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50 Poemas Macabros - Vinicius de Moraes
50 Poemas Macabros - Vinicius de Moraes
50 Poemas Macabros - Vinicius de Moraes
Sobre a obra:
Sobre nós:
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SUMÁRIO
Capa
Folha de rosto
Sumário
Balada do enterrado vivo
A morte sem pedágio
O outro
O cemitério na madrugada
A hora íntima
A consumação da carne
Imitação de Rilke
A mulher na noite
A morte
A Legião dos Úrias
Poema de Natal
Balada da moça do Miramar
O escravo
Sombra e luz
O assassino
O poeta Hart Crane suicida-se no mar
A volta da mulher morena
Poema de aniversário
Balanço do filho morto
Balada feroz
A última parábola
Menino morto pelas ladeiras de Ouro Preto
Notícia d’O Século
Soneto da hora final
O bilhar
Balada de Santa Luzia
O pranteado
Cara de Fome
Princípio
Balada do Mangue
Balada dos mortos dos campos de concentração
Cinepoema
Romance da Amada e da Morte
Balada negra
Balada do morto-vivo
Desert Hot Springs
Soneto do gato morto
Soneto com pássaro e avião
Tanguinho macabro
Parábola do homem rico
História passional, Hollywood, Califórnia
A última viagem de Jayme Ovalle
Breve consideração
Exumação de Mário de Andrade
Desaparição de Tenório Júnior
Balada das duas mocinhas de Botafogo
O sórdido
Sob o trópico do câncer
A rosa de Hiroshima
Bocoché
Edições de origem
Nota editorial
Obra poética publicada em vida
Sobre o poeta, recomendado pelo organizador
Sobre o autor e o organizador
Créditos
BALADA DO ENTERRADO VIVO
Mas por que estranho desígnio foi diferente a angústia daquela manhã
tristíssima
Por que não vieram até mim as lamentações de todas as madrugadas
Por que quando eu caminhei para o sofrimento, foi o meu sofrimento
que eu vi estendido sobre as coisas como a morte?
Ai de mim! a piedade ferira o meu coração e eu era o mais
desamparado
O consolo estava nas minhas palavras e eu era o único inconsolável
A riqueza estivera nas minhas mãos e eu era pobre como os olhos dos
cegos…
Na solidão absoluta de mil léguas foi o meu corpo que eu vi
acorrentado ao pântano infinito
Foi a minha boca que eu vi se abrindo ao beijo da água ulcerada de
flores leprosas.
Dormiam sapos sobre a podridão das vitórias moribundas
E vapores úmidos subiam fétidos como as exalações dos campos de
guerra.
Eu estava só como o homem sem Deus no meio do tempo e sobre
minha cabeça pairavam as aves da maldição
E a vastidão desolada era grande demais para os meus pobres gritos de
agonia.
De fora eu vi e senti medo — como que um ávido polvo me prendia os
pés ao fundo da lama
Eu gritei para o miserável que erguesse os braços e buscasse a música
que estava no pântano e na pele desfeita das flores intumescidas
Mas ele já nada parecia ouvir — era como o mau ladrão crucificado.
Oh, não estivesse ele tão longe de meus pés e eu o calcaria como um
verme
Não fosse minha náusea e eu o iria matar no seu martírio
Não existisse a minha incompreensão e eu lhe desfaria a carne entre
meus dedos.
Porque a sua vida está presa à minha e é preciso que eu me liberte
Porque ele é o desespero vão que mata a serenidade que quer brotar
em mim
Porque as suas úlceras doem numa carne que não é a dele.
Mas algum dia quando ele estiver dormindo eu esquecerei tudo e
afrontarei o pântano.
Mesmo que pereça eu o esmagarei como uma víbora e o afogarei na
lama podre
E se eu voltar eu sei que as visões passadas não mais povoarão os meus
olhos distantes
Eu sei que terei forças para comer a terra e ficar escorrendo em sangue
como as árvores
Parado diante da beleza, agasalhando os príncipes e os monges, na
contemplação da poesia eterna.
O CEMITÉRIO NA MADRUGADA
Às cinco da manhã… — tão tarde soube! — não fora ainda uma visão
Não fora ainda o medo da morte em minha carne!
