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2019 Dossie Giro Decolonial Parte 1 Art
2019 Dossie Giro Decolonial Parte 1 Art
2019 Dossie Giro Decolonial Parte 1 Art
1, 2019
Foto da capa: Fran Rebelatto. Otavalo, Equador.
v. 3, n. 1, 2019
Epistemologias do Sul: Pensamento Social e Político em/desde/para
América Latina, Caribe, África e Ásia. Dossiê: Giro decolonial, Parte 1: Artes
visuais, arquiteturas e alteridades. Volume 3, número 1, 2019.
ISSN: 2526-7655
Foz do Iguaçu/PR: Universidade Federal da Integração Latino-Americana.
v. 3, n. 1, 2019
Epistemologias do Sul: Pensamento Social e Político em/para/
desde América Latina, Caribe, África e Ásia é um periódico onli-
ne de publicação semestral do grupo de pesquisa homônimo li-
gado à Universidade Federal da Integração Latino-Americana em
Foz do Iguaçu/PR. Seu objetivo é divulgar estudos e investigações
sobre ou desde o pensamento social e político latino-america-
no, caribenho, africano e asiático, promovendo o diálogo Sul-Sul.
ISSN 2526-7655
Editor-Executivo Fran Rebelatto
Isaac Palma
Marcos De Jesus Oliveira (UNILA)
João Soares Pena
Joaquín Barriendos
Conselho Editorial Leo Name
Ângela Maria De Souza (UNILA) Mabel Zambuzzi
Camilo Hernan Manchola Castillo (UNB) Maicon Rodrigo Rugeri
Caterina Alessandra Rea (UNILAB) Marcela Lindarte
Cesar Augusto Baldi (ULBRA) María Camila Ortiz
Cesar Torres Cruz (UAM) Oswaldo Freitez Carrillo
Elias Nazareno (UFG) Patrícia Lânes
Elzahrã M. Radwan Omar Osman (INEP) Tereza Spyer
Estevão Rafael Fernandes (UNIR)
Julio Pereyra (UDELAR) Traduziram nesse número
Li-Chang Shuen Cristina (UFMA)
Ariane Fagundes Braga
Lorena R. Tavares De Freitas (UNILA)
Henrique Rodrigues Leroy (Abstracts)
Marcos De Jesus Oliveira (UNILA)
Larissa Fostinone Locoselli
Pablo Quintero (UFRGS)
Leo Name
Priscila De Oliveira Coutinho (UERJ)
Lívia Santos de Souza
Sônia Cristina Hamid (IFB)
María Camila Ortiz
Waldemir Rosa (UNILA)
Revisão e normatização
Editaram esse número
Leo Name e Oswaldo Freitez Carrillo
Leo Name / Editor-Chefe
Tereza Spyer / Editora-Adjunta
Projetos gráfico e da capa/Editoração
Gabriel Rodrigues da Cunha / Editor-Assistente
Oswaldo Freitez Carrillo
Colaboraram nesse número
Fotografias da capa e folhas de rosto
Alex Schlenker
Christian León Fran Rebelatto
Editorial
Leo Name, Tereza Spyer e Gabriel Rodrigues da Cunha 11
Entrevistas
22 Alex Schlenker: descolonizar a arte
para retomá-la como expressão da vida
Artigos
A colonialidade do ver: rumo a um novo 38
diálogo visual interepistêmico
Joaquín Barriendos
166
Gritos em muros e
em marcha no Chile
Fran Rebelatto
180
Resenhas
‘As cores da
masculinidade’,
de Mara Viveros Vigoya
Isaac Palma
200
210
10
Editorial
Leo Name
¡DALE!, PPGLC / UNILA, PPG-IELA / UNILA
Tereza Spyer
¡DALE!, PPG-ICAL / UNILA
12
Editorial
13
A publicação a qual a leitora ou o leitor está diante é a primeira de duas partes do “Dossiê
Giro Decolonial”, que decorre dos labores desenvolvidos pelo grupo de pesquisa Decolonizar a
América Latina e seus Espaços (¡DALE!) inicialmente voltados para a retomada da revista Re-
dobra – uma publicação vinculada aos grupos de pesquisa Laboratório Urbano e Laboratório
Co-Adaptativo (Labzat), ambos da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Ocorre que, em 2019,
esses três grupos de pesquisa uniram-se na organização do minicurso Insurgências decoloniais:
geopolítica do conhecimento para outros mundos possíveis, com 30 horas e ministrado por
pesquisadores do ¡DALE! na UFBA, em maio de 2019; e, depois, na Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG), em agosto de 2019; e, finalmente, na UNILA, em agosto e setembro do
mesmo ano. No contexto de um estágio pós-doutoral de um de nós, o minicurso motivou um
número da referida revista da UFBA dedicado ao tema da decolonialidade. Organizada por nós
três, pesquisadora e pesquisadores do ¡DALE!, essa edição da Redobra (n. 15, Ano 6, 2020)
contou com quantidade tão expressiva de material que ultrapassou os limites da publicação.
