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UFRGSLivro Descolonizar

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a prática e o sexo

descolonizar

Jenniffer Simpson dos Santos


Rochele Fellini Fachinetto
Rosimeri Aquino da Silva
(Organizadoras)
Copyright © Editora CirKula LTDA, 2019.
1° edição - 2019

Edição, Diagramação e Projeto Gráfico: Mauro Meirelles


Revisão e Normatização: Mauro Meirelles
Capa: Jennifer Simpson
Tiragem: 300 exemplares para distribuição on-line

Editora CirKula
Av. Osvaldo Aranha, 522 - Loja 1 - Bomfim
Porto Alegre - RS - CEP: 90035-190
e-mail: editora@cirkula.com.br
Loja Virtual: www.livrariacirkula.com.br
a prática e o sexo
descolonizar

Jenniffer Simpson dos Santos


Rochele Fellini Fachinetto
Rosimeri Aquino da Silva
(Organizadoras)

Porto Alegre
2019
CONSELHO EDITORIAL
Mauro Meirelles
Jussara Reis Prá
José Rogério Lopes
César Alessandro Sagrillo Figueiredo

CONSELHO CIENTÍFICO
Alejandro Frigerio (Argentina)
André Luiz da Silva (Brasil)
Antonio David Cattani (Brasil)
Arnaud Sales (Canadá)
Cíntia Inês Boll (Brasil)
Daniel Gustavo Mocelin (Brasil)
Dominique Maingueneau (França)
Estela Maris Giordani (Brasil)
Hermógenes Saviani Filho (Brasil)
Hilario Wynarczyk (Argentina)
Jaqueline Moll (Brasil)
José Rogério Lopes (Brasil)
Ileizi Luciana Fiorelli Silva (Brasil)
Leandro Raizer (Brasil)
Luís Fernando Santos Corrêa da Silva (Brasil)
Lygia Costa (Brasil)
Maria Regina Momesso (Brasil)
Marie Jane Soares Carvalho (Brasil)
Mauro Meirelles (Brasil)
Simone L. Sperhacke (Brasil)
Silvio Roberto Taffarel (Brasil)
Stefania Capone (França)
Thiago Ingrassia Pereira (Brasil)
Wrana Panizzi (Brasil)
Zilá Bernd (Brasil)
11 Apresentação

Capítulo 1
21 Aportes decoloniales a las políticas feministas en
américa latina y el caribe: algunos debates necesarios
Ana María Castro Sánchez

Capítulo 2
39 Descolonizando el sexo, desgenerizando la colonialidad
Begoña Dorronsoro

Capítulo 3
61 Fazendo Gêneros decoloniais: academia e ativismo
Sumário

Cristina Scheibe e Vera Gasparetto

Capítulo 4
83 Homicídios juvenis: reflexões sobre colonialidade e o
aumento de mortes de mulheres jovens em fortaleza
Deinair Ferreira de Oliveira

Capítulo 5
99 Inflexões decoloniais: As relações de gênero na vida
das mulheres-professoras em assentamentos da Reforma
Agrária – MA
Elisângela Santos de Amorim

Capítulo 6
117 Descolonizar a prática: o artesanato como forma de
afirmação ética
Jenniffer Simpson dos Santos

Capítulo 7
145 A colonialidade do gênero e suas implicações
para os estudos feministas
Natércia Ventura Bambirra, Raíssa Jeanine Nothaft e
Teresa Kleba Lisboa
Capítulo 8
169 O cuidado enquanto estratégia: uma perspectiva sobre a
escolha das estudantes mulheres do Curso Normal
Renata D´avila Borges

Capítulo 9
191 Intersecções de gênero, raça e classe: um “cinema
decolonial” é possível?
Renata Santos Maia

Capítulo 10
229 Feminicídio e interseccionalidades: uma análise
dos inquéritos policiais
Roberta Silveira Pamplona

Capítulo 11
259 Novas questões na Sociologia no Ensino Médio:
heteronormatividade na escola, um estudo de caso
Tamirys Claudino Bica

Capítulo 12
281 Aborto, gênero e sistema de justiça criminal
Vanessa Ramos da Silva

311 Sobre as Autoras


apresentação

Jenniffer Simpson dos Santos


Rochele Fellini Fachinetto
Rosimeri Aquino da Silva
Apresentação

Iniciamos com o reconhecimento da diversidade das


autoras que compõem esta obra coletiva - resultante de um
saber partilhado. No que tange as suas titulações e áreas de
formação: professoras universitárias e da educação básica,
pós-doutorandas, doutorandas, mestrandas, licenciadas, his-
toriadoras, psicólogas, sociólogas. Algumas participam de
movimentos sociais e desenvolvem pesquisas há longo tem-
po; outras estão iniciando suas jornadas como pesquisadoras
e também suas atuações em organizações populares, recen-
temente, visto suas juventudes.
Elas são de lugares próximos e distantes, algo obvia-
mente relativo: Colômbia, Portugal e, do Brasil, atuantes nos
descolonizar: a prática e o sexo

Estados de Santa Catarina, Mato Grosso do Sul, Rio Gran-


de do Sul, Minas Gerais. O que há em comum em alguns
de seus trabalhos, aqui apresentados? Em linhas gerais, a
preocupação em investigar condições de vida de mulheres
contemporâneas e a articulação/fundamentação dessas in-
vestigações com campos teóricos feministas, pós-estrutura-
listas e de/descoloniais.
O presente livro reúne 12 textos de estudiosas que, de
diferentes formas, convidam-nos a pensar em modos diver-
sos de Descolonizar a prática e o sexo. Compreendemos
“prática” como formas de saber do corpo que orientam ma-
neiras de fazer. Cabe também partilhar com as leitoras e lei-
tores que a palavra “sexo” é usada no título deste livro para
referir-se à assimetria de poder sexual. Não fizemos uso da
palavra “gênero” porque a consideramos uma transliteração
e não uma tradução, ou seja, representa mais um sinal de
subordinação imperial. Além disso, o termo “gênero” está an-
corado na dicotomia natureza/humanidade, pois presume um
“sexo” biológico distinto de um “gênero” social. Desse modo,
utilizar “gênero” é reafirmar a criação de mais uma dicotomia,

11
que entendemos como desnecessária e inoperante enquanto

descolonizar: a prática e o sexo


recurso de resistência.
Os focos de interesses de pesquisa dessas mulheres
também são diversos: dilemas concernentes às teorizações
e às práticas feministas, mulheres negras normalistas, arte-
sãs indígenas, professoras de assentamentos, discussões
sobre gênero e sexualidade, assim como sobre os conceitos
de pós-colonialismo, neocolonialismo, colonialismo, coloniali-
dade, de(s)colonialidade, cinema, mulheres trans, educação,
homicídio, aborto e feminicídio. Assim, apresentamos nossos
olhares descoloniais:
No capítulo 1 - Aportes decoloniales a las políticas femi-
nistas en américa latina y el caribe: algunos debates necessá-
rios - Ana María Castro Sánchez aponta importantes deba-
tes concernentes às políticas feministas na América Latina e
no Caribe. O argumento é o de que existem reflexões críticas
feministas com características próprias e situadas. Como, por
exemplo, as das mulheres negras, de cor, do “Terceiro Mun-
do”, populares, indígenas, lésbicas e também há reflexões
pós e decoloniais que colocam em questão as bases teóricas
e políticas do feminismo hegemônico ocidental. Nas palavras
da autora, essas correntes dos feminismos e seus diferentes
pontos de vista respondem a diferentes experiências dentro
da teoria e da prática, nas quais esses diversos feminismos
não se reconheciam. A autora compreende a necessidade de
se pensar feminismos para além dos dualismos, visto os im-
portantes redimensionamentos que os caracterizam ao lon-
go da história da América Latina e do Caribe. É importante,
nessa perspectiva, reconhecer a diversidade dos feminismos,
seus conflitos e suas formas de ação política.
No capítulo 2 - Descolonizando el sexo, desgenerizan-
do la colonialidad - Begoña Dorronsoro discute a proposta
de trabalho do feminismo comunitário, cujo lema é: no hay
descolonización sin despatriarcalización. Para isso, a autora
convoca o conceito de “colonialidade do poder” para apre-
sentar alguns limites dos feminismos ditos hegemônicos.
12
Ao mesmo tempo, Dorronsoro nos apresenta estudiosas,
ativistas e militantes latino-americanas que constroem uma
epistemologia própria a partir das suas experiências corpo-
ralmente inscritas.
No capítulo 3 - Fazendo Gêneros decoloniais: academia
e ativismo apresenta perspectivas teóricas e epistemológicas
feministas - Cristina Scheibe e Vera Gasparetto contribuem
para a formulação de feminismos decoloniais e contra hege-
mônicos, denunciando a colonialidade como uma forma de
poder a partir da hierarquização de raça/etnia e sexo/gênero,
O artigo traz reflexões sobre tentativas de se colocar em prá-
tica, especialmente na organização do 13º Women’s Worlds
Congress e Seminário Internacional Fazendo Gênero 11
(WW/FG), as propostas das epistemologias feministas deco-
loniais na América Latina. As autoras consideram fundamen-
descolonizar: a prática e o sexo

tal o desafio que está colocado para as ativistas acadêmicas


das universidades, a saber: dialogar, construir relações com
agendas de lutas dos movimentos sociais. Nesse sentido, é
necessário o reconhecimento dos saberes que estão à mar-
gem dos conhecimentos hegemónicos.
No capítulo 4 - Homicídios juvenis: reflexões sobre co-
lonialidade e o aumento de mortes de mulheres jovens em
fortaleza - Deinair Ferreira de Oliveira discute sobre a re-
lação das desigualdades sociais resultantes do processo de
colonialidade no Brasil com os homicídios de jovens negros e
com o aumento de mortes de mulheres jovens na cidade de
Fortaleza/CE. A autora analisa sobre o porquê do significativo
aumento do número de mortes dessas mulheres e constata
que, ainda hoje, é conferido à população negra brasileira um
lugar de exclusão, de ausência de direitos e de extermínio.
No capítulo 5 - Inflexões decoloniais: As relações de
gênero na vida das mulheres-professoras em assentamen-
tos da Reforma Agrária/MA - Elisângela Santos de Amorim
traz, à luz das contribuições das teorias feministas pós-co-
loniais e decoloniais, uma releitura de narrativas de vida, de
pesquisa que realizou sobre mulheres-professoras de as-
13
sentamentos. Ela busca compreender os processos de su-

descolonizar: a prática e o sexo


balternidade vivenciados por essas mulheres, tentando per-
ceber os eixos de dominação que assolam suas vidas, além
do gênero, visto a complexidade da vida concreta e material
das mulheres latino-americanas. É no contexto de análise
da vida e da trajetória de mulheres em assentamentos da
Reforma Agrária, que a autora percebe que a categoria gê-
nero foi insuficiente para entender o que essas mulheres vi-
venciaram e os limites do gênero como princípio fundador da
organização de suas vidas.
No capítulo 6 - Descolonizar a prática: o artesanato como
forma de afirmação ética - Jenniffer Simpson dos Santos,
através de etnografia, feita junto a artesãs pertencentes às
associações AMARN e na AMISM, formadas por mulheres in-
dígenas que migraram para Manaus. Em seus percursos, as
artesãs vão constituindo maneiras próprias de organização
da vida e, ao mesmo tempo, vão mostrando suas formas de
saber-fazer a partir da prática do artesanato.
No capítulo 7 - A colonialidade do gênero e suas implica-
ções para os estudos feministas - Natércia Ventura Bambir-
ra, Raíssa Jeanine Nothaft e Teresa Kleba Lisboa discutem
os conceitos de pós-colonialismo, neocolonialismo, colonialis-
mo, colonialidade, de(s)colonialidade e procuram analisar al-
gumas construções teóricas latino-americanas e africanas. O
objetivo da análise é lançar outros olhares para as universa-
lizações de gênero, “mulher” e família a partir da perspectiva
de uma “América Africana” ou “Améfrica”. A perspectiva teó-
rica descolonial é utilizada como ferramenta teórico-analítica,
que lhes permite vislumbrar a estruturação do poder colonial
em meio a presença de lógicas e racionalidades “outras”. E,
também, nessa perspectiva, é lançado o desafio de intercultu-
ralizar, plurinacionalizar e descolonizar o Estado, a sociedade
e a produção de conhecimento académico.
No capítulo 8 - O cuidado enquanto estratégia: uma
perspectiva sobre a escolha das estudantes mulheres do
Curso Normal - Renata D´avila Borges nos desafia a olhar-
14
mos para a escolha das mulheres em realizar essa forma-
ção, que se dá no Ensino Médio da Educação Básica, como
uma estratégia de um cuidado com seus filhos e que é fun-
damentado em uma análise consciente sobre qual espaço
social essas mulheres, na sua grande maioria, negras e po-
bres, ocupam. Trata-se de um cuidado robusto e sofisticado,
típico de quem reconstrói o que lhe é dado para além de
uma condição de subalternidade.
No capítulo 9 - Intersecções de gênero, raça e clas-
se - Um “cinema decolonial” é possível? - Renata Santos
Maia apresenta compreensões das premissas do pensa-
mento decolonial e as relacionam com o cinema produzi-
do na América Latina. A autora faz a análise de três lon-
gas-metragens que trazem em seus roteiros, por exemplo,
os problemas estruturais que afligem a América Latina, as
descolonizar: a prática e o sexo

questões seculares herdadas do colonialismo, como a per-


sistência das violências incididas sobre os corpos femini-
nos, e ao mesmo tempo, o esquecimento dessas marcas e
a prevalência da impunidade.
No capítulo 10 - Feminicídio e interseccionalidades: uma
análise dos inquéritos policiais - Roberta Silveira Pamplona
reflete e questiona as relações produzidas nos inquéritos po-
liciais de homicídios com vítimas mulheres qualificados como
feminicídios. Através de análises documentais e baseando-se
em teorias e metodologias que relacionam o gênero como ca-
tegoria central em interação com outros marcadores sociais,
a autora problematiza de que forma uma categoria jurídica
construída para universalizar práticas violentas pode também
produzir narrativas diferentes sobre os sujeitos, qualificando
de forma gravosa essas práticas como motivadas pelo gêne-
ro. A autora buscou aporte teórico no feminismo pós-colonial,
principalmente ao questionar termos binários e dicotômicas
em que se pensa o mundo social.
No capítulo 11 - Novas questões na sociologia no En-
sino Médio: heteronormatividade na escola, um estudo de
caso - Tamirys Claudino Bica analisa o caso de duas es-
15
tudantes transgênero em uma Escola Pública de Ensino

descolonizar: a prática e o sexo


Médio – EJA de Porto Alegre, debatendo sobre a nova pre-
sença da sociologia no Ensino Médio e suas relações com
novas questões presentes na escola da atualidade. A autora
utilizou como base teórica referências e conceitos obtidos
da sociologia das conflitualidades, estudos de gênero e de
sexualidade para compreender os conflitos desencadeados
nas situações apresentadas.
No capítulo 12 - Aborto, gênero e sistema de justiça
criminal - Vanessa Ramos da Silva apresenta uma revisão
sobre os estudos de gênero e sistema de justiça no Brasil,
discutindo sobre o aborto e sua criminalização. Ela se funda-
menta nos trabalhos sobre gênero e justiça já desenvolvidos
no país, que demonstram a dinâmica do sistema de justiça
e o lugar das mulheres no direito penal. Através da revisão
desses estudos em debate com estudos sobre o aborto, a
conclusão é que a sua criminalização acaba por agir mais
como uma forma de atribuir um caráter criminoso simbolica-
mente do que efetivamente um instrumento que visa a per-
secução e punição pelo crime.
Este livro foi concebido especialmente com a intenção
de reunir essas autoras mulheres, que pensam a condição
feminina e seus dilemas em pleno século XXI. Os textos sele-
cionados estabelecem interlocuções fundamentais no contex-
to sócio-político-econômico em que vivemos.
Estamos em um mundo repleto de discursos hegemô-
nicos, que ditam como devemos nos portar, o que devemos
dizer; impõem como devemos viver nossas próprias vidas
dentro de uma lógica patriarcal, de controle  e de censura,
que produz violências e tentam minar as resistências que
lutam contra um sistema que oprime, julga e reduz a mu-
lher, inferiorizando-a em relação ao contexto dominante da
heteronormatividade.
As doutoras pesquisadoras, doutorandas, mestrandas,
graduandas em pleno processo de pesquisa, de escrita e de
mobilização articulam seus temas de estudo e os convergem
16
para um mesmo objetivo: teorizar sobre a condição do femini-
no no mundo contemporâneo. Mais do que nunca, essa ques-
tão está no cerne das discussões na nossa sociedade e no
mundo acadêmico, que são lugares onde buscamos nossas
inspirações e vivenciamos lutas, resistências e libertações.
descolonizar: a prática e o sexo

17
Aportes decoloniales a las políticas feministas en América
Latina y el Caribe: algunos debates necesarios

Ana María Castro Sánchez


Aportes decoloniales a las políticas feministas
en América Latina y el Caribe: algunos
debates necesarios

La historia de los feminismos en América Latina y El Ca-


ribe y su expresión política como movimiento social1 se ha
realizado principalmente a partir de denominaciones que con-
jugan las diferentes reivindicaciones feministas que caracteri-
zan una época del movimiento, comúnmente conocidas como
olas e historizadas por décadas. Pensar los feminismos en la
región a partir de los referentes de dichas olas, enumeradas
y caracterizadas principalmente desde Estados Unidos y Eu-
ropa, nos lleva a un intento – a veces no muy fructífero – de
escribir una historia que al contrario de lo que nos presentan
las olas no ha sido lineal ni consecutiva, así como no han
descolonizar: a prática e o sexo

existido reivindicaciones exclusivas que hagan del movimien-


to feminista algo homogéneo.
Es por ello que prefiero pensar no en una ola que vine
tras la otra sino en mareas que a veces se juntan, suben, ba-
jan, son más o menos intensas, móviles, sin fronteras estáti-
cas, en devenir constante. En suma, una historia más fluida y
principalmente situada en nuestros contextos con toda su di-
versidad y complejidad, donde tienen lugar feminismos que no
vienen como olas sino que son flujos y redes. Ello no significa
que no encontremos en América Latina y El Caribe algunas
de las reivindicaciones de los feminismos que caracterizan

1 Existe una amplia discusión sobre las acciones colectivas que se pueden
identificar como movimientos sociales, así como una crítica a las teorías
producidas en contextos diferentes a los de América Latina con las cuales
se ha pretendido leer y comprender los movimientos sociales de la región
(ver FLORES, 2015; PARRA, 2005; PURICELLI, 2005; MARTÍNEZ, CASA-
DO e IBARRA 2012; BIGLIA 2007; entre otras). No obstante, uso la idea
de movimiento social como categoría analítica, en la medida en que como
afirma Doris Lamus (2008: 25): “[con los movimientos de mujeres y feminis-
tas] sí hemos construido históricamente, en Colombia y en el concierto de
países latinoamericanos, movimiento social en un doble sentido: en tanto
hecho empírico de acción colectiva y en tanto construcción discursiva”.
21
las conocidas olas. Es posible identificar aspectos comunes

descolonizar: a prática e o sexo


con los feminismos construidos en otras latitudes, entre ellos
las luchas por el reconocimiento de la igualdad en derechos.
Sin embargo, considero que el pensamiento feminista
que se ha construido en la región no debe ser comprendido
como un mero reflejo o eco descontextualizado de las men-
cionadas olas. En este sentido, es necesario dar atención a
lo que este tipo de lecturas implican en relación a las diver-
sas formas como se expresa la colonialidad; siguiendo la pro-
puesta del sociólogo peruano Aníbal Quijano (2011), cuando
afirma que tanto la colonialidad del poder como la dependen-
cia histórico-cultural implican ambas la hegemonía del euro-
centrismo como perspectiva de conocimiento, que además
somete, produce y controla las relaciones intersubjetivas, el
imaginario, la memoria social. Todo ello queda atrapado en el
patrón eurocéntrico que se fue encauzando como racionali-
dad instrumental o tecnocrática, en particular respecto de las
relaciones sociales de poder y en las relaciones con el mun-
do, como eje que organizó y organiza la diferencia colonial.
Asimismo, es importante tener en cuenta la colonialidad
del ser en la medida en que supone una descalificación epis-
témica como instrumento privilegiado de la negación ontoló-
gica o de la subalterización (MALDONADO-TORRES, 2007).
En este caso se trataría de la valoración que se le da al cono-
cimiento producido por las feministas que están en esta parte
de lo que conocemos como Tercer Mundo; ya que tanto la
opresión como la negación son aspectos de la lógica de la
colonialidad que opera sobre los individuos negando lo que
saben (MIGNOLO, 2010). Ello implica estar atentas a que en
el pensamiento feminista también existe una colonialidad del
saber que expresa una geopolítica del conocimiento, según la
cual en el mundo colonizado no se produce sino que se repro-
duce conocimiento europeo, que se impone como universal,
objetivo y verdadero (LANDER, 2000).
Una respuesta a ello es reconocer el derecho a producir
saberes situados en nuestras condiciones sociales, políticas,
22
económicas, culturales, que contribuyen también a la cons-
trucción de teorías feministas en el sentido que plantea la filó-
sofa argentina María Luisa Femenías:

nos permite organizar explicaciones alternativas en térmi-


nos de contribuciones teóricas que favorezcan la mejor ela-
boración, clarificación y comprensión de tesis ajenas tami-
zadas por nuestra experiencia crítica. Tales conocimientos
- posicionados, parciales, localizados - admiten la posibili-
dad de conexiones en sistemas dislocados que den mejor
cuenta de nuestra situación. Por eso, un primer paso es
revisar nuestras propias contribuciones teóricas resignifica-
das. El siguiente es denunciar el problema de la inaudibili-
dad y de la intransitabilidad de nuestras propuestas dentro
mismo del territorio latinoamericano, en la medida en que
su posición “igualitaria” no es ni equivalente, ni equipotente,
ni simétrica, ni recíproca (FEMENÍAS, 2007: 14).
descolonizar: a prática e o sexo

Muestra de que ha existido una amplia reflexión crítica


feminista propia y situada son las propuestas de las mujeres
negras, de color, del Tercer Mundo, populares, indígenas, les-
bianas, así como los enfoques feministas pos y decoloniales2,
que cuestionan las bases teóricas y políticas del feminismo
occidental hegemónico.3 En Latinoamérica y el Caribe los
aportes de estas corrientes de los feminismos, sus diferentes
2 Para comprender la diferencia epistemológica y política entre el feminis-
mo poscolonial y decolonial ver Curiel (2014b).

3 En cuanto al tránsito de estas propuestas en el caso de Latinoamérica


se viene haciendo un esfuerzo por circularlas y publicarlas. Un ejemplo de
ello son dos obras que se han dado a la tarea de recopilar la producción
propia de los feminismos situados en América Latina y el Caribe desde
una perspectiva decolonial: Ensayos de crítica feminista en nuestra
América (MENDOZA, 2014); Tejiendo de otro modo. Feminismo, epis-
temología y apuestas decoloniales en Abya Yala (ESPINOZA et Al.,
2014). Asimismo, desde una perspectiva poscolonial encontramos Femi-
nismos y poscolonialidad. Descolonizando el feminismo desde y en
América Latina (BIDASECA y VAZQUEZ, 2011) y Descolonizando el
feminismo. Teorías y prácticas desde los márgenes (SUÁREZ y HER-
NÁNDEZ, 2008), que incluye traducciones al español de textos fundacio-
nales del feminismo poscolonial.
23
puntos de vista, responden a experiencias dentro de la teoría

descolonizar: a prática e o sexo


y práctica de un feminismo en el que no se reconocían.
Un punto de partida importante fue el cuestionamiento
del sujeto del feminismo, proponiendo la deconstrucción de la
categoría mujer como universal y homogénea. Para la domini-
cana activista del movimiento de mujeres negras, lésbico-fe-
minista y decolonial latinoamericano y caribeño Ochy Curiel
(2014a) si bien el sujeto del feminismo fue cuestionado por
las “afrolatinas y caribeñas, las mujeres populares y muchas
lesbianas feministas” que la diferencia fuera el fundamento
aunque necesario era insuficiente, debido a los interrogantes
que trae el estar sustentadas en una identidad que puede te-
ner sesgos esencialistas, sin embargo:

Reconocer las diferencias entre las mujeres, feministas,


lesbianas atravesadas por distintas categorías y posicio-
nes de sujetas sin duda fue un gran avance para el femi-
nismo de la región, pues permitió destruir el mito de ‘la
mujer’ que contenía el sesgo universalizante de la moder-
nidad occidental. Permitió emerger las feministas popula-
res, las afrofeministas, las lesbianas feministas, incluso,
aunque mucho después, indígenas que se asumían femi-
nistas desde sus propias cosmovisiones. Y estas han sido
corrientes importantes del feminismo que han colocado el
racismo, el etnocentrismo, la heterosexualidad como ins-
titución y régimen político en el centro de las propuestas
feministas, en sus teorías y en sus prácticas (CURIEL,
2014a: 328-329).

Entre los diferentes aportes que han hecho a la políti-


ca feminista en América Latina y el Caribe estas corrientes
se encuentra la del feminismo negro o afrodescendiente que
cuestionó la categoría mujer que en su pretensión totalizado-
ra escondía el racismo y el clasismo. Otros aportes de este
feminismo, siguiendo a la autora, fue hacer visibles estos sis-
temas de dominación que además del sexismo se reproducen
entre las mismas mujeres invisibilizando las experiencias de
las mujeres no blancas. Su propuesta es que las feministas,
24
hayan sido racializadas o no, sean de diversas posiciones so-
ciales y orientaciones sexuales, aborden los diferentes sis-
temas de opresión que afectan a todas las mujeres en cada
contexto. Lo que conocemos hoy en día como intersecciona-
lidad o imbricación de los sistemas de opresión deviene de
estas propuestas.
Asimismo, las feministas negras además de abordar
el racismo en el feminismo han trabajado por hacer visible y
transformar el sexismo en la lucha antirracista participando en
el movimiento mixto. Para ello ha sido importante dar el valor
y reconocimiento necesario a sus propias construcciones in-
ternas y puntos de vista como afrodescendientes, reconocer
las diversas maneras como el racismo se expresa tanto en la
sociedad como en la vida de hombres y mujeres. Para el fe-
minismo también ha sido relevante el cuestionamiento que las
descolonizar: a prática e o sexo

mujeres racializadas ha hecho a la visión esencialista de la


división entre lo público y lo privado y con ello la noción de tra-
bajo y su división sexual, en la valoración social que implica.
Por su parte del movimiento de mujeres indígenas en su
amplia diversidad y particularidad según cada país, ha pro-
puesto para el movimiento feminista blanco, urbano, clase
media, escolarizado de la región reconocer el etnocentrismo
y el esencialismo étnico que ha impedido la construcción con-
junta y el reconocimiento de los aportes de las indígenas a la
política feminista. Como plantea la antropóloga mexicana Ro-
salva Aída Hernández Castillo (2014), las mujeres indígenas
organizadas también han emprendido una importante lucha
para que el movimiento indígena reconozca su sexismo, des-
centrando los discursos nacionalistas, indianistas y feminis-
tas. Las luchas de las mujeres indígenas en la región combi-
nan sus demandas específicas de género con las luchas por
la autonomía de sus pueblos, así han ido construyendo dis-
cursos y prácticas políticas propias a partir de una perspectiva
de género situada culturalmente.
Sus identidades étnicas, de clase y de género han de-
terminado sus estrategias de lucha, creando espacios propios
25
para pensar sus experiencias de exclusión como mujeres y

descolonizar: a prática e o sexo


como indígenas. Ello a implicado retos para los feminismos
de la región ya que, aunque se reconoce la diversidad de con-
textos y sus implicaciones en la construcción de los géneros,
las agendas feministas no logran ser del todo incluyentes para
dar cuenta de esta diversidad que discursivamente se dice
comprender, y dejar así de ver a las mujeres indígenas como
pasivas, víctimas del patriarcado, del capital o de su cultura.
En este sentido, continua plateando Hernández (2014),
un aporte importante de las mujeres indígenas es el señala-
miento de los peligros de los discursos esencialistas, reivindi-
cando el carácter histórico y cambiante de sus culturas. Asi-
mismo, rechazan los usos y costumbres que ellas consideran
que atentan contra su dignidad y propenden por cambiar las
tradiciones que consideran contrarias a sus derechos, ele-
mentos de sus tradiciones que consideran opresivos y exclu-
yentes. De esta manera su lucha no es por el reconocimiento
de una cultura esencial sino por su derecho a reconstruirla,
confrontarla y reproducirla, no en los términos que imponen
los estados, sino en los que los propios pueblos indígenas lo
decidan en su pluralismo interno.
Las mujeres indígenas y sus organizaciones que se po-
sicionan como feministas se han apropiado del término para
darle nuevos sentidos y significados propios, ampliando así la
pluralidad de feminismos que existen en América Latina y el
Caribe. Su activismo ha dado lecciones al feminismo en la re-
gión sobre como pensar el multiculturalismo y la intercultura-
lidad desde una perspectiva de género crítica con la manera
como la clase y la etnicidad marcan las identidades diversas
de las mujeres indígenas. Asimismo, nos han mostrado que
es posible una concepción dinámica de la cultura y como pen-
sar la autonomía desde esta perspectiva.
En América Latina, particularmente en Bolivia y Guate-
mala también han sido contundentes los aportes del feminis-
mo comunitario, tanto al movimiento feminista de la región
como su participación en los movimientos mixtos de perte-
26
nencia étnica. Este movimiento4 nos propone entender la Pa-
chamama como un todo que va más allá de la naturaleza
visible y no como madre tierra al ser una mirada reduccio-
nista y machista que hace referencia solo a la fertilidad para
controlar y explotarla según el arbitrio patriarcal; así como la
relación es recíproca y no de propiedad como garante de la
vida de la comunidad.
Asimismo, este feminismo concibe la comunidad como
“ser en sí misma, con identidad propia. Mujeres, hombres,
tierra, territorio, animales, vegetales”, otra forma de comuni-
dad que constituye una alternativa a las actuales comunida-
des que son patriarcales. A esta propuesta “la rige el principio
de la reciprocidad no solo con la tierra y el territorio, sino entre
sus integrantes, y entre sus integrantes y la comunidad como
una otra”. El vivir bien de las personas de la comunidad es
descolonizar: a prática e o sexo

una responsabilidad y un deseo de todas y todos, así como el


par mujer-hombre es político, no de género ni erótico-afectivo.
Para el feminismo comunitario es necesario desmontar
el Estado patriarcal y neoliberal, para que los pueblos puedan
interactuar como un par político, que prevé bienestar colec-
tivo e individual y no que determine y oprima. Asimismo, el
reclamo no es tierra para las mujeres sino la anulación de la
propiedad patriarcal y la abolición de la guerra que depreda el
territorio y convierte a las mujeres en su botín de guerra.
Por su parte las feministas que se organizan como les-
bianas políticas, también han contribuido al movimiento femi-
nista de América Latina y el Caribe en el debate respecto de la
identidad, del sujeto de feminismo y la crítica al esencialismo.
La activista y académica decolonial dominicana Yuderkys Es-
pinosa Miñoso (2016) menciona que las feministas lesbianas
han aportado un marco conceptual y analítico para pensar la

4 Pronunciamiento del Feminismo comunitario en la Conferencia de los


pueblos sobre cambio climático, realizada en Bolivia en 2010. En: ESPI-
NOSA, Y.; et Al. Tejiendo de otro modo: Feminismo, epistemología y
apuestas descoloniales en Abya Yala. Popayán: Universidad del Cauca,
2014. Pp. 424-434.
27
constitución del patriarcado en sus múltiples manifestaciones

descolonizar: a prática e o sexo


y complejidades. Con el análisis de la heterosexualidad como
sistema de poder que oprime a todas las mujeres, nos llevan
a comprender la heterosexualidad más que como práctica se-
xual, como sistema, institución o régimen. Este movimiento
vincula el lesbianismo con el feminismo en una comprensión
dentro de la teoría feminista de la heterosexualidad obligato-
ria como institución social responsable de la producción de
un sujeto femenino cuyo deseo e identidad asegura la depen-
dencia del varón.
Siguiendo a la autora, las lesbianas feministas han re-
pensado su compleja vinculación con la categoría “mujeres”,
al respecto no han construido una teoría particular sobre un
tipo de subjetividad o problemática específica de “las les-
bianas”, más bien su pensamiento ha estado comprometido
con explicar la subordinación de las mujeres. Así han logra-
do producir fracturas en la categoría mujer, al involucrar las
discusiones respecto de la producción del sujeto, las formas
contemporáneas de concebir al poder y las críticas a los prin-
cipios fundamentales de la modernidad, como la pretensión
de universalidad y de unicidad del sujeto.
Asimismo, podemos afirmar que las contribuciones teó-
ricas y políticas de los feminismos latinoamericanos y del ca-
ribe están relacionados con pensar los cuerpos, no solo en un
sentido generizado y sexualizado, sino también como objetos
de políticas de racialización y empobrecimiento que vienen
desde la colonización del continente produciendo lo que se ha
denominado como un entronque de patriarcados (CABNAL,
2010). Otra propuesta que emerge en contextos de empobre-
cimiento y subalternización como los de América Latina es la
construcción de vínculos afectivos que surgen fuera de la fa-
milia tradicional heteronormativa, como postura anticapitalista
donde lo monetario no es lo central.
Desde este continente se ha trabajado por descoloni-
zar también el feminismo puesto que no son universales las
ideas sobre los proyectos feministas de liberación, y existen
28
necesidades específicas relacionadas con los efectos del co-
lonialismo y el imperialismo. Lo que conlleva repensar el mo-
delo económico, cultural y político que subyace a las defini-
ciones liberales de los derechos de las mujeres, un discurso
que ha sido resemantizado por diversas apuestas feministas
situadas, pensando de otra manera los géneros y la relación
con la naturaleza.
Para Curiel (2010, 2014a) la descolonización del femi-
nismo en la región implica hacer visibles otras historias que
han sido poco a casi nunca contadas, que corresponden a
experiencias situadas con las cuales se rescatan diferentes
propuestas epistemológicas y políticas que localizan el pen-
samiento y la acción, contraria a la universalización que pla-
tea la modernidad. En este sentido, la autora plantea la nece-
sidad de repensar la relación poder-conocimiento y el binario
descolonizar: a prática e o sexo

activismo- teoría, ya que en Latinoamérica y el Caribe aun-


que no exista una extensa producción teórica sí hay muchas
prácticas políticas feministas que han sido poco teorizadas y
conceptualizadas; consideradas solo como activismo o sis-
tematizaciones de prácticas feministas que no se ubican en
el mismo nivel académico y teórico que las referencias euro-
peas y norteamericanas.
Esta mirada establece una división entre la política y la
teoría que, según la autora, las niega como formas de dis-
curso y conocimiento que produce cambios y transformacio-
nes sociales. Descolonizar los feminismos en la región implica
superar estos binarismos para darles fuerza como propues-
tas epistemológicas distintas, particulares, significativas, y así
descentrar el sujeto euronorcéntrico y la subalternidad que el
mismo feminismo latinoamericano reproduce en su interior. Pa-
ralelamente el reto ético y político de las feministas europeas y
norteamericanas será reconocer estas experiencias teóricas y
políticas como parte del acervo y la genealogía feminista.
En este sentido, un trabajo importante ha sido el de Fran-
cesca Gargallo feminista autónoma italiana radicada en México
desde 1979 especialista en estudios latinoamericanos, quien
29
se ha dado a la tarea de buscar, compartir y escribir sobre las

descolonizar: a prática e o sexo


ideas feministas latinoamericanas. Con ella asumo la afirma-
ción que estas ideas anteceden a un movimiento organizado,
ya que “la existencia de ideas feministas en América Latina es
más antigua que su acción en la historia; su origen histórico no
está ligado a un proceso filosófico externo, sino a la reflexión
sobre la propia alteridad con respecto al mundo de los hombres
y con respecto al mundo colonial” (GARGALLO, 2010: 18).
Igualmente, para pensar las políticas feministas en
América Latina, el Caribe y Colombia es necesario situarlas
teniendo en cuenta que el movimiento feminista ha estado
estrechamente relacionado con las circunstancias políticas,
económicas, sociales y culturales que han marcado la historia
de las luchas sociales de esta parte del denominado Tercer
Mundo. Se trata de pensar la acción política feminista en con-
textos atravesados por conflictos armados internos, empobre-
cimiento extremo, desplazamiento forzado, racismo, violencia
machista, y gobiernos que aunque se presenten como pro-
gresistas siguen estando al servicio del capital en contra de
los intereses de los pueblos y en detrimento de la naturaleza.
En este sentido, un aspecto importante para los movi-
mientos de mujeres y feministas en América Latina y el Caribe
han sido las implicaciones de la implementación del modelo
neoliberal, que es también racista y patriarcal, y las maneras
como éste ha influenciado la política y la organización social
en la región. Para Sonia E. Alvarez (2013, 2014) este con-
texto se expresa en tres momentos que han tanto fomentado
como limitado o incluso reprimido otras formas de discursos y
prácticas feministas. En el primero de esos momentos, que es
el inicio del neoliberalismo en la región, las personas empo-
brecidas y los grupos sociales racializados y subalternizados
garantizaron la supervivencia de las familias y las comunida-
des enfrentando las consecuencias de las políticas de ajuste
estructural, lo que implicó luchar también contra los procesos
de acumulación y militarización de los años 70 y 80, proble-
matizando y negando la relación con Estados dictatoriales.
30
Un segundo momento sobre el que reflexiona Alvarez es
el que denomina como neoliberalismo multicultural, que coin-
cide con las transiciones democráticas en la región aunque
las dictaduras se continúen en el mercado. En estos Estados
las feministas decidieron participar para afianzar la oposición
así como promover políticas diferentes a las que se les quería
dar continuidad; lo que trajo consigo paradojas pues aunque
se lograron conquistar algunas de las apuestas de las agen-
das feministas al mismo tiempo se imponía en la región la
denominada “nueva agenda de lucha contra la pobreza” pro-
movida por las instituciones financieras internacionales.
En este contexto se incrementan las políticas que foca-
lizan sobre los señalados grupos vulnerables, donde las es-
pecialistas en género van a encontrar un lugar como admi-
nistradoras de los proyectos dirigidos a dichos sectores de
descolonizar: a prática e o sexo

la población; al punto que estos sectores del feminismo se


consolidaron como hegemónicos en algunos países, princi-
palmente durante la segunda fase del neoliberalismo en la
región, según el análisis de Alvarez (2013). En este período
se hace evidente el intento por aplacar la fuerza combativa y
transgresora de los movimientos sociales de la región, inclui-
do el feminista, con la promoción de políticas que mercantili-
zan la ciudadanía integrándola mejor al mercado.
El tercer momento corresponde al actual post-neolibera-
lismo o neo-desarrollismo en el cual se reconfiguran tanto los
campos políticos como la acción de los movimientos sociales,
lo que da lugar a “nuevas angustias estratégicas y nuevas
paradojas políticas” como afirma la autora. Es aquí donde los
feminismos se pluralizan y en el campo de la política formal
aparecen gobiernos aparentemente democráticos, popula-
res, de centro-izquierda. En este momento también las mu-
jeres se autorganizan participando en diversos movimientos
y espacios políticos dando atención a no darle continuidad a
prácticas patriarcales en la política, así como asumen algunas
demandas del movimiento feminista. Esto trae consigo para-
dojas que más que anularlas sería valioso enfrentarlas ya que
31
los conflictos y las contradicciones pueden ser fructíferas para

descolonizar: a prática e o sexo


la autocrítica, provocando reflexiones y prácticas que contri-
buyan a revitalizar los movimientos feministas, de mujeres y
sociales de la región.
Estas experiencias despliegan políticas feministas que
desde perspectivas situadas en América Latina y el Caribe
son complejas y contradictorias, debido también a que corres-
ponden con procesos donde se interseccionan un conjunto de
opresiones junto con los colonialismos, las dictaduras, los po-
pulismos, y las dinámicas actuales de la globalización. Es por
ello que de nuestras especificidades surgen consignas como
“democracia en el país, en la casa y en la cama”, “marcadas
por las necesidades en nuestro continente de condiciones de
vida digna, erradicación de la exclusión económica y cese de
las vulneraciones de derechos humanos, la discriminación de
género y la subordinación femenina” (GÓMEZ, 2011: 87).
Por su parte, particularmente en Colombia el contexto
de guerra ha influenciado también la acción política del mo-
vimiento feminista. En el país convergen diferentes posturas
que congregan iniciativas organizativas -algunas de carácter
nacional-, que realizan seguimiento a las políticas estatales
frente a la guerra y la democracia. Estas organizaciones han
activado los debates en el país sobre el conflicto armado, las
posibles salidas en la búsqueda de la paz y las formas de
afectación diferencial y desproporcionada de la guerra en la
vida de las mujeres y los sectores LGBTIQ.
Las apuestas políticas en este sentido han sido diver-
sas, desde la salida negociada al conflicto armado hasta la
incidencia política para influir en la agenda pública que abarca
estos temas; apuestas que también pueden combinarse con
énfasis coyunturales o estratégicos o incluso estar condicio-
nadas por el tipo de financiación a la que se accede (LAMUS,
2010). Lo que nos lleva a tener en cuenta que en una posible
acción conjunta como movimiento y otros tipos de coalicio-
nes “la posición ante el conflicto armado y ante sus actores
centrales determina con quiénes se tejen alianzas, con quié-
32
nes se promueven acercamientos, quiénes se definen como
contradictores y quiénes definitivamente como enemigos”
(WILLS, 2004: 182). Con todo ello, en el contexto de esta
guerra las feministas y sus organizaciones también ha apos-
tado por el empoderamiento de las víctimas como actoras po-
líticas, impulsado procesos de memoria, siendo críticas frente
a la responsabilidad del Estado, con su corolario en relación
a la verdad, la justicia y la reparación desde una perspectiva
diferencial y con enfoque de género5.
Finalmente, para poder identificar los principales deba-
tes que caracterizan las políticas feministas en América Latina
y El Caribe, otro punto de partida que considero importante es
la necesidad de pensar nuestros feminismos más allá de los
dualismos, sin desconocer la importancia política de debates
que además son fundacionales y se han redimensionado con
descolonizar: a prática e o sexo

el tiempo, como las disputas entre el feminismo institucional


y el feminismo autónomo. Igualmente, no se trata de ver qué
tipo de práctica política es más feminista que otra, o más re-
levante, pues es justamente la diversidad de los feminismos
y sus formas de acción política, sin desconocer que también
puede ser conflictiva, lo que hace a este movimiento tan im-
portante para la historia política del continente.

5 Entre el 2016 y el 2017, Colombia vivió la coyuntura política de las ne-


gociaciones de paz y la implementación de los acuerdos logrados entre el
gobierno nacional y la guerrilla de las FARC, que continúa actualmente.
En este proceso la participación de las organizaciones de mujeres y femi-
nistas ha sido fundamental, producto de años de trabajo que permitieron
hacer propuestas concretas frente a la necesidad de que todos los puntos
negociados y acordados tuvieran un enfoque de género y diferencial, ejer-
cicio pionero en procesos de negociación de conflictos armados internos.
33
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descolonizar: a prática e o sexo


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35
Descolonizando el sexo, desgenerizando
la colonialidad

Begoña Dorronsoro
Descolonizando el sexo, desgenerizando
la colonialidad1

Controversias en torno al concepto de género

Soy consciente de las críticas que desde la gramática,


tanto en la lengua castellana como en la portuguesa, suscita
el uso de la terminología género, gênero, en lugar de optar
por utilizar su versión original en la lengua inglesa gender,
que no presenta esos problemas de enunciación. Sin embar-
go me voy a centrar en las controversias que este concepto
también suscita, por otros motivos, en diferentes corrientes
feministas. La antropóloga feminista vasca Mari Luz Esteban,
lo concibe como un concepto oportuno “pero problematiza-
do incluso dentro del feminismo, de tal manera que algunas
descolonizar: a prática e o sexo

autoras renunciaron a utilizarlo ya cuando se propuso y han


hablado de sexo social (tradición francesa), diferencia sexual
(feminismo de la diferencia) etc.” (ESTEBAN, 2008: 138). Ve-
mos pues, que no solo por temas de corrección gramatical se
ha optado por utilizar otros términos. Dentro de la tradición
del pensamiento feminista estos otros conceptos se conside-
ran dotados de un contenido histórico cargado de política que
no se debe perder. Entre las feministas post­estructuralistas
para Judith Butler “no tendría sentido definir el género como
la interpretación cultural del sexo, si éste es ya de por sí una
categoría dotada de género” (BUTLER, 2007: 55).
Encontramos entonces que tanto el sexo social (género)
como el biológico son construidos, y así lo apunta también Ma-
ría Lugones “lo que se entiende por sexo biológico está social-
mente construido” (LUGONES, 2008: 84) y señala que “la raza
no es ni más mítica ni más ficticia que el género – ambos son
ficciones poderosas” (LUGONES, 2008: 94). Lugones conside-
ra al género como una imposición colonial instrumental para el

1 Aportes desde el territorio cuerpo-tierra del feminismo comunitario hacia


la colonialidad del ser/estar.
39
“sometimiento ­tanto de los hombres como de las mujeres de

descolonizar: a prática e o sexo


color­en todos los ámbitos de la existencia” (LUGONES, 2008:
77) y para forzar la disolución “de los vínculos de solidaridad
práctica entre las víctimas de la dominación y explotación que
constituyen la colonialidad” (LUGONES, 2008: 77). Un concep-
to ficticio nacido de la misma colonialidad que el otro concepto
ficticio de la raza y con el mismo objetivo de doblegar y separar
a quienes podrían responder y enfrentarse a esas imposiciones
y jerarquías. Dicha despolitización lleva a la desmovilización,
algo sumamente útil para el colonialismo y el capitalismo.
Las mujeres indígenas también cuestionan los concep-
tos de género y feminismo como invenciones ajenas, pensa-
das en occidente y “su traslación a las comunidades indíge-
nas implica deconstruir fronteras epistemológicas, políticas al
interior de las mismas” (BIDASECA y VÁZQUEZ, 2011: 36),
lo que origina un amplio rechazo hacia ambas categorías por
parte de las mujeres indígenas y de sus comunidades, que
lo ven también como una afrenta e intento de división, en el
seno del pueblo y la comunidad. Nos encontramos pues ante
un término cuestionado desde dentro y desde fuera de los fe-
minismos, y que sin embargo, gracias en gran parte al papel
de las ongs y las agencias internacionales de cooperación al
desarrollo por un lado, y de las políticas de igualdad por otro,
ha conseguido un espacio propio.
El uso del término gender aparece citado en el campo de
las ciencias sociales y antropológicas estadounidenses des-
de los años 50 del siglo XX, y tiene una especial aceptación
cuando se asocia al concepto de desarrollo. En este ámbito,
la aparición del análisis y la perspectiva de género, para estu-
diar cómo mejorar las políticas de desarrollo y la incorporación
de las mujeres al mismo, supuso un cambio de paradigma en
el enfoque que hasta entonces se había aplicado. Pasamos
del enfoque MED2 (Mujeres en el desarrollo) al enfoque GED3

2 WID Women In Development, según su terminología inglesa.

3 GAD Gender And Development, en su terminología inglesa.


40
(Género en el desarrollo). Este cambio de enfoque supuso
transformar la mirada sobre cómo se formulaban e impulsaban
los programas y políticas de desarrollo; poniendo en cuestión
incluso los indicadores que medían el grado de bienestar, ri-
queza, educación, salud… donde se invisibilizaba la realidad
vivida por las mujeres, ya que en muchos de los censos y estu-
dios de diferentes instituciones, gobiernos y agencias de desar-
rollo, ni siquiera se contaba con datos desagregados por sexo.
El género llegó así de la mano del desarrollo a muchas de las
comunidades indígenas y campesinas de los países empobre-
cidos. Ambos conceptos, género y desarrollo, son pensados y
diseñados en contextos capitalistas, donde demasiadas veces
el desarrollo se ha entendido únicamente como crecimiento
económico, y de este modo, mujeres indígenas, negras, cam-
pesinas… se oponen a estas visiones ajenas, donde no han
descolonizar: a prática e o sexo

sido tenidas en cuenta para su formulación y diseño; y que


perciben como impuestas desde las agencias de cooperación
e instituciones gubernamentales, para poder recibir ayudas y
ser tenidas en cuenta por las políticas oficiales.

Sobre la colonialidad del poder y los


feminismos hegemónicos

María Lugones (2008) y Breny Mendoza (2010), realizan


sendas críticas sobre el concepto de colonialidad del poder de
Aníbal Quijano (2000a, 2000b) donde muestran la limitación
de su enfoque “al considerar al género anterior a la sociedad y
a la historia, lo cual naturaliza las relaciones de género y hete-
rosexualidad y los efectos de la postcolonialidad” (BIDASECA
y VÁZQUEZ, 2011: 27), siempre ha sido así y por tanto no hay
nada que se pueda/deba modificar. Esta naturalización de las
cosas forma parte de lo que Pierre Bourdieu denomina como
violencia simbólica, “de todas las formas de `persuasión clan-
destina´, la más implacable es la ejercida simplemente por el
orden de las cosas” (BOURDIEU y WACQUANT, 1995: 120).
La violencia simbólica aparenta ser menos grave que la violen-
41
cia física, pero queda igualmente corporalizada, su fuerza no

descolonizar: a prática e o sexo


es la fuerza del golpe en la piel, pero ejerce la fuerza del poder:

Todo poder de violencia simbólica, o sea, todo poder que


logra imponer significados e imponerlas como legítimas
disimulando las relaciones de fuerza en que se funda su
propia fuerza, añade su fuerza propia, es decir, propia-
mente simbólica, a esas relaciones de fuerza (BOURDIEU
y PASSERON, 1996: 44).

La crítica que realiza Lugones a Quijano, amplía la co-


lonialidad del poder, introduciendo en el debate la cuestión
del género, como parte integrante de la colonialidad, y sin la
que no se pueden llegar a entender, las específicas discrimi-
naciones que sufren las mujeres racializadas, que no es una
suma de varias discriminaciones, sino una forma diferente de
experimentar varias discriminaciones que se dan en un pro-
ceso de interseccionalidad, como definieron inicialmente bell
hooks (1981) y Kimberlé Crenshaw (1995). El feminismo he-
gemónico blanco reproduce “la ceguera colonial en relación
con las diferencias que sostienen al propio sujeto del feminis-
mo” (MILLÁN, 2011: 13) y se muestra incapaz de cualquier
capacidad crítica “acerca de su propia condición colonial y
colonizadora” (MILLÁN, 2011: 16). De este modo las muje-
res racializadas “han sido las más subalternizadas no sólo en
las sociedades y en las ciencias sociales, sino también en el
mismo feminismo, debido al carácter universalista y al sesgo
racista que le ha traspasado” (CURIEL, 2007: 94). Resulta
imposible establecer un diálogo horizontal, cuando no se par-
te de la misma condición y posición; y cuando además no se
quiere ver esa situación de ventaja y privilegios de las feminis-
tas blancas con respecto a las mujeres racializadas.
Las mujeres blancas han teorizado de manera univer-
sal para todas las mujeres, como si todas las mujeres fueran
blancas (LUGONES, 2008: 94), y como si todas las mujeres
además, estuvieran sometidas a un único y mismo patriarca-
do que las une en la experiencia (BIDASECA y VÁZQUEZ,
42
2011: 26); patriarcado ante el cual todas las mujeres esta-
rían hermanadas en una sororidad común (LUGONES, 2008:
95). Este es el tipo de colonialidad discursiva criticado por
los otros feminismos y las otras mujeres. Además del sesgo
colonial, etnocéntrico y universalizante, el feminismo blanco
hegemónico también ha mostrado actitudes maternalistas e
imposiciones ideológicas y epistémicas cuando “interpretan
las prácticas culturales de las mujeres subalternas como resi-
duos arcaicos; las representan como inmaduras para la praxis
política y, por tanto, justifican la necesidad de ser educadas en
el feminismo occidental” (BIDASECA y VÁZQUEZ, 2011: 25).
A día de hoy sigue habiendo feministas blancas hegemónicas
que se creen en poder de un feministómetro, mediante el cual
pueden apreciar y precisar el grado de feminismo mayor o
menor, de determinado postulado y del compromiso feminista
descolonizar: a prática e o sexo

que tal mujer o mujeres representan.


Es importante continuar con las críticas hacia esos femi-
nismos blancos incapaces de ver aún sus sesgos coloniales
y etnocéntricos, aunque puede que algunas sigan sin querer
verlos. Pero lo realmente esencial es trabajar en diseñar, esta-
blecer y fortalecer alianzas y redes que permitan feminismos
transnacionales y transfronterizos (MOHANTY, 2008; SPIVAK,
1988; ESPINOSA, 2009; MILLÁN, 2011; FEMENÍAS, 2011).
Mohanty ya criticaba en su artículo de 19844 la homogenei-
zación que el feminismo hegemónico hacía de las mujeres de
los países empobrecidos, tratándolas además como objetos
de estudios y programas de acción, pero no como sujetas. En
2003 ella misma hace una revisión de ese artículo, y lo trans-
currido durante ese tiempo, y recupera el concepto de Un Ter-
cio/Dos Tercios del Mundo elaborado por Esteva y Prakash5:

la diferenciación Un Tercio / Dos Tercios permite enseñar


y aprender en torno a puntos de conexión y de distancia
entre unas y otras comunidades de mujeres marginadas

4 Ver: MOHANTY, C. T. (1984).

5 Ver: ESTEVA, G.; PRAKASH, M. S. (1998).


43
y privilegiadas a lo largo de muchas dimensiones locales

descolonizar: a prática e o sexo


y globales. Por lo tanto, se transforma la idea misma de
adentro /afuera que es necesaria para la distancia entre
local / global, por medio del uso de un paradigma Un Tercio
/ Dos Tercios, pues ambas categorías deben ser compren-
didas como dotadas de diferencias / semejanzas, adentro
/ afuera y distancia / proximidad (MOHANTY, 2008b: 440).

En todos los niveles, desde lo local a lo internacional,


pasando por lo regional, se apela cada vez más a:

la necesidad y la posibilidad de una comunidad feminista


transfronteriza, anticapitalista y descolonizada sostenida
en la idea de diferencias comunes que atienda a una lucha
contra los efectos nefastos de la globalización, y entable
un horizonte de justicia y solidaridad universal (ESPINO-
SA, 2009: 41).

Mohanty recuerda en este sentido, que para que la lu-


cha sea realmente efectiva, las feministas precisan ser anti-
capitalistas, pero además propone que “los activistas y teóri-
cos de la antiglobalización también necesitan ser feministas”
(MOHANTY, 2008b: 451). Para avanzar hacia esa propuesta
de apoyo recíproco y complicidades entre las diferentes mu-
jeres en sus diferentes situaciones y contextos, “la empresa
consiste en forjar solidaridades informadas y autoreflexivas
entre nosotras” (MOHANTY, 2008b: 454), y dar los pasos pre-
cisos en una práctica feminista transnacional que:

depende de construir solidaridades feministas capaces


de cruzar las divisiones de lugar, identidad, clase, traba-
jo, creencias, y así sucesivamente. En estos tiempos tan
fragmentados resulta muy difícil construir tales alianzas,
pero al mismo tiempo poder construirlas es más importan-
te que nunca. El capitalismo global destruye posibilidades
y también ofrece otras nuevas (MOHANTY, 2008b: 453).

Ese será el momento y el proceso para establecer alian-


zas realmente horizontales y efectivas entre las mujeres que

44
quieran acabar con las opresiones de los sistemas hetero-
patriarcales y capitalistas, y de aquellos hombres, que como
señala Mohanty, sean parte de la lucha apoyando desde la
asunción de los presupuestos feministas.

