se c a s a favor do celibato dos p a d re s . . . 484
A observância do celib ato è im possível 1 . . . . 484
Ha infracções e d eso rd e n s s e c r e t a s ...................................................... 485
A E greja faz de seus p ad re s o u tra s ta n ta s victim as . . 485
A ty ra n n ia é ain d a m aio r p a ra os h a b ita n te s do c la u s tro ? . 485
Se todos se votassem á g u a rd a do c elib ato , q u e se ria ds ge-
n ero h u m a n o ? ................................................................................................. 485
O celibato é u m u ltra g e à u n ião conjugal ? . . . . 486
Todos os ho m en s são ch am a d o s ao casam en to . . . 487
O celibato op p õ e-se á p ro sp e rid a d e das nações ? . . . 487
A ccusações c o n tra d ic to ria s ao c e lib a to .......................................................488
O celibato cath o lico é d iq u e opposto á scien cia . . . 488
Os votos de r e l i g i ã o ....................................................................................... 489
O apello à vida religiosa é d iv in a ......................................................489
D eus e a h u m a n id a d e tem n ecessid ad e de p o b res, d e v irgens
e o b e d i e n t e s ..................................................................................................490
Os roligiosos e religiosas são o b a lu a rte d a so c ied ad e . . 491
lu an id ad e das c ritic a s q u e lh es f a z e m .......................................................492
São atravez dos séculos os b em feito res d a h u m a n id a d e . . 492
T oda a e sp e ra n ç a d a so cied ad e e stá no clero se c u la r e re g u la r 495
capitulo xxxvi. O s n o v ís s im o s d o h o m e m . . . . 495
O dogm a da im m o rtalid ad e a p a re c e em cad a p ag in a do An­
tigo e do Novo T e s t a m e n t o ..................................................................497
E’ aflirm ado pela t r a d i ç ã o ............................................................................ 500
E ’ supposto e afflrm ado p ela r a z ã o .......................................................501
O juizo p a r t i c u l a r .......................................................................................501
O p u r g a t ó r i o ................................................................................................. 505
A resu rreiçã o g eral dos corpos ................................................................. 507
Os corpos são incapazes de re su rre iç ã o ? . . . . 509
O que su b stitu e a sciencia ao dogm a d a re s u rre iç ã o dos c o r­
pos ....................................................................................................................... 511
O juizo u n iv e r s a l................................................................ . . 515
O logar do juizo u n iv ersal . ' ..................................................................515
Q uando h a d e a c o n t e c e r ............................................................................ 515
A vida e t e r n a ................................................................................................. 515
A m oral in d e p e n d e n te , a b su rd a e hom icida . . . . 517
A vida e te rn a , o ceo, o paraizo 518
A p re te n d id a m onotom ia do c e o ................................................................. 519
A anim ação do paraizo c h r i s t ã o ................................................................. 520
O nde será o ceo . . . ' ......................................................521
ÍNDICE 643

0 in fe rn o , a etern id a d e d as p e n a s ........................................... 522


A p arab o la do m au rico e do p o b re L azaro . . . . 524
A e te rn id a d e das p e n a s ................................................................. 525
Onde c a ir a arv o re, ahi p e r m a n e c e r á ........................................... 526
P ro v as m etap h y sicas da e te rn id a d e d as p e n a s do in fe rn o . 527
Em qu e Iogar esta rá elle situ ad o ? ........................................... 528
As p en as do i n f e r n o ........................................................................... 528
P e n a de d a m n o ...................................................................................... 528
P en as dos sen tid o s, o fogo do i n f e r n o ........................................... 529
M ysterio da conservação dos c o n d em n a d o s . . . . 529
Allivio dos c o n d e m n a d o s ..................................................... .......... 531
Justificação divina pelos c o n d e m n a d o s ........................................... 533
Capitulo xxxii. .4 E g r e ja : F ó r a d a E g r e ja n ão ha sa lv a ç ã o . A
E g r e ja e a c iv ü is a ç â o — .4 c iv ilis a ç ã o sem a fé é u m a v e r d a ­
d e ir a b a r b a r ie . A E g r e ja e o E s ta d o . O p o d e r te m p o ra l dos
P a p a s ...............................................• . . 633
Definição e m issão da E g reja . ........................................... 535
A E greja é u m a socied ad e e u m a sociedade p erfeita . . 537
A E greja é um a socied ad e viva e fecu n d a . . . . 538
U nidade e fecu n d id ad e da E g re ja ...................................................... 541
A E greja é um a socied ad e n ecessá ria : fóra d a E greja não ha
s a l v a ç ã o ................................................................................................. 543
Vós an n u n ciais-m e um D eus m orto h a dois mil a n n o s ? . . 545
O corpo e a alm a da E g r e j a ................................................................. 546
A E greja a n in g u é m c o n d e m n a ...................................................... 546
A E g reja d esm en te esta d o u c trin a p o r sua c o n d u cta . . 547
A E greja está h oje bem v i n g a d a ...................................................... 547
Á m ediação de C hristo não se ria p o rta n to in d isp en sáv el ? . 548
Todos os hom ens p e rte n c e m a Je su s C hristo. . . . 549
B astarão pois a razão e a fé n a t u r a l ........................................... 549
Jesu s C hristo te rá vindo p a ra nos p e rd e r . . . . 550
P o rq u e m otivo não são todos os h o m en s ch am ad o s á fé ? . 551 4