Sendo assim, a Revista Epistemologias do Sul gentil e prontamente acolheu o material que não
pôde ser publicado naquela revista da UFBA; além disso, também produzimos material novo
para essa publicação da UNILA. Tal esforço gerou um dossiê dividido em dois números: “Parte
1: Artes visuais, arquiteturas e alteridades” (v. 3, n. 1, 2019) e “Parte 2: Gênero, raça, classe e
geopolítica do conhecimento” (v. 3, n. 2, 2019). Nesse sentido, frisamos que muito embora
carreguem o ano de 2019, trata-se de edições retroativas, produzidas e publicadas em 2020.
É importante destacar que o ¡DALE!, que ora organiza este dossiê em duas partes – com o
apoio de programas de pós-graduação da UNILA: Integração Contemporânea da América Lati-
na (PPGICAL), Interdisciplinar em Estudos Latino-Americanos (PPGIELA) e Literatura Compara-
da (PPGLC) –, desde 2016 está cadastrado no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científi-
co e Tecnológico (CNPq). Dedica-se a pesquisas em torno da decolonização de corpos, imagens,
narrativas, paisagens e cartografias da América Latina e do Caribe, aos movimentos de luta por
direitos humanos e dos territórios latino-americanos, tendo em vista conceitos e noções do giro
decolonial, tais quais as colonialidades do poder, do ser e do saber, por exemplo. Assim, os dois
números do “Dossiê Giro Decolonial” visam a apresentar às leitoras e aos leitores da Revista
Epistemologias do Sul um itinerário de reflexões de autores e autoras que, mediante a abor-
dagem decolonial, contribuem para o entendimento dos lastros históricos que nos levaram
ao quadro atual da América Latina e do Caribe – e, também, do mundo. Tais intelectuais não
encontram no decolonial uma perspectiva teórica circunscrita e isolada no circuito acadêmico,
mas sim uma práxis plena, cuja existência é pautada pela oposição e interpelação aos modos
monolíticos e violentos que buscam ordenar a vida, limitando-a às possibilidades que emanam
de uma única matriz de poder. É uma tarefa decolonial, portanto, contribuir para o desenho de
outros modos de fazer, pensar, criar e sentir.
14
Há que se destacar, também, que esses dois números do “Dossiê Giro Decolonial” foram
preparados num momento difícil e complexo, que soma à ascensão de governos de direita e
ultradireita na América Latina e no Caribe (e sua submissão vergonhosa ao ideário ultraliberal,
com pitadas de obscurantismo, terraplanismo, anticientificismo, sexismo, racismo e misoginia
sem pudores) o surgimento de uma nova pandemia, a da Covid-19, que é causada por um novo
coronavírus. Escancaram-se antigas relações de dependência e dominação e torna-se ainda
mais oportuno o contato com os aportes teóricos do giro decolonial: afinal, são as populações
racializadas as que têm sofrido de forma mais severa os impactos da pandemia de Covid-19,
tanto no norte quanto no sul globais; e o racismo estrutural latino-americano e caribenho, em
especial nas suas vertentes institucional e ambiental, tem aumentado as desigualdades já gri-
tantes da nossa região.
Sendo a raça uma categoria-chave para o giro decolonial, os dois números da Revista
Epistemologias do Sul dedicados a sua epistemologia também nos permitem pensar sobre
como as populações racializadas pelas múltiplas colonialidades (negras e negros, indígenas,
migrantes e imigrantes, idosas e idosos e as juventudes, entre outras), tão precarizadas e pe-
riféricas, tornaram-se as principais vítimas do coronavírus. A despeito disso, ironicamente, a
pandemia atingiu em cheio a ordem mundial estabelecida desde o Consenso de Washington e
o enquadramento que este estabeleceu para governos de qualquer posição do espectro políti-
co de confiar à iniciativa privada e ao mercado a gestão dos serviços sociais. Pois o avanço dos
casos de Covid-19 em todo o mundo revela a incapacidade desta lógica de responder à altura
desta crise de saúde pública e de proporções globais. Sacudido pela pandemia, o horizonte
político reabre-se, portanto, à possibilidade de revisão do papel do Estado como provedor de
direitos, contrariando a agenda da ideologia ultraliberal. Além disso, a pandemia pode possi-
bilitar um novo impulso ao reconhecimento social da produção científica do conhecimento,
reequilibrando o obscurantismo e o anticientificismo reinantes.
