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(Ebook) Exposição Do Dogma Católico

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Conferências de Nossa Senhora de Paris

Exposição
do
Dogma Católico
Volume I

Existência de Deus
Exposição
do
Dogma Católico
PELO

Rev. Padre Jacques-Marie-Louis Monsabré

VERSÃO PORTUGUESA SOBRE A EDIÇÃO FRANCESA DO

DR. LUIZ MARIA DA SILVA RAMOS

LENTE DE VÉSPERA DA FACULDADE DE TEOLOGIA DA


UNIVERSIDADE DE COIMBRA
Os textos presentes foram cedidos pela Editora Loreto para
o Congresso Online de Apologética Católica, e
fazem parte do primeiro volume das Exposições do Dogma
Católico, do Padre Monsabré.

@loretoeditora

https://www.facebook.com/editoraloreto
Ao Leitor

Estas Conferências não necessitam de prefácio, porque


começam por uma exposição geral do dogma católico, espécie de
sumário das verdades que me proponho tratar. Foram precedidas
de uma longa introdução na qual tentei responder às questões
que a primeira palavra do nosso Símbolo, Credo, naturalmente
suscita: por que é que esta palavra, Credo, exprime um ato
razoável? A razão não poderá porventura prescindir da fé? A
fé não destruirá a razão? Quais as operações que representam a
razão no ato de fé? Como é que nós somos obrigados a prestar
o nosso assentimento às verdades reveladas? Qual o valor dos
motivos que determinam este assentimento? Como se demonstra
o fato da existência de Deus? A razão, convencida pelo exame dos
motivos de credibilidade e prostrada pela graça de Deus diante
dos mistérios da fé, não fica por isso condenada à imobilidade?
Envio os meus leitores para as Conferências do Convento
de Santo Tomás de Aquino1. Encontrarão nestas Conferências —
na exposição dos princípios de harmonia da razão com a fé, na
refutação dos erros que tendem a destruir a fé em benefício da
razão e a razão em benefício da fé, no exame razoado das profecias,
dos milagres e dos testemunhos — resposta às dificuldades que
detêm o espírito humano no limiar dos estudos teológicos.
Agora procedemos à aplicação dos princípios que já
expusemos em nossas duas últimas conferências, sobre a ciência

1 Introdução ao dogma católico. Conferências do Convento de Santo Tomás de Aquino.


Serão igualmente vertidas.

5
teológica e sobre a controvérsia religiosa. Munidos com estes
princípios, vamos estudar, uma a uma, todas as verdades do
símbolo católico.
Com o magistério da Igreja, Santo Tomás será o nosso
guia. A sua doutrina, abandonada durante um longo período de
tempo, tende a reconquistar o império soberano que, na Idade
Média, exerceu sobre os espíritos; e é uma maravilha contemplar
a piedosa admiração com que aquela doutrina é hoje recebida
pelos auditórios cristãos. A homens distintos, pelos dotes do seu
espírito e pela sua ciência, ouvi eu dizer que nada lhes parecia
mais novo, mais original, mais conforme ao senso comum e mais
em harmonia com as nobres aspirações da inteligência cristã que
a doutrina de Santo Tomás.
Vulgarizar esta doutrina (atendendo sempre às legítimas
exigências do espírito moderno e às descobertas da ciência):
tal foi o desejo de toda a minha vida apostólica, e não sei como
exprimir a doçura que senti ao ver que o meu desejo encontrara
eco no acolhimento com que ultimamente fora recebida a minha
palavra, não obstante ocupar-me de verdades as mais difíceis.
E pois que estas verdades nada perderam da sua beleza, não
há motivo para desesperar da reabilitação da nossa época.
Quem tão resolutamente abraça as fortes doutrinas, abraçará
inevitavelmente os fortes costumes e as fortes instituições.
Digne-se abençoar-me na tarefa que ora empreendo
Aquele que dissera ao Doutor Angélico: Bene scripsisti de me,
Thoma. Bem escrevestes de mim, Tomás. Digne-se, Estrela
radiante, que reflete a luz do eterno Sol melhor do que todos
os mestres da Ciência Sagrada, guiar-me nos longos e difíceis
caminhos que terei de percorrer.
Maria Imaculada, rogai por mim.

Paris, 5 de maio, festa de São Pio V.

6
Prefácio do Tradutor

Sinceramente empenhados, como estamos desde que foi


publicada a memorável Encíclica Aeterni Patris, de Leão XIII,
na grandiosa obra da restauração do magistério de Santo Tomás
de Aquino, neste reino onde floresceu com tanto brilho, e nesta
nossa tão ilustre Universidade de Coimbra, onde os estudos
escolásticos foram professados por eminentes sábios, parece-
nos que algum serviço prestamos à nobre causa tão lucidamente
exposta e tão vigorosamente defendida naquele documento
pontifício, vertendo para a nossa língua as imortais Conferências
do Padre Monsabré.
Em verdade, a vulgarização destas Conferências onde
se refletem, como em límpido cristal, os esplendores da ciência
do grande luminar da Idade Média, é um dos meios mais
poderosos e mais eficazes de restaurar em Portugal a áurea
doutrina do Angélico doutor. Tesouro preciosíssimo de sólida
ciência filosófico-teológica, monumento esplêndido de vasta
erudição sagrada e profana, as Conferências do Padre Monsabré,
ilustre continuador da missão civilizadora de Frayssinous, de
Lacordaire e do Padre Félix no famoso púlpito de Nossa Senhora
das Vitórias, de Paris, vão por certo despertar nos espíritos
pensadores, e especialmente no clero, o gosto pelo estudo da
doutrina aquinatense, que foi, desde que fulgiu sobre o mundo, a
inspiração e a luz de todos os sábios.
Na história da filosofia e teologia aquinatense, a
Universidade de Coimbra tem uma página brilhante, tão

7
brilhante que na citada Encíclica de Leão XIII, diz o Vigário de
Jesus Cristo: “É com sumo prazer que o nosso espírito se recorda
das celebérrimas academias e escolas que outrora floresceram na
Europa — em Paris, Salamanca, Alcalá, Douai, Tolosa, Louvain,
Pádua, Bolonha, Nápoles, Coimbra e muitíssimas outras”. Alude
o Pontífice Romano, principalmente, à Faculdade de Teologia
da Universidade de Coimbra, no tempo em que esta sempre tão
ilustre corporação científica cultivava, com esmero e proficiência
admiráveis, a doutrina dos grandes escolásticos e, nomeadamente,
do príncipe e mestre de todos eles: Santo Tomás de Aquino.
Obscuro professor desta Faculdade — que ainda hoje saúda
com o mundo sábio, cheia de respeito e admiração, a imortal
autoridade científica do século XIII, e ainda hoje se dedica ao
estudo dos tesouros de ciência que nos legou — intentamos, com
a publicação em vernáculo das Conferências do Padre Monsabré,
continuar as tradições gloriosas da Academia de Coimbra,
trabalhando, consoante às nossas forças, para que em Portugal
seja conhecida a doutrina aquinatense.
Entendamo-nos, porém. Hoje ninguém intenta restaurar
a doutrina escolástica com todas as fórmulas da Idade Média.
Não tem em consideração alguma os legítimos progressos do
espírito humano e os assombrosos descobrimentos das ciências.
Queremos, sim, que nas escolas se restaure a doutrina do Angélico
doutor, mas como ele a ensinou, como a interpretaram os seus
mais ilustres discípulos, como o estado atual das ciências exige
que seja exposta e ensinada, numa palavra: como expõe e ensina
o gênio fecundo e inspirado do Padre Monsabré.
Imaginam muitos que a doutrina de Santo Tomás se reduz
a uma série de silogismos, de abstrações metafísicas envolvidas
em fórmulas bárbaras e incompreensíveis, de sutilezas e argúcias
e distinções sem utilidade prática para a ciência. E, baseados nesta
falsa suposição, afirmam que a restauração da doutrina de Santo
Tomás faria retroceder as ciências ao estado em que se achavam
nos séculos medievais. É um engano. Santo Tomás foi o primeiro
que reagiu contra os abusos da escolástica; nas suas obras não se

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encontram nem vestígios dessas questões estéreis, dessas sutilezas
e argúcias em que tanto se embrenharam os espíritos e que tanto
concorreram para a decadência e descrédito da Escolástica. A
doutrina de Santo Tomás se é largamente desenvolvida na parte
especulativa, se tem um lado psicológico, subjetivo e metafísico,
tem também um lado empírico, prático, experimental, e, por isso
mesmo, de grande alcance para o desenvolvimento das ciências.
Metafísico e experimentalista, Santo Tomás de Aquino
não prescinde da observação do fato para a investigação da lei
que o domina e explica; e proclama que o verdadeiro método
científico é o que sobe da análise minuciosa do fato, que é o
mais conhecido, para o conhecimento da lei que o informa, que
é o menos conhecido, e desce deste conhecimento à explicação
rigorosamente científica do fato.
Este é um dos princípios fundamentais da filosofia
aquinatense, e tanto basta para concluir que a escolástica tomista
não é o que dizem os seus detratores inconscientes, uma doutrina
de meras abstrações metafísicas, mas uma doutrina rigorosamente
filosófica e perfeitamente adaptada à índole do espírito humano, a
única que pode levá-lo seguramente à contemplação da verdade.
Para estabelecer e conservar no mundo a unidade
religiosa, instituiu Jesus Cristo o magistério da Igreja, adornando-o
com a prerrogativa da infalibilidade; para estabelecer e conservar
a unidade filosófica, suscitou a Providência divina Santo Tomás
de Aquino, e inspirou-lhe a áurea doutrina que nos deixou
consignada nas suas obras imortais. É nesta doutrina que o
teólogo deve aprender a ensinar e defender a fé; é nesta doutrina
que o orador cristão se deve inspirar para bem exercer o seu
elevado magistério; é, finalmente, nesta doutrina, que os sábios
cristãos devem procurar o ideal das suas aspirações e as armas de
fina têmpera para vingarem as suas crenças dos embates e assaltos
do erro.
Em Portugal, a oratória sagrada atravessa atualmente
um período de lamentável decadência. Salvas honrosas e muito
raras exceções, os nossos oradores sagrados, descurando o estudo