El feminismo comunitario indígena como


proceso de des-gener-accion

El concepto de des­gener­acción es introducido por Nelson


Maldonado­Torres, como aquella “acción que rompe con las
relaciones dominantes coloniales de género” (MALDONADO­
TORRES, 2007: 156) y junto a la descolonización serían
proyectos para dar respuesta a la colonialidad. Y como tales
proyectos “nacen cuando los sujetos van más allá de los es-
tándares de justicia y están dispuestos a sustituir sus propios
descolonizar: a prática e o sexo

cuerpos por los del cuerpo deshumanizado, aun a expensas


de su propia muerte” (MALDONADO­TORRES, 2007: 156).
Las feministas comunitarias desde su oposición abierta a to-
dos los patriarcados, asumen su cuerpo­territorio como primer
espacio de lucha y defensa, y por tanto asumen los riesgos de
colocarse en dicha posición.
Silvia Rivera Cusicanqui señala que “no hay teoría des-
colonizadora que no se finque en una práctica” (apud MILLÁN,
2011: 16) y Márgara Millán recuerda algunas de esas prácti-
cas en el contexto de las mujeres zapatistas de Chiapas, que
llevan tiempo sistematizando experiencias “en torno a la doble
mirada y el pensar con el corazón” (apud MILLÁN, 2011: 18),
algo que va en el camino del amor6 y la justicia descoloniales
apuntados por Maldonado­Torres para “restaurar el mundo pa-
radójico del dar y recibir, a través de una política de la recep-
tividad generosa, inspirada por los imperativos de la descolo-
nización y la des­gener­acción” (MALDONADO­TORRES, 2007:
156). Un dar y recibir en reciprocidad que ponen en práctica en
su día a día los hombres y las mujeres indígenas.
6 Amor des­colonial: término introducido por la feminista chicana Chela
Sandoval (2000).
45
La propuesta del feminismo comunitario indígena surge

descolonizar: a prática e o sexo


de las mujeres mayas y xinkas de la organización AMISMA-
XAJ7 Asociación de Mujeres Indígenas de Santa María Xa-
lapán, Jalapa de Guatemala, y de las mujeres aymaras del
Grupo Comunitario Mujeres Creando Comunidad de Bolivia,
quienes inician la labor de construir una epistemología femi-
nista indígena “para aportar a la pluralidad de feminismos
construidos en diferentes partes del mundo, con el fin de ser
parte del continuum de resistencia, transgresión y epistemolo-
gía de las mujeres en espacios y temporalidades, para la abo-
lición del patriarcado originario ancestral y occidental” (CAB-
NAL, 2010: 12). Lorena Cabnal (maya­xinka) y Julieta Paredes
(aymara) fueron inicialmente sus principales valedoras, dan-
do a conocer esta propuesta desde los niveles locales, regio-
nales e internacionales, mediante la presentación en talleres
con mujeres indígenas en sus comunidades, y con mujeres
feministas blancas en el norte, y estableciendo alianzas con
movimientos sociales del norte como las que trabajan en tor-
no al decrecimiento8.

Opresiones y resistencias a través de las corporalidades

La invasión colonial abrió brechas y heridas en las con-


cepciones espaciotemporales de los pueblos indígenas, me-
diante la apropiación de sus tierras, territorios, recursos, sa-
beres… y también mediante la apropiación de sus cuerpos,
en especial de los de las mujeres “ha sido constitutivo del
lenguaje de las guerras, tribales o modernas, que el cuerpo

7 En la actualidad en el contexto guatemalteco han tomado el relevo


como TZK´AT Red de Sanadoras Ancestrales del Feminismo Comuni-
tario, y se van agregando nuevos colectivos autónomos de Feministas
Comunitarias en Chiapas –México, Ecuador, Bolivia, Argentina y en las
diásporas migrantes.

8 Decrecimiento: movimiento social, político y económico inspirado en las


propuestas de Serge Latouche para rechazar el desarrollo identificado con
el crecimiento, y buscar un vivir mejor con menos.
46
de la mujer se anexe como parte del país conquistado. La
sexualidad vertida sobre el mismo expresa el acto domesti-
cador, apropiador, cuando insemina el territorio­cuerpo de la
mujer” (SEGATO, 2006: 34). Como señala Maldonado­Torres
el objeto de la guerra no es solo el “de matar y esclavizar
al enemigo. Esta incluye un trato particular de la sexualidad
femenina: la violación” (MALDONADO­TORRES, 2007: 138).
Se penetran por la fuerza los territorios, y se penetran por la
fuerza los cuerpos de las mujeres.
En palabras de Lorena Cabnal (2010: 15) se da una pe-
netración colonial entendida “como la invasión y posterior do-
minación de un territorio ajeno empezando por el territorio del
cuerpo” (CABNAL, 2010: 15) y es precisamente dicha pene-
tración colonial la que se configura “como una condición para
la perpetuidad de las desventajas múltiples de las mujeres
descolonizar: a prática e o sexo

indígenas” (CABNAL, 2010: 15) desde entonces y llegando


hasta la actualidad. Como señala Márgara Millán “el control
sobre los cuerpos de las mujeres fue, por extensión, el control
político de los territorios enemigos” (MILLÁN, 2011: 15), y la
violación de sus mujeres, además de como botín de guerra,
expresaba la total dominación y sumisión de los pueblos a los
que pertenecen.
Maldonado­ Torres establece “que el ego conquiro es
constitutivamente un ego fálico también” y recuerda que fue
Enrique Dussel, quien va a proponer “la idea sobre el carác-
ter fálico del ego conquiro/cogito” (MALDONADO­TORRES,
2007: 138) y aunque esa hipersexualización y apropiación de
los cuerpos, se da más hacia las mujeres “los hombres de co-
lor también son vistos con estos lentes. Ellos son feminizados
y se convierten para el ego conquiro en sujetos fundamental-
mente penetrables” (MALDONADO­TORRES, 2007: 138). En
esa hipersexualización y objetificación de los cuerpos negros,
estos “son vistos como excesivamente violentos y eróticos,
tanto como recipientes legítimos de violencia excesiva, erótica
y de otras formas. Ser muerto y ser violada/o son parte de su
esencia entendida de forma fenomenológica” (MALDONADO­
47
TORRES, 2007: 149). Una sexualización que “creada en el

descolonizar: a prática e o sexo


ojo de quien detenta el poder (hombre, blanco, heterosexual
y machista) convierte a las mujeres indígenas en objeto para
el disfrute sexual de quienes las posean” (DORRONSORO,
2011: 125). Los cuerpos negros convertidos en objeto para el
uso del colonizador donde “la piel morena y negra es lamenta-
blemente una licencia para el peor de los atropellos: la violen-
cia y el abuso sexual” (CHOQUE y MENDIZABAL, 2010: 87).
Los cuerpos y las corporalizaciones nos hablan de las
opresiones y discriminaciones sufridas, de cómo por ejemplo,
las mujeres indígenas llevan a las espaldas “el peso del colo-
nialismo y el patriarcado en sus cuerpos, haciéndolas mucho
más marginales y excluidas que las mujeres de clase media”
(CHOQUE y MENDIZABAL, 2010: 83). Pero también pueden
ser el lugar “del empoderamiento” (ESTEBAN, 2004: 13) y
por ello surge “la necesidad de comprobar en la práctica, por
tanto, lo que supone que mujeres y hombres sean agentes
sociales y de su propia vida a través de su cuerpo” (ESTE-
BAN, 2004: 13). Corporalizar no sólo los estigmas, dolores
y sufrimientos, sino también, y muy en especial, las luchas,
resistencias y empoderamientos.
Se ha escrito, debatido y teorizado mucho en torno al
cuerpo y en especial desde las feministas blancas, llegando
a considerar algunas también al cuerpo como territorio a ser
protegido y defendido, aunque muy lejos del concepto que
del territorio tienen las mujeres indígenas. Hay además otra
limitación en el modo en cómo unas y otras entienden y con-
ceptualizan ese cuerpo, y es que mientras para las mujeres
indígenas éste se da de una forma individual y colectiva, “en
Occidente se da una individuación del yo y por tanto de la
experiencia corporal que no se encuentra en otros contextos”
(ESTEBAN, 2004: 14) pero sin embargo, y por su especial
interés en trabajar la antropología en base a autoetnografías
corporalizadas, establece un desideratum de lo que podría
abarcar una teoría sobre el cuerpo que abarca lo social:

48
Una teoría del cuerpo, en tanto que nudo de estructura so-
cial y acción individual y colectiva; una teoría actualizada
e interrelacionada del género que prima el “estar” por en-
cima del “ser” y la complejidad sobre las visiones estáticas
y dicotómicas; un análisis de la sexualidad, como pensa-
miento crítico pero prácticas encarnadas y dinámicas, no
fijadas de antemano (ESTEBAN, 2009: 39).

Hay, además, un cuerpo pensado desde lo individual y


desde lo colectivo.

Complicidades y entronque de patriarcados

En el tema del patriarcado o los patriarcados, y su pre­


existencia o no antes de la invasión colonial, hay diferentes
pareceres. Hay autoras como Silvia Rivera Cusicanqui (1996),
descolonizar: a prática e o sexo

María Eugenia Choque (2010), o las referidas por María Lu-


gones (2008), Paula Gunn Allen (1986) y Oyéronké Oyewùmi
(1997) (solo por citar algunas) convencidas de que previa a la
llegada del colonialismo, las sociedades indígenas y nativas,
eran mucho más equilibradas e igualitarias entre hombres y
mujeres “como el capitalismo eurocentrado global se cons-
tituyó a través de la colonización, esto introdujo diferencias
de género donde, anteriormente, no existía ninguna” (LUGO-
NES, 2008: 86). Para Oyewùmi (1997: 20) “el género no era
un principio organizador en la sociedad Yoruba antes de la
colonización Occidental” (apud LUGONES, 2008: 87).
Pero hay quienes critican como excesivamente román-
tica, esa visión de un pasado donde predominaba la paz y
armonía entre hombres y mujeres. Ya antes de la colonización
“el territorio cuerpo de las mujeres indígenas [...] manifesta-
ba formas específicas de expropiación” (CABNAL, 2012: 4)
llegando a ser utilizadas como botines de guerra y como ob-
jetos de trueque en matrimonios convenidos. Parece que el
elemento determinante que nos dá la clave para entender esa
preexistencia de patriarcados, y cuándo surgen, tiene que ver
con la elaboración de armas para combatir a otras personas
49
y la opción de la guerra como estrategia de ocupación y re-

descolonizar: a prática e o sexo


solución de conflictos. Según la arqueóloga Marija Gimbutas
(1982) podríamos establecer su inicio en torno a hace entre
6.000 a 7.000 años. Desde ese momento, y como explica el
biólogo y filósofo chileno Humberto Maturana, vivimos en una
cultura patriarcal donde “estamos siempre listos a tratar a los
desacuerdos como disputas o luchas, a los argumentos como
armas, y describimos una relación armónica como pacífica,
es decir, como la ausencia de guerra, como si la guerra fuese
la actividad propiamente humana más fundamental” (MATU-
RANA, 2003: 32). Cultura patriarcal, que acabó con lo que
él mismo denomina cultura matríztica donde no se daban la
jerarquía, el control, la sumisión y la dominación, que llegaron
con los señores de la guerra.
El feminismo comunitario se construye precisamente
como respuesta a esta doble opresión de patriarcados en
“una recreación y creación de pensamiento político ideológico
feminista y cosmogónico, que ha surgido para reinterpretar
las realidades de la vida histórica y cotidiana de las mujeres
indígenas, dentro del mundo indígena” (CABNAL, 2010: 11)
y establecer nuevas relaciones de equilibrio en el seno de
las comunidades, que permitan un fortalecimiento y cambio
también con respecto al exterior de las mismas. Ellas analizan
cómo además de la preexistencia de un patriarcado precolo-
nial, se precisa otra condición necesaria para poder explicar
la especial situación de discriminación y violencia de que son
objeto las mujeres indígenas, (además de las ejercidas por
la colonización heteropatriarcal que llegó con las invasiones
europeas). Y es que, como señala María Lugones (2008) y las
propias feministas comunitarias (CABNAL, 2010, 2012; PA-
REDES, 2010), se debieron establecer complicidades entre
los hombres colonizadores y colonizados, en un entronque de
patriarcados (CABNAL, 2010: 15) por el cual las opresiones
hacia las mujeres, y su desplazamiento de los órganos de
decisión y poder, se dan desde fuera, pero también desde
dentro de las propias comunidades.
50
Llámese colaboraciones, complicidades o entronque de
patriarcados, es algo que acontece en todos los contextos co-
loniales, y así también Oyewùmi y Allen muestran interés “en
la colaboración entre hombres indígenas y hombres blancos
para debilitar el poder de las mujeres” (LUGONES, 2008: 90).
Colaboraciones y entronques, que no siempre deben ser en-
tendidos como traiciones por parte de los hombres coloniza-
dos, sino como parte del proceso de imposición e instrucción
colonial. Las nuevas autoridades impuestas por las colonias
en forma de cabildos, secretarios, alcaldes… sustituían a las
autoridades tradicionales donde las mujeres tenían su espa-
cio de participación y toma de decisiones.
Como refleja Silvia Rivera Cusicanqui (1996: 3) la “oc-
cidentalización y patriarcalización de los sistemas de género,
pueden leerse en los Andes como dos procesos paralelos”
descolonizar: a prática e o sexo

(apud BIDASECA y VÁZQUEZ, 2011: 36) y no solo en las


comunidades andinas, “el colonizador blanco construyó una
fuerza interna en las tribus cooptando a los hombres coloni-
zados a ocupar roles patriarcales” (LUGONES, 2008: 90) ins-
trucción colonial y capitalista que permanece hasta nuestros
días, tanto en el contexto rural como en el urbano. De este
modo “una complementariedad desigual y jerárquica sus-
tituyó así la posible equidad entre los sexos” (GARGALLO,
2014: 51) incluidas las personas intersexuadas, que conta-
ban con su propio espacio en el mundo indígena, como los
recientemente autodenominados 2 spirit people que engloban
diferentes formas de entender y concebir el sexo biológico y
social en diversos pueblos indígenas y primeras naciones de
Estados Unidos y Canadá.
Me parece importante señalar, que las condiciones de su-
misión, discriminación e invisibilización a las que se han visto
sometidas las mujeres indígenas, no solo tiene origen en esas
complicidades y colaboraciones entre hombres (colonizadores
y colonizados) y entre patriarcados. Mujeres feministas no indí-
genas del sur, en bastantes ocasiones han preferido establecer
relaciones y alianzas con las feministas hegemónicas del norte;
51
olvidando a las mujeres indígenas en algunos momentos, invi-

descolonizar: a prática e o sexo


sibilizándolas en otros, y apropiándose de su representación
y hasta de su palabra, en el peor de los casos. Las mujeres
indígenas quedan así atrapadas:

doblemente por la colonización discursiva del feminismo


de Occidente que construye a la `Otra´ monolítica de Amé-
rica Latina, y por la práctica discursiva de las feministas
del Sur, quienes, estableciendo una distancia con ella y, al
mismo tiempo, manteniendo una continuidad con la matriz
de privilegio colonial, la constituye en la otra de la Otra
(ESPINOSA, 2009: 48).

Frente a todas esas violencias, las feministas comunita-


rias abogan por establecer nuevas alianzas y redes, y superar
esos desencuentros y construir nuevas relaciones que permi-
tan eliminar el patriarcado como:

el sistema de todas las opresiones, todas las explota-


ciones, todas las violencias, y discriminaciones que
vive toda la humanidad (mujeres hombres y personas
intersexuales) y la naturaleza, como un sistema históri-
camente construido sobre el cuerpo sexuado de las mu-
jeres (CABNAL, 2010: 16).

Solo de ese modo se puede avanzar en una propuesta


que integre la lucha por la recuperación de la tierra y el territo-
rio, desde el cuerpo­territorio.

Cuerpo-territorio como primer espacio


de defensa y lucha

El feminismo comunitario establece el cuerpo como pri-


mer espacio de defensa y lucha, un espacio que ha sido siem-
pre “un territorio en disputa por los patriarcados, para asegurar
su sostenibilidad desde y sobre el cuerpo de las mujeres (CAB-
NAL, 2010: 22). El cuerpo­territorio es un cuerpo en disputa por
ser poseído, penetrado, arrebatado, pero que a la vez resiste y

52
tiene una dimensión de “potencia transgresora, transformadora
y creadora” (CABNAL, 2010: 22). El lugar de las opresiones,
pero también de las resistencias. La propuesta del feminismo
comunitario establece una integración de luchas por el cuerpo
y “para la recuperación y defensa del territorio tierra, como una
garantía de espacio concreto territorial, donde se manifiesta la
vida de los cuerpos” (CABNAL, 2010: 23). No se pueden se-
parar ambas luchas “es incoherente que la tierra este en paz,
mientras el cuerpo está con dolor” (CABNAL, 2012: 13).
La propuesta de trabajo del feminismo comunitario, no
solo se queda en conformar una nueva epistemología, su
concepción nace y se refuerza en la práctica, en actuar des-
de las comunidades, entendidas éstas como modelos de or-
ganización colectivos que se dan a todos los niveles, desde
lo más local y rural, a lo más global y urbano, en respues-
descolonizar: a prática e o sexo

ta a la sociedad individualista occidental. En ese desarrollo


necesariamente práctico y compartido, las feministas xinkas
de Guatemala realizan numerosos talleres, participan de las
protestas y marchas reivindicativas de los problemas que
las afectan a ellas y a sus comunidades; y por su parte, las
feministas comunitarias aymaras de Bolivia han llegado a
participar incluso en la institución e impulso de la Unidad de
Despatriarcalización, dependiente del Viceministerio de Des-
colonización del Gobierno del Estado Plurinacional de Bolivia,
a quienes siguen prestando apoyo y asesoramiento. Su lema
principal es: No hay descolonización sin despatriarcalización;
Francesca Gargallo (2014) se pregunta si al contrario, es po-
sible la despatriarcalización sin descolonización; y yo estimo
como afirmación que ambos procesos, despatriarcalización y
descolonización, deben pensarse y ejercerse simultáneamen-
te para que resulten efectivos.

53
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descolonizar: a prática e o sexo

57
Fazendo gêneros decoloniais:
academia e ativismo

Vera Gasparetto
Cristina Scheibe
Fazendo gêneros decoloniais:
academia e ativismo1

“Se cuida, se cuida, se cuida seu ma-


chista, a América Latina vai ser toda
feminista!”2

Essas palavras, faladas na mesa de abertura do 13º Wo-


men’s Worlds Congress e Seminário Internacional Fazendo
Gênero 11 (WW/FG), em meio a autoridades acadêmicas e
representação dos movimentos sociais, demonstram um pou-
co do espírito desse grande evento ocorrido em Florianópolis
– SC de 30 de julho a 4 de agosto de 2017. Um congresso
acadêmico, mas também um encontro político, ativista, artísti-
co e decolonial. Este artigo reflete sobre como tentamos colo-
descolonizar: a prática e o sexo

car em prática, na organização do congresso e sobre alguns


de seus resultados, o que propõem algumas epistemologias
feministas decoloniais na América Latina.
Uma das características marcantes dos estudos deco-
loniais é justamente a tentativa de superar ambiguidades e
dicotomias da relação entre academia e ativismo. Fazemos
assim um exercício de voltar sobre uma prática, avaliando
seus resultados, e refletindo sobre se nossos princípios teóri-
cos puderam ser aplicados, e em que medida resultaram efe-
tivamente em uma superação desta separação entre alguns
discursos acadêmicos e práticas políticas feministas. Desde o
início, é preciso dizer que as autoras deste texto fizeram parte
da comissão organizadora do congresso que nos serve aqui
de estudo de caso. Portanto, falamos de dentro, ainda que
busquemos também olhar de fora para esse lugar.
1 Este artigo foi modificado a partir da proposta original das autoras, que
será publicada em inglês na revista da UNESCO, intitulada Interactions
between academia and feminist activism in Latin America: a debate
from the experience of Women’s Worlds Congress and Doing Gender.

2 Veja o vídeo da fala de abertura no link https://www.facebook.com/Fa-


zendoGenero/videos/1235594663213072/
61
Na perspectiva decolonial3, metodologia e teoria são in-

descolonizar: a prática e o sexo


separáveis, implicadas e comprometidas com uma nova for-
ma de fazer ciência, e nesse caso cruzada com nossas traje-
tórias pessoais envolvidas no compromisso teórico-militante
que nos levou a implementar uma nova metodologia para a
Comissão de Movimentos Sociais do 13º Congresso Mundos
de Mulheres e Fazendo Gênero 11: a presença dos movimen-
tos sociais não somente na programação, mas também pro-
tagonizando a organização do encontro.
Ballestrin (2013) reflete sobre a colonialidade do poder,
do saber e do ser a partir de uma genealogia dos estudos
pós-coloniais e da trajetória do Grupo Modernidade/Coloniali-
dade (M/C). Este foi constituído no final dos anos 1990 como
um movimento epistemológico de renovação crítica e utópi-
ca das ciências sociais na América Latina para o século XXI,
através da crítica e da radicalização do argumento pós-colo-
nial no continente utilizando-se da ideia de “giro decolonial”:

Assumindo uma miríade ampla de influências teóricas, o


M/C atualiza a tradição crítica de pensamento latino-ame-
ricano, oferece releituras históricas e problematiza velhas
e novas questões para o continente. Defende a “opção de-
colonial” – epistêmica, teórica e política – para compreen-
der e atuar no mundo, marcado pela permanência da co-
lonialidade global nos diferentes níveis da vida pessoal e
coletiva (BALLESTRIN, 2013: 89).

O M/C reuniu um conjunto de intelectuais das Américas,


especialmente da Latina, tendo como marco a obra “La co-
lonialidade de saber: eurocentrismo y ciências sociales”
(LANDER, 2005). O pensamento do grupo privilegia os de-
bates teóricos Sul-Sul, se baseia em ideias como a análise
da herança colonial a partir da teoria do “Sistema-Mundo” de

3 O pensamento decolonial tem suas raízes na luta anti-imperial do século


XVII na América Latina, nas resistências e lutas dos povos e em registros
de tratados políticos decoloniais, escritos por Wama Pomam de Ayala (pe-
ruano) e Otabbah Cugoano (escravizado liberto).
62
Imanuel Wallerstein, a ideia de “Filosofia da Libertação”, de
Enrique Dussel, baseada na Teologia da Libertação, e a “Teo-
ria da Dependência”, de Aníbal Quijano.
Nelson Maldonado Torres cunhou em 2005 o termo
“giro decolonial” para designar o movimento contemporâneo
que expressa a resistência teórica e prática, política e episte-
mológica da modernidade/colonialidade, em contraponto ao
pensamento hegemônico de produção de conhecimento que
parte do norte global. Quijano (2002) no texto “Colonialida-
de, poder, globalização e democracia” desvenda a dinâmica
da colonialidade do poder, do ser e do saber. O fenômeno
do poder é constituído pela copresença dos elementos de
dominação, exploração e conflito, que atuam sobre quatro
áreas fundamentais para a existência social: o trabalho, o
sexo, a autoridade coletiva (ou pública) e a subjetividade/
descolonizar: a prática e o sexo

intersubjetividade.
A colonialidade do saber denuncia a “violência epistêmi-
ca” de um poder que opera de forma circular, imbricado com
o eurocentrismo e com o colonialismo que sustentam a “dife-
rença colonial e a geopolítica do conhecimento” e a “invenção
do outro” (MIGNOLO, 2002 apud BALLESTRIN, 2013: 103),
mantendo uma hierarquia de saberes na produção e conheci-
mento, onde o Sul é o “outro”.
Ochy Curiel (2007) critica na teoria decolonial, mais es-
pecificamente nos trabalhos de Quijano, Mignolo e Dussel, a
ausência da abordagem das questões de sexo/sexualidade.
A autora recupera as denúncias realizadas pelas feministas
racializadas (afros e indígenas) ao poder patriarcal e capita-
lista nos anos 1970; as críticas às mulheres brancas do Norte;
evidencia as interseccionalidades da opressão de classe, gê-
nero e raça/etnia sobre mulheres afrodescendentes e indíge-
nas, subalternizadas nas sociedades, nas ciências sociais e
na perspectiva da teoria feminista hegemônica branca. Consi-
dera que os saberes das mulheres nas suas vidas singulares
e heterogêneas são testemunhos aptos para a produção aca-
dêmica na perspectiva de “descolonizar” e entender a com-
63
plexidade de relações e subordinações sobre “otros” e contra

descolonizar: a prática e o sexo


ela resistir e lutar (CURIEL, 2007).
Caterine Walsh usa a expressão “decolonização”4 para
distinguir um afastamento das teorias pós-coloniais ligadas aos
centros hegemônicos de produção de conhecimento. Essa ca-
tegoria marca uma virada de paradigma onde as visões das
teóricas feministas encontram-se com outras vozes e movi-
mentos intelectuais e sociais evidenciando epistemologias pro-
duzidas no Sul-Sul. Ela sugere decolonização com ou sem
hífen – e não “descolonização” (MIGNOLO, 2008, 2010 apud
BALLESTRIN, 2013). “A supressão da letra “s” marcaria a dis-
tinção entre o projeto decolonial do Grupo Modernidade/Colo-
nialidade e a ideia histórica de descolonização, via libertação
nacional durante a Guerra Fria” (BALLESTRIN, 2013: 108).
O livro “Tejiendo de otro modo: Feminismo, episte-
mología y apuestas descoloniales en Abya Yala”5 (MIÑO-
SO et Al., 2014) nasceu de um colóquio que visava abrir um
espaço de reflexão entre ativistas e acadêmicas para ana-
lisar os projetos acadêmicos e políticos, descolonizar os fe-
minismos e constituir um pensamento contra-hegemônico na
América Latina. Realizou uma genealogia própria com mo-
dos, compromissos, preocupações e produções epistêmicas
que se somam para descolonizar os feminismos no continen-
te (MIÑOSO et Al., 2014). Ali, estão reunidos artigos com o
objetivo de dar visibilidade e posicionar a produção feminista
das últimas décadas na América Latina, gerada às margens
da academia e do ativismo político. As autoras trazem aná-
lises, olhares, hipóteses e narrativas que enfrentam a visão

4 As diferenças entre as categorias “pós-colonial”, “descolonial” e “de-


colonial” são representativas de diferentes estratégias que resultam da
desobediência, vigilância e suspeição epistêmica para a descolonização,
decolonização ou descolonização epistemológica (BALLESTRIN, 2013).

5 Realizado de 22 a 24 de abril de 2012, na Universidade da Carolina do


Norte, Chapel Hill, onde nomes como Maria Lugones, Breny Mendoza,
Julieta Paredes, Aura Cumes, Sylvia Marcos, Karina Ochoa, Yuderkys Es-
pinosa, Diana Gomez e Arturo Escobar.
64
convencional dos “marcos clássicos de interpretação feminis-
ta” que produzem a dicotomia mulheres privilegiadas x mulhe-
res marginais (MIÑOSO et Al., 2014).
A coletânea é composta de duas perspectivas. A primei-
ra é teórico-acadêmica, com artigos que fazem uma ponte
entre feminismo e descolonialidade, posicionando correntes
autônomas e marginais do movimento feminista e lesbofe-
minista regional. A segunda é uma perspectiva do ativismo
e militância, que no seu capítulo final reúne manifestos e
documentos que expressam a produção de conhecimento
e de saber como parte de um compromisso político que se
dá em diferentes espaços sociais, para além da academia
(MIÑOSO et Al., 2014).
São produções de mulheres consideradas na visão
gramsciana “intelectuais orgânicas” dos movimentos sociais,
descolonizar: a prática e o sexo

comprometidas com projetos de resistência em âmbito local e


regional, vinculadas a processos de ativismo, de educação for-
mal, educação popular ou em ambos os espaços. As autoras
desse livro são ativistas e pensadoras críticas, que devido às
suas diferentes trajetórias são comprometidas com correntes
regionais que marcam os movimentos de mulheres e femi-
nistas latino-americanas vinculadas aos/às chamados/as “de-
baixo”. Isso implicou uma escolha de textos que extrapolam o
viés acadêmico e que dialogam com diferentes pensamentos e
correntes radicais, autônomas, antiliberais do feminismo e dos
movimentos sociais contra-hegemônicos na América Latina.
Nesta mesma direção, María Lugones acrescenta ao
combate à colonização do ser, do poder e do saber, propondo
a descolonização do gênero:

Descolonizar o gênero é necessariamente uma práxis. É decre-


tar uma crítica da opressão de gênero racializada, colonial e ca-
pitalista heterossexualizada visando uma transformação vivida
do social. Como tal, a descolonização do gênero localiza quem
teoriza em meio a pessoas, em uma compreensão histórica, sub-
jetiva/intersubjetiva da relação oprimir/resistir na intersecção
de sistemas complexos de opressão. (LUGONES, 2014: 240).

65
Essa noção de práxis, coloca para a produção do conhe-

descolonizar: a prática e o sexo


cimento na academia, desafios importantes, pois não se trata
apenas do conteúdo do conhecimento, mas de sua metodo-
logia. Não bastava, para nós, organizar um congresso que
falasse dos movimentos sociais, que expusesse as pesqui-
sas, os dados, as imagens, das mulheres indígenas, das mu-
lheres negras, das camponesas, das ativistas de movimentos
feministas, das transexuais, lésbicas e outras. Nosso desafio,
inspirado também na perspectiva decolonial, era que essas
mulheres trouxessem suas perspectivas e participassem com
destaque no WWW/FG, que fossem protagonistas nesse es-
paço, borrando as fronteiras do que seria acadêmico ou do
que seria político.

A metodologia de construção da Comissão


de Movimentos Sociais

O 13º MM/FG 11 foi a realização conjunta de dois even-


tos acadêmicos, cada um com suas características: o Mundos
de Mulheres, um evento internacional trienal, articulado por
uma rede de pesquisadoras feministas, e o Fazendo Gênero,
que há anos tornou-se o principal evento acadêmico sobre
os estudos de gênero, feminismos e sexualidades do Brasil.
Este encontro reuniu cerca de 9 mil pessoas, de 33 países.
A Comissão de Movimentos Sociais (CMS) foi a parte da or-
ganização, encarregada da articulação para a efetiva partici-
pação dos Movimentos Sociais, fazendo a ponte com a Coor-
denação Geral e as demais comissões para tecer uma nova
metodologia de relação entre a academia e o ativismo, num
momento histórico de luta contra os retrocessos e reafirma-
ção da agenda de gênero e do feminismo em todos os setores
da sociedade, junto ao Estado e nas diferentes populações.
Foram realizadas seis reuniões gerais da CMS, bem
como reuniões específicas dos cinco Grupos de Trabalho
(Tenda Mundos de Mulheres, Tenda Feminista e Solidária, Ro-
teiros de Visitas, Marcha Mundos de Mulheres por Direitos e
66
Fóruns), para além de participação em atividades e reuniões
de vários movimentos que foram articulados para que partici-
passe ativamente da organização do evento. Muitos dos con-
tatos foram feitos por Skype, Facebook, Whatsapp e e-mails.
A coordenação desta comissão também participou de diversas
reuniões de outras comissões, como por exemplo, a comissão
científica e a de infraestrutura, bem como constante contato
com a coordenação geral e coordenação de programação.
Uma das primeiras propostas da Comissão de Movi-
mentos Sociais foi a organização de um evento público de
lançamento da programação nos dias 07 e 08 de março de
2017, junto a instâncias governamentais do Estado de Santa
Catarina, mais especificamente em atividade promovida pela
Bancada Feminina da Assembleia Legislativa de Santa Cata-
rina. Também foi feito o lançamento do evento e durante as
descolonizar: a prática e o sexo

atividades da Greve Internacional das Mulheres 8M de 2017,


quando foi reiterado o convite para o protagonismo dos mo-
vimentos sociais na organização da sua presença efetiva na
atividade do WWW/FG.
Uma das ações mais desafiadoras foi a interlocução
com as ativistas dos movimentos buscando uma intersecção
entre as ações propostas pela academia em diálogo com o
ativismo/militância social no conjunto da programação, de
modo a construir as mesas-redondas, programações espe-
cíficas, simpósios temáticos, místicas, programação cultural,
marcha, roteiros de visitas, tendas e os fóruns de debates.
Devido a distância histórica entre esses dois lugares, por ve-
zes não fazia sentido a proposta, ou não se imaginava como
seria possível sua efetiva participação nos espaços que esta-
vam sendo construídos.

67
Figura 01 – Reunião da comissão de movimento sociais

descolonizar: a prática e o sexo


Também dialogamos sobre a importância de levar para
os espaços acadêmicos a mística e as simbologias dos mo-
vimentos sociais, na tentativa de criar uma marca nessa rela-
ção que borrasse as fronteiras entre lugares tão distantes, e
ao mesmo tempo tão próximos. Marcas que proporcionassem
a abertura de um campo de relações permanentes de diálogo
sobre diferentes formas de produção de conhecimento, para
além do eventual, para além do evento em si.
Essas iniciativas proporcionaram que todas as mesas
redondas do congresso fossem compostas com apresenta-
ções de acadêmicas debatidas por ativistas ou vice-versa,
apresentações de ativistas, debatidas por acadêmicas. Mui-
tas sessões de comunicações de pesquisa, os chamados de
Simpósios Temáticos, tiveram também debatedoras ativistas,
e mesmo performances artísticas. Todas as noites, as gran-
des conferências foram precedidas de místicas, organizadas
por mulheres dos movimentos sociais6, onde foi priorizada
a inserção das indígenas de diferentes povos, as mulheres

6 Pode se ver cenas do encontro, com protagonismo de vários movimen-


tos sociais no link http://catarinas.info/videos/vozes-do-fazendo-genero-e-
-mundos-de-mulheres/
68
camponesas (agricultoras familiares e sem terras) e as mu-
lheres negras e quilombolas (de diferentes setores dos movi-
mentos negros e territórios).
Para garantir a presença desses diferentes seguimentos
foi discutida e implementada uma política de financiamento,
dando prioridade à vinda de ativistas através de grants7, de
hospedagem solidária e do custeio das viagens de muitas ati-
vistas como debatedoras.
Um fator que interessa ser analisado é que grande parte
dos movimentos somente aderiu à organização da atividade
na reta final. Desde o início estavam na organização coletivos
feministas, Marcha Mundial das Mulheres (MMM), Articula-
ção das Mulheres Brasileiras (AMB), mulheres indígenas da
UFSC, secretarias de mulheres da Central Única dos Traba-
lhadores (CUT). Faltavam nesse processo as representações
descolonizar: a prática e o sexo

dos movimentos negros e quilombolas, do movimento estu-


dantil e dos diferentes setores LGBTTI. Compreendíamos
que sem essa pluralidade de vozes haveria uma lacuna no
resultado do processo. Por isso a Comissão engajou-se ati-
vamente na procura de grupos de mulheres para participarem
da própria comissão ou das atividades, o que fez com que os
próprios movimentos que nem sempre tem espaços de inter-
locução, pudessem se comunicar, trocar experiências e con-
vidar umas às outras para participarem do evento.
A Tenda Mundos de Mulheres, localizada no centro do
campus da UFSC, recebeu centenas de pessoas a cada dia
do evento, sendo parte desse público registrado nas listas de
presenças, mas grande parte informal, devido à característica
de atividades simultâneas que ali ocorreram, sendo de curto
tempo para favorecer o máximo de participação. Foi um espa-
ço de pluralidade, convivências, trocas, aprendizados, frater-
nidades, um ponto de encontro para o diálogo entre academia
e ativismo. Sua organização dinâmica favoreceu o convívio, a

7 Chamamos de grants um pequeno auxílio financeiro, possibilitado por


um repasse de verbas de um congresso anterior, que permitiu auxiliar a
cerca de 100 pessoas para sua estadia no evento.
69
articulação política, o estabelecimento de redes e a constru-

descolonizar: a prática e o sexo


ção coletiva da Marcha Internacional Mundos de Mulheres por
Direitos. Nela se encontraram os movimentos para conversas
e construção de alianças. Dentro da programação construída
priorizamos segmentos historicamente alijados: as mulheres
indígenas, as mulheres quilombolas e negras. Também dada
especial atenção às questões de mulheres transexuais, den-
tro do segmento LGBTTI.

Figura 2 – Mulheres indígenas falam da sua realidade na


Tenda Mundos de Mulheres

Foto: Hélder Pires Amâncio


70
A Tenda Feminista e Solidária reuniu mulheres que pro-
duzem e vivem do próprio trabalho artesanal e da agricultura
familiar, oportunizando um espaço para a comercialização de
produtos alternativos, artesanais e alimentos. Também foi um
espaço voltado para os movimentos sociais, com o espírito
da economia feminista e solidária, oficinas, clube de trocas.
Inicialmente foi projetado para 32 organizações/expositoras,
mas a política adotada permitiu a inclusão de 60 grupos, pela
importância de garantir o maior número de expositoras que
permitisse a diversidade e representatividade de diferentes
segmentos: artesanato afro, artesãs locais, representação da
agricultura, mulheres moçambicanas, entre outras.

Figura 3 – Mulheres moçambicanas trazem suas capula-


nas ao MM/FG
descolonizar: a prática e o sexo

Foto: Catarinas/Chris Mayer. Disponível em: https://catarinas.


info/saberes-e-experiencias-compartilhados-na-tenda-femi-
nista-e-solidaria/.

Durante o evento foram realizados os “Roteiros de Vi-


sitas” para as comunidades com as quais a organização do
evento priorizou o diálogo externo: comunidade indígena e
quilombola, rendeiras de bilro, manejo ecológico do lixo e tri-
71
lhas para refletir a questão ambiental. As participantes pude-

descolonizar: a prática e o sexo


ram assim conhecer a história do ambiente e de mulheres que
se organizam para existir e resistir, valorizando suas histórias
de vida, memórias, tradições, culturas e a forma criativa com
que encontraram alternativas de sobrevivência.
Os Fóruns de Debates envolveram conversas entre di-
ferentes formas de ativismo da luta das mulheres, dos grupos
LGBTTI, dos movimentos feministas e acadêmicas, permitindo
trocas de experiências e saberes. O objetivo foi de promover
reflexões sobre as ações dos diferentes ativismos e feminismos
contemporâneos, estimulando a criação e o fortalecimento de
redes de apoio e laços de solidariedade, incentivando diálogos
políticos e afetivos entre os grupos e as pessoas envolvidas.
Os debates nos Fóruns foram agrupados em Eixos Temáticos
de modo a serem relatados e levados para a plenária final, que
debateu e aprovou a “Carta Mundos de Mulheres”.

Desde os primeiros momentos de sua organização, o WW/


FG desejou que os Movimentos Sociais ocupassem um
espaço privilegiado de discussão, e que participassem da
construção de sua programação e de seus diversos con-
teúdos, salientando, portanto, aquelas questões sentidas
como mais urgentes e necessárias à manifestação pública
e ao apelo político, expressas de forma plural e veemente
na Marcha Internacional Mundos de Mulheres e no seu
Manifesto. Esta carta é resultado desta interação, embo-
ra certamente não corresponda à imensa riqueza desses
dias de trocas, experiências e debates acalorados e afe-
tuosos, que oferecem um vislumbre dos caminhos futuros
iniciados por esse processo, ainda em andamento, rumo
ao Mundos de Mulheres 2020, em Moçambique.

[...] As pautas elencadas salientam nossas tarefas sociais,


políticas e acadêmicas pendentes para com a imensa
maioria das pessoas que está às margens de qualquer
concepção já elaborada de dignidade e respeito (COMIS-
SÃO DE MOVIMENTOS SOCIAS, 2017).

72
Com música, dança, rezas, arte, teatro, criatividade, per-
formances, alegria e energia foi organizada ainda a Marcha
Internacional Mundo de Mulheres por Direitos, reunindo nas
ruas do centro de Florianópolis – SC cerca de dez mil pes-
soas, marcada pela diversidade de mulheres e suas pautas de
luta. Ao longo de todo o percurso, as participantes cantaram
e gritaram juntas pelo fim do patriarcado, pela demarcação
das terras indígenas e quilombolas, pela descriminalização
do aborto, contra o retrocesso nas políticas públicas e nos
direitos trabalhistas e previdenciários, contra o machismo, o
racismo, a homofobia e o fundamentalismo religioso, denun-
ciando opressões, assédios e violência. Os eixos da marcha
foram: “Por nenhuma a menos”; “Até que todas sejam livres”,
“Demarcação Já”; “Fora Temer”8.
Durante várias semanas, diversos movimentos sociais
descolonizar: a prática e o sexo

locais, em diálogo com movimentos do Brasil e de algumas


partes do mundo, construíram coletivamente a Marcha para
que fizessem presentes as experiências e reivindicações
das mulheres negras, indígenas, quilombolas, camponesas,
residentes do campo e da cidade, trabalhadoras do sexo,
pessoas trans e não-binárias, mulheres lésbicas, bissexuais,
estudantes, trabalhadoras informais, imigrantes e acadêmi-
cas. Assim a marcha teve um caráter translocal, unindo o
transnacional (o global), ao local, às realidades das mulhe-
res que vivem em Florianópolis, semelhantes às outras rea-
lidades enfrentadas pelas mulheres do Brasil, da América
Latina, da África e do mundo.

8 Veja imagens da marcha em https://www.youtube.com/watch?-


v=swuHNUZ9z4c&feature=youtu.be e http://catarinas.info/videos/marcha-mun-
dos-de-mulheres-por-direitos/
73
Figura 4 – Marcha Internacional Mundos de Mulheres por

descolonizar: a prática e o sexo


direitos

Fotografia: Banco de Imagens MM/FG, 2017.

A linha de frente da Marcha foi ocupada pelas mulheres


indígenas, negras e quilombolas historicamente alijadas de
espaços acadêmicos e inclusive de espaços de movimentos
sociais tradicionais. A Marcha foi organizada em quatro para-
das com o objetivo de denunciar o preconceito, o patriarcado
e o capitalismo: na frente de um banco, liderada por mulhe-
res indígenas, camponesas, movimento negro e quilombolas
(para denunciar o sistema financeiro); na igreja da catedral
(Pessoas Transexuais e o povo LGBTTI); na Prefeitura (para
denunciar os retrocessos nas políticas públicas); e por fim,
no Instituto de Seguridade Social (INSS), a parada liderada
por mulheres do movimento sindical e da Marcha Mundial das
Mulheres, denunciando a reforma trabalhista e previdenciária
(GASPARETTO, 2018).

A Marcha reuniu acadêmicas e militantes, um encontro or-


gânico entre as sujeitas que estão liderando o feminismo
de resistência no Brasil e em partes do mundo. Contou
com a presença de uma delegação moçambicana com-
posta por 13 representantes de diversos movimentos de
74
mulheres e feministas e acadêmicas9. Foi um espaço de
superação de dicotomias, onde o conhecimento científi-
co conectou com a mística e simbologia dos movimentos
sociais. O profano conviveu com o sagrado. As fronteiras
entre as margens e os centros foram borradas. O feminis-
mo de denúncia juntou com o feminismo propositivo, com
a afirmação da necessidade de políticas públicas, afirma-
ção do direito ao corpo, afirmação de território, afirmação
da vida e uma agenda recorrente e unânime: “nenhuma a
menos”10. (GASPARETTO, 2018: 537)

A marcha foi um ponto alto do evento justamente por


trazer o congresso, com todas as suas professoras, pes-
quisadoras e estudantes, bem como as ativistas e artistas,
para o espaço da rua e da cidade, o espaço da militância e
da política, uma nova política (SNYDERS et Al., 2018). Esta
marcha representa um novo espaço de politica, que pode ser
descolonizar: a prática e o sexo

reencontrado nos movimentos 8M, nas grandes marchas or-


ganizadas nos dias 8 de março de 2017, 2018 e 2019, nas
marchas das Margaridas (LEBON, 2016; AGUIAR, 2016), na
grande marcha das mulheres negras (AMNB, 2016), na pri-
mavera feminista, nas marchas do #EleNão, e nas marchas
das vadias (GUZZO, 2019).

Considerações finais

Apresentamos neste texto algumas das perspectivas


teóricas e epistemologias feministas que contribuem para a
formulação de feminismos decoloniais e contra hegemôni-
cos, denunciando a colonialidade como uma forma de poder
9 A delegação representativa de Moçambique deveu-se à articulação para
a realização no país do 14º Congresso Mundos de Mulheres, que será no
ano de 2020, na Universidade Eduardo Mondlane – Maputo.

10 Essa palavra de ordem é baseada no movimento “Ni una a menos”,


surgido na Argentina em 2015 quando a adolescente de 14 anos, Chiara
Paéz, grávida, foi assassinada por seu namorado de 16 anos. O movimento
continua denunciando os feminicídios no país e lutando pelos direitos das
mulheres, sendo que recentemente conquistou a legalização do aborto.
75
a partir da hierarquização de raça/etnia e sexo/gênero, e que

descolonizar: a prática e o sexo


influenciaram as opções metodológicas da Comissão de Mo-
vimentos Sociais do MM/FG.

As mulheres estão nas ruas ocupando a cena pública com


suas vozes, corpos e espíritos que falam de liberdade e
justiça de forma criativa, utilizando da arte e da perfor-
mance como parte da política. Nesses espaços algumas
sentem-se empoderadas e buscam empoderar as outras,
fazendo-as encontrar um lugar de fala e de expressão de
suas necessidades imediatas, para suprir as condições
materiais de existência, e suas necessidades como mu-
lheres, pertencimentos, culturas, raça/etnicidades, respei-
to ao seu ser e ao seu existir (GASPARETTO, 2018).

Foi a partir da leitura dessas perspectivas que nos ins-


piramos para realizar as interconexões entre academia e os
movimentos sociais. Elas expressam uma diversidade de
abordagens, temas, metodologias, sujeitas/objetos de pes-
quisa, diferentes territórios, mas tem em comum a valorização
dos saberes periféricos, dos saberes bordas, do conhecimen-
to promovido pela ação e pela luta política e a perspectiva
interseccional, articulando as imbricações de classe, gênero/
sexo, raça/etnia, geração, território, entre outras.
Dessa forma os movimentos que estiveram presentes
no MM/FG tiveram a oportunidade de apresentar seus deba-
tes, produções de conhecimento, ações concretas, agenda
de luta, dialogando com a crítica aos saberes hegemônicos
– e às teóricas feministas que deles fazem parte - e seus im-
pactos no campo do feminismo e dos estudos de gênero na
América Latina. Denunciaram a subalternização das lutas da
região e consequentemente as produções teóricas que delas
surgem, mostrando sua força em diálogo com as feministas
de várias partes do mundo.
A experiência concreta do protagonismo dos movimen-
tos sociais no MM/FG e suas vozes polifônicas dialoga com
os desafios dos estudos decoloniais de reconstruir a historio-

76
grafia a partir da narrativa dos/das subalternos/as. Isso im-
plica em desaprender os privilégios e praticar uma vigilância
epistêmica que traduza, desvele as práticas e os conceitos
coloniais, favorecendo a emergência de uma visão decolonial
a partir das histórias dos protagonismos das mulheres que
foram apagadas e invisibilizadas das histórias contadas pelos
“vencedores” e pela geopolítica do conhecimento.
A consolidação do campo feminista com uma episte-
mologia decolonial traz questões teóricas e empíricas de
pesquisadoras feministas comprometidas em olhar e dialo-
gar com e sobre as práticas dos movimentos de mulheres
e feministas a partir de uma visão sobre o Sul-Sul. Essas
ativistas acadêmicas estão inseridas nas universidades bus-
cando construir uma relação desta com as agendas de luta
dos movimentos sociais.
descolonizar: a prática e o sexo

Para transformar as acadêmicas e universidades e suas


narrativas e produções teóricas é preciso começar pelo re-
conhecimento dos saberes das margens, das práticas coti-
dianas de lutas e resistências das diferentes mulheres em
disputa com o sistema neocolonial que hegemoniza a vida e
o saber nesses territórios. E ao mesmo tempo, também é pre-
ciso perceber a importância da produção de conhecimentos
acadêmicos, e de sua força de legitimação para os próprios
movimentos sociais, bem como as possibilidades em termos
de formação e produção de discursos e projetos políticos.

77
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descolonizar: a prática e o sexo


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79
Homicídios juvenis: reflexões sobre colonialidade e o aumento
de mortes de mulheres jovens em Fortaleza

Deinair Ferreira de Oliveira


Homicídios juvenis: reflexões sobre
colonialidade e o aumento de mortes
de mulheres jovens em Fortaleza

Introdução

O elevado número de homicídios no Brasil evidencia o


cenário devastador da violência letal no país. Dentre as pesqui-
sas que apontam os índices de homicídios, o destaque é para
as mortes de jovens, negros e do sexo masculino. Entretanto,
essa realidade vem mudando e cada vez mais as mulheres
também são vítimas de homicídios violentos relacionados à cri-
minalidade, predominando, como nos homicídios masculinos,
a seletividade racial. Tendo em vista a violência e o lugar de
exclusão e ausência de direitos que atinge a população negra
descolonizar: a prática e o sexo

brasileira, o debate sobre colonialidade do poder nos ajuda a


compreender as condições de produção da violência letal que
afeta mais diretamente essa população, tendo em vista o ce-
nário desigual que se estabeleceu no Brasil, a partir da ideia
de raça que emerge no período da escravidão e perdura até
os nossos dias. Desse modo, neste artigo busco refletir sobre
como o conjunto de desigualdades sociais resultantes do pro-
cesso de colonialidade que se deu no país, se relaciona com os
homicídios de jovens negros e, sobretudo, com o aumento de
mortes de mulheres jovens na cidade de Fortaleza/CE.
A violência letal no Brasil tem tomado proporções alar-
mantes atingindo em 2016 um total de 62.517 homicídios,
como aponta o Atlas da Violência 2018. Considerando os
anos de 2008 a 2018, 553 mil pessoas sofreram violência in-
tencional no país (CERQUEIRA et Al., 2018). Dentre as víti-
mas, desde o primeiro Mapa da Violência, em 1998, os jovens
aparecem como os que mais morrem, principalmente os ne-
gros e de idade entre 15 e 29 anos. Outra característica rele-
vante se refere a quase exclusiva masculinidade das vítimas:
a média nacional é de 94,4% de homicídios de jovens do sexo

83
masculino e cometidos por armas de fogo, dado que se man-

descolonizar: a prática e o sexo


tém homogêneo nas diversas regiões do país, apresentando
pouca diferença entre os estados, oscilando entre 91% e 96%
das vítimas (WAISELFISZ, 2016).
Nesse cenário de violência, a cidade de Fortaleza pas-
sou a se destacar no ranking das capitais brasileiras com a
maior taxa de homicídios por arma de fogo (HAF), passan-
do da 19ª posição em 2004 para o 1º lugar no ano de 2014
(WAISELFISZ, 2016). Essa posição preservava a caracterís-
tica peculiar da presença predominante de jovens do sexo
masculino entre as vítimas, como nas demais regiões do país,
sendo o número de homicídios entre mulheres em torno de
10%. No entanto, a partir de 2016 passa a ocorrer um aumen-
to considerável em mortes violentas de mulheres, sobretudo
cada vez mais jovens:

Entre 2016 e 2017, houve um aumento de 196% no núme-


ro de meninas de 10 a 19 anos assassinadas no Estado,
segundo os dados sistematizados pelo Comitê Cearense
de Prevenção aos Homicídios na Adolescência. Em 2018,
o número de mortes não parou de aumentar: até 26 de
dezembro de 2018, 106 meninas de 10 a 19 anos haviam
morrido de maneira violenta no Ceará. Considerando ape-
nas Fortaleza, o aumento foi de 417%, indo de seis me-
ninas assassinadas em 2016 para 31 em 2017. Em 2018,
foram registradas 56 meninas de 10 a 19 anos mortas
em Fortaleza. Antes da explosão de mortes de meninas
em 2017, os números vinham caindo pelo menos desde
2014. (RIBEIRO, 2019: 1)1. 

Embora ainda não se tenha muitos estudos sobre as


causas do aumento de homicídios de mulheres, sobretu-
do cada vez mais jovens em Fortaleza, dados da Secretaria
de Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS)2 do Ceará,

1 Maiores detalhes em: <http://www.justificando.com/2019/01/16/as-


meninas-e-a-necropolitica-no-ceara/>.

2 Maiores informações ver: <https://www.sspds.ce.gov.br/>.


84
apontam que a maioria dessas mortes foi cometida por arma
de fogo, se diferenciando, assim, da tendência dos casos de
homicídios femininos até então. Além disso, os noticiários pu-
blicados em sites e blogs, principais fontes de informações
sobre essas mortes, indicam que grande parte ocorreu em es-
paços públicos e podem estar vinculadas ao tráfico de drogas
e a participação de mulheres em facções criminosas.
Seja entre as vítimas de homicídios do sexo masculino
ou feminino a seletividade racial é notória, sendo na popula-
ção negra que se concentra os maiores índices da violência
no país, reflexo da política de exclusão promovida pelo Esta-
do brasileiro ao longo dos anos. Assim, a criminalidade proli-
fera em realidades abandonas pelo poder público encontran-
do espaço propício para práticas violentas, no qual os jovens
e, agora também meninas e mulheres, são vítimas potenciais.
descolonizar: a prática e o sexo

Nessa perspectiva, neste artigo, objetivo discutir como


as mortes de jovens negros e, sobretudo, o aumento de mor-
tes de mulheres jovens na cidade de Fortaleza, se entrelaça
com o conjunto de desigualdades sociais resultantes do pro-
cesso de colonialidade que se deu no país, e se perpetua
ainda nos nossos dias conferindo um lugar de exclusão, au-
sência de direitos e extermínio da população negra brasileira.

Colonialidade, racismo e desigualdades no Brasil

Depois de mais de trezentos anos de escravidão, somen-


te em 1888, o Brasil liberta seus escravos deixando um legado
para a população negra que perdura até os nossos dias. Desse
modo, os negros no Brasil, até hoje, enfrentam precarizações
de todos os tipos, e mesmo com as políticas que foram imple-
mentadas nos últimos anos, os dados do IBGE confirmam que
entre estes, os indicadores sociais são, ainda, inferiores aos
dos brancos. Assim, baixa escolaridade, desemprego, meno-
res salários, dificuldade de acesso a serviços de saúde, mor-
talidade infantil, moradias precárias, dentre outros, são proble-
máticas que atingem mais diretamente os negros.
85
No que se refere à violência os dados são ainda mais

descolonizar: a prática e o sexo


conhecidos e todos os estudos que buscam quantificar a vio-
lência letal no país apontam a continuidade e o aprofunda-
mento da desigualdade racial com relação aos homicídios:

No Atlas da Violência 2019, verificamos a continuidade do


processo de aprofundamento da desigualdade racial nos
indicadores de violência letal no Brasil, já apontados em
outras edições. Em 2017, 75,5% das vítimas de homicí-
dios foram indivíduos negros (definidos aqui como a soma
de indivíduos pretos ou pardos, segundo a classificação
do IBGE, utilizada também pelo SIM), sendo que a taxa de
homicídios por 100 mil negros foi de 43,1, ao passo que
a taxa de não negros (brancos, amarelos e indígenas) foi
de 16,0. Ou seja, proporcionalmente às respectivas popu-
lações, para cada indivíduo não negro que sofreu homicí-
dio em 2017, aproximadamente, 2,7 negros foram mortos
(CERQUEIRA et Al., 2019: 49.

Mediante as estatísticas que apresentam as principais


vítimas, sobretudo, de homicídio, pode-se perceber que a
população negra vem sendo dizimada. São os “homens sa-
cros” ou as “vidas matáveis” eleitas pela sociedade moder-
na (AGAMBEN, 2010). Nesse sentido, conforme o Relatório
“Cada Vida Importa” (2016), explicita,

Nossa condição histórica de país desigual, onde as es-


truturas de raça, de classe, de gênero são determinantes
para negação da dignidade, faz com que os mortos se-
jam os jovens negros e pobres, moradores das periferias
urbanas. São esses jovens os matáveis de ontem e de
hoje. A desigualdade de classe, de raça, de gênero nos
faz distantes, da hora do nascimento à hora da morte.
Pior ainda: a depender do local de nascimento e de mo-
radia, também se estará mais vulnerável à morte matada
(CEARÁ, 2016: 563).

Diante desse cenário de vulnerabilidade da população


negra e total ausência do Estado, temos visto um aumento

86
de casos notadamente racistas, desde declarações contra
pessoas até o questionamento das políticas sociais conquis-
tadas, sobretudo a partir da negação da necessidade de polí-
ticas compensatória para uma população que historicamente
teve todos os acessos negados, uma total exclusão social no
que se refere às políticas de um país que simplesmente se
absteve de qualquer responsabilidade com a população liber-
ta da escravidão e seus descentes.
Por outro lado, se para os negros a escravidão resul-
ta em desigualdades, Bento (2002) destaca que a escravi-
dão rendeu aos brancos “uma herança simbólica e concreta
extremamente positiva, fruto da apropriação do trabalho de
quatro séculos de outro grupo” (p.3). Esse legado que o país
não quer discutir, resultou em benefícios simbólicos e con-
cretos e foi determinante para o lugar que o branco ocupa
descolonizar: a prática e o sexo

na história do Brasil
Desse modo, “em vários países latino-americanos, al-
guém ser categorizado como não branco ainda se correla-
ciona diretamente com uma posição socioeconômica desvan-
tajosa e com menores chances de mobilidade ascendente”
(COSTA, 2012: 133). Enquanto a população branca usufruiu
de uma série de benefícios, fruto dos lugares diferenciados
que brancos e negros ocuparam durante a escravidão.
Embora não institucionalizado, o racismo no Brasil se
reproduz pela contradição entre a garantia formal dos direi-
tos e por outro lado, no não cumprimento desses direitos
“em geral ignorados, não cumpridos e estruturalmente limita-
dos pela pobreza e pela violência cotidiana” (GUIMARÃES,
1999: 56), e, portanto,

O racismo se perpetua por meio de restrições fatuais da


cidadania, por meio da imposição de distâncias sociais
criadas por diferenças enormes de renda e de educa-
ção, por meio de desigualdades sociais que separam
brancos de negros, ricos de pobres, nordestinos de su-
listas (GUIMARÃES, 1999: 57).