Christian León, professor da Sede no Equador da UASB, no artigo “Imagem, mídias, tele-
colonialidade: para uma crítica decolonial dos estudos visuais”, traduzido por María Camila
Ortíz, graduanda em Cinema e Audiovisual na UNILA e pesquisadora do ¡DALE!, complementa
Barriendos afirmando que as culturas dominadas seriam impedidas de objetivar autonoma-
mente suas próprias imagens, símbolos e experiências subjetivas – isto é, tendo em conta seus
próprios padrões de expressão visual e plástica. Nos estudos visuais latino-americanos, segundo
o autor, a preocupação com o sujeito subalterno foi centralizada na análise da voz e do testemu-
nho dos grupos dominados – raras vezes na sua produção visual. Nesse sentido, a complexidade
do processo de colonização não só violenta e radicalmente reorganizou as línguas e o conhe-
cimento, mas também produziu uma rearticulação diversificada de visualidades e múltiplas
representações. A constituição do sistema-mundo moderno/colonial estrutura um poderoso
universo de categorias que transformam a diferença em hierarquia – inclusive por meio da vi-
sualidade. Diante disso, seu texto aponta a necessidade urgente de pensar tecnologias-outras
da imagem que possam dar vazão às diversas expressões simbólicas da América Latina que
foram marginalizadas e silenciadas pela modernidade visual.
gitimado um padrão de poder colonial que “através de suas estruturas de dominação têm ela-
borado rígidas hierarquias sociais e raciais que circunscrevem índios, afros, mulheres e classes
populares” em “zonas de não ser”. Ademais, nos permite acompanhar a trajetória e a obra de
um fotógrafo contra-hegemônico, o equatoriano Miguel Ángel Rosales, ainda que imersas nas
16 estruturas de poder pautadas pela colonialidade.
segregação no Brasil, o autor faz importantes questionamentos: “Que lugar é destinado às tra-
balhadoras domésticas na arquitetura das casas daqueles que as contratam? Como o racismo
estrutura as relações entre patrões e empregadas? Como o racismo estrutura as cidades onde
vivem patrões e empregadas domésticas?”. Segundo Pena, parte da resposta a essas indaga-
ções reside no fato de que o ensino nas escolas de arquitetura e urbanismo, no Brasil, segue 17
ainda pautado por perspectivas elitistas e racistas, o que gera um padrão que “perpetua lugares
de subalternidade nos projetos de arquitetura e materializa relações de hierarquia e poder que
deveriam ter sido superadas há muito tempo”.
colonialidade territorial apresentado pelo arquiteto cubano Yasser Farrés Delgado, professor da
Universidade de São Tomás, na Colômbia, e por Alberto Matarán Ruiz, docente da Universidade
de Granada, na Espanha, desenhando paralelismos no campo da tecnologia construtiva.
Isaac Palma, mestre em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e pes-
quisador do ¡DALE!, abre a seção de “Resenhas” e mais abertamente dialoga com a questão
das alteridades em sua análise do livro “As cores da masculinidade: experiências interseccio-
nais e práticas de poder na Nossa América”, de Mara Viveros Vigoya, professora de Antropo-
logia da Escola de Estudos de Gênero da Universidade Nacional da Colômbia (UNC). Julgamos
oportuna esta revisão das masculinidades num contexto político como o nosso, marcado pelo
aumento do feminicídio doméstico e pelo retrocesso das conquistas feministas, a exemplo do
Projeto de Lei 1.256/2019, que revoga a reserva de 30% de vagas a mulheres nas candidaturas
proporcionais. Partindo dos estudos feministas, Viveros Vigoya contribui, segundo Palma, para
a desconstrução das opressões, pois o posicionamento explícito e parcial da autora “advoga por
uma desnaturalização das características opressoras das masculinidades vigentes”. Não basta
indagar às masculinidades, é preciso colocá-las em questão a partir de uma estrutura relacional
de gênero da qual fazem parte. Partindo do contexto colombiano, a pesquisadora analisa como
Finaliza a seção “Resenhas” e esta primeira parte do “Dossiê Giro Decolonial” um comen-
tário ao livro “Un mundo ch’ixi es posible”, de Silvia Rivera Cusicanqui, professora da Universi-
dade Mayor de San Andrés (UMSA). Patrícia Lânes, pós-doutoranda no Programa de Pós-Gra-
duação em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e pesquisadora
do ¡DALE!, estimula-nos a pensar a identidade (tendo em conta o Brasil na América Latina e
as “identidades ch’ixi”) e como esta também, tão em voga nos tempos atuais, tem sido feti-
chizada – inúmeras vezes revelando a persistência de ideias e práticas coloniais. Isso porque a
colonialidade igualmente traz uma ideia de mestiço, pela via do racismo: uma forma específica
de espacializar, um meio essencialista moderno e multicultural de identidade, como “questão
de minorias”, como território étnico cercado por fronteiras com uma correspondente expressão
visual, emblematizada em símbolos e signos corporais. Esta visualidade racial tem uma ori-
gem muito antiga (segundo Aníbal Quijano, a partir da conquista da América, a modernidade/
colonialidade funda-se na imposição de uma classificação racial/étnica). Nesta resenha, Lânes
destaca a grande contribuição de Cusicanqui, bem como a relevância do pensamento aimará
para as epistemologias subalternas, ressaltando como o conhecimento de outras epistemolo-
gias dialoga com a construção de distintas formas de pensar e viver em sociedade. Além disso,
enfatiza a lacuna entre as palavras e os atos (uma das principais características das sociedades
coloniais que reverbera ainda nos dias de hoje), tema que dá unicidade a obra de Cusicanqui.