9
da teologia e da filosofia, dois mananciais fecundíssimos da
verdadeira eloquência cristã, curam apenas da elegância do estilo,
do aprimorado da frase, dos ouropéis da retórica, da seleção das
palavras e frases de efeito, e nada, absolutamente nada, das ideias
e dos conceitos, do assunto do discurso e das provas que devem
levar ao ânimo dos ouvintes a convicção das verdades da fé.
Não procedem assim os grandes oradores cristãos. E
para não alongar citações, aí temos o exemplo eloquentíssimo
do Padre Monsabré. Pregava em Paris, na grande Babilônia dos
tempos modernos, diante de um auditório composto, é verdade,
de católicos de firmes crenças, mas também de livres pensadores
e indiferentistas. Pensais que o grande orador se limitou a
declamações banais, envolvidas em estilo empolado, a lugares
comuns vestidos de esplêndidas imagens, a deleitar apenas os
seus ouvintes com as harmonias de uma eloquência imprópria da
cadeira evangélica? Não. O Padre Monsabré seguiu outro rumo
porque não queria trair sua missão, nem rebaixar a majestade
e grandeza da eloquência sagrada ao nível da eloquência
parlamentar ou tribunícia.
Teólogo profundo, desfere voos de águia nas regiões
luminosas do dogma católico; filósofo consumado, elucida, explana
e desenvolve esses dogmas com as luzes da sã razão; discípulo de
Santo Tomás de Aquino, vinga triunfantemente, com as doutrinas
do grande mestre, a verdade onímoda do dogma católico. Assim
ensina, assim convence, assim triunfa, assim exerce na cátedra da
verdade o sublime apostolado da palavra divina. E para que nada
falte no formosíssimo quadro das vitórias do Padre Monsabré, e
para que brilhe com novos esplendores a auréola de glória que
cinge a fronte do grande domínico, a eloquência, a elegância e
o estilo doiram em ondas de luz e tapetam de perfumadas flores
aquelas imortais Conferências, que Paris ouviu assombrada e o
mundo inteiro aplaude com entusiasmo.
Onde foi que se formou o engenho do Padre
Monsabré? Onde foi ele beber as sublimes inspirações das suas
Conferências? Quem deu à sua palavra as cintilações do gênio, à

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sua argumentação aquela força invencível que subjuga a alma, e
esmaga a soberba da razão, e faz estancar nos lábios do descrente
a impiedade e a blasfêmia; aquela força invencível que reacendeu,
no espírito de muitos, a puríssima luz da fé católica e fez reviver,
no seu coração, as amortecidas flores das crenças lá plantadas,
com tanto esmero, na aurora da vida? Quem lhe ensinou aquele
rigor nas demonstrações do dogma? Em que tesouros de ciência
foi aprender as transcendentes concepções das suas Conferências?
Nos tesouros da ciência escondidos nas obras de Santo Tomás de
Aquino.
Pois bem: aos oradores sagrados de Portugal oferecemos,
nas Conferências do Padre Monsabré, esses tesouros de ciência
tomista, onde encontrarão lucidamente expostos, cientificamente
demonstrados e vitoriosamente vingados, os dogmas que
formam a economia da religião cristã. O símbolo, o código, os
sacramentos divinamente instituídos por Jesus Cristo como meios
de santificação espiritual, de progresso e bem-estar social, tudo
ali se acha tão radiante de luz, tão eloquentemente desenvolvido
e elucidado que o espírito, lendo-o e meditando-o, repete com
o apóstolo, ao reconhecer a majestade divina de Jesus: Dominus
meus et Deus meus!
Todos sabem que a chamada filosofia contemporânea se
insurge violentamente contra a fé. Discutem-se e rejeitam-se os
grandes princípios revelados, em nome da filosofia, e em nome
da ciência proclama-se a pretendida contradição entre esses
princípios — verdadeiros sóis para o mundo da inteligência — e
os recentes descobrimentos das ciências. As reações parciais de
algumas escolas espiritualistas contra as tendências das escolas
antitomistas têm sido até hoje, a bem dizer, ineficazes. Há um
meio único de restauração filosófica, um meio único e eficaz de
estabelecer a unidade nas escolas filosóficas, de tornar a filosofia
em poderoso adminículo da fé, de vencer e reduzir os erros
ensinados em nome da filosofia e da ciência contra o dogma
católico. Este meio é a restauração da verdadeira e sã filosofia, da
sólida e luminosa doutrina de Santo Tomás de Aquino.

11
Desde que Lutero proclamou, há três séculos, a razão
individual do homem como juiz e interprete da palavra de Deus,
era fatal e inevitável a luta entre a razão divina e humana, entre
a fé e a ciência. Lutero foi o precursor de Kant, e Kant é com
razão chamado o pai da moderna filosofia anticristã. Não é
difícil encontrar os germens do materialismo, do sensualismo,
do positivismo e do darwinismo, sistemas hoje dominantes nas
diversas escolas filosóficas separadas da fé, no ceticismo de Kant
e no deísmo naturalista das escolas fundadas pelos discípulos de
Kant.
Desligada a razão humana da revelação divina,
proclamada a soberana independência daquela, que admira
que aparecesse esse dilúvio de erros, de absurdos, de sistemas
falsamente denominados filosóficos em diametral oposição não
só com os dogmas revelados, mas ainda, e por isso mesmo, com os
princípios da sã razão? Coisa notável! Pode a razão humana só por
si lograr o conhecimento de muitas e importantíssimas verdades
religiosas; pode subministrar isso a que Santo Tomás chama
preâmbulos da fé; mas erra grosseiramente logo que se proclama
absoluta e independente no exercício da sua atividade. E erra,
porque parte de um princípio falso. Limitada em si, amortecida
até em consequência do pecado original, a inteligência humana
foi dada ao homem para viver unida à fé, sob o domínio da fé, e
não para romper este laço providencialmente constituído, e não
para se insurgir contra o desígnio de Deus e querer arrogar a
independência absoluta, a onipotência, que só a Deus pertencem.
Ora, o erro capital da moderna filosofia anticristã é a soberana
e absoluta independência da razão humana de todo o jugo da
autoridade, ainda mesmo que essa autoridade seja a de um Deus!
Grandes e louváveis têm sido os esforços dos apologistas e filósofos
cristãos em restaurar o majestoso edifício da filosofia cristã, mas
esses esforços, ou porque isolados uns, ou porque desprovidos de
unidade e de direção ajustada à verdade outros, não lograram o
fim desejado. Ventura de Raulica foi um acérrimo impugnador
da onipotência da razão, mas caiu no extremo oposto de negar à

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mesma razão os seus direitos e sua atividade no descobrimento
da verdade; o Cardeal Gerdil resvalou no ontologismo; Gallupi
perfilhou muitas ideias de Descartes e da escola escocesa de Reid;
Rosmini, na sua teoria psicológico-ideológica sobre a ideia inata
do ente, admitiu — sem o querer, concedamos — as conclusões
do panteísmo; Gioberti e outros educados na sua escola, apesar
de afirmarem que submetiam a ideia filosófica à religiosa, caíram
na desgraça de ensinar erros que a Igreja, com justíssima razão,
proscreveu e condenou.
Se deveras queremos uma restauração filosófica tão
segura que nos leve ao conhecimento da verdade e à contemplação
da harmonia entre a ciência e a fé, tão eficaz que estabeleça a
unidade de pensamento, restauremos a doutrina de Santo Tomás
de Aquino, “admiravelmente harmônica e completa no seu
espírito, no seu método e nos seus princípios fundamentais”, e
divinamente exposta de modo a mostrar-nos a fé divina elucidada
pelas luzes da razão humana, e a razão humana esclarecida pelos
esplendores da fé divina. A doutrina de Santo Tomás pode,
com razão, definir-se: sistema admirável onde a razão e a fé se
irmanam e brilham como sol de puríssima luz, numa unidade de
princípio e de fim.
Veio de Deus a razão e a fé, tendem para Deus estas duas
luzes, porque é Deus o princípio e o fim de toda a luz. É esta a
doutrina que, restaurada e propagada, há de sobrepujar os erros e
os sistemas a que, impropriamente, se dá o nome de filosofia e de
ciência.
Diz um ilustre discípulo de Santo Tomás: “O espírito da
filosofia tomista, abraça, numa síntese harmônica, a razão e a fé, as
duas ordens de verdades naturais e sobrenaturais, subordinando
a razão humana à razão divina, e admitindo o princípio divino
que palpita no fundo do catolicismo.
A razão, segundo Santo Tomás, tem por missão expor
os motivos de credibilidade, a realidade histórica do fato da
revelação, ou da comunicação da verdade religiosa feita ao
homem pela inteligência infinita, sob a forma do ensino social.

13
A fé começa depois que a razão se persuadiu de que Deus
falou aos homens para os instruir, valendo-se dos milagres e das
profecias. Estes sinais ou meios sobrenaturais atestam a origem
divina das nossas crenças e em especial a da Igreja, que conserva,
propõe e explica o depósito da revelação.
Para bem compreender a harmonia perfeita que
reina entre estas duas ordens de verdades, relacionadas com o
entendimento humano, isto é, entre a razão e a fé, convém ter
presente que a razão humana é, por uma parte, uma faculdade
nobilíssima, e, por outra parte, imperfeitíssima para chegar
ao conhecimento de certas verdades sobrenaturais e divinas
que não se podem conhecer sem o auxílio da fé. Eis porque se
considera a razão humana, por um lado, como rainha da ciência
e defensora da fé, e, por outro, como súdita desta, da qual recebe
apoio e auxílio, resultando, desta mútua influência uma perfeita
harmonia entre a razão e a fé, entre a filosofia e a teologia, entre a
revelação e a verdadeira ciência.
Não há, em nossos dias, nenhum sistema filosófico que
apresente uma ideia mais elevada, mais digna e exata da razão
humana — no seu duplo estado nobilíssimo e imperfeitíssimo —
do que a filosofia tomista: nem filósofo algum, antes nem depois
de Santo Tomás, deu a conhecer melhor do que ele a necessidade
e as vantagens da fé ou das verdades divinas. A razão, esta luz
que Deus nos infunde, semelhante à luz incriada na qual estão
contidas as ideias eternas, essa derivação ou participação do
entendimento divino, dispõe-nos para o perfeito conhecimento
de todas as ciências, assim naturais e físicas, como morais e
políticas, abrindo-nos o caminho para reconhecer a verdade da
religião católica e para a defender contra os atuais inimigos”2.
Eis o fim de uma restauração filosófica eficaz para
realizar, nas escolas, a unidade de pensamento: reduzir a razão aos
seus justos limites e dar-lhe por auxiliar a fé. E sem esta unidade
de pensamento, a reação contra os sistemas anticristãos será
sempre improfícua. A unidade de disciplina é o segredo da força