Viera de longe… de um corpo lívido de amante
Do mistério fúnebre de um êxtase esquecido
Tinha-me perdido na cerração, tinha-me talvez perdido
Na escuta de asas invisíveis em torno…
Mas ah, ela veio até mim, a pálida cidade dos poemas
Eu a vi assim gelada e hirta, na neblina!
Oh, não eras tu, mulher sonâmbula, tu que eu deixei
Banhada do orvalho estéril da minha agonia
Teus seios eram túmulos também, teu ventre era uma urna fria
Mas não havia paz em ti!
A HORA ÍNTIMA
RIO, 1950
A CONSUMAÇÃO DA CARNE
Em línguas de fogo
Estorça-se o corpo
Num último gozo.
Pela combustão!
Quero que a fogueira
Me erga em convulsão!
Que se queime o pé
Que se queime os olhos
Que se queime até
(Não me enterrem. Queimem-me)
Em sarças flamantes!
Que sejam meus braços
Ramos crepitantes!
Que se queime o pé
Que se queime a mão
Que se queime até
O meu coração
O coração este
Doido de paixão.
Silêncio da madrugada
No Edifício Miramar…
Sentada em frente à janela
Nua, morta, deslumbrada
Uma moça mira o mar.
Quando a tarde veio o vento veio e eu segui levado como uma folha
E aos poucos fui desaparecendo na vegetação alta de antigos campos
de batalha
Onde tudo era estranho e silencioso como um gemido.
Corri na sombra espessa longas horas e nada encontrava
Em torno a mim tudo era desespero de espadas estorcidas se
desvencilhando
Eu abria caminho sufocado mas a massa me confundia e se apertava
impedindo meus passos
E me prendia as mãos e me cegava os olhos apavorados.
Quis lutar pela minha vida e procurei romper a extensão em luta
Mas nesse momento tudo se virou contra mim e eu fui batido
Fui ficando nodoso e áspero e começou a escorrer resina do meu suor
E as folhas se enrolavam no meu corpo para me embalsamar.
Gritei, ergui os braços, mas eu já era outra vida que não a minha
E logo tudo foi hirto e magro em mim e longe uma estranha litania me
fascinava.
Houve uma grande esperança nos meus olhos sem luz
Quis avançar sobre os tentáculos das raízes que eram meus pés
Mas o vale desceu e eu rolei pelo chão, vendo o céu, vendo o chão,
vendo o céu, vendo o chão
Até que me perdi num grande país cheio de sombras altas se
movendo…
Dança Deus!
Sacudindo o mundo
Desfigurando estrelas
Afogando o mundo
Na cinza dos céus
Sapateia, Deus
Negro na noite
Semeando brasas
No túmulo de Orfeu.
A Dama Negra
A Rainha Euterpe
A Torre de Magdalen
E o Rio Jordão
Quebraram muros
Beberam absinto
Vomitaram bile
No meu coração.
E um gato e um soneto
No túmulo preto
E uma espada nua
No meio da rua
E um bezerro de ouro
Na boca do lobo
E um bruto alifante
No baile da Corte
Naquele cantinho
Cocô de ratinho
Naquele cantão
Cocô de ratão.
II
Ficava a rua
Ficava a praia
No fim da praia
Ficava Maria
No meio de Maria
Ficava uma rosa
Cobrindo a rosa
Uma bandeira
Com duas tíbias
E uma caveira.
III
Meninas de colégio
Apenas acordadas
Desuniformizadas
Em vossos uniformes
Anjos longiformes
De faces rosadas
E pernas enormes
Quem vos acompanha?
Rebanho de risos
Que tingem o poente
Da cor impudente
Das coisas contadas
Entre tanto riso!
Meninas levadas
Não tendes juízo
Nas vossas cabeças?
Cuidado, meninas!
O POETA HART CRANE
SUICIDA-SE NO MAR
RIO, 1953
A VOLTA DA MULHER MORENA
DE OURO PRETO
1952
NOTÍCIA D’O SÉCULO
Tu me olharás silenciosamente
E eu te olharei também, com nostalgia
E partiremos, tontos de poesia
Para a porta de treva aberta em frente.
Penteiem direito
Os cabelos do morto
E ajeitem-lhe o olho
Que está meio torto
E estiquem-lhe a pele
Com fita colante
Para que ele fique
Mais moço que antes.
E façam-lhe as unhas
Com um tom de bom gosto
Cueca, camisa
E gravata fosca
Enfiem-lhe o colete
E o que de mais resta
E o seu terno escuro
Da última festa.