Boa leitura!
Marcela Lindarte
¡DALE!, Cinema e Audiovisual / UNILA
Tradução:
24
Entevistas
Seu perfil no Facebook diz que você nasceu em Tânger, Marrocos, e que vive em Bielefeld,
Alemanha. Se não nos equivocamos, você viveu também no Equador… Você poderia falar
um pouco sobre suas trajetórias pessoal e acadêmica? É possível relacioná-las com sua
inserção no giro decolonial? Você acredita que seu trânsito pelo mundo influenciou suas
reflexões teóricas? 25
Tenho especial interesse por entremear as práticas de criação com as práticas teó-
ricas. Como artista visual trabalho em constante diálogo com comunidades indígenas e
afrodescendentes, com grupos das subculturas urbanas, com sujeitos migrantes, entre outros.
Tento, assim, desenvolver fluxos permanentes entre um e outro modos de estar na vida. Há
vários anos transito entre Alemanha e Equador, o que me permitiu desenvolver um interesse
especial por observar os distintos rumos que o debate decolonial toma em nível transatlântico.
Para você, qual é importância do conceito de colonialidade do poder, tal como foi formula-
do por Aníbal Quijano, centrado na ideia de “raça”?
Andes entendem esta denominação) que foram cimentando as bases de um projeto de enor-
me relevância para repensar a vida e suas possibilidades. Estes avós foram seguidos por algumas
“mães” e “pais” como Catherine Walsh, Rita Segato, Walter Mignolo, Santiago Castro-Gómez,
Adolfo Albán, María Lugones, Silvia Rivera Cusicanqui, Julio Tavares, entre muitos outros. Nós,
26 que crescemos nos anos de 1970 e 1980 e fomos nos formando no debate decolonial na últi-
ma década, somos de alguma maneira “netos” que bifurcam o debate a partir de uma série de
práticas e reflexões, situadas no geral em torno a determinadas especificidades.
Desde o confronto de Valladolid entre Ginés de Sepúlveda e Bartolomé de las Casas, pas-
sando pelas leis de castas e os dogmas da Igreja Católica europeia, e extrapolando até a lei de
pureza de raças de Nuremberg, a ciência foi partícipe dos discursos de classificação e exclusão
racial. Quem ocupa um lugar inferiorizado na hierarquia de classificação social deve fazer todo
o possível para emergir até a parte alta de tal escala. Para isso, gastará uma enorme quantidade
de energia (vital) que o colonizador vai colher como força de trabalho para sua acumulação. O
cerne da questão é que esta lógica se sustenta sobre a ideia de que isto sucede obedecendo
uma lei natural. Emmanuel Chukwudi Eze questionou isso em seu livro El color de la razón
(CHUKWUDI EZE et al., 2008), no qual desnuda uma faceta racista que o próprio filósofo ale-
mão Immanuel Kant destilava em seus escritos de geografia humana, desde sua poltrona em
Königsberg, quando determinava a cada cor de pele traços morais. A crítica decolonial fornece
elementos para interpelar e interromper estas lógicas que operam sobretudo naquele que não
se encaixa na norma estabelecida por esta matriz colonial do poder.
Hoje em dia enfrentamos novas formas de classificação e hierarquização social por raça.
Os maiores projetos neoextrativistas se desenvolvem nos territórios daqueles a quem a matriz
colonial de poder nega como seres humanos. A crítica decolonial, como a define por exemplo
Catherine Walsh, propõe colocar a vida e suas condições de reprodução no centro de qualquer
modelo de gestão. O modo de acionar decolonial busca identificar, criticar e interpelar ditas
lógicas, mas sobretudo interrompê-las para desenvolver outros modos possíveis de estar no
mundo e na vida.
A raça, por um lado, é uma categoria fundamental para compreender a colonialidade, mas,
por outro lado, guarda tensões entre a localização epistemológica e o lugar de enunciação
que mudam de um contexto a outro. O que significa ser decolonial em um contexto no qual
quem se declara assim não é classificado dentro de grupos étnico-raciais minoritários?
Como foi essa questão para você no Equador e na Alemanha?
Quando penso nos lugares de reflexão e de criação do projeto decolonial, percebo alguns
terrenos flutuantes, terrenos em movimento. Tento articular muitas de minhas entradas con-
ceituais a partir de experiências corporais. Seguindo uma tradição mais observacional, como
muitas das filosofias orientais, faço uso do movimento do corpo no espaço para compreender
algumas categorias descritivas e analíticas. A pergunta pelas possibilidades de estar e se mover
nesse espaço real e metafórico, me lembra muito quando a gente caminha nas proximidades
de um pântano. Há uma parte do terreno que deixa de ser forte e estável sem chegar a ser lí-
quida. Avançamos com dificuldade, às vezes as pernas afundam até o tornozelo, ou o joelho, em 27
outras consegue-se apoiar e levantar um pouco mais.