2 Donadiu. Discurso recitado na Academia barcelonesa de Santo Tomás, 1887.

14
de um exército, é o grande elemento da sua coesão, o princípio
essencial das suas vitórias. Restaure-se a doutrina filosófica de
Santo Tomás e o exército dos combatentes pelos direitos de Deus
e do homem, os soldados da fé, terá unidade de pensamento, e
com esta unidade, um elemento invencível, uma garantia segura
de vitória sobre os seus inimigos. E tal foi o ideal de Leão XIII,
quando ordenou que em todas as escolas cristãs se restaurasse o
ensino da filosofia segundo a mente do Angélico doutor.
Acusam a doutrina de Santo Tomás de demasiado
metafísica e, por isso, ineficaz para o estudo das ciências
especialmente dedicadas ao estudo e observação dos fenômenos
empíricos. É necessário ignorar o espírito da doutrina tomista
e a teoria do Anjo escolástico sobre o método para formular
uma acusação tão destituída de fundamento. Santo Tomás
foi um grande observador; ninguém como ele usou com tanta
prudência e sabedoria da observação e da experiência; ninguém
soube determinar melhor a necessidade e a aplicação do método
empírico e racional, o laço de harmonia entre estes dois métodos
igualmente necessários para a aquisição da ciência.
Diz o citado escritor: “desde Aristóteles até Alberto
Magno, ninguém fixou, como Santo Tomás de Aquino, as
relações dos sentidos com o espírito, descobrindo no fenômeno
sensível o primeiro estímulo do seu desenvolvimento intelectual,
e determinando, de um modo tão magistral como Aristóteles —
e ainda com mais clareza —, o papel importante que estes dois
fatores desempenham no ato intelectual.
A filosofia tomista pode servir admiravelmente de base
e prestar grandes recursos aos modernos psicofísicos, que lutam
com esse dualismo desmedido e com essa metafísica vã, e que,
desprezando a experiência e os dados da natureza, fundamentam
a realidade nos seus conceitos abstratos; e serve simultaneamente
de sentinela e de salvaguarda para defender os sagrados direitos da
verdade contra os abusos dos pseudofísicos, que não reconhecem
outros processos para lograr o conhecimento da verdade senão
os experimentais, e que exaltam até às nuvens, em detrimento

15
da verdade, o emprego exclusivo da análise experimental,
intentando construir o edifício da ciência com os materiais do
real e do sujeito à observação.
Em suas obras e numerosos tratados, onde se reconhece
a doutrina e a influência de Aristóteles, mostra Santo Tomás uma
admirável harmonia entre os processos empírico e racional, se
bem que prepondere sempre a demonstração estritamente lógica.
Na Summa Theologica, o mais perfeito dos seus livros, depois de
enunciar os inumeráveis problemas que trata de resolver, procura
na tradição, na razão e na experiência, as provas que pode aduzir
para as suas conclusões afirmativas, e resolve, com poderosos
argumentos, as dificuldades que se lhe oferecem. Este processo
sintético-analítico, rigorosamente crítico e harmônico, unido a
uma linguagem clara, precisa, sóbria e enérgica, constitui o estilo
de Santo Tomás de Aquino, que se parece a esses monumentos
góticos do primeiro período, cheios de inspiração e de idealismo,
na sua singeleza e na elevação sóbria e luminosa das suas linhas
para o infinito”.
Não é nosso intento fazer agora a apologia da doutrina
tomista; o nosso fim é mostrar apenas que não há melhor meio
de combater as errôneas doutrinas filosóficas, que infelizmente
já vogam em Portugal, do que a vulgarização daquela doutrina,
sempre antiga e sempre nova, mil vezes abençoada pela Igreja,
estudada com entusiasmo pelos sábios católicos, perfeitamente
acorde com a fé e com a razão, e perfeitamente adaptada à índole
do espírito humano e às suas tendências naturais de conhecer a
verdade. Muitas e de grande tomo são as obras dos discípulos de
Santo Tomás. Suárez e o Cardeal Toledo, duas eminências entre a
ilustre falange dos sábios católicos; e entre os modernos, Cornoldi,
Liberatore, Lepidi, Prisco, Zeferino González, Kleutgen, Tindal
Pesch, Orti y Lara, e outros muitos, que seria longo enumerar,
escreveram riquíssimas obras onde a áurea doutrina de Santo
Tomás é exposta e vindicada de um modo que deixa plenamente
satisfeito o espírito mais exigente. Mas o estudo daqueles mestres
demanda longas vigílias, a que nem todos se podem dedicar.

16
Pois bem: as Conferências do Padre Monsabré, informadas
na doutrina do Angélico Doutor, expõem essa doutrina tão clara e
metodicamente, em estilo tão formoso e por vezes tão arrebatador,
que bem podem dispensar outros livros para que se contemple,
em todo o esplendor da sua majestade e grandeza sobrenatural,
a prodigiosa ciência do grande luminar da Idade Média. O Padre
Monsabré soube amenizar com as belezas e os perfumes da sua
palavra eloquente, a severa austeridade das fórmulas didáticas e
as difíceis concepções filosóficas da escolástica-tomista, para cuja
compreensão é necessário aturado estudo e profunda meditação.
Através do vestido luminoso em que o Padre Monsabré envolveu
os mais altos e transcendentes conceitos da doutrina tomista,
contempla-se mais facilmente a verdade daqueles conceitos, a luz
que os inunda e que, projetando-se sobre o espírito, torna mais
viva a sua fé e mais firmes as suas crenças. São estas Conferências
como um límpido espelho onde se refletem os esplendores da
ciência aquinatense; um formosíssimo jardim onde as flores
exalam o suavíssimo perfume dos dogmas cristãos, em toda a
luz com que Santo Tomás os ensinou e vingou; um esplêndido
firmamento onde se podem contemplar, sem véu que lhes empane
o brilho com que o erro tentou ofuscá-las, as crenças dulcíssimas
do símbolo católico. Ao contemplar aquele espelho, ao percorrer
aquele jardim, ao fitar aquele céu, o espírito eleva-se naturalmente
a Deus, para glorificá-lo nas verdades que se dignou revelar-nos e
na ciência dos que no-las mostram tão razoáveis e tão conformes
com a verdadeira ciência.
Lancemos uma rápida vista d’olhos sobre estas imortais
Conferências, a que o autor deu o título geral de Exposição do
Dogma Católico, começadas na Quaresma de 1873.
Credo in Deum Patrem Omnipotentem creatorem coeli
et terrae... tais são as palavras com que o sábio dominicano
inaugura as suas Conferências: e depois de uma resumida quanto
formosíssima exposição do dogma católico, começa o estudo tão
transcendente como importante da existência de Deus e da sua
personalidade, combatendo os monstruosos erros do panteísmo,
do determinismo, do positivismo, do deus matéria, que é o resumo

17
de todos estes delírios, com uma ciência, eloquência e rigor lógico
tais que os lábios repetem insensivelmente este doce acento da fé:
credo in Deum.
Em 1874, estuda o Ser divino nas suas perfeições infinitas,
a vida fecundíssima de Deus, uno em essência e trino em pessoas,
o mistério adorável da Trindade Santíssima, e a manifestação
esplêndida dos atributos divinos na grandiosa obra da criação.
Em 1875, a doutrina católica sobre a gênese do mundo;
absurdos do transformismo e evolucionismo; harmonia admirável
do mundo, onde tudo está disposto em número, peso e medida; o
mundo invisível; natureza do homem, sua formosura e grandeza,
terminando com o estudo da vida divina no homem, estudo que
é como que a cúpula e o remate do grandioso edifício da obra de
Deus no tempo e no espaço.
Em 1876, o governo do mundo, a soberania do governo
divino e a liberdade, a imutabilidade das leis do governo divino e
a oração, a infalibilidade, a santidade do governo divino e o mal,
a predestinação e a graça, a ação da graça.
Em 1877, o admirável plano da Encarnação do Verbo,
estado primitivo do homem, existência e transfusão do pecado
original, a Encarnação do Verbo no seio imaculado de Maria.
Em 1878, a doutrina católica acerca de Jesus Cristo,
Homem-Deus, a possibilidade da Encarnação, a união hipostática
das duas naturezas de Cristo; numa palavra: um tratado completo
da mais transcendente Cristologia.
Em 1879, os atributos de Jesus Cristo como Deus e como
homem, a comunicação de idiomas, as dores de Jesus Cristo e
o sacerdócio eterno que estabeleceu como supremo Sacerdote
segundo a ordem de Melquisedeque e como Redentor do gênero
humano.
Em 1880, Jesus Cristo na sua infância, na oficina de
Nazaré, como doutor, taumaturgo, mártir e vencedor da morte e
do pecado.
Em 1881, a redenção da humanidade e a obra prima
da redenção, a Igreja com as suas notas de unidade, santidade,
catolicidade e apostolicidade.

18
Em 1882, a autoridade suprema da Igreja personificada
no Pontificado romano, o magistério, o ministério e o império da
Igreja.
Em 1883, a instituição dos sacramentos, como canais por
onde são comunicados ao homem os merecimentos infinitos da
redenção; o batismo e a confirmação.
Em 1884, a eucaristia como sacramento e como sacrifício,
os frutos admiráveis, verdadeiramente divinos da comunhão.
Em 1885, a penitência e a extrema-unção.
Em 1886, a ordem, o sacerdócio, a dignidade do padre, os
deveres e os direitos do padre, o princípio gerador do sacerdócio,
os inimigos do sacerdócio.
Finalmente, em 1887, o ensino da Igreja sobre o
matrimônio, meio legítimo instituído por Jesus Cristo para a
constituição da família cristã, e a impugnação do divórcio, que as
leis anticristãs querem proclamar nas sociedades modernas.
No desenvolvimento de todo este plano vastíssimo,
o orador, que é também filósofo, teólogo e homem de ciência,
mostra-se profundamente versado nos arcanos da doutrina de
Santo Tomás, é esta doutrina a que ele de preferência invoca,
expõe, explana, demonstra e vinga, para tornar críveis e razoáveis
os sublimes mistérios da nossa fé. Não há erro, não há heresia,
não há sistema anticristão que o Padre Monsabré não combata
e pulverize com uma lógica de fina têmpera, envolvida numa
linguagem de fogo. Às vezes parece São Paulo trovejando no
Areópago.
Das Conferências do Padre Monsabré sai triunfante a
revelação divina unida em santa aliança com a ciência humana;
mais vívida a luz da nossa fé, mais animada a nossa esperança,
mais fervorosa a nossa caridade. Na França, na Itália, na Espanha,
em toda a parte, são estas Conferências a admiração e o assombro
dos sábios, o vade mecum dos oradores sagrados, um tesouro
inesgotável para o filósofo e para o teólogo, e ainda um fogo
de vivíssima luz para todos os que deveras desejam instruir-se
nas verdades da religião católica, e conhecer a formosura que a

19
distingue e as riquezas infinitas que Deus depositou no seio de
amor.
Oxalá que estas imortais Conferências produzam em
minha pátria amada os frutos que têm produzido em toda parte
onde são conhecidas.

Coimbra, 29 de setembro de 1887.

O Tradutor.

20
Primeira Conferência

Ideia Geral do Dogma Católico


Primeira Conferência

Ideia Geral do Dogma Católico

Credo in Deum patrem omnipotentem,


Creatorem cœli et terræ.
Creio em Deus-Pai todo poderoso
Criador do céu e da terra.