E ponham o morto
Dentro de um caixão
E preguem-no a prego
Pelo sim pelo não
E desçam o caixão
A uma sepultura
Escavada em sete
Metros de fundura.
E deitem-lhe cal
E joguem-lhe terra
Que morto não fala
Que morto não berra
E ponham depois
Uma pedra em cima
E vão falar quieto
No café da esquina.
E pensem, e cogitem
E matem-se aos poucos
E chorem e se agitem
Até ficar loucos
Que dentro do túmulo
Feito em escuridão
Já se ouvem uns sons ocos
Vindos do caixão.
— Que o morto está rindo
Na sua prisão!
CARA DE FOME
— Vai na rua
Mata um homem
Tira as tripas
E depois come.
Você namora
As vitrinas dos restaurantes
Cara de Fome?
Você acha
A lua parecida com um queijo de Minas?
Você gosta de queijo
Cara de Fome?
Encontrar, eis o destino. Aves brancas que desceis aos lagos e fugis!
Oh, a covardia das vossas asas!
É preciso ir e se perder no elemento de onde surge a vida.
Mais vale a árvore da fonte que a árvore do rio plantada segundo a
corrente e que dá seus frutos a seu tempo…
Deixai morrer o desespero nas sombras da ideia de que o amor pode
não vir.
Na praia sangrenta a velha embarcação negra e desfeita — o mar a
lançou talvez na tempestade!
Eu — e casebres de pescadores eternamente ausentes…
O mar! o vento tangendo as águas e cantando, cantando, cantando
Na praia sangrenta entre brancas espumas e horizontes…
BALADA DO MANGUE
CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO
Cadáveres de Nordhausen
Erla, Belsen e Buchenwald!
Ocos, flácidos cadáveres
Como espantalhos, largados
Na sementeira espectral
Dos ermos campos estéreis
De Buchenwald e Dachau.
Cadáveres necrosados
Amontoados no chão
Esquálidos enlaçados
Em beijos estupefatos
Como ascetas siderados
Em presença da visão.
Cadáveres putrefatos
Os magros braços em cruz
Em vossas faces hediondas
Há sorrisos de giocondas
E em vossos corpos, a luz
Que da treva cria a aurora.
Cadáveres fluorescentes
Desenraizados do pó
Que emoção não dá-me o ver-vos
Em vosso êxtase sem nervos
Em vossa prece tão só
Grandes, góticos cadáveres!
Ah, doces mortos atônitos
Quebrados a torniquete
Vossas louras manicuras
Arrancaram-vos as unhas
No requinte de tortura
Da última toalete…
A vós vos tiraram a casa
A vós vos tiraram o nome
Fostes marcados a brasa
E vos mataram de fome!
Vossas peles afrouxadas
Sobre os esqueletos dão-me
A impressão que éreis tambores —
Os instrumentos do Monstro —
Desfibrados a pancada:
Ó mortos de percussão!
Cadáveres de Nordhausen
Erla, Belsen e Buchenwald!
Vós sois o húmus da terra
De onde a árvore do castigo
Dará madeira ao patíbulo
E de onde os frutos da paz
Tombarão no chão da guerra!
CINEPOEMA
O preto no banco
A branca na areia
O preto no banco
A branca na areia
Silêncio na praia
De Copacabana.
A branca no branco
Dos olhos do preto
O preto no banco
A branca no preto
Negror absoluto
Sobre um mar de leite.
A branca de bruços
O preto pungente
O mar em soluços
A espuma inocente
Canícula branca
Pretidão ardente.
A onda se alteia
Na verde laguna
A branca se enfuna
Se afunda na areia
O colo é uma duna
Que o sol incendeia.
O preto no branco
Da espuma da onda
A branca de flanco
Brancura redonda
O preto no banco
A gaivota ronda.
O negro tomado
Da linha do asfalto
O espaço imantado:
De súbito um salto
E um grito na praia
De Copacabana.
Pantera de fogo
Pretidão ardente
Onda que se quebra
Violentamente
O sol como um dardo
Vento de repente.
E a onda desmaia
A espuma espadana
A areia ventada
De Copacabana
Claro-escuro rápido
Sombra fulgurante.