Quando me interessei pelo documentário nas Américas, me dei conta de que a academia
alemã não poderia me oferecer mais do que aproximações teóricas e a partir de uma perspec-
tiva europeia, ou melhor, eurocêntrica. Os estudos latino-americanos tinham como eixo central
o desenvolvimentismo, ou a análise da dimensão cultural como algo exótico. Era necessário
entender a América Latina na voz de autores alemães, que falavam espanhol com um sotaque
que poderia servir como metáfora para entender a perspectiva. Quando me mudei então para
a América Latina, e viajei por um tempo pelo Equador, Peru e Bolívia, pude aprender sobre múl-
tiplas perspectivas que não se articulam ao longo do estado-nação, mas sim de categorias mais
regionais e locais. Tive então a maravilhosa oportunidade de poder fazer leituras da filosofia
da libertação, da teologia da libertação e do debate decolonial. Um tempo depois voltei à Ale-
manha e tentei aproximar este debate de certos espaços da academia alemã. Nesse momen-
to, surgiu uma dinâmica muito estranha que, atualmente, alguns anos mais tarde, interpreto
como uma territorialidade acadêmica. A Academia alemã historicamente entende a si mesma
como superior a todas as demais do mundo. Nesse contexto, eu colhi olhares de suspeita por
ter continuado minha formação acadêmica na América Latina e não na Europa. A reação dos
colegas alemães nos primeiros anos era questionar o debate decolonial, como algo que real-
mente não era nem novo, nem novidade. Era necessário passar pela aprovação da academia
branca o pensamento de outras cores. Nos anos de 2000, o debate decolonial era muito pouco
conhecido na Alemanha. Apenas alguns textos de Fanon e de Quijano haviam sido traduzidos.
Foi apenas nos últimos cinco ou dez anos que outros poucos autores conseguiram parti-
cipar do debate. Então certa parte desta Academia alemã traduziu, reescreveu e reinterpretou
o que aqui havia sido lido décadas antes. Era como se a Academia alemã agora se voltasse a
explicar o que consistia o decolonial. A sensação que tive é que agora o debate decolonial é re-
conhecido na Alemanha, sempre e quando sejam acadêmicos alemães – refiro-me à perspec-
tiva antes da nacionalidade –, os que se encarreguem de sua interpretação. Em anos recentes,
a reivindicação de uma ferida colonial por parte da Namíbia ao estado alemão pelos crimes
perpetrados durante o colonialismo alemão na África do Sul, impulsionou com força a crítica
decolonial. Agora o debate foi permeando os espaços acadêmicos e culturais alemães, mas
com frequência se omite a origem do debate. Assim, meus permanentes trânsitos entre Alema-
nha e Equador são então trânsitos entre matrizes geopolíticas do conhecimento.
Levando isso em conta, como sua produção acadêmica, necessariamente atravessada por
perguntas sobre o idioma que se escolhe para falar e escrever, é afetada pela geopolítica
do conhecimento? Em quais idiomas você mais escreve e se expressa com facilidade? O
inglês tem um lugar proeminente em sua produção acadêmica? Por último, na sua opinião,
28 qual é o papel do Brasil na produção da teoria decolonial?
A língua na qual se escreve e se publica é sem dúvida algo central para a geopolítica do
conhecimento. Com a irrupção das publicações indexadas como uma nova estratégia do capi-
talismo neoliberal, agora no campo da educação superior, a ideia de classificação social e hie-
rarquização é transferida para o campo das publicações acadêmicas. Quem publica em inglês
está acima na escala; quem publica em línguas “menos civilizadas”, abaixo. Inclusive academias
europeias importantes como a alemã, a francesa e a holandesa, começaram a exigir dos pes-
quisadores que publiquem em inglês. Publicar em espanhol ou em português equivale então,
de acordo com essa lógica, a escrever em uma língua menor.
Você é artista visual e pesquisador da área. Há uma literatura a que temos acesso em con-
textos de ensino e aprendizagem que a todo momento nos informa que o centro do mun-
do das artes está nos Estados Unidos e na Europa. Essa literatura também aponta as lin-
guagens artísticas desses lugares como o padrão de comparação com outras linguagens
de outras geografias e histórias. Se tomamos o cinema como exemplo existe, além disso,
através dele uma pedagogia visual incide na vida cotidiana impulsionada pela massiva
expressão dos filmes de Hollywood desde nossa mais tenra idade… Haveria, também, uma
geopolítica da arte e especificamente das artes visuais? Como superar as desigualdades
entre os lugares na produção do cânone? E como o pensamento decolonial pode colaborar
na produção de artes-outras, de linguagens-outras e de pedagogias-outras?