Monsenhores, Senhores3,

Deveis lembrar-vos, certamente, de que ano passado,
neste mesmo tempo, vos manifestei o meu desejo de encetar uma
exposição razoada do dogma católico. Então, sacrifiquei este
desejo às vossas preocupações; hoje, peço-vos que sacrifiqueis
as vossas preocupações ao meu desejo. Não quero esperar mais
tempo, porque, se depois de termos chorado as nossas desgraças, é
de razão que nos ocupemos em curar as nossas chagas, parece-me
que a chaga que, com mais urgência, pede remédio, é a ignorância
religiosa e a decadência do sentimento cristão. Na raça dos
blasfemos alguns há, sem dúvida, que conhecem o que detestam
e amaldiçoam; é certo porém que a maior parte é constituída por
aqueles que não lograram contemplar os esplendores divinos
da verdade quando as aspirações do seu espírito, ainda puras,
procuravam a luz. Deslumbrados com o brilho de vãos fulgores,
satisfeitos de conhecimentos superficiais e secundários, a que dão
o nome de ciência, afastam-se constantemente da verdade para
se subtraírem à irradiação dos princípios divinos. Dificilmente

3 Estavam presentes à conferência: Monsenhor Guibert, Arcebispo de Paris, e Monse-


nhor Jeancart, Bispo de Cérame.

23
poderá o nosso ensino alcançá-los, mas nem por isso nos devemos
remeter ao silêncio. Quantas almas vacilantes ou mal instruídas
têm necessidade da nossa palavra!
Creio, senhores, que não vos injurio afirmando que, para
um grande número dentre vós, a ciência das coisas divinas se
reduz a elementos há muito adulterados pelo fatal influxo de erros,
de opiniões temerárias, de preocupações, de paixões, de prazeres,
de negócios, de acontecimentos que, com vertiginosa rapidez, se
sucedem em nossa agitada época. Os mais inteligentes, os melhor
instruídos na ciência humana e os mais experimentados não
escapam a essa diminuição da luz e do sentimento cristão, donde
fluem a indiferença e o olvido; da indiferença e do olvido fluem as
transigências com o erro; destas transigências, o enfraquecimento
da moralidade pública. É isto, entendei-o bem, o que tem atraído
sobre nós esses golpes, cujos vestígios sangrentos ainda subsistem
em nossos corpos e em nossas almas.
Escarmentados pelas nossas desgraças, conhecemos
que soou alfim a hora da nossa regeneração; mas não há realizar
uma regeneração sólida e estável, se não é informada pela nossa
regeneração religiosa. E pois que a série dos atos humanos tem
o seu princípio na luz, é de necessidade que abrais as vossas
almas à luz, à plenitude da luz que só na verdade católica podeis
encontrar. Ponhamos pois de parte as preocupações, e comecemos
resolutamente a exposição dos nossos dogmas. Encaremos de
frente esse símbolo que os vossos lábios infantis pronunciavam
outrora, quando, no alvorecer da vida, repousáveis no regaço
de vossas mães. O que então acreditáveis com o vosso coração,
crede-o agora com toda a vossa inteligência.
Ó Deus, que amais as almas e que vos dignastes
comunicar-me uma centelha do vosso santo amor, confio
inteiramente em vós, na missão sublime e salutar que ora
começo. Enquanto eu trabalho por fora, trabalhai Vós por dentro;
enquanto eu exponho o dogma católico, incrustai-o Vós mesmo
nos espíritos e nos corações; e, à medida que a verdade se for
desdobrando, fazei que as almas dos que me ouvem, convencidas
pela luz divina, exclamem: Credo! Creio!

24
Senhores! De vários modos se manifesta a nossa admiração
pelas maravilhas da arte. O que desde logo nos impressiona é o
conjunto, isto é, a resultante harmônica das proporções e das
linhas. As minuciosidades só prendem a nossa atenção depois de
terem desempenhado um papel obscuro, se bem que eficaz, na
síntese donde flui a misteriosa e súbita impressão, que se apodera
de toda a nossa alma. Entramos, por exemplo, nesta soberba
metrópole. A beleza que simultaneamente ressalta de todos os
pontos detém-nos nos seus umbrais. Sem descer ao exame das
particularidades, contemplamos o conjunto, e esse conjunto
arrebata-nos. Só depois dum largo arroubamento, a nossa alma,
cheia já de admiração, vai, em piedosa peregrinação, pedir a cada
pedra do edifício novas revelações, novas sensações e indeléveis
lembranças. Magnificências da arte, maravilhas do gênio, o que é
tudo isto ante a majestade do edifício que Deus construiu com a
sua palavra, e a que nós chamamos dogma católico? Também este
se revela à nossa alma e a transporta pelo harmônico esplendor
do seu conjunto, e pela maravilhosa perfeição de cada uma das
suas partes.
Admiramos porventura a beleza das partes sem
previamente termos admirado a beleza do todo? Não, senhores.
Eu tenho necessidade de uma primeira impressão que prepare
o meu ensino. Parece-me pois necessária uma ideia geral do
dogma católico, assim para enlaçar as questões que me proponho
tratar diante de vós, durante muitos anos, se a Deus aprouver
conservar-me a vida e se aqueles de quem depende a minha
missão determinarem que a continue, senão também para vos
pôr ao abrigo de surpresas intelectuais que extraviem a vossa
atenção. Conhecendo sempre qual o ponto de partida e qual o
termo a que vos dirigis, escutareis a minha palavra com espírito
mais tranquilo e mais dócil. Ainda mais: escutá-la-eis com um
coração mais respeitoso; porque as vantagens de uma preparação
didática serão realçadas por um argumento de ordem superior,
o argumento estético, baseado sobre a incomparável excelência
das verdades, cuja síntese ides hoje contemplar. Facilmente
compreendereis que vamos entrar num mundo divino.

25
I

Meus senhores; da ideia primordial e fundamental de


ser, fluem duas ideias que, em todos os tempos, preocuparam
vivamente o espírito humano e que foram o objeto das suas mais
levantadas e constantes aspirações; a ideia do infinito e a ideia
do finito. Não há doutrina filosófica nem religiosa cujos artigos
não possam agrupar-se em torno desta simples proposição:
dados estes dois termos, finito e infinito, explicar as suas relações.
Com efeito, a vida humana, a vida do mundo inteiro, depende da
solução deste problema. Os mesmos que se gloriam de não dar-
lhe importância, veem-se colocados diante dele, impelidos pela
força invencível das ideias, que são como que o fundo do nosso
espírito, e pelas aspirações que nos estimulam a conhecer o que
somos e a determinar o nosso lugar, as nossas funções e os nossos
destinos na universalidade dos seres.
Às questões: o que é o infinito? O que é o finito? Quais as
suas relações? Nós respondemos com sistemas, a Igreja Católica
responde com o seu Símbolo, e, independentemente dos sinais
externos que as impõe ao obséquio da nossa fé, as soluções que a
fé nos subministra são tão evidentemente divinas, que eclipsam
todas as soluções inventadas pela nossa inteligência.
Mas não nos antecipemos, nem deduzamos conclusão
alguma antes que o aspecto geral do dogma católico haja
produzido o seu efeito em nossas almas. Humilde guarda deste
esplêndido edifício, quero que, antes de tudo, admireis o seu
conjunto; depois comunicaremos reciprocamente as nossas
reflexões.
O infinito é Deus, Ser primário, necessário, real, pessoal,
subsistente em si mesmo e por si mesmo, tendo na sua mesma
essência a razão suficiente do seu Ser, bem como a razão suficiente
do ser de todas as coisas. Só Ele é Deus; não há nem pode haver
outro. O seu Ser, a sua essência, a sua substância, a sua natureza, a
sua existência, a sua vida, os seus atributos, as suas operações são

26
um mesmo ato: ato tão simples, tão puro, que nem o podemos
conceber, nem exprimir. Se chamamos a Deus o Ser Vivo, o
Forte, o Todo-Poderoso, o Senhor, o Eterno, o Altíssimo, estes
nomes são realmente verdadeiros, santos, terríveis, admiráveis;
mas nem cada um deles por si, nem todos simultaneamente,
exprimem a plenitude da verdade, e da santidade, e da majestade,
e da beleza que constitui o Ser divino. Com uma palavra, cujos
abismos profundos em vão tentamos sondar, Deus se definiu a si
mesmo: Eu sou Aquele que sou. Ego sum qui sum4; o ser na sua
mais transcendente e incompreensível expressão. Se o comparais
à multiplicidade dos seres, está presente em todos os lugares sem
se dividir. Se o comparais ao tempo, é eterno sem que os instantes
o meçam nem se sucedam em seu seio.
Não tem faculdades que o distingam da sua substância, e
é por isso que opera com uma perfeição infinita, e nada adquire
nas suas operações. Sabe tudo que é, e tudo que não é; tudo que
pode ser, e tudo que será. A verdade não aparece n’Ele como em
límpido espelho que a reflete; mas Ele é a verdade mesma5. A sua
ciência não é causada pelo que existe, senão tudo que existe é
causado pela sua ciência6; ciência eterna, imutável, simultânea,
direta, imediata, que não pode nunca enganar-se. A sua vontade
é soberana, mas de uma soberania absoluta. Nada há que possa
dobrá-la ou torná-la mutável; ainda mesmo que, cedendo
às nossas orações, modifique as suas obras, os seus decretos
permanecem imutáveis7; previu tudo. É livre no meio da instante
necessidade. Não tem outra medida além do seu poder, e o seu
poder é sem medida.
É sábio, e como vê todas as coisas em um só princípio,
ordena todas as coisas a um único fim: Ele mesmo; todos os
meios se combinam harmonicamente sob a sua direção; nem a
ignorância nem a má vontade alteram os seus desígnios.

4 Êx III, 14.


5 Deus novit ut veritas. (S. Bernardo, liv. V, de Considerat.)
6 Non ista quae fecisti videmus quia sunt, tu autem quia vides ea sunt (Sto. Agost. Conf.
Liv XII, cap. ult.)
7 Opera mutat non consilium (Sto. Agost.)