87
Assim, as desigualdades entre negros e brancos na Amé-

descolonizar: a prática e o sexo


rica Latina resultantes das desvantagens acumuladas durante
o período da escravidão perduram até os dias de hoje (COSTA,
2012). E o silêncio, assim como os discursos em torno do racis-
mo e das desigualdades que buscam deslegitimar a população
negra no Brasil “permitem não prestar contas, não compensar,
não indenizar os negros [...] Por essa razão, políticas compen-
satórias ou de ação afirmativa são taxadas de protecionistas,
cuja meta é premiar a incompetência negra” (BENTO, 2002: 3).
Tendo em vista esse cenário de desigualdades resultan-
tes da colonização na América Latina, Aníbal Quijano (2005)
elaborou o conceito de Colonialidade do Poder para com-
preender esse processo. Para o autor, o sentido moderno da
ideia de raça não é conhecido antes da América, sendo cons-
truída como referência a supostas diferenças biológicas entre
os grupos de conquistadores e conquistados. Desse modo,
as relações sociais fundadas nessa ideia produziram identi-
dades sociais como índios, negros e mestiços, além de definir
outras, promovendo uma conotação racial:

E na medida em que as relações sociais que se estavam


configurando em relações de dominação, tais identidades
foram associadas às hierarquias, lugares e papeis sociais
correspondentes, com constitutivas delas, e, consequen-
temente, ao padrão de dominação que se impunha. Em
outras palavras, raça e identidade racial foram estabeleci-
das como instrumentos de classificação social básica da
população (QUIJANO, 2005: 117)

Nessa perspectiva, não obstante as diferenças nos pa-


drões e modelos implementadas em cada um dos países da
América Latina, a escravidão legou uma divisão racial nas so-
ciedades, “demarcando dois grupos com diferentes estatutos
políticos, jurídicos e sociais”, negros, escravizados, e homens
livres brancos (COSTA, 2012: 134).
No entanto, o fato de não termos experimentado conflitos
raciais ou uma segregação do ponto de vista formal no Brasil,

88
corroborou para a difusão da ideia de democracia racial, e a
discussão sobre racismo no país é considerada um tabu: “De
fato os brasileiros se imaginam numa democracia racial. Essa
é uma fonte de orgulho nacional e serve, no nosso confronto
e comparação com outras nações, como prova inconteste de
nosso status de povo civilizado” (GUIMARÃES, 1999: 37).
Assim, discutir raça e racismo no Brasil não é tarefa das
mais fáceis. Diferente dos Estados Unidos, por exemplo, onde
as raças são muito evidentes assim como em outros países,
Guimarães (1999: 19) explica que:

Em outras partes do mundo, incluindo o Brasil, “raça” não


faz parte nem do vocabulário erudito, nem da boa lingua-
gem. Apenas entre pessoas “não refinadas” e nos mo-
vimentos sociais, onde militam pessoas que se sentem
discriminadas por sua cor e compleição física, utiliza-se
descolonizar: a prática e o sexo

regularmente o conceito.

Conforme salienta Guimarães (1999), as dicotomias eli-


te/povo e brancos/negros sustentaram a ordem escravocrata
no Brasil durante três séculos, reforçando, portanto, as desi-
gualdades, tanto simbólica como materialmente. Portanto, a
miscigenação imposta como “solução” para o “problema ne-
gro” e a tentativa de branqueamento da população serviram
para tentar mascarar a divisão racial brasileira que se estabe-
lecia, legando a população negra e seus descentes um lugar
determinado, reforçando as dicotomias existentes ao mesmo
tempo em que nega qualquer segregação.
Desse modo, o racismo e as desigualdades são caracte-
rísticas que fundamentam a sociedade brasileira se caracteri-
zando como (BORGES, 2018: 29):

Opressões estruturais e estruturantes da constituição de


uma sociedade que surge, para o mundo ocidental, pela
exploração colonialista e ainda marca, em todos os seus
processos, relações e instituições sociais, as característi-
cas da violência, usurpação, repressão e extermínio da-
quele período.

89
Nessa perspectiva, compreender a realidade brasileira e

descolonizar: a prática e o sexo


a flagrante seletividade racial dos homicídios da juventude ne-
gra, requer entender o processo de colonialidade estruturado
pela ideia de raça, que divide e hierarquiza, relegando deter-
minados grupos sociais a uma realidade cruel, um sistema de
exclusão e extermínio notório para uma população específica.

Extermínio da juventude e o aumento de mortes


de mulheres jovens em Fortaleza

A violência se tornou uma problemática relevante no Brasil


afetando significativamente a vida das pessoas, especialmente
os moradores das periferias das grandes cidades. As facções
criminosas que dominam o crime no país agem com muita vio-
lência ao promoverem torturas e acertos de conta, tendo em
vista as disputas por mercados ilegais. A cidade de Fortaleza,
seguindo essa tendência, tem enfrentado nos últimos anos a
atuação de quatro facções criminosas que transformaram o
cotidiano da cidade, resultando em números elevados de ho-
micídios, muitos destes com requintes de crueldade, rebeliões
em presídios e chacinas que vitimaram muitas vidas. Foi nes-
se contexto que os índices de mortes de mulheres tiveram um
crescimento expressivo, desestabilizando a hegemonia quase
absoluta de mortes de jovens do sexo masculino.
As mulheres sempre foram vítimas de violências diversas,
sobretudo a violência doméstica que o país apresenta núme-
ros alarmantes de casos, muitos dos quais resultam em mortes.
Desse modo, estudos sobre violência contra a mulher no Brasil
têm origem desde os anos 80, como resultado das transforma-
ções sociais e políticas que passam a acontecer no país, sobre-
tudo com o processo de redemocratização e o desenvolvimento
do movimento de mulheres. À época, o movimento tinha como
principal objetivo visibilizar a violência sofrida pelas mulheres,
para combatê-la a partir de intervenções sociais, psicológicas e
jurídicas. Foi nesse momento histórico, inclusive, que se deu a
conquista das delegacias da mulher, instrumento importante ain-
90
da hoje no combate à violência e a impunidade contra a mulher,
e palco das primeiras pesquisas (SANTOS e IZUMINO, 2005).
Enquanto problemática sempre presente no país as mor-
tes de mulheres apareciam, sobretudo, como resultado da vio-
lência doméstica, enquanto os homens dominam os índices
de homicídios violentos relacionados à criminalidade. Nesse
sentido, tendo em vistas as mortes de homens e mulheres, o
Mapa da Violência Homicídios de Mulheres, de 2015, aponta
algumas questões peculiares a cada sexo. Enquanto o uso da
força física é predominante entre os homicídios de mulheres,
além de uma maior utilização de objetos cortante/penetran-
te, entre os homens é comum o maior uso da arma de fogo.
Além disso, a agressão que resulta na morte de mulheres tem
maior incidência no domicílio da vítima, sendo, na maioria dos
casos, cometida por pessoas conhecidas, enquanto contra os
descolonizar: a prática e o sexo

homens costuma ocorrer fora de casa e por pessoas desco-


nhecidas. Todas essas características apontavam para a vio-
lência doméstica e familiar como causa principal do assassi-
nato de mulheres (WAISELFISZ, 2015), o que levou a criação
de leis de combate a essas violências como, por exemplo, a
Lei Maria da Penha em 2006 e a Lei do Feminicídio em 2015.
Entretanto, as mortes de mulheres que tem ocorrido nos
últimos anos em Fortaleza apresentam características que
se diferenciam do que até então vinha sendo observado. Ao
mesmo tempo, uma série de notícias e reportagem vem sen-
do publicada nos jornais locais, ressaltando o maior envolvi-
mento de mulheres na criminalidade na cidade. A participação
no crime organizado e o tráfico de drogas são as principais
questões apontadas na participação das mulheres como pro-
tagonistas de violências, e uma vez inseridas na lógica per-
versa da criminalidade estas ficam vulneráveis às ações per-
petradas pelas facções.
Em recente artigo publicado pelo professor Luiz Fábio
Paiva (2019: 180), ao analisar as transformações do crime
na cidade de Fortaleza, ele aponta o aumento de mortes de
mulheres relacionado à participação em facções criminosas e
91
como parte dos acertos de contas referentes aos conflitos e

descolonizar: a prática e o sexo


disputas do tráfico de drogas entre os coletivos rivais:

Observei que todos os coletivos fazem uso das mortes de


mulheres em seus acertos de contas, promovendo cenas
de tortura e as fazendo circular de maneira abrangente. São
ações feitas para demonstrar a força pela crueldade e pela
capacidade de fazer todas pessoas consideradas inimigas
sentirem a dimensão das maldades que o outro é capaz de
mobilizar nessa disputa por mercados ilegais, domínio de
territórios, hegemonia, reconhecimento e honra.

Além do aumento no número de mortes, a maior par-


ticipação na criminalidade também tem elevado a presença
das mulheres no sistema carcerário. Assim, dados do Levan-
tamento Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN
Mulheres 2016, apontam que a população prisional femini-
na teve um aumento de 656%, passando de 6 mil mulheres
em princípios dos anos 2000, para 42 mil em 2016. O relató-
rio aponta ainda que 50% da população prisional feminina é
composta por jovens de até 29 anos e 62% é negra.
Nessa perspectiva, seja entre as vítimas de homicídios
do sexo masculino ou feminino e na população carcerária, é
entre a população negra que a violência encontra a maioria das
vítimas. Em realidades completamente abandonas pelo poder
público e marcadas pela ausência de direitos, a criminalidade
prolifera encontrando espaço nas lacunas deixadas pelo Esta-
do. Não obstante a vitimização que atinge a juventude no Brasil
provocando um extermínio dos jovens negros, os assassinatos
que tem se naturalizado nas diversas periferias do país têm
encontrado em meninas e mulheres vítimas potenciais de uma
lógica cruel que vitimiza corpos matáveis e se consolida como
marca de uma sociedade injusta, desigual e racializada.
Por outro lado, a omissão do Estado e as políticas de
segurança pública ineficientes, corroboram com o sistema de
dominação, exclusão e extermínio da população pobre, negra
e moradora da periferia. As mães que costumavam velar seus

92
filhos jovens, agora também choram as mortes de suas filhas,
muitas ainda meninas entre 10 e 19 anos, vítimas da violência
letal, de um Estado omisso e do racismo que sujeita e legitima
a morte de determinados corpos.

Considerações finais

O processo de colonialidade que se estabeleceu no Bra-


sil, assim como em outros países da América Latina, estabele-
ceu um sistema de relações raciais que fundamenta um con-
junto de desigualdades e, de modo velado ou não, molda a vida
da população negra brasileira conferindo um lugar específico
de exclusão e ausência de direitos. Isso pode ser observado
nos indicadores sociais que apontam a condição de inferiorida-
de dos negros em relação aos brancos nos diversos acessos,
descolonizar: a prática e o sexo

repercutindo em baixa escolaridade, desemprego, mortalidade


infantil, dentre outras problemáticas e, sobretudo, na violência.
Com taxas elevadas de homicídios o Brasil vivencia um
extermínio de sua população negra, principal vítima de homi-
cídios no país. A consolidação das facções criminosas tem
afetado significativamente a vida das pessoas, mudando a
dinâmica da vida nas cidades ao provocar disputas, torturas
e mortes. O debate sobre colonialidade do poder nos ajuda
a compreender as condições de produção da violência letal
que afeta mais diretamente a população negra, tendo em vis-
ta o cenário desigual que se estabeleceu no Brasil a partir
da ideia de raça que emerge no período da escravidão, e
tem consequências que perduram até os nossos dias. O ex-
termínio de jovens negros do sexo masculino, e o crescente
número de meninas e mulheres também vítimas de homicí-
dios violentos, alertam para a vitimização que acomete uma
população específica: pobres, negros e negras, moradores
das periferias. E não somente, apontam para a necessidade
urgente de ações políticas efetivas que possam romper com
esse ciclo de violência que legitima uma população à exclu-
são, à morte, ao extermínio.
93
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descolonizar: a prática e o sexo


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descolonizar: a prática e o sexo

95
Inflexões decoloniais: as relações de gênero na vida das
mulheres-professoras em assentamentos da
Reforma Agrária – MA

Elisângela Santos de Amorim


Inflexões decoloniais: as relações de gênero
na vida das mulheres-professoras em
assentamentos da Reforma Agrária – MA

Introdução

As narrativas de vida de mulheres-professoras de assen-


tamentos têm constituído a centralidade de nossos estudos
e pesquisas sobre a mulher, a mulher professora e, em par-
ticular, da mulher professora de assentamentos e a falta de
informações e produção científica a respeito. Estas são mais
imaginadas do que descritas ou contadas (PERROT, 2008).
Logo, fazer a sua história é ir de encontro às representações
que as encobertam, tornando-se indispensável analisarmos
e sabermos de suas vivências e experiências, contrapondo o
descolonizar: a prática e o sexo

que era dito sobre elas, de caráter masculino e sem a sua par-
ticipação, bem como de como elas se viam nessas produções.
Neste ensaio, realizamos à luz das contribuições das teo-
rias feministas pós-coloniais e decoloniais, uma releitura de al-
gumas narrativas de vida, da pesquisa realizada no período
de 2008 a 2010, com o título: A mulher-professora de as-
sentamento da Reforma Agrária: Uma escrita que se faz
história. Buscamos desta forma, alargar a compreensão dos
processos de subalternidade vivenciados por estas mulheres,
tentando perceber os eixos de dominação que assolam suas
vidas, além do gênero. O percurso de construção deste ensaio
foi o de inicialmente apresentar contribuições das teorias femi-
nistas pós-coloniais e decoloniais para o estudo com as mulhe-
res professoras de assentamentos da Reforma Agrária. Num
segundo momento, o de revisitar as narrativas de vidas de uma
mulher-professora que fez parte da pesquisa realizada durante
os anos de 2008 a 2010, buscando indícios que demonstram
eixos de dominação, além do gênero, para então apresentar-
mos nossas considerações sobre a importância dos estudos
decoloniais, em particular, os feministas por levantar novos fa-

99
tores sociais como responsáveis pela dominação masculina e

descolonizar: a prática e o sexo


subalternização feminina.

Aproximações das teorias feministas pós-coloniais


e decoloniais

A literatura brasileira sobre o movimento feminista traz


em seu bojo o feminismo “ocidental” e este, dividido por “on-
das”, numa forma sumária e reducionista, mas também didá-
tica academicamente para entendermos os avanços do mo-
vimento de mulheres e do movimento feminista no Brasil em
relação ao feminismo anglo-americano.
A organização do movimento feminista por “ondas” é uma
das formas de compreender suas transformações, principal-
mente em relação às reivindicações feministas desde o século
XIX, mas de certa forma, exclui como as mulheres se organi-
zavam em outros contextos fora dos parâmetros anglo-ameri-
canos. Esta questão é criticada por Hemmings (2009) em seu
artigo “Contando histórias do feminismo”, estaremos na esteira
destes questionamentos que tem como base suas críticas a
como o feminismo anglo-americano conta sua “estória”.
Segundo Brym (2006), a teoria feminista, em suas várias
vertentes, (feminismo liberal, feminismo radical, feminismo
socialista) tenta responder a questão “quais estruturas sociais
e processos de interação mantém a dominação masculina e a
subordinação feminina?” A resposta para este questionamen-
to deve articular uma compreensão geral sobre os processos
sociais e sobre a produção de conhecimento. No entanto, as
distintas correntes teóricas feministas tem em comum o obje-
tivo de compreender a experiência social a partir das mulhe-
res, considerando-as como sujeitos e objetos da investigação
em suas distintas e desiguais situações. A questão é perce-
ber como estas teorias são traduzidas em outras localidades,
com diferentes realidades.
Os estudos de Costa (1998) possibilitam um entendi-
mento sobre as “viagens das teorias”, principalmente em re-
100
lação ao seu eixo irradiador: Europa e Estados Unidos. Uma
questão que se tem discutido é sobre o Tráfico de Teorias, e
neste, as teorias de gênero. As viagens destas teorias encur-
tam distâncias entre localidades desiguais e desestabilizam
os significados de comunidade, de lugar e de resistência. Nes-
te sentido, feministas pós-coloniais como Chandra Mohanty
(2008) chamam a atenção para que os/as teóricos/as, quando
escrevem, devem fazê-lo conscientes de seu lugar – conceito
que deve ser entendido na acepção de lugar de enunciação,
no sentido metafórico de posição, dentro de uma localidade
imaginada: política, cultural e psíquica.
O encontro com produções de teóricas feministas lati-
no-americanas, chicanas, asiáticas e africanas, proporcio-
nou-nos um novo olhar sobre a trajetória educacional de mu-
lheres e homens em assentamentos da Reforma Agrária. É
descolonizar: a prática e o sexo

neste contexto que se inserem as contribuições das feminis-


tas pós-coloniais em relação aos estudos das mulheres, pau-
tados num feminismo ocidental que descreve as experiências
das “mulheres do terceiro-mundo” nos termos da constituição
do sujeito feminino ocidental (SPIVAK, 1985). Este enfoque
claramente ignora algumas diferenças que são muito impor-
tantes, como: a cultura, a história, o idioma e a classe social.
Nesta linha, Mohanty (2008) critica a tendência da erudição
feminista ocidental a colonizar a heterogeneidade, material e his-
tórica da vida das mulheres do “terceiro-mundo”. O que Mohanty
denominou de colonização discursiva, prática acadêmica do fe-
minismo ocidental sobre as mulheres do terceiro-mundo. Com
este entendimento Mohanty revisa criticamente o trabalho teó-
rico do feminismo ocidental, suas metodologias eurocêntricas,
falsamente universalizantes ao serviço de seus próprios interes-
ses. Argumenta a autora que uma parte considerável do traba-
lho feminista do ocidente sobre as mulheres do Terceiro Mundo
peca, por um lado, por assumir privilégios universalistas e etno-
cêntricos, e por outro, por uma compreensão deficiente sobre
o impacto da teorização ocidental sobre o Terceiro Mundo no
contexto do sistema global dominado pelo ocidente.
101
A relação entre mulher, (outro cultural e ideológico cons-

descolonizar: a prática e o sexo


truído a partir de diversas representações discursivas: cientí-
ficos, literários, jurídicos, linguísticos, cinemáticos etc.) e as
mulheres (sujeitos reais, materiais, de suas próprias histórias
coletivas) é uma das questões centrais que a prática da teo-
rização feminista persegue. Para esta autora, a aplicação da
noção de mulheres como categoria homogênea, coloniza as
mulheres do “terceiro-mundo” e apropria as pluralidades de
localização simultânea de diferentes grupos de mulheres em
marcos de referência de classe e étnicos, e ao fazê-lo lhes
rouba sua agência histórica e política.
Para Mohanty existe uma colonização discursiva das mu-
lheres do terceiro mundo e da América Latina e suas lutas, isso
não somente tem sido uma tarefa dos feminismos hegemôni-
cos do Norte, mas conta com a cumplicidade e o compromis-
so dos feminismos hegemônicos do Sul, dado seus próprios
interesses de classe, raça, sexualidade e gênero normativos,
legitimação social e status social. Remetendo a Spivak, apud
Miñoso (2009), dentro desta construção não há lugar para uma
verdade da experiência da subordinação, a subalterna não
pode falar, pois sua voz permanece encoberta pelos discursos
sobre elas, e sua experiência colonizada por eles.
Femenias (2007) e Lugones (2008) apontam que há um
reconhecimento de que nas últimas décadas o feminismo lati-
no-americano desenvolveu um pensamento crítico e uma ação
política que leva em conta as desigualdades de raça e classe
nas quais vive grande parte das mulheres latino-americanas.
As mulheres latino-americanas possuem particularidades que
ultrapassam a visão de dominação e submissão das mulheres,
vistas ou acometidas pelas mulheres, brancas e ocidentais.
Os mecanismos de inclusão e exclusão das mulheres
têm sido atravessados pela diversidade étnica e cultural, in-
cluída a religiosa, muitas vezes mascaradas como questões
econômicas e de classe. Para a autora, na maioria dos casos,
a discriminação se potencializa em termos de sexo e etnia e a
exclusão e invisibilidade de grupos não dependem apenas de
102
diferenças de sexo e sim pelo seu pertencimento a certa etnia
e cultura. Por isto, faz-se necessário ao abordar o problema
do sexismo, do tema negro, o problema do indígena, reconhe-
cer o papel histórico desempenhado pelas estruturas patriar-
cais, sejam brancas ou não, sobre a população em geral e
as mulheres, de qualquer etnia, em particular ou em conjunto
(FEMENÍAS, 2007). Femenías destaca que se impõe cada
vez mais a intersecção sexo-etnia-classe como chave teórica
e afirma que o feminismo na América Latina tem característi-
cas e contribuições próprias que o faz merecedor de especial
interesse. Este feminismo nasce de narrativas múltiplas e tra-
dicionais diversas que incluem a transversalidade de etnia,
classe, gênero, religião e outros contextos.
Algumas autoras têm trabalhado com a palavra intersec-
cionalidade ou categorias de articulação. Segundo Piscitel-
descolonizar: a prática e o sexo

li (2008), as interseccionalidades são formas de capturar as


consequências da interação entre duas ou mais formas de su-
bordinação: sexismo, racismo, patriarcalismo. Para Crenshaw
(2004), a interseccionalidade aborda as diferenças dentro da
diferença, pois tanto as questões de gênero como as raciais
têm lidado com a diferença. O desafio, para esta autora, é
incorporar a questão de gênero à prática dos direitos huma-
nos e a questão racial ao gênero. Para as autoras Winker e
Degele (2009) apud Mattos (2003), a ideia básica do conceito
de interseccionalidade é que com ele seja possível explicar
normas, valores, ideologias e discursos, assim como estrutu-
ras sociais e identidades influenciam-se reciprocamente.
Lugones (2008) investiga em seus trabalhos a intersec-
ção de raça, classe, gênero e sexualidade para entender a
indiferença dos homens em relação às violências que siste-
maticamente infligem às mulheres de cor, ou seja, mulheres
não-brancas, mulheres vítimas da colonialidade do poder, e,
para ela, inseparavelmente da colonialidade de gênero. Lu-
gones compõem um grupo de teóricas feministas decoloniais
que construíram críticas de análise ao feminismo hegemônico,
principalmente por ignorar a interseccionalidade de raça, clas-
103
se, sexualidade e gênero. Destaca a importância da teorização

descolonizar: a prática e o sexo


de Anibal Quijano acerca da categoria colonialidade1 do poder,
para o que vem chamado de “o sistema-moderno colonial de
gênero”. Cabe destacar que diferentemente de Lugones, que
afirma a inexistência do gênero no mundo pré-colonial, a teóri-
ca Rita Segato (2011), propõe uma leitura da interface entre o
mundo pré-intrusão e a colonialidade/modernidade a partir das
transformações do sistema de gênero, a autora diz:

[...] no se trata meramente de introducir el género como


uno entre los temas de la crítica descolonial o como uno
de los aspectos de la dominación en el patrón de la colo-
nialidad, sino de darle un real estatuto teórico y epistémico
al examinarlo como categoría central capaz de iluminar
todos los otros aspectos de la transformación impuesta a
la vida de las comunidades al ser captadas por el nuevo
orden colonial moderno (SEGATO, 2011: 30).

A partir de sua “escuta etnográfica”, da inserção no movi-


mento feminista e da luta indígena, percebe como as relações
de gênero vem se modificando historicamente pelo colonialis-
mo e pela episteme da colonialidade. Femenías (2008) fala da
importância da utilização da categoria gênero nos estudos fe-
ministas latino-americanos e argumenta que seu uso não foi
simplesmente uma importação dos EUA. Configurou-se como
processo de reapropriação crítica que contribuiu para iluminar
não somente os modos individuais de socialização femininos
ou masculinos, mas também, modos sociais de convivência e
exercício da própria sexualidade, da etnia, da cultura, da clas-
se, ou seja, a localização-situação de cada um e de seu en-
contro. A adoção de gênero produz contribuições interessan-
tes, que vieram se juntar direta e indiretamente a tomada de
consciência da discriminação.
1 Colonialidad no se refiere solamente a la classificación racial. Es um fenó-
meno abarcador, ya se trata de uno de los ejes del sistema de poder y , como
tal, permea todo control del acceso sexual, la autoridad colectiva, el trabajo,
y la subjetividad/intersubjetividad, y la producción del conocimiento desde el
interior mismo de estas relaciones intersubjetivas (LUGONES, 2008).
104
As contribuições dessas teóricas abrem possibilidades
de entendimento e compreensão da vida concreta e material
das mulheres latino-americanas e toda sua complexidade. É
no contexto de análise da vida e da trajetória de mulheres
em assentamentos da Reforma Agrária, que percebemos que
muitas vezes a categoria gênero foi insuficiente para enten-
dermos o que estas mulheres vivenciaram e até que ponto
gênero era tido como princípio fundador da organização de
suas vidas.

Uma inflexão teórica nos estudos sobre mulheres


professoras em assentamentos da reforma agrária

Nos estudos empreendidos (AMORIM, 2009; AMORIM


e MANZKE, 2010), tivemos como referencial básico para os
descolonizar: a prática e o sexo

estudos de gênero as teorias feministas anglo-americanas. A


categoria de análise, gênero, foi nosso fio condutor para expli-
car a condição de mulher e entender o processo de domina-
ção vivenciado por elas, principalmente em relação ao acesso
à educação. Portanto, pautada numa narrativa “oficial” do fe-
minismo, segundo Hemmings (2009), geralmente tendo como
parâmetros os avanços do movimento feminista americano
ou europeu, em relação ao contexto local, seja Brasil, e mais
especificamente, no nordeste brasileiro, estado do Maranhão.
Esta posição abriu espaços para a discussão das cate-
gorias de articulação ou interseccionalidades, uma vez que
hoje não podemos tomar como parâmetro de análise somente
a categoria gênero, embora permaneça fundamental na com-
preensão das relações sociais, necessita ser articulada às
questões de raça, classe social, geração, sexualidade e ou-
tras, presentes atualmente no centro dos debates das teorias
feministas pós-coloniais e decoloniais.
A pesquisa realizada no período de 2008 a 2010, com o
título: A mulher-professora de assentamento da Reforma
Agrária: Uma escrita que se faz história, tinha como obje-
tivo compreender ‘como as relações de gênero interferem na
105
trajetória docente das mulheres professoras e camponesas de

descolonizar: a prática e o sexo


assentamentos da Reforma Agrária da região Tocantina – MA’.
Frequentemente, abandonam ou atrasam seus estudos para
acompanharem os pais ou os maridos na busca de trabalho e,
ou, melhores condições de vida, conforme alguns recortes das
narrativas de vida recolhidas através de entrevistas de profun-
didade de uma professora que fez parte da pesquisa.
No assentamento Sol Brilhante II, município de Cidelândia,
conhecemos Lucy, professora da escola do assentamento que
possui 29 alunos entre crianças e adolescentes. Lucy é a única
professora desta escola, que possui também um vigia e uma
merendeira. A escola funciona no sistema multisseriado, ou
seja, numa mesma sala funciona a alfabetização, terceiro, quar-
to e quinto ano do ensino fundamental, nos períodos matutino e
vespertino. Está trabalhando como professora no assentamen-
to desde 2008, através do concurso público feito pela Prefeitura
Municipal de Cidelândia. Seu percurso de escolarização sofreu
algumas interrupções, se tornou mãe muito cedo, aos 15 anos,
ficou cinco anos sem estudar, contudo, pode contar com o apoio
da mãe e das irmãs para dar sequência aos estudos.
A decisão de Lucy de tornar-se professora veio com o
incentivo das irmãs, também professoras, uma delas traba-
lhou por cinco anos neste mesmo assentamento, onde mora
sua mãe ainda hoje. Por isto, fez no ensino médio, o Magisté-
rio. Está casada há 11 anos e conta também com o apoio do
marido. Faz referência a ele da seguinte forma: “Ele sempre
me apoiou pra estudar e nós dois trabalhando. Aí quando ele
tá de folga ele é quem fica em casa. Agora ele tá de férias e
ele é quem cuida da casa, cuida das crianças pra mim estu-
dar, mas são muitos os nossos obstáculos”.
Mas Lucy também relembra que não foi sempre assim, o
período que ficou sem estudar foi por acompanhar seu marido
que trabalhava como vaqueiro em fazendas da região, quando
lhe restavam os cuidados da casa, do marido e dos filhos. Foi
nesta situação, no penúltimo emprego do seu marido, já nas
proximidades do município de Cidelândia, que pôde retomar
106
os estudos. Hoje reside no próprio assentamento com seu ma-
rido, funcionário de uma empresa de reflorestamento, e seus
filhos. É muito comum a renúncia à continuidade dos estudos
pelas mulheres para poderem acompanhar seus maridos em
suas constantes mudanças e deslocamentos atrás de trabalho.
Em alguns casos, como este de Lucy, houve a oportunidade
de conciliar os interesses, o que não é comum. A condição de
subalternidade da mulher a obriga a renunciar, na maior parte
das vezes, ao estudo e à sua formação para o trabalho.
À época desta pesquisa, em 2009, Lucy estava cursando
o segundo período do curso de licenciatura em História, em
Cidelândia, e assim retrata sua rotina: “todo dia quando saio da
escola às 17h15min venho prá casa, tomo banho, vou ali pra
beira da estrada pegar o transporte para chegar à faculdade.
Às 18 horas começa e a noite eu retorno no ônibus dos alunos”.
descolonizar: a prática e o sexo

Ela mesma investe na sua formação pois, além do pagamen-


to da mensalidade da faculdade, paga o transporte de ida, e
no seu retorno, vem no mesmo ônibus que traz os alunos que
moram no assentamento e fazem o ensino médio na cidade. É
preciso coragem para seguir em frente, a mesma afirma, mas
sente-se ao mesmo tempo muito bem pelo trabalho que de-
senvolve e pela dedicação que dispensa à sua profissão “eu
tento sempre tá buscando mais conhecimento, por isso não
tenho dificuldade em tá fazendo a faculdade pra adquirir mais
conhecimento, pra que eu até esteja ajudando na minha comu-
nidade, onde eu moro”. Lucy percebe que sua atuação como
professora vai além da mera transmissão de conhecimentos,
procura manter uma relação amigável com os pais das crian-
ças, dividindo bem as responsabilidades e obrigações. Sente
que a grande maioria entende bem o papel da professora e as-
sume junto com ela o desafio de educar nestas adversidades.
Em nossa análise anterior, marcada principalmente pela
questão de gênero, demos visibilidade a como essas mulhe-
res enfrentaram as dificuldades para ter acesso à educação e
consequentemente a uma profissão; tentando desvelar o pro-
cesso de negociação ou de conscientização das limitações
107
impostas por uma sociedade machista e patriarcal, de forma

descolonizar: a prática e o sexo


ainda mais acentuada no meio rural.
Constatamos, naquela realidade, que o domínio domés-
tico é tido como o espaço da mulher, que a submete a uma
condição de vida que não lhe permite conhecer alternativas de
exercício de papéis que não sejam os tradicionais. Segundo
estudos de Samara (1997, p.14), o espaço doméstico é o local
por excelência onde se instala a “cultura da opressão femini-
na”. As situações vivenciadas por estas mulheres caracterizam
esta opressão, tornando-as limitadas ao desenvolvimento da-
quelas atividades. Todavia, as relações de gênero são cons-
truídas socialmente, e por isso, passíveis de mudanças. Este
era um dos focos da análise. No entanto, nos deparamos com
situações, como expressadas nas narrativas de Lucy, em que
as relações de gênero, não foram o único fator determinante de
sua condição social, demonstrando a importância da inserção
dos outros eixos de dominação, como a sexualidade e a classe
social, lançando mão da categoria interseccionalidade.
O fenômeno social, de forma geral, se expressa como
um complexo, onde múltiplos fatores se relacionam entre si,
dando configuração aos fatos. Entre os fatores que contribuem
para a condição social destas mulheres professoras estão: a
condição socioeconômica; o grau de instrução dos familiares;
o isolamento geográfico e social dos assentamentos; a falta
de infraestrutura; a insustentabilidade produtiva de parte dos
lotes do assentamento; entre outros. Somados a estes fatores
infraestruturais, percebemos que ao tomarmos como ponto
de análise outro posicionamento, que considera como legíti-
mo o lugar de enunciação e o ponto de partida da colonizada,
da subalterna, marcamos a passagem de uma configuração
ou conjuntura histórica do poder para outra, remetendo a con-
textos diversos de opressão definidos em termos de classe
social, raça, sexualidade e geração e a superação de um viés
de análise baseado somente na categoria gênero.
A questão do lugar é um ponto crucial para as feminis-
tas. Dorren Massey, em o sentido global do lugar, propõe que
108
em vez de pensarmos os lugares como áreas com fronteiras
ao redor, podemos imaginá-los como momentos articulados
em redes de relações e entendimentos sociais, onde essas
relações, experiências e entendimentos sociais se constroem
numa escala muito maior do que definíamos como o lugar em
si, seja a rua, a região, o continente. Isto permite um sentido
de lugar que é extrovertido, que inclui uma consciência de
ligação com o mundo mais amplo, que integra de forma posi-
tiva o global e o local (MASSEY, 2000).
Reich (2002) mostra o lugar como uma maneira de lutar
contra uma abstração; Virgínia Wolf, fala da importância da
mulher ter uma casa, um lugar físico para sobrevivência espi-
ritual, articulando a materialidade do lugar com a necessidade
de politizar esse lugar. A tríade lugar – experiência – conhe-
cimento para estas autoras não é algo linear, mas complexo,
descolonizar: a prática e o sexo

que inclui lutas de articulação. Para Anzaldúa (1987), o lugar


é o entre-lugar que apresenta em A consciência Mestiça:

[Começei a pensar: “Sim, sou chicana, mas isso não defi-


ne quem eu sou. Sim, sou mulher, mas isso também não
me define. Sim, sou lésbica, mas isso não define tudo que
sou. Sim, venho da classe proletária, mas não sou mais
da classe proletária. Sim, venho de uma mestiçagem, mas
quais são as partes dessa mestiçagem que se tornam privi-
legiadas? Só a parte espanhola, não a indígena ou negra.”
Começei a pensar em termos de consciência mestiça [...]

O lugar é o momento, eixo temporal num fluxo destes


lugares, relações e conhecimentos. Ele temporaliza o lugar
e está sempre interagindo com outros lugares. Esta acepção
está presente nas narrativas da professora Lucy, ela está em
um lugar que é entrelaçado por muitos outros e de forma dinâ-
mica consegue articular estes elementos, principalmente em
relação ao global no local.
A trajetória educacional Lucy está recheada de luta
pessoal e coletiva pela emancipação social de comunida-
des rurais dos assentamentos da Reforma Agrária da região

109
Tocantina do Estado do Maranhão. Esta professora e cam-

descolonizar: a prática e o sexo


ponesa enfrentou e enfrenta, em seu percurso, situações
extremamente difíceis e problemáticas em seu trabalho do-
cente. Obtida a formação inicial, à própria custa e sacrifício
pessoal e familiar, enfrenta toda sorte de deficiências em
sua atividade profissional.
A maior parte dos problemas enfrentados no exercício
profissional das mulheres professoras dizem respeito à au-
sência secular do Estado brasileiro no atendimento às de-
mandas sociais de populações rurais. Algumas iniciativas,
como o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária
– PRONERA, do governo federal (INCRA), atendem parcial
e limitadamente demandas formativas dos assentamentos.
Neste sentido, os movimentos sociais representam importan-
te fator organizacional para a apresentação de demandas.
O esforço para progredir com a escolaridade e tornar-se
professora tem em comum a infância pobre, a falta de escolas
dotadas de condições mínimas de funcionamento e as interrup-
ções de estudo: seja pelas deficiências da própria ‘escola’, seja
pela condição de sobrevivência e a necessidade de braços
para a agricultura familiar. A isto se acrescente as constantes
migrações das famílias em busca de terra, acossadas perma-
nentemente pelo latifúndio e por seus agentes do Estado.
O trabalho relativo aos eixos de dominação impõe con-
siderar para a análise, os níveis das estruturas sociais, da
identidade e das representações simbólicas, e considerar as
diferentes categorias de diferenciação que, de maneiras dis-
tintas, geram e perpetuam formas de opressão, discriminação
social e estereótipos.

Considerações finais

Os estudos de gênero, de uma forma geral, têm se re-


ferenciado historicamente na matriz anglo-americana e ne-
gligenciado outras perspectivas, mais abrangentes. A con-
tribuição científica daquelas/es pesquisadoras/es ocidentais
110
foi suplantada por um novo paradigma crítico em relação ao
modo burguês, branco e eurocêntrico de ver a condição fe-
minina. A emergência das teorias pós-coloniais e decoloniais
mudam o ângulo de visão, levantando novos fatores sociais
como responsáveis pela dominação masculina e subalterni-
zação feminina. Questões, como: classe social, etnia/raça,
sexualidade, geração, cultura e outras, em sua diversidade,
interagem em um mosaico complexo e de difícil redução aos
estudos de gênero tradicionais.
As investigações que promovemos relativamente às mu-
lheres professoras dos assentamentos da Reforma Agrária da
região Tocantina do Estado do Maranhão sempre apontaram
para a esta perspectiva complexa em sua formação. Estudar
sua trajetória pessoal e profissional apenas na perspectiva
de gênero, desconhecendo seus elementos de classe social,
descolonizar: a prática e o sexo

etnia, origem geográfica e diversidade cultural, seria incorrer


em erro teórico-metodológico que limitaria a compreensão da-
queles processos. Felizmente para esta pesquisadora, ape-
sar das pequenas ‘escorregadas’ neste processo, a realidade
sempre foi mais forte que o ‘modelo’.
Teríamos uma compreensão limitada daquela realidade
social se a limitássemos unicamente à perspectiva de gênero,
desconhecendo ou diminuindo sua relação com uma variedade
enorme de elementos constituintes daquele processo. Desde
o início, ficou clara em nossos estudos a condição social e de
classe social, particularmente, para compreendermos a vida
destas mulheres professoras. Por outro lado, a articulação
desta com a carga cultural de preconceitos de uma sociedade
rural extremamente conservadora explica as dificuldades de
acesso à instrução daquelas mulheres, como bem o exempli-
fica Lucy. No entanto, estes fatores, assim como os étnicos e
a toda sorte de dificuldades, foram superados, tornando estas
protagonistas referências em suas comunidades. Mostra da
dinâmica social, mesmo em ambientes onde o conservadoris-
mo e o patriarcado dominam, apresentando uma perspectiva
de emancipação feminina.
111
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descolonizar: a prática e o sexo


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113
Descolonizar a prática: o artesanato
como forma de afirmação ética

Jenniffer Simpson dos Santos


Descolonizar a prática: o artesanato como
forma de afirmação ética1

Introdução

Sem pressa, em pouca quantidade, com as sementes


da época, misturadas ou não com miçangas de plástico. Essa
é uma das maneiras pelas quais as mulheres indígenas fa-
zem o artesanato e, ao mesmo tempo, enfrentam e questio-
nam a tirania do ritmo acelerado, da larga escala e da noção
de gosto ocidentalizado. Para o capitalismo, esse modo de
produzir não pode garantir mais do que a sobrevivência. Para
o colonialismo, trata-se de um resíduo da história. Para o pa-
triarcado, isso não vai além de um complemento insignificante
da renda familiar. Para essas artesãs da Associação das Mu-
descolonizar: a prática e o sexo

lheres Indígenas do Alto Rio Negro (AMARN) e da Associação


das Mulheres Indígenas Sateré-Mawé (AMISM), a prática de
artesanato consiste numa das principais materialidades do
seu modo de vida, configurando uma luta que não se distin-
gue da vida cotidiana.
No contexto associativo, as artesãs têm forte ação po-
lítica, lutando contra a violência, o preconceito e a precariza-
ção do trabalho, bem como por moradia, autoidentificação,
saúde e educação diferenciadas. Além de promover diálogos
intensos entre cidade e aldeia, isso mostra que os processos
de deslocamento dessas mulheres para Manaus não é um
movimento unidirecional. Pelo contrário, as idas e vindas das
mulheres indígenas suscitaram uma rede de circulação de ex-
periências, de sementes, de fibra de tucum e de artesanato,
gerando intensas ligações com o modo de vida indígena. Ao

1 Este texto resulta da minha investigação de Doutorado em Sociologia


(SANTOS, 2017), realizada na Faculdade de Economia da Universidade
de Coimbra. A pesquisa beneficiou-se de financiamento concedido pela
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES),
no âmbito do Programa Doutorado Pleno no Exterior, vinculado ao Minis-
tério da Educação do Brasil.
117
mesmo tempo, as associações servem como um espaço de

descolonizar: a prática e o sexo


referência para as mulheres que vão para a cidade em busca
de tratamento médico, aposentadoria, pensão alimentícia ou
conhecimento do espaço urbano.
Tanto a AMARN quanto a AMISM configuram espaços
diferenciados de participação política indígena em Manaus,
não apenas pelo pioneirismo dos seus processos organiza-
tivos, mas também por apontarem novas pautas dentro do
próprio movimento indígena, enfatizando a realidade dessas
mulheres. O que as une não é o fato de pertencerem a um
mesmo povo ou a uma mesma cultura, uma vez que a diver-
sidade étnica marca as duas associações. O que agrupa tais
mulheres é a experiência de um sentimento de comunidade,
com a capacidade de fazer e decidir juntas, e a criação de
modos de organização diante das situações adversas que en-
frentam. A experiência associativa tem apresentado a cons-
trução coletiva do sentimento de pertencer a uma história, o
compromisso de preservar uma memória de luta e de fazer
chegar essa história de luta às gerações futuras.
As discussões abordadas neste texto ancoram-se na ex-
periência etnográfica que realizei em 2013. Vi muitos artesa-
natos serem feitos durante minha investigação de campo, rea-
lizada na AMARN e na AMISM. Tais associações fazem uso do
artesanato como uma alternativa econômica para as mulheres
indígenas que migraram para a cidade de Manaus. Foi com
isso em vista que direcionei meu olhar para os seus processos
de luta, materializados na prática do artesanato no contexto
urbano. Nesse percurso, trabalhei como motorista voluntária
da AMARN e da AMISM e assim tive a oportunidade de vi-
venciar de perto as suas dinâmicas. Ao exercer essa função,
minha agenda não era organizada por mim, mas pelas asso-
ciações. Participava da aquisição da matéria-prima de artesa-
nato e da compra de comida para as festas e transportava o
artesanato para os locais de venda, que são, em sua maioria,
descentralizados e incertos. Um relato reflexivo dessa expe-
riência, juntamente com uma descrição densa, acompanhada
118
pelas narrativas das artesãs, estão disponíveis no livro “Em
que medida sobreviver é resistir” (SANTOS, 2019).
Este texto assume uma forma ensaística, abrindo mão
das descrições, cujo propósito é realizar reflexão sobre a prá-
tica do artesanato como uma forma de afirmação ética. Para
isso, foi imprescindível trabalhar a materialidade do artesa-
nato como uma prática, e não como um produto reduzido à
lógica da mercantilização.

Práticas que importam

Em 1955, Aimé Césaire (1978:14) alertava que o proje-


to civilizador colonial é “hábil em anunciar mal os problemas
para melhor legitimar as soluções que se aplicam”. Anos
mais tarde, Frantz Fanon (1979) também alertou sobre as
descolonizar: a prática e o sexo

armadilhas de enunciados criados conforme estreitos inte-


resses políticos e econômicos que servem, antes, para des-
viar, dispersar e cansar lutas – essa astúcia enunciativa tão
atual e relacionada diretamente com o poder de definir, que
confere uma das primeiras formas de poder, por meio de sis-
temas discursivos legitimadores de ausências. Dito de outro
modo, o que está em questão não são as ausências, mas a
produção de ausências.
Muita importância já foi dada à linguagem verbal num
mundo feito não apenas por discursos, mas também feito à
mão. Silvia Rivera Cusicanqui, em favor de uma sociologia
da imagem como forma de combater o colonialismo interno,
tenta desarticular as hierarquias instrumentais na produção
do conhecimento, que privilegiam a palavra em prejuízo de
outras formas de inteligibilidade. Nos termos de Cusicanqui
(2010: 63): “Hay en el colonialismo una función muy peculiar
para las palabras: ellas no designan, sino que encubren”.
Para Cusicanqui, não basta “fazer o silêncio falar”; é
preciso questionar os pressupostos da invisibilidade que legi-
timam quem pode falar ou não e quais são os modos aceitá-
veis de fala. Com isso, o processo de tradução acontece pelo
119
reconhecimento dos enunciadores e das interferências dos

descolonizar: a prática e o sexo


diversos modos de comunicar, como considera Costa.
Estudiosas feministas da América Latina, como Silvia
Rivera Cusicanqui (2002, 2010, 2014, 2015), Julieta Paredes
(2010), Gloria Anzaldúa (2000, 2005, 2009), Cláudia Lima da
Costa (2012, 2013, 2014) e Raquel Guitiérrez Aguilar (2008,
2012), entre outras, não apenas problematizam como a mu-
lher é retratada na arte e o seu espaço como autora, mas
também questionam a própria visão dominante de arte, ou
seja, quem e o que estão fora desse conceito. Por isso, não
basta trazer à memória as artistas olvidadas, mas elaborar
uma historiografia que crie espaços para as artistas que não
caíram no esquecimento porque nem ao menos existiram
para as dimensões estreitas desse campo. Não há distinção
entre reivindicações estéticas, reivindicações políticas, reivin-
dicações identitárias e reivindicações econômicas (VARGAS,
1992; MUJERES CREANDO, 2005; LUGONES, 2008; ALVA-
REZ, 2009, CARNEIRO, 2013). Quando as artesãs indígenas
contrariam as lógicas de produção em larga escala a partir da
confecção do artesanato, que trabalha em outra temporalida-
de, elas também estão afirmando seus modos de vida; como
afirma Raquel Aguilar (2012), não há autonomia política sem
autonomia econômica.
Claudia Lima da Costa chama-nos a atenção para a for-
ma como as “mulheres do Sul” costumam ser vistas: “quando
mencionadas no contexto do Norte global, tanto feministas
quanto teorias feministas têm sido historicamente apropria-
das/traduzidas apenas como significantes de resistências e
não como produtoras de conhecimento outro” (COSTA, 2013:
657). Mais do que investigar o que muda na arte, interessa
perceber as inflexibilidades do olhar sustentado por uma his-
tória dominante que privilegia sua própria matriz de saberes
e práticas. Silvia Rivera Cusicanqui (2010) argumenta que é
preciso sair do monólogo criativo, pois a arte possibilita muito
mais do que um narcisismo estético – possibilita colocar em
movimento o repertório de quem a acessa.
120
O corpo da artesã

Que poder é esse que a artesã ameríndia tem de saber


usar as sementes para curar, enfeitar e proteger o corpo? O
envolvimento corporal com o qual essas mulheres exercem a
sua prática constitui uma forma de agir e de fazer diferença no
mundo, onde os corpos da artesã e da semente se tocam e
se transformam mutuamente, expressando um conhecimento
incorporado. E é precisamente essa corporalidade que impor-
ta para uma leitura mais densa dos processos de afirmação
ética que este texto se propõe a discutir2.
Quando Espinosa levanta o enunciado “não se sabe o
que pode o corpo”, ele o questiona dentro de uma dimensão
ética. Aliás, é para o corpo que Espinosa se volta para ela-
borar a sua Ética quando pergunta, em relação ao corpo, em
descolonizar: a prática e o sexo

que medida algo pode ser bom. Com orientação epicurista, o


filósofo defende que algo é bom se tem a capacidade de inten-
sificar a potência de agir do corpo a partir de suas afecções. A
capacidade do corpo de afetar-se de modo a experimentar a
sua máxima intensidade constitui um corpo vivo. Inversamente,
diz Espinosa, um corpo sem vida, antes de transformar-se num
cadáver, é um corpo incapaz de ser afetado. Tal é a importân-
cia da materialidade corporal para Espinosa, que o filósofo a
concebe como uma força motriz do pensamento, afirmando:
“não há afecção do corpo da qual não possamos formar algum
conceito claro e distinto” (ESPINOSA, 2016: 371).
É essa ideia de corpo como produtor de conhecimento
que importa recuperar para este trabalho e que é largamente
desenvolvida pelos estudos feministas quando perguntam, a
partir de distintas realidades: de que corpo falam? Tal corpo
é capaz de falar ou não? O que ele fala? Como ele fala? Per-
guntas, aliás, que necessitaram ser refeitas inúmeras vezes e
de várias maneiras para se chegar aos corpos das mulheres

2 O termo “ética” é usado neste trabalho, no âmbito de tipologias da ação


social de Weber (2002), como uma ação racional com relação a um valor,
ou seja, quando a agente social orienta suas ações a partir de valores. No
121
indígenas. Porém, antes de discutir como as estudiosas dos

descolonizar: a prática e o sexo


feminismos se referem ao corpo, cabem algumas breves con-
siderações etimológicas e históricas sobre o termo.
A filósofa Michela Marzano (2007) lembra-nos de que o
termo “corpo” vem da palavra latina corpus, cujo radical indo-
-europeu é kar (fazer, criar, fabricar), que, por sua vez, vem
do radical sânscrito karp (beleza). Tal etimologia convoca a
experiência do corpo para uma relação simultaneamente ins-
trumental e estética. Essa dupla dimensão logo se converte
em muitas, compondo a polissemia que informa o termo no
decorrer da história. A tradição metafísica dualista platônica,
posteriormente retomada por Descartes, considerava o corpo
como a prisão da alma, o lugar das paixões, das enfermida-
des, dos sentidos enganadores, sendo um obstáculo para a
obtenção de conhecimento; o corpo necessitaria ser purifica-
do para que o mito da alma pudesse manifestar-se (MAR-
ZANO, 2007). Caso contrário, a topologia do corpo só teria
algo a acrescentar ao conhecimento se fosse dissecado. A
transição do corpo cartesiano, como uma máquina compos-
ta por um agregado de órgãos que aprisiona a alma, para
um corpo prisioneiro ou, nos termos de Foucault (ainda ele),
para um “corpo assujeitado”, é herdeira de uma longa tradi-
ção de adestramento em regimes de utilidades. Ao mesmo
tempo que na espessura do corpo habitam muitas narrativas,
ela própria constitui o lugar indissociável do hábito, no sentido
etimológico do termo (vestimenta, morada, modo).
Para Foucault (2013: 14), o corpo constitui a principal
espacialidade de referência: é em relação ao corpo que existe
uma esquerda e uma direita, um atrás e um na frente, um pró-
ximo e um distante, marcando o “ponto zero do mundo”. Uma
espacialidade irredutível, sendo, ao mesmo tempo, o lugar do
castigo, da coerção, da exortação da verdade, mas também

caso aqui em questão, os valores são vistos não como uma essência, mas
como uma prática afirmativa. Cabe lembrar que o termo “afirmar” vem do
latim affirmāre e significa “pôr firme” e “afirmar-se” designa “passar a ser
reconhecido pelo seu valor” (DLPC, 2001: 108).
122
se constitui como o autor principal das heterotopias, uma vez
que utopia, para Foucault (FOUCAULT, 2013), é um lugar sem
corpo, e heterotopia sugere um lugar outro com corpo. Se o
corpo é o autor principal da heterotopia, é porque ele também
é o lugar do paradoxo, movimentando-se em complexas rela-
ções de poder – o corpo é tomado pela pessoa que acabou de
seduzir (FOUCAULT, 2013). Esse mesmo corpo que é tão vi-
sível, analisado, disciplinado, seduzível, castigado, torna-se,
a um só tempo, invisível, concretizando as atrocidades e as
sutilezas do poder.
Não é à toa que expressões de corpos desobedientes
são vistas como modelos de inadequação ou invisibilisadas.
Uma inivisibilidade constituída não como esquecimento, mas
como uma antiga técnica de isolamento – isolar da esfera da
possibilidade e da imaginação o corpo transfigurado enquanto
descolonizar: a prática e o sexo

instância principal da contestação e da diferença. É por isso


que, para Foucault (2006), o castigo não trata somente de punir
um crime, uma insanidade, uma sexualidade, mas, sobretudo,
de inibir a repetição da desobediência de um corpo considera-
do inútil. É nesse sentido de inutilidade do corpo que Agamben
(2012) vai ancorar-se para desenvolver o seu conceito de “im-
potência”, a potência do não, da recusa – uma resistência pela
recusa, recuperando Bartleby, o escrivão, de Melville; ou ain-
da, a noção de poema como um “inutensílio”, tal como propõe
Manoel de Barros. Essa “potência do não” e a “inutensilidade”
atuam como um dissenso para a constatação que serve ao
desenvolvimento do capitalismo: “o corpo já não tem que ser
marcado, deve ser direcionado; seu tempo deve ser medido
ou plenamente utilizado, suas forças devem ser continuamente
aplicadas ao trabalho” (FOUCAULT, 2003: 469).
Mais uma vez: de que corpo falam? Para os estudos
feministas, a questão do corpo sempre foi pulsante: “o corpo,
enquanto signo, constructo, representação e foco potencial
de resistência, constitui uma questão central no pensamen-
to feminista” (MACEDO e AMARAL, 2005: 25), pois marca o
lugar da fala na sua dimensão mais imediata – o conceito de
123
corpo como uma política de localização, no sentido proposto

descolonizar: a prática e o sexo


originalmente pela poeta Adrienne Rich (2002: 17) “começar,
assim, não por um continente ou por uma casa, mas pela geo-
grafia mais próxima - o corpo”.
Nesse combate corpo a corpo contra a desigualdade e
a opressão, feministas da América latina, como Yuderkys Es-
pinosa (2009), Lorena Cabnal (2010), Sylvia Marcos (2010),
Julieta Paredes (2010) e Dorotea Grijalva (2014), veem o
corpo como território político multiplamente marcado, inclu-
sive, pelo colonialismo, como dizem as mulheres do coletivo
Feministas Autônomas: “En nuestros cuerpos habitan múlti-
ples identidades: trabajadoras, indígenas, afrodescendien-
tes, mestizas, lesbianas, pobres, pobladoras, inmigrantes…
Todas nos contienen, todas nos oprimen” (FEMINISTAS AU-
TÔNOMAS, 2014: 413-414).
Com muitas possibilidades atribuídas a um mesmo cor-
po, seria ele uma unidade ou muitos? Annemarie Mol (2002,
2008), com a sua noção de corpo múltiplo, defende que o
corpo não é fragmentado, embora seja diferentemente perce-
bido e definido. Ou seja, o fato de distintos domínios de saber
atribuírem acepções diferentes para um mesmo corpo não o
transforma em muitos, sendo o corpo múltiplo em significado,
mas não em significante.
A partir da leitura que Butler faz da ética da alteridade de
Levinas, a filósofa aponta que “seria preciso escutar o rosto à
medida que ele fala em uma outra forma de linguagem para
entender a precariedade da vida que está em jogo” (BUTLER,
2011: 32). Essa outra forma de linguagem, que o rosto mani-
festa, apresenta os limites do conhecimento e dos sentidos. É
exatamente esse ponto limiar que Butler afirma ser propulsor
para a crítica atravessar as suas próprias fronteiras e refazer-
-se, ou seja, é na relação com o rosto da alteridade, e não num
reflexo narcísico, que a crítica pode aprofundar-se. Sem negar
a materialidade do corpo, mas também reconhecendo as afe-
tações de um corpo decorrente da elaboração cultural de sig-
nificados, Butler elabora a sua noção de materialização como
124
forma de explicar como o corpo se constitui dentro de uma
matriz cultural. A materialização do corpo da mulher indígena
não nega a materialidade do corpo, mas também não concebe
essa materialidade como um corpo puro, uma vez que a ma-
terialidade do corpo não está alheia a formações discursivas.
A proposta de materialização de Butler (2015) é útil para
reconfigurar a persuasão do corpo da índia inventado pela ra-
cionalidade moderna dentro de uma matriz cultural patriarcal e
colonial. A partir disso, é possível perceber como a indianidade
foi corporalmente materializada por três razões. Primeiro, por
uma vertente patriarcal, que converte o corpo da mulher num
corpo frágil e servil. Em segundo lugar, por uma vertente colo-
nial, que fantasia o corpo da índia de acordo com os seus mo-
delos de subordinação, ignorando os movimentos e as raciona-
lizações próprias desses corpos. E, em terceiro lugar, por uma
descolonizar: a prática e o sexo

vertente capitalista, que transformou o corpo da mulher artesã


num signo de pobreza. A índia do Estado nacional está condi-
cionada a duas possibilidades: ou está dentro de uma área in-
dígena circunscrita ou está convertida em pobre nas periferias
das cidades. A índia empobrecida – e isto não precisava ser
um pleonasmo – vê-se obrigada a organizar-se nos moldes de
uma associação para poder reivindicar seus direitos na cidade.
Questionar a identidade indígena é questionar a priori seu
corpo. É para o corpo idealizado da índia que incide toda uma
série de avaliações para sustentar o imaginário exótico colonial,
que procura tornar real a sua ficção de índia. Quando se discute
se uma mulher é indígena ou não, a primeira coisa a ser exa-
minada é o corpo dessa mulher. A busca pela “cara de índia”
fez uma jovem artesã sateré-mawé, filha de índia com “branco”,
afastar-se para não aparecer nas fotos dos turistas. A jovem,
que tem a pele e os cabelos mais claros do que os de suas ir-
mãs, relatou que desde criança vê que os turistas evitam a sua
presença nas fotos; com o tempo, ela mesma passou a afastar-
-se dos momentos da fotografia para evitar o constrangimento.
A quem incomoda as ditas contradições materializadas
no corpo e na prática da mulher indígena? Que corpos per-
125
segue a fantasia colonial? Para as artesãs da AMARN e da

descolonizar: a prática e o sexo


AMISM, não há problema nenhum em fazer um colar de
pucá e usar um anel de aço. As práticas sociais das artesãs
indígenas dão-se a partir de uma relação diacrônica e hetero-
tópica, onde a irreprodutibilidade técnica das sementes e das
mãos artesãs se mistura com as miçangas plásticas; onde o
fio de betá (tucum) se enlaça com a argola de estanho; onde
a forma ancestral de fiar a fibra de tucum se combina com
a moda corrente.3 O trânsito entre essas várias linguagens
revela o modo como as artesãs vivem seus conflitos, as si-
tuações de antagonismo, materializando-os na confecção do
artesanato. Ao mesmo tempo em que uma identidade artesã
se erige e ganha consistência.