Arte é expressão da vida. Nesse sentido, é necessário voltar a entender que a experiência
de vida é traduzida em formas estéticas. Não aquele estético entendido como belo, mas sim
como o que interpela os sentidos, a aiesthesis. Descolonizar a dimensão da arte implica desco-
lonizar o olhar, o ouvir, a corporalidade, a pele. Descolonizar a arte implica abandonar a ideia de
que a arte é mensurável, classificável, hierarquizável... Isto é, interpelar a lógica da arte ocidental
na qual uma obra de arte teria mais valor de troca do que valor de uso.
Não obstante, surgiu nos últimos anos todo um setor da arte ocidental que está coop-
tando o debate decolonial. Os grandes museus e galerias do mundo já exibem exposições em
cujos textos de curadoria aparecem referenciadas as teorias pós-colonial e decolonial. Nesses
espaços, o decolonial pareceria apenas um estilo mais a ser incluído em mostras e exposições.
Vários museus na Europa criaram departamentos de arte nativa, para não correr o risco de que
as obras produzidas por estes grupos e nacionalidades ficassem fora de seu alcance. Também
são centrais, na hora de repensar as práticas de criação, as estratégias necessárias para repen-
sar as pedagogias com as que compreendemos e mediamos o mundo e a experiência vivida
no mesmo. Uma série de pedagogias críticas e decoloniais começou a construir outros sentidos
em torno à criação artística que vão para além da ideia de exibir em museus, galerias ou bienais.
O ponto central para este debate me parece que é abandonar a ideia do universal, assu-
mido já por vários autores do debate decolonial, como por exemplo Enrique Dussel. A expressão
artística, tal como a entendem Adolfo Albán e Arturo Escobar, surge de uma especificidade si-
tuada em um território determinado. As práticas de criação que surgem nesses contextos têm
uma especificidade central para a vida mesma. Seu caráter não é universal, mas sim específico
ao tempo-espaço, às subjetividades, aos afetos... Algo similar sucede no campo cinematográ-
fico, no que a indústria do cinema, sobretudo na matriz de Hollywood, marcou durante mais
de cem anos como sendo um cinema digno de ser visto e um cinema que deve ser omitido ou
ocultado. Descolonizar as práticas visuais-cinematográficas implica abandonar as lógicas ins-
critas nas práticas do olhar com as que todos crescemos vendo filmes de Hollywood. Isso tem a
ver com as histórias e os temas abordados, mas também com as características étnico-raciais,
Em meu trabalho acadêmico e artístico (não tenho fronteira alguma que separe uma e
outra prática de conhecimento e de criação), interessa-me interpelar o estatuto grafocêntrico
do conhecimento. O conhecimento só é considerado como tal se é publicado por escrito, em
certos formatos e em certos espaços editoriais tanto legítimos quanto legitimadores. Desco-
lonizar a escrita significa que permitamos outras formas de percorrer o que é pesquisado e
conhecido do mundo: o corpo, os movimentos, as imagens, os sons, os objetos etc. Para os ar-
tistas, isso sempre foi um elemento central. O artista cria a partir do que pesquisou. Às vezes o
converte em imagens, em objetos, em corporalidades, em ritmos e sons, ou pode convertê-lo,
também, em texto.
Em meu próprio trabalho não separo a instância da pesquisa daquela da criação. Trata-
-se de pesquisa-criação, em uma palavra combinada. Aquilo que pesquiso, enquanto forma de
estar no mundo, me leva a criar ou produzir algo que outros possam olhar, escutar, ler, experien-
ciar. Muitas de minhas pesquisas não se limitam a um texto; às vezes o texto está acompanhado
de obras audiovisuais, imagens, textos experimentais, séries de objetos, portfólios e arquivos –
às vezes estas formas não textuais substituem o texto. Consegui, por meio de um intenso deba-
te, que a Universidade Andina Simón Bolívar, onde sou docente, reconhecesse a produção não
textual como uma forma de produção do conhecimento. Assim, vários colegas e eu produzimos
documentários, reportagens, exposições, séries fotográficas, curadorias etc.
Em um artigo de 2012 na Calle 14, “Hacia una memoria decolonial: breves apuntes para
indagar por el acontecimiento detrás del acontecimiento fotográfico”,1 você escreveu so-
bre o que chamou de “olhar colonial” na fotografia, relacionando-o com a memória e a tipi-
ficação visual das raças e do gênero. Um ano antes, na revista Prosopopeya (SCHLENKER,
2011a), você abordou os arquivos de fotografias de pessoas cisgêneras e casais heteros-
sexuais, repensando o dualismo identitário de gênero e tendo como base as filosofias me-
soamericana e andina. Poderia nos falar um pouco mais sobre isso?
1 O referido texto foi traduzido para o presente número da Epistemologias do Sul (Nota dos Editores).
Chamou nossa atenção que em seu texto “Infinitas variaciones sobre un mismo cuerpo”,
publicado em 2015 na revista Inmóvil, você perceba a performance como um movimento
32 décadas estiveram sob regimes ditatoriais nos quais o corpo foi explicitamente um centro
de confrontação de forças, como podemos falar de arte performática a partir destes luga-
res de corpos torturados, desaparecidos e violentados?