27
É santo, não de uma santidade adquirida com esforço e
trabalhada, que não se pode conservar nem aumentar senão à
custa dos mais rudes sacrifícios, mas de uma santidade tranquila,
inalterável, plena, essencialmente isenta de todo o mal, e
constantemente manifestada pelo amor invariável e eficaz de toda
a retidão e de todo o bem.
É justo, e, na imensa variedade de direitos que parecem se
contradizer, dá a cada um o que lhe pertence. Não há merecimento
que não premie, nem falta que não castigue. Os nossos cálculos
mesquinhos podem enganar-se pelas dilações da sua paciência;
mas em nada se altera a perfeita integridade da sua justiça, que
será plenamente realizada nas derradeiras conclusões do seu
governo.
É bom não só porque é o Bem supremo, mas porque,
sendo o Bem supremo, deseja comunicar-se e liberalizar, do seu
Ser e das suas perfeições, benefícios constantemente renovados e
compadecer-se de todas as misérias (tanto quanto o permite a sua
inalterável natureza).
É, alfim, perfeito, e, por mais perfeito que o concebamos,
nunca poderemos sinalar limites à sua perfeição. É o infinito!
Este infinito, senhores, vive, não essa vida comum a
todos os seres vivos e que parte de dentro para fora, mas uma
vida sem igual, cujo movimento parte de dentro e termina
dentro; uma vida em que as origens dependem dos princípios,
sem que possa afirmar-se que aquelas são posteriores a estes; uma
vida que multiplica o número sem quebrar a unidade, as pessoas
sem multiplicar a natureza, a família sem dividir nem aumentar
a substância. Não há mais que um infinito; e todavia são três, Pai,
Filho e Espírito Santo; três que subsistem numa mesma essência,
e existem com uma mesma existência: as três pessoas são Deus,
portanto, um só Deus. Eis o dogma dos dogmas, o mistério dos
mistérios. Explicá-lo é impossível: ouso apenas narrar o que
admiro.
O Pai inascível é o princípio do movimento vital, a
origem da família divina. Vê-se a si mesmo, manifesta a si mesmo

28
a sua perfeição, e o ato pelo qual se vê e se conhece é tão perfeito,
que subsiste por isso mesmo que é produzido. O Filho é gerado.
Chama-se Verbo, imagem do Pai, esplendor da sua glória, figura
da sua substância, porque representa com toda a perfeição
possível o princípio donde procede. São dois, contemplam-se,
admiram-se, amam-se, e estes dois amores comunicando-se um
ao outro encontram-se, e pelo fato de se encontrarem, subsistem
num só amor; é o Espírito Santo. Chama-se dom, caridade,
bondade, benignidade, suavidade, unção divina.
São três: Pai, Filho, Espírito Santo; distintos pelas
relações, pela subsistência, pelas propriedades pessoais; idênticos
pela essência, pela substância, pela natureza. Distintos, e todavia
um existe no outro; dependentes pela origem, porque o Filho
é gerado pelo Pai, o Espírito Santo procede do Pai e do Filho;
dependentes pela missão, porque o Padre envia o Filho, o Pai
e o Filho enviam o Espírito Santo. Mas não obstante tudo isto,
as três divinas pessoas são perfeitamente iguais. Oh, Vida! Oh,
processões admiráveis! Não se pode dizer que começam, porque
são necessárias e eternas; não se pode dizer que saem fora de Deus,
porque são imanentes; não se pode dizer que mudam a natureza
divina, porque são tranquilas e imaculadas; não se pode dizer
que diminuem ou dividem as perfeições, porque são indivisíveis.
No seu movimento espontâneo há tanta ordem, tanta beleza,
tanta glória e tão acabado cúmulo de todos os bens, que tornam
Deus, ser supremo, o supremo bem-aventurado. Oh, infinito! Eu
te admiro cheio de assombro, eu te adoro com o mais profundo
respeito!
Eis o infinito, senhores; mas onde está o finito?
Procuremo-lo desde já na sua origem eterna. O finito está no
infinito, e pode dizer-se que a primeira relação que tem com
ele é o ser conhecido, visto, ordenado por ele, antes de subsistir
fora dele. Não podemos dar ao finito o seu nome próprio
enquanto permanecer em estado de ideia, porque esta ideia é,
substancialmente, a mesma essência divina, e, formalmente,
o que Deus quer manifestar da sua essência na sua obra, por

29
participação e imitação. Unido a esta ideia há um decreto eterno,
livre, eficaz, donde depende a existência de todas as coisas. O que
é que insta pela execução deste decreto? É a beleza dos mundos
que Deus concebe? Arrebatado pelas sublimes harmonias das
coisas que vê em si mesmo, julga porventura adicionar algo à sua
felicidade fazendo-as passar da ideia à realidade? Não, senhores.
Deus seria sempre o supremo bem, ainda que tivesse conservado
eternamente no seu seio todos os seres. Mas Deus é bom e deseja
comunicar-se porque é o soberano Bem; o seu amor impele-o a
associar outros seres à sua felicidade: vai criar.
Vai criar! E dando a outros a existência, nada perderá da
sua própria. Vai criar! E comunicando o seu Ser e a sua perfeição,
nem aquele nem esta perderá algo. Vai criar! E por mais que
prodigalize os frutos da sua bondade e da sua onipotência, não se
confundirá com eles, nada adquirirá deles, será sempre tudo sem
eles, e eles nada serão sem Ele.
Criou! Povoa-se o céu, o espaço imenso abre o seu seio,
o tempo começa. O Verbo, Palavra de Deus, produz o mundo.
E a cada palavra que pronuncia, sucedem-se os seres como
ondas harmoniosas, cujo movimento, e vida, e beleza, e glória se
engrandecem até tocar os limites do mundo angélico. O número,
o peso, a medida, distribuem, regulam, determinam todas
as perfeições sobre a escala progressiva que une em formoso
conjunto estes dois polos da criação: a matéria e o espírito. Que
distância entre o grosseiro elemento sujeito a leis inflexíveis e as
inteligências puras, cujos coros harmoniosos recebem uns dos
outros os raios do eterno Sol!
Mas nesta distância não há abismo algum que não esteja
povoado.
As substâncias incorpóreas de que Deus rodeou o seu
trono, superiores ao mundo visível pela perfeição da sua natureza
e das suas operações, decrescem e diminuem em perfeição, desde
o mais abrasado serafim até o mundo dos anjos, aproximando-
se das criaturas sobre as quais devem exercer a sua alta e salutar
missão. Por outra parte, o átomo, saído dos confins do nada, sobe

30
sem cessar, transformado, sucessivamente, pelo movimento e
pela vida, até unir-se imediatamente com o espírito e até ligar e
completar num só ser a perfeição do finito.
Este ser, depois de cuja aparição Deus exclama: “Todas
as coisas são boas, perfeitamente boas”, cuncta sunt valde bona,
é o homem, laço maravilhoso, concorrência sublime de todas as
vidas. Os seus pés estão fixos na terra, mas a sua fronte levantada
olha para o céu. É matéria, como o mundo que tem sob os seus
pés; mas é também espírito, como os anjos que descem até ele.
Gravita, vegeta e sente; mas também pensa e quer; é livre, conhece
a verdade e ama o bem. É medido pelo tempo e pelo espaço, mas
participa do eterno, do necessário, do universal, do inteligível.
Recebe as impressões do mundo inferior, mas transforma-as,
e faz pensar e orar nele todos os seres de que é rei e pontífice.
Contempla as coisas que passam, e sente-se arrastado por suas
correntes; mas também alimenta em seu coração o desejo e a
esperança certa da imortalidade.
A sua imortalidade é a vida no infinito, porque, entendei-o
bem, senhores, Deus não abandona o homem aos caprichos do
azar e à mercê dum cego destino; convida-o para o seu seio; e
para o levar a si, respeitando o seu livre alvedrio, cobre-o com
a sua providência, senhora de todos os seus movimentos, que
excita com soberana autoridade, e dirige com arte infinita, e o
faz caminhar para o fim supremo, onde se consuma juntamente a
glória do Criador e a felicidade das criaturas. Deus eleva este fim
supremo, por um dom gratuito da sua bondade, acima de todas
as legítimas exigências da natureza. Quer ser conhecido, amado,
possuído, não nas representações sempre incompletas da sua
infinita beleza, mas face a face, tal como é, em todo o esplendor
da sua glória e em toda a perfeição da sua essência. Oceano
sem praias, quer que a alma humana se engolfe em suas ondas
luminosas, para a inebriar com as suas castas e eternas delícias.
Mas para que esta união se possa realizar, é necessário
que a natureza sofra aqui uma transformação que a prepare para
a sua transformação suprema. A inteligência, o amor, a liberdade,

31
a imortalidade, ser imagem e semelhança de Deus, não bastam
para que o homem, atravessando todas as esferas do finito, seja
um dia consumado no infinito e como que participante da sua
vida bem-aventurada. Vem pois, princípio de toda a vida, de
toda a felicidade, vem e faze que a criatura se assemelhe a ti tanto
mais quanto és tu mesmo que a animas com a graça. A graça,
semente misteriosa que transforma o homem num novo ser;
a graça, inefável geração que permite ao homem dizer a Deus:
“meu Pai”, porque se torna participante da natureza divina; a
graça, dom sobrenatural que penetra a alma e a torna imediata e
formalmente justa, santa, agradável a Deus, capaz de merecer por
suas obras a visão e a posse da eterna beleza; a graça, princípio
e raiz de hábitos e de operações divinas; a graça, força, luz, rio
sagrado que vai diretamente ao oceano da perfeição; a graça,
habitação de Deus na alma; a graça, começo da glória e da eterna
beatitude.
Oh, senhores, que fecunda doutrina! Não vos parece que
resolve desde já, com esplendor incomparável, estas questões que
nos torturam: o que é o infinito? O que é o finito? Quais as suas
relações? O infinito é o Deus perfeito, autor, motor e consumador
de todas as coisas, o finito é a criatura de Deus, essencialmente
dependente não só na sua origem e nos seus movimentos, mas
também nos seus destinos. A suma das soluções parece completa,
e entretanto, senhores, vós o sabeis, o dogma católico contém
outras afirmações que, sob as misteriosas dobras das que acabais
de ouvir, mais se aproximam da nossa miséria.
A nossa miséria é o pecado. Começou nos céus, pela
revolta dos espíritos orgulhosos que pretendiam igualar-
se ao Altíssimo; entrou, pelas sugestões destes malditos, na
humanidade, cuja glória e felicidade invejavam. O pai dos homens
perdeu livremente a graça da salvação espiritual e corpórea, bem
como os privilégios que devia transmitir aos seus descendentes;
e desde então, nascemos deserdados e feridos de morte. A nossa
fronte, despojada do seu diadema, inclina-se tristemente sobre a
natureza ingrata e rebelde ao nosso domínio; o mundo exterior