A prática do artesanato como forma de afirmação ética

As mulheres indígenas que se deslocaram, ou foram


deslocadas, de suas terras de origem para a cidade de Ma-
naus experimentam um novo contexto, que passa a exigir
relações sociais diferenciadas e outros arranjos nas formas
organizativas de subsistência. O estranhamento com o sis-
tema econômico da cidade gera profundas interferências no
modo de vida indígena (maneira de se alimentar, de se deslo-
car, de morar, etc.). Não se trata de outra maneira de fazer a
mesma coisa, mas de encontrar dificuldades para garantir as
necessidades básicas. Essas transformações também estão
presentes na maneira de fazer o artesanato.
Com as suas mãos, essas mulheres dizem como é ser
artesã indígena na cidade. Conjugando uma estratégia de
venda que se faz a partir da observação do gosto das pes-
soas, as artesãs mantêm viva uma prática que não ficou imu-
ne a um processo histórico de influências. Ainda mais quando
se depende da venda desse produto para sobreviver. Os ob-

3 O uso de miçangas por ameríndias não é um fenômeno recente. Thekla


Hartmann lembra-nos da herança do uso desses objetos desde 1492
(HARTMANN, 2002: 95).
126
jetos trocam de forma e de uso. O cesto de tucum, que antes
carregava bananas, continua sendo de tucum, mas agora em
forma de chaveiro para caber na mala do turista.
Entretanto, isso não significa abandonar o seu próprio
gosto. A diferença entre o artesanato de origem (feitos, sobre-
tudo, com sementes de chumburana e pucá) e o artesanato
com alterações é evidente. As artesãs não deixam de fazer
os colares que marcam o seu povo. Numa cultura onde a rou-
pa diz pouco sobre as suas identidades, é, sobretudo, com
colares e com outros ornamentos que elas se identificam. É
assim, preservando com transformações, que o artesanato in-
dígena se mantém vivo.
Essa irreprodutibilidade técnica caracteriza o artesanato
indígena. Até mesmo os artesanatos que lembram uma tradi-
ção mais antiga são únicos, pois uma semente é como uma
descolonizar: a prática e o sexo

impressão digital, não se repete, assim como o trançado que


a envolve. Trata-se de uma combinação singular que assume
uma forma inédita mesmo evocando as heranças tracionais
mais remotas. Assim, o artesanato constitui uma materializa-
ção da variedade infinita de que fala Maria Irene Ramalho
(2016). Já que não há exemplos de diferenças sem hierarquia,
que a diferença seja, ao menos, infinita. Diverso e incomensu-
rável também é o modo de relacionar com o artesanato.
Quando uma artesã conta a história do colar que man-
tém no seu pescoço há décadas, ela refere a materialidade
do colar como testemunho de sua própria história. Um colar
que se converteu em amuleto e que serve para proteger o cor-
po. O que pode esse artesanato que se dá a ver, a tocar, a
usar? Ao mesmo tempo em que ele é um conteúdo, com seus
poderes, também é uma forma, com sua variedade. Para
Alfred Gell (2001), os objetos atuam como corpos a partir de
uma agência secundária, porque materializam as intenções
de quem os produziu e, portanto, não são desinteressados na
hora de marcar a sua existência. As mulheres indígenas pro-
duzem efeito no mundo mediante a materialização de seus
artesanatos. Suas presenças multiplicam-se, ganham outros
127
corpos e viajam, quase tanto como o próprio imaginário do

descolonizar: a prática e o sexo


que se supõe ser uma ameríndia. A questão do feitiço, tão pre-
sente nos relatos das artesãs da AMISM, emerge como uma
estrutura de causalidade e de significados atribuída ao corpo
das sementes como uma expressão dos poderes da natureza.
Cabe aqui um breve relato de uma experiência viven-
ciada na associação. Uma vez, no campo, a Petrobrás fez
uma encomenda à AMARN de mil chaveiros para distribuir
aos convidados da empresa durante um evento. As artesãs
teriam duas semanas para entregar a encomenda. Se todas
as artesãs conseguissem fazer um chaveiro por dia, no fim
de 15 dias, somar-se-iam 675 peças. Quando fiquei saben-
do da encomenda, pensei que haveria alterações na agenda
da associação para dar conta do pedido. Mas não foi isso o
que aconteceu. A rotina da associação permaneceu a mes-
ma, reuniam-se em wayuri (mutirão) de maneira intermitente.
Ao longo desse processo, aprendi a fazer os meus primei-
ros pontos para iniciar a feitura de um chaveiro-jabuti. Fiquei
três dias para fazer apenas a cabeça do jabuti. Depois, fiquei
mais uma semana para concluí-lo. No decorrer desse tempo,
pude observar as artesãs fazerem vários jabutis, mas havia
um, em especial, que estava sendo feito de acordo com um
grafismo desenhado numa folha de caderno. Quando vi a ar-
tesã desfazendo o chaveiro quase pronto porque o grafismo
não havia saído como estava no desenho, falei com pressa:
“Está bonito, está original, você fez um jabuti diferente”. Ela
não me respondeu e, em menos de 20 segundos, desfez o
trabalho de uma tarde inteira. Não sei até que ponto aquele
ato seria diferente caso eu não estivesse ali. Não sei a quem
ela respondia. Só sei que, a partir desse momento, comecei
a reparar que as prioridades eram outras. O que acontecia ali
não era apenas a feitura de chaveiros para a Petrobrás. Havia
outra respiração que cadenciava o trabalho, havia um esmero
em fazer o chaveiro de acordo com um critério próprio; embo-
ra tal esmero não aumentasse o preço do produto, havia uma
constante interrupção para levar as crianças à escola, para
128
fazer a comida, lavar a roupa, etc. Com isso, após duas se-
manas, elas amealharam uma quantidade de chaveiros que
não correspondia a um terço do pedido, fato que levou a Pe-
trobrás a falar “vocês não sabem nem se organizar”. Porém,
como o evento da Petrobrás tinha sido adiado, elas consegui-
ram mais duas semanas para concluir a encomenda, que foi
finalizada com o mesmo ritmo anteriormente referido.
Agora, distante do campo, o que mais me vem à memó-
ria é o riso das artesãs. O artesanato não era feito de maneira
silenciosa. O riso era frequente, e não havia uma concentração
diretiva para cumprir metas. Elas trabalhavam juntas, conta-
vam histórias e riam muito. Não era um riso para serem simpá-
ticas. Parecia que havia alguma sutileza no ar, que eu raramen-
te conseguia alcançar, mas acabava rindo do riso delas.
Outro aspecto que notei durante a elaboração dessa en-
descolonizar: a prática e o sexo

comenda foi que um artesanato pode começar de qualquer


ponto. Vi jabuti sendo feito a partir das mais variadas partes:
do rabo, da barriga, da pata, do casco, da cabeça. Por mais
que todas estivessem produzindo o mesmo produto, numa
quantidade acima da média daquela que costumavam produ-
zir, tal trabalho estava muito longe de aproximar-se de uma
linha de montagem. Os grafismos no dorso do jabuti eram
diferentes, e seus tamanhos não eram iguais.
Também pude notar que as artesãs, quando falavam em
tukano, diziam a palavra “artesanato” em português. Pergun-
tei às artesãs se existia o termo “artesanato” em suas línguas
elas me respondeu que não. Então, questionei onde elas
ouviram pela primeira vez a palavra “artesanato”, e elas não
souberam responder. Disseram que sempre usaram o termo
“artesanato” em português. Fiz o mesmo questionamento
em relação à palavra “artefato” e obtive as mesmas respos-
tas, com a diferença de que elas não usam “artefato” para
se referirem aos seus produtos. Para essas mulheres, não
há, em suas línguas maternas, um termo geral para designar
as suas produções manuais. O que há é entre outros. Muito
provavelmente, o termo “artesanato” fora inserido no contexto
129
amazônico a partir das missões jesuítas, no período colonial,

descolonizar: a prática e o sexo


e reafirmado durante as missões salesianas, no período re-
publicano. Isso não quer dizer que a técnica de sua prática
tenha sido importada juntamente com o nome que veio a ba-
tizá-la. Embora haja uma nítida influência salesiana nos for-
matos e dimensões de seus atuais objetos, há também uma
tecnologia própria.
A própria palavra “artesanato” não existe em tukano, nem
em desana, nem em sateré-mawé. Não existe “o artesanato”,
enquanto instância genérica, mas há modos de fazer determi-
nados objetos. Também não existe “a natureza”, nem “a cultu-
ra”, mas modos de relacionar-se com a fibra de betá, com as
árvores sementeiras, com os seres que nela habitam, etc.
Mesmo no contexto urbano, as mulheres indígenas man-
têm uma profunda relação com a colheita de sementes por
meio do conhecimento da localização e do tempo das árvo-
res sementeiras no perímetro urbano. E é com essa relação
que as artesãs garantem o seu sustento, no sentido forte da
palavra. Essa luta não está sob a égide da bandeira de uma
revolução dita maior, seja para mudar o regime político ou o
sistema econômico, embora os questione. Também não é uma
luta para salvar a natureza. As artesãs não são guardiãs da
natureza – são, antes, cúmplices de uma sobrevivência mútua.
Tanto na AMISM quanto na AMARN, as preocupações
são imediatas: é urgente falar as línguas indígenas, é urgen-
te durar, é urgente comer, é urgente morar, é urgente cuidar
das crianças. Há autores que defendem que isso tudo é uma
preocupação secundária dentro do movimento indígena, pois
o que realmente importa é garantir a terra, e, após consegui-
-la, as preocupações anódinas serão todas resolvidas. Sem
dúvida, a importância da reconquista da terra é inquestionável
para a cosmologia ameríndia. Entretanto, o que essas artesãs
estão mostrando é que a relação com a terra não está restrita
a uma área circunscrita. Elas fazem o seu lugar existir dia a
dia, mesmo em um espaço de onde são constantemente ex-
propriadas, como no contexto urbano. Com esse movimento,
130
as artesãs também evidenciam que não há uma luta mais im-
portante que a outra.
Quando as artesãs pedem licença a tupana (deus tupi)
para entrar na mata, dizendo escutar seus ancestrais que mo-
ram nela, para colher as sementes oferecidas, ela enfatiza o
valor da variedade das sementes: “Existe tanta semente bo-
nita por aí, né, por que gostar só de uma?”. O modo como a
artesã se relaciona com as árvores sementeiras e seus an-
cestrais orienta as suas ações e evidencia outra noção de
gosto, contrária à lógica extractivista. E aqui recupero o que,
em outro momento (SANTOS, 2019), chamei de traduzir com
as mãos, mediante suas três dimensões constitutivas: noção
de gosto comprometida com a “natureza” (a artesã indígena
inclui os dizeres da natureza na produção do gosto, consi-
derando-a como uma enunciadora de sua prática através do
descolonizar: a prática e o sexo

exercício de escuta ativo, que percebe não só o que é dito,


mas os modos de dizer da interlocutora); interrupção mutua-
mente implicada e assumida (os modos de agir e de pensar
das mãos artesãs mostram que não são apenas as pessoas
que fazem as coisas, mas que as coisas também fazem pes-
soas, como uma relação de cumplicidade arquitetônica, em
que uma modela a outra) e tempo artesanal (a prática do arte-
sanato contraria pontualmente o tempo acelerado da cidade).
Com a prática do artesanato, as mulheres indígenas fa-
zem com que existam um ritmo e um rumo, que atribuam sen-
tido aos seus modos de vida. Essa ética artesã confere um
modo de movimentar-se através da aparente fragilidade de
uma prática que foi posta à deriva pelo capitalismo, mas que
expressa uma ética própria, cuja vida ativa não está dissocia-
da da vida contemplativa – para usar as expressões de Han-
nah Arendt – e que, assim, produz gestos que fazem viver a
sua história. Esse ritmo, frequentemente ocultado pela lógica
hegemônica, reergue uma prática que não se esgota na sua
própria sobrevivência.

131
Que tipo de vida faz a prática do artesanato viver?

descolonizar: a prática e o sexo


Quando Lila Abu-Lughod (2012) pergunta se as mulhe-
res muçulmanas precisam de salvação, ela não está ques-
tionando se tais mulheres são subalternizadas ou não; o que
Abu-Lughod questiona é o tipo de salvação oferecida. Não é
preciso substituir a palavra “salvar” por “emancipar” para se
fazer uso da problematização posta por Abu-Lughod e tomá-
-la como ponto de partida de uma análise desconfiada das
alternativas lineares sob um campo relacional complexo.
Nitidamente, as artesãs indígenas contrariam uma linea-
ridade emancipatória. Não se pode aguardar pelas condições
ideais para agir e manifestar uma singularidade vital. Não se
pode esperar por um mercado justo para se produzir uma ma-
terialidade com um sentido coletivo mais importante do que
um fim individual. Não se pode esperar pelo retorno idílico
a uma terra indígena para se exercer o modo ameríndio de
relacionar-se com a natureza. Não se pode esperar pelo trata-
mento de uma surdez seletiva para se poder falar. As artesãs
falam em desana, em tukano, em sateré-mawé, em wanana
etc., dentro do contexto urbano, independentemente das exi-
gências da sociedade envolvente.
E com essa diversidade linguística e das formas de or-
ganização da vida, as artesãs fazem das associações lugares
ricos em sociodiversidade no perímetro urbano de Manaus
e dão uma nova dimensão ao conceito de identidade artesã
indígena. Com isso, as formas atuais de sobreviver, de resistir
e de afirmar-se dessas artesãs mostram que não há distinção
entre reivindicação econômica, estética, política e ética. Ou
seja, o que ajuda a viver, no sentido forte e insurgente do ter-
mo, também é bonito, bom e justo.
É por isso que, na dimensão da materialidade do artesa-
nato, a questão não é “o que é o artesanato indígena?”. Não
se trata de medir com quantas sementes se faz indígena um
artesanato, nem quantas miçangas de plástico o contaminam.
Trata-se de pensá-lo como um processo capaz de uma dupla
132
ação: o que movimenta o artesanato e o que o artesanato faz
movimentar? No caso aqui estudado, essa dupla ação pas-
sa pela sobrevivência, pela resistência e pela afirmação. A
necessidade de sobreviver mobiliza a confecção e a comer-
cialização do artesanato como alternativa material em face
das violências sofridas no trabalho de empregada doméstica
na cidade. O artesanato não é produzido por entretenimento
ou puro prazer, consistindo, notoriamente, numa alternativa
econômica – as artesãs vivem do artesanato. Mas que tipo de
vida faz a prática do artesanato viver?
Além da dimensão instrumental do artesanato como meio
de sobrevivência, há também a sua dimensão política e ética.
A prática do artesanato pode (e deve) ser analisada em todas
as suas maneiras de dizer, de saber-fazer e de conduzir-se nas
quais as artesãs indígenas se manifestam. Nesse sentido, o ar-
descolonizar: a prática e o sexo

tesanato apresenta várias funções. Uma função estética: serve


para embelezar o corpo, incidindo nos códigos masculinos e
eurocêntricos de arte; uma função medicinal: o chá de algumas
sementes, como do tento vermelho e preto, serve para curar
hemorragias; uma função contra os feitiços, servindo para pro-
teger o corpo, ao mesmo tempo em que pode atraí-lo; e, é cla-
ro, serve para a subsistência de suas produtoras.
Parece-me importante ressaltar dois aspectos que são
decisivos para a leitura desse fenômeno. Em primeiro lugar, a
atmosfera ética que faz parte do trabalho das artesãs não as-
sume uma linearidade causal evolutiva – uma sobrevivência
que precisa resistir para depois se afirmar. Uma análise in-
versa mostra-se mais reveladora, ou seja, uma ética, ao afir-
mar a diferença de um modo de vida subversivo, é convocada
a resistir e a sobreviver pelos limites que questionou. Seria
essa a maldição do mito de Sísifo atualizada pelas artesãs?
Nesse sentido, arrisco dizer que a afirmação precede a
sobrevivência e a resistência. Não que haja algo a ser resga-
tado; pelo contrário, trata-se de um gesto aparentemente am-
bíguo, uma vez que traz as coisas de volta à vida, mas sem
as resgatar. Por isso, tal processo emancipatório (se for para
133
usar o termo) não pode ser linear. Com isso, os dramas que

descolonizar: a prática e o sexo


incitam à sobrevivência continuam enquanto uma ética artesã
afirmativa se revela. É essa dimensão plural, contraditória e
paradoxal que habita também um modo de subjetivação in-
transigente. A sobrevivência carrega consigo o paradoxo da
fragilidade indissociada de sua vitalidade. Talvez, quanto mais
afirmativa for uma forma de vida, mais fragilidades ela carre-
gará consigo. Afirmativa no sentido de expressar um modo de
subjetivação insurgente, interpelando o colonialismo, o capi-
talismo e o patriarcado.
Em segundo lugar, a prática do artesanato apoia-se ex-
tensivamente em procedimentos que expressam um modo de
fazer acompanhado de um modo de pensar. Na língua tuka-
no, do povo ye’pâ-masa, o termo tɨ’óyã’a designa tanto pensar
quanto sentir e é composto por duas palavras: tɨ’ó (escutar)
e yã’a (experimentar). De maneira literal, tɨ’óyã’a refere-se a
experimentar a escuta. É experimentando a escuta que as
artesãs praticam o artesanato. Mas que tipo de escuta ex-
perimentam as artesãs indígenas? Escutam os tempos das
árvores sementeiras, escutam as mãos de suas avós, escu-
tam o gosto karaiwa (branco), escutam as truculências dos
missionários, escutam as explorações do mercado, escutam
violências nas “casas de família”, escutam que não são mais
indígenas, escutam que são indígenas, escutam uma língua
imposta, mas também escutam a sua própria língua. Uma lín-
gua que nem sempre se traduz em palavras, mas que não
abandona o corpo. A mão que faz e vende um cesto em mi-
niatura para caber na mala do turista é a mesma que conecta
saberes ancestrais, trabalhando com outra noção de tempo
e de escala. A boca que negocia em português é a mesma
que canta em tukano. Isso tudo são expressões de artesãs vi-
ventes que perpetuam suas práticas ancestrais, precisamen-
te porque as vivem e as transformam continuamente em um
corpo que não pode ser dividido.
Se esse corpo não pode ser dividido, desejar uma li-
nearidade emancipatória seria almejar uma artesã indígena
134
decantada das violências históricas, dos constrangimentos
atuais e do que isso tem de conflituoso. Ao lutarem pela so-
brevivência, essas artesãs não estão aniquiladas, não estão
alienadas, não estão mudas, uma vez que a sua urgência de
sobreviver está imbuída de conhecimentos incorporados e,
de uma forma ou de outra, os produz. Com isso, elas mobi-
lizam modos de orientar-se, afetividades, maneiras de saber
e de fazer, mostrando que a luta pela sobrevivência não se
dilui nela mesma. As dores dessas artesãs geram articula-
ções próprias, repercutindo na sua urgência imprescindível
de durar, ao mesmo tempo em que uma ética afirmativa pela
diferença sobrevém. Tal diferença não habita apenas o seu
diametralmente oposto, mas as suas próprias fragilidades e
forças, numa combinação de fatores paradoxais e, precisa-
mente por ser plural em suas contradições, torna-se poten-
descolonizar: a prática e o sexo

cial de uma ação afirmativa. Isso porque uma afirmação pela


diferença se revela contingente, e a contradição ativa a sua
imprevisibilidade. Além disso, tal afirmação pela diferença se
faz em constantes interrupções, não restando tempo para a
sua própria consolidação. Dadas as suas contingências, uma
ação afirmativa não pode converter-se em um modelo.
Quando uma singularidade vital se insurge, trabalhar as
contradições e não forçar uma resistência parece-me orientar
uma leitura mais densa de um campo relacional complexo,
com o propósito de ver, escutar e repensar as suas ações afir-
mativas. Nesse sentido, as lutas das artesãs tornam-se ex-
pressivas de subjetivações feministas emergentes: subjetiva-
ções porque apresentam um modo de orientar-se; feministas
porque enfrentam a lógica patriarcal; e emergentes porque
quem precisa sobreviver não pode esperar pelas condições
ideais para poder agir. Se as lutas das artesãs criam modos
de subjetivações feministas emergentes, é porque se afirmam
eticamente em sua própria prática.

135
Considerações finais

descolonizar: a prática e o sexo


As tecnologias empregadas na produção de artesana-
to por mulheres indígenas em Manaus apresentam-se como
mestiças, diacrônicas e constantemente inventadas, assumin-
do várias funções: subsistência, estética, medicinal e contra
os feitiços. Desse modo, as artesãs afirmam-se, tecendo quer
as linhas de um colar, quer as linhas da palma da mão, com as
quais mostram o que é ser artesã indígena, construindo iden-
tidades corporalmente inscritas: o corpo da mulher desana
reúne o que a palavra divide; o corpo da mulher mura revela o
que a história encobre; o corpo da mulher tariana atravessa o
que a fronteira afasta; o corpo da mulher ye’pa-masa fala com
a língua que sangra; o corpo da mulher wanana inventa com
a semente que resta; e o corpo da mulher sateré-mawé luta
com a mão que pensa.
A partir do artesanato, as mulheres indígenas articu-
lam modos de saber-fazer inspiradas nas suas referências
culturais tradicionais, que são continuamente retrabalhadas
em função de suas atuais necessidades; simultaneamente,
questionam a propriedade intelectual dominante e o sistema
econômico que governa o presente. Com isso, essas arte-
sãs incidem nos códigos masculinos e eurocêntricos de arte,
mobilizam resistências que só são minúsculas quando vistas
de longe e revelam modos de vida que só não são aparentes
quando ignorados.
Portanto, aquele complexo que chamamos de “artesa-
nato indígena” não é apenas a confecção de um determinado
objeto, mas a produção de um discurso coletivo em que iden-
tidades se inscrevem, negociam e resistem. É outra forma de
produzir conhecimento a partir de uma relação vinculada com
a natureza, conferindo um modo de vida dotado de um tempo
artesanal, de interrupção mutuamente implicada com as ma-
terialidades que toca e de uma noção de gosto comprometida
com a natureza. Isso não só implica uma variedade de tons,
formas, objetos e manejos, mas também configura outros lu-
136
gares de registro e de representação a favor de um modo de
vida diferenciado. Desse modo, o artesanato como prática e
na prática revela um modo de vida emergente, precisamente
porque uma afirmação ética pela diferença sobrevém.
descolonizar: a prática e o sexo

137
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141
A colonialidade do gênero e suas implicações
para os estudos feministas

Teresa Kleba Lisboa


Raíssa Jeanine Nothaft

Natércia Ventura Bambirra


A colonialidade do gênero e suas
implicações para os estudos feministas

Introdução

Os estudos feministas no Brasil são fortemente marca-


dos pelas teorias euro-americanas. Embora tenhamos de-
senvolvido nossas próprias expressões dos feminismos na
América Latina, cujas discussões atuais estão fortemente ten-
sionadas pela raça/etnia dos diversos povos indígenas, afro-
descendentes, descendentes de europeus, asiáticos entre
outros povos que habitam a região, a hegemonia das teorias
euro-americanas se mantém, principalmente nos espaços
acadêmicos. Essas matrizes teóricas, produzidas nos conti-
nentes que “colonizaram” a África e a América Latina, prolon-
descolonizar: a prática e o sexo

gam a colonialidade ao manter como universal a cosmologia


ocidental (OLIVEIRA, 2012; MIGNOLO, 2008).
Nesse sentido, cabe lembrar as proposições de Lélia
Gonzalez (1988), que já questionava a concepção dominante
de que a formação cultural brasileira era exclusivamente eu-
ropeia e branca. Segundo a teórica, “um olhar novo e criati-
vo” para a “formação histórico-cultural do Brasil” seria atentar
para a “Améfrica Ladina”, “América Africana” ou “Améfrica”
(GONZALEZ, 1988: 69). Dirigir nosso foco para o contexto
brasileiro exige pensar gênero através das diversas raças/et-
nias que compõem nossa formação cultural contemporânea.
Pretendemos inicialmente discutir os conceitos de pós-
-colonialismo, neocolonialismo, colonialismo, colonialidade,
de(s)colonialidade para em seguida analisar algumas cons-
truções teóricas latino-americanas e africanas com o intuito
de lançar outros olhares para as universalizações de gênero,
“mulher” e família a partir da perspectiva de uma “América
Africana” ou “Améfrica”.
Observamos que a matriz de poder colonial ainda tem
forte incidência na América Latina e por esse motivo traze-

145
mos a perspectiva descolonial como uma ferramenta teó-

descolonizar: a prática e o sexo


rico-analítica que ajuda a vislumbrar a estruturação desse
poder em meio a presença de lógicas e racionalidades “ou-
tras” que nos desafiam a interculturalizar, plurinacionalizar e
descolonizar o Estado, a sociedade e a produção de conhe-
cimento acadêmico.

Do pós-colonial ao decolonial: crítica


à colonização discursiva

Segundo Luciana Ballestrin (2013: 90), entende-se por


pós-colonialismo tanto o “tempo histórico posterior aos pro-
cessos de descolonização”– tal ideia refere-se à indepen-
dência, libertação e emancipação das sociedades explora-
das pelo imperialismo e neocolonialismo, especialmente nos
continentes asiático e africano, a partir da metade do século
XX – quanto um conjunto de contribuições teóricas oriundas
principalmente dos estudos literários e culturais, que a partir
dos anos 1980 ganharam evidência em algumas universida-
des dos Estados Unidos e da Inglaterra.
Ao definir esse movimento teórico, a autora ressalta
duas noções: autores pós-coloniais podem ser encontrados
antes mesmo da institucionalização do pós-colonialismo como
escola de pensamento; e “o pós-colonialismo surgiu a partir
da identificação de uma relação antagônica por excelência,
ou seja, a do colonizado e a do colonizador” (BALLESTRIN,
2013: 91). Nesse sentido, Franz Fanon é considerado um dos
precursores do pensamento pós-colonial.

Mesmo que não linear, disciplinado e articulado, o ar-


gumento pós-colonial em toda sua amplitude histórica,
temporal, geográfica e disciplinar percebeu a diferença
colonial e intercedeu pelo colonizado. Em essência, foi
e é um argumento comprometido com a superação das
relações de colonização, colonialismo e colonialidade
(BALLESTRIN, 2013: 91).

146
Segundo Ella Shohat e Robert Stam (2006), o termo
pós-colonial foi expandido para incluir produções literárias de
todas as sociedades “afetadas” pelo colonialismo, incluindo
a Grã-Bretanha e os Estados Unidos. Dessa forma, o termo
nivela a situação do colono europeu com a da população local
colonizada pelos europeus.
Ao apagar as relações de poder entre colonizado/coloni-
zador, no contexto acadêmico pós-estruturalista, o termo pós-
-colonial se torna um instrumento pouco efetivo para a crítica
da distribuição desigual de poder e recursos no mundo. Além
disso, o termo em questão apresenta uma espacialidade dúbia
e apaga as cronologias vastamente diversas dos processos de
independência na América, Ásia e África. Como “pós” significa
“depois”, o termo implica que o colonialismo acabou e inibe re-
flexões acerca do neocolonialismo. Como as estruturas hege-
descolonizar: a prática e o sexo

mônicas não desapareceram com as independências formais,


“falta ao pós-colonial uma análise política das relações de po-
der contemporâneas” (SHOHAT e STAM, 2006: 77).

Enquanto o termo neocolonial também indica uma pas-


sagem, ele enfatiza a repetição com diferença, um res-
surgimento do colonialismo sob outros disfarces. O termo
neocolonialismo designa uma hegemonia geoeconômica,
ao passo que o pós-colonial sutilmente desvia o foco de
qualquer ideia de dominação contemporânea (SHOHAT e
STAM, 2006: 77).

O conceito de neocolonialismo de Shohat e Stam (2006)


dialoga com o que Aníbal Quijano (2002) vai chamar de colo-
nialidade do poder. Para este autor, o fenômeno do poder é
um tipo de relação social constituída pela co-presença perma-
nente de três elementos – dominação, exploração e conflito –
que afeta as áreas básicas da existência social e é resultado
e expressão da disputa pelo controle delas. O atual padrão de
poder mundial consiste na articulação entre a colonialidade
do poder, o capitalismo, o estado-nação e o eurocentrismo
como variantes hegemônicas das áreas básicas da existência

147
social. Essas áreas não nascem umas das outras, mas não

descolonizar: a prática e o sexo


existem nem operam separadas ou independentes entre si,
consequentemente, formam um complexo estrutural cujo ca-
ráter é sempre histórico e específico.
A colonialidade do poder é um conceito-chave na teori-
zação do autor, pois trata de “um dos elementos fundantes do
atual padrão de poder, a classificação social básica e universal
da população do planeta em torno da ideia de raça” (QUIJANO,
2002: 1). Essa ideia, em seu sentido moderno, está diretamen-
te ligada com a “conquista” das Américas, e produziu, nesse
contexto, identidades sociais historicamente novas: índios, ne-
gros, mestiços, entre outras. Na medida em que as relações
sociais estavam permeadas por relações de dominação, tais
identidades foram associadas a hierarquias, lugares e papéis
sociais como constitutivas delas (QUIJANO, 2005: 118).

Na América, a ideia de raça foi uma maneira de outorgar


legitimidade às relações de dominação impostas pela
conquista. A posterior constituição da Europa como nova
identidade depois da América e a expansão do colonialis-
mo europeu ao resto do mundo conduziram à elaboração
da perspectiva eurocêntrica do conhecimento e com ela
à elaboração teórica da ideia de raça como naturalização
dessas relações coloniais de dominação entre europeus e
não-europeus.

Walsh (2009) adverte que a colonialidade cruza prati-


camente com todos os aspectos da vida e explica que a sua
operação pode ser entendida a partir de quatro eixos: 1. a
colonialidade do poder – que se refere ao estabelecimento
de um sistema de classificação social baseada na raça como
critério fundamental para a distribuição, dominação e explo-
ração da população mundial; 2. a colonialidade do saber – o
posicionamento do eurocentrismo como perspectiva única do
conhecimento, que descarta, desqualifica a existência e via-
bilidade de outras racionalidades epistêmicas e outros conhe-
cimentos que não sejam dos homens brancos e europeus; 3.

148
a colonialidade do ser – que se exerce por meio da inferiori-
zação, subalternização, discriminação e desumanização – a
construção da ideia de “não existência”1; 4. a colonialidade
cosmogônica da mãe natureza e da vida em si – a que encon-
tra a sua base na divisão binária entre natureza/sociedade,
descartando o “mágico-espiritual-social”, a relação milenar
entre mundos biofísicos humanos e espirituais – incluindo os
ancestrais, deuses, orixás, entre outros.
Ao se referir a colonialidade, Walter Mignolo (2003) a
nomeia como “o outro lado - a cara oculta da modernidade”.
A partir dessa afirmação podemos inferir que a própria mo-
dernidade e a pós-modernidade se projetam como “o lugar
epistêmico de enunciação no qual se inscreve e se legitima o
poder colonial” (MIGNOLO, 2003: 27). Ou seja, a modernida-
de foi colonial desde o seu ponto de partida, por seu caráter
descolonizar: a prática e o sexo

eurocêntrico e pelo controle exercido sobre o mercado, sobre


a produção intelectual e sobre a classificação racial.
O eurocentrismo tem relação direta com a colonialidade
do poder, pois se torna a forma hegemônica de manutenção
de controle da subjetividade/intersubjetividade, em particular
no modo de produzir conhecimento (colonialidade do saber).
Nesse sentido, eurocentrismo é a perspectiva de conhecimen-
to que foi elaborada sistematicamente a partir do século XVII
na Europa, como expressão das experiências de colonialis-
mo e de colonialidade do poder, das necessidades e expe-
riências do capitalismo, e da eurocentralização de tal padrão
de poder (colonial/moderno/capitalista). Essa perspectiva de
conhecimento foi mundialmente imposta e admitida nos sécu-
los seguintes como a única racionalidade legítima (QUIJANO,
2002; 2005). Nesse sentido,

[...] presume-se que toda teoria seja ocidental, e que mo-


vimentos como o feminismo e a desconstrução, onde quer
que eles surjam, sejam ocidentais. Trata-se de uma visão

1 FANON, F. Os condenados da Terra. México: Fondo de Cultura Eco-


nômica, 2003.
149
que relaciona o Ocidente ao refinamento teórico da “men-

descolonizar: a prática e o sexo


te”, e o não-ocidental à matéria-prima bruta do “corpo”
(SHOHAT e STAM, 2006: 39).

Existe, contudo, distinção entre colonialidade e colonia-


lismo. Para Quijano (2005), colonialismo se refere à domina-
ção político-econômica de alguns povos sobre outros e é mi-
lhares de anos anterior à colonialidade. Já a colonialidade se
refere à classificação social básica e universal da população
do planeta em torno da ideia de raça, que existe no mundo
há cerca de 500 anos. Ambos os termos estão, obviamente,
relacionados, já que a colonialidade do poder não teria sido
possível historicamente sem o específico colonialismo impos-
to ao mundo a partir do final do século XV. Catherine Walsh
(2009), no mesmo sentido, entende colonialismo como uma
relação política e econômica que envolve soberania de um
povo, de uma nação sobre outra em qualquer parte do mun-
do; e a colonialidade como um padrão de poder que emerge
no contexto da colonização europeia nas Américas – ligado
ao capitalismo mundial e ao controle, dominação e subordi-
nação da população através da ideia de raça.
Para Ramón Grosfoguel (2008), por meio da colonialida-
de podemos compreender que o fim das administrações co-
loniais não levou ao término das formas coloniais de domina-
ção, pelo contrário, essas continuam sendo produzidas pelas
culturas coloniais e pelas estruturas do sistema-mundo capi-
talista moderno/colonial. Na esteira de Quijano, ao utilizar o
termo “colonialidade”, Grosfoguel (2008: 126) se refere as “si-
tuações coloniais” contemporâneas. Para o autor, “situações
coloniais” dizem respeito “a opressão/exploração cultural,
política, sexual e econômica de grupos étnicos/racializados
subordinados por parte de grupos étnico-raciais dominantes”,
e independem da existência de administrações coloniais. Por
“colonialismo”, o autor compreende as “situações coloniais”
“impostas pela presença de uma administração colonial”,
como ocorreu durante o período do colonialismo clássico.

150
Realizada a distinção entre colonialismo e colonialidade,
cabe alertar que a expressão “descolonial” (ou decolonial) não
deve ser confundida como mera descolonização. Em termos
históricos e temporais, descolonização indica uma superação
do colonialismo, geralmente associada às lutas anticoloniais,
o que é comumente denominado independências políticas
das colônias, que na América começa em fins do século XVIII;
por sua vez, a ideia de descolonialidade (ou decolonialida-
de) procura transcender a colonialidade, a face ininteligível
da modernidade, que permanece operando ainda nos dias de
hoje em um padrão mundial de poder (BALLESTRIN, 2013).
Para Grosfoguel (2008), a descolonização está posta
em termos de mitologia. A mitologia da “descolonização do
mundo” presta um grande desserviço, porque esconde “as
continuidades entre o passado colonial e as atuais hierar-
descolonizar: a prática e o sexo

quias coloniais/raciais globais, além de que contribui para


a invisibilidade da “colonialidade” no momento presente”
(GROSFOGUEL, 2008: 127/128).

Não pretendemos simplesmente desarmar, desfazer, ou re-


verter o colonial: ou seja, passar de um momento colonial a
um não colonial, como se fora possível que seus padrões
ou marcas desistam de existir. A intenção é justamente assi-
nalar, provocar um posicionamento – uma postura e atitude
contínua – de transgredir, intervir, insurgir e incidir. O deco-
lonial denota, então, um caminho de luta contínuo no qual
podemos identificar, visibilizar e alentar “lugares” de exterio-
ridade e construções alternativas (WALSH, 2009: 59).

Nesse sentido, a descolonialidade busca em seu projeto


um rompimento com as epistemologias eurocêntricas ao sa-
lientar a importância dos diferentes saberes e paradigmas ou-
tros, que são produzidos em diversos contextos geopolíticos
(COSTA, 2014). Para tanto, é necessário o “giro decolonial”,
expressão de Maldonado-Torres, que busca:

[...] colocar no centro do debate a questão da colonização


como componente constitutivo da modernidade, e a des-
151
colonização como um sem número indefinido de estraté-

descolonizar: a prática e o sexo


gias e formas contestatórias que reivindicam um cambio
radical nas formas hegemônicas atuais de poder, ser, e
conhecer (MALDONADO-TORRES, 2008: 66).

Os termos descolonial ou descolonialidade são prefe-


ridos por autoras latino-americanas como Rita Laura Sega-
to (2011), María Lugones (2004), Yuderkis Espinosa Miñoso
(2014), Ochy Curiel, entre outras, que partem do questiona-
mento das ideias de centro e periferia ou de norte e sul direcio-
nando o olhar para a complexidade do mundo, a diversidade
cultural, simbólica, linguística e política das reações antico-
loniais que questionam velhos modelos imperialistas. Nesse
sentido, marcamos o nosso posicionamento pela adoção da
terminologia “descolonial” e “descolonialidade” justamente
para assinalar o caminho de luta contínua pela identificação
e visibilização das mulheres, em particular das latino-ameri-
canas e negras que ocupam “lugares” de exterioridade e vêm
tensionando construções alternativas.

152
Colonialidade do gênero e o feminismo descolonial

Sermos mulheres juntas não era suficiente.


Nós éramos diferentes.
Sermos garotas lésbicas juntas não era suficiente.
Nós éramos diferentes.
Sermos negras juntas não era suficiente.
Nós éramos diferentes.
Sermos mulheres negras juntas não era suficiente
Nós éramos diferentes.
Sermos lésbicas negras juntas não era suficiente
Nós éramos diferentes.
Demorou algum tempo até percebermos que nosso
lugar era a casa da diferença ela mesma,
ao invés da segurança de qualquer
diferença em particular
(Audre Lorde)
descolonizar: a prática e o sexo

Iniciamos com esse trecho escrito por Audre Lorde,


pois o consideramos exemplificativo do que Lugones (2008)
busca evidenciar com seu conceito de colonialidade do gê-
nero. Essa noção, no pensamento da autora, tem relação
com a crítica que ela oferece à separação pela modernida-
de2 daquilo que é inseparável. Gênero, raça, classe, dentro
do pensamento moderno, foram pensadas como catego-
rias e, como tais, pressupõem separação, quando o que se
está tentando expressar é precisamente a inseparabilidade
desses marcadores nos corpos considerados não-humanos
pelo pensamento ocidental moderno.

[...] embora na modernidade capitalista eurocêntrica, to-


dos nós somos racializados e atribuídos a um gênero, nem
todos somos dominados ou vitimados por esse processo.
O processo é binário, dicotômico e hierárquico. Kimberlé
Crenshaw e outras mulheres de cor, feministas, temos ar-
gumentado que as categorias tem sido entendidas como
homogêneas e que selecionam o dominante, no grupo,

2 “A modernidade organiza o mundo ontologicamente em termos de cate-


gorias homogêneas, atômicas, separáveis” (LUGONES, 2014: 935).
153
como sua norma; portanto, “mulher” seleciona as fêmeas

descolonizar: a prática e o sexo


burguesas brancas heterossexuais como uma norma, “o
homem” seleciona os machos burgueses brancos hete-
rossexuais, o “negro” seleciona os machos heterossexuais
negros e assim por diante. Então, fica claro que a lógica da
separação em categorias distorce os seres e os fenômenos
sociais que existem na intersecção (LUGONES, 2008: 82).

Nesse sentido, as mulheres não brancas: negras, mes-


tiças, indígenas, asiáticas são seres invisíveis, habitam o va-
zio categorial. Para visibilizá-las, segundo o pensamento de
Lugones (2008) é necessário reconceitualizar, a fim de evitar
o pensamento categorial. Somente quando percebemos o
gênero, a raça e a classe como entrelaçados ou indissoluvel-
mente fundidos que podemos enxergar todas as mulheres.

Isto implica que o termo “mulher” em si, sem especifica-


ção da fusão, não tem significado ou tem um significa-
do racista, uma vez que a lógica categórica selecionou
historicamente apenas o grupo dominante, as mulheres
burguesas brancas que a colonialidade do gênero implica
(LUGONES, 2008: 82).

A autora busca enfatizar que a lógica categorial dicotô-


mica e hierárquica é central para o pensamento capitalista e
colonial moderno sobre raça, gênero e sexualidade. “Ver” mu-
lheres não brancas pressupõe ir além da lógica “categorial”.

A colonialidade do gênero permite-me compreender a


opressão como uma interação complexa de sistemas
econômicos, racializantes e engendrados, na qual cada
pessoa no encontro colonial pode ser vista como um ser
vivo, histórico, plenamente caracterizado. Como tal, quero
compreender aquele/a que resiste como oprimido/a pela
construção colonizadora do lócus fraturado. Mas a colonia-
lidade do gênero esconde aquele/a que resiste como um/
uma nativo/a, plenamente informado/a, de comunidades
que sofrem ataques cataclísmicos (LUGONES, 2014: 941).

154
É a partir da articulação de gênero, raça, sexualidade e
colonização que Lugones desenvolve suas concepções acer-
ca do feminismo descolonial. Ela o define como a possibilida-
de de superar a colonialidade do gênero, ou seja, de tomar
consciência do sistema de gênero baseado na dicotomia hu-
mano/não humano, e a redução de pessoas e da natureza à
coisas para uso do homem e da mulher eurocentrados, ca-
pitalistas e imperialistas (LUGONES, 2012). Lugones (2014:
937) afirma que análises mais contemporâneas:

[...] têm introduzido argumentos pela reivindicação de que


gênero constrói sexo. Mas, na versão anterior, sexo funda-
mentava gênero. Geralmente se confundiam: onde você
vê sexo, verá gênero e vice-versa. Porém, se estou certa
sobre a colonialidade do gênero, na distinção entre huma-
no e não humano, sexo tinha que estar isolado. Gênero e
descolonizar: a prática e o sexo

sexo não podiam ser ao mesmo tempo vinculados insepa-


ravelmente e racializados. O dimorfismo sexual converteu-
-se na base para a compreensão dicotômica do gênero, a
característica humana. (...) O que é importante para mim
aqui é que se percebia o sexo existindo isoladamente na
caracterização de colonizados/as. Isso me parece como
um bom ponto de entrada para pesquisas que levam a
colonialidade a sério e pretendem estudar a historicidade
e o significado da relação entre sexo e gênero.

Nesse sentido, segundo a autora, o sistema de gênero


e a diferenciação racial negam humanidade e, portanto, se
recusam a atribuir um gênero às colonizadas. Ao enfocar na-
quele que resiste situado na diferença colonial, a intenção de
Lugones é revelar o que se torna eclipsado, e essa é outra
das diferenças marcantes, em termos estratégicos, entre a
abordagem descolonial e a pós-moderna, por exemplo. Isso
se dá porque a distinção moderna entre teoria e prática não
se aplica quando você entra no campo do pensamento da
fronteira e nos projetos descoloniais (MIGNOLO, 2008: 291).
Para Miñoso (2014, 2016), o feminismo descolonial
elabora uma genealogia do pensamento produzido desde

155
as margens por feministas, mulheres, ativistas, lésbicas e

descolonizar: a prática e o sexo


gente racializada em geral. Ele recupera correntes críticas
anteriores, como o feminismo negro norte-americano, os fe-
minismos de cor, o feminismo pós-colonial, correntes femi-
nistas autônomas latino-americanas, assim como algumas
contribuições do feminismo pós-estruturalista. Contudo, ele
avança ao colocar em dúvida a unidade “mulheres” de uma
forma radicalmente nova:

[...] o feminismo em sua cumplicidade com a aposta des-


colonial torna sua a tarefa de reinterpretação da história
de forma crítica à modernidade, já não só por seu andro-
centrismo e misoginia, como tem feito a epistemologia fe-
minista clássica, mas também dado seu caráter intrinsica-
mente racista e eurocêntrico (MIÑOSO, 2016: 144).

Em outras palavras, o feminismo descolonial anda em


sintonia com um projeto crítico que desmascara o lado ininteli-
gível da modernidade – a colonialidade, e como tal, questiona
uma leitura que coloca as conquistas de direitos na Europa e
Estados Unidos como parâmetro a ser perseguido pelos mo-
vimentos sociais dos países latino-americanos. Isso porque,
essa leitura é reprodutora de uma ideia de Europa como co-
meço e fim da História, e da modernidade como projeto de su-
peração que toda sociedade deveria buscar (MIÑOSO, 2016).
No próximo item apresentaremos alguns tensionamen-
tos realizados por teóricas africanas e latino-americanas
acerca da universalização de gênero, da concepção sobre
“mulher” e família, a partir da crítica à racionalidade ociden-
tal eurocêntrica.

156
Lançando outros olhares para as universalizações de
gênero, “mulher” e família a partir da perspectiva de
uma “América Africana” ou “Améfrica3”

Existe um grande debate sobre a pertinência do femi-


nismo para as realidades das mulheres africanas. Autoras
africanas compartilham a “preocupação de se demarcarem
do feminismo ocidental e de definirem um conceito novo, que
esteja mais ajustado às realidades das tradições e dos valo-
res da vivência da mulher em África” (BASIMILE, 2013: 277).
Algumas teóricas afirmam que a noção de que as mu-
lheres são inferiores aos homens foi importada para África,
via colonialismo ocidental, e decorrem do impacto de posicio-
namentos discriminatórios provindos das ideologias cristãs e
islâmicas. Dessa forma, a marginalização das mulheres te-
descolonizar: a prática e o sexo

ria sido uma das principais estratégias do colonialismo, que


visava ruir a coesão de um tecido social em que os sexos
coexistiam em complementaridade (BASIMILE, 2013). Outras
autoras defendem que seria errado sugerir que gênero, antes
da invasão europeia, era um princípio que organizava as so-
ciedades africanas. Isso não significa que inexistiam formas
de desigualdade e estratificação em África, como, por exem-
plo, a antiguidade nas sociedades Yorùbás (YUSUF, 2003;
OYĚWÙMÍ, 2000; 2004).
Oyèrónké Oyèwúmi (2000; 2004) destaca que um dos
problemas das teorias feministas ocidentais é que elas con-
3 As categorias “Améfrica”, “Amefricanos/as” e “Amefricanidade” foram
cunhadas por Lélia Gonzalez na década de 1980. Para González (1988:
76/77), “[a] categoria de Amefricanidade incorpora todo um processo his-
tórico de intensa dinâmica cultural (adaptação, resistência, reinterpretação
e criação de novas formas) que é afrocentrada [...]. Em consequência, ela
nos encaminha no sentido da construção de toda uma identidade étnica”.
Assim, tal categoria nos possibilitaria “resgatar uma unidade específica,
historicamente forjada no interior de diferentes sociedades”, em termos
diaspóricos. A “Améfrica enquanto sistema etnicogeográfico de referência,
é uma criação nossa e de nossos antepassados no continente em que
vivemos, inspirados em modelos africanos”. Nessa linha, o termo amefri-
canos/amefricanas está definido no âmbito da descendência.
157
tinuam a interpretar a família nuclear branca como universal,

descolonizar: a prática e o sexo


ao invés de pensá-la como uma instituição culturalmente es-
pecífica. A base dessa família é a relação solidária adulta,
conjugal, o que faz com que a própria definição de mulher se
torne a de “esposa – a metade subordinada de um casal em
uma família nuclear – que vive em um lar familiar” (OYĚWÙ-
MÍ, 2000: 2-3). Como raça e classe não são geralmente variá-
veis dentro de uma família ocidental, os feminismos brancos
que estão presos à família nuclear não reconhecem raça ou
diferença de classe.
Na África Ocidental (da qual as sociedades Yorùbás fa-
zem parte) é a linhagem que se considera família. A linha-
gem é um sistema familiar baseado em laços consanguíneos.
Nesse sentido, as palavras yorùbás oko e iyawo, normalmente
traduzidas como marido e esposa, não são diferenciadas por
gênero. Oko é superior hierarquicamente a iyawo, porque oko
designa aqueles que são membros da família a partir do nas-
cimento, e iyawo aqueles que entram pelo casamento. Todos
os membros da linhagem são chamados omo-ile e são clas-
sificados individualmente por ordem de nascimento. Aqueles
que adentram a família pelo casamento são conhecidas como
iyawo ile e são classificados por ordem de casamento. Indivi-
dualmente, cada omo-ile ocupa a posição de oko em relação
à iyawo que chega (OYĚWÙMÍ, 2004).
Dentro da casa, os agrupamentos são feitos em torno de
diferentes unidades mãe-filhas/os descritos como omoya; “lite-
ralmente, irmãos filhos de uma mesma mãe-ventre. Por causa
da matrifocalidade de muitos sistemas familiares africanos, a
mãe é o eixo em torno do qual as relações familiares são de-
lineadas e organizadas” (OYĚWÙMÍ, 2004: 7), e nas quais a
hierarquia fundamental é a antiguidade baseada na idade rela-
tiva. Assim, os papéis sociais são fluidos e contextuais.
Esse é apenas um dos exemplos que a autora apresen-
ta para demonstrar que as categorias de gênero ocidentais –
inerentes à natureza (dos corpos), e operando em dicotomia,
oposições hierárquicas entre masculino/feminino, homem/
158
mulher, em que o macho é presumido como superior – são
alienígenas a muitas culturas africanas. Dessa forma,

[...] quando realidades africanas são interpretadas com


base nessas alegações ocidentais, o que encontramos
são distorções, mistificações linguísticas e muitas vezes
uma total falta de compreensão, devido à incomensura-
bilidade das categorias e instituições sociais (OYĚWÙMÍ,
2004: 8).

Se o feminismo branco ocidental não dá conta das cul-


turas, tradições e valores das mulheres africanas, nos cabe
questionar as invisibilidades que ocasiona em locais híbridos,
marcados por sua herança colonial, simultaneamente indíge-
nas, africanos e europeus como o Brasil (SHOHAT e STAM,
2006). Como afirma Eduardo de Oliveira (2012: 29), “as ex-
descolonizar: a prática e o sexo

periências diaspóricas de África, em contato/conflito com as


experiências indígenas e europeias, ganharam outros contor-
nos e geraram novos problemas”. Nesse sentido, cabe a crí-
tica de autoras africanas quando modelos eurocêntricos são
dados como universais na sociedade brasileira. Os processos
de globalização, nos últimos cinco séculos,

[...] turvaram todo tipo de fronteiras em todo o globo. Na


virada do milênio, portanto, uma das questões mais im-
portantes para o feminismo é a fragmentação da categoria
mulher – o sujeito do feminismo. (...) Aponto que os desa-
fios históricos para a compreensão racial e cultural mono-
lítica do sujeito pós-moderno são anteriores ao feminismo.
As feministas negras americanas são pioneiras notáveis a
este respeito. A ansiedade feminista sobre o desapareci-
mento da mulher é desnecessária, ela nunca existiu como
um sujeito unificado, em primeiro lugar. (...) Pelo contrário,
sua morte pode limpar o caminho para as mulheres serem
o que quiserem ser (OYĚWÙMÍ, 2000: 6).

A própria preocupação com a fragmentação da categoria


mulher é marca da reprodução do pensamento eurocêntrico.
Ou seja, não se pode pensar as relações de gênero a partir
159
de um modelo global. A própria ideia de “mulher brasileira”,

descolonizar: a prática e o sexo


“mulher africana” ou “mulher indígena” não faz sentido, pois
todas essas expressões unificam em uma identidade elemen-
tos que precisam ser especificados nos termos de cada cul-
tura. Somente após essas especificações que é possível um
diálogo intercultural (YUSUF, 2003).
Pensar a partir da colonialidade de gênero (LUGONES,
2014) pode ser ferramenta interessante no exercício da inter-
culturalidade. Segundo Lugones, a partir da metodologia da
descolonialidade, é possível buscar “ler o social a partir das
cosmologias que o informam, em vez de começar com uma
leitura gendrada das cosmologias que subjazem e constituem
a percepção, a motilidade, a incorporação e a relação” (LUGO-
NES, 2014: 944). Isso porque, traduzir termos como oko, iya-
wo, koshskalaka, chachawarmi, urin na concepção dicotômica,
heterossexual, racializada e hierárquica de gênero é “exercer
a colonialidade da linguagem por meio da tradução colonial e,
portanto, apagar a possibilidade de articular a colonialidade do
gênero e a resistência a ela” (LUGONES, 2014: 944).
Para Lugones (2008; 2014), o sistema de poder capita-
lista, moderno e colonial, que Quijano (2002; 2005) caracteri-
za como tendo início no século XVI nas Américas e em vigor
até hoje, não se deparou “com um mundo a ser estabelecido,
um mundo de mentes vazias e animais em evolução” (LUGO-
NES, 2014: 941), ideia que a perspectiva de conhecimento
eurocêntrica buscou naturalizar. Ao contrário:

[...] encontrou-se com seres culturais, política, econômi-


ca e religiosamente complexos: entes em relações com-
plexas com o cosmo, com outros entes, com a geração,
com a terra, com os seres vivos, com o inorgânico, em
produção; entes cuja expressividade erótica, estética e
linguística, cujos saberes, noções de espaço, expectati-
vas, práticas, instituições e formas de governo (...) eram
para ser encontradas, entendidas e adentradas em entre-
cruzamentos, diálogos e negociações tensos, violentos
e arriscados que nunca aconteceram. Ao invés disso, o

160
processo de colonização inventou os/as colonizados/as e
investiu em sua plena redução a seres primitivos, menos
que humanos, possuídos satanicamente, infantis, agres-
sivamente sexuais, e que precisavam ser transformados
(LUGONES, 2014: 941).

Essa ideia tem como base a concepção dos coloniza-


dos como não humanos, e consequentemente seres naturais,
assim concebidos pelo pensamento ocidental moderno, que
compreendia a natureza como instrumento para o benefício
dos seres de razão. Ao fazer essas reflexões, Lugones busca
seguir:

[...] os sujeitos em colaboração e conflito intersubjetivos,


plenamente informados como membros das sociedades
americanas nativas ou africanas, na medida em que as-
sumem, respondem, resistem e se acomodam aos inva-
descolonizar: a prática e o sexo

sores hostis que querem expropriá-los e desumanizá-los


(LUGONES, 2014: 942).

Para ela, o sistema global capitalista colonial não foi exi-


toso na destruição absoluta dos povos, relações, saberes e
economias. A autora busca olhar para as resistências.
Nesse sentido, autoras latino-americanas como Ma-
ria Luiza Femenías (2007) conclamam o lugar de direito na
produção de saberes: “nossos discursos alternativos devem
favorecer uma ruptura político-epistemológica dos contextos
naturalizados – dar voz própria as múltiplas forças étnicas,
sexuais, econômicas e culturais que se precipitam no lugar
do novo. Nós mulheres latino-americanas somos ‘as outras’
dos discursos hegemônicos” (FEMENÍAS, 2007: 15); Glória
Anzaldua (1989) denuncia o problema da inaudibilidade - “O
mundo surdo” que não escuta as mulheres e a intransitabili-
dade de nossas propostas dentro de nosso próprio território
latino-americano. Por sua vez, Sueli Carneiro (2003) adverte
que o discurso sobre a opressão da mulher não tem reco-
nhecido a experiência histórica diferenciada das mulheres ne-
gras/afrodescendentes. Tanto no Brasil, como na América La-
161
tina, “a violação colonial perpetrada pelos senhores brancos

descolonizar: a prática e o sexo


contra as mulheres negras e indígenas e a miscigenação daí
resultante” está na origem das construções nacionais, “estru-
turando o mito da democracia racial latino-americana, que no
Brasil chegou até as últimas consequências” (CARNEIRO,
2003: 1). A autora ressalta a necessidade de enegrecer o mo-
vimento feminista brasileiro, levando em conta as configura-
ções raciais das mulheres em nosso país.
Como bem coloca Oyěwùmí (2004: 9), acreditamos que
“significados e interpretações devem derivar da organização
social e das relações sociais, prestando muita atenção aos
contextos culturais e locais específicos”. Presumir que a ra-
cionalidade ocidental eurocentrada, inclusive das teorias fe-
ministas e de gênero, consegue “ler” e interpretar todas as
sociedades e culturas no mundo continua sendo uma postura
colonial de imposição de uma cosmovisão específica como
racionalidade universal, e consequentemente subalternizado-
ra de outras formas de pensamento.