Muitas destas propostas performáticas realizadas na América Latina se afastam das lógi-
cas artísticas inscritas na performance do norte. Para um número significativo de performers
hispanofalantes da América Latina, referir-se a “la performance”, usando o artigo feminino, no
lugar do mais usual “el performance”, é uma forma de distanciar-se da performance entendida
pelo norte global – ver, por exemplo, Andrea Reinoso Egas (2018) –, pensada para transitar ma-
joritariamente em espaços legitimados para a prática artística. Assim, propostas como “Se vien-
de” do coletivo peruano “los cholos” ou a “Yeguada latinoamericana” de Cheril Linett, ambos
posicionados no espaço público e frente a instituições do estado-nação, se afastam dos espaços
tradicionalmente legítimos para arte como galerias e museus.
Nos últimos anos, surgiu um espaço público expandido, composto pelo espaço público
físico – as ruas, as praças – e um espaço público virtual, sobretudo nas redes sociais. Durante
a última década surgiram importantes propostas que estabelecem fluxos entre estas duas di-
mensões do espaço público. Para muitas agendas se tornou central ocupar o espaço público
material através de formas e práticas performáticas que logo possam transitar nos espaços vir-
33
tuais. A performance El violador eres tú, do coletivo Las Tesis, é o melhor exemplo: a irrupção no
espaço físico/material da coreografia com seu texto não só viralizou em redes, mas além disso
foi reinterpretada por uma quantidade infinita de outros corpos ao redor do mundo, de novo no
espaço físico/material. Os protestos de outubro de 2019 na América Latina nos mostraram um
cenário similar. Importantes grupos de ativistas, organizações sociais e defensores de direitos
humanos e da vida interpelaram os distintos estados-nação que os reprimiam com uma força
e violência inusitadas. A performance desses corpos nas ruas se replicou com uma velocidade
e a um alcance inusitados. Os protestos no Equador e no Chile, as greves e as paralisações na
Colômbia, as marchas no México ou no Brasil, puderam ser seguidas de perto por meio das
imagens e dos sons que circulavam nas redes sociais. Estas formas performáticas interpelam
e caducam a forma convencional de fazer comunicação. A ação comunicativa está agora nos
corpos que performam neste espaço público expandido.
Num artigo para a revista katalizador (SCHLENKER, 2011b), você reflete sobre formas-ou-
tras de exibir o que os artistas fazem que não estejam permeadas por instâncias de poder e
que fortaleçam a posição hegemônica do artista criador. Ademais, o mesmo texto apresen-
ta um festival de arte visual contemporânea do Equador como um espaço que possibilitou
pensar a arte desde uma perspectiva-outra. Você poderia nos falar um pouco mais deste
festival e por que o vê como tão distinto e inovador? E partindo da decolonialidade, como
se poderia transformar uma instituição tão moderna-colonial como o museu? E como fazê-
-lo sem reafirmar a individualidade desse artista criador?
Uma inquietante pergunta, além disso recorrente, para todos os artistas, é qual o destino
da obra de arte ou daquilo que produziram. O campo da arte mais tradicional e canônico ofere-
ce caminhos exclusivos que passam por galerias e museus. Mas o que acontece com os artistas
que não querem expor nesses espaços, os que não estão dispostos a seguir as lógicas de poder
que o acesso a tais espaços implica? Desde o início dos anos de 1990 comecei a produzir artis-
ticamente e me pergunto pelos espaços em que minha produção artística, visual e cinemato-
gráfica, pode vir a circular. Ainda que tenha podido expor em certos lugares legitimados como
de “grande relevância”, interessam-me muito mais os espaços disruptivos e insubordinados. O
festival de arte impulsionado pela revista katalizador propôs modos-outros de exibir a arte, para
que houvesse um tipo de horizontalidade na exibição e na circulação artísticas. Esse festival,
entretanto, teve problemas de gestão, só teve duas edições e deixou de existir.
Para propor espaços horizontais para a circulação da arte seria necessário desmontar as
lógicas hierárquicas que classificam a arte atual. Isso implica interpelar as lógicas com as que
disciplinas como por exemplo a História da Arte foram organizando a arte da humanidade me-
diante categorias de gênios e correntes relevantes. Por isso, praticamente nenhuma história da
arte inclui aquilo que produziram os povos ameríndios ou pré-colombianos. A história da arte
começa na Grécia e termina em Londres ou Paris.
Nesse mesmo sentido, o museu como instituição moderna está atravessado na atualida-
de por uma quantidade importante de debates, alguns deles em tom decolonial. São um dos
problemas de muitos museus as reservas que mantêm sem que possam explicar suas origens.