32
esforça-se por nos atrair a si; a nossa carne revolta-se contra as
altas e puras aspirações do nosso espírito; a nossa liberdade,
esmorecida, rende-se e capitula nesta luta; o dever, traído,
acusa-nos; de justos, felizes, impassíveis e imortais que éramos,
tornamo-nos pecadores, miseráveis, condenados ao sofrimento e
à morte.
E Deus podia deixar-nos neste estado para satisfazer a
sua justiça, podia exercer a sua bondade sobre seres novos e fazê-
los entrar gloriosamente no seu plano primitivo, contra o qual
nos revoltamos. Mas não; a vitória do pecado seria aniquilada
pela perfeição divina. Surge um novo plano; não disse bem,
senhores, devia dizer: revela-se um desígnio oculto e completa as
manifestações da bondade de Deus sobre as criaturas, porque o
pecado estava previsto e a economia da redenção decretada nos
eternos conselhos. O Verbo Divino, querendo unir-se ao finito
para nos fazer compreender a harmonia das perfeições divinas
— a sabedoria, a onipotência, a justiça e a misericórdia —, tinha
empenhado, desde toda a eternidade, a sua palavra ao Pai celestial.
No mesmo tempo em que o gênero humano se tornava
prevaricador, Deus lhe revelava o complemento da sua obra
fazendo-lhe aparecer, no futuro das idades, a figura radiante do
Verbo encarnado. Os séculos, os espaços, os homens, o mundo,
tudo se ordena a Ele. A graça do renascimento e da salvação, que
deve substituir a graça original perdida para sempre, depende
dos seus merecimentos. À questão: quais as relações entre o
infinito e o finito? Foi necessário responder: o finito é purificado,
regenerado, santificado, divinizado pelo infinito, vivendo com
Ele numa só pessoa, Jesus Cristo, Filho único de Deus, Deus de
Deus, luz de luz, verdadeiro Deus e verdadeiro homem.
Quarenta séculos de preparações precedem o seu
nascimento. As tradições, os oráculos, as maravilhas, os desejos,
as virtudes, os crimes, as revoluções, as catástrofes, convergem
para o seu berço, e, quando vem a plenitude dos tempos, o
Espírito Santo fecunda, pelas suas castas operações, o seio de uma
Virgem, e o coro dos anjos canta no céu: “Ó terra, eu te anuncio

33
uma grande alegria, hoje nasceu o Salvador do mundo”. O Verbo
encarnou. “Comércio admirável”, exclama a Igreja, “o Criador do
gênero humano assume um corpo como o nosso, e, nascendo
milagrosamente d’uma Virgem, comunica-nos a sua divindade”8.
Com efeito, senhores, a Encarnação do Verbo revela-
nos o duplo mistério do infinito diminuído à nossa miséria, e o
mundo divinizado pela mais íntima união que pode conceber-
se. Não se trata desse concurso universal que o Senhor da vida
presta às criaturas, nem da união moral que se estabelece entre
Deus e o justo, cheio de graça; não se trata da confusão de duas
substâncias que se penetram para formar uma nova substância,
nem da ação circunscrita, transitória, intermitente de um espírito
superior sobre um espírito inferior, como na inspiração profética;
mas sim da mais perfeita das uniões que Deus pode realizar com
uma criatura; trata-se da união profunda, contínua, permanente,
sublime, incompreensível, da natureza divina com a natureza
humana; união que, segundo a expressão do Apóstolo, resume
todos os mundos, torna divinas, infinitas — no sentido mais
estrito e completo —, todas as ações de uma natureza finita; união
que permite a um filho do homem dizer a um Deus o que lhe diz
o Pai que o gerou desde toda a eternidade: “meu filho”, união em
virtude da qual o gênero humano tem direito de dizer ao Filho de
Deus: “somos teus irmãos”.
Nasceu este amável e pequenino irmão, e, ainda que no
seu pobre presépio nos ofereça a imagem da maior debilidade e
da mais profunda indigência, é rico e possui todas as perfeições.
A sua alma, banhada na luz que é a nossa bem-aventurança,
vê todos os segredos divinos; a sua ciência não tem aurora,
entretanto, parece crescer em sabedoria ao passo que cresce em
idade. É a inteligência suprema, entretanto, não quer ensinar ao
mundo senão o que o seu Pai o ensinou. Vive no meio dos seus
e os seus não o reconhecem, entretanto, passa fazendo o bem; a

8 O admirabile commercium! Creator generis humani animatum corpus sumens de Virgine
nasci dignatus est, et procedens homo sine semine largitus est nobis suam deitatem. (Ofício
da Circuncisão)

34
sua onipotência é a humilde serva do seu amor. Está engolfado
nas delícias da união divina, entretanto, digna-se assumir as
nossas misérias, mesmo até a semelhança do pecado. Por causa
desta semelhança, o Deus que o ama como a si mesmo, o fere sem
piedade. Sofre, chora, geme, queixa-se, enchem-no de ignomínias,
sua sangue por todos os poros do seu corpo sacrossanto, é
cravado numa cruz infame; morre amaldiçoado e desonrado.
Consummatum est: tudo está consumado. As perfeições divinas
brilham no coração martirizado do Filho de Deus como um fogo
amortecido, desde largo tempo, pelos nossos crimes; a sabedoria
e a onipotência, reveladas por obras indizíveis, conciliam a justiça
e o amor compassivo; o gênero humano está salvo, e Jesus Cristo,
seu Salvador, é para sempre o seu Senhor, o seu rei, a sua vida.
Assim como Deus não abandona o mundo que criou,
assim também o Homem-Deus não deixa entregue aos seus
caprichos o mundo que regenerou. Governa-o, é o seu reino,
reino cujos elementos preparou durante a sua vida mortal, e ao
qual pôs o selo do Espírito Santo; vivifica-o, é o seu corpo. Ainda
que sentado no céu à direita de seu Pai, Jesus Cristo está presente
na sua Igreja. A soberania e a autoridade infalível do Chefe estão
representadas nesta Igreja santa, católica e apostólica; e a torrente
purpúrea do seu sangue corre superabundantemente na mesma
Igreja. Jesus Cristo informa os nossos passos no caminho da
verdade e da lei, enquanto que invisivelmente nos comunica,
como a cabeça aos membros do corpo, as correntes da vida.
Anima-nos, comunica-nos a plenitude da graça, apodera-se do
princípio das nossas ações, das nossas próprias ações, transforma-
as, apropria-se delas e imprime-lhes o selo da divindade. Somos
n’Ele um mesmo corpo, cujos membros estão, de um modo
sublime, numa perpétua comunhão de orações, de boas obras e
de merecimentos; do céu à terra, da terra aos abismos onde os
justos esperam a hora do seu resgate.
Por meio de sinais sensíveis, sagrados e eficazes,
Jesus Cristo, cabeça da humanidade cristã, chama a si os seus
membros, e dá-se a conhecer. Uma matéria humilde se une às

35
palavras, e eis o sacramento; a vida divina precipita-se na alma
desde que o sinal se põe em contato com o corpo. Um sacramento
faz-nos nascer para a graça; outro nos comunica os encantos e o
vigor da adolescência espiritual. Um sacramento nos alimenta;
outro nos purifica das nossas faltas; um outro apaga até os
últimos resquícios de culpa, e nos prepara a entrada tranquila na
eternidade. Um sacramento dá à sociedade espiritual o seu chefe,
o seu rei: o sacerdote; um outro santifica as fontes da vida, e enche
a sociedade temporal de famílias segundo o coração de Deus.
São sete como as cores da luz, sete como as notas da
música; mas o sacramento central onde real e substancialmente
reside o eterno Sol, o Verbo por meio do qual Deus canta as
suas perfeições infinitas, ordena a si todos os outros, já como
preparação, já como simbolismo. A eucaristia é como que a nota
dominante que modula a escala misteriosa dos signos divinos.
Assim é que chegamos ao termo da nossa peregrinação
sobre a terra; e ainda ali se nos apresenta o Homem-Deus, Jesus
Cristo. É Ele o vencedor da morte; o sol da vida que projetará a
sua luz até ao fundo de todos os sepulcros humanos, reunirá o pó
disperso dos nossos corpos e lhe comunicará a virtude da própria
ressurreição. É Ele quem nos ensinará a cantar esta formidável
sátira das supremas derrotas da morte: O mors, ubi est victoria
tua? O mors, ubi est stimulus tuus? Ó morte, onde está tua vitória?
Ó morte, onde está o teu aguilhão? Ele presidirá o nosso juízo e
pronunciará a nossa sentença, levará aos céus os benditos de seu
Pai, e condenará os malditos aos suplícios eternos. Ele reunirá
num lugar todas as gentes espalhadas pela superfície da terra,
para uma palingenesia gloriosa, revestirá suas almas de uma luz
indefectível e torná-las-á dignas moradas — e para sempre —
dos nossos corpos ressuscitados e imortais. Ele entoará este grito
triunfal, eternamente repetido pelos inumeráveis exércitos dos
escolhidos. Louvado seja Deus: Alleluia.
Eis aqui, senhores, todo o dogma católico. Recolhei-vos
por instantes, eu vos suplico, antes de ouvirdes as conclusões
que vou deduzir da consideração deste maravilhoso conjunto.
Prometo-vos que serei breve.

36
II

Se nada vos comove, senhores, no aspecto geral do


dogma católico, é evidente que tendes necessidade de recorrer
às provas apologéticas donde flui esta verdade que nos obriga
a crer: Deus falou. As profecias, os milagres, as tradições, os
testemunhos, impõem-se à nossa razão e, com o seu auxílio, não
há verdade alguma, das precedentemente enumeradas, que não
devamos aceitar. Mas se participais da impressão que eu mesmo
experimento em presença do magnifico conjunto dos nossos
dogmas, não vades mais longe. A vossa alma foi criada para
compreender o belo, e o belo é o esplendor da verdade.
Digo-vos com sinceridade, senhores, e se apelais para a
retidão do vosso coração e do vosso juízo, pensareis como eu: de
todas as maravilhas que povoam o universo, de todas as que a
história escreveu nas suas páginas, nenhuma há que iguale, aos
meus olhos, a maravilha do dogma católico em si mesmo. Como as
leis harmônicas do mundo, como as suas admiráveis suspensões,
o dogma católico responde a esta questão: Quis fecit ista? Quem
fez tudo isto? Foi Deus. O Padre Lacordaire tinha razão quando
dizia: “O cristianismo é inimitável, por consequência, divino. A
sua grandeza é tanto maior, quanto mais o comparamos; a sua
unicidade avulta e sobressai tanto mais, quanto mais numerosos
são os seus êmulos; é tanto mais fácil de reconhecer, quanto mais
distinto é. Ainda que brilhassem mil estrelas no firmamento da
religião, como no firmamento da natureza, não descobriríamos lá
senão um astro soberano”9.
Voltemos porém à comparação com a qual começamos
esta Conferência. O dogma católico, dissemos nós, é um edifício
intelectual. Pois bem, tudo nele é divino: a grandeza e a majestade
das suas formas, a pureza das suas linhas, a harmonia das suas
proporções. Não vedes vós como se eleva a uma altura infinita,
muito além da que a razão pode conceber? Alcanço o dogma