Considerações transitórias

O projeto descolonial busca romper com categorias e


epistemologias eurocêntricas, seus cânones e métodos auto-
rizados ao salientar os saberes e paradigmas produzidos em
diversos contextos geopolíticos (COSTA, 2014). Consequen-
temente, a opção descolonial significa, entre outras coisas,
aprender a desaprender, já que fomos programados pela ra-
zão imperial/colonial (MIGNOLO, 2008; BALLESTRIN, 2013).
Nesse sentido, o pensamento descolonial suscita o desafio da
desobediência epistêmica e do “pensar ‘desde dentro’ as cul-
turas indígenas e africanas, por exemplo, e, assim, afastar-se
cada vez mais de interpretações centradas na visão de mundo
do pensamento moderno europeu” (CARDOSO, 2014: 970).
No contexto brasileiro, resgatar culturas africanas e indí-
genas que formaram a sociedade é também questionar a uni-
versalidade dos recortes historicamente e culturalmente es-
162
pecíficos do sistema moderno/colonial de gênero, tais como o
dimorfismo sexual, a organização patriarcal e heterossexual
das relações sociais (LUGONES, 2008, 2014). Nesse sentido,
se faz necessário atentar para autoras como Lélia Gonzalez
que, por meio da observação e de uma vivência “desde den-
tro”, antecipou o desenvolvimento das discussões que hoje
chamamos de pensamento descolonial.
O conceito de colonialidade de gênero se torna uma fer-
ramenta útil nessas aproximações, principalmente ao possibi-
litar ver limitações e distanciamentos epistemológicos de ou-
tras abordagens, e também para pensar coalizões possíveis
entre feminismos.
descolonizar: a prática e o sexo

163
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165
O cuidado enquanto estratégia: uma perspectiva sobre
a escolha das estudantes mulheres do Curso Normal

Renata D´avila Borges


O cuidado enquanto estratégia: uma
perspectiva sobre a escolha das estudantes
mulheres do Curso Normal

Introdução

O presente texto é resultante de uma pesquisa1 que bus-
ca compreender quais fatores sociais e econômicos influen-
ciaram as estudantes mulheres na escolha do Curso Normal,
atrelando à realidade específica com conceitos, a partir de
uma perspectiva de abordagem teórica do feminismo negro e
latino-americano. O trabalho foi desenvolvido a partir do con-
tato enquanto residente do Programa de Residência Pedagó-
gica (RP) em Ciências Sociais, o qual desenvolve suas ati-
vidades na Escola Municipal de Ensino Médio Emílio Meyer,
descolonizar: a prática e o sexo

localizada no bairro Medianeira, em Porto Alegre. A instituição


possui o magistério Pós-médio e Normal, ambos com a habi-
litação para atuação na educação infantil.
Realizei a maior parte prática da RP com estudantes do
Curso Normal em Nível Médio. As turmas do Curso Normal
em Nível Médio, que consiste no Ensino Médio com o Cur-
so Normal, possuem um perfil de maioria mulheres, sendo
predominantemente mulheres autodeclaradas negras, entre
idades variadas. Mesmo sendo uma escola municipal, ela
atende a demanda de ensino profissionalizante e ensino mé-
dio, o que não é fornecido de forma obrigatória pelo do mu-
nicípio, conforme o artigo 11 da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação. Constituindo assim uma especificidade e que nos
últimos anos vêm sendo revista. A instituição se manteve com
o médio e profissionalizante até 2015. Em 2016 passou a ofe-
recer o nível de Educação Infantil em turno integral (manhã e
1 Trabalho de Conclusão de Licenciatura em Ciências Sociais na Uni-
versidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), realizado no primei-
ro semestre de 2019. Título: “O Que estas mulheres querem aqui?’’ A
escolha do Curso Normal enquanto estratégia. Disponível em Lume
Repositório Digital.
169
tarde) e por determinação da Secretaria Municipal da Educa-

descolonizar: a prática e o sexo


ção (SMED), o ensino médio deverá ter sua última turma de
ingressantes em agosto de 2019.
A escola foi criada na década de 50 para atender o públi-
co adulto e jovem e as modificações que vêm ocorrendo por
decisão da SMED, vêm aos poucos alterando as característi-
cas da instituição, particularidades estas que historicamente
foram construídas com estudantes jovens e adultos. Assim
está se estabelecendo entre a instituição, juntamente com os/
as estudantes e comunidade escolar e a SMED um espaço de
conflito, de disputa, onde ora são pensadas a historicidade e
a necessidade da instituição, e ora são pensados os números
de vagas disponíveis no ensino fundamental.
Inserida nesse espaço através da RP, realizei no primei-
ro encontro um questionário com as duas turmas nas quais
desenvolvi a regência. Ao total foram quatorze questionários,
no entanto a partir do recorte de gênero, tendo em vista que
a pesquisa realizada é voltada para a escolha das mulheres,
não estão registradas as informações referentes ao único ho-
mem matriculado. Entre elas, em relação à autodeclaração
raça/etnia as estudantes declaram-se 62% pretas, 15% par-
das, 15% brancas e 8% amarelas. Em relação à ocupação,
46% estão trabalhando na área da educação e 38% possuem
o curso de educador assistente/educadora infantil.
Ao longo dos encontros fui mapeando um perfil das es-
tudantes e, a partir disso, optei, enquanto método de pesqui-
sa, por realizar entrevistas semiestruturadas. Assim, após
cinco semanas de convívio semanal com as turmas do Cur-
so Normal, início às entrevistas semiestruturadas buscando
traçar quais expectativas estão em torno da escolha da rea-
lização do curso, tendo como hipótese o desejo de atuar na
educação infantil.
Foram realizadas entrevistas individuais com três estu-
dantes, conforme interesse na participação. Ao decorrer das
entrevistas, uma estudante, logo nas primeiras perguntas,
pede que eu desligue o gravador de voz. Prontamente desli-
170
guei e olhei para ela, sabendo que o que ela tinha a me dizer
era importante. E através do olhar, antes mesmo de falar, ela
já compartilhava comigo que aquilo era elemento marcante
da história dela, sendo parte do que ela é hoje.
Com o gravador desligado, ela me diz que o que vai me
contar pouca gente sabe, só uma professora de outra escola e
uma empregadora da época, que soube quando ocorrido. As-
sim, realizamos o movimento de voltar vinte anos atrás. Quan-
do ela, uma mulher negra, com dois filhos pequenos e na épo-
ca mãe solo, morava com as crianças em um barraco na vila e
se virava nos trinta para dar conta das crianças, da casa e do
trabalho. Um dia chegou em casa e viu uma janela aberta. Con-
ta que ficou com aquilo na cabeça, mas deixou passar, afinal
não tinha muito o que fazer. Passados uns dias, enquanto dor-
mia durante a madrugada, escuta um estrondo e tem sua porta
descolonizar: a prática e o sexo

arrombada. Ali entra um homem, e em suas palavras: E faz de


mim o que quer. Com as crianças ocupando o mesmo espaço,
o mais novo sentado na cama e o mais velho dormindo.
Enquanto ela me conta, nossos olhos se enchem de lá-
grimas, mas não deixamos cair. Prontamente ela me diz que
o perdoa, que foi muito errado aquilo que ele fez com ela. Mas
perdoa. Perdoa porque compreende que aquilo não é culpa
dele, se ele tivesse tido uma família… Ele saberia que aquilo
que ele fez não é certo, não é certo com ninguém.
Entendo que ler isso é difícil, escrever também o foi,
acredito que contar tenha sido ainda mais, um peso que ape-
nas ela conhece, entretanto é importante passar adiante o
que foi dito e não deixar que caía no silenciamento. Foi ne-
cessário escrever, assim como foi urgente ela falar.
Bell Hooks (1984) diz sobre o quanto os estereótipos
racistas da super mulher negra forte são mitos que atuam
nas mentes de muitas mulheres brancas, que lhes permitem
ignorar até que ponto as mulheres negras têm probabilida-
des de ser vitimizadas nesta sociedade, e o papel que as
brancas podem cumprir na manutenção e perpetuação des-
sa vitimização.
171
Passada uma semana eu a vi novamente, enquanto

descolonizar: a prática e o sexo


jantava no refeitório da escola. Ela passou, nossos olhos se
encontraram e ali tive certeza de que nossa relação já não
era mais a mesma, compartilhamos de um segredo, de uma
intimidade e, com isso, um sentimento que acalenta, por de
alguma forma não estarmos sozinhas.
As vivências narradas por estas estudantes, como a da
anteriormente referida, trouxeram histórias de mulheres que
muito cedo precisaram ser adultas, responsáveis e traba-
lhadoras. Mesmo que não tivessem idade para isso, mesmo
que exercer algumas tarefas significasse a não realização
de uma etapa, etapa esta destinada ao brincar, ao criar, ao
imaginar. Tarefas que influenciaram diretamente na forma
com que elas se relacionam com o mundo, e como o mundo
se relaciona com elas. E assim, ao longo da pesquisa, fui
me dando conta do quanto aquelas mulheres que ali esta-
vam são mulheres que passaram por muitas situações de
extrema violência e o quanto tais situações as levaram a
ingressar no Curso Normal.

Joguem fora a abstração e o aprendizado acadêmico, as


regras, o mapa e o compasso. Sintam seu caminho sem
anteparos. Para alcançar mais pessoas, deve-se evocar
as realidades pessoais e sociais – não através da retórica,
mas com sangue, pus e suor (ANZALDÚA, 2000: 235).

As estudantes

Mantenho as identidades das três estudantes preserva-


das, conforme acordado previamente, e para tal utilizarei de
codinomes que fazem referências a mulheres que ousaram
questionar a sociedade racista e patriarcal. Opto por esta li-
nha na escolha dos codinomes por compreender as trajetó-
rias das estudantes do Curso Normal também como trajetó-
rias de resistência às condições precárias e violentas que a
sociedade lhes impõe, sendo elas mulheres que durante suas
vidas estão constantemente lutando pelo direito à educação,
172
para si e/ou para seus filhos/filhas. Entre as estudantes estão
Susie, Carolina e Lucy:

Susie King Taylor (19 anos), autodeclarada parda, é uma


estudante assídua. Interage comigo e com algumas cole-
gas, é extremamente interessada e possui uma força de
vontade de aprender que se destaca entre as outras estu-
dantes. Por exemplo, quando utilizo um recurso de power
point ela pede que eu envie por email, para que ela possa
copiar no caderno, mesmo eu frisando não ser necessário.
No próximo encontro, ela mostra que copiou todo o con-
teúdo, justificando que gosta de fazer assim. Durante a
entrevista, ao falar sobre a escolha do curso, ela compar-
tilha que está gostando muito e diz “agora parece que eu
to mais inteligente pr’algumas coisas”. No entanto, mesmo
cursando o magistério com habilitação para docência na
educação infantil, ela relata que nunca pensou em ser pro-
descolonizar: a prática e o sexo

fessora, quer ser médica - médica ginecologista.

Carolina Maria de Jesus (33 anos), autodeclarada parda,


é uma estudante que falta bastante, mas quando está
em sala de aula altera a dinâmica do encontro. Extrema-
mente comunicativa, participa ativamente das propostas
apresentadas, levantando questionamentos e relacionan-
do com experiências pessoais e dados históricos. Está
no seu segundo casamento e tem três filhos. Realizou o
curso de educadora assistente e trabalha desde os doze
anos na área, sendo atualmente a professora titular de
uma turma de educação infantil na rede privada, na qual
possui o vínculo de estagiária. Relata que o valor do está-
gio corresponde a R$750,00 e para complementar a renda
vende trufas.

Lucy Terry Prince (49 anos), autodeclarada negra, con-


cluiu o ensino fundamental em 2017 através do ensino su-
pletivo, casada há dezenove anos, é mãe de dois filhos e
trabalha como empregada doméstica há vinte e dois anos
para a mesma família. Em sala de aula, sempre muito re-
servada, tende a não realizar muitas intervenções. Porém,
sempre faz as atividades propostas e acompanha o que é
dito durante a aula. Tem como colega de turma seu filho

173
que possui 23 anos, o qual senta sempre ao seu lado e

descolonizar: a prática e o sexo


participa ativamente das dinâmicas propostas, responden-
do, lendo e comentando.

Narrativas de cuidado

Entre as três entrevistadas surge na narrativa a respon-


sabilidade do cuidado de outro ser, seja o cuidado à mãe, à
filha ou aos irmãos. Cuidado esse cuja responsabilidade é
destinada majoritariamente às mulheres e que se relaciona
com a escolha da profissão docente, em razão do magistério
passar a ser representado também como uma forma extensi-
va da maternidade (LOPES LOURO, 1997). A ideia de cuida-
do surge ao decorrer das entrevistas da seguinte forma:
Para Susie ao falar do seu afastamento na escola e na
relação com sua mãe.

Fiquei com minha mãe por quatro anos, em função de


algumas doenças e também por causa de outros proble-
mas, o psicológico também, nessa época eu estava bem
deprimida (SUSIE, 2019).

Com Carolina ao falar sobre a escolha do curso:

[...] Eu acho que quando nasceu os meus irmãos que eu


comecei a ter que ter responsabilidade com outras crian-
ças, já que eu tenho dez anos de diferença deles. Diz a
minha vó que quando eu era bem pequena eu dizia que
eu ia ter doze filhos e minha vó diz que eu só troquei uma
coisa pela outra né, ao invés de ter doze meus paridos
eu tenho é dos outros, então quer dizer, pelo que conta
a minha família eu sempre tive esse envolvimento, sem-
pre com criança e coisa assim. Eu sempre gostei de tá
no meio das crianças ou dos idosos. Então era meio que
lógico, lá pelo sétimo, oitavo ano, eu já ia fazendo turno
inverso, auxiliando os professores e tudo mais, então foi
uma coisa levando a outra. Então era óbvio que onde eu
ia parar seria em uma sala de aula, de um jeito ou de outro
(CAROLINA, 2019).

174
Quando lhe pergunto sobre essa responsabilidade com
seus irmãos, como se desenvolvia essa relação, ela diz:

Sozinha, sozinha, um eu tinha que trocar fralda o outro já


era maiorzinho e depois eu tive a responsabilidade de le-
var e buscar da escola, de fazer tema, era tudo eu. Eu criei
eles. Até hoje todo mundo que conhece a minha família diz
que quem criou eles fui eu, porque minha mãe trabalhava
de dia até um certo horário da noite e meu pai trabalhava
da noite até o horário da manhã. Então de manhã meu
pai tava dormindo e minha mãe não tava em casa, então
sempre a responsável por eles acabou sendo eu. Lá pe-
los 15 anos quando meus pais se separaram, daí eu fiquei
responsável pela casa junto. Eu era responsável deles e
da casa, até meu pai casar de novo essa era minha fun-
ção. Com 12 anos eu trabalhava cuidando de filhos de
tias; meus irmãos eu cuidava de dia e de noite eu cuidava
descolonizar: a prática e o sexo

do filho dos outros. Tinha sempre um tio que queria ir no


cinema, uma coisa assim, e aí me buscavam e eu ficava
até um certo período. Então eu sempre fui responsável
pelo filho de alguém, então pra mim já era natural assim.
Não é uma coisa difícil de fazer, eu digo pra todo mundo,
eu não sei fazer outra coisa, eu só sei cuidar de criança
e limpar casa. São as duas coisas que eu sei fazer, que
é as duas coisas que lembro de fazer desde que eu me
conheço por gente né (CAROLINA, 2019).

Carolina possuí o curso de recreacionista e atua na área


alguns anos, quando lhe pergunto o motivo de ter voltado a
estudar, ela fala:

O meu mais velho. Era o que ele não fazia. Ele não tava
estudando, ele repetiu de ano, só na quinta série três ve-
zes, ele ia pra escola só pra jogar bola. Ele é um menino
muito bonito e aí ele começou a botar na cabeça dele essa
história de aparência, que só por ser bonito ele já ia pra
frente. Ele dizia assim, ‘olha aí mãe, tu não tem estudo,
mas tu tá aí trabalhando’.
Aí eu comecei a ficar preocupada com isso. Que ele aca-
basse indo pela maneira mais fácil e que leva a morte
mais rápida né. Como a gente mora perto de uma boca de
175
fumo, logo abaixo do morro, eu falei, um dia esse guri me

descolonizar: a prática e o sexo


cai aí em um conto do vigário ou eu tenho que ir no IML re-
conhecer o corpo ou em uma cadeia, alguma coisa assim.
E aí eu quis mostrar pra ele que a gente pode voltar a
estudar e pode melhorar, aumentar o nosso nível - uma
coisa que eu canso de dizer pra ele é que estudo e educa-
ção nunca é demais, mesmo que não vá agregar em nada
financeiramente, tudo que vem contribuir intelectualmente
faz com que tua cabeça pense e tu não seja manejado por
ninguém (CAROLINA, 2019).

E Lucy ao falar da escolha do curso:

A minha patroa sempre fala vai Lucy, vai estudar. E como


ela estudou aqui né, ela sempre fala. Faz que aqui tu vai
aprender bem. Daí eu vim, eu vim primeiro, eu vim estudar
e eu acho que eu fiz o Caio (que é seu filho) se sentir só
‘Pow eu não trabalho e eu não estudo e minha mãe traba-
lha e estuda né’, daí agora tá aí comigo.
Esses dias eu tava cansada, pensando não vou ir pro colé-
gio hoje, daí mandei uma mensagem pra ele: e aí Caio, vai
pro colégio? Ele me chama de Dá. E ele disse, vou sim Dá.
Então eu disse, então vamos lá.
O Caio é tipo assim o Patinho Feio, porque o Lázaro é alto
e bonitão e o Caio… Não é porque tu é gordo,..eu acho as-
sim, mas né, não adianta eu achar. Daí tipo assim, na outra
escola que ele estudou, nossa, foi um inferno lá. Por que lá,
lá era só gurizada, aqui não. Aqui as gurias são tranquilas,
respeitam. Ajudam ele, não ficam ‘cabeçudo, anão’.
Hoje eu tô aqui, por mim e por ele. Eu não tenho vontade
de desistir. Nem pelo cansaço e quero continuar por ele. Eu
quero que ele mude cada vez mais o pensamento dele e
melhorou bastante, depois que ele veio estudar aqui, tu não
tem noção como foi bom pra cabeça dele. Agora ele tá tra-
balhando faz quatro meses e antes ele trabalhava, pegava
o dinheiro e aparecia depois de uns três dias sem um real
no bolso. E agora não, ele recebeu agora, quinta e me deu
seiscentos, duzentos da luz e duzentos de não sei o quê.
Eu sei que ele me deu na mão (LUCY, 2019).

176
O cuidado enquanto estratégia

O cuidado, realizado na esfera privada do lar, cola-


borou para o distanciamento delas com as demandas do
universo público, que por vezes visualizamos na instituição
escolar. Aos poucos, Susie, Carolina e Lucy foram se afas-
tando dos estudos em virtude dessa outra demanda que
exigia uma grande energia, sendo inviável conciliar com a
escola. Dessa forma, elas se afastam da instituição escolar
pela necessidade do cuidado com o outro, seja pela gravi-
dez inesperada, pela urgência de acompanhar a mãe em
tratamento médico ou pela fatalidade de ter que trabalhar
fora desde sempre (para si e da irmã mais nova). No entan-
to, observamos que o que outrora distanciou elas da escola,
atualmente, são elemento fundamental delas no retorno ao
descolonizar: a prática e o sexo

espaço escolar: o cuidado.

A atenção dada à cultura das mulheres negras tem esti-


mulado interesse em um segundo tipo de relação interpes-
soal: aquela compartilhada por mulheres negras e seus
filhos biológicos, seus filhos em famílias estendidas e com
os filhos da comunidade negra. Ao reavaliar o sentido de
maternidade afro-americana, pesquisadoras feministas
negras têm enfatizado as conexões entre: 1. as escolhas
disponíveis para mães negras resultantes de sua localiza-
ção em políticas econômicas historicamente específicas;
2. a percepção de mães negras das escolhas de seus fi-
lhos em comparação com o que as mães achavam que
essas escolhas deveriam ser; 3. as estratégias de fato
empregadas pelas mães negras, tanto ao criarem os seus
filhos como ao lidarem com as instituições que afetavam
as vidas destes (HILL COLLINS, 2016: 111-112)

Assim, proponho olharmos para as trajetórias das es-


tudantes do Curso Normal partindo de uma outra perspecti-
va e não aquela na qual o cuidado ao outro assume sempre
um papel subalterno, subalternizado. Janice Hale (1980 apud

177
HILL COLLINS, 2016: 112)2 sugere que mães negras efetivas

descolonizar: a prática e o sexo


são mediadoras sofisticadas entre as ofertas concorrentes de
uma cultura dominante opressiva e uma estrutura acolhedo-
ra de valores negros. Observa-se que Lucy e Carolina assu-
mem esse papel de mediação entre seus valores que estão
em constante disputa com valores da cultura dominante. Fica
evidente na fala de Carolina,

Tudo isso é o que eu to tentando mostrar pra ele, que não


importa a idade da gente, o que importa é que a gente não
desista do sonho. E ele sendo mais velho, ele é exem-
plo pros outros né, quando ele mudar os outros vão atrás.
Então minha preocupação é essa, um vai indo pro lado
errado e daqui a pouco vai indo outro (CAROLINA, 2019).

De acordo com Hill Collins (2016), em 1980, Dill3 realiza


um estudo sobre a relação das domésticas negras quanto à
criação de seus filhos, no qual ela concluiu que as mulheres
de sua amostra tinham como objetivos e estratégias poder
ajudar seus filhos a irem mais longe do que elas na vida.
Assim como Hill Collins coloca que os objetivos que as
mulheres tinham giravam em torno dos seus filhos, observa-
mos nas narrativas de Lucy e de Carolina que a justificativa
de ambas estarem realizando o Curso Normal consiste na
preocupação com eles. Carolina diz:

Mãe nenhuma quer perder nenhum, né, a gente não quer


ter que ir buscar nenhum em delegacia. Então eu digo, os
estudos pra mim são mais a salvação dos meus filhos, é
provar pra eles. Eu espero que vale o esforço, porque ter
que trabalhar e estudar depois de noite, eu queria tá em
casa, fazendo minha comida, mas não deu. Ou eu venho
pra cá e salvo um ou daqui a pouco todo mundo se perdeu
dentro de casa (CAROLINA, 2019).

2 HALE, J. The Black woman and child rearing. In: ROSGERS-ROSE, L. F.


(Ed.). The Black woman, Beverly Hills: Sage, 1980. Pp. 79-88.

3 DILL, B. T. Race, class, and gender: prospects for an all-inclusive sis-


terhood. Feminist Studies, n. 9, pp. 131-150, 1983.
178
Para Dirce de Christo (2018), o trabalho compulsório que
as mulheres assumem é desafiador e elas estão cansadas e
pedem por uma reorganização das responsabilidades. No en-
tanto, em meio a todas as dores físicas, emocionais e espiri-
tuais que nascem das opressões, há também o que a autora
chama de um tesouro. Um tesouro despercebido que talvez
tenha sido ignorado quando foi criada a rachadura entre o
espaço doméstico e o público: as crianças ficaram do lado de-
las. E quando a privatização da vida doméstica avança contra
a coletividade, as mulheres resistem, reinventam formas de
viver coletivamente, e as crianças, que dão uma canseira da-
nada nas cuidadoras, são também uma fonte inesgotável de
vida. Sendo o alimento para a vida dessas mulheres em luta,
a presença de mais vida.
Assim, desafio a olharmos para a escolha dessas mu-
descolonizar: a prática e o sexo

lheres em realizar o Curso Normal, através de uma pers-


pectiva de um cuidado robusto e sofisticado, típico de quem
reconstrói o que lhe é dado. Não se trata mais daquele cui-
dado que elas vêm desempenhando desde criança, inter-
pretado unicamente como uma função sob ordem de outro.
Não se resume a uma ocupação manual e metódica, mas
sim a um cuidado que é fundamentado em uma reflexão a
partir de uma análise consciente sobre qual espaço social
elas, e consequentemente suas famílias, ocupam historica-
mente. Tanto Lucy quanto Carolina optam pela realização
do curso pensando nos filhos, no exemplo que estão dando,
traçando o retorno à escola como ferramenta de luta por
e para eles. E não se usa uma ferramenta porque é legal,
porque é divertida: se usa uma ferramenta porque ela é ne-
cessária. E se usa aquela a que se tem acesso, afinal de
contas nem sempre é possível acessar a mais adequada à
necessidade, ainda mais pensando na sociedade brasileira,
em que a cada 100 pessoas que sofrem homicídio no Bra-
sil, 71 são negras. Conforme o Atlas da Violência de 2017,
o cidadão negro possui 23,5% chances maiores de ser as-
sassinado em relação a cidadãos de outras raças/cores, já
179
descontado o efeito da idade, sexo, escolaridade, estado

descolonizar: a prática e o sexo


civil e bairro de residência.
Nota-se, nessa escolha pelo estudo enquanto ferramen-
ta, uma visão muito evidente de todo um processo da estru-
tura social racista do Brasil, o que dialoga com Patricia Hill
Collins (2016) ao falar sobre a tradição de um pensamento
feminista negro, em que parte deste tem sido produzido de
forma oral por mulheres negras comuns, em seus papéis de
mães, professoras, músicas e pastoras.

A chave seria pensar uma reinterpretação da história, ou


seja, creio que nos contaram uma história da historiografia
hegemônica, nos contaram uma história onde suposta-
mente os colonizadores eram conquistadores e descobri-
dores. Temos dito, não somente nós, mas também grupos
indígenas e afros, que o ocorrido a partir de 1492 foi um
etnocídio que ainda tem consequências digamos nesta
colonialidade contemporânea. A outra chave é pensar que
somos sujeitas e sujeitos com conhecimentos, com expe-
riências que são válidas seja tendo formação acadêmica
ou não tendo, que há uma recuperação, digamos, dos co-
nhecimentos. Digo recuperação porque, historicamente,
os povos têm tido uma série de conhecimentos que não
são valorizados como conhecimento, precisamente por
causa desta institucionalização do pensamento e da epis-
temologia, que foi instalada, em termos ocidentais, e con-
sidera apenas um certo modo de produzir conhecimento
que também é considerado neutro, objetivo, etc., etc. A ou-
tra chave, creio que tem a ver com pensamento e ação,
eu não concebo particularmente um feminismo descolo-
nial que não tenha uma prática política (CURIEL, 2017).

Collins (2016) sistematiza três temas chaves no pensa-


mento feminista negro, os quais representam a tendência domi-
nante do diálogo existente. Entre os temas chaves, destaco aqui
o terceiro tema, o qual é possível relacionarmos com as trajetó-
rias de Lucy e de Carolina, em torno do cuidado com seus filhos.
Para a autora, o terceiro tema chave do pensamento fe-
minista negro, o foco dado à cultura das mulheres negras, é
180
significativo por três razões. Primeiramente, os dados sobre
a cultura das mulheres negras sugerem que a relação entre a
consciência da opressão das pessoas oprimidas e as ações
que elas efetuam para lidar com estruturas de opressão tal-
vez sejam muito mais complexas do que está apontado pela
teoria social existente.
Hill Collins (2016) diz que as experiências das mulheres
negras sugerem que essas talvez se conformem abertamente
aos papéis sociais impostos a elas, mas, secretamente, se
opõem a esses, oposição moldada pela consciência de se
estar no escalão mais baixo da estrutura social. Dessa forma,
as atividades das mulheres negras nas famílias, igrejas, ins-
tituições da comunidade e expressão criativa podem repre-
sentar mais que um esforço em mitigar pressões advindas da
opressão. De anteposição, o quadro de referência ideológico
descolonizar: a prática e o sexo

das mulheres negras, que essas mulheres adquirem pela ir-


mandade, maternidade e expressão criativa, pode servir ain-
da com a finalidade adicional de moldar uma consciência de
mulheres negras quanto aos mecanismos da opressão.
Collins vai dizer que essa consciência não é moldada
apenas pela reflexão abstrata e racional, mas também é de-
senvolvida por intermédio da ação concreta e racional. Assim,
as mães negras podem desenvolver consciência pelas formas
como vivem suas vidas e as ações que realizam em nome
dos seus filhos, por exemplo. O fato dessas atividades serem
veladas nas ciências sociais tradicionais não deveria ser uma
surpresa. As pessoas oprimidas podem manter escondidas
uma consciência e podem não revelar o seu verdadeiro self
por razões de autoproteção.
A segunda razão que Hill Collins sistematiza é em torno
do foco na cultura das mulheres negras, o quanto é importante
o fato de destacar a natureza problemática de conceitualização
do termo “ativismo”. Baseando-se na realidade das mulheres
negras que não pode ser compreendida sem dar a devida aten-
ção à natureza interligada das estruturas de opressão que limi-
tam suas vidas, as experiências das mulheres afro-americanas
181
sugerem que possibilidades de ativismo existem mesmo dentro

descolonizar: a prática e o sexo


dessas estruturas múltiplas de dominação. Mas esse ativismo
pode assumir diversas formas, por exemplo, para mulheres ne-
gras sob condições muito inflexíveis, a decisão no foro íntimo
de rejeitar definições externas da condição feminina afro-ame-
ricana pode ser em si uma forma de ativismo.
A autora também delineia que se mulheres negras se en-
contrarem em configurações sociais nas quais a conformidade
absoluta é esperada, e onde formas tradicionais de ativismo
- como votar, participar de movimentos coletivos e ter cargos
públicos - são impossíveis, então a mulher individual que em
sua consciência escolhe ser autodefinida e autoavaliada é, de
fato, uma ativista. Já que estão mantendo o controle sobre sua
definição enquanto sujeitos, enquanto seres humanos plenos,
rejeitando definições delas próprias como “outros”.
E a terceira razão para a autora deve-se ao modelo ana-
lítico que explora a relação entre opressão, consciência e ati-
vismo, implícito na forma como feministas negras estudam a
cultura das mulheres negras.
De acordo com a pedagoga e mestre em educação Ja-
queline Conceição (2018), tem que se pensar um feminismo
negro por uma questão de processos de socialização de pes-
soas negras e pessoas brancas, sobretudo de mulheres ne-
gras e mulheres brancas e do lugar que essas mulheres vão
ocupar: não só nas relações sociais, mas também no modo
de produção. Para ela, se for pensar a cultura pop que hoje é
o maior veículo que dissemina as ideias do feminismo entre
a juventude, as maiores porta-vozes desse pensamento femi-
nista são mulheres brancas, jovens, de classe média alta, ou
até aquilo que a gente chama de burguesia - que são os pe-
quenos grupos que controlam os grandes meios de produção.
E essas mulheres vão levar o seu ponto de vista, das suas ex-
periências. E as mulheres negras que moram nas periferias,
que moram nos países pobres, que têm pouco acesso não
só à escolarização, mas também ao consumo e à produção
dessa cultura? As questões, as demandas, as vivências que
182
essas mulheres encontram no seu dia-a-dia, quem visibiliza
isso? Quem faz essa reflexão? Essa é a principal questão para
poder pensar o porquê de um feminismo negro. Muitas intelec-
tuais vão dizer que o feminismo negro está ligado essencial-
mente a uma questão de método, não é só uma questão de
raça, mas é uma questão de método, método porque pressu-
põe que parte de uma realidade diferente, portanto, precisa de
estratégias diferentes para entender essa realidade. Parte de
um lugar de subalternidade, historicamente colocado para as
mulheres negras, em um processo de reconfiguração no con-
texto de pós-escravidão no nosso país, por exemplo.

As mulheres negras assistiram, em diferentes momentos


de sua militância, à temática específica da mulher negra
ser secundarizada na suposta universalidade de gênero.
Essa temática da mulher negra invariavelmente era tra-
descolonizar: a prática e o sexo

tada como subitem da questão geral da mulher, mesmo


em um país em que as afrodescendentes compõem apro-
ximadamente metade da população feminina. Ou seja, o
movimento feminista brasileiro se recusava a reconhecer
que há uma dimensão racial na temática de gênero que
estabelece privilégios e desvantagens entre as mulheres
(SUELI CARNEIRO, 2011: 121).

Conforme Rita Segato (2012), o discurso da colonial


modernidade, apesar de igualitário, esconde em seu interior,
como muitas autoras feministas assinalaram, um hiato hie-
rárquico abissal, que a autora chama de uma tentativa de to-
talização progressiva pela esfera pública ou totalitarismo da
esfera pública. Ela sugere que é a esfera pública o que hoje
alimenta e aprofunda o processo colonizador.
Diante do terceiro tema chave do pensamento feminis-
ta negro, no qual Hill Collins esmiúça três razões a partir da
cultura das mulheres negras, podemos relacionar a presen-
ça de Lucy e de Carolina como uma forma de resistência, a
escolha delas no curso como uma prática ativista. Lucy, ao
falar do seu filho que é seu colega de turma, diz: “Eu digo, eu
não quero, não que eu pense, mas eu já não desistiria hoje
183
por causa dele. Eu quero que ele mude os pensamentos

descolonizar: a prática e o sexo


dele.” Assim, observamos ela utilizando o recurso que lhe é
disponível e do qual ela se apropria, tornando o comporta-
mento cotidiano uma forma de ativismo, que realiza determi-
nadas ações por uma causa.

Considerações finais

Ao ter contato com as estudantes do curso normal na


E. M. E. M. Emílio Meyer, confesso que me deparei com um
campo distinto daqueles que eu havia percorrido anterior-
mente enquanto estudante do Curso Normal Pós-Médio, e as
respostas delas eram distintas de todo processo de análise
que fiz em torno da minha própria escolha. “Se mulheres na
academia querem de verdade um diálogo sobre racismo, vai
requerer reconhecer as necessidades e os contextos vivos de
outras mulheres” (LORDE, 1981).
Assim, necessito de outras mulheres dialogando comi-
go, seja pela leitura, ao ver vídeos ou conversando olho no
olho, ou até mesmo pelo celular. Necessito de outras para
que minha prática não se dê de forma universalizada, para
que possa reconhecer que o fato de eu ser uma mulher
branca, jovem e sem filhos me constitui enquanto sujeita que
possui experiências que são distintas das delas, que são, em
sua maioria, mulheres negras e mães.

É importante insistir que no quadro de profundas


desigualdades raciais existentes no continente, se
inscreve, e muito bem articulada, a desigualdade sexual.
Trata-se de uma discriminação em dobro para as mulheres
não brancas da região: as amefricanas e ameríndias. O
duplo caráter da sua condição - biológica - racial e se-
xual - faz com que elas sejam mulheres mais oprimidas
e exploradas de uma região de capitalismo patriarcal-ra-
cista dependente. Justamente porque este sistema trans-
forma as diferenças em desigualdades, a discriminação
que elas sofrem assume um caráter triplo, dada sua posi-
ção de classe, ameríndias e amefricanas fazem parte, na
184
sua grande maioria, do proletariado afrolatinoameticano
(GONZALEZ, 2011: 17).

E as mulheres estudantes com quem tive a oportunida-


de de realizar a pesquisa e me debruçar neste trabalho são
mulheres que, ao decorrer de suas vidas, foram marcadas
pela violência sistêmica que atinge as mulheres negras, po-
bres e de periferia no Brasil. E que mesmo diante das situa-
ções mais adversas, retornaram à escola, estão realizando
um curso de formação docente e a escolha deste está atrela-
da à preocupação com a ampliação do universo de possibili-
dade de seus filhos. A partir das narrativas e dialogando com
Patricia Hill Collins, podemos identificar a escolha do curso
enquanto uma estratégia de sobrevivência do seus. Estraté-
gia que coloco aqui enquanto uma reprodução do cuidado,
que por ora toma outras formas, esse cuidado sofisticado,
descolonizar: a prática e o sexo

de quem busca educar pelo exemplo, um cuidado de quem


tem um olhar sobre o que acontece na sua volta, sobre o que
acontece logo ali em cima do morro, como diz Carolina. Para
Lélia Gonzalez (2011), exploração de classe e discriminação
racial constituem os elementos básicos da luta comum de ho-
mens e mulheres pertencentes a uma etnia subordinada.
Por fim, proponho pensarmos em um ensino de sociolo-
gia que busque dialogar com essas estudantes, com as de-
mandas que elas nos trazem. Como Bell Hooks (1994) diz
ao referir-se à pedagogia engajada, ensinar de um jeito que
respeite e proteja as almas de nossos alunos é essencial para
criar as condições necessárias para que o aprendizado possa
começar do modo mais profundo e mais íntimo. E dialogan-
do com Anzaldúa (1987), que a gente não contenha com um
montão de regras de academia. Vamos aprender com elas!

185
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descolonizar: a prática e o sexo


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187
Intersecções de gênero, raça e classe:
um “cinema decolonial” é possível?

Renata Santos Maia


Intersecções de gênero, raça e classe:
um “cinema decolonial” é possível?1

Introdução

As teorias decoloniais2 passaram a receber uma grande
atenção dentro das pesquisas acadêmicas recentes. Na es-
teira desses debates, este capítulo foi escrito com o intuito de
demonstrar a analogia que pode ser feita entre os estudos de-
coloniais e o cinema produzido na América Latina. Mas antes
de partirmos para a análise dos filmes é necessário compreen-
der algumas premissas do pensamento decolonial. A colonia-
lidade do poder foi um conceito elaborado por Aníbal Quijano
(2005) para referir-se às formas de dominação e opressão
exercidas contra a América Latina e sua população, especial-
descolonizar: a prática e o sexo

mente negros, índios e mestiços. O conceito foi ampliado por


María Lugones e Walter Mignolo abarcando também as ques-
tões de gênero e o controle dos corpos e dos saberes. Migno-

1 Doutoranda em História Cultural pela Universidade Federal de Santa


Catarina – UFSC, onde desenvolve estudos sobre gênero, cinema, se-
xualidades e feminismos; é mestre em História Social pela Universidade
Estadual de Montes Claros - Unimontes - e está vinculada ao Laboratório
de Estudos de Gênero e História (LEGH), da UFSC. Parte deste capítulo
já foi publicada em forma de artigo pela Revista Caderno Espaço Femi-
nino, da Universidade Federal de Uberlândia, sob o título No me olvides:
memória, gênero e violência na narrativa fílmica de La teta asustada, e
no e-book Encontro de Memórias, com o título de O “leite do medo” e as
memórias tóxicas na narrativa fílmica de La teta asustada.

2 A origem desse termo é apresentada por Luciana Ballestrin, no texto


América latina e o giro decolonial, onde ela historiciza o conceito, a partir
de autores como Quijano e Mignolo, como algo que sintetiza a permanên-
cia da colonialidade em diferentes níveis da vida pessoal e coletiva e com
dimensões imperialistas relacionadas ao ser, saber e poder, uma crítica
a uma situação que não foi completamente superada e que continua a
gerar formas de subordinação. De acordo com Balestrin (2013: 108), “a
supressão da letra “s” marcaria a distinção entre o projeto decolonial do
Grupo Modernidade/Colonialidade e a ideia histórica de descolonização,
via libertação nacional durante a Guerra Fria”.
191
lo (2014), a partir de Quijano, define a matriz colonial do poder

descolonizar: a prática e o sexo


em quatro níveis inter-relacionados de controle: o controle da
economia (com a apropriação de terras e recursos naturais,
por exemplo); o controle da autoridade (como foram as rela-
ções entre metrópole e colônia ou os regimes ditatoriais); o
controle do gênero e da sexualidade (através da criação do
modelo cristão de família, da heterossexualidade como nor-
ma, entre outras imposições); e o controle do conhecimento
e da subjetividade (por meio do eurocentramento do ensino e
dos currículos educacionais, etc).
Para responder ao questionamento do título deste capí-
tulo, selecionei os seguintes filmes que remetem aos aspec-
tos da colonialidade do poder, do saber e do ser, sendo eles:
o brasileiro Quanto vale ou é por quilo? (2005), o peruano La
teta asustada (2009) e o colombiano El vuelco del cangrejo
(2009). Estas produções cinematográficas trazem temáticas
que dialogam com os efeitos da herança colonial sobre os
corpos, a corporificação do sofrimento, e também o seu uso
como meio de resistência.
Os títulos dos três filmes evocam o passado traumáti-
co da violência e da exploração humana e o seu reverberar
pelas gerações seguintes. Quanto Vale ou é Por Quilo? ex-
plicita de forma crua o tratamento dado aos escravos: como
mercadorias, mão de obra descartável e objeto no qual os
donos podiam descarregar a sua ira. Contudo, o cunho mer-
cantil do título não é uma referência apenas ao comércio de
escravos, no passado, ou à criação de um aparato merca-
dológico a partir da miséria contemporânea, mas também à
negociação de princípios, ética, honestidade, em uma socie-
dade de favores onde uma boa ação pode ser apenas um
investimento para obter maior ganho futuro. Nessa perspec-
tiva, as relações sociais são regidas, em última instância,
pelos interesses econômicos.
La teta asustada indica já no título o medo – que se ma-
nifestou através dos fluidos corporais –, fruto de um período
sombrio do passado peruano em que muitas mulheres sofre-
192
ram abusos sexuais tanto por parte dos guerrilheiros quanto
pelos soldados do exército, principalmente na zona rural, du-
rante o enfrentamento entre o Estado e o grupo de guerrilha
Sendero Luminoso. Essa situação fez surgir a crença indíge-
na segundo a qual as crianças nascidas de mulheres vítimas
de violência sexual adquiriam, através do leite materno, um
mal a que chamavam de “la teta asustada”. Tal moléstia era
caracterizada, de acordo com o mito indígena, pelo medo,
pela reclusão e pela ausência da alma que, em função do
trauma sofrido, teria se escondido sob a terra.
El vuelco del cangrejo, que numa tradução próxima ao
português seria “a virada do caranguejo”, tem relação direta
com uma estratégia utilizada por uma das personagens para
apanhar caranguejos. Em uma das cenas ela revela que uma
das formas de se imobilizar o crustáceo é virando-o com o
descolonizar: a prática e o sexo

dorso para baixo. No entanto, no momento seguinte, vem


uma onda e tira o animal daquela condição. Esse desenca-
dear de ações é simbólico para mostrar que mesmo em uma
situação aparentemente sem saída é possível provocar uma
reviravolta em um destino que se mostrava inexorável.
Também os cartazes de divulgação dos filmes e a capa
para distribuição em formato de DVD são bastante significati-
vos e merecem análise.

193
Imagem 1 – Cartaz de divulgação do filme.

descolonizar: a prática e o sexo

194
Imagem 2 – Capa do DVD do filme.
descolonizar: a prática e o sexo

195
As duas imagens referem-se a cenas de Quanto vale ou

descolonizar: a prática e o sexo


é por quilo? Na da esquerda, vemos alguns dos castigos que
eram infligidos aos negros que se rebelavam contra o regime
da escravidão, ou ousavam fugir dele, como a máscara de fo-
lha de flandres, o ferro ao pescoço e o tronco. No desenrolar
dessa cena, durante o filme, uma releitura do trecho do conto
de Machado de Assis, Pai contra Mãe (1906), contextualiza o
uso desses castigos, por uma voz over3:

A máscara de folha de flandres é um instrumento de ferro,


fechada atrás da cabeça por um cadeado, na frente tem
vários buracos para ver e respirar. Por tapar a boca, a más-
cara faz com que os escravos percam o vício pelo álcool;
sem o vício de beber, os escravos não têm a tentação para
furtar. Dessa forma, ficam extintos dois pecados. A sobrie-
dade e a honestidade estão assim garantidas. O tronco
é indicado contra a fuga de escravos reincidentes. Para
colocar o escravo no tronco abre-se suas duas metades,
colocando nos buracos o pescoço e os pulsos. O tronco
estimula o espírito de humildade e subserviência, forçando
a imobilidade e impedindo o escravo de defender-se de
moscas ou mesmo de satisfazer suas necessidades fisio-
lógicas (Quanto Vale ou é por quilo?, 2009, 5’16’’).

No mais refinado estilo sarcástico machadiano, o nar-


rador anuncia com placidez algumas das mais humilhantes
aparelhagens criadas para punir os escravos, para lançá-los
à categoria de sub-humanos, findando, assim, com qualquer
possibilidade de autoestima que pudessem vir a ter.
Na imagem da direita aparece outra cena presente no
filme, na voz de uma narradora em off: “Doar é um instrumen-
to de poder. A superexposição de seres humanos em degra-
dantes condições de vida faz extravasar sentimentos e emo-
ções. Sente-se nojo, espanto, piedade, carinho, felicidade e,
por fim, alívio. E ainda faz uma boa dieta na consciência”. Tal

3 A voz over é muito presente no documentarismo clássico e também no


Cinema Novo, sendo aquela voz que parece acima de tudo e todos nar-
rando ou comentando acontecimentos mostrados na tela.
196
preocupação em aliviar a consciência com os atos de cari-
dade tem uma estreita relação com o sentimento cristão de
culpa, profundamente enraizado na sociedade brasileira, e o
interesse em praticar o bem para expiar os pecados ou alcan-
çar a salvação da alma.
Dirigido por Sérgio Bianchi, Quanto vale ou é por quilo?
apresenta uma crítica social contundente, apontando como
as mazelas da população mais pobre são exploradas pelo
marketing social. O filme mostra que por trás de ações supos-
tamente caridosas há lavagem de dinheiro, superfaturamento
na compra de equipamentos, e como às classes dominantes
interessa a manutenção da pobreza e a permanência da mi-
séria, apesar de seu discurso assistencialista. Essa elite, que
quer se fazer de altruísta, usa dessas práticas para se bene-
ficiar de diferentes formas, e conseguir desconto no imposto
descolonizar: a prática e o sexo

de renda é só a mais básica delas.


Com sarcasmo, o filme fala das vultosas quantias movi-
mentadas pelas entidades assistenciais e ONG’s que, ironica-
mente, investem grande parte dos valores não nas pessoas
carentes, mas em sua própria promoção e manutenção: esta-
dia em hotéis, aluguel das propriedades, gasto com funcioná-
rios, viagens de avião, publicidade, taxas governamentais...
Ao fim, pouco ou nada sobra para investir na suposta finalida-
de de sua criação.
Essas ações utilizam do discurso da solidariedade para
amainar os conflitos de classe, isentar o Estado da sua res-
ponsabilidade e fortalecer a elite econômica, maquiando resí-
duos do capitalismo como a concentração de renda, a preca-
rização das relações de trabalho e a marginalização de uma
larga camada social que passa a viver de migalhas. O objetivo
é instrumentalizar essas instituições e converter a matéria-pri-
ma de miseráveis em lucro, pois como cinicamente afirma, no
filme, o personagem diretor da ONG Stiner Empreendimentos
Assistenciais, “quem financia a solidariedade está preocupa-
do com retorno”, e, já que “hoje a classe média também quer
ter o luxo de ter princípios, daí esse surto de ações sociais”.
197
E para as empresas esse é um nicho gerador de lucros, visto

descolonizar: a prática e o sexo


que seu seleto público aceita pagar mais caro para consumir
de uma empresa “socialmente responsável”.
O filme ressalta ainda que o profundo abismo social en-
tre a casa grande e a senzala não findou com a abolição da
escravatura, e se perpetua nas precárias condições em que
vive hoje a população pobre, em grande parte negra, no Bra-
sil, sujeita à violência provocada pela ausência de políticas
públicas efetivas, e à violência provocada pela coação que
o aparato militar estatal promove. Esse arranjo de forças faz
com que o poder continue na mão das oligarquias e haja uma
dupla capitalização da miséria.
As tomadas de cena em Quanto vale ou é por quilo?
vão de representações do período escravocrata brasileiro
até situações contemporâneas, correlacionando a condição
dos escravos à das pessoas em vulnerabilidade social. O lon-
ga-metragem dialoga com documentos reais do Arquivo Na-
cional do Rio de Janeiro e com o conto Pai contra Mãe, de
Machado de Assis, para problematizar a hipocrisia e as con-
tradições presentes nos discursos sobre a escravidão e seus
resquícios até os dias de hoje.
Assim como o filme de Bianchi, Cláudia Llosa também
buscou em referências históricas a inspiração para o argu-
mento de La teta asustada, que originou-se do seu contato
com o trabalho da antropóloga norte-americana Kimberly
Theidon, Entre prójimos4, um livro com diversos relatos de
mulheres que sofreram violações na época do conflito no
Peru, denominado de terrorismo, e que geraram filhas e filhos
com um suposto mal ligado ao medo e à solidão.
A narrativa fílmica traz a história de Fausta e sua mãe,
Perpetua - personagem inspirada nos depoimentos coletados

4 O título do livro remete para o absurdo que foi o conflito interno no Peru,
onde os assassinatos começaram a ocorrer “entre próximos”, entre vizi-
nhos, entre amigos. A temática discutida nesse livro se desdobrou na pes-
quisa desenvolvida por Kimberly Theidon, pela Universidade de Harvard,
intitulada La teta asustada: una teoria sobre la violencia de la memoria.
198
por Theidon -, que foi estuprada durante os conflitos protago-
nizados pelo governo peruano e o grupo de guerrilha Sendero
Luminoso5 nos anos 1980, onde grande parte da população
sofreu com os embates entre a resistência armada e as forças
militares do Estado.
As “memórias tóxicas” e a incapacidade de alimentar
a vida que geraram fez com que essas mulheres se consti-
tuíssem em uma corporificação histórica do sofrimento, como
afirma Theidon:

Quando me lembro das muitas mulheres que temiam


dar de mamar a seus bebês e lhes passar seu “leite de
pena e preocupação” — me parece que nos oferecem um
exemplo eloquente de como as memórias dolorosas se
acumulam no corpo e como alguém pode literalmente so-
frer os sintomas da história. Reitero que as memórias não
descolonizar: a prática e o sexo

apenas se sedimentam nos edifícios, na paisagem ou em


outros símbolos desenhados para propiciar a recordação.
As memórias também se sedimentam em nossos corpos,
convertendo-os em processos e lugares históricos. (THEI-
DON, 2009: 5, apud SELEM).

Fausta, afetada indiretamente pela referida violência,


percebe o mundo de forma hostil, especialmente a figura
masculina, em função do medo que lhe foi imputado pelas
lembranças transmitidas pela mãe. E foi justamente por temer
ser estuprada que a moça introduziu na vagina uma batata
5 Apesar de ter conquistado grande apoio popular utilizando estratégias
de integração ao universo camponês, os senderistas quiseram abolir de
forma autoritária muitos dos costumes dos habitantes locais (como as
feiras semanais), e isso foi recebido como uma afronta. Além disso, os
guerrilheiros criaram códigos de conduta próprios e passaram a perseguir
qualquer pessoa que se opusesse aos seus comandos, resultando em
massacres e na violência brutal que atingiu essa população. A Comissão
da Verdade e Reconciliação peruana constatou que o Sendero Luminoso
foi responsável por 54% das vítimas fatais durante o período conflituoso
(THEIDON, 2004). O grupo atuou no país até os anos 2000, quando foi
definitivamente sufocado pelo governo; possuía orientação maoísta e de-
fendia o uso da violência e a luta armada para se alcançar uma sociedade
livre das mazelas provocadas pelo imperialismo e pelo capitalismo.
199
que, no decorrer do tempo, começa a germinar e lhe causar

descolonizar: a prática e o sexo


dores e inflamações no útero - fato que só é revelado à famí-
lia quando ela é levada às pressas para o hospital depois de
sofrer um desmaio e ter sangramentos no nariz.
A batata, destaque já no cartaz de divulgação do filme,
possui nessa história múltiplos sentidos. Originária do Peru e
símbolo de prosperidade, ela foi um dos principais alimentos
das populações andinas desde a civilização Inca, tendo sido
não só levada para a Europa e incorporada à sua dieta, mas
também apropriada pela cultura colonizadora promovendo um
apagamento da memória de sua origem, tanto que muitos a
denominam de “batata inglesa”, em um paradoxo lamentável.

Imagem 3 – Cartaz de divulgação do filme La teta asustada


(2009)

200
Para Fausta, o tubérculo representa proteção, como ela
mesma expressa, diante da incompreensão familiar do seu
gesto, na frase: “O tio não me entende, mamãe; eu levo isto
como proteção. Eu vi tudo de seu ventre; o que lhe fizeram,
senti sua aflição. Por isso levo isto, como um escudo de guer-
ra, como um tampão. Porque só o asco detém os asquerosos”.
Na imagem que ilustra o cartaz do longa-metragem, Fausta
está imersa até os ombros entre as batatas que transmitem
a sensação de defesa, mas também de sufocamento, como
se fossem tragá-la para o seu interior. Esse vegetal assume,
assim, na narrativa, a conotação de extraordinário, como se
fosse ele próprio também uma personagem, embora seja, ao
mesmo tempo, algo incorporado ao cotidiano de Fausta como
parte de seus cuidados genitais, tanto que ela se põe a podar
os brotos que despontam para fora da vagina como uma tare-
descolonizar: a prática e o sexo

fa rotineira. De acordo com Claudia Llosa, a batata

tem toda uma simbologia que a relaciona com as raízes,


que luta por não perecer, por se manter viva, creio que a
batata significa isso, porém ao mesmo tempo é um estor-
vo, esse passado que não passa, que não nos permite
avançar, que não nos permite evoluir, e acredito que isso
é a paródia da história, que somos o que somos porque
temos a história em nossas entranhas, que a história e
seus conflitos precisam renovar-se senão não nos deixam
avançar livremente, não nos deixam revolucionar (Visio-
nes femeninas: Claudia Llosa y la representación de la
mujer en el cine”. Entrevista em CAMON, Caja Mediterá-
neo, apud Selem).

A diretora afirma, ainda, que ao inserir no roteiro o


detalhe da batata, denominada coloquialmente no Peru de
papa, atentou-se para o jogo de sentidos da palavra que, ao
mesmo tempo em que refere-se a uma semente, é também
uma gíria peruana para designar as partes íntimas de uma
mulher (EL PAÍS, 2009)6.

6 Ver: https://elpais.com/diario/2009/02/13 cine/1234479603_850215.html.


201
Passando agora para a análise de El Vuelco del Cangre-

descolonizar: a prática e o sexo


jo, acompanhamos a história de La Barra, uma isolada comu-
nidade afrodescendente do Pacífico colombiano que se en-
contra em conflito com a chegada da ‘modernidade’. Em sua
vila de pescadores, a recém-instalada luz elétrica, aos pou-
cos, começa a trazer transformações ao local, o que ameaça
a manutenção da cultura, dos costumes e do ritmo de vida de
seus habitantes.
O cartaz de divulgação deste longa-metragem contém
alguns elementos bem simbólicos da narrativa. Em primeiro
plano está o protagonista da trama, apelidado de Cérebro pela
comunidade local, um pescador que tenta resistir aos efeitos
da modernização econômica e de costumes que ameaçam
desagregar e afetar o funcionamento orgânico do lugarejo;
em segundo plano aparece uma fogueira, que no desenrolar
das cenas notamos ser formada pelo lixo do progresso, os
restos do consumo que foi descartado e trazido pelo mar, ou
pelos próprios habitantes que, sem um local apropriado, se
livram do lixo à beira da praia; e em último plano o misterioso
personagem Daniel, que podemos interpretar como personi-
ficação da condição em que se encontra a América Latina:
à deriva, em busca de um caminho que não sabe bem qual
será, muitas vezes dormindo profundamente, alheio ao que
acontece em volta.