A m or de D eus p o r to d as as a lm a s...................................................... 552


In to lerân cia do e r r o ........................................................................... 553
A E grem e a c i v i l i s a ç ã o ................................................................ 554
A lu cta c o n tra a E g re ja a p re p o sito de civilisação . . 555
A E greja e o t r a b a l h o ........................................................................... 557
As arte s e a E g r e j a ........................................................................... 557
A E g reja e a e s c r a v i d ã o ................................................................. 558
A E greja e o p ro g re sso ................................................................. 559
As co n seq u ên cias d a lu c ta p ela civilisação . . . . 561
A p erfectib ilid ad e do hom em e E g r e j a ........................................... 562'
644 OS ESPLENDORES DA FÉ

A E g reja e a c h a rid a d e • ................................................................. 565


A E g reja e o casam en to . . . . . . . . 565
A E greja e a so cied ad e........................................................................... '566
N ão ha lib e rd a d e sem r e l i g i ã o ........................................... .......... 569
A civilisação e a b a r b a r i e ................................................................ 570
A b a rb a rie do peccado a sangue f r i o ........................................... 571
Civilisação co m p arad a das naçõ es catb o licas ,e p ro te sta n te s . 574
A d ecadên cia das nações cath o licas não pode a ttrib u ir-s e á
sua f é ................................................................................................. 582
Civilisação da I n g l a t e r r a ................................................................ 587
C ivilisação d a A l l e m a n h a ................................................................ 588
— Seu g en io ...................................................... 589
— Sua l i n g u a ........................................... 590
— S ignaes da sua decom posição . . 590
Civilisação dos E stad o s U nidos da A m erica . . . . 591
A E greja e o E s t a d o ........................................................................... ,592
As nações e os E stados obrigados a su b m etterem -se a Jesu s
C hristo e â E g r e j a ........................................................................... 593
O p o d er ecclesiastico e o p o d er tem p o ral . . . . 595
O Estado está na E g r e j a ................................................................ 596
O E stado não deve se p a ra r-se da E greja . . . . 598
A E g reja tem o d ireito à existên cia e aos m eios de existência. 599
As c o n c o r d a t a s ...................................................................................... 600
Im m u n id ad es do c le ro ........................................................................... 600
Im m unid ad e e in d e p e n d e n c ia ab so lu ta do S oberano Pontífice. 602
P o d e r tem p o ral dos p ap as, d irecto ou in d irecto . . . 604
R elações da E g reja e do E stado nos tem pos a ctu a es . . 606
O indivíd u o , a fam ilia e o E s ta d o ..................................................... 606
G overno no rm al ou p e rfe ito ................................................................ 607
G overno an o rm al ou i m p e r f e i t o ...................................................... 607
C ondição do ex ercício legitim o de u m governo h u m a n o . . 610
A deus aos E sp le n d o re s........................................................................... 610

A ppendice A. P o d e r te m p o ra l dos p ap as. — A llocução a Sua


S an ctid ad e Pio x i ........................................................................... 613
A ppendice B. O d in h e iro de S. P e d r o ........................................... 626
A ppendice C. A o b ra franceza das Escolas c h ristã s . . 623
ERRATAS E RECTIFICAÇOES