Luminoso dardo
O sol rompe a nuvem
Refluxo tardo
Restos de amarugem
Sangue pela praia
De Copacabana…
ROMANCE DA AMADA E DA MORTE
A Rubem Braga
A Morte, desesperada
Num transporte de ciúme
Atira-se contra a Amada.
A Amada luta com a Morte
Da meia-noite à alvorada
Morde a Morte, mata a Morte
Joga a Morte pela escada
Depois vem e se repousa
Tendo o poeta ao seu lado
E sorri, conta-lhe coisas
Para alegrar seu estado
E entreabre seu corpo moço
Para acolher seu amado.
O poeta sente seu sangue
Circular desafogado
Sua pressão baixa a 12
Seu pulso bate normal
De seu fígado a cirrose
Faz a pista apavorada
A matéria esclerosante
Fica desesclerosada
Desaparece a extrassístole
Seu cólon cala os espasmos
Equilibra-se de súbito.
Todo o seu vagossimpático
Corre-lhe o plasma contente
Cheio de rubras hemátias
O dente ajusta-se ao alvéolo
Fica-lhe a pele rosada.
Tudo isso porque o poeta
Não é poeta, não é nada
Quando a sua bem-amada
Larga-o à Morte, se ausente
De sua luz e do seu ar
Por isso que a ausência é a morte
É a morte mais tristemente
É a morte mais devagar.
No rio negroluzente
As árvores balouçantes
Parecia que falavam
Com seus ramos tateantes
Tatiana, do incidente.
Um constante balbucio
Como o de alguém muito em mágoa
Parecia vir do rio.
Lunalva, num desvario
Não tirava os olhos da água.
Na porta em luzcancarada
Só Lunalva lunalvada.
Efetivamente o Bill
Talvez devido à friagem
Que crepitava do rio
Voltara dessa viagem
Muito branco e muito frio.
“Tenho nada, minha nega
Senão fome e amor ardente
Dá-me um trago de aguardente
Traz o pão, passa a manteiga!
E aproveitando do ensejo
Me apaga esse lampião
Estou morrendo de desejo
Amemos na escuridão!”
HOLLYWOOD, CALIFÓRNIA
E na sala transverberada
Pelo milagre da presença
Vai se corporificando imensa
A humana forma macerada.
DE BOTAFOGO
O câncer é a tristeza
Sai, Câncer!
Desaparece, parte, sai do mundo
Volta à galáxia onde fermentam
Os íncubos da vida, de que és
A forma inversa. Vai, foge do mundo
Monstruosa tarântula, hediondo
Caranguejo incolor, fétida anêmona
Sai, Câncer!
Furbo anão de unhas sujas e roídas
Monstrengo sub-reptício, glabro homúnculo
Que empesteias as brancas madrugadas
Com teu suave mau cheiro de necrose
Enquanto largas sob as portas
Teus imundos volantes genocidas
Sai, get out, va-t’en, hinaus mit Ihnen
Tu e tua capa de matéria plástica
Tu e tuas galochas, tu e tua gravata
Carcomida, e torna, abjeto, ao Trópico
Cujo nome roubaste. Deixa os homens
Em sossego, odioso mascate.
Fecha o zipe
Da tua gorda pasta que amontoa
Caranguejos, baratas, sapos, lesmas
Movendo-se em seu visgo, em meio a amostras
De óleos, graxas, corantes, germicidas
Sai, Câncer!
Fecha a tenaz e diz adeus à Terra
Em saudação nazista; galga, aranha
Contra o teu próprio fio e vai morrer
De tua própria síntese na poeira
Atômica que ora se acumula
Na cúpula do mundo.
Adeus
Grumo louco, multiplicador
Incalculável, tu de quem nenhum
Computador eletrônico
Poderia jamais seguir a matemática.
Parte, ponete ahuera, andate via
Glauco espectro, gosmento camelô
Da morte anterior à eternidade.
Não és mais forte do que o homem — rua!
Grasso e gomalinado prestamista
Que prescreves a dívida humana
Sem aviso prévio, ignóbil
Meirinho, Câncer, vil tristeza…
“Senhora
Abre por favor porta só um pouquinho
Preciso muito falar com senhora, pelo amor de Deus!
Abre porta, eu mostro sem compromisso.