202
Imagem 4 – Cartaz de divulgação do filme El vuelco del can-
grejo (2009)
descolonizar: a prática e o sexo

Da mesma forma que os filmes anteriores, este também


buscou inspiração em uma situação real. O diretor, Oscar
Ruiz Navia, em entrevista (2010)7, afirma que havia visitado
o local onde se desenrola a história e, retornando algum tem-
po depois, deparou-se com um avanço da modernidade que
passou a ameaçar as tradições da comunidade quilombola.
Neste filme, vários personagens emblemáticos são
apresentados ao público. ‘Cérebro’ é uma liderança na comu-
nidade. Além de pescador, presta serviços de hospedagem
7 Disponível em: http://tierraentrance.miradas.net/2010/10/entrevistas/en-
trevista-a-oscar-ruiz-navia-director-de-el-vuelco-del-cangrejo.html.
203
e de guia para os poucos turistas que por ali se aventuram.

descolonizar: a prática e o sexo


Com o passar dos tempos, começou a perceber as mudanças
que o progresso vem trazendo. A escassez de peixes, motiva-
da pela pesca predatória praticada por forasteiros, dificulta a
subsistência e o sustento de muitos na ilha.
Com a luz elétrica, chega também à vila ‘El paisa’8, que
adquiriu um pedaço de terra na praia e construiu seu quios-
que. Branco, de cabelos e olhos claros, ele pretende ampliar
seus negócios no vilarejo, instalando ali um resort, com ampla
hospedagem, uma boate e piscina. No filme, essa persona-
gem não é chamada dentro da comunidade por um nome pró-
prio, pois ali ele é mais que uma presença singular, ele repre-
senta uma identidade, e uma identidade que se contrapõe à
dos moradores e que remete ao elemento colonizador. Para a
antropóloga colombiana Mara Vigoya (2018: 142), essa iden-
tidade regional paisa “é, mais que política, histórica e se dife-
rencia daquela de outras regiões do país [...] (por) uma maior
porcentagem de população fenotipicamente branca, mas não
necessariamente abastada, e, ao mesmo tempo, uma nega-
ção do Negro e do Índio como parte dessa identidade”.
‘El paisa’ também é comerciante de alimentos. Proprietá-
rio de um barco a motor - diferentemente da maioria dos negros
da comunidade, com suas canoas movidas a remo -, ele con-
segue acessar longas distâncias mar adentro, e por isso tem
condições de pescar maiores quantidades de peixes. Assim,
aos poucos, passa a exercer certa influência sobre o restan-
8 “Esse termo é usado para referir-se às pessoas que residem em uma
determinada região da Colômbia. Na Colômbia, falar da cultura Paisa é
falar de um território não instituído administrativamente, mas formado e
forjado culturalmente. No começo do século XX, uma separação admi-
nistrativa terminou por dividir a região Paisa entre, por um lado, os de-
partamentos de Antioquia, Caldas, Quindio e Risaralda e, por outro lado,
o norte do Vale do Cauca e do noroeste de Tolima, região formada por
montanhas e atravessada pelas cordilheiras andinas. Não por acaso, a
chamada capital Paisa, Medellin, com seus mais de três milhões de habi-
tantes, é conhecida como a capital da montanha”. Disponível em: https://
www.slowfoodbrasil.com/textos/alimentacao-e-cultura/282-regiao-paisa-
-alimentacao-e-cultura-nas-montanhas-da-colombia.
204
te da população. Agora, com a eletricidade, o potente som do
quiosque El Paraíso, de propriedade de ‘El paisa’, tira o sos-
sego dos mais velhos e apresenta aos mais jovens uma outra
cultura, uma cultura massificada, com ritmos e músicas comer-
ciais - os ‘hits’ do momento, algo bem diferente dos cantos e
ritmos ancestrais ainda preservados na comunidade. Inclusive,
são os jovens os que mais se veem seduzidos pelo ‘progresso’
trazido por ‘El paisa’: além do ritmo reggaeton, há também o
álcool, os cigarros industrializados, a TV e o desejo de viver no
ambiente urbano. O jornalista Pedro Zuluaga comenta que

El vuelco del cangrejo se ubica en La Barra, una pequeña


comunidad del Pacífico colombiano, con una población
marcadamente afrodescendiente, dividida en su interior
por la presencia de un colonizador blanco que ha llegado
al lugar con la intención de construir un hotel y explotar los
descolonizar: a prática e o sexo

recursos naturales en contravía de las tradiciones defendi-


das por los viejos de la comunidad. Pero el conflicto en La
Barra no procede solamente del exterior; su propia cohe-
sión social está amenazada por los cantos de sirena de la
modernidad que seducen a los más jóvenes. La ciudad y
sus costumbres, con su promesa de un flujo permanente
de emociones, se enfrentan en la ilusión de los muchachos
con la inmovilidad de la tradición (ZULUAGA, 2013: 116).

O filme traz à tona tanto o avanço voraz dos efeitos do


capitalismo com seus artifícios de sedução, através do con-
sumo e da criação de fronteiras segregacionais, quanto o
movimento de resistência. A perspectiva de progresso e de-
senvolvimento mostrada no filme, pautada por uma visão et-
nocêntrica, desde o início já se afigura desfavorável e “muy
perjudicial para comunidades con ambientes culturales diver-
sos a los focos del ‘progreso’, convirtiéndose entonces en un
discurso de dominación, confusión e inferiorización del ‘otro’
que es asumido como distinto” (DOLLARS, 2016).
A flexibilização econômica e cultural das fronteiras ope-
rada pela globalização erigiu e reforçou várias outras, de ca-
ráter imaginário e simbólico, baseadas na pigmentação da
205
pele, na posição socioeconômica, no idioma falado, na reli-

descolonizar: a prática e o sexo


gião professada, nos valores e costumes, de modo a refor-
çar ainda mais as desigualdades que polarizam o centro e a
periferia (GONZÁLES, 2004). E é esse paradigma fronteiriço
que aparece no filme, mostrando como tal fenômeno atua na
desterritorialização da existência humana.
‘El paisa’, como já dito, se estabelece na comunidade
causando forte incômodo com a inserção de elementos que
entram em choque com a cultura local. Ele tenta também se
apropriar de uma parte da faixa de areia criando uma cerca
com estacas de madeira – algo que reproduz a mesma prá-
tica imperialista com a chegada dos invasores na América –
para estabelecer fronteiras e limites que o distanciem do que
considera gente inferior. A tensão trazida à vila com a che-
gada desse branco ‘El paisa’ remonta à história da América
Latina, colonizada pelos europeus e que viu seus costumes e
tradições sendo substituídos, de forma, na maioria dos casos,
violenta, em nome dos interesses de seus invasores.
É nesse cenário conflituoso que chega à comunidade o
forasteiro Daniel, em busca de um barco a motor que pudesse
levá-lo para fora do país. Seguindo a indicação de amigos,
procura pelo auxílio de Cérebro. Este informa a Daniel que
não há barcos a motor na comunidade naquele momento, já
que, com a escassez de peixes, os pescadores ficam no mar
por muitos dias. Impedido de deixar a comunidade por conta
desse fato, resta ao personagem esperar por seu meio de
transporte, sem saber ao certo quando poderá partir. Não sa-
bemos de onde vem Daniel; muito menos, para onde vai. O
que há de certo é que ele aguarda com ansiedade pela par-
tida. Enquanto esta não se concretiza, o personagem divide
sua atenção entre a menina Lucía e a bela mulher Jazmin,
sobrinha de Cérebro. Lucía, que segue cada passo de Daniel
tentando assegurar-se de que ele comprará as refeições da
mãe dela, aos poucos acaba se transformando em sua amiga.
Jazmin, mulher negra, é uma personagem que complexi-
fica a trama. Ela mantém relações sexuais com o tio, Cérebro,
206
o forasteiro Paisa e o viajante Daniel. Jazmin utiliza da sedução
como uma estratégia de gênero, pois para sobreviver em um
jogo de poder dentro desse ambiente patriarcal cada um utiliza
as armas que possui, e no seu caso sua arma é o próprio cor-
po. Ela vive relações norteadas pela lógica da troca, onde o que
tem para oferecer é o sexo, o que não deixa de se configurar na
exploração do corpo feminino, já que é um poder exercido por
alguém que detém recursos financeiros contra alguém que não
os detém. Jazmin é a representação das muitas mulheres que,
assim como a índia Catalina (na Colômbia) e La Malinche (no
México), diante da ocupação europeia, se utilizaram do corpo,
da sedução e do sexo para garantir a própria sobrevivência e a
concretização de seus interesses.

Las transacciones culturales y económicas que se ven en


la película ocurren en distintos niveles: entre la música al-
descolonizar: a prática e o sexo

tisonante de los bafles y los cantos tradicionales, entre la


inocencia infantil y el cuerpo consciente del sexo, entre lo
individual y lo comunitario. Una mujer ejerce de vínculo
entre lo blanco y lo negro a través de su cuerpo (con alu-
siones a las historias fundacionales de la Malinche o la
india Catalina). Los territorios en disputa pasan por el sexo
pero van más allá; lo que está en juego es una forma de
vida. “Yo no soy su negro”, le dice Cerebro, el líder de La
Barra, a El Paisa (ZULUAGA, 2010, s/p).

Essas duas mulheres mencionadas no trecho acima, e


associadas à personagem Jazmin, são figuras históricas que
tiveram um papel fundamental na colonização europeia dos
seus respectivos países. A índia Catalina, raptada ainda bem
jovem, sofreu uma aculturação adotando as crenças religiosas,
hábitos e costumes espanhóis. Ela casou-se com seu raptor e
colonizador, Diego de Nicuesa, e ao retornar para sua comuni-
dade, localizada na região hoje conhecida como Cartágena das
Índias, foi uma intermediária decisiva para que a colonização
desse local fosse bem-sucedida. Como intérprete, ela logrou a
pacificação de diversas tribos indígenas e tornou-se uma das
personagens mais conhecidas da história da Colômbia.
207
Para garantir a própria sobrevivência, essas mulheres de-

descolonizar: a prática e o sexo


sempenharam múltiplas funções durante o processo coloniza-
dor, tentando deixá-lo menos penoso para si. Mas ao mesmo
tempo em que foram fundadoras de uma fusão étnica, podem
ser interpretadas como traidoras do seu povo. Jazmin faz uso
de estratégias semelhantes. Ela se interessa pelo forasteiro Da-
niel, mas também se relaciona com El paisa, e usa da própria
beleza e sensualidade para obter, dos homens que a rodeiam
– inclusive de seu tio, Cérebro - benefícios para si. A dança
também é um recurso utilizado pela personagem. Jazmin en-
sina alguns passos, de forma sensual, para El paisa, em um
cômodo abarrotado de peixes. Ela sabe que essa é uma es-
tratégia para conseguir o alimento que precisa e não hesita em
utilizá-la. Jazmin representa uma fusão de sentidos atribuídos
na Colômbia (e em outros países, como o Brasil) às pessoas
negras, pois “a partir da capital do país, que se autorrepresenta
como branco-mestiça, o mundo negro é percebido de forma
ambivalente: primitivo, subdesenvolvido, inclusive moralmente
inferior, mas também poderoso e superior no âmbito da dança,
da música e das artes amorosas” (VIGOYA, 2018: 110).
Nos três filmes é perceptível a influência do neorrealis-
mo italiano, com temas ligados ao cotidiano e aos problemas
e conflitos sociais enfrentados pela população, a constante
presença de atores não profissionais e a escolha de locações
reais para a gravação das cenas. É muito forte também a li-
gação das personagens com suas raízes ancestrais através
dos cantos, da ratificação das suas crenças e da luta pela
manutenção da memória.
Em La teta asustada essa preocupação com a memória
e com os laços ancestrais é bastante evidenciada. Os diálogos
entre Fausta e a mãe, que morre logo no início da trama, acon-
tecem através de melodias inventadas pelas duas e cantadas
na língua quéchua9, contando partes da triste história da vida
de ambas. Essa comunicação cantada foi provavelmente inspi-
9 O quéchua é uma língua indígena oriunda do Império Inca e reconhe-
cida oficialmente como idioma peruano. É falada também por grupos ét-
208
rada na informação que Theidon traz em seu livro sobre o qa-
rawi, uma forma de expressão poética e musical muito utilizada
pelas viúvas dos povos nativos para externar as intimidades
da alma, as memórias passadas que não querem esquecer, o
lamento pelos mortos e durante os ritos sagrados.
É por meio de uma canção, por exemplo, que tomamos
conhecimento, na introspectiva cena inicial, de como se deu
a violência sofrida por Perpetua que, além de estuprada, foi
obrigada a tragar o pênis sujo de pólvora arrancado de seu
marido Josefo. Essa cena tem início com um canto triste, um
lamento em forma de canção e a tela escura. Perpetua, de
olhos cerrados, narra sua dor. Os vincos do seu rosto encon-
tram eco no craquelado da cabeceira da cama. A atmosfera
do quarto guarda o desamparo e a cumplicidade de duas mu-
lheres, mãe e filha, marcadas pelo fenômeno da “teta assus-
descolonizar: a prática e o sexo

tada”. Sempre que narra essa experiência passada, a matriar-


ca reconstrói as imagens de sua dor, como ressalta a própria
Fausta: “Cada vez que se lembra, quando chora, mãe, suja
sua cama com lágrimas de pena e de suor”.
Nota-se, a partir dessa situação, que a dor dessas mulhe-
res, mesmo sendo particular, se tornou um trauma instaurado na
memória coletiva nacional, tanto que fez surgir uma explicação
transcendental para um mal-estar generalizado que foi repas-
sado de mães para filhas/os, reiterando o que Maurice Halbwa-
chs (1990: 49) defende quando diz que “os acontecimentos de
nossa vida que estão sempre mais presentes são também os
mais gravados na memória dos grupos mais chegados a nós”,
por isso “cada memória individual é um ponto de vista sobre
a memória coletiva, que este ponto de vista muda conforme o
lugar que ali eu ocupo, e que este lugar mesmo muda segundo
as relações que mantenho com outros meios.” (HALBWACHS,
1990: 51). O mesmo movimento dá-se com Fausta, que toma
como sua uma memória que pertence à mãe quando afirma ter
visto todo o suplício de Perpetua de dentro do ventre materno.
nicos do Equador, Bolívia, Chile, Colômbia, e em menor escala também
na Argentina.
209
O relato da genitora serve não só como um alerta para

descolonizar: a prática e o sexo


a filha, para que o mesmo não lhe aconteça, como é também
uma necessidade de que a experiência dolorosa por ela vivida
não caia no esquecimento, já que permaneceu impune, como
se percebe na fronha do travesseiro em que está apoiada. A
imagem é emblemática tanto pelo apelo que traz no bordado:
“no me olvides” (“não me esqueça”) quanto pelo fato de ser o
local onde se repousa a cabeça e metaforicamente também
as lembranças.

Imagem 5 - Leito de Perpetua. Cena do filme La teta asustada


(2009). Captura de tela.

Essa luta contra o esquecimento, que Perpetua teme


ocorrer com o fim iminente da sua vida, é reiterada em sua
fala, quando Fausta tenta convencê-la a se alimentar: “Co-
merei se cantar para mim, e regar esta memória que se seca.
Não vejo minhas lembranças, é como se já não vivesse”.
Percebe-se aqui o que argumenta Michel Pollak (1989: 5) a
respeito do processo de resistência operado pela memória
de uma sociedade civil que, impotente diante do silêncio im-
posto a algum acontecimento traumático do passado, “trans-
mite cuidadosamente as lembranças dissidentes nas redes
210
familiares e de amizades, esperando a hora da verdade e da
redistribuição das cartas políticas e ideológicas”.
Existe nessa transmissão de lembranças entre Perpetua
e Fausta, além da marca do gênero - já que são duas mulheres
atormentadas pelo medo de um crime que atinge sobretudo o
feminino -, o peso da relação geracional, de mãe e filha. Essa si-
tuação vai ao encontro da assertiva de Alejandra Oberti ao lem-
brar que “los lazos que unen la sucesión de generaciones son
el vehículo de transmisión de historias, tradiciones e creencias,
así como también el lugar donde se producen identificaciones
y se crean identidades” (OBERTI, 2006: 73). À Perpetua, cujo
sugestivo nome remete para a sua ação de não deixar perecer
o triste passado vivido por ela e tantas outras mulheres, cabe
essa transmissão de lembranças, pois “a memória das mulhe-
res é verbo, ela está ligada à oralidade das sociedades tradicio-
descolonizar: a prática e o sexo

nais que lhe confiavam a missão de contadora da comunidade


da aldeia” (PERROT, 2005: 40).
A forte ligação entre mãe e filha faz com que esta não
rompa o elo nem após a morte da mãe. E a determinação de
sepultá-la na terra natal leva ao desenrolar da trama. Com o fir-
me propósito de cumprir o que considera ser um último desejo
de Perpetua, além de ser também um aspecto importante no
rito fúnebre dessa cultura sepultar os mortos no local em que
nasceram, Fausta, juntamente com outras mulheres da comu-
nidade em que vive, embalsama o corpo da mãe e o guarda de-
baixo da própria cama, enquanto vai em busca de um emprego
que lhe permita garantir o valor necessário para o enterro.
A respeito dessa cena em que Perpetua é embalsamada,
Maria Célia Orlato Selem (2013: 223) assinala que esse mo-
mento de sociabilidade “traz à tona o papel das mulheres da
comunidade: o cuidado do corpo-memória”, já que no período
dos conflitos armados, as pessoas assassinadas precisavam
ter seus corpos conservados para servir como prova, diante
das autoridades, das atrocidades cometidas pelos militares e
pelos guerrilheiros. De forma análoga, “o corpo de Perpetua
perdura na narrativa, portanto, como o signo da memória que
211
é imobilizadora, mas que, pela força do acontecimento vivido,

descolonizar: a prática e o sexo


não pode ser apagada”.
A melancolia e o pavor que se abateram sobre uma
geração de crianças, fruto do terror, não eram provavelmen-
te transmitidos pelo leite (ou pelo menos não só por ele), e
sim, pelas lembranças de suas mães que, com o recurso
da emoção10, imprimiram na memória delas, ainda que de
forma involuntária, essa dor desde a infância. Mesmo co-
gitando a possibilidade de que esse leite materno fizesse
realmente mal aos bebês, já que os corpos produzem e ex-
cretam substâncias específicas quando estão submetidos a
situações de estresse ou perigo, teriam sido de toda forma
as emoções sentidas por essas mulheres as responsáveis
por manifestar, através do referido líquido, os sentimentos
de aflição, tristeza e desgosto percebidos nas suas crias.
Diante da impossibilidade de uma ação política efetiva,
que levasse à punição dos agressores, restou a essas mulhe-
res o uso de suas próprias emoções e lembranças como formas
de resistência, culminando na criação desse mito que passou a
ser um fenômeno estudado na antropologia, no cinema e tam-
bém na historiografia. Ou seja, essas mulheres encontraram
uma agência, uma maneira de subversão, para tornar público
um incômodo que estava antes somente na esfera privada. Ou-
tro aspecto determinante na narrativa de Perpetua é o fato de
ser ela uma pessoa idosa, estágio da vida em que ser humano
assume “uma função própria: a de lembrar. A de ser a memória
da família, do grupo, da instituição, da sociedade” (BOSI, 1994:
63). Por isso, “ao lembrar o passado ele/ [ela] não está des-
cansando, por um instante, das lides cotidianas, não está se
entregando fugitivamente às delícias do sonho: ele/ [ela] está

10 “Os estudos sobre emoções e afetos e sua influência na sociedade, na


cultura e na política têm emergido recentemente como um novo campo,
que para alguns constitui um giro afetivo ou giro emocional [...]. Trata-se
de focar o olhar nas emoções, afetos, sentimentos, como parte da expe-
riência humana, de procurar uma compreensão do social que inclua essa
dimensão nos estudos” (WOLFF, 2015: 977).
212
se ocupando consciente e atentamente do próprio passado, da
substância mesma da sua vida” (BOSI, 1994: 60).
Enquanto Perpetua insiste na manutenção da sua me-
mória, várias mulheres entrevistadas por Theidon (2004) acre-
ditavam não valer a pena remexer nos traumas do passado,
temendo, ao recordar o que lhes aconteceu, martirizar nova-
mente seu corpo. De acordo com a antropóloga, há nessas
comunidades uma “divisão do trabalho emocional” a partir do
gênero em que são as mulheres as responsáveis por incorpo-
rar a dor e o luto, especialmente em anos difíceis.
Por causa disso, criou-se no registro das histórias de
guerra uma heiroicização masculina e uma vitimização femi-
nina, apesar de elas terem participado das patrulhas campo-
nesas e, ainda, atuado em posições de comando no comba-
te à dominação senderista e também à violência militar. Nas
descolonizar: a prática e o sexo

próprias aldeias, há relatos de como as mulheres saíram em


defesa das suas comunidades, suas famílias e de si mes-
mas. Outra forma de atuação feminina nesse período foi a
submissão de seus corpos em troca da vida de entes queri-
dos, pois, não raro, pessoas dos povoados eram acusadas
de serem terroristas por membros do exército e, para serem
liberadas, era exigido em troca o sexo forçado com suas fi-
lhas, esposas, irmãs ou mães. Mesmo assim, elas acabaram
invisibilizadas no discurso oficial. Até na Comissão da Ver-
dade e Reconciliação essa dicotomia se fez presente, tanto
que nas audiências públicas nenhuma mulher testemunhou,
e quando chegaram a estar presentes, foram pejorativamen-
te chamadas de “choronas” (THEIDON, 2004).
No Brasil, há também uma forte tendência ao apaga-
mento da memória de eventos traumáticos e violentos como
a ditadura militar e o regime da escravidão. Ocorre que a ne-
gação dos malefícios desse passado leva à reiteração das
mesmas práticas. Tanto que continua a existir uma romantiza-
ção do período militar11 evocado, muitas vezes, como um mo-
11 O resultado disso é que a nossa já frágil democracia é constantemente
abalada por golpes de Estado, sendo o mais recente deles o de maio de
213
mento de bom funcionamento da máquina pública, da ordem

descolonizar: a prática e o sexo


social e de crescimento da economia.
No que se refere à escravidão, apesar do evidente ran-
ço escravocrata que se perpetua nas práticas cotidianas do
presente, a sociedade brasileira não foi capaz até hoje de
fazer uma reflexão apurada a respeito da ojeriza e do ódio
direcionados aos negros e aos pobres, pois não há interes-
se real em superar os seus efeitos, já que a manutenção da
pobreza, ancorada também no racismo, é um dos elemen-
tos que possibilita a continuidade da exploração e a distin-
ção de classe. Dessa forma, as classes populares só são
toleradas “para exercer os serviços mais penosos, sujos e
perigosos, a baixo preço, para o conforto e para o uso do
tempo poupado em atividades produtivas pela classe média
e alta” (SOUZA, 2017: 101).
De acordo com Jessé Souza, a escravidão é fundante
do modo de pensar e agir da sociedade brasileira, o que pro-
duz uma naturalização do sofrimento e da dor dos pobres.
Assim, a forma sub-humana com que eram tratados os es-
cravos é estendida a essa classe empobrecida, “uma classe
reduzida ao corpo, que representa o que há de mais baixo na
escala valorativa do Ocidente. Por conta disso, essa classe,

2016, fruto da aliança entre a elite, o judiciário e boa parte do legislativo,


com o apoio da fração majoritária da classe média brasileira e da impren-
sa hegemônica. É muito significativo o fato de este golpe ter sido aplicado
contra uma mulher, presidenta da república, retirada forçosamente de um
cargo e um espaço tradicionalmente localizado na esfera de poder mascu-
lina, e ainda aviltada durante processo de impeachment pela homenagem
de um parlamentar ao torturador que a violentou durante o período ditato-
rial. A tal menção honrosa ao torturador Carlos Brilhante Ustra, no vergo-
nhoso processo de impedimento da presidenta Dilma Rousseff, tem uma
conotação ainda mais profunda. É uma forma de imprimir na memória da
carne a marca da misoginia que impera no Brasil, criando um elo entre os
dois golpes de Estado para lembrar às mulheres o que pode lhes acon-
tecer caso insistam em romper os limites dos locais a que se destinam: o
lar e o cuidado com a família heteronormativa, monogâmica e patriarcal.
Esse episódio faz parte de uma insistente tentativa, perene na história, de
novamente encerrar as mulheres no espaço privado.
214
do mesmo modo que os escravos, é desumanizada e anima-
lizada” (SOUZA, 2017: 103).
Uma das respostas diretas a esse comportamento elitista
e segregador é a violência que, de vez em quando, volta para
os próprios perpetradores desse sistema, pois com um cenário
social tão hostil e adverso, os oprimidos não têm qualquer es-
perança de reverter a situação a seu favor, e aí enxergam como
saída apenas a revanche. No filme Quanto vale ou é por quilo?
isso se manifesta na fala do presidiário interpretado por Láza-
ro Ramos: “eu não acho certo a gente ficar vivendo sempre
assim sofrendo e parado, sem fazer nada. Acho que eles têm
que sofrer também para passar um pouco de opressão, para
ser mais justo”. Com esse raciocínio, ele planeja um sequestro
usando os mesmos parâmetros e a linguagem empresarial que
as ONG’s utilizam ao angariar auxílio financeiro para seus inte-
descolonizar: a prática e o sexo

resses. O personagem compara ainda a situação carcerária ao


transporte dos escravos para a América:

Esse é o nosso navio negreiro. Dizem que a viagem era


bem assim. Só que lá só durava dois meses, e o principal:
o navio ia terminar em algum lugar. Na escravidão a gente
era tudo máquina, tudo máquina. Aí eles pagavam com-
bustível e manutenção para que a gente tivesse saúde
para poder trabalhar de graça para eles. Agora não, agora
é diferente. Agora a gente é escravo sem dono. Cada um
aqui custa setecentos “paus” para o Estado, por mês, isso
é mais do que três salários mínimos. Isso diz alguma coisa
sobre esse país. O que vale é ter liberdade para consu-
mir. Essa é a verdadeira funcionalidade da democracia.
(Quanto Vale ou é por quilo?, 2005, 60’30’’)

A crítica é direcionada não somente a este sistema pri-


sional falido que não recupera os presos - porque na verdade
seu interesse não é inserir esses indivíduos novamente na
sociedade de forma digna, mas continuar marginalizando-os
-, é muito mais uma crítica a essa democracia capitalista onde
só têm respeito aquelas pessoas com condições financeiras
para consumir. E numa sociedade em que os cidadãos valem
215
o quanto consomem, quem não consegue ter acesso a esses

descolonizar: a prática e o sexo


bens pela via legal, o fará através do crime.
A narrativa fílmica ironiza também o fato de que o cres-
cimento da massa carcerária é um importante fator para o
aquecimento da economia nacional através da construção ci-
vil – com a criação de novos presídios -, e a movimentação
no comércio desencadeada pelos parentes dos presos que se
deslocam para visitá-los. A ampliação de vagas nas cadeias
é apregoada, ironicamente, como uma vantajosa medida de
investimento para geração de renda. Paradoxalmente, como
é evidenciado na fala do detento, também é alto o valor que o
Estado desembolsa na estadia de cada preso.
Como a tônica do filme é traçar um paralelo entre o pe-
ríodo do Brasil Império e o Brasil contemporâneo, várias per-
sonagens são fundidas, como na cena em que a escrava Ar-
minda aborta depois de ter sido caçada pelo capitão do mato,
figura que confunde-se com o matador de aluguel da atualida-
de, assassino de outra Arminda - professora na periferia, tam-
bém grávida e denunciante do esquema de corrupção dentro
da ONG que superfaturou os equipamentos de informática e
embolsou o dinheiro, entregando no lugar um monte de com-
putadores obsoletos.
Com isso, o filme une as duas pontas do funcionamen-
to predatório dessa lógica de mercado, onde pobres assas-
sinam outros pobres, e determina quem continuará na luta
pela sobrevivência da sua prole, pois é fato que “nem todas
as crianças vingam”, como bem lembra Machado de Assis, no
conto que inspirou o filme.

216
Imagem 6 - Cenas do filme Quanto Vale ou é Por Quilo?
(2005). Captura de tela.
descolonizar: a prática e o sexo

Os três filmes trazem para a linguagem contemporânea


as práticas de exploração e as subalternidades forjadas em
um contexto capitalista neoliberal que se assemelham muito
com as do passado escravocrata e colonizador. Em Quanto
vale ou é por quilo? aparece um costume muito comum que
é o de “adotar” meninas adolescentes, geralmente do interior,
com uma situação extremamente precária e fragilizada, para
217
os trabalhos domésticos em troca de casa e comida, eviden-

descolonizar: a prática e o sexo


ciando a reprodução dos antigos mecanismos de exploração
em diferentes escalas e níveis sociais.
Mônica, uma proletária também explorada na sua relação
de trabalho é a detentora dos serviços de Fátima, garota negra
e pobre e, para se livrar de uma tarefa que não queria realizar,
terceiriza o trabalho da moça para sua patroa, Noêmia, com as
seguintes recomendações: “e se eu te apresentar uma menina
prendada, limpinha, faz tudo. Não dá trabalho absolutamente
nenhum. Faz tudo, tudo da casa, de confiança, limpinha, não
come quase nada, a senhora fica satisfeita?”. Com essa oferta,
Mônica salda sua dívida com a patroa utilizando outra pessoa
como moeda de troca, como mercadoria. Ela enfatiza o aspecto
da limpeza como atributo indispensável nessa relação de traba-
lho, e ainda apresenta outra grande vantagem: a pouca despesa
que essa oportuna mão de obra pode oferecer, proporcionan-
do, assim, um maior lucro naquela negociata. Situação análo-
ga pode ser identificada em cenas do filme La teta asustada,
que aborda várias críticas sociais, e a mais explícita delas é a
exploração dos indígenas pelos descendentes europeus, mos-
trando como as marcas da colonização espanhola ainda estão
fortemente entranhadas na sociedade peruana, como acontece
ainda hoje também em outros países da América Latina.
Um dos momentos em que essa situação pode ser per-
cebida se dá na relação estabelecida entre Fausta e sua pa-
troa, Aída, uma mulher branca da elite que explora a mão de
obra da doméstica pagando um valor irrisório pelo serviço
prestado. Além disso, antes mesmo de ser contratada, Fausta
é inspecionada da mesma forma que se fazia com os negros
quando comercializados como escravos até o século XIX: tem
seus dentes avaliados, e orelhas, mãos e pescoço também
são examinados para averiguar sua limpeza.
Essa relação de exploração que atualmente se traduz
na forma de exíguos salários, moradias precárias, pouco ou
nenhum acesso à saúde e à educação remete ao que Aníbal
Quijano chama de “colonialidade do poder”, em que mesmo
218
com o fim do colonialismo permaneceram resquícios dessa
dominação, antes europeia e agora também estadunidense,
na América Latina. Para ele, “a estrutura de poder foi e ainda
segue estando organizada sobre e ao redor do eixo colonial”,
sendo que essa estrutura continua exercendo seu domínio
contra a democracia, a cidadania e o Estado-nação moderno,
atingindo de maneira cruel a população formada por indíge-
nas, negros e mestiços (QUIJANO, 2005: 136)
As referidas passagens dos filmes demonstram uma
persistente preocupação com a higiene de quem vai desem-
penhar as funções domésticas, e transmitem a ideia de que
a limpeza do corpo conduz a uma limpeza étnica, que capa-
cita o ser subalterno para exercer o cuidado com os afazeres
no lar do/a explorador/a, o que reforça a permanência das
matizes e dos estigmas do racismo nas nossas lides cotidia-
descolonizar: a prática e o sexo

nas. Depois de estabelecida a relação contratual, a patroa de


Fausta, que é pianista, se apropria também das canções da
doméstica em troca das contas de um colar de pérolas, que
vão sendo dadas às prestações, conforme as melodias são
ensinadas, em uma espécie de escambo contemporâneo.
Em outra cena, o piano aparece jogado no quintal depois
de ter sido arremessado através da janela pela encolerizada
Aída. Mesmo completamente despedaçado, o instrumento con-
tinua a emitir sons melódicos - um toque de realismo fantástico12,
produzindo a ideia de que também as opressões e subalternida-
des continuam a ecoar, desde o período da colonização até a
contemporaneidade, na vida das populações latino-americanas.

12 O realismo fantástico ou mágico é considerado uma corrente literária


latino-americana nascida nos anos em que predominaram na parte sul
do continente os governos ditatoriais. O conceito mistura as críticas so-
ciais da escola realista a elementos fantásticos ou irreais no cotidiano das
personagens. Esse modelo narrativo funciona como instrumento de con-
testação diante de uma miríade de situações opressoras que sufocam e
silenciam a população latina. Está presente em obras de escritores como
o peruano Mario Vargas Llosa, o colombiano Gabriel Garcia Márquez, os
argentinos Jorge Luis Borges e Julio Cortázar, o venezuelano Arturo Uslar
Pietri, o brasileiro Murilo Rubião, entre outros.
219
A violência contra os corpos das mulheres tem sido histó-

descolonizar: a prática e o sexo


rica na América Latina, assim como a sua luta pela soberania.
Quando se trata dos corpos de mulheres não brancas, essa vio-
lência é mais frequente e perversa. No período da escravidão,
por exemplo, além dos castigos físicos, as mulheres negras
estavam submetidas aos abusos sexuais de seus senhores
brancos e à fúria das esposas traídas que vingavam o adul-
tério dos maridos nos corpos dessas escravas com punições
extremamente cruéis. Havia também a conversão de muitas
escravas em meras reprodutoras para aumentar o contingente
numérico do seu senhor. E até hoje, elas carregam os estig-
mas dessa relação de dominação como a hipersexualização
dos seus corpos e a culpabilização das suas condutas, que se
refletem na maior incidência de estupro em mulheres negras, e
na sua maior presença na população carcerária.
As mulheres indígenas, assim como as negras, também
sofreram com a dominação dos invasores, além da hostilidade
dos próprios conterrâneos étnicos. Em La teta asustada, Clau-
dia Llosa problematiza algumas dessas formas de violência,
pois as mulheres violadas durante o conflito interno peruano
sofreram múltiplas formas de violência além da sexual, quan-
do passaram a carregar o estigma da vergonha, sendo alvo
de falatório dentro das suas comunidades; várias foram aban-
donadas pelos companheiros e tiveram que criar sozinhas os
filhos e filhas nascidos dessas agressões. A constituição de fa-
mílias matrilineares também é uma característica comum entre
as mulheres negras e essas indígenas que sofreram violência.
Os casos de estupro coletivo passaram a ser sistemáti-
cos durante o período de terror no Peru, criando uma espécie
de fraternidade letal entre os soldados, principais perpetrado-
res desse tipo de crime na época, que forjou laços de bruta-
lidade e banalizou a violência. Havia ainda a necessidade de
tornar mais explícitas as violações aplicadas por eles, por isso
as mulheres vítimas tinham seus cabelos cortados para que
não restasse, diante da comunidade, dúvida alguma do ato
cometido. Para Theidon (2004: 122), “el acto de violación fue
220
una manera de establecer jerarquías de poder entre los gru-
pos armados y la población, y también dentro de las fuerzas
armadas mismas. Fue común el forzar a los hombres de una
comunidad a observar mientras los soldados violaban a sus
esposas, hijas o hermanas”.
Esses crimes, como explicitam o filme de Llosa e o tra-
balho antropológico de Theidon, atingem principalmente mu-
lheres de etnias massacradas e de classes exploradas ao
longo da história latino-americana, e são resultantes do cruel
predomínio dos valores patriarcais e da misoginia. No caso
peruano, as maiores vítimas foram as indígenas residentes
no perímetro rural e que ainda aguardam por justiça e por
alguma reparação.
Esses casos de violência sexual, assim como em outros
países latino-americanos, principalmente nos períodos de di-
descolonizar: a prática e o sexo

tadura, só vieram a público depois que as mulheres sobrevi-


ventes decidiram revelar os suplícios que sofreram, por isso
é tão importante não deixar que essas histórias sejam silen-
ciadas ou esquecidas, mesmo porque a cultura do estupro
continua a ser um grave problema social e de gênero a ser
enfrentado em todo o continente americano.
Rita Laura Segato assinala que o estupro, como ato
de dominação física e moral do outro, tem como intenção
aniquilar a vontade da vítima, sendo alimentado por uma
necessidade dos agressores de reafirmarem a sua virilida-
de continuamente e assegurarem o controle desses corpos.
Por isso, muitas vítimas de violações, no caso do terrorismo
no Peru, ao contrário de seus companheiros, permaneceram
vivas como meio de reafirmar a marca do poder masculi-
no. Ao mesmo tempo, como também ocorreu com Perpetua,
aplica-se, além do abuso físico, também a tortura psicológi-
ca, pois “é por sua qualidade de violência expressiva mais
que instrumental – violência cuja finalidade é a expressão
do controle absoluto de uma vontade sobre a outra – que a
agressão mais próxima do estupro é a tortura, física ou mo-
ral” (SEGATO, 2005: 271).
221
A trajetória de Fausta, essa lúgubre figura que vive ator-

descolonizar: a prática e o sexo


mentada pelo espectro do estupro, representa o estigma que
passou a perseguir as pessoas nascidas das violações, e evi-
dencia o quanto esse crime é temido pelas mulheres, espe-
cialmente na América Latina, mas que é, ao mesmo tempo,
um problema social enfrentado em todo o mundo, conforme
dados da ONU, que apontam que a cada dez mulheres, pelo
menos uma já foi vítima de estupro até os vinte anos.

Considerações finais

Esses três filmes abordados aqui tocam em diversos


problemas estruturais que afligem a América Latina, questões
seculares herdadas do colonialismo, como a persistência das
violências incididas, sobretudo, sobre os corpos femininos, e
ao mesmo tempo, o esquecimento dessas marcas e a preva-
lência da impunidade.
Existe ainda uma relação de sincronia entre a culpabi-
lização que sofrem as etnias por sua condição subalterna,
frente ao processo da modernidade, e a violência que sofrem
as mulheres - seja doméstica ou sexual. Os dois processos
são construídos e legitimados socialmente, e repetidos à
exaustão por diversos mecanismos de convencimento como
os meios de comunicação, as instituições de ensino e dentro
das famílias, até que se tornam tão naturalizados que passam
a ser encarados como verdades pouco contestadas.
O tema da escravidão pontuado em Quanto vale ou é
por quilo?, através dos elos que ainda nos prendem a esse
passado, está mais atual do que nunca na realidade brasilei-
ra. Acontecimentos do presente evidenciam de maneira mui-
to explícita como a estrutura escravista jamais abandonou a
nossa conjuntura econômica e social13.

13 Exemplo disso é a forma inescrupulosa com que a pauta do trabalho


escravo ou análogo à escravidão está sendo tratada por aqui. A legislação
vinha caracterizando como crime qualquer situação degradante de trabalho.
Em outubro de 2017, no entanto, por pressão da bancada ruralista no par-
222
Daí a importância de difundir a existência de filmes
como os apresentados nesta pesquisa, que se configuram
em uma ação para descerrar o véu da modernidade, mos-
trando a face oculta desse projeto civilizatório: “o mundo pe-
riférico colonial, o índio sacrificado, o negro escravizado, a
mulher oprimida, a criança e a cultura popular alienadas, etc.
(as vítimas da Modernidade) como vítimas de um ato irracio-
nal (como contradição do ideal racional da própria Moderni-
dade)” (DUSSEL, 2005: 29).
E se por um lado é histórica a opressão exercida contra
a América Latina, também o são a luta e a resistência. A cena
final de El vuelco del cangrejo é uma simbólica demonstração
disso: empunhando facões, Cérebro, junto com um grupo de
aldeães, sob o canto ancestral negro, derrubam as estacas
de madeira que estavam lhes roubando um espaço público
descolonizar: a prática e o sexo

da comunidade. A derrubada dos muros - reais ou fictícios -,


que tentam promover a segregação e a opressão, precisa ser
uma prática diária para a qual este capítulo buscou contribuir.

lamento, o governo brasileiro chegou a restringir os elementos que configu-


ram essa ação criminosa com uma portaria que passava a exigir a restrição
de liberdade de locomoção da vítima para se reconhecer a prática desse
crime. A torpe portaria dificultava ainda a transparência na divulgação da
lista que reúne o nome de empresas que praticam o trabalho escravo, só
podendo ser publicizada com a autorização do ministro do trabalho. Com
isso a superexploração humana é sancionada pelo próprio Estado.
223
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descolonizar: a prática e o sexo


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225
Feminicídio e interseccionalidades: uma análise
dos inquéritos policiais

Roberta Silveira Pamplona


Feminicídio e interseccionalidades:
uma análise dos inquéritos policiais

Introdução

O presente estudo possui como objetivo geral a com-


preensão das feminilidades, das masculinidades e das rela-
ções entre essas produzidas nos inquéritos policiais de homi-
cídios com vítimas mulheres qualificados como feminicídios.
Para tanto, foram analisados 19 inquéritos policiais caracte-
rizados pela qualificadora do feminicídio produzidos no mu-
nicípio de Porto Alegre no período de 2015 a 2019. A análise
documental foi realizada com base no referencial teórico-me-
todológico da análise interseccional interativa e situada, vis-
to que assume as relações e as categorias de gênero como
descolonizar: a prática e o sexo

centrais em interação com outros marcadores sociais. Foram


constatadas duas dimensões importante presentes nas narra-
tivas de feminicídio. A primeira diz respeito ao projeto político
de pertencimento e de reconhecimento de uma categoria - o
ser mulher - que permitiu acesso ao reconhecimento simbó-
lico da morte por motivação de gênero. A segunda dimensão
trata da produção e reprodução de desigualdades sociais
neste processo de projeto político na medida em que se criam
narrativas oficiais nos inquéritos que qualificam as práticas
violentas como mais ou menos gravosa, considerando dife-
rentes marcadores sociais que eclodem nos sujeitos.
Ao analisarem os processos de criminalização envolven-
do a morte de mulheres antes da Lei 13.104/2015, pesquisas
anteriores demonstraram que eles são fortemente influencia-
dos por elementos de gênero (CORRÊA, 1983; ARDAILLON,
DEBERT, 1987; DEBERT, LIMA, FERREIRA, 2008; FACHI-
NETTO, 2012). Nos casos analisados, demonstrou-se o es-
forço dos atores jurídicos envolvidos em interpretar as prá-
ticas sociais por meio de expectativas atreladas para cada
gênero - especialmente dentro das relações íntimas e fami-

229
liares -. Os argumentos jurídicos utilizados buscavam, muitas

descolonizar: a prática e o sexo


vezes, reforçar uma inadequação da vítima mulher ao ideal
de “esposa e mãe”. Da mesma forma, esses argumentos não
se utilizavam apenas de elementos de gênero; em verdade,
era pela incidência de outros marcadores sociais que se dife-
renciava formas de feminilidade e masculinidade nos casos.
A qualificadora do feminicídio coloca a categoria social
ser mulher em evidência a fim de agravar uma prática violen-
ta descrita como crime. Entretanto, apesar da classificação
de um homicídio como feminicídio se utilizar dessa categoria
social, é possível que a interpretação desse tipo de homicídio
esteja carregada por uma multiplicidade de formas de ser víti-
ma, bem como de ser autor desse crime. Diante disso, sabe-
-se que o processo de construção social do crime é constituí-
do pelas sucessivas interpretações que encaixam uma ação
em uma figura jurídica (MISSE, 2008). Consequentemente, o
que se percebe é que a interpretação dos agentes do sistema
de justiça sobre o fato é essencial para que esse fato seja en-
quadrado em uma determinada categoria legal. O resultado é
uma dinâmica em que os atores encarregados de esclarecer
um determinado crime se afastam progressivamente da “cena
do crime”, transformando-a em uma narrativa de segunda e
de terceira mão (2011: 44). Essa dinâmica também é perpas-
sada por elementos de gênero e outros marcadores sociais
(VARGAS, 1997; VIEIRA, 2007).
O que se problematiza, neste trabalho, é de que forma
uma categoria jurídica construída para universalizar, em algu-
ma medida, práticas violentas, pode ou não produzir narrati-
vas diferentes sobre os sujeitos e qualificar de forma mais ou
menos gravosa essas práticas violentas tidas como motivadas
pelo gênero. Para tanto, compreende-se a relevância da reali-
zação de análises interseccionais dessas narrativas produzidas
pelo aparato policial com fundamento nos aportes teóricos do
feminismo pós-colonial considerando dois principais elemen-
tos: i) a possibilidade de perceber os elos entre os sistemas de
desigualdades; e ii) a realização de uma análise interativa dos
230
marcadores sociais, não os tomando como pré-determinados,
mas como acontecimentos que eclodem nos corpos.
Se, hoje, a interseccionalidade aparece frequentemen-
te nos estudos sociais, é preciso atentar sob quais pers-
pectivas ela está ancorada, bem como quais as potências
e as limitações dessa ferramenta metodológica em cada
trabalho proposto (MCCALL, 2005). Neste trabalho, ques-
tiona-se: de que forma são articuladas diferentes feminili-
dades, masculinidades e relações de gênero nas narrativas
policiais de casos classificados como feminicídios, e como
essas narrativas qualificam - ou não - de forma mais ou
menos gravosas práticas violentas em relação à categoria
jurídica do feminicídio?
A proposta do artigo é empreender uma análise inter-
seccional interativa situada (YOUVAL-DAVIS, 2015) como
descolonizar: a prática e o sexo

desenho da pesquisa a fim de apontar as potências e os li-


mites desse desenho. O que se evidencia com esse modelo
de análise é de que forma uma categoria social dada a priori
pode ser tomada como central em suas interações com ou-
tros marcadores sociais por meio de casos concretos; isto é,
por meio da análise de 19 inquéritos policiais de feminicídios
produzidos no município de Porto Alegre. Dessa forma, pre-
tende-se explicar como essas interações resultam em narrati-
vas possíveis sobre a mesma qualificadora jurídica.
A primeira seção do artigo busca reconstruir o percurso
histórico da qualificadora do feminicídio, apontando os diferen-
tes significados do conceito e a sua incorporação como quali-
ficadora no Código Penal brasileiro. Em seguida, são tecidas
reflexões sobre as diferentes interações entre os elementos
de gênero e outras categorias sociais. A partir disso, diferen-
tes formas de realizar análises interseccionais são discutidas
e, por meio dessa discussão, retomam-se os pontos capazes
de ajudar a compreender a categoria ser mulher como víti-
ma na categoria jurídica do feminicídio. Na terceira seção, o
desenho da pesquisa é explicitado: i) primeiro, é explicada a
coleta dos dados e, ii) depois, o modelo de análise utilizado
231
é discutido. Por fim, são apresentadas as considerações da

descolonizar: a prática e o sexo


análise e as discussões finais.

A categoria do feminicídio: entre a construção teórica


e a qualificadora do crime

Historicamente, o termo femicídio surgiu, pela primeira


vez, formulado originalmente em inglês (femicide) na voz de
Diana Russel durante um depoimento perante o Tribunal In-
ternacional de Crimes contra Mulheres em Bruxelas em 1976
(PASINATO, 2011: 223). A obra “Femicide: The Politics of
Woman Killing” de autoria de Diana Russell e Jill Radford
também introduziu a expressão para designar os assassina-
tos de mulheres que teriam sido cometidos pelo fato de serem
mulheres (1992). O livro buscou evidenciar tal fenômeno na
realidade norte-americana e na realidade do Reino Unido, a
fim de demonstrar que não se tratava de casos isolados, mas
de uma prática recorrente em relações conjugais (p. 15). So-
bre isso, as autoras conceituam o femicídio como uma forma
de violência sexual em que se evidenciam os desejos dos
homens de poder, de dominação e de controle (p. 3). A violên-
cia significada pelo termo femicide estaria circunscrita em um
continuum maior de violências - situações de abuso sexual,
violência doméstica, assédio sexual -, representando uma for-
ma de controle central para a manutenção do patriarcado.
Na América Latina, o uso de categoria similar - o femi-
nicídio - é datada de 1980, na República Dominicana, por
ativistas feministas (FREGOSO; BEJARANO, 2011: 51) a
partir da tradução da palavra femicide. Entretanto, o termo
adquiriu um significado diferente com base nas denúncias
de assassinatos de mulheres em Ciudad Juárez no Méxi-
co, apontando para uma responsabilidade estatal diante da
impunidade dos crimes (GARCÍA-DEL MORAL, 2015). A de-
manda por essas respostas estatais culminou em conven-
ções pela erradicação da violência contra a mulher, como a
Convenção de Belém do Pará em 1994, em que países da
232
América Latina e Caribe passaram a empenhar esforços na
formulação de leis específicas sobre a violência contra mu-
lheres (PASINATO, 2008).
Desde reflexões sobre as possíveis classificações de
tipos de feminicídio (CARCEDO, 2010; PORTELLA, 2014)
até a articulação em redes transnacionais de ativismo sobre
o tema, as discussões sobre o feminicídio foi recebendo cada
vez mais atenção. Com isso, a interação entre a produção
científica de teóricas feministas latino-americanas, as ações
de movimentos sociais e, ainda, relatórios de organizações
transnacionais que atuam na defesa do direito das mulheres
resultou em uma série de discussões e de materiais sobre o
tema do feminicídio. Entre esses, importa apontar o Protocolo
na ONU (2014) de investigações sobre a morte de mulheres,
propondo, justamente, diretrizes para que as práticas investi-
descolonizar: a prática e o sexo

gativas consigam dar conta dos elementos de gênero.


Neste sentido, percebe-se como a ação do movimento
feminista no continente latino-americano evidencia-se como
emaranhada por disputas em torno de significados, por pro-
cessos contínuos de disputas discursivas e estratégicas (AL-
VAREZ, 1998). Assim, circunscrita por essa rede de diferentes
produções - de teóricas feministas até relatórios internacio-
nais - sobre o mesmo termo, não se torna difícil compreender
os motivos pelos quais a qualificadora do feminicídio, ainda
que tida como categoria jurídica única, possa ser utilizada em
narrativas diversas sobre os sujeitos e as relações envolvidas.
Com isso, importa retomar como o Estado é historicamente
uma força criadora das dinâmicas de gênero, propondo novas
categorias e destruindo outras (CONNELL, 1990; BROWN,
1992). Portanto, é preciso compreender as múltiplas formas
de se narrar oficialmente o termo feminicídio, e isso envolve
uma análise capaz de dar conta das intersecções possíveis
das categorias de gênero com outras categorias sociais.

233
Por uma compreensão pós-colonial das questões

descolonizar: a prática e o sexo


de gênero e suas intersecções

O entrelaçamento do gênero com outras estruturas so-


ciais é um diagnóstico presente nos estudos de gênero con-
temporâneos. Sobre isso, o termo interseccionalidade é co-
mumente utilizado para tratar dessa interação do gênero com
outras categorias sociais. O termo foi teoricamente explorado
a partir do artigo de Kimberlé Crenshaw (1991). Nesse artigo,
o objetivo da autora foi compreender como as dimensões de
raça e de gênero estruturam a violência contra as mulheres de
cor. Ainda que o foco principal do artigo tenha sido essas duas
dimensões, a autora estadunidense afirma que questões como
o status de imigrante, por exemplo, também interseccionam
com as questões de gênero. Com isso, o artigo sugere que a
interseccionalidade oferece um caminho de mediação para as
tensões entre as diversas estruturas que estão em constante
interação, resultando em experiências de gênero singulares.
A mediação proposta por Crenshaw (1991) foi ampla-
mente apropriada pelos estudos de gênero e, logo, introduziu
uma série de questões metodológicas e uma amplitude de
abordagens possíveis (MCCALL, 2005). Para o presente arti-
go, pretende-se explorar as potencialidades da análise inter-
seccional das questões de gênero quando vistas sob a pers-
pectiva do feminismo pós-colonial. Isto é, questiona-se como
o feminismo pós-colonial pode servir de ancoramento para
análises interseccionais. É frutífero retomar as contribuições
desse aporte teórico para repensar os usos do conceito atual-
mente, questionando a percepção de identidades de sexuali-
dade, de raça e de gênero como estáticas (PARMAR, 2012).
Neste sentido, retoma-se a interseccionalidade como um ins-
trumento analítico que não se limita a somar ou a descrever
a sobreposição de categorias sociais, propondo a retomada
da “sensibilidade analítica” do termo (AKOTIRENE, 2018). A
perspectiva pós-colonial permite analisar os diferentes acon-
tecimentos identitários que estão em jogo no tecido social e
234
que eclodem em determinados corpos e, no caso deste traba-
lho, resultam em diferentes narrativas.
O feminismo pós-colonial possibilitou marcar a proemi-
nência e a característica “constitutiva do gênero no projeto
colonial” (BAHRI, 2013: 661). Assim, Bahri (2013) argumenta
como o feminismo pós-colonial permite desvelar a construção
de narrativas de opressão por gênero como forma de legiti-
mar processos coloniais. Essas narrativas coloniais geraram
categorias sociais que, até hoje, são vinculadas a determina-
dos corpos. O feminismo da perspectiva pós-colonial permite
atentar para quais categorias são utilizadas nas análises, im-
plicando, no caso da discussão aqui proposta, na realização
de análises interseccionais de forma interativa.
O questionamento do uso das categorias eurocêntricas,
como realizado por Oyewumi (2004) no contexto da Nigéria, é
descolonizar: a prática e o sexo

essencial para compreender as interseccionalidades de mar-


cadores sociais para além da visão canônica. Em verdade, a
análise realizada pela autora instiga a utilização de categorias
oriundas da realidade, e não de teorias deslocadas do con-
texto analisado. Isso significa reconhecer que “significados
e interpretações devem derivar da organização social e das
relações sociais, prestando muita atenção aos contextos cul-
turais e locais específicos (OYEWUMI, 2004: 9)”.
O feminismo pós-colonial, nesse sentido, permite que
as análises interseccionais façam uso de operadores teóricos
sem passado ou registro nos livros acadêmicos. A discussão
sobre os conceitos utilizados nas análises de gênero revela
o esforço dos estudos feministas pós-coloniais para estabe-
lecerem “a identidade como relacional e histórica em vez de
essencial ou fixa, enquanto mantêm o gênero como uma ca-
tegoria significativa de análise” (BAHRI, 2013: 664). Tomar o
gênero como categoria significativa de análise implica em re-
conhecer a dinamicidade dele, bem como a plasticidade dele
ao interagir com outros sistemas.
Ao reconhecer a plasticidade dos elementos de gênero
em diferentes contextos, utiliza-se a perspectiva de Connell
235
(1989) sobre esses elementos. Para Connell (1989: 71), o gê-

descolonizar: a prática e o sexo


nero é uma forma segundo a qual a prática social é ordenada
e qualificada, sendo que essa ordenação se configura sob
quatro formas resumidas: i) relações de poder; ii) relações de
produção; iii) a “catexia”, que a autora define como o desejo
sexual socialmente construído na forma heterossexual; e iv)
os símbolos e as representações vinculados ao gênero.
Essas formas de relações de gênero são capazes de in-
terseccionar com outras estruturas sociais, resultando na mul-
tiplicidade de feminilidades e de masculinidades (CONNELL,
1989: 117) e, ainda, em símbolos culturais para cada gênero
que vão sendo alterados com o tempo. Essa alteração é dinâ-
mica na medida em que vai refletindo a própria mudança das
relações de gênero, revelando um caráter crucial da questão
geracional quando se fala de questões de gênero (CONNELL,
2009: 85-86). Portanto, o presente trabalho propõe uma análi-
se das narrativas por meio dessas relações e seus elementos
que são simbolizados e representados nelas.