9 Conf. de Notre Dame. 49 Conf.

37
da existência de Deus, chego ao conhecimento imperfeito das
perfeições incriadas pelo espetáculo das coisas criadas; mas
posso eu conceber o mistério da vida divina, a inarrável geração
do Verbo, a processão do Espírito Santo, as três pessoas numa
natureza indivisível e indivisa? Encontro um ponto de união
entre o finito e o infinito; mas posso conceber como a unidade
destes dois termos se realiza numa única pessoa sem que fiquem
confundidos? Compreendo o dever, a retidão da consciência, o
esplendor da virtude; mas posso eu conceber que o próprio Deus
habite na minha alma pela graça, e que me torne participante da
sua natureza e das suas operações sacrossantas? Quero reparar
o mal moral; mas posso conceber que a justiça divina não ficará
satisfeita senão pelos abatimentos e pelas dores dum Homem-
Deus? Compreendo a unidade religiosa; mas poderei conceber
que esta unidade será realizada pela incorporação mística com
o Verbo encarnado, transformador e divinizador dos atos mais
humildes da sociedade cristã? Tenho a certeza do influxo divino;
mas posso eu conceber que o homem deva nutrir-se e alimentar-
se de Deus? Espero a bem-aventurança depois desta vida cheia
de tribulações e misérias; mas posso eu conceber que Deus se me
revele tal como é, em todo o esplendor da sua glória, e que torne
o meu pobre coração possuidor da sua essência? Ó doutrina
sublime! Eu te cria sem dificuldade e também sem emoção,
quando me fostes proposta por minha mãe, a Igreja; mas tu
me arrebatastes depois que te coloquei perante a impotência da
minha razão.
Contemplo, senhores, e acompanho atentamente a
ascensão das verdades católicas para o infinito. Todas as linhas
são puras, de uma admirável pureza; nem o infinito é absorvido,
por mais baixo que desça; nem o finito sai da sua esfera, por mais
alto que suba; nem um nem outro se confundem, por mais íntima
que seja a sua união. Distinguem-se sempre, e nunca se podem
separar.
Tudo se enlaça, tudo está ordenado, tudo concorre para a
harmônica beleza do todo. As proporções são tão rigorosas, que

38
aquilo que pertence à natureza parece elevar-se acima dela; e o
que se eleva sobre a natureza parece pertencer-lhe. A natureza
sustenta toda a ordem sobrenatural, o sobrenatural explica toda
a natureza. Compreendo melhor o número, o peso, a medida dos
seres, o instinto que impele todo ser vivo a comunicar a sua vida,
as faculdades da minha alma, os mistérios do meu pensamento
e do meu amor, quando conheço o dogma princípio e típico
da Trindade. Explico as minhas aspirações para a grandeza e
o secreto orgulho que me leva a fazer-me semelhante a Deus,
quando conheço os mistérios da Encarnação e da graça. Sei
por que é que a minha alma está triste e oprimida de desgostos,
ainda mesmo no meio dos prazeres, porque há no fundo do meu
coração abismos de insaciáveis desejos, quando medito na bem-
aventurança que me está prometida. Enfim, vejo tudo melhor
quando quero ver tudo no dogma católico.
Evidentemente, senhores, a razão humana não entra nesta
construção gigantesca, tão irrepreensível e tão bem ordenada.
Descobrir-se-ão, sim, os vestígios da razão no progresso e na
sistematização das verdades; a desigualdade da idade prova a
lentidão e a dificuldade do trabalho; a incoesão das partes revela
a imperfeição do artífice. O dogma católico é um todo uniforme;
revela-se nele a obra daquele que desceu do céu e que, testemunha
incorruptível, revelou à terra o que viu e escutou desde toda a
eternidade na essência divina10.
Entretanto, a razão humana envidou todas as suas forças
para resolver o grave e solene problema cuja fórmula vos expus no
princípio desta Conferência: dados estes dois termos, o infinito e
o finito, explicar as suas relações. Quando porém a razão humana
não recorreu aos nossos dogmas, só produziu, mutilando-os,
sistemas sem grandeza e sem ordem, fábulas ridículas, fantasias
monstruosas em que a embriaguez do orgulho rivaliza com a
impotência das concepções. Depois, reduziu o princípio das coisas
a uma imobilidade egoísta, deu um rival ao espírito incriado na
matéria eterna, ao bem supremo, no autor de todo o mal. Indo

10 Qui de cœlo venit super omnes est, et quod vidit et audivit hoc testatur. (Jo 3, 3)

39
em busca de uma unidade quimérica, confundiu o infinito com a
sua obra, e humilhou a majestade divina revestindo-a das nossas
imperfeições e das nossas misérias.
Arrancou-nos aos braços paternais da providência
e lançou-nos, desonrados e trêmulos, nos braços do destino.
Exagerou a virtude ou divinizou o vício. Abateu-nos até à
condição dos brutos. Às nossas esperanças não propôs senão
a dúvida sobre o futuro, ou antes, o paraíso dos sentidos, o céu
dos brutos, as transmigrações insensatas de uma alma sempre
perseguida pelas suas imperfeições, ou antes, os abraços do nada.
Ainda nos momentos da sua maior ilustração, não teve a coragem
e a força de descobrir inteiramente o que há de mais humilde
em nosso edifício dogmático: as bases naturais sobre as quais se
erguem as esplêndidas construções do sobrenatural.
Comparei, senhores, frequentes vezes, as produções da
razão humana com o conjunto das verdades que a Igreja propõe
à nossa fé. Não vos convido a que sigais as minudências desta
comparação, que me levariam longe; contento-me com dizer-vos
o efeito que sempre produziram na minha alma. Afigurava-se-me
como um imenso campo coberto de valas, cabanas, pardieiros,
ruínas, casas incompletas, edifícios informes, e, no meio de tudo
isto, um templo de maravilhosa e incomparável beleza. Era a
doutrina católica que se elevava altiva e triunfante acima de todos
os sistemas humanos. Não me cansava em contemplá-la e o grito
do meu entusiasmo subia, desde os seus fundamentos até às suas
alturas sagradas: é divina! É divina!
Nem todos o entendem assim, bem o sei, e muitos
exclamam: é absurdo! Deixo-os gritar, senhores, porque sei que
as suas declamações não desmoronam um edifício solidamente
construído, sobretudo quando é obra de Deus. Gritem o quanto
lhes aprouver contra o meu divino templo; gravem os néscios,
se quiserem, as suas injúrias nas suas pedras eternas; com um só
golpe de martelo farei desaparecer todas as suas necedades, e o
templo ficará em pé até o fim dos séculos.
Lancemos, antes de nos separarmos, uma última vista
d’olhos sobre o conjunto deste divino templo. Eis o infinito,

40
e eis o finito: o infinito, Deus perfeito; o finito, ser imperfeito.
Eis o Criador, e eis a criatura: o Criador, princípio sobrenatural
não só em seu mesmo ser, mas na sua ação externa; a criatura,
supernaturalizada. Eis Deus, autor, motor e consumador, e,
sob este magnífico título, eis o Verbo Encarnado, autor, motor
e consumador do mundo regenerado e vivificado pelos seus
merecimentos infinitos. Enfim, senhores, tendes diante de vós
a súmula do ensino que devo desenvolver na vossa presença,
auxiliando-me dos trabalhos de um doutor que entre todos
me é querido: o profundo, o sublime Tomás de Aquino. Talvez
vos pareça arrojado e vaidoso o meu empreendimento. Não é.
Entrego-me a Deus. Se Ele, enquanto percorrermos a imensidade
do edifício que as suas mãos construíram, abrir um sepulcro e
me fizer descer a ele, obedecerei, sem murmurar uma queixa, e
pedir-lhe-ei, com amor, um outro guia que vos conduza até as
mais elevadas eminências, onde repetireis este último acento da
fé triunfante e do amor satisfeito. Amen. Assim seja.

41
Índice Analítico

Ao Leitor ......................................................................................... 5
Prefácio do Tradutor ................................................................. 7

Primeira Conferência
Ideia geral do Dogma Católico

Necessidade de expor o dogma católico se queremos


conhecer a verdade em toda a sua plenitude. Ideia geral sobre o
conjunto do dogma. A que vem esta ideia geral do dogma? Para
enlaçar todas as questões que hão de ser sucessivamente tratadas,
e para fazer avultar esta mesma preparação didática com um ar-
gumento de ordem superior, o argumento estético.
1. A vida humana e a vida do mundo inteiro estão pen-
dentes da solução deste problema: dados estes dois termos, o in-
finito e o finito, explicar as suas relações. Soluções da doutrina
católica: Deus, seu Ser, suas perfeições, sua vida íntima, existência
de todos os possíveis em Deus, ato criador, harmonia do mundo,
lugar que o homem ocupa no mundo, relações do homem com
Deus. Em resumo: o infinito, Ser perfeito, autor, motor e con-
sumador de todas as coisas; o finito, criatura de Deus, absolu-
tamente dependente na sua origem, nos seus movimentos, nos
seus destinos. — Miséria do pecado — Desígnio oculto de Deus,
manifestando-se na regeneração do gênero humano. Encarna-
ção. Maravilhosas relações do infinito e finito na pessoa de Jesus
Cristo. Jesus Cristo autor, motor e consumador da humanidade
regenerada. II. Maravilha do dogma católico considerado no seu

42
conjunto. Tudo é divino neste edifício intelectual: 1- a grandeza e
a majestade das suas formas; 2- a pureza das suas linhas; 3- a har-
monia das suas proporções. Impotência da razão humana para
produzir tal maravilha. O simples aspecto do dogma católico
considerado no seu conjunto é, para todo o espírito sincero, uma
prova da sua divindade ............................................................. 23

Segunda Conferência
Conhecimento de Deus

A primeira verdade que o ensino católico propõe à nossa


fé é a da existência de Deus. Por que insistir nesta verdade? Antes
de tratar dela, é conveniente estudar uma questão que nos sirva
de preparação para o que diremos sobre a existência de Deus, so-
bre as perfeições e a vida de Deus, a questão do conhecimento de
Deus: 1- Donde nos vem esse conhecimento? 2- Qual o estado, a
marcha e o processo do conhecimento de Deus na alma humana?
I. Refutação dos que sustentam que conhecemos a Deus imedia-
tamente em sua essência, e do que atribuem o conhecimento de
Deus à impressão inata do infinito na alma humana. Exposição
da doutrina de Santo Tomás. Deus, causa primeira, é conhecido
pelos seus efeitos. Como é que esta doutrina se funda na experi-
ência, e como supõe o desenvolvimento completo e harmônico
das faculdades humanas. Como é que está em conformidade com
a Escritura e com o símbolo da nossa fé. II. Estado do conheci-
mento de Deus na alma do primeiro homem. Qual o poder da
razão humana depois do pecado. Influência do ensino tradicional
no desenvolvimento da inteligência. Três conhecimentos de Deus
segundo Santo Tomás: 1- conhecimento comum; 2- conhecimen-
to demonstrativo, adquirido com o auxílio destes três princípios:
de causalidade, de eliminação, de eminencia; 3- conhecimento
pela fé que fortalece e completa o conhecimento comum e o co-
nhecimento demonstrativo ............................................................ 45