Fiz q u an to me foi possível p ara c o rrig ir as p r o v a s ; m as aq u i,


com o p o r to d a a p a rte re a p a re c e o servo i n u t í l ! No en ta n to não me
p en iten ciarei a ponto de d a r a lista dos e rro s ty p o g rap h ico s que esca­
p aram , Seria longa, fastidiosa e i n ú t il; alem d ’isso as faltas p o r si
m esm as se d en u n cia rã o , e serão rectiíicad as sem custo. Julgo p re s ta r
m elh o r serviço in sistin d o , em algum as lin h a s, so b re c e rta s afíirm ações
que novos estu d o s m e o brigam a m odificar ou a fortificar.
P ag in a 35, tom o m. L am entei p ro fu n d a m e n te não te r podido r e ­
solver pela exp erien c ia a difficuldade, lev an tad a a proposito da ce­
g u eira de T o ld a s ; mas um a indicação do h abil p h a rm aceu tico do H otel-
Dieu de S. Diniz, M. M énard, m e poz na p ista d e um a explicação ple­
n am en te satisfactoria.
O esterco de a n d o rin h a , c a ra c te risa d o p o r um ch eiro fo rte, e p o r
u m a sensação de a rd e n c ia que c a u sa ao con tacto com as m em b ran as
do olho, con tem u m a porção sensível de c a n th a rid in a , p ro v en ien te da
caça q ue as a n d o rin h a s fazem á m osca c a n th a rid a , que vive no freixo
e n ’o u tras arv o re s. P o r isso esse esterco é visican te e pode m uito bem
d e te rm in a r a opacidade da c ó rn e a A ex p e rie n c ia vale a p en a fazer-se,
e p o r sem d uvida se to rn a rá um a nova p ro v a da v erd ad e ab so lu ta dos
L ivros san cto s.
Pagina 76. O b a o b a b .
P o r si m esm a a longevidade d ’esta arv o re não facu ltará abso lu ­
tam en te um arg u m en to a favor da a n tig u id ad e do h o m e m ; m as u m a
tal longevidade está longe de se r in co n testad a. O c ele b re v iajan te L i-
vingstone, ten d o exam inado de perto um baobab, c u ja idade calculava
em mil e q u atro cen to s, achou-o ferido de um a e n ferm id ad e que a lte ­
rava b astan tem en te su a m ad eira, p ara que se lh e pro p h etizasse m o rte
próxim a.
Pag. 164. O P a r a i z o t e r r e s t r e ! A opinião que colloca o paraizo
te rre s tre no te rritó rio de Jeru salem , foi a p re se n ta d a em todo o seu
desenvolvim ento pelo Rev. W . H en d erso n , em um opusculo in te re s ­
sante, que tem p o r titu lo : E s s a y oit th e T d m t i t y o f t k e se e n e o f M an
C r e a tio n F a li (Queda) a n d R e d e m p tio n .
A inda ha pouco um e sc rip to r d iscu tia esse ponto no U n iv e r s , m as
deixando ás q u atro c o rre n te s d 'a g u a , q u e regavam o jard im , sua id e n ­
tid ad e com os q u a tro g ra n d e s rios da n atu re z a , e não só sua sem e­
lh a n ç a com elles.
646 OS ESPLENDORES DA F É