A proposta da análise interseccional interativa situada

Ao constatar que a interseccionalidade assumiu uma


centralidade nos estudos de gênero, Choo e Ferree (2010)
argumentam como o termo se tornou uma buzzword teórica,
sendo utilizada, muitas vezes, sem uma clarificação do pró-
prio pesquisador sobre qual a forma com que se utiliza o con-
ceito de interseccionalidade. Diante disso, as autoras identi-
ficam três principais formas de utilizar a interseccionalidade
dentro das pesquisas. A primeira forma é o método de dar voz
a grupos oprimidos com análises realizadas a partir dos dis-
cursos dos sujeitos. A segunda forma é a interseccionalidade
como análise interativa; não sendo uma mera enumeração de
categorias de subordinação. O que se busca analisar é como
determinadas categorias vão aparecendo e sendo entrelaça-
das em determinadas circunstâncias. A última forma é a pri-
mazia institucional em que se aborda a interseccionalidade
236
como segmentada: certas instituições estão principalmente
associadas a um tipo de desigualdade ou a outro.
Na mesma perspectiva de Choo e Ferree (2010), Mc-
call (2005) também propõe uma descrição dos diferentes
usos da interseccionalidade nas pesquisas atualmente. En-
tretanto, a análise realizada pela autora pautou-se pela for-
ma como as categorias sociais podem ser compreendidas
em perspectivas interseccionais. Da mesma forma, há um
esforço em demonstrar as potências de cada perspectiva.
Assim, Mccall (2005) não apenas identifica e descreve as
análises interseccionais possíveis, mas ela mesmo propõe
em quais pesquisas e para quais contextos essas análises
se mostram mais potentes.
A primeira forma é a anti-categorial em que a metodo-
logia não é construída por meio das categorias já existentes;
descolonizar: a prática e o sexo

elas são compreendidas como construções em relação aos


sujeitos ou aos processos analisados. Nessa perspectiva, há
propostas do feminismo pós-colonial e decolonial que ques-
tionam o uso das categorias eurocêntricas. Isto é, privilegia-
-se operadores analíticos capazes de dar conta da realidade
estudada, como no caso em que Mohanty (2008: 9) aponta
o exemplo da maternidade que, em algumas sociedades, é
extremamente relevante para se pensar a feminilidade, mas,
em outras, é algo extremamente secundário. A outra possi-
bilidade identificada por Mccall (2005) é assumir o enfoque
categorial, em que se analisa dentro de grupos sociais consti-
tuídos por uma dada categoria, relações capazes de explicar
as relações entre essa categoria e outras que resultam em
consequências para os sujeitos. O que as reflexões de Mccall
(2005) ofertam é a relevância das análises interativas quando
se estuda uma realidade específica.
A autora Youval-Davis (2015) também questiona as
formas possíveis de se traçar uma análise interseccional.
Entretanto, a autora não descreve um estado da arte dos
estudos interseccionais. Ainda assim, ela também sugere
que quando se fale em interseccionalidade, se deixe claro
237
a forma como essa é entendida, já que interseccionalidade

descolonizar: a prática e o sexo


não é um corpo unificado teórico; é um leque de ferramentas
e conceitos (YOUVAL-DAVIS, 2015: 93). A interseccionali-
dade, segundo a autora, propõe que as diferentes divisões
sociais não atuam como meros aditivos, transversais ou in-
terligados, mas como mutuamente constitutivos (YOUVAL-
-DAVIS, 2015: 94).
Diante disso, ela propõe uma forma específica de rea-
lizar análises interseccionais: a análise situada. Essa forma
de análise permite explicar desigualdades de tipos i) ontológi-
co e ii) concreto. A justificativa é que qualquer compreensão
sociológica contemporânea de desigualdades sociais deve
incluir o global e o regional, considerando as mudanças não
lineares sociais e políticas. A proposta da análise situada é,
claramente, a atenção ao contexto. Essa análise possibilita
atentar para nuances particulares que constroem significados
em momentos históricos específicos, com singularidades so-
ciais a depender de como o contexto salienta mais ou me-
nos um dos efeitos (YOUVAL-DAVIS, 2015: 95). Com isso, a
desigualdade do tipo ontológico - em que se baseia em um
projeto político de pertencimento - fica evidente quando se
coloca a categoria no qual essa está baseada, identificando a
construção do mesmo no contexto analisado. Conjuntamente,
a produção e reprodução de desigualdades sociais concretas
também são incorporadas, já que se propõe olhar para as
divisões sociais como constitutivas.
A partir dessas considerações contemporâneas sobre
os usos da interseccionalidade, conclui-se que não há uma
única forma de se realizar análises interseccionais ou, ainda,
usos melhores que outros. O que se reforça é a necessidade
de definições das formas de usos da interseccionalidade den-
tro das pesquisas a fim de contemplar o problema construído.
Diante disso, desenhou-se a presente pesquisa considerando
i) os elementos de gênero propostos por Connell (1989); ii) a
compreensão da interação dos marcadores sociais com esses
elementos no processo de narrativa policial; e ii) a possibilida-
238
de de explicar desigualdades de tipos ontológico e concreto
dentro da categoria do feminicídio, atentando para o contexto
em questão.

O desenho da pesquisa

Os inquéritos policiais

A utilização dos inquéritos policiais permite analisar do-


cumentos que possuem dados produzidos com fins institu-
cionais de classificar uma ação como crime (FLICK, 2013).
Neste caso, os inquéritos são como “dispositivos comunicati-
vos metodologicamente desenvolvidos na construção de uma
versão sobre eventos” (FLICK, 2013: 234). A versão sobre um
determinado fato pode ocorrer de diferentes formas e, neste
descolonizar: a prática e o sexo

trabalho, investigou-se a forma tida como oficial na medida


em que o Estado pode ser, a partir da noção weberiana, com-
preendido pela possessão do monopólio da violência simbó-
lica legítima (BOURDIEU, 2014). Ou seja, o Estado pratica
atos - como a narração de determinado fato - com pretensões
a ter efeitos no mundo social, sendo que esses atos são con-
siderados legítimos, devendo sua eficácia à sua legitimida-
de e à crença na existência do princípio que os fundamenta
(BOURDIEU, 2014: 39). Reafirma-se, com isso, a centralida-
de da atuação estatal na construção de práticas e de sujeitos
mais ou menos genderizados, como os elementos da catego-
ria jurídica do feminicídio (CONNELL, 1990; BROWN, 1992).
Não obstante, propor as narrativas dos inquéritos como
objeto de análise também é retomar os debates sobre as di-
ferentes facetas e controvérsias em torno do feminicídio, aqui
compreendido como a categoria jurídica na prática. Conforme
Misse (2008; 2011), essas narrativas tratam da interpretação
dos agentes policiais sobre um determinado fato na forma de
categorias jurídicas. Com isso, pode-se pensar que essas nar-
rativas atuam como “pacotes interpretativos” que são ativa-
mente usados para organizar e convencionalizar significados
239
de forma estruturada (FERRE, 2003). Portanto, tomou-se os

descolonizar: a prática e o sexo


textos contidos nos inquéritos como a forma de enquadrar uma
prática violenta na categoria do feminicídio. Por fim, importa
apontar uma limitação: as narrativas aqui analisadas provavel-
mente não são capazes de revelar todas as nuances presentes
no processo de criminalização na medida em que não abran-
gem discussões e controvérsias dos agentes envolvidos na in-
terpretação do fato. Entretanto, as narrativas dos inquéritos são
relevantes justamente por seu status de documentos oficiais e
públicos, possuindo um valor em si (MCCULLOCH, 2004).
A coleta de dados foi realizada no município de Porto
Alegre, capital do Estado do Rio Grande do Sul (RS), entre
março e junho de 2019. A escolha da cidade ocorreu, primei-
ro, pelo número absoluto de casos para análise em compara-
ção com outros municípios do Estado, visto que ocorrem mais
mortes violentas na cidade de Porto Alegre. Além disso, Porto
Alegre coloca-se como uma cidade que apresenta uma mé-
dia no número de feminicídios (4,3) similar à média nacional
(4,8). Por fim, não apresenta grande variação dessa média
nos últimos anos (FBSP; IPEA, 2016).
Os 19 inquéritos analisados foram escaneados entre
março de 2019 e maio de 2019 em três diferentes espaços: a)
na Delegacia de Atendimento Especializado à Mulher (DEAM);
b) na Divisão de Homicídios (DH); e c) nas duas Varas do Júri
de Porto Alegre1. O critério para a amostragem foi a satura-

1 A lista dos processos analisados foi produzida por meio do site do Tri-
bunal de Justiça do Rio Grande do Sul no dia 22 de março de 2019. Para
tanto, utilizou-se o mecanismo de “Jurisprudência” do próprio site em que
é possível localizar os prEm 2009, a Corte Interamericana de Direitos Hu-
manos (CIDH) utilizou, pela primeira vez em um contexto de tribunal, o ter-
mo feminicídio para condenar alguém. No caso, o México foi responsabi-
lizado pelo desaparecimento e pela morte de mulheres em Ciudad Juárez
(GARCÍA-DEL MORAL, 2015). Após o estado mexicano introduzir o termo
feminicídio como categoria legal#, outros Estados latino-americanos tais
como Guatemala, Chile, El Salvador, Peru, Nicarágua e Argentina fizeram
o mesmo (CPMI, 2013). No Brasil, foi promulgada a Lei 13.104/2015 no
dia 08 de março de 2015, que introduziu o termo como uma qualificado-
ra para o homicídio no Código Penal. Assim, o processo de visibilidade
240
ção, já que a coleta de novos inquéritos não acrescentava
nada de novo ao que se buscava compreender (BAUER e
GASKELL, 2002). Cumpre apontar que os inquéritos de femi-
nicídios aqui analisados foram investigados, primeiramente,
entre a promulgação da lei - março de 2015 - e dezembro de
2016, pelas delegacias especializadas de homicídios vincula-
das à DH. Entretanto, a partir de 2017, os casos classificados
como feminicídio, em tese, passaram a ser investigados pela
DEAM por meio do decreto estadual 53.331. Porém, notou-se
que um inquérito com fato posterior ao ano de 2016 foi inves-
tigado por uma delegacia da DH. Diante disso, a coleta de
dados para o corpus pode ser visualizada no quadro abaixo:

Quadro 1 - Inquéritos analisados


Lista Ano do fato Local da Data de coleta Local da
descolonizar: a prática e o sexo

violento Investigação coleta


Inquérito 01 2017 DEAM 14/03/2019 DEAM

Inquérito 02 2018 DEAM 27/03/2019 Vara Júri


Inquérito 03 2018 DEAM 27/03/2019 Vara Júri
Inquérito 04 2018 DEAM 27/03/2019 Vara Júri
Inquérito 05 2016 DH 27/03/2019 Vara Júri
Inquérito 06 2018 DEAM 27/03/2019 Vara Júri
Inquérito 07 2015 DH 27/03/2019 Vara Júri
Inquérito 08 2015 DH 02/04/2019 Vara Júri
Inquérito 09 2016 DH 02/04//2019 Vara Júri
Inquérito 10 2018 DEAM 03/04/2019 Vara Júri
Inquérito 11 2018 DEAM 03/04/2019 Vara Júri
Inquérito 12 2017 DH 15/04/2019 Vara Júri
Inquérito 13 2018 DEAM 15/04/2019 Vara Júri

utilizado para significar uma forma de violência de gênero foi perpassa-


do, simultaneamente, por um processo de criminalização dessa violência.
Acessos com o termo feminicídio da comarca de Porto Alegre.
241
descolonizar: a prática e o sexo
Inquérito 14 2015 DH 15/05/2019 DH
Inquérito 15 2017 DEAM 23/05/2019 Vara Júri
Inquérito 16 2019 DEAM 23/05/2019 Vara Júri
Inquérito 17 2016 DH 23/05/2019 Vara Júri
Inquérito 18 2018 DEAM 23/05/2019 Vara Júri
Inquérito 19 2019 DEAM 23/05/2019 Vara Júri
Fonte: elaboração própria.

A partir da descrição do percurso metodológico e do


quadro elaborado, importa apresenta a forma como esses do-
cumentos foram analisados. Para tanto, o modelo de análise
é descrito no tópico seguinte.

O modelo de análise

Conforme discutido nas seções anteriores, a qualifi-


cadora jurídica do feminicídio possui uma construção social
própria com controvérsias próprias e diferenças locais. Ainda
assim, há um significado comum que é a lente da violência de
gênero. Para tanto, a categoria social de gênero “ser mulher”
foi incorporada para tratar da relação entre motivação, auto-
res e vítimas. A classificação de um homicídio como feminicí-
dio corresponde a uma interpretação do aparato policial sobre
determinada situação fática, incluindo a interpretação se a ví-
tima está de acordo com a categoria mulher prevista na lei.
Nessa lógica, a análise interseccional interativa situada
é relevante, pois assume apenas determinadas categorias
como centrais para a análise a fim de identificar as diferen-
tes relações com outros marcadores, compreendendo quais
as desigualdades são produzidas. Com isso, os elementos
de gênero - aqui compreendidos de forma relacional (CON-
NELL, 1989) - são as categorias centrais modelo de análise.
Portanto, as passagens das narrativas que tratam de mascu-
linidades, feminilidades e das relações descritas como gende-
rizadas foram codificadas primeiro. Para tanto, realizou-se a
242
análise por meio do software Atlas.ti2. O software permite que
os códigos sejam agrupados em grupos. Assim, os trechos
são codificados em códigos que formam grupos de códigos.
Em seguida, considerando a perspectiva interativa aqui
proposta, foram codificados os trechos das narrativas que in-
terseccionam com os elementos de gênero, identificando ca-
tegorias sociais de forma empírica para tanto. Utilizou-se as
contribuições dessas duas perspectivas sobre a interseccio-
nalidade para a análise de conteúdo que abrangeu categorias
de aspectos teóricos e empíricos das narrativas propostas
(GOMES, 2001).
Diante disso, o modelo de análise contou com categorias
de gênero - grupos de código - que abrangiam os trechos das
narrativas que descreviam a vítima, o autor, a relação entre
eles e a motivação da prática violenta. Em seguida, foram ca-
descolonizar: a prática e o sexo

tegorizados os trechos que continham elementos para essas


descrições agrupados em categorias sobre os elementos em
torno da vítima, do autor e da relação. Assim, um trecho pode
ser codificado em mais de um código e é possível visualizar
essa intersecção no próprio software. Esse modelo utilizado
pode ser visualizado conforme ilustrado no esquema abaixo:

2 Um software amplamente utilizado para análises qualitativas que permi-


te trabalhar com textos, imagens e sons para organização e codificação
dos dados coletados.
243
Figura 1 - Modelo de análise

Fonte: elaboração própria.


descolonizar: a prática e o sexo
A análise das narrativas dos inquéritos policiais

A partir do esquema apresentado na seção anterior, a


análise é apresentada em duas partes: i) na primeira, trata-se
da descrição e da compreensão das relações, feminilidades,
masculinidades dentro das narrativas e, ii) na segunda, as
implicações dessas descrições na narrativa de qualificação
de motivação da violência praticada.

244
Feminilidades, masculinidades e relações da casa e da rua

As narrativas policiais de práticas violentas qualificadas


na categoria jurídica do feminicídio enquadram as relações e
seus sujeitos em duas principais linhas narrativas por meio da
articulação dos elementos de gênero com dois principais mar-
cadores: a classe e a geração. A primeira linha narrativa trata
de relações descritas como domésticas entre acusado3 e víti-
ma e, portanto, enfatiza a descrição da vítima por uma feminili-
dade “da casa” e, como seu par, uma masculinidade “da casa”.
A segunda linha - que apareceu em menos inquéritos ana-
lisados - descreve relações da rua vinculadas às práticas da
vítima no espaço público e, com isso, a reconstrução dessa ví-
tima por uma feminilidade “da rua”. Dessa forma, as descrições
que implicam em linhas narrativas divergentes sobre a vítima,
descolonizar: a prática e o sexo

sobre o acusado e a relação entre eles utilizou principalmente


características como a classe social e a perspectiva geracional.
O primeiro marcador trata de qual é a ocupação dos su-
jeitos; aqui, não se fala em em classe social no sentido es-
tritamente econômico de salário ou da acumulação de bens
materiais, visto que essa não é a distinção utilizada nas inter-
pretações dos agentes policiais. Ainda, não se trata de qual o
bairro ou região que ocorreu a prática, pois narrativas de atos
violentos na mesma região utilizaram o aspecto da classe de
forma a tratar das práticas dos sujeitos. O que ocorre é uma
distinção é entre sujeitos com ocupações tidas como estáveis
e públicas, e outras não. Essas outras práticas são associa-
das ao comércio e consumo de substâncias ilícitas.
A narração da passagem pelo sistema prisional e o pos-
sível envolvimento dos sujeitos com as dinâmicas do tráfico de
drogas possibilitou narrativas como: “o que sugere que João4
3 Aqui a palavra acusado é utilizada no masculino, visto que, nos 19 in-
quéritos analisados, as pessoas indiciadas como autoras do ato violento
eram todas homens.

4 Os nomes reais foram trocados por nomes fictícios a fim de preservar a


identidade dos sujeitos.
245
pertença a facção que domina a região” (Inq 1). Ou, no caso da

descolonizar: a prática e o sexo


vítima, procura-se descrever “que a vítima não usava drogas”
(Inq 1). Assim, a feminilidade é descrita como da mulher jovem
que circula em diferentes espaços públicos e, por ter se envol-
vido com um homem perigoso, acabou sendo violentada. Para
tanto, questiona-se sobre a vida afetiva dela, afirmando que “a
vítima ficava com vários homens (Inq 19)” e que “a vítima sabia
dos envolvimentos passados dele com o tráfico” (Inq 19). A fe-
minilidade - elementos que descrevem a vítima - são tomados
como centrais para a construção de uma masculinidade - acu-
sado - compatível com essa vítima.
Conjuntamente, essas narrativas utilizam esses elemen-
tos para, por exemplo, justificar o pedido de prisão preventiva,
argumentando que “porque José não possui residência fixa,
razão pela qual dificilmente será encontrado para compare-
cer aos atos de instrução processual” (Inq 9) ele deve ser
segregado de forma cautelar. Essas narrativas encontradas
em poucos casos, portanto, descrevem a vida de jovens com
menos de 25 anos que circulam em diferentes espaços e pos-
suem múltiplas relações, enfatizando suas possíveis relações
com dinâmicas do tráfico e a sua precariedade laboral.
As narrativas policiais conferem um enquadramento se-
cundário aos elementos de uma relação de gênero afetiva,
na medida em que não narram sentimentos entre os sujeitos,
mas possíveis relações conturbadas que resultam na práti-
ca violenta. Entretanto, nessas narrativas, a prática violenta
não é tratada como algo excepcional na vida dos sujeitos.
Nos casos de vítimas jovens, as narrativas tratam a violência
praticada como algo mais comum na vida dos sujeitos - ou
como uma consequência sabida dos envolvidos com sujeitos
do tráfico -. O que remete a uma prática violenta genderizada
é a descrição de uma possível relação conflituosa - ainda que
breve e efêmera - entre os sujeitos em que o homem, descrito
em uma posição de poder, não aceitou perder esse poder.
As narrativas das relações domésticas, por outro lado,
enfatizam a gravidade e as consequências para a família e
246
filhos da prática violenta. Neste sentido, a gravidade do ato é
utilizada para justificar a prisão preventiva, alegando que “O
crime imputado ao indiciado é de extrema gravidade” (Inq 10).
Essas narrativas - mais comum nos inquéritos analisados -
possuem como principal elemento de gênero o relacionamen-
to afetivo monogâmico heterossexual público e longínquo,
permitindo mais facilmente uma narrativa genderizada da
prática violenta. Em uma reatualização do que outras pesqui-
sas identificaram como “crimes da paixão” (DEBERT; LIMA;
FERREIRA, 2008; FACHINETTO, 2012), essas narrativas de
feminicídio descrevem sentimentos e históricos das relações
para trazer uma motivação da prática.
De forma geral, as narrativas enfocam no sentimento
que produziu a prática violenta, reconstruindo o histórico da
relação entre o acusado e a vítima. A partir dessa descrição,
descolonizar: a prática e o sexo

a investigação reconstitui a motivação como oriunda de uma


relação afetiva violenta, narrando o motivo para a prática do
ato como o “motivo torpe, em razão do sentimento de vingan-
ça que o acusado nutria em relação a mãe da vítima” (Inq
18). Nesse mesmo sentido, descreve-se o “relacionamento
amoroso, o qual terminou em virtude de ciúmes do investi-
gado” (Inq 17). Diante disso, é comum a descrição da prática
violenta como mais gravosa:

[...] ocorrência de uma bárbara tentativa de homicídio -


que pode vir a se tornar um delito consumado - praticado
com incomum crueldade: o autor simplesmente ateou fogo
na vítima com a utilização de gasolina, supostamente pela
razão de não aceitar o término de seu relacionamento com
ela”(Inq 7).

A masculinidade, nesses casos, é descrita como o ho-


mem com um histórico de violência doméstica para com a ví-
tima, tanto física como verbal: “Pedro costuma ingerir bebida
alcoólica, chegar embriagado em casa, mas agredia somente
verbalmente” (Inq 15). Entretanto, em alguns casos, a narrati-
va policial passa a descrever um momento específico em que
247
esse companheiro violento no âmbito doméstico ultrapassou

descolonizar: a prática e o sexo


as práticas anteriores: “o acusado parecia estar “possuído”,
tendo tentado golpear a vítimas outras vezes” (Inq 16).
As vítimas são descritas como companheiras que aguen-
taram agressões anteriores tanto na relação direta como após
o término, já que a “vítima relatava as dificuldades que pas-
sava com o ex-companheiro” (Inq 13). Conjuntamente, o am-
biente doméstico, ainda que caracterizado como espaço de
violência pelas testemunhas ouvidas sobre a relação do ca-
sal, também é descrito como um espaço que torna o crime
mais gravoso: “mediante recurso que dificultou a defesa, uma
vez que a vítima estava desarmada, dentro de sua residência,
sentindo-se segura” (Inq 12).
A análise interativa aqui proposta permitiu compreen-
der como as narrativas utilizam principalmente o elemento de
gênero da descrição de uma relação doméstica afetiva entre
homem e mulher, construída com sujeitos que são descritos
por meio dos marcadores geracionais - idade - e de ocupa-
ção profissional para tanto. Obviamente, foram identificadas
nuances específicas de cada caso, mas, o que se buscou
neste trabalho, foi uma análise de marcadores sociais que
interagem com elementos de gênero nessas narrativas.
Portanto, foram compreendidas duas principais linhas
de investigação narrativas dos casos de feminicídio: i) a fe-
minilidade da mulher em um relacionamento estável e, como
masculinidade compatível, a masculinidade do homem que
expressa poder dentro da relação afetiva por meio da violên-
cia, e ii) a feminilidade da mulher jovem e “da rua” e, como
masculinidade compatível, o homem que é violento em diver-
sas esferas da vida - justificado por uma participação ou com-
patibilidade com o tráfico -, não apenas nas relações de gêne-
ro. Para a construção dessas narrativas, compreendeu-se os
marcadores geracionais - idade dos sujeitos - e os marcado-
res de classe social - como as ocupações dos sujeitos - como
fatores que estão em constante interação com as relações de
gênero narradas.
248
Projeto político e produção de desigualdades

Conforme ilustrado na seção anterior, foram narradas


múltiplas formas de ser mulher vítima de uma violência des-
crita como genderizada. As semelhanças - a qualificação da
categoria jurídica do feminicídio - e as diferenças entre as
narrativas podem ser compreendida pela análise situada tra-
çada por Youval-Davis (2015) por compreender a categoria
ontológica - no sentido de se pautar em um projeto de perten-
cimento - com possíveis divisões sociais materiais que exis-
tem no contexto brasileiro atual. Sendo assim, primeiro, será
articulada a categoria do projeto de pertencimento por trás do
feminicídio e, em seguida, as diferenças.
A criminalização do feminicídio no contexto brasileiro,
como tratado na primeira seção deste trabalho, buscou re-
descolonizar: a prática e o sexo

conhecer que mulheres morrem por serem mulheres. Desta


forma, o próprio Relatório da CPMI da Violência Doméstica
(2013), que originou o Projeto de Lei, reconheceu a catego-
ria como relevante para evitar que práticas violentas fossem
consideradas menos gravosas por ocorrerem dentro de uma
relação. Sobre isso, o trabalho de Fachinetto (2012) concluiu
que nos “crimes da paixão” há uma relutância em reconhecer
a culpabilidade dos réus, visto que se trata de alguém que
cometeu um crime por um motivo nobre.
Nos inquéritos aqui analisados, o fato de ter uma rela-
ção afetiva prévia entre acusado e vítima não diminuiu a gra-
vidade do ato praticado. Conjuntamente, nos poucos casos
em que não se descreveu essa relação prévia, ainda assim
ocorreu uma qualificação de gravidade da prática pela mo-
tivação genderizada de retomada de poder masculino pelo
acusado. Assim, todas as narrativas analisadas buscaram
descrever uma prática e uma motivação mais gravosas que
uma simples agressão. A qualificadora do feminicídio, neste
sentido, não foi utilizada como forma de diminuir uma violên-
cia por ser uma motivação sentimental de crime. Por outro
lado, a diferença entre as narrativas de relações domésticas e
249
de relações das ruas retoma um questionamento interessante

descolonizar: a prática e o sexo


proposto por Debert e Gregori (2008) sobre como a violência
contra mulher é facilmente descrita e identificada por meio da
circunscrição da narrativa da violência doméstica. Por meio
de balanço sobre a construção semântica do termo violência
contra mulher no Brasil nos últimos anos, apontando uma re-
lação direta entre a ideia de violência contra a mulher e vio-
lência doméstica, reforçando que não seria possível a mani-
festação da violência de gênero em outras esferas da vida
que não a doméstica.
Desta forma, as narrativas que são perpassadas por re-
lações que ocorreram em ambientes não domésticos e por
sujeitos mais jovens, são, em alguma medida, menos gen-
derizadas. Isto é, a descrição utiliza menos elementos comu-
mente interpretados como de gênero para descrever a moti-
vação e, assim, implicam em narrativas que utilizam menos o
histórico da relação e mais características dos sujeitos para
reconstruir uma motivação. A narração da passagem pelo sis-
tema prisional e o possível envolvimento dos sujeitos com as
dinâmicas do tráfico de drogas, por exemplo, são caracterís-
ticas mais presentes nessas narrativas. Por fim, junto com
a análise interativa de marcadores sociais, foi possível com-
preender diferenças intracategoriais mesmo quando mulheres
são interpretadas como vítimas da mesma forma de violência,
revelando diversas vítimas possíveis a depender de como os
agentes interpretam o fato real (VIEIRA, 2007; MISSE, 2008).

Considerações finais

Ao considerar as categorias de forma relacional e con-


textualizada, o presente artigo buscou aporte no feminismo
pós-colonial conforme Mohanty (2008), questionando os ter-
mos binários e a estrutura dicotômica em que se pensa o
mundo social. Por essa lógica dicotômica, tanto mulheres
como homens aparecem como populações inteiras e cons-
tituídas pelo marcador de gênero. Entretanto, a lógica dico-
250
tômica ignora as diferentes categorias e os próprios grupos
em que os sujeitos estão inscritos enquanto esquemas de
interação com o gênero. Neste sentido, a categoria jurídica
do feminicídio permite atentar para as nuances dentro dos
elementos de gênero.
A partir disso, questionou-se de que forma o mesmo
discurso jurídico obscurece e articula desigualdades sociais
com a formação de marcadores sociais em diferentes mo-
dalidades (BROWN, 1997), atentando para quais são arti-
culados com os elementos de gênero de forma interativa.
Complementarmente, a análise situada tratou dessa dimen-
são da produção e reprodução de desigualdades sociais no
processo de projeto político de determinadas categorias,
como o ser vítima mulher. Isto é, ainda que todas as mor-
tes tenham tido o reconhecimento do gênero como motivo
descolonizar: a prática e o sexo

e, com isso, tenham sido qualificadas e interpretadas como


mais graves pelo aparato policial, elas produzem narrativas
que hierarquizam os sujeitos.
Entre os principais resultados, concluiu-se pela des-
crição de duas principais linhas de investigação narrativas
dos casos de feminicídio: i) a feminilidade da mulher em um
relacionamento estável e, como masculinidade compatível,
a masculinidade do homem que expressa poder dentro da
relação afetiva por meio da violência e ii) a feminilidade da
mulher jovem e “da rua” e, como masculinidade compatível,
o homem que é violento em diversas esferas da vida, não
apenas nas relações de gênero. Para a construção dessas
narrativas, compreendeu-se os marcadores geracionais -
idade dos sujeitos - e os marcadores de classe social - como
a localização da residência dos sujeitos e suas ocupações
- como fatores que estão em constante interação com as
relações de gênero narradas.
Foram constatadas duas dimensões importante presen-
tes na classificação de um homicídio como feminicídio. A pri-
meira diz respeito ao projeto político de pertencimento e de
reconhecimento de uma categoria - o ser mulher - que per-
251
mitiu acesso ao reconhecimento simbólico da morte por mo-

descolonizar: a prática e o sexo


tivação de gênero. A segunda dimensão trata da produção e
reprodução de desigualdades sociais nesse processo de pro-
jeto político. Ainda que todas as mortes tenham tido o reco-
nhecimento do gênero como motivo e, com isso, tenham sido
qualificadas e interpretadas como mais graves pelo aparato
policial, elas produzem narrativas que diferenciam os sujeitos.
Por fim, propõe-se a interseccionalidade como instru-
mento analítico que não se limita a somar ou a descrever a
sobreposição de categorias sociais, mas que permite com-
preender as interações que ocorrem em diferentes contextos
e resultam em diferentes identidades. Da mesma forma, as
análises interseccionais permitem complexificar as desigual-
dades sociais, visto que essas não são tomadas de forma
isoladas; elas são tomadas como constitutivas.

252
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255
Novas questões na Sociologia no Ensino Médio:
heteronormatividade na escola, um estudo de caso

Tamirys Claudino Bica


Novas questões na Sociologia no Ensino
Médio: heteronormatividade na escola, um
estudo de caso

Introdução

Este é um ensaio sobre a nova presença da sociologia


no Ensino Médio e suas relações com novas questões sociais
que emergem no cotidiano escolar a partir do estudo de um
caso ocorrido em uma Escola Publica de Ensino Médio – EJA,
na zona Leste de Porto Alegre, que envolveu duas estudantes
transgêneros. Ao descrever suas relações com colegas, esco-
la, professores e funcionários, busca-se compreender como a
heteronormatividade se faz presente no dia a dia das institui-
ções escolares contemporâneas. O estudo foi realizado a partir
descolonizar: a prática e o sexo

de referências e conceitos obtidos principalmente da sociologia


das conflitualidades, voltados para a questão das violências, no
que tange seus aspectos multifacetários. Estudos de gênero e
de sexualidade, situados no campo pós-estruturalista, compu-
seram a base teórica para a compreensão dos conflitos desen-
cadeados no caso em questão e incidiram nos novos rumos,
conhecimentos e métodos, utilizados nas aulas de sociologia.
O retorno da sociologia1 enquanto disciplina componente
do currículo do Ensino Médio brasileiro se dá num contexto

1 A história da Sociologia na Educação Básica pode ser dividida em três


períodos: período de institucionalização da disciplina (de 1891 a 1941); pe-
ríodo de ausência como disciplina obrigatória (de 1941 a 1981) e período de
reinserção gradativa (de 1982 a 2001). Sua institucionalização se dá nas
primeiras décadas do século XX, sendo a produção brasileira, em geral,
autodidata de formandos de outros cursos. Em 1891 foi apresentada como
“Sociologia e Moral”, porém saiu do currículo em 1901 no projeto de Ben-
jamin Constant. A disciplina de sociologia para formação de educadores se
vincula ao próprio movimento da Escola nova. Durante o regime de Getúlio
Vargas no Estado Novo, a disciplina é excluída do currículo. Apenas com a
aprovação da Lei N. 11.684 de junho de 2008 foi determinado o retorno das
aulas de Sociologia no Ensino Médio para só depois ocorrer sua inserção
como Ciência Social na academia (FREITAS e FRANÇA, 2016)
259
social de grande complexidade. No cotidiano escolar, educa-

descolonizar: a prática e o sexo


dores afirmam que emergem demandas de diferentes facetas,
de novas ordens, novos conflitos que têm colocado instigantes
desafios: não só para professores que atuam com a disciplina
há algum tempo, mas também para os novos ingressantes no
ofício de professor. A saber, alunos do curso de Licenciatura
em Ciências Sociais que se encontram no Estágio de Docên-
cia, uma etapa obrigatória para essa formação.
Nos termos de estudos do campo da Sociologia das Con-
flitualidades (TAVARES DOS SANTOS, 2009) é possível admitir
que se vive uma crise de sociabilidade, cujos limites contornam
manifestações práticas de violências, de violências difusas que
se alastram por toda a sociedade e que, portanto, também têm
abrigo nas instituições escolares. Nesse âmbito de análise, há
a compreensão de que múltiplas violências contemporâneas
se dão num plano global, acirrando desigualdades de classe,
de raça/etnia e de gênero e/ou sexualidade.
A complexidade social configura novos arranjos e, como
consequência, novos conflitos sociais. Esses conflitos replicam
nas escolas de Ensino Básico, nos conteúdos trabalhados, for-
çam mudanças de temáticas, alteram planos e metodologias.
E, num sentido amplo, incitam a reflexão sociológica de seus
atores para a necessidade de agregar estudos de campos do
conhecimento humanístico contemporâneo, voltados para a
compreensão de questões urgentes do presente, nas quais a
violência e as relações de gênero e de sexualidade ganham
centralidade, especialmente no âmbito educacional, foco des-
se trabalho. A teorização nas ciências humanas, desde os anos
oitenta, após o período de ditadura militar, vem incorporando
essas e outras novas questões às pesquisas. Na categoria
classe social somam-se problemáticas derivadas da emergên-
cia de identidades de grande inserção grupal e/ou política e, na
pesquisa educacional, teorias pós-críticas e pós-estruturalistas
passam a compor as ferramentas conceituais do campo.
No presente ensaio, a relação de orientação da prática
docente é, em parte, ficcionalizada, ou seja, tem determina-
260
do caráter de ficção a partir de uma dada realidade, abrindo o
campo da imaginação sociológica. A história contada objetiva
conjugar, num quadro teórico coerente, a interpretação socio-
lógica brotada de uma experiência ocorrida durante o Estágio
de Docência em Ciências Socias de uma estudante do Curso
de Licenciatura. A realidade encontrada na instituição escolar e
a imaginação sociológica da estudante e sua orientadora bus-
cam uma composição na tentativa de compreender sentidos
para a prática de ensino em ciências sociais, na educação bra-
sileira da atualidade. A experiência do estágio de docência é
entendida como um acontecimento proporcionador de transfor-
mações e organizações de conhecimentos, assim como de es-
colhas profissionais. A proposição afirmativa desse argumento
se fundamenta na compreensão de que na estagiária-docente
são operados deslocamentos de várias facetas, entre elas: a
descolonizar: a prática e o sexo

do espaço da universidade para o espaço escolar do Ensino


Médio e da condição de discente para docente. A posição ocu-
pada pela estagiária é a de quem transita, de quem se mo-
vimenta entre paradigmas explicativos das dinâmicas sociais
contemporâneas, de quem vive a experiência de professor e
de pesquisador em formação. Professores-pesquisadores-es-
tagiários são condições singulares do conhecimento e podem
ser pensados como identidades provisórias da docência, con-
dição especial do ofício de professor. A narrativa a seguir trata
de conhecimentos adquiridos numa dessas experiências.
Durante o período de um ano de estágio numa Escola Pú-
blica de Ensino de Jovens e Adultos, uma orientanda estagiária
de docência em Ciências Sociais se deparou com diversas si-
tuações em que as questões de gênero, na sua avaliação, eram
comuns no cotidiano da escola. Afinal, dispositivos de estabe-
lecimento das diferenças entre homens e mulheres são velhos
conhecidos de todos aqueles e aquelas que passaram anos de
suas vidas, desde a educação infantil, nessas instituições. As
diferenças entre o sexos estão presentes, num âmbito geral,
desde na disposição e ocupação dos espaços até nos conteú-
dos curriculares, assim como nas paredes, nas conversas, nas
261
quadras para a educação física, nas mães levando seus filhos

descolonizar: a prática e o sexo


pequenos para a aula. De acordo com Louro (1997: 58):

A escola delimita espaços. Servindo-se de símbolos e có-


digos, ela afirma o que cada um pode (ou não pode) fazer,
ela separa e institui. Informa o “lugar” dos pequenos e dos
grandes, dos meninos e das meninas. Através de seus qua-
dros, crucifixos, santas ou esculturas, aponta aqueles/as
que deverão ser modelos e permite, também, que os sujei-
tos se reconheçam (ou não) nesses modelos. O prédio es-
colar informa a todos/as sua razão de existir. Suas marcas,
seus símbolos e arranjos arquitetônicos “fazem sentido”,
instituem múltiplos sentidos, constituem distintos sujeitos.

Modelos impostos de normalidade, comportamentos de-


sejáveis a partir de padrões hegemônicos de gênero e de se-
xualidade encontram respaldo e formas de constituição nas
instituições educacionais, assim como a reprodução e a pro-
dução de relações assimétricas, naturalizadas nesses âmbitos.
Palavras ditas e escritas sobre padrões e o silenciamento sobre
temas considerados tabus têm o poder de criar sentidos e sub-
jetividades que, num primeiro encontro, assim como no olhar da
memória da estagiária-professora sobre o caminhar de meninos
e meninas no entorno e próximo à escola do estágio, sugerem
a incorporação plena de suas normas. O cotidiano escolar res-
pirava a tranquilidade da incorporação da heteronormatividade:

[...] a ideologia moderna de gênero que fundamenta a he-


terossexualidade compulsória, ou seja, a expectativa e
coerção social para que as pessoas se relacionem afetiva
e sexualmente com outras do sexo “oposto” - pois isto é
compreendido como “natural” - e também a heteronorma-
tividade, a organização da vida sexual e afetiva de acordo
com os padrões binários de oposições homem/ mulher, ati-
vo/passivo, mesmo para relações entre pessoas do mesmo
sexo ou gênero (LEITE, 2008).

Compreende-se aqui a heteronormatividade como práti-


cas discursivas e não discursivas que instituem a heterosse-
262
xualidade como normalidade, como uso adequado, esperado e
correto do desejo. Entretanto, algo pode irromper essa familia-
ridade, essa repetição de situações re/conhecidas, ou seja, a
atenção da futura professora foi convocada diante do caso de
duas alunas transgênero.

O Caso: compreendendo as diferenças

Uma das alunas referida anteriormente cursava o segun-


do ano. Joana2, uma bela mulher, cuja doçura e feminilidade,
a partir de reconhecimentos estabelecidos sobre o que signifi-
cam esses atributos, eram notavéis. A docente-estagiária não
conseguia verificar distinção no tratamento (de professores, alu-
nos e funcionários) direcionado a ela e as outras colegas fisi-
camente semelhantes. Joana tinha traços, atitudes e aparência
descolonizar: a prática e o sexo

de qualquer mulher desejável nos ideiais estéticos e normativos


da nossa sociedade atual, cabelos longos e bem tratados, es-
guia, roupas discretas, sorriso bonito, voz agradável. Quando a
Joana procurou a docente-estagiária para informar que ela era
uma aluna transgênero, a docente-estagiária demorou, dentro
de um tempo em que considerou como próprio de seu pré-con-
ceito já enraizado e familiarizado com modelos de normalidade,
para reconhecê-la. Este tempo foi necessário para ligar à figura
que já havia sido citada em outro momento, a pessoa que ali se
encontrava na sua frente. Talvez porque Joana correspondesse
ao que rapidamente é elencado no que se entende por normas
de gênero. Sobre esse aspecto, Butler sublinha:

[...] se a norma confere inteligibilidade ao campo social e


normatiza esse campo para nós, então estar fora da norma
é continuar, em certo sentido, a ser definido em relação a
ela. Não ser totalmente masculino ou não ser totalmente
feminina é continuar sendo entendido exclusivamente em
termos de uma relação a totalmente masculino e totalmente
feminina (BUTLER, 2014: 253).

2 Os nomes dados às alunas são fictícios, respeitando suas identidades


verdadeiras.
263
São de conhecimento comum as múltiplas violências

descolonizar: a prática e o sexo


ocorridas contra a denominada população LGBTs na sociedade
brasileira, muito embora a violência contra ela ocorra
mundialmente, já que prisões e pena de morte de homossexuais
ainda ocorrem em alguns países3. As agressões que vão desde
a violência simbólica, passando por estigmas, preconceitos,
humilhações e até a brutalidade física compõem o repertório
de suas histórias de vida, especialmente as escolares. Corrigir,
curar esse transtorno são palavras comuns a eles direcionadas.
Travestis e transexuais são alvos importantes dessas violências.
O Brasil, de acordo com dados colhidos pela organização
não governamental (ONG) Transgender Europe (TGEU)4, é o
país que mais mata essa população. Embora a classificação
Americana dos transtornos mentais (DSM-IV-TR) tenha retirado
do rol dos diagnósticos a palavra transexualismo, o diagnóstico
de Transtorno de Identidade de Gênero (considerado de menor
preconceito) foi implantado em seu lugar. O campo da saúde
direciona a essas pessoas análises patologizantes sobre
seus corpos, a elas são oferecidos tratamentos, intervenções
médicas, hormonizações, explicações psicopatologizantes,
cirurgias de readequação e/ou transgenitalização.
Foi surpreendente, portanto, para a professora em forma-
ção, encontrar naquela escola uma pessoa que, aparentemen-
te, não sofria nenhum tipo de violência, decorrente de sua tran-
sexualidade. Quais seriam as condições reais de possibilidade
de mudanças paradigmáticas, nas relações assimétricas entre
os gêneros e as sexualidades? Na entrada de novos persona-
gens, Joana era um exemplo. Violências físicas e simbólicas,
direcionadas tradicionalmente a pessoas como ela, parecia não
ter lugar naquela escola. Como isso era possível? Seria um efei-
to concreto de Políticas Públicas, de projetos educacionais com

3 GELEDES. Mapa de direitos LGBT e dados sobre violência mostram


divisões e contradições [online]. 2017.

4 AGÊNCIA BRASIL. Com 600 mortes em seis anos, Brasil é o que


mais mata travestis e transexuais [online]. 2015.
264
vistas à inserção e a visibilidade de grupos sociais historica-
mente discriminados? As pautas dos movimentos sociais, suas
reivindicações em nome dos Direitos Humanos das minorias
estavam sendo atendidas nas instituições socias? Estaríamos,
de fato, vivendo novos tempos nos estabelecimentos escolares,
onde a tolerância, a ausência de preconceitos, a aceitação har-
moniosa das diferenças de gênero e de sexualidade reinariam
indefinitivamente? A professora-estagiária foi afetada por esse
acontecimento, e respostas simples não o decifrariam.
Durante os meses em que a professora-estagiária teve
a oportunidade de ministrar aulas, Joana sempre se mostrou
interessada nas discussões engendradas na disciplina de
sociologia: gentil, delicada quando se expressava, suas
opiniões eram respeitadas e escutadas em sala de aula.
Quando Joana sentia necessidade de colocar com ênfase
descolonizar: a prática e o sexo

algum argumento, tomar posições sobre algum tema político


(que sempre gerava discussões acirradas), mesmo que os
colegas discordassem de algum aspecto, suas palavras eram
ouvidas e levadas em consideração no decorrer dos debates.
Na sala dos professores seu nome nunca era citado, exceto
para elogiar sua aparência ou comportamento tido como
consideravelmente melhor do que em outros tempos. De
acordo com alguns dos professores em conversas, durante o
período de transição de Joana, a aluna tinha certa dificuldade
de socializar com os demais colegas e afirmavam que era
mais agressiva no trato. Todavia, atualmente Joana parecia
convergir, na aparência e na forma de se comportar, com os
critérios de socialização daquele espaço, com os critérios de
normalização, assim como interagir, de forma satisfatória, nas
suas relações com os outros atores sociais da escola.
A outra aluna transexual, Raquel, cursava uma turma
de terceiro ano. Raquel, diferente de Joana, parecia causar
desconforto com sua presença marcante (visto que era
impossível não percebê-la). Ela era considerada por muitos
como excêntrica. A conotação excêntrica, dependendo da
situação, poderia ganhar outros adjetivos: metida, horrorosa,
265
pessoa insuportável, espalhafatosa, dissimulada, chata, sem-

descolonizar: a prática e o sexo


noção, feia, ridícula, coisa de outro mundo, traveco gordo.
Esses insultos foram proferidos em diversos momentos, a
estagiária-docente testemunhou muitos deles, sem disfarçar o
espanto com a naturalidade e a banalidade com que eles eram
ditos. Nenhum dos colegas demonstrava gostar da presença
da Raquel na sala de aula. Ela ocupava um lugar distante dos
outros alunos e quando era proposto trabalho em grupos, ela
não compunha com os colegas e/ou não era convidada para
participar, seus trabalhos eram sempre individuais. O seu
corpo lido como estranho parecia se constituir como um alvo
de ações preconceituosas e difamatórias, os estereótipos a
ela dirigidos eram abundantes. Na sala dos professores havia
sempre críticas sobre seu comportamento, principalmente
sobre sua aparência que, além do incômodo causado, era
considerada vulgar e estranha. Mas, por que seu corpo era
visto como um corpo estranho?
Um corpo significado como estranho, de acordo com
uma definição usual, causa um certo mal-estar, algo nele é
aparentemente desajustado. Assim, muitos se referiam a Raquel,
como estranha, tudo nela era estranho, roupas demasiadamente
justas e coloridas, saias curtas, maquiagem excessiva. Muitas
vezes, colegas e professores dirigiam-se a ela utilizando o
pronome masculino. Raquel não estava de acordo com os ditos
padrões ideais das normas de beleza da atualidade, seu corpo
não era reconhecido como belo. Além disso, se concordarmos
com “especialistas” que abundam os meios informacionais,
ela era um exemplo de alguém que estava acima do peso
considerado saudável para sua estatura. Ela usava uma peruca,
não parecia um cabelo natural, ela era careca, sua voz era grave
e ela tentava deixá-la o mais doce possível, mas, ainda assim,
a tonalidade da voz masculina era facilmente reconhecível. Era
possível notar que todos a viam como uma tentativa frustante de
ser uma mulher, de se tornar uma mulher.
Raquel dizia que teria sucesso no futuro, gostaria de ser
desembargadora, e que ela seria capaz de conquistar tudo que
266
almejava. Os outros alunos viam nisso uma atitude arrogante
e demonstravam não aceitar suas palavras. Em sala de aula,
constantemente alguém apresentava um argumento contrário
ao que ela expunha e o tom do debate era agressivo. Ela
geralmente interrompia os assuntos da aula para falar sobre
si: histórias pessoais, aventuras amorosas, relações familiares,
ganhos materiais. A docente-estagiária reconhecia em Raquel
a necessidade constante de se afirmar diante de um grupo que
não a aceitava, em todos os conteúdos trabalhados ela tratava
de estabelecer um vínculo com algum aspecto de sua vida,
seus colegas às vezes riam, falavam baixo, sacudiam a cabeça,
expressavam o descontentamento com essas intervenções.
Raquel estava passando pelo processo de transição, seu nome
social começou a valer um tempo depois do estágio de docência,
aqui narrado. A professora-estagiária sempre a chamava pelo
descolonizar: a prática e o sexo

nome que ela se apresentou. Todavia, os demais professores


ainda a chamavam pelo nome de registro, os colegas faziam
piadas e ela parecia estar sempre em constante julgamento por
todos e, consequentemente, adotava uma atitude defensiva.
Ela parecia representar “claramente a diferença que não quer
ser assimilada ou tolerada.” (LOURO, 2004: 38)
A construção do gênero, seguindo a matriz explicativa
de Butler (2001) atua através de meios excludentes, de
forma que o humano é não apenas produzido sobre e contra
o inumano, mas através de um conjunto de exclusões, de
apagamentos radicais, os quais, estritamente falando, recusam
a possibilidade de articulação cultural. O diferente, o exótico,
por mais que transite aos nossos olhos todos os dias, causa
um sentimento comum descrito em diversas expressões de
preconceito e espanto que podem ser resumidos por uma só
palavra trazida por essa autora: abjeção. Os corpos abjetos são
aqueles corpos que não deveriam existir em determinada matriz
cultural, portanto são ignorados, e a eles é negado sua própria
existência social. O corpo abjeto é aquele corpo que causa aos
olhos da indiferença sobre suas vidas, asco, nojo, desconforto.
Este corpo desagrada pois não faz parte do modelo do que um
267
corpo deve ser, se portar, existir, portanto a ele não caberia a

descolonizar: a prática e o sexo


nenhum lugar. Entretanto, de acordo com Butler:

[...] o imperativo heterossexual possibilita certas identifi-


cações sexuadas e impede ou nega outras identificações.
Esta matriz excludente pela qual os sujeitos são formados
exige, pois, a produção simultânea de um domínio de se-
res abjetos, aqueles que ainda não são “sujeitos”, mas que
formam o exterior constitutivo relativamente ao domínio do
sujeito. O abjeto designa aqui precisamente aquelas zonas
“inóspitas” e “inabitáveis” da vida social, que são, não obs-
tante, densamente povoadas por aqueles que não gozam
do status de sujeito, mas cujo habitar sob o signo do “inabi-
tável” é necessário para que o domínio do sujeito seja cir-
cunscrito (BUTLER, 2001: 155).

A realidade concreta da sala de aula também coloca em


xeque a contribuição que as Ciências Sociais têm, de fato, a
oferecer para as demandas dos tempos atuais, emergidas na-
quele ambiente, considerou a professora-estagiária. O que es-
tudar junto aos alunos naquele cenário, agora tão imerso em
contradições? Clássicos da sociologia, sistemas econômicos,
diferenças culturais, conteúdos políticos? Sim, sem dúvida!
No processo de elaboração do planejamento das aulas, esses
conteúdos foram acordados, tanto com a orientação da univer-
sidade, quanto com a professora da escola. Entretanto, conteú-
dos relativos às questões de gênero e de sexualidade exigiam
lugar nessa conflitualidade instaurada. O Plano da disciplina,
assim como a inserção dessas questões, foi alterado.

Gênero e abjeção como conteúdos sociológicos

As aulas de sociologia têm o intuito não apenas de que os


alunos tenham conhecimento dos grandes pensadores da área,
ou entendam suas concepções teóricas, mas principalmente
contribuir para a formação de um cidadão crítico, capaz de ques-
tionar-se, e que veja na escola não só um ambiente de aprendi-
zagem momentâneo, mas algo que ele possa levar para fora do
268
ambiente escolar5. Com base nas Orientações Curriculares Na-
cionais da Sociologia e da necessidade de que se trabalhassem
os conteúdos solicitados pela professora titular na disciplina, mi-
nistrada na escola do estágio, a professora-estagiária traçou um
Planejamento de aulas. Nele, conteúdos sobre os conceitos de
Capitalismo e de Estado, por exemplo, foram abordados a partir
de teorias de Karl Marx e Max Weber. Foi proposto um trabalho
que compreendesse as relações de poder do ser humano social
como sujeito ativo histórico, e o espaço ocupado pelo indivíduo
na sociedade em relação ao mercado de trabalho. Além disso,
pretendeu-se compreender a temática trabalho na sociedade
contemporânea, buscando criar uma ponte entre o conhecimen-
to clássico e contexto atual, onde a vivência e conhecimento
do aluno adquirido fora do ambiente escolar foi considerado de
extrema importância para os debates em aula. A professora-es-
descolonizar: a prática e o sexo

tagiária inseriu no Planejamento estudos de gênero, com o ob-


jetivo de desenvolver juntos aos alunos novas percepções re-
lativas a esse conhecimento, ressignificando, desnaturalizando
sentidos sobre a diferença nesses âmbitos. Ela procurou explo-
rar conceitualmente pesquisas sobre machismo, estudos queer,
homofobia, patriarcado, feminismo, e diferenciar esses estudos
de compreensões oriundas de um conhecimento comum.
A construção de gênero é uma construção cultural, po-
rém, essa compreensão não é consensual, visto que tradicio-
nalmente, em várias instâncias do social, o corpo é pensado
como determinado anatomicamente, biologicamente (BUTLER,
2001). Assim, foi iniciado esse conteúdo, considerando a hipó-
tese de que há uma suposição universalizante que o indivíduo
já tenha nascido com seu gênero e sua sexualidade determina-
das de forma essencializada, e, nessa suposição, há a maneira
correta de se portar de acordo com cada uma das condições
pré-determinadas: ou você é uma fêmea e deverá se portar
como uma mulher, ou é um macho e deverá se portar como
um homem, não importando, nesse entendimento (que se colo-

5 MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Secretaria de Educação Básica [online].


269
ca como hegemônico) se esses comportamentos, assim como

descolonizar: a prática e o sexo


estéticas e valorações diferenciadas sobre os sexos, tenham
sofrido modificações ao longo da história humana.
Em uma aula, a professora-estagiária, objetivando uma
discussão sobre diferença, família e estereótipos, utilizou o filme
“A excêntrica família de Antônia”. Nessa produção, uma mulher
(Antônia) acolhe um grupo de pessoas exóticas, excêntricas e
fora do que é considerado normal. Cada um dos personagens
eram considerados feios, deficientes, velhos demais, gordos
demais, magros demais, não se encaixam em padrões esté-
ticos de beleza e de normalidade comuns na grande maioria
dos filmes. Em uma análise6 feita sobre comentários de alunos
de uma determinada universidade, proferidos ao assistirem a
esse filme, e detectado que a todo momento há um estranha-
mento em relação às pessoas diferentes que encenam o filme.
O estranhamento é declarado de diversas formas, sugerindo
que não há possibilidade de reconhecimento, de inteligibilidade
sobre outros arranjos familiares que não sejam ilustrativos de
um padrão branco e heterossexual.
Também, a professora-estagiária utilizou como material
para discussão análises de filmes de super-heróis. Os perso-
nagens heróicos são destacados pela sua beleza, amabilida-
de e claramente demonstram uma postura heterossexual. Já,
quando olhamos para os vilões, vemos em destaque posturas
homossexuais, sua aparência física nem sempre é agradável
aos olhos e jamais são amáveis, a não ser com aqueles que os
acompanham, que são do “mesmo grupo”. Os alunos exempli-
ficaram essa distinção, lembrando de um desenho infantil, “As
Meninas Super-Poderosas”. “O Vilão” da trama deste desenho
é chamado por um nome de gênero masculino, ele lembra uma
travesti que se caracteriza, se comporta de forma claramente
escandalosa e desagradável aos olhos da cidade.

6 SILVA, R.; RIBEIRO, F. “Façamos justiça às mulheres de famílias excên-


tricas e aos gays da Faixa de Gaza”. O público e o privado da Revista
do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Es-
tadual do Ceará, 19, Janeiro/Junho, 2012.
270
À luz dessas considerações, refletiu a professora, po-
der-se-ia retomar o caso das duas alunas transexuais. Raquel
claramente tinha uma postura, uma imagem performática que
dificultava o enquadramento, o “encaixe” de gênero nas únicas
duas possíveis escolhas, ser homem ou ser mulher, portanto,
ela parecia conformar a abjeção. Entretanto, essas considera-
ções não tinham lugar naquele espaço institucional, na análise
das relações ali estabelecidas entre as diferenças. Os exem-
plos da heteronormatividade compulsória vinham de fora dos
muros da escola, mesmo que elas ocorressem em ato, no co-
tidiano escolar, discutia-se sobre os desenhos e filmes ante-
riormente referidos, sobre alguma reportagem, personagem de
novela, acontecimentos do mundo midiático entre outros.
As relações entre a teorização e as cenas presenciadas na
escola que envolviam as reais personagens transexuais aconte-
descolonizar: a prática e o sexo

ciam nos pensamentos da professora. Questões éticas? Risco


de ofertar mais um tipo de análise crítica das instituições escola-
res e seus mecanismos de regulação? As respostas não pode-
riam ser encontradas de forma imediata, elas exigiriam um maior
tempo de inserção e análise da instituição e, mesmo assim, a
provisoriedade lhes constituiam. Além disso, elas exigiriam uma
franca disposição para aprofundamento de conteúdos e espaço
de reflexão dos atores sociais escolares, entretanto, isso colidia
com os tempos, disposições, currículos, especialmente àqueles
destinados usualmente aos Estágios de Docência.

Heteronormatividade: como se encaixa


o que não tem caixa?

A questão de como a heteronormatividade se institui,


inclusive sobre aqueles que fogem às normas de gênero, se
constituia, para a estagiária professora, num enigma sujeito a
investigação. Padrões heteronormativos e hegemônicos su-
põem um comportamento heterossexual entre os indivíduos.
O conceito de heteronormatividade parte desta ideia, de que
existe apenas duas categorias nas quais o indivíduo pode se
271
encaixar de acordo com seu sexo biológico. Esse conceito, ao

descolonizar: a prática e o sexo


contrário do que parece, recai não apenas sobre indivíduos
heterossexuais, mas como uma norma social que atinge a to-
dos indivíduos em maior ou em menor grau. A sociedade exige
completa coerência entre sexo, gênero e desejo, ou seja, se
você é uma mulher, já há um caminho traçado a seguir, você irá
se portar de maneira feminina, algo definido na cultura, se en-
quadrando nos comportamentos já determinados, e se atrairá
por homens. Sobre esse aspecto, a performatividade é funda-
mental, ela não é um “ato” singular ou deliberado.

[...] é a prática reiterativa e citacional pela qual o discurso


produz os efeitos que ele nomeia. [...] as normas
regulatórias do “sexo” trabalham de uma forma performativa
para constituir a materialidade dos corpos e, mais
especificamente, para materializar o sexo do corpo, para
materializar a diferença sexual a serviço da consolidação
do imperativo heterossexual (BUTLER, 2001: 152).