Leva já, paga quando puder. Veja, senhora
Quanta coisa, que beleza, tudo grátis
Paga quando puder. Fibroma
Carcinoma, osteossarcoma
Coisa linda! Olhe só, senhora:
Câncer do seio… Sempre volta. Do útero:
Mais barato mas leva artigo de qualidade, em geral
Reproduz mais tarde, garantido.
Para seu marido tem coisa linda, veja, senhora
Que maravilha! Tumor sarcomatoso do intestino
Não falha. Espie só, madama:
Câncer do fígado, câncer do rim, câncer da próstata
Câncer da laringe, tudo é câncer
Artigo exclusivo, palavra de honra
Restitui dinheiro.
Senhora tem filhos? Veja isto:
Câncer da meninge: muita dolência… Câncer
Do sangue: criança
Vai enfraquecendo, quase não sofre
Vai apagando como uma vela, muito carinho
Da senhora e seu marido para o menino.
Morre bem, morre feliz, com todos os sacramentos
Confortado pela excelentíssima família.
E olhe aqui, senhora: isso eu só mostro
Em confiança, artigo conseguido com muita
Dificuldade: CÂNCER ATÔMICO!
Artigo de luxo, paga à vista, não faz prestação
Muito duro conseguir. Precisa
Muita explosão de bomba H, quantidade
De estrôncio-90. Muito difícil.
Artigo superior, não tem na praça, conseguido
Com contrabandista, senhora não conta…
Artigos para casa? Tem cera para lustrar
Inseticida, inalador: tudo
Feito com substância cancerígena. Artigos
De farmácia? Tem bom xarope
Faz bem ao peito, muito alcatrão, mata
Na velhice: câncer do pulmão
Bom câncer. Senhora não quer?
Fica, senhora: é garantido, vendo barato
Paga quando quiser. Olhe aqui:
Deixo sem compromisso — mata moscas
Baratas, ratos, crianças; tem cheiro
De eucalipto, perfuma
Ambiente. Não quer? Adeus
Senhora, passo outro dia, não tem pressa
A senhora pensa, tudo grátis, garantido
O freguês paga quando quiser
Morre quando puder!”
III
Cordis sinistra
— Ora pro nobis
Tabis dorsalis
— Ora pro nobis
Marasmus phthisis
— Ora pro nobis
Delirium tremens
— Ora pro nobis
Fluxus cruentus
— Ora pro nobis
Apoplexia parva
— Ora pro nobis
Lues venerea
— Ora pro nobis
Entesia tetanus
— Ora pro nobis
Saltus viti
— Ora pro nobis
Astralis sideratus
— Ora pro nobis
Morbus attonitus
— Ora pro nobis
Mania universalis
— Ora pro nobis
Cholera morbus
— Ora pro nobis
Vomitus cruentus
— Ora pro nobis
Empresma carditis
— Ora pro nobis
Fellis suffusio
— Ora pro nobis
Phallorrhoea virulenta
— Ora pro nobis
Gutta serena
— Ora pro nobis
Angina canina
— Ora pro nobis
Lepra leontina
— Ora pro nobis
Lupus vorax
— Ora pro nobis
Tonus trismus
— Ora pro nobis
Angina pectoris
— Ora pro nobis
Et libera nobis omnia Cancer
— Amen.
IV
Ad infinitum…
La rose
Du cancer
Arrose
L’arroseur.
VI
VII
CÂNCER
CÂNCER
CÂNCER
CÂNCER
CÂNCER
A ROSA DE HIROSHIMA
— Menina bonita
Pr’onde é que ocê vai
Menina bonita
Pr’onde é que ocê vai?
— Vou procurar
O meu lindo amor
No fundo do mar
Vou procurar
O meu lindo amor
No fundo do mar.
— Menina bonita
Não vá para o mar
Menina bonita
Não vá para o mar!
— Vou me casar
Com meu lindo amor
No fundo do mar
Vou me casar
Com meu lindo amor
No fundo do mar.
— Menina bonita
Que foi para o mar
Menina bonita
Que foi para o mar…
— Dorme, meu bem
Que você também
É Iemanjá
Dorme, meu bem
Que você também
É Iemanjá.
POSFÁCIO
NÃO TENHAS MEDO
Daniel Gil
Já era uma dívida com Vinicius preparar uma publicação que expusesse
o seu apreço pelo feio, pelo grotesco, pelo macabro. Isso porque o
êxito incalculável de seus versos amorosos acaba lhe conferindo uma
persona supostamente incompatível com esse campo semântico; um
tanto mais se considerarmos seu legado com o público infantil.