P ag in a 264. 0 sr. Jo rg e Sm ith ju lg av a te r e n co n trad o o rei Cho-


do rlah o m o r do G euesis, no velho rei c h a ld e u K adar-M abuck, fu n ­
dando-se n a in scrip çã o g rav ad a so b re um tijolo, em U r-K asdim , pa-
tria de A brahão.
O sr. O p p ert nega esta identificação, e o sr. Jo rg e S m ith a b a n ­
dona-a p o r fim. Mas o p recioso tijolo nem p o r isso deixa de a tte s ta r a
ex istên cia de um rei elam ita, da d y u astia dos K u d aritas, q u e su b m e t-
teu o paiz d e C hanaan.
P agina 279. A t o r r e d e B a b e l. Um estu d o m ais a tte n to , ou pelo m e­
nos m ais feliz, d a c ele b re in scrip çã o de B orsippa, p a re c e te r provado
qu e não allude á confusão das lin g u as. As p a la v ra s que o sr. O ppert
trad u ziu p o r e s sa d e s o r d e m p r o f e r i n d o s u a s p a l a v r a s , e x p r i m i r í a m p r o v a ­
v e lm e n te a m a n e g lig e n c ia s o b r e a c o n s e r v a ç ã o d o s r e s e r v a t ó r i o s d a s a g u a s
p l u r ia e s .
Não é p o rem m enos liquido q u e o v en ced o r de Je ru sa le m nos in ­
dica p o r esta in scrip çã o o local da to rre de Babel e sua form a, sem no
en tan to a re fe rir à epocha do dilúvio.
V e s tíg io s d o s p r i n c i p a e s d o g m a s c h n s t â o s , t i r a d o s d o s a n t i g o s l i v r o s
E’ o titu lo de um a o b ra do p a d re P re m a re , antigo m issioná­
c h in e z e s .
rio na C hina, trad u zid a do latim p a ra francez, e p u b licad a p o r Bon-
netty e pelo ab b ad e Paulo P e rry , in-8.° de xv — 511 p ag in as, 1878.
Este volum e sah iu m uito ta rd e para poderm os a p ro v eitar-n o s
d’elle, m as d eix arem o s consignado o resu ltad o , a q u e conduz. O p a d re
P re m a re está convencido de q u e b a de c h e g a r o dia, em q u e todos os
m issionários da C hina serão u n a n im e s em p ro c u ra r os vestígios das
trad içõ es p rim itiv as nos livros antigos ; n ’esta previsão leu e re le u cem
vezes os K i n g s , assim com o os livros clássicos, os co m m en tad o res e os
velhos h isto ria d o re s. R ecolheu to d as as passagens q u e lh e p areceram
se r resto s d ’esse c h ristian ism o p rim itivo, e d ’e st’a rte cheg o u , com to ­
dos esses tex to s, a com por p a ra a China o m ais bello e m ais sabio tra-
ctado de ap olegetica catholica. Ha. diz Luiz Veuillot, bellas co u sas nos
V e s tíg io s .
Muitas passagens d ’esses velhos a u cto res chinezes são dignas de
Job e de Moysés. Sabe-se que esp erav am o S a n c to , e que os a n tig o s se
saudavam dizendo : o c o r d e ir o j á v e i a ? ou a s e r p e n te e s c o n d e -s e ? Uma
passagem diz-nos q u e os antig o s reis sacrificavam á S uprem a U nidade
todos os sete dias ! Ha o u tra s p assag en s que dão definições pasm osas
da SS. T rin d a d e !
Em Breve, d irig id o aos a u c to re s, Sua S an ctid ad e L eão xiii não
h esita em dizer que os livros sag rad o s dos chinezes e as o b ra s dos sá­
bios con tem vestígios m uito ev id en tes dos dogm as e trad içõ es de nossa
religião sanctissim a.
K R RATAS

No Tomo i em N ota á P agina 207. oifcei en tre as illustrações scientificas, d e d i­


cadas á Fé C hristã o nom e de Agassiz. Hoje conheço que o fu n d am en to ; em que se
baseava este m eu conceito, nâo existe, P orque foi racionalista.
Na pag. 116 lin h a 23 onde se lê — obras — leia-se — alm as. Na pag. 120 n a ul­
tim a lin h a subintenda-se adoante da p alav ra strictam en te o verbo — tende .
No tom o IV :
Pag. lin . onde se lê leia-se Pag. lin onde se lê leia-se
19 9 douctor doutor 285 7 Vossos Nossos
19 14 douctorado doutorado 297 1 Vigessimo Vigésimo
34 20 coppertens co n v e rte m 333 J4 conselhos concelhos
43 19 p ro n u n ciar pren u n ciar 333 29 conselho concelho
44 2 pronuncia p renuncia 375 33 indefenida indefinida
45 8 M elehisedec Melehisedec 379 20 Om niponte O m nipotente
51 36 tivestes tiveste 397 7 transubstanisa- tran su b stan c
54 3 alvoraçado alvoroçado I cão
55 21 E stam os E stavam 402 20 sociedade saciedade
60 19 naniversario anniversario 426 2 Boussi nescq Boussinescq
73 19 m undos m undo 492 33 G rande? G rande.
83 36 e é 496 23 fostes foste
85 28 baseado baseada 516 23 m aldade realid ad e
86 17 saibem -no saibam -no 539 3 -nos -nas
91 16 anxilio auxilio 561 22 sens seus
104 5 Attingia Attingiu 576 34 hum anas m esm as
104 14 corrom pido corrom pida 580 29 C avalheiro C avalleiro
109 22 n atn reza natureza 585 23 põem põe
132 9 anno* anno 608 13 pudese pudesse
160 13 Jesus, Jesus 609 14 m em bros, m em bros
166 21 os as 610 13 Coraçõo Coração
170 1 acções orações 615 7 repupublica republica
193 21 espantando eipantado 618 26 sua sua sua
193 23 soccum bir succum bir 625 29 é é a
206 10 u b i, ubi 626 13 capacidrde capacidade
206 31 Ju lian o . Ju lian o 630 14 n’esta n ’este
28 28 carrasco, carrasco

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