43
Terceira Conferência
Afirmação da Existência de Deus

A afirmação da existência de Deus é um fato, cujas qua-


lidades e valor é necessário examinar. I. Afirmação cristã da exis-
tência de Deus. Esta afirmação torna-se, talvez, menos recomen-
dável pelo seu grande caráter e pela sua pureza, do que pelos fatos
que lhe deram origem e que a conservaram constantemente no
seio da humanidade. Rápida vista d’olhos sobre as teofanias. A
afirmação cristã não está isolada no mundo. Em todos os povos a
afirmação de Deus precedeu sempre a demonstração da sua exis-
tência. Testemunhos. Objeção deduzida da história. Respostas: 1-
a idolatria não é um fato primitivo; 2- um estudo atento da idola-
tria prova-nos que o erro sobre a natureza de Deus não destrói o
testemunho que se tributa à sua existência; 3- em todos os povos
que conservam certa cultura intelectual, a inteligência humana
protesta contra a corrupção da ideia primitiva e verdadeiramente
tradicional de Deus. Resposta aos pretendidos sábios que julgam
ter encontrado alguns povos sem o conhecimento de Deus. II.
Sendo a afirmação da existência de Deus um fato universal e per-
pétuo, como explicá-lo? A explicação deste fato deve revelar-nos
o seu valor intrínseco. Duas explicações: 1- Deus, no princípio do
mundo, afirmando-se a si mesmo, disse: Eu existo. Esta explica-
ção está justificada, não só pela história cristã, mas também por
todas as tradições, que nos mostram a divindade afirmando-se a
si mesma. 2- considerando a afirmação universal e perpétua da
existência de Deus, como um fenômeno de natureza mais elevada
que os fenômenos do mundo físico, ainda que produzido à seme-
lhança deles, chegamos a uma lei natural que pode exprimir-se
assim: a humanidade é concêntrica, o seu centro é Deus. Impos-
sibilidade de encontrar outra explicação legítima para este teste-
munho da humanidade inteira. Objeções e respostas. As relações
da afirmação da existência de Deus com o verdadeiro progresso
da nossa natureza confirmam esta lei. Conclusão: o ateu está fora
da lei. A sua própria negação converte-se em um novo testemu-
nho do que pretende negar ............................................................ 69

44
Quarta Conferência
Demonstração da Existência de Deus

Propomos nesta Conferência a demonstração de Santo


Tomás. Este grande Doutor rejeita as sutilezas estéreis, os jogos
de imaginação e as afirmações hipotéticas. Coloca-se em frente
do mundo e submete-o ao princípio de causalidade. Aplica este
princípio: 1- a cada ser em particular; 2- ao conjunto de todos
os seres. I. A cada ser particular se podem fazer as três seguintes
perguntas: Quem te move? De quem procedes? Como subsistes?
Destas três perguntas deduzem-se três provas que nos dão a razão
destas três coisas: o movimento, a origem, a substância. 1- Dados
experimentais sobre o movimento que nos levam ao reconheci-
mento de um primeiro motor. Análise dos movimentos gerais, o
da matéria e o do espírito, dos quais se conclui a necessidade de
uma força única, imóvel, absoluta e sempre em ato em cada um
dos termos do movimento simples, verdade suprema, bem sumo.
2- Dados experimentais sobre a causalidade que também dão em
resultado a necessidade de uma primeira causa, que não pode ser
outra senão o espírito incriado. 3- Impotência da matéria para
substituir este espírito, visto como a consideração dos seres pos-
síveis nos leva a um ser necessário, subsistente por si mesmo, o
qual não é nem pode ser matéria. Exame de cinco monstruosida-
des que se deduzem da afirmação seguinte: a matéria é o ser ne-
cessário. O número e a verdade, submetendo às suas leis a matéria
e o espírito contingentes, que não tem a razão da sua subsistên-
cia em si mesmos, provam que o Ser primeiro e único necessário
deve ser um espírito eterno, subsistente por si mesmo, causa de
toda a subsistência e de toda a necessidade. II. No conjunto dos
seres devemos notar duas coisas: a gradação das suas perfeições e
a convergência real dos seus movimentos para determinados fins:
o progresso e a ordem. 1- A escala progressiva das perfeições na
natureza faz-nos sentir irresistivelmente a necessidade de um ser
soberanamente perfeito. Como é que, para descobrir o ser suma-

45
mente perfeito, procedemos numa ordem real e não numa ordem
puramente ideal. Como esse ser perfeito deve ser causa suprema e
tipo supremo. Ordem admirável do mundo. Realidade das causas
finais afirmada pela força analógica da razão humana ao compa-
rar as suas obras com a obra universal. O argumento deduzido da
ordem admirável que resplandece no mundo, é o mais popular,
porque é o que mais se aproxima da nossa experiência e o que se
formula com mais prontidão e facilidade. Breve quadro das ma-
ravilhas do mundo. Conclusão: Existe um ordenador universal.
Conclusão geral: o primeiro motor universal, a causa suprema, o
espírito eterno, necessário, causa de toda a subsistência e de toda
a necessidade, o ser sumamente perfeito, tipo e princípio de toda
perfeição, o ordenador do Universo, é Deus. ............................... 91

Quinta Conferência
A Personalidade de Deus

O Deus que a humanidade afirma de um modo tão solene, o Deus


cuja existência a razão tão rigorosamente demonstra... é um ser
real, vivo, pessoalmente distinto do mundo? Alguns há que se
atrevem a negá-lo... Contra as suas negações é, pois, necessário: 1-
provar a personalidade de Deus; 2- colocar o Deus pessoal frente
ao deus impessoal que se nos propõe para o substituir. I. Apela-se
para o senso comum. Que se entende por senso comum? Que
se entende por verdade do senso comum? O axioma escolástico
actus sunt suppositorum, as ações devem atribuir-se aos seres que
subsistem em si mesmos, é uma verdade do senso comum, da
qual se deduz que todo o fato vital provém de um ser vivente, e
todo o fato ordenado de um autor inteligente. Vãs teorias dos an-
tipersonalistas. Suas contradições práticas. Deus, que se manifes-
ta por atos vitais, atos ordenados, é um agente vivo e inteligente,
uma pessoa. A personalidade de Deus não o isola da sua obra.
Resposta a esta objeção: A personalidade determina o ser e o ser
determinado está rodeado de negações que o limitam. Verifica-
ção experimental deste princípio: a pessoa constitui a unidade de

46
um ser que, quanto mais é uno, independente e perfeito, tanto
mais lhe convém o atributo de pessoa. Incoerência do procedi-
mento daqueles que pretendem suprimir a personalidade divina
em prol de um ideal. Resposta às objeções deduzidas dos nomes
divinos. II. O sistema dos antipersonalistas liga-se com um vasto
conjunto de erros, que podem designar-se sob o nome comum
de panteísmo. Rápida exposição do panteísmo e suas refutações.
Demonstra-se: 1- que o ideal nunca se pode opor ao real; 2- su-
primindo a noção de substância no ideal, não se pode opor ao
real como o perfeito ao imperfeito, senão por uma confusão de
termos que destrói o seu verdadeiro sentido; 3- o ideal, segundo
o conceito dos antipersonalistas, não pode ser o fim soberano da
natureza; 4° sem um ser superior preexistente, que tudo ordena
sob um vasto plano, cuja realização conhece de antemão, a natu-
reza é ininteligível; 5° o erro dos antipersonalistas resolve-se, em
última análise, no panteísmo, ateísmo e materialismo. O Deus do
povo e do gênio. ............................................................................. 119

Sexta Conferência
O Ídolo Contemporâneo

Profundos mistérios que o panteísmo propõe à razão,


mistérios mais inexplicáveis do que os que se derivam da exis-
tência de Deus, porque são mais ininteligíveis. A inteligência fa-
tigada refugia-se numa negação franca e simples de Deus; mas
não pode evitar uma substituição fatal. A natureza universal, ou
melhor, a matéria é o seu ídolo. Este ídolo é a desonra dos nossos
tempos. É necessário penetrar à viva força na oficina científica
onde se fabrica o ídolo contemporâneo, e: 1 - ver os operários
em ação e estudar os processos de construção; 2 - indicar os de-
feitos do produto que pretendem impor às adorações do gêne-
ro humano, fazer, em fim, em pedaços, o ídolo. I. Os obreiros
ocupados na fabricação do ídolo distinguem-se em três classes:
1- os tímidos, deterministas; 2- os solapados, positivistas; 3- os
francos e resolutos que a si mesmos se chamam descaradamente,

47
materialistas. Quais os processos destes últimos: 1- não se impor-
tarem de incorrer nas maiores contradições; 2- afirmar com au-
dácia; 3- gloriarem-se sem pudor. Exame dos seus processos. Este
exame autoriza-nos a concluir que o fruto do trabalho da escola
materialista não pode ser bom; todavia, para tornar esta conclu-
são incontestável, é necessário proceder a um informe jurídico
para denunciar os defeitos da construção do ídolo, que querem
opor ao verdadeiro Deus. II. O ídolo contemporâneo submetido
à pressão das ideias e dos atos que representam a Deus por uma
parte, e a alma por outra, cai, rompe-se, esmigalha-se, e protesta
contra as temerárias pretensões dos seus fabricadores. 1° Exame
preliminar do fato seguinte: nós temos ideia clara de seres in-
teiramente distintos, por natureza, da matéria, a ideia de forças
superiores a ela. Conclusão vitoriosa que se deduz deste fato. 2°
Deus é para nós o Ser necessário, infinito, perfeito, supremo. A
matéria é incapaz de sustentar o peso destas ideias. 3° Posta a
matéria em presença do movimento universal, da imensa varie-
dade de seres e da ordem do mundo, obriga-nos a aceitar três
mistérios inteiramente ininteligíveis, a saber: a inércia essencial
na origem de todo o movimento; a indiferença e a uniformidade
produzindo a imensa variedade dos seres; a harmonia produzida
pela ininteligência. 4° Considerada no cérebro humano, de que
se gloria como da sua produção mais bela, a matéria demonstra
mais uma vez a sua completa impotência. Se atribuímos à matéria
a consciência do nosso eu devemos derivar, contra toda a razão, o
imutável do mutável. E se lhe atribuímos as nossas ideias, os nos-
sos juízos e os nossos raciocínios, faremos derivar do divisível o
que é uno e indivisível. Se lhe atribuímos as nossas volições livres,
a liberdade derivar-se-á da fatalidade. Se lhe atribuímos a noção
e o sentimento do dever, é forçoso que o meritório se derive do
irresponsável. Capitulação dos materialistas relativamente ao de-
ver. Contradições do sentimento universal, do qual não se podem
subtrair, com os seus princípios. Invocação de Deus na ordem
moral. Último grito da fé: Credo in Deum. ................................ 141

48
Notas

NOTA I. Falsas provas da existência de Deus. 1.° Argumen-


to a priori de Santo Anselmo; 2° argumento do cartesia-
nismo, deduzido da ideia do infinito. .................................. 169

NOTA II. Afirmações comparadas do materialismo no sé-


culo XIX e no século XVIII. .................................................... 174

49

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