Digo “supostamente” pois há uma energia específica extraída desses
contrastes: é natural que escritores e artistas vinculados a uma estética
sinistra sejam também, frequentemente, os que exploram emoções
humanas como o amor, a euforia, as paixões, os desequilíbrios — são
artistas do extremo. De maneira semelhante, a disposição à fantasia e
ao nonsense é manancial comum, seja do grotesco, seja da imagética
romanesca ou infantil. A propensão que têm esses criadores — devotos
do abalo afetivo ou moral, da trepidação dos sentidos, do sentimento
— de representar em suas obras elementos do bem e do mal, do belo,
do feio, do sublime, do grotesco, do mais vívido e solar como do
macabro poderia servir de pista para que os críticos identificassem o
mesmo movimento na poesia de Vinicius de Moraes. No entanto, no
século xx, o que mais se aproximou de uma observação nesse sentido
foram as linhas de Ivan Junqueira reconhecendo que o amor e a morte
figuram ali com igual protagonismo; e que mesmo as substâncias da
vida detêm certo extremo aterrador:
Vinicius de Moraes será sempre, e acima de tudo, o poeta do amor e
da morte. E talvez por isso mesmo seja ele o poeta mais emblemático
de sua época, assim como o foram Baudelaire e Dylan Thomas, aquele
que com maior desassombro e autenticidade encarnou o mito de
Orfeu, descendo aos infernos da vida e da morte em busca de sua
Eurídice, que foram muitas e talvez nenhuma.1
A obra de Vinicius se notabiliza ordinariamente pela temática do
amor e por algumas inserções bem marcantes na poesia social. O poeta
é lembrado como um virtuose da forma fixa e da sonoridade, que
recompôs o soneto no século XX; um cronista em redondilha maior;
um bardo moderno que se lançou firmemente no imaginário popular.
Entre os mais atentos, há os que reconhecem sua tendência à pesquisa
e à invenção, inclusive como um dos precursores, na poesia brasileira,
do intercâmbio entre línguas e do emprego do espaço gráfico para o
suporte visual. E, sobretudo, apontam a particularíssima faculdade de
confundir o léxico — redefinindo o material e o imaterial, o ser e as
coisas, o solene e o não solene, o formal e o coloquial, o infame e o
familiar, o gracejo e a seriedade, o repulsivo e o adorável.
Em que pesem as sensíveis contradições e alternâncias, resultado
desse arranjo, o fenômeno do grotesco só seria identificado como uma
das características fundamentais da obra de Vinicius em 2006, num
ensaio de Eucanaã Ferraz. Ao analisar a “Balada dos mortos dos
campos de concentração”, ele se depara com uma “estética
expressionista, onde o horror, o absurdo e a morbidez entrelaçam-se
com vocabulário, adjetivações e imagens contrastantes”; e observa
nesses contrastes a projeção do insólito, do híbrido, do monstruoso —
em consonância com a herança grotesca transmitida desde os
tradicionais ornamentos pictóricos romanos:
Ao invés de optar por um realismo estrito, o poema constrói
imagens que, sem abrir mão de um minucioso realismo, dão a ver o
absurdo da realidade ao pintá-la em seu aspecto monstruoso, fundindo
o horror do extermínio em massa a “beijos”, “sorrisos de giocondas”,
“toalete”. Estamos, portanto, no âmbito do grotesco, exemplarmente
realizado em poemas como “O poeta Hart Crane suicida-se no mar”,
“Balada do enterrado vivo”, “Balada do Mangue” e “Balada da moça do
Miramar”. Neles, o belo e o mórbido modelam cenas (algumas de
caráter narrativo) estranhas, fantásticas. O natural se torna terrível, a
realidade emerge insólita, a beleza se confunde com o repulsivo.2
A numerosa incidência de poemas que tendem a esses contrastes, ao
anômalo, ao feio, ao quimérico faz de Vinicius de Moraes, com a devida
atenção, o principal herdeiro no século XX da poesia grotesca levada a
efeito por Cruz e Sousa e Augusto dos Anjos. A tendência esbarra em
mesma medida, outras vezes, no estranhamento do nonsense, da
glutonaria, do escatológico e da incorreção. Essa característica lhe é
essencial e diversa, e está exposta de modo persistente ao longo de
toda a sua obra. Por outro lado, a escassez de material a respeito foi
justamente o que me levou à tese em que tratei do fenômeno estético
do grotesco e de sua manifestação na obra do poeta.3 Os motivos
ornamentais descobertos nas grutas de Roma (grottas) — que deram
nome ao conceito — podem inclusive ser experimentados na
metamorfose do sujeito lírico em criatura híbrida, humano-vegetal, na
subversão da ordem no espaço e nas sinistras visões do poema “O
escravo”:
Fui ficando nodoso e áspero e começou a escorrer resina do meu suor
E as folhas se enrolavam no meu corpo para me embalsamar.