As diferenças de gênero são baseadas em performan-


ces. Um dos focos de Judith Butler, no estudo das travestis e
transexuais, é exatamente o de destacar o quanto a performan-
ce define o gênero e o quanto a subversão das diferenças de
gênero, feitas, por exemplo, pelas travestis e pelos indivíduos
transexuais, nos mostra a fragilidade da definição dos mesmos.
Essa performance, todavia, se é subversiva, tem um preço alto;
embora não exista a criminalização das práticas transexuais, o
preconceito e, em alguns casos, as violências físicas e verbais
são costumeiras para muitos LGBTs.
O termo Queer foi usado como xingamento e ofensa dire-
cionados a gays, lésbicas, transexuais, travestis, e, por fim, foi
adotado pelos mesmos, como forma de identificação e empo-
deramento. Queer pode ser traduzido como estranho, bizarro.
“A diferença que não quer ser assimilada ou tolerada”, conforme
afirma Butler (2001), é uma das definições possíveis de Queer.
É possível reconhecer como Raquel ilustra o que se en-
tende por Queer, naquele ambiente escolar, enquanto Joana
272
ilustra, por outra via, um exemplar reconhecível e aceitável de
mulher. Joana consegue se encaixar naquele ambiente, mes-
mo com as dificuldades que certamente implicam ser uma mu-
lher transexual, dentro da caixinha de um feminino idealizado,
já que não o subverte, como Raquel o faz. Joana é considera-
da feminina, sensível, simpática, bonita, é uma mulher transe-
xual que “parece”, de fato, uma mulher dentro dos padrões. Um
colega afirmou que ela era visualmente mais mulher do que as
outras mulheres que nasceram com o sexo biológico de uma
fêmea, sua postura, sua “performance”, confirmava que ela era
uma mulher inspiradora!. Por outra via, para muitos, Raquel
não tinha nada de mulher, apenas o desejo de ser uma.
A heteronormatividade causava aquela abjeção direcio-
nada a Raquel? Quem é mais fácil amar? A mocinha ou a ban-
dida? A feia ou a bela? A comum ou a estranha? Essas ques-
descolonizar: a prática e o sexo

tões são trazidas para que possamos entender que definir um


padrão significa que tudo que está distante dele não é um ca-
minho seguro a ser seguido. A existência de Raquel incomoda
o olhar treinado para um tipo de inteligibilidade sexual, onde ela
não tinha a voz, não tinha a postura, nem a aparência de uma
mulher. Todos referiam-se a ela como um homem que queria
ser uma mulher, mas dificilmente conseguia. Como é possível
que, em uma sociedade baseada em padrões heteronormati-
vos, encaixar uma mulher que não “parece” mulher e tampouco
se reconhece como homem?
A heteronormatividade atinge todos os âmbitos, todos os
gêneros, todas as sexualidades. Ela está riscada no nosso modo
de agir, de andar, de falar, de se vestir, de se portar, ela está em
toda a mídia que assistimos, os assuntos nos quais falamos, as
nossas comparações amplamente repetidas em diálogos coti-
dianos como “isso é coisa de homem”, “mulher é tudo igual”.

O consenso contemporâneo sobre a relação direta entre


corpo e identidade expõe uma sociedade fundada em uma
ética individualista, competitiva e masculinizante. O corpo é
visto cada vez mais como um instrumento para atingir mo-
delos identitários que nada diferem de imposições sociais
273
difundidas pelos mais diversos meios de convencimento:

descolonizar: a prática e o sexo


da educação à mídia. Os modelos de identidade são cada
vez mais difíceis de atingir e exigem também altas quan-
tias, além de incomensurável esforço físico-corporal e tem-
po. Disciplina é um dos valores mais cultuados e expõe o
ethos ascético do culto contemporâneo ao corpo, um modo
de vida impulsionado pelo desejo de integração aos valores
constitutivos da cultura dominante (MISKOLCI, 2006: 682).

Conforme afirma Miskolci, Seguir o padrão heteronorma-


tivo exige do indivíduo muito além de adequações físicas. Todo
o ambiente externo, a forma de se comunicar, a cultura, a edu-
cação e a mídia são ferramentas poderosas para a manutenção
dos padrões estéticos, comportamentais que, ao enquadrar o in-
divíduo, limita sua expressão identitária, “controlando sua subje-
tividade”. O próprio indivíduo se autovigia para manter-se dentro
dos modelos de identidade e fazer parte do modelo de represen-
tação social ideal (MISKOLCI, 2006). O padrão heteronormativo
está em todas os lugares, independente de qual seja a sexuali-
dade. Mesmo se alguém que se descobre transexual, ao recor-
rer a algumas performances para que possa definir seu gênero
e apresentá-lo socialmente, a partir de normas aceitáveis e inteli-
gíveis, poderá sofrer consequências, se esse alguém, como Ra-
quel, apesar de seus esforços, não se encaixar. Para uma con-
clusão provisória, a visibilidade e a invisibilidade das questões
de gênero e de sexualidade no ambiente escolar se constituiam,
nessa avaliação, como uma ambivalência que lhe constituia, e a
violência, em seus múltiplos aspectos, onipresente.

Considerações finais

A estagiária-professora tece as considerações de que


sua experiência no estágio de docência lhe permitiu relembrar
fatos de sua infância, de recriar novas memórias como profes-
sora, de compreender uma realidade que, antes, se distinguia
totalmente da sua, e, pós-estágio, se funde nela como algo
natural e compreensível.
274
A visibilidade e a invisibilidade dos conflitos de gênero, no
ambiente escolar, parecem andar juntas, de forma ambivalen-
te. As duas alunas, Joana e Raquel, ilustravam a diferença de
acolhimento às transexuais, nesse ambiente. Ou melhor, são
sujeitas às práticas discursivas sobre elas, que as distinguiam,
as diferenciavam, estabelecendo hierarquias, ordem de im-
portância, simpatias. Sendo duas alunas transgênero, mesmo
diante de todas as dificuldades sociais, emocionais que isso
traz numa sociedade claramente preconceituosa, as diferentes
formas de tratamento eram visíveis a qualquer um que se pro-
punha observar.
Dois meses antes do final estágio, Raquel entrou em atrito
com outro colega, Rafael, um aluno negro de 22 anos, durante
uma aula na qual a estagiária- professora não estava presen-
te. Ela soube através dos outros professores e depois, através
descolonizar: a prática e o sexo

dos alunos, o ocorrido. De acordo com a descrição de todos,


Rafael estava falando com outros colegas, Raquel achou que
o mesmo estava falando mal dela, foi tirar satisfações, e, no
fim, ambos se agrediram primeiro verbalmente e, depois, fisi-
camente. As agressões que Raquel proferiu, de acordo com os
colegas, foram de cunho racista, e as agressões de Rafael, de
cunho transfóbico.
Toda a escola, e isso não parecia um exagero, parecia ter
ficado com raiva de Raquel. Alunos, professores, funcionários
tomaram posições contra ela, principalmente porque, depois
do caso, Raquel decidiu expor as atitudes da escola, colegas
e funcionários em uma rede social, contando o quanto se sen-
tia desrespeitada e violentada. Longe de atribuições de mérito
(encontrar quem estava ou não falando a verdade) e de juízo
de valor, e sim compreender a posição da instituição escolar e
seus membros diante de um caso, é verificavel a sua não isen-
ção. Ficou evidente que as emoções tomaram conta dos portões
da escola e o que era uma briga de alunos, virou uma guerra
contra uma aluna em especial, Raquel. A análise e a compreen-
são de aspectos multifacetários da violência, suas dinâmicas e
emergências, especialmente no solo escolar, exige a atenção de
275
que nele também ocorrem transformações, inclusive na forma

descolonizar: a prática e o sexo


de como ela é percebida. Se nele ocorrem eventos com vistas a
uma cultura da paz, a erradicação de racismos, da homofobia e
suas derivas, como entender a persistência desses fenômenos?
A partir de 2017, o conceito de gênero não é mais con-
teúdo a ser estudado na educação infantil e fundamental, de
acordo com a nova Base Nacional Curricular Comum BNCC. É
indutivo pensar que, se nacionalmente a educação brasileira,
no que tange as suas políticas e diretrizes, assume o silencio
à essas questões, no microcosmos dos ambientes escolares,
nos pequenos centros educacionais, esse assunto, impossível
de se tornar invisível, é tratado de diversas formas, variando de
acordo com mentalidades e moralidades de cada membro da
instituição. A própria condição da disciplina de sociologia (um
campo fertil para se trabalhar questões de gênero e de sexua-
lidade), na Educação Básica, tem sido colocada em xeque, os
riscos de sua exclusão dos currículos são iminentes.
A professora-estagiária observou a ausência do debate
dentro escola sobre como agir com os alunos que se apresen-
tam fora da norma, fora do padrão social, ou melhor, fora do
padrão heteronormativo. Todas as decisões produzidas, em
relação aos conflitos instaurados, oriundos dessas dimensões,
tendem a ocorrer de forma espontânea, de acordo com o cole-
tivo, que tem poder decisivo no calor da hora.
O resultado disso é claro: decisões que podem ser ca-
racterizadas como emotivas e irresponsáveis por parte das
instituições escolares e seus representantes, onde não é
possível construir uma educação inclusiva se, desde nos-
sas bases educacionais, apenas a exclusão e a invisibilidade
são alimentadas. A mútua hostilidade, a agressão que ocor-
reu, onde um rapaz negro espancou uma mulher transexual,
e uma mulher transexual espancou um rapaz negro, levou
a professora-estagiária a questionar: o futuro nos reservará
uma guerra de todos contra todos, onde a possiblilidade de
uma cópia amarelada de um leviatã reinará em absoluto, ou
esse cenário já seria uma realidade?
276
Referências

AGÊNCIA BRASIL. Com 600 mortes em seis anos, Brasil é o


que mais mata travestis e transexuais. 2018.

BUTLER, J. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do


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274, 2014.

FREITAS, M. C. L.; FRANÇA, C. E. História da Sociologia e de sua in-


serção no Ensino Médio. MovimentAção, v. 3, n. 5, pp. 39-55, 2016.

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mostram divisões e contradições. 2018.
descolonizar: a prática e o sexo

LEITE, J. “Nossos corpos também mudam”: Sexo, gênero e a


invenção das categorias “travesti” e “transsexual” no discur-
so cientifico. São Paulo, 2008.

LOURO, G. L. Gênero, sexualidade e Educação: uma perspecti-


va pós-estruturalista. São Paulo:Vozes, 1997.

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MISKOLCI, R. Corpos elétricos: do assujeitamento à estética da exis-


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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Secretaria de Educação Básica.


2018.

SILVA, R.; RIBEIRO, Fe. “Façamos justiça às mulheres de famílias


excêntricas e aos gays da Faixa de Gaza”. O público e o privado
da Revista do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da
Universidade Estadual do Ceará, 19, Janeiro/Junho, 2012.

TAVARES DOS SANTOS, J. V. Violência e Coflitualidades. Porto


Alegre: Tomo Editorial, 2009.

277
Aborto, gênero e sistema de justiça criminal

Vanessa Ramos da Silva


Aborto, gênero e sistema
de justiça criminal

Introdução

No presente artigo propõe-se uma revisão sobre os es-


tudos de gênero e sistema de justiça, colocando-os em deba-
te com o aborto e a sua criminalização no Brasil. Os estudos
de gênero e seus atravessamentos no sistema de justiça já
demonstram que há um viés de gênero, raça e classe nas
diversas vertentes do Judiciário, seja em relação ao direito de
família ou criminal, por exemplo. Nesses estudos, é possível
verificar que o tratamento dado pelo Judiciário em questões
de gênero, raça e classe é desigual, de modo que, embora
seja um espaço que se pretenda neutro e imparcial, verifica-
descolonizar: a prática e o sexo

-se uma justiça que perpetua uma lógica patriarcal e com viés
de raça e classe. Em relação ao aborto, por sua vez, verifica-
-se que a tipificação da prática como crime não impede que
as mulheres abortem de forma clandestina, como alternativa
para interromper uma gravidez indesejada. Como consequên-
cia, a maioria das mulheres, em especial as que possuem
baixa renda, acabam por não ter acesso a condições médicas
adequadas para o procedimento e se submetem a riscos para
que possam interromper a gestação. Há, portanto, um recorte
quando se fala sobre o processamento e criminalização do
aborto: é um crime que tem gênero, raça e classe. Conclui-se,
através da revisão desses estudos em debate com estudos
sobre o aborto, que a sua criminalização acaba por agir mais
como uma forma de atribuir um caráter criminoso simbolica-
mente do que efetivamente um instrumento que visa a per-
secução e punição pelo crime. O sistema de justiça funciona,
assim, como um mecanismo de controle feminino, reforçando
o controle patriarcal, com viés de raça e classe e produzindo
e reproduzindo sentidos de gênero, reforçando papéis sociais
esperados para homens e mulheres.

281
Os estudos de gênero e seus atravessamentos no sis-

descolonizar: a prática e o sexo


tema de justiça já são temas de pesquisas desde os anos
80. Estudos como o de Mariza Corrêa (1983), Danielle Ar-
daillon (1994), Wânia Pasinato (1998) e Debora Diniz (2003),
que buscaram compreender como o gênero atua em espaços
como as Delegacias, Juizados Especiais Criminais e Juiza-
dos de Violência Doméstica, analisando como essa categoria
(e também outras categorias como raça e classe) atua nas
práticas no sistema de justiça, trouxeram grandes contribui-
ções para entendermos a produção de sentidos de gênero
nesses espaços e por esses atores.
O aborto, mais especificamente, também já foi tema de
pesquisas no Brasil, além de fazer parte da pauta de reivin-
dicações dos movimentos feministas que discutem a descri-
minalização da prática desde a década de 60. Apesar de a
discussão sobre o aborto e sua descriminalização fazer parte
das pautas dos movimentos feministas há muitos anos, no
Brasil ele apenas é permitido quando a gravidez é resultado
de estupro ou oferece riscos à vida da mulher e, em casos de
anencefalia fetal, conforme o entendimento do Supremo Tri-
bunal Federal no julgamento da Arguição de Descumprimento
de Preceito Fundamental (ADPF) 54.
Embora as discussões tenham avançado na década de
60 na Europa, que hoje permite o aborto em vários países, na
América Latina esse avanço foi contido, o que é atribuído, em
especial, à predominância de governos ditatoriais e à influên-
cia da religião na política. Com a redemocratização, a discus-
são sobre o aborto é retomada pelos movimentos feministas,
todavia, o aborto ainda é considerado crime em vários países
da América Latina, entre eles o Brasil (GONZAGA e ARAS,
2015). Ainda assim, há países como Cuba e Uruguai em que
aborto é permitido e regulamentado (SILVA, 2017).
O aborto - e aqui se faz referência exclusivamente à in-
terrupção da gravidez provocada voluntariamente pela própria
gestante ou com o seu consentimento - está tipificado como
crime no artigo 124 do Código Penal Brasileiro, que prevê a
282
pena de detenção de um a três anos para a prática. A sua
tipificação como crime, todavia, não impede que as mulheres
pratiquem o aborto clandestinamente como alternativa para
interromper uma gravidez indesejada. Como consequência,
a maioria das mulheres, em especial as que possuem baixa
renda, acabam por não ter acesso a condições médicas ade-
quadas para o procedimento e se submetem a riscos para
que possam ver garantidas sua autonomia e liberdade sobre
o próprio corpo e vida (PASSARINHO, 2018).
Segundo pesquisas realizadas no Rio de Janeiro e São
Paulo, a criminalização do aborto atinge majoritariamente mu-
lheres jovens (entre 15 e 29 anos), negras, com baixa esco-
laridade, solteiras, desempregadas ou sem emprego formal
e moradoras de áreas periféricas, sendo esse o perfil das
mulheres que são denunciadas e processadas criminalmente
descolonizar: a prática e o sexo

pela prática1. Há, portanto, um recorte quando se fala sobre


o processamento e criminalização do aborto: é um crime que
tem gênero, raça e classe. Isso não significa, por outro lado,
que o aborto seja praticado apenas por mulheres com esses
marcadores sociais, pelo contrário, apenas reflete a dificul-
dade que essas mulheres têm de realizar o procedimento de
modo seguro, dadas suas condições sociais. Ante a impossi-
bilidade de pagar pelo aborto em clínicas e realizá-lo de modo
mais seguro, muitas mulheres recorrem a procedimentos ca-
seiros ou em situações precárias, terminando esse processo
em hospitais, onde frequentemente são denunciadas por pro-
fissionais da saúde e iniciam sua peregrinação pelo sistema
criminal (PASSARINHO, 2018).
Por outro lado, mesmo com a criminalização do abor-
to, os números de abortos realizados no Brasil chegam a ser
proporcionalmente maiores do que em países em que a in-
terrupção da gravidez é permitida (PASSARINHO, 2018), o
que demonstra que o fato da conduta ser considerada como
crime pelo Direito Penal não consegue inibir a prática. Assim,
1 FRENTE NACIONAL CONTRA A CRIMINALIZAÇÃO DAS MULHERES
E PELA LEGALIZAÇÃO DO ABORTO, 2015.
283
a sua criminalização acaba por agir mais como uma forma de

descolonizar: a prática e o sexo


atribuir um caráter criminoso simbolicamente do que efetiva-
mente um instrumento que visa a persecução e punição pelo
crime. O sistema de justiça funciona, assim, como um meca-
nismo de controle feminino, reforçando o controle patriarcal,
com viés de raça e classe (ANDRADE, 2012) e produzindo e
reproduzindo sentidos de gênero, reforçando papéis sociais
esperados para homens e mulheres.
A partir desses estudos e informações, propõe-se uma
discussão sobre o aborto e sua criminalização, fundamentada
pelos trabalhos sobre gênero e justiça já desenvolvidos no
Brasil, que demonstram a dinâmica do sistema de justiça e o
lugar das mulheres no direito penal.

Aborto, gênero e sistema de justiça no Brasil

Para contextualizar o tema, faz-se importante uma re-


tomada de estudos e perspectivas que já trataram do abor-
to. Neste artigo, torna-se especialmente relevante revisitar
abordagens já realizadas sobre o aborto na América Latina
e sua criminalização, elencando os aspectos jurídicos rela-
cionados ao aborto no Brasil, e os estudos sobre gênero e o
sistema de justiça.

Um breve panorama do aborto na América Latina

Dentro do cenário latino-americano a redemocratização


teve um papel muito importante para o debate sobre o abor-
to (ROCHA, ROSTAGNOL e GUTIERREZ, 2009), tendo em
vista que durante os períodos ditatoriais que ocorreram entre
as décadas de 1960 e 1980 as principais reivindicações eram
pela democratização dos países, de modo que as discussões
relativas aos direitos das mulheres ficavam em segundo pla-
no (CARLOS, 2007). Enquanto grande parte dos países eu-
ropeus regulamentava a permissão para o aborto, na América
Latina as mulheres sofriam pela repressão dos governantes e
284
os movimentos feministas tinham dificuldade de se organizar
e promover suas pautas (SCOTT, 1995).
Além das dificuldades geradas pelos governos ditato-
riais, os países latino-americanos são marcados pela forte
influência da religião, o que afeta diretamente as discussões
sobre os direitos das mulheres, em especial os direitos se-
xuais e reprodutivos. Segundo José Torres (2012), enquanto
na União Europeia o aborto é descriminalizado, na América
Latina as discussões sobre o tema são permeadas por va-
lores religiosos e morais. Essa afirmação é corroborada pe-
las argumentações realizadas na audiência pública relativa à
ADPF 442,2 realizada em agosto de 2018, em que foram ou-
vidas instituições como a Confederação Nacional dos Bispos
do Brasil e a Convenção Geral das Assembleias de Deus, que
se posicionaram contra a descriminalização do aborto (NA-
descolonizar: a prática e o sexo

CIONAL, 2018), por exemplo.


Na época da redemocratização nos países latino-ameri-
canos a Igreja também esteve presente, buscando influenciar
na elaboração das constituições, se demonstrando uma das
principais oposições ao avanço dos direitos sexuais e repro-
dutivos. Um exemplo da atuação da Igreja foi a tentativa - im-
pedida pelos movimentos feministas na época - de incluir nas
Constituições do Brasil, Colômbia e Argentina uma cláusula
para proteção da vida desde o momento da concepção, o que
implicaria na criminalização do aborto em qualquer circuns-
tância (RUIBAL, 2014).

2 A ADPF 442 é uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental


interposta pelo PSOL, em que o partido questiona os artigos 124 e 126
do Código Penal, que criminalizam a prática do aborto. O partido pede,
em síntese, que a interrupção voluntária da gravidez seja permitida nas
primeiras 12 semanas de gestação, afirmando que a criminalização do
aborto incorre na violação de diversos princípios fundamentais tais como
a dignidade da pessoa humana, a cidadania, a não discriminação, a in-
violabilidade da vida, a liberdade, a igualdade, a proibição de tortura ou
o tratamento desumano e degradante, a saúde e o planejamento familiar
das mulheres e os direitos sexuais e reprodutivos. Disponível em <http://
www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=385093>.
285
No Brasil, a influência de frentes religiosas e conserva-

descolonizar: a prática e o sexo


dores materializou-se principalmente a partir dos anos 1990
e está tomando forças desde então, (CORRÊA e MCINTYRE,
2003) através da ampla presença de líderes religiosos no
Congresso, o que permite identificar uma bancada religio-
sa (MORI, 2009: 81). Em razão da quantidade considerável
de legisladores religiosos, há um bloqueio para o avanço do
direito ao aborto entre outros direitos pleiteados pelos movi-
mentos de mulheres e pelas minorias sexuais (VIANA, 2011:
168). A pressão exercida pelas igrejas na política extrapola
o Congresso, atuando inclusive nas campanhas eleitorais,
como foi o caso da campanha presidencial de 2010, em que
a candidata Dilma Rousseff já havia se manifestado como fa-
vorável à descriminalização do aborto, mas acabou assinan-
do um compromisso público afirmando que não promoveria
mudanças nas leis que versassem sobre aborto ao ser pres-
sionada por líderes religiosos, mudando seu posicionamento
(ALMEIDA e BANDEIRA, 2013). Os demais candidatos, no
entanto, não sofreram esse tipo de pressão.
Além disso, a bancada religiosa já presidiu comissões
legislativas importantes na Câmara dos Deputados, como a
Comissão de Seguridade Social e Família e a de Constitui-
ção, Cidadania e Justiça (MORI, 2009: 83), além da Comis-
são de Direitos Humanos e Minorias, presidida pelo deputa-
do e pastor Marco Feliciano até dezembro de 2013. Nesse
contexto, o projeto de lei denominado Estatuto do Nascituro,
proposto em 2007 como iniciativa dos conservadores e re-
ligiosos do Congresso com o objetivo de definir o início da
vida humana a concepção e criminalizar o aborto em qual-
quer circunstância, é uma demonstração clara da influência
da religião como um bloqueio ao avanço dos direitos sexuais
e reprodutivos no Brasil, situação que se repete em outros
países da América Latina.
Atualmente, apenas Cuba e Uruguai permitem a inter-
rupção voluntária da gravidez, sendo a América Latina uma
das regiões mais conservadoras em relação ao aborto. Nos
286
demais países a prática é permitida apenas em casos de es-
tupro ou risco à saúde da gestante, ou proibida em qualquer
circunstância (PASSARINHO, 2018).
Sendo assim, as mulheres latino-americana são afeta-
das por diversas estruturas de opressão que operam simulta-
neamente e de diferentes formas, marcadas pelos processos
de colonização e exploração, por governos ditatoriais e por
estruturas permeadas por desigualdades de raça e classe,
que acabam por barrar avanços à luta pelos direitos sexuais e
reprodutivos em diferentes níveis, mantendo, reproduzindo e
legitimando discursos de poder sobre a sexualidade feminina
(GONZAGA e ARAS, 2015: 25). Além disso, a influência da
religião se caracteriza enquanto um forte movimento de opo-
sição à luta pelos direitos sexuais e reprodutivos, contribuindo
para a permanência da criminalização do aborto nos países
descolonizar: a prática e o sexo

da América Latina.

Questões jurídicas sobre o aborto no Brasil



No Brasil a prática de aborto é considerada crime, com
exceção do exposto no artigo 128 (em casos de gravidez re-
sultante de estupro ou quando há risco à vida da gestante)
e nos casos de anencefalia fetal, conforme entendimento do
Supremo Tribunal Federal. O tipo penal está disposto nos ar-
tigos 124 a 128 do Código Penal Brasileiro, inserido na par-
te especial do Código, no Título de Crimes contra a pessoa,
dentro do Capítulo de Crimes contra a vida (BRASIL, 1940).
Quando culmina em um processo penal, a prática de
aborto - assim como outros crimes dolosos contra a vida -
passa por um procedimento diferente dos demais crimes,
como aqueles contra o patrimônio ou os outros crimes contra
a pessoa que são julgados apenas pelo Magistrado, sendo
processado e julgado perante o Tribunal do Júri, em que o
julgamento do fato será feito mediante júri popular.
Emilia Ferreira (2012) aponta, em sua pesquisa, uma
discrepância perceptível na atribuição da sanção penal pelo
287
legislador: a pena para a prática de aborto, definida no artigo

descolonizar: a prática e o sexo


124 do Código Penal, é de um a três anos de detenção; por
outro lado, a pena fixada para o infanticídio, tipificado no ar-
tigo 123 do mesmo dispositivo jurídico, é de dois a seis anos
de detenção. Verificando as sanções atribuídas aos dois ti-
pos penais, observa-se que a pena para o aborto é metade
daquela fixada para o infanticídio. Com isso, a antropóloga
demonstra a evidente diferenciação feita pelo legislador entre
o feto e a criança já nascida. Sobre o tema são formuladas
diferentes interpretações que compõem uma série de debates
jurídicos sobre o aborto e qual o marco jurídico da vida huma-
na para fins de direito, como a discussão sobre a pesquisa
com células-tronco, debatida em 2005 pelo Supremo Tribunal
Federal, e também a própria discussão sobre a permissão do
aborto em casos de anencefalia.
O Brasil é signatário de duas Conferências internacionais
que versam sobre direitos reprodutivos e Direitos Humanos
relevantes para a discussão sobre o aborto, a Conferência
Internacional de População e Desenvolvimento do Cairo, de
1994 e a IV Conferência Mundial das Mulheres de Beijing, de
1995. A última, dentre outras formulações, determinava aos
países signatários que revisassem suas legislações e pedia
atenção em relação aos abortos realizados de forma insegura
(FERREIRA, 2012). Contudo, ainda que a assinatura das duas
conferências signifique um compromisso moral para os Esta-
dos signatários, não resultam em mudanças automáticas na
legislação ou implementação no direito privado do país, como
acontece no caso das convenções e tratados (CÔRREA e ÁVI-
LA, 2003), sendo assim, em que pese tenha assinado as duas
convenções, o Brasil segue tratando o aborto como crime.

Os estudos sobre gênero e sistema de justiça

Uma gravidez, na maioria dos casos, acontece em mu-


lheres cisgênero; da mesma forma, um aborto geralmente
acontece em mulheres cisgênero - salvo em casos em que
288
são pessoas trans. A prática do aborto é, portanto, marcada
pelo gênero, de modo que uma análise do aborto no sistema
de justiça não seria possível sem que o gênero estivesse pre-
sente enquanto uma categoria de análise.
Segundo Verona Stolcke (2004), desde os anos 1950
sexólogos e psicólogos nos Estados Unidos já haviam intro-
duzido a palavra gênero, com a intenção de distinguir o sexo
biológico do gênero social, buscando solucionar as dificulda-
des conceituais do uso da terminologia “sexo” como sinônimo
de “gênero” no contexto de tratamentos de pessoas interse-
xuais (que eram antigamente chamados de “hermafroditas”).
Na década de 1970, acadêmicas feministas escolheram o ter-
mo gênero para enfatizar que a desigualdade e a opressão
sofrida pelas mulheres em relação aos homens não depen-
dem das diferenças do sexo biológico, sendo as relações de
descolonizar: a prática e o sexo

gênero um fenômeno sociocultural.


O conceito de gênero não é algo unânime ou fixo, mas
sim um conceito que foi se transformando com o decorrer dos
anos e estudos na área, influenciado pelo contexto em que
estava inserido, em uma determinada época e lugar, de forma
que já teve vários sentidos diferentes.
A afirmação do gênero como socialmente construído e
marcado pelas opressões que as mulheres foram historica-
mente submetidas já se apresenta há décadas, a exemplo da
afirmação feita por Simone de Beauvoir (2016: 11) em 1949,
de que “ninguém nasce mulher: torna-se mulher”. Estudos
como o de Beauvoir (2016) descolam a biologia do sujeito,
demonstrando como as características biológicas não são fa-
tores determinantes e limitantes do gênero (ainda que não
utilize o termo gênero, produzido nas décadas de sessenta e
setenta, por teóricas feministas, principalmente no campo das
Ciências Sociais) (STOLKE, 2004).
Mais tarde, a historiadora Joan Scott (1995) apresentou
a categoria gênero como objeto de estudos e se preocupou
com as relações entre os gêneros, afastando o determinismo
biológico e a definição do gênero como reflexo do sexo bio-
289
lógico do sujeito. A proposta da historiadora é que a catego-

descolonizar: a prática e o sexo


ria gênero seja submetida a uma análise crítica, “levando em
conta o contexto, a forma pela qual opera qualquer oposição
binária, revertendo e deslocando sua construção hierárquica,
em vez de aceitá-la como real ou auto-evidente ou como fa-
zendo parte da natureza das coisas” (SCOTT, 1995).
A partir disso, Scott (1995) propõe a sua definição para o
conceito. A historiadora parte do conceito de poder de Michel
Foucault (1979), e coloca o gênero como parte das relações
sociais, e como uma forma primária de dar significado às re-
lações de poder, sendo um campo primário em que o poder
é articulado, possibilitando a significação do poder. O gênero
implica alguns elementos, sendo que nenhum pode operar
sem os outros, pois são inter-relacionados: os símbolos cultu-
ralmente disponíveis que evocam representações simbólicas
(como a Virgem Maria, por exemplo), os conceitos normativos,
que são interpretações dos significados dos símbolos (como
as doutrinas científicas, por exemplo), a noção de política e a
referência às instituições e à organização social e a negação
da ideia de fixidez do gênero, e, por último, a identidade sub-
jetiva (SCOTT, 1995).
A preocupação de Scott em demonstrar como a opo-
sição binária entre os homens e mulheres é construída nos
espaços sociais e a influência das relações de poder nos pro-
cessos de definição e atribuição de sentido contribui para esta
pesquisa na medida em que o campo jurídico é também um
campo de produção desse sentido, permeado por disputas e
relações de poder. Ao considerarmos que “o poder atua na
constituição desses sujeitos e desses sentidos que são atri-
buídos aos sujeitos que estão em jogo” (FACHINETTO, 2012:
96) verificamos a influência dos sentidos que atribuem ao fa-
lar de uma mulher que realizou um aborto e o homem que a
engravidou nesses processos.
Outra contribuição importante dos estudos de gênero para
a presente pesquisa é o da filósofa Judith Butler, que descreve
o gênero como algo que está sempre em processo de cons-
290
trução, como efeito das instituições, discursos e práticas, que
são diversos e múltiplos (BUTLER, 2016). A partir dessa visão,
critica a tentativa da universalização da categoria mulheres da
teoria feminista, como se apenas pelo fato de ser mulher todas
passem pelo mesmo tipo de opressão e experiências, pois en-
tende que “se tornou impossível separar a noção de ‘gênero’
das interseções políticas e culturais em que invariavelmente
ela é produzida e mantida” (BUTLER, 2016: 21).
Butler, ao negar universalismos, essencialismos e de-
terminismos em relação à categoria gênero, questiona a atri-
buição de uma identidade única e de uma perspectiva binária
de gênero. No que se refere ao aborto e o sistema de justiça,
a contribuição de Butler para este trabalho se torna especial-
mente relevante. Para a autora, “as noções jurídicas de poder
parecem regular a vida política em termos puramente nega-
descolonizar: a prática e o sexo

tivos – isto é, por meio da limitação, proibição, regulamenta-


ção, controle, e mesmo ‘proteção’ dos indivíduos relacionados
àquela estrutura política” (BUTLER, 2016: 19) e, por estarem
condicionados a essas estruturas, os sujeitos são definidos e
reproduzidos de acordo com elas, e, nesse sentido, o sujeito
acaba sendo constituído e delimitado por uma estrutura que,
em tese, deveria agir em prol de sua emancipação.
Os estudos sobre o gênero e sistema de justiça, em es-
pecial a justiça criminal, possuem larga produção no Brasil.
Trabalhos como o de Mariza Corrêa (1983), Danielle Ardail-
lon (1994), Debora Diniz (2003), Rochele Fachinetto (2012)
e Emilia Ferreira (2012) marcam esse campo de estudos,
servindo como referências teóricas para a presente pesquisa.
O trabalho de Mariza Corrêa (1983), que recebeu o título de
“Morte em família”, fez uma análise das representações jurí-
dicas dos papéis sexuais em processos de homicídios entre
homens e mulheres em Campinas/SP nas décadas de 1950
a 1970. Utilizando uma concepção de processo como fábula,
a antropóloga analisou as estratégias discursivas dos atores
envolvidos no processo (delegado, promotor, juiz) para con-
duzir a história e qual o seu desfecho, dado pelos jurados e
291
juízes. Em sua pesquisa, concluiu que cada caso percorria

descolonizar: a prática e o sexo


um caminho diferente e que quanto mais as partes se afasta-
vam dos ideais de papéis de gênero delas esperado, menos
favorável era a decisão para elas.

Quisemos mostrar que os procedimentos de constituição,


de construção de um caso levam à instalação de uma es-
pécie de verdade que se expressará afinal no resultado
do julgamento. Mas esta ‘verdade’ constrói-se não apenas
por analogia com as situações reais, vividas pelos que so-
frem o processo, ou com os códigos onde elas deveriam
estar previstas - mas também de acordo com os ‘modelos
admitidos’ nesta sociedade (CORRÊA, 1983: 300).

A autora observou que ambos os sexos eram julgados a


partir das imagens construídas pelas narrativas nas disputas
entre a acusação e a defesa, balizadas, no geral, a partir dos
estereótipos de gênero hegemônicos. Contudo, outros parâ-
metros eram utilizados e as avaliações de comportamento
usavam critérios diferenciados entre um processo e outro, de
modo que seu trabalho demonstra que, efetivamente, “cada
caso é um caso” (CORRÊA, 1983: 300).
Danielle Ardaillon (1994) também realizou uma pesqui-
sa com processos de competência do Júri, no 1º Tribunal do
Júri do Foro Regional de Jabaquara, em São Paulo, entre os
anos 1970 e 1989, fazendo o levantamento de dados sobre
o número de inquéritos policiais, o número de processos com
absolvições, o número de condenações, arquivamentos, etc.,
relativos à prática de aborto, sendo um trabalho extremamen-
te relevante para a presente pesquisa. Em sua pesquisa a
autora verificou a quase impossibilidade da comprovação da
materialidade do fato e da autoria do delito, o que reflete no
desfecho dos processos: o aborto é raramente punido quando
as acusadas são as mulheres que o praticaram, penalizado
de forma branda no caso das “parteiras”, “enfermeiras” e ou-
tros agentes e pouco punido quando o agente que praticou o
aborto na gestante provoca sua morte.

292
Em seu trabalho a pesquisadora analisou informações
relativas a 765 casos, trazendo os seguintes dados: apenas
32 casos tiveram condenações pelo Júri (4%) e 64 casos tive-
ram absolvição pelo Júri e 6 absolvições sumárias, o que indi-
ca que apenas 13% dos casos analisados foram a julgamen-
to, e nos 87% dos casos restantes não foi possível reunir os
elementos para comprovar a materialidade do fato ou autoria
delitiva para embasar uma ação penal. Do total de casos, 503
(53%) não foram a julgamento, sendo arquivados, demons-
trando que mais da metade das denúncias de aborto não con-
seguem comprovação. Ainda, 180 casos (24%) pertenciam à
categoria “outras” em que houve na sua maioria extinção de
punibilidade. Dessa forma a autora demonstra como parece
existir um grande investimento social na proibição do abor-
to e pouco interesse na sua penalização, sustentando que a
descolonizar: a prática e o sexo

punição do aborto não interessa de fato à sociedade. Ainda,


nos casos em que houve julgamento, a autora demonstra que
o crime não é julgado isoladamente, mas que está em jogo a
moralidade das partes envolvidas nos processos, o que cor-
robora com outros estudos sobre o sistema de justiça criminal
(FERREIRA, 2012; FACHINETTO, 2012; ANDRADE, 2012).
Sobre a temática de aborto e o sistema de justiça cri-
minal Debora Diniz (2003), entre tantas outras pesquisas já
realizadas sobre o tema pela autora, analisou os argumen-
tos utilizados por médicos, advogados, promotores de justiça
e juízes para justificar a moralidade no primeiro pedido de
aborto seletivo no Distrito Federal, em 1995. O processo foi
ajuizado para pedir autorização judicial para a interrupção da
gravidez em razão de má-formação fetal, possivelmente de-
corrente de uma tentativa de aborto, diagnosticada no pré-na-
tal. O processo iniciou em dezembro de 1995 e foi sentencia-
do e arquivado em fevereiro de 1996, com o pedido negado,
momento em que a mulher já havia parido, tendo a criança
falecido imediatamente depois do nascimento.
Em seu trabalho a antropóloga denuncia a violação de
direitos humanos sofrida pela autora, que se repete com ou-
293
tras mulheres que são processadas pela prática do aborto, e

descolonizar: a prática e o sexo


evidencia os argumentos religiosos e fundados na moralidade
utilizados por profissionais no caso, afirmando a ausência de
um diálogo racional sobre o aborto no processo, o que pode
ser evidenciado no contexto brasileiro como um todo.
Dentro do mesmo tema do aborto Emilia Ferreira (2012)
desempenhou sua pesquisa analisando os processos penais
referentes a um júri realizado em Mato Grosso do Sul sobre
um caso emblemático de persecução da prática de aborto em
um processo com mais de mil mulheres acusada de uma vez
só. Além da análise dos processos, a antropóloga também
acompanhou as sessões de julgamentos e entrevistou pes-
soas envolvidas com o caso, oriundo de uma investigação
em uma clínica de aborto. Em seu trabalho constatou através
dos dados que são poucos os processos de aborto no Brasil e
que o índice de condenação é baixo (FERREIRA, 2012: 161),
mas que há interesse na punição em casos como o que ana-
lisou, considerando a midiatização do caso e o envolvimento
de muitas pessoas no processo, como uma forma de reforçar
o caráter criminoso do aborto (FERREIRA, 2012: 161). Ain-
da, a autora destaca em sua pesquisa como o estigma do
processamento penal a que as mulheres entrevistadas foram
submetidas afetam suas vidas negativamente, de modo que
mesmo que não sejam condenadas ao fim do processo há
uma culpabilização informal (FERREIRA, 2012: 162).
Por fim, Rochele Fachinetto (2012), em sua tese de dou-
torado observou sessões de julgamento no Tribunal do Júri do
Foro Central de Porto Alegre/RS analisando como os discur-
sos são produzidos no julgamento dos casos em que homens
mataram mulheres e mulheres mataram homens e quais as-
pectos de gênero são evocados para fundamentar as teses
de acusação e de defesa. A partir de sua pesquisa, a sociólo-
ga demonstra que no Júri também é utilizada a estratégia de
adequação aos papéis de gênero esperados, reforçando o que
já foi demonstrado em outros estudos, inclusive o de Mariza
Corrêa (1983) citado acima. Além disso, verificou uma estraté-
294
gia discursiva adotada pelos agentes jurídicos, que distinguiam
os discursos entre “crimes de tŕafico de drogas” e “crimes da
paixão” (FACHINETTO, 2012: 404). Enquanto nos crimes vin-
culados ao tráfico há uma supervalorização do crime e uma
desvalorização dos sujeitos, nos crimes da paixão o crime foi
atenuado e justificado pelo sentimento, trazendo um enfoque
sobre a família e os papéis desempenhados por homens e mu-
lheres dentro da relação conjugal e os aspectos íntimos do re-
lacionamento (FACHINETTO, 2012: 405). Nesse contexto, os
papéis de gênero são utilizados para tornar um réu mais ou
menos réu e uma vítima mais ou menos vítima, criando-se “ti-
pos ideais” de réus e vítimas (FACHINETTO, 2012: 404-405).
As contribuições das pesquisas elencadas demonstram
que há um viés de gênero, raça e classe em crimes que en-
volvem mulheres, sejam enquanto rés ou vítimas. Quando
descolonizar: a prática e o sexo

falamos do crime de aborto há ainda outros aspectos que


permeiam o processo judicial, como as questões atinentes à
maternidade e gênero.

A maternidade como propósito feminino:


o mito do amor materno

Tratando-se da temática do aborto não é possível deixar


de falar na maternidade enquanto processo biológico que é vi-
venciado pelas mulheres (majoritariamente, levando em con-
sideração que homens trans também podem engravidar, por
exemplo) e a sua significação na experiência feminina. Nesse
contexto, historicamente a maternidade foi conectada a um
destino biológico natural das mulheres, ligada à experiências
do corpo como o parto e o aleitamento (GRAZIUSO, 2017:
22). Assim, o aborto, enquanto negação da maternidade, é
colocado como desviante da cultura hegemônica (FERREI-
RA, 2012: 62), sendo a mulher que aborta aquela que nega o
sentido de sua identidade (PENICHE, 2007: 112).
Essa fusão entre o feminino e o maternal se constitui em
um importante dispositivo de controle sobre as mulheres (BI-
295
ROLI, 2017) e começou a ser questionada no momento pós

descolonizar: a prática e o sexo


Segunda Guerra Mundial, em que conservadores defendiam
a família enquanto mulheres clamavam por direitos sexuais e
reprodutivos (GRAZIUSO, 2017). Nesse contexto, podemos
citar a já referida obra de Simone de Beauvoir (2016), que
contestava o determinismo biológico sobre os sexos que con-
finava a mulher em seu corpo e reservava à ela a maternida-
de como destino biológico (BEAUVOIR, 2016).
Nessa mesma lógica, a autora Elisabeth Badinter (1985)
demonstra através de uma análise histórica como o amor ma-
terno é socialmente construído e a maternidade não é algo
inerente a todas as mulheres (BADINTER, 1985). Em sua
obra “O mito do amor materno” a autora expõe construções
sociais sobre a maternidade ao longo da história e o surgi-
mento da ideia de maternidade como algo instintivo, ligado
à natureza da mulher, e a construção do amor ao filho como
algo instantâneo, concepções que persistem até os dias de
hoje, ainda que de formas diferentes. Nesse contexto, ao op-
tar pela realização de um aborto e negar uma maternidade, a
mulher estabelece uma ruptura com o ideário social em torno
da maternidade e a constitui como escolha e não como com-
pulsória (CARLOS, 2007).
A noção de maternidade como algo que é social e cul-
turalmente construído e não apenas um processo biológico,
junto com o gênero, é extremamente importante para se pen-
sar o aborto como uma escolha da mulher, que opta por não
viver a maternidade em um determinado momento. Da mes-
ma forma que desde a década de 1970, com o surgimen-
to dos métodos contraceptivos, a maternidade deixou de ser
apenas um acaso biológico e passou a ser controlada pela
vontade (CARLOS, 2007), se insere o aborto enquanto uma
opção de planejamento familiar para que a mulher possa op-
tar pela gravidez ou não.
Considerando o gênero e a maternidade como constru-
ções sociais que estão conectadas entre si, é possível identi-
ficar que as expectativas em torno da mulher enquanto mãe
296
a colocam nesse espaço em que a maternidade não é uma
opção, mas algo que deve ser levado a termo independente
da vontade da mulher de ter um filho naquele determinado
momento. Assim, percebemos que a criminalização do aborto
mais do que afirmar a maternidade como um destino biológico
e natural para as mulheres, implica em uma sanção para a
mulher que nega esse papel: ela não é apenas considerada
desviante em relação à cultura hegemônica, mas criminosa.

Interseccionalidade

Pensar no aborto e na sua criminalização é pensar


gênero de forma interseccional. A criminalização do aborto
atinge, em primeira instância, as mulheres, pois são aquelas
biologicamente capazes de gestar uma criança até o mo-
descolonizar: a prática e o sexo

mento (com exceção de homens trans, que também podem


gestar). Contudo, há uma parcela de mulheres que acaba
por ser mais atingida em razão de desigualdades sociais
produzidas por outros marcadores sociais além do gênero:
a raça e a classe. Conforme demonstrado por pesquisas an-
teriores a este trabalho, a proibição do aborto traz mais ris-
cos às mulheres com maior vulnerabilidade econômica, em
sua maioria negras, que não possuem recursos suficientes
para interromper a gravidez de uma forma segura e acabam
realizando o procedimento em casa, em situação de risco à
saúde e sem assistência. Além disso, de acordo com a pes-
quisa realizada pela Frente Nacional contra a criminalização
das mulheres e pela legalização do aborto (2015), as mulhe-
res que são efetivamente denunciadas e processadas cri-
minalmente pela prática são, majoritariamente, negras, com
idades entre 15 e 29 anos, com baixa escolaridade e mora-
doras de áreas periféricas. Dessa forma, necessário pensar
a criminalização do aborto a partir de uma abordagem inter-
seccional, que leve em conta não apenas o gênero, mas os
marcadores sociais de raça e classe e como se articulam no
processamento dos casos.
297
Segundo Kimberlé Crenshaw (2002: 177) “a intersec-

descolonizar: a prática e o sexo


cionalidade é uma conceituação que busca capturar as con-
sequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois
ou mais eixos de subordinação”. A autora propõe que há
eixos de poder que são estabelecidos pelo gênero, através
do patriarcado, pelo racismo, pela etnia e pela luta de clas-
ses, de modo que há uma multiplicidade de opressões que
as pessoas podem ser submetidas, utilizando como metáfora
um cruzamento de vias que se atravessam e se sobrepõem,
criando intersecções complexas (CRENSHAW, 2002: 176).
Como consequência, mulheres negras e outros grupos mar-
cados por outras opressões estariam posicionados nestas
intersecções em razão de suas identidades, atingidos simul-
taneamente por essas opressões em várias direções, cau-
sando desvantagens e danos, que são vivenciados de formas
diferentes pelas diversas identidades possíveis dos sujeitos
(CRENSHAW, 2002: 177). Assim, demonstra como o sexismo
atinge mulheres brancas de uma maneira e mulheres negras
de outra, da mesma forma que o racismo não será experien-
ciado de forma idêntica por homens e mulheres, por exemplo
(CRENSHAW, 1991: 1252).

Quando falamos do mito da fragilidade feminina, que jus-


tificou historicamente a proteção paternalista dos homens
sobre as mulheres, de que mulheres estamos falando?
Nós, mulheres negras, fazemos parte de um contingente
de mulheres, provavelmente majoritário, que nunca reco-
nheceram em si mesmas esse mito, porque nunca fomos
tratadas como frágeis. Fazemos parte de um contingente
de mulheres que trabalharam durante séculos como escra-
vas nas lavouras ou nas ruas, como vendedoras, quitutei-
ras, prostitutas… [...] Fazemos parte de um contingente de
mulheres com identidade de objeto (CARNEIRO, 2001).

Nesse sentido, é necessário pensar as intersecções


entre gênero, raça e classe no processamento dos casos
de aborto. Conforme demonstrado em dados de pesquisas
anteriores trazidos nos itens acima, a criminalização do pro-
298
cedimento atinge as mulheres brancas e negras de formas
diferentes. Do mesmo modo, trará danos e consequências di-
ferentes para mulheres que possuem poder aquisitivo e pude-
ram pagar pelo atendimento em uma clínica clandestina, as-
sistidas por um médico, e àquelas que tiveram que realizar o
aborto em casa e/ou em condições extremamente insalubres.

Uma perspectiva da criminologia crítica feminista


sobre a criminalização do aborto

Por fim, para pensar a criminalização do aborto, parte-se


de uma abordagem da criminologia crítica feminista acerca
das suas implicações e da relação entre o sistema criminal e
as mulheres. A criminologia feminista direciona sua atenção
para o gênero, tratando-o como um elemento fundamental
descolonizar: a prática e o sexo

para entender os processos de criminalização (CHESNEY-


-LIND e MORASH, 2013).
De acordo com Vera Andrade (2012), o sistema penal tem
como matrizes históricas o patriarcado e o capitalismo, de modo
que reproduz e legitima o exercício de poder e controle seletivo
com um viés de classe, raça e gênero, funcionando como um
mecanismo para a manutenção do status quo social. Nesse
sentido, a criminalização do aborto tem uma força simbólica
sobre o imaginário social e subjetivo das mulheres, já que, ao
fazê-lo, podem ter que enfrentar o aparato policial, o processo
penal, e passar pelo sistema criminal (SCAVONE, 2008). Esse
“risco” de ser processada, no entanto, atinge majoritariamente
um determinado perfil de mulheres, conforme demonstrado nos
dados citados nos capítulos anteriores. Assim, faz-se necessá-
rio pensar o sistema penal a partir de uma perspectiva que leve
em conta o gênero, raça e classe e a estrutura patriarcal que
constitui o sistema de justiça, em especial o criminal.
Para a criminologia feminista o sistema de gênero/sexo
é um conceito central; ele existe em todo o mundo e está
presente nas mais diferentes culturas, regiões, comunidades,
organizações e famílias. O sistema de gênero afeta os indiví-
299
duos, agindo na construção de suas identidades, ao impor pa-

descolonizar: a prática e o sexo


péis esperados para cada gênero e proibindo determinados
comportamentos que se enquadram como desviantes para
determinado gênero (CHESNEY-LIND e MORASH, 2013).
O sistema patriarcal de gênero é caracterizado por homens
exercendo o poder de controlar e oprimir as mulheres, deter-
minando o que é proibido ou permitido dentro desse sistema
(HONDAGNEU-SOTELO, 1994).
A força e a forma com que o patriarcado atuará nesse sis-
tema é diferente nos lugares e na época em que a pessoa está
inserida, agindo de forma diferente de acordo com a classe
social, a raça/etnia e a idade do indivíduo (PATEMAN, 1998).
Essa reflexão é importante para se pensar o crime de abor-
to no contexto de um sistema de justiça que tem como matriz
histórica o patriarcado e o capitalismo. Segundo Vera Andrade
(2012), a essência do controle feminino no patriarcado é o con-
trole da sexualidade, o que é feito pelo sistema penal com a
criminalização da prostituição e do aborto, por exemplo, como
também acontecia com o adultério (ANDRADE, 2012). Com
a criminalização dessas condutas reforça-se os papéis de gê-
nero, colocando a mulher no papel de mãe, esposa e dona de
casa, reservada ao espaço doméstico e aos cuidados com a
família (BARATTA, 1999). Dessa forma, mais do que o proces-
so penal a mulher também passa por um julgamento moral e
recebe um estigma social, independente de vir a sofrer uma
condenação formal (NETTO e BORGES, 2013).
No Brasil, estima-se que uma a cada cinco mulheres já
cometeu um aborto (NITAHARA, 2017), o que demonstra que
a prática é amplamente realizada, mesmo criminalizada. Por
outro lado, estudos realizados por Daniel Sarmento (2010)
evidenciaram que a taxa de condenações criminais pela práti-
ca de aborto são pouco significativas no Brasil, o que faz com
que o efeito da proibição não seja a inibição do aborto, mas
sim o de obrigar as mulheres a recorrerem a procedimentos
clandestinos, sem a oferta de métodos seguros (AZEVEDO,
2017). Segundo a pesquisa de Danielle Ardaillon (1994: 217):
300
No momento em que as demandas feministas quanto
à questão do aborto estão se concentrando na área do
legislativo e do direito penal, visando à sua legalização,
como querem umas, ou a sua descriminalização, como
preferem outras, é importante saber que se trata de um
crime raramente punido quando as acusadas são as ges-
tantes, levemente penalizado no caso das ‘parteiras’, ‘en-
fermeiras’ e outros agentes e, surpreendentemente, pouco
punido quando esses mesmos agentes provocam a morte
das gestantes. É como se sua punição não interessasse
realmente à sociedade. É como se houvesse um enorme
investimento social na sua proibição e pouco interesse na
sua penalização de fato.

O que se demonstra com isso é que há interesse na cri-


minalização do aborto, mas somente em casos específicos,
que estão intimamente ligados à marcadores de gênero, raça
descolonizar: a prática e o sexo

e classe, e que a criminalização acaba por agir mais como


uma forma de atribuir à prática um caráter criminoso simbo-
licamente do que efetivamente a persecução e punição pelo
crime. O sistema penal funciona, assim, como um instrumen-
to de controle feminino, reforçando o controle patriarcal, com
viés de raça e classe (ANDRADE, 2012). Sendo assim, a re-
flexão sobre o aborto a partir de uma teoria feminista crítica
da criminologia permite incluir na análise as implicações do
gênero, raça e classe na criminalização do aborto para verifi-
car a seletividade do sistema penal e estabelecer uma visão
crítica acerca do tema (CHESNEY-LIND e MORASH, 2013).

Considerações finais

Os estudos de gênero e seus atravessamentos no siste-


ma de justiça já são temas de pesquisas desde a década de
80 e demonstram que há um viés de gênero, raça e classe nas
diversas vertentes do Judiciário, seja em relação ao direito de
família ou criminal, por exemplo. Nesses estudos, é possível
verificar que o tratamento dado pelo Judiciário em questões
de gênero, principalmente, é desigual, de modo que, embora
301
seja um espaço que se pretenda neutro, verifica-se uma justi-

descolonizar: a prática e o sexo


ça que perpetua uma lógica patriarcal.
Em relação ao aborto, a mesma lógica se repete e a
prática é criminalizada, e há apenas três hipóteses em que
é permitido no Brasil, em casos de estupro, anencefalia ou
para salvar a vida da gestante. Acredita-se, segundo os estu-
dos elencados no presente artigo, que essa rigidez quanto à
sua criminalização está ligada à predominância de governos
ditatoriais no Brasil e América Latina e à influência da religião
na política. Por outro lado, a tipificação da prática como crime
não impede que as mulheres abortem de forma clandestina,
como alternativa para interromper uma gravidez indesejada.
Como consequência, a maioria das mulheres, em espe-
cial as que possuem baixa renda, acabam por não ter acesso
a condições médicas adequadas para o procedimento e se
submetem a riscos para que possam interromper a gestação.
Segundo as pesquisas citadas no presente artigo, a criminali-
zação do aborto atinge majoritariamente mulheres jovens, ne-
gras, com baixa escolaridade, solteiras, desempregadas ou
sem emprego formal e moradoras de áreas periféricas, sendo
esse o perfil das mulheres que são denunciadas e processa-
das criminalmente pela prática. Isso não significa, por outro
lado, que o aborto seja praticado apenas por mulheres com
esses marcadores sociais, apenas demonstra a dificuldade
que essas mulheres têm de realizar o procedimento de modo
seguro dadas suas condições sociais.
Assim, a sua criminalização acaba por agir mais como
uma forma de atribuir um caráter criminoso simbolicamente
do que efetivamente um instrumento que visa a persecução
e punição pelo crime. O sistema de justiça funciona, assim,
como um mecanismo de controle feminino. Com a criminali-
zação dessas condutas reforça-se os papéis de gênero, co-
locando a mulher no papel de mãe, esposa e dona de casa,
reservada ao espaço privado e aos cuidados com a casa e a
família. Segundo estudos elencados acima, a taxa de conde-
nações criminais pela prática de aborto é pouco significativa
302
no Brasil, o que faz com que o efeito da proibição não seja
a inibição do aborto, mas sim o de obrigar as mulheres a re-
correrem a procedimentos clandestinos diante da ausência
de oferta de métodos seguros. Dessa forma, mais do que o
processo penal a mulher passa por um julgamento moral e
recebe um estigma social, independente de vir a sofrer uma
condenação formal (NETTO e BORGES, 2013).
O que se demonstra com isso é que há interesse na cri-
minalização do aborto, mas somente em casos específicos,
que estão intimamente ligados à marcadores de gênero, raça
e classe, e que a criminalização acaba por agir mais como
uma forma de atribuir à prática um caráter criminoso simbo-
licamente do que efetivamente a persecução e punição pelo
crime. O sistema penal funciona, assim, como um instrumen-
to de controle feminino, reforçando o controle patriarcal, com
descolonizar: a prática e o sexo

viés de raça e classe.

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Sobre as Autoras
Sobre as Autoras

Ana María Castro Sánchez: Doutora em Sociología. Profesora


Asistente, Facultad de Ciencias Humanas y Artes, Universidad del
Tolima - Ibagué, Colombia.
Begoña Dorronsoro: Doctoranda en el programa de Pos-Colonia-
lismos y Ciudadanía Global en el Centro de Estudos Sociais-CES de
la Universidad de Coimbra.
Cristina Scheibe: Professora do Departamento de História da UFSC.
Elisângela Santos de Amorim: Professora Doutora do Departa-
mento de Educação I da UFMA.
Jenniffer Simpson dos Santos: Doutora em Sociologia e Professora
na Universidade Federal da Grande Dourados-UFGD.
Natércia Ventura Bambirra: Doutoranda do Programa de Pós-
descolonizar: a prática e o sexo

-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFSC.


Raíssa Jeanine Nothaft: Doutoranda do Programa de Pós-Gradua-
ção Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFSC.
Renata D´avila Borges: Graduada em Ciências Sociais da UFRGS.
Renata Santos Maia: Doutoranda em História Cultural na UFSC.
Roberta Silveira Pamplona: Mestranda em Sociologia no Progra-
ma de Pós-Graduação em Sociologia da UFRGS.
Rochele Fellini Fachinetto: Doutora em Sociologia. Professora
Adjunta do Departamento de Sociologia da UFRGS.
Rosimeri Aquino da Silva: Doutora em Educação. Professora Ad-
junta do Departamento de Ensino e Currículo da UFRGS.
Tamirys Claudino Bica: Graduada em Ciências Sociais da UFRGS.
Teresa Kleba Lisboa: Professora do Programa de Pós-Graduação
Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFSC.
Vanessa Ramos da Silva: Mestranda no Programa de Pós-Gradua-
ção em Sociologia da UFRGS.
Vera Gasparetto: Pós-Doutoranda no Programa de Pós-Graduação
Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFSC.

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