O herói
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O herói - Flávio R. Kothe
O HERÓI
Flávio R. Kothe
Leituras 11
Coordenação: Lygia Caselato
CATALOGAÇÃO
Copyright by © 2022
Flávio R. Kothe
Projeto editorial/organização:
Wilbett Oliveira
Conselho Editorial:
Arturo Gouveia
Haron Gamal
Ester Abreu Vieira de Oliveira
Joel Cardoso
Imagem de capa:
Gaulês Moribundo em toda sua dignidade, armas no chão à esquerda e seu trompete à direta (Imagem de Commons WikiMedia)
Coordenação:
Lygia Caselato
Revisão:
Do autor
Diagramação:
Editora Cajuína
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma ou qualquer meio eletrônico ou mecânico, sem permissão expressa da editora (Lei 9.610, de 19/02/98).
[CIP]
Dados Internacionais da Catalogação na Publicação
Kothe, Flávio R.
K87h O herói. Flávio R. Kothe. Lygia Caselato [Coordenadora ]. 1a edição. Cotia, São Paulo: Editora Cajuína, 2022. Série Leituras 11.
ISBN 978-85-54150-97-6 (impresso)
ISBN 978-65-86270-94-5 (digital)
1. Literatura 2. Crítica
I. Flávio R. Kothe II. Título
CDD B869.4
ÍNDICE PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO:
1. Literatura: ensaio
2. Literatura: crítica
Home page: www.editoracajuina.com.br
Email: contato@editoracajuina.com.br
(11) 4777-0123 - 94322-4207
SUMÁRIO
CAPA
O HERÓI
CATALOGAÇÃO
EPÍGRAFE
1 INTRODUÇÃO
Personagem plano e esférico
Sistema e dominante
Gêneros maiores e menores
2 HERÓIS CLÁSSICOS
A classe do clássico
Pólemos e polêmica
O herói épico
O anti-herói épico
3 ARTE E IDEOLOGIA
O ideológico
O artístico
Gênero e gesto semântico
5 HERÓIS BÍBLICOS
A história de José
A história de Cristo
Personagens planos e triviais
Tragédia e poder
Para além do trivial
7 HERÓIS BAIXOS
O cômico e o tragicômico
O satírico
O picaresco
8 HERÓIS ALTOS
Percursos e percalços
Heróis nacionais
Um herói português
Reversões e transgressões
9 HERÓIS DA MODERNIDADE
Heróis da decadência
Heróis do avesso
Heróis proletários
10 A NARRATIVA TRIVIAL
Direita volver!
Esquerda volver!
Feminino/masculino
11 POÉTICAS E OPERÁRIOS
Poéticas normativas
Heróis proletários
12 CONCLUSÃO
Estética da recepção
Em síntese
13 VOCABULÁRIO CRÍTICO
REFERÊNCIAS
EPÍGRAFE
Os heróis artísticos
são índices de totalização: através deles o real procura aflorar em sua complexidade e contradição.
[ Flávio R. Kothe ]
1 INTRODUÇÃO
Personagem plano e esférico
As habituais categorias personagem plano
e personagem esférico
foram propostas de um modo bastante ligeiro por Forster numa conferência, e, desde então, têm sido repetidas por todos. Servem para caracterizar personagens de traços simples e permanentes em contraposição a personagens que se modificam ao longo da narrativa, surpreendendo por sua complexidade. São categorias analiticamente operacionalizáveis e úteis, mas não apreendem o que efetivamente acontece com os personagens. São insuficientes até mesmo enquanto termos: de certo modo, nada mais plano do que uma esfera, pois é igual para todos os lados.
No refrão, ao dizer as mesmas palavras a perguntas e situações diferentes, a resposta nunca é a mesma. Mas isto não é levado em conta quando se fala em personagem plano e esférico! Uma personagem, que vai se adaptando
a situações diversas, aparenta ser redondo
, mas pode ser intrinsecamente plano, simplório.
Essas categorias encaram o personagem como existente em si no texto literário, isolado do contexto social. Pressupõem que a obra literária exista como um ente autônomo. Decorrem de uma visão idealista da literatura, da qual comungam todas as correntes modernas da crítica.
A escolástica supunha que as ideias
estivessem como puras formas na mente de Deus. Isso quer dizer que elas existiam antes das coisas. Levava a querer enquadrar os dados aos pressupostos teóricos. A ruptura com isso leva a priorizar as coisas, tratando de transpor o que são para o âmbito conceitual. Primeiro há fatos, depois interpretações, mas só se presta atenção aos fatos porque são interpretados como relevantes a ponto de serem conscientizados e interpretados. Significa admitir a mutação delas e, portanto, o seu caráter contraditório.