Gritei, ergui os braços, mas eu já era outra vida que não a minha
E logo tudo foi hirto e magro em mim e longe uma estranha litania me fascinava.
Houve uma grande esperança nos meus olhos sem luz
Quis avançar sobre os tentáculos das raízes que eram meus pés
Mas o vale desceu e eu rolei para o chão […]
[…]
[…]
E enquanto os dias se passam
Trazendo a putrefação
À noite coisas se passam…
A moça e a lua se enlaçam
Ambas mortas de paixão.
2. Eucanaã Ferraz, Vinicius de Moraes. São Paulo: Publifolha, 2006. pp. 24-7.
41.
François Rabelais. Trad. de Yara Frateschi Vieira. 8. ed. São Paulo: Hucitec, 2013. pp.
44-5.
7. Davi Arrigucci Jr., Humildade, paixão e morte: A poesia de Manuel Bandeira. 2. ed.
uma velha ideia do amigo Rodrigo M. F. de Andrade”. É esta versão atualizada, mais
enxuta, a fixada.
9. Manuel Bandeira, “Coisa alóvena, ebaente”. In: Vinicius de Moraes, Obra poética.
OS AFRO-SAMBAS
(álbum em parceria com Baden Powell, 1966)
Bocoché
FORMA E EXEGESE
Rio de Janeiro: Pongetti, 1935
ARIANA, A MULHER
Rio de Janeiro: Pongetti, 1936
NOVOS POEMAS
Rio de Janeiro: José Olympio, 1938
CINCO ELEGIAS
Rio de Janeiro: Pongetti, 1943
PÁTRIA MINHA
Barcelona: O Livro Inconsútil, 1949
ANTOLOGIA POÉTICA
Rio de Janeiro: A Noite, 1954
LIVRO DE SONETOS
Rio de Janeiro: Livros de Portugal, 1957
NOVOS POEMAS (II)
Rio de Janeiro: São José, 1959
A ARCA DE NOÉ
Rio de Janeiro: Sabiá, 1970
não trouxeram novidade. É preciso ressalvar que seu livro de crônicas Para uma
menina com uma flor (Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1966) traz como preâmbulo o
BANDEIRA, Manuel. “Coisa alóvena, ebaente”. In: MORAES, Vinicius de. Obra poética. Rio de
Janeiro: Aguilar, 1968. pp. 656-8.
BOSCO, Francisco. “A mulher original”. In: MORAES, Vinicius de. Para viver um grande amor.
São Paulo: Companhia das Letras, 2010. pp. 197-204.
CANDIDO, Antonio. “Um poema de Vinicius de Moraes”. In: MORAES, Vinicius de. Poemas,
sonetos e baladas/ Pátria minha. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. pp. 159-62.
________ . “Vinicius de Moraes”. In: ________ . O observador literário. Rio de Janeiro: Ouro
sobre Azul, 2004. p. 103.
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vinicius de moraes nasceu em 1913, no Rio de Janeiro. Formou-se na
Faculdade de Direito, no Rio, e estudou literatura inglesa na
Universidade de Oxford. Foi diplomata e um dos maiores poetas da
língua portuguesa. Seu livro de estreia, O caminho para a distância, veio
a público em 1933, quando tinha dezenove anos. Destacou-se também
como cronista, crítico de cinema, dramaturgo e letrista. Foi um dos
criadores da bossa nova e marcou em definitivo o cancioneiro popular.
Morreu aos 66 anos, em 1980.
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CLAUDIA WARRAK
Foto do autor
ALEX CERVENY
Revisão
CLARA DIAMENT
HUENDEL VIANA
Versão digital
RAFAEL ALT
ISBN 978-85-3593-619-3
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