Se, ao contrário do que pensa o idealismo, não é a mente divina ou a consciência do homem que determina o ser, pois o que as coisas são como elas são porque assim estão aí e a mente humana apenas procura conceituá-las. O ser social do homem que determina a sua consciência, o que faz do conhecimento sempre algo que envolve política e interesse social. Não é apenas porque o sol brilha no alto e as árvores crescem para cima que o alto significa elevado, enquanto o que está embaixo significa algo inferior (afinal, o sol também declina e todos sabem que as árvores também crescem para baixo). A natureza é capaz de fornecer comprovantes para qualquer tipo de argumento. A natureza não obriga a selecionar certas metáforas: o modo de viver dos homens é que desperta a sensibilidade para certos aspectos da natureza, como a grandeza do alto e a baixeza do baixo. Todas as sociedades históricas são sociedades de classes.
Haver uma classe alta
e uma classe baixa
se reflete de modo fundamental e necessário na literatura, tanto no modo de ser dos personagens e enredos quanto na hierarquia dos gêneros e das obras. Não sendo os conceitos metafísicos
(formas puras espirituais), mas físicos
, derivados da sociedade, e sendo a sua dinâmica política decorrente do conflito entre a minoria privilegiada e a maioria fornecedora desses privilégios, então a seleção de elementos da natureza para constituir conceitos e metáforas (conceitos também são metáforas) reflete essa dinâmica social. Portanto, o inconsciente das metáforas é o nível político. Tem-se aí sempre a identidade entre elementos não-idênticos, como nos conceitos.
O alto
e o baixo
da sociedade se operacionalizam e se entrecruzam de vários modos na literatura. Tendem a ecoar a natureza fazendo o alto aparecer como elevado e mostrando o baixo como inferior, mas isto corresponde à própria possibilidade de a classe dominante dominar ideologicamente a sociedade.
Sistema e dominante
As narrativas são sistemas cujas dominantes geralmente têm sido algum tipo de herói. Na dominante está a chave do sistema. Um sistema é um conjunto de elementos coerentes entre si e distintos do seu meio. A dominante é o seu princípio de organização, é o governo do sistema, assim como o governo é a dominante do sistema social. O modo de produção é sistemático, inclusive o de produção literária, e o pensamento também, opera por sistemas. A dominante está presente em todos os elementos do sistema, mas, por sua vez, resulta de todos eles. Para entender o sistema, é preciso entender a natureza da dominante, mas, para isso, é preciso captar e entender o que não cabe na natureza dessa dominante. Seu não-ser delineia seu ser. Há uma estrutura subjacente, que é preciso radiografar para entender, que dita o modo de pensar, ler, escrever, valorar, divulgar.
A dominante não é mera divisão em capítulos, cenas ou estrofes, também não é simplesmente a estrutura profunda ou o gesto semântico da obra. A dominante é contexto textualizado de modo partidário ou totalizador para persuadir segundo a diretriz semântica traçada pela orientação de sua estrutura profunda. É um poder secreto que impera em todo o sistema, o conjunto das conexões entre as partes, a razão íntima de suas ênfases e seus escamoteamentos. Ela é o mais evidente e, ao mesmo tempo, o mais recôndito do sistema. Pode ser aflorada subitamente num detalhe, numa expressão mais ou menos obscura, num elemento à primeira vista inexplicável. Mas para chegar a isso, é preciso conhecer todo o sistema e as suas alternativas.
A dominante é a diretriz política do sistema, a teia íntima daquilo que vai acontecendo no sistema, a instância que decide o que nele cabe e o que nele não cabe, bem como o modo pelo qual aí vai se integrar. Ela é o que diferencia um sistema em relação aos demais, o que faz com que ele seja ele mesmo e não outro. Sua essência é vontade de dominar, impor sua visão. Defini-la abstratamente é, porém, escamoteá-la. É preciso fazer um percurso contrastivo pelos sistemas constituídos por obras, correntes e épocas, ao longo da história da literatura ocidental, para tentar captar na dominante do percurso do herói a própria dominante do curso da história.
A teologia cristã propôs que as ideias seriam puras formas de tudo o que existiu, existe e existirá ou que poderia ter sido, sem ocupar nenhum lugar por não terem materialidade. Ora, não há forma que não tenha certa materialidade, assim como a matéria sem forma. Supor que possa haver pura forma de tudo e que isso seria a essência de todo o universo
não tem consistência lógica, pois não há pura forma sem matéria, mas é uma ideologia que serve para dar poder a quem finge ter acesso a essa fonte. Se ela fosse absoluta, seria inacessível. Deus tem servido, portanto, para não ver o que seria o ser das coisas.