Como os museus etnográficos conseguiram as peças de determinadas culturas? De onde de-
terminados museus históricos conseguiram obras de arte da África, Ásia ou das Américas? Um
bom número destes museus acolheu parte destas críticas e começou a trabalhar em uma revi-
são profunda das materialidades que albergam e das práticas que propõem e desenvolvem. O
museu etnográfico de Copenhague, por exemplo, começou a incluir nos textos de sala a origem
colonial de muitas peças. Distintos museus ao redor do mundo começaram a convidar artis-
34 tas para intervir nas reservas e nas coleções. Uma quantidade importante de museus alberga
agora em seu interior espaços transitórios em que coletivos, laboratórios pedagógicos e grupos
de articulação fazem uso dos materiais. O museu não deve desaparecer, pois é um dos rostos
evidentes da modernidade: sua descolonização deve ser visível para toda a sociedade. Devemos
tomar o museu, intervir nele, nos apropriar de suas possibilidades para gerar uma estrutura
porosa que permita às distintas subjetividades entrar e sair.
No fim das contas, o que seria um/a artista decolonial? Deve-se convocar artes e estéticas
que foram excluídas? Isso significa romper com a arte e a estética como as conhecemos?
Com frequência escutei a pergunta que indaga a existência de uma arte ou de um artista
decolonial. Intuo que a pergunta diz respeito a se existe um tipo de ontologia decolonial, mas
acredito, ao menos a partir do debate no que me inseri, que o decolonial não é uma essência
que se invoca, mas sim um processo de vida em constante construção e de forma compar-
tilhada. O decolonial não é nada além de uma forma de oposição e interpelação aos modos
monolíticos e violentos que buscam ordenar a vida, limitando-a às possibilidades que emanam
de uma matriz. A crítica decolonial deve permear os modos de conceber o fazer, o pensar, o
criar, o sentir. Não acredito que exista em si uma fotografia ou uma pintura decolonial, mas sim
modos críticos que, tentando descolonizar a vida, permitiram o surgimento de certas imagens,
certas vozes, certos sons – todos eles com a finalidade de defender e celebrar a vida. Interpelar a
dimensão artística do debate decolonial implica interpelar as autoridades individuais e singula-
res, para devolvê-las a um estatuto de coletivo e comunitário. Criar a partir da pergunta por uma
decolonialidade implica propor uma relação com o entorno, o espaço, o território de um modo-
-outro. O artista que pensa e sente, estando preocupado com a colonialidade (do poder, do ser,
do saber, da natureza etc.), deve entender que, ao contrário da ideia de uma arte de validade
universal no espaço e no tempo, a sua é uma criação inscrita na especificidade de um tempo/
lugar finito, um gesto provisional, em construção, que aporta a partir de suas possibilidades de
imaginar um mundo melhor para todos. Sem dúvida repensar a arte a partir da decolonialidade
implica convocar todas as práticas que a modernidade excluiu do campo artístico. Mas sanar a
ferida colonial que se prolonga até o campo da arte implica, além de transformar as lógicas com
as que se produz, transformar as lógicas com as que se circula, implica mudar as lógicas com as
que se assiste a arte. A arte é uma condição de possibilidade que permite situar de novo a vida
no centro de nossas práticas, de nossos afetos, de nossos saberes.
Referências
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35
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miento detrás del acontecimiento fotográfico. Calle 14, v. 6, n. 8, p. 128-142, 2012.
Joaquín Barriendos
Universidade Nacional Autônoma do México
Tradução:
Leo Name
¡DALE!, PPGLC / UNILA, PPGIELA / UNILA
1 Originalmente este texto foi publicado em espanhol, com o título de “La colonialidad del ver. Hacia un nuevo diálogo visual intere-
pistémico”, na revista Nómadas (ISSN 0121-7550), n. 35, p. 13-29, outubro de 2011. Agradecemos a gentil liberação para a tradução (Nota
dos Editores).
2 Este artigo é uma reelaboração de alguns dos materiais que usei para ministrar o seminário “A colonialidade do ver: a invenção do
canibalismo das Índias e as imagens visuais transatlânticas da modernidade/colonialidade”. Esse seminário foi realizado durante o
mês de novembro de 2009 na sede da Universidade Andina Simón Bolívar (UASB), em Quito. Os textos que discutimos coletivamente
durante o seminário levantaram vários tópicos, como o giro decolonial, as hierarquias estéticas da modernidade, a racialização epistê-
mica, as tecnologias visuais do capitalismo, a função retórica da “cena canibal” e as conseqüências geoepistemológicas da chamada
descoberta do Novo Mundo. O evento foi organizado pelo coletivo La Tronkal e pela Oficina de Imagem e Visualidade da UASB, con-
tando com o apoio financeiro da Organização dos Estados Ibero-Americanos.
A colonialidade do ver: rumo a um novo diálogo visual
interepistêmico.
Resumo
40
Artigos
41
A maneira da qual as representações dos índios do “Novo Mundo”3 são geradas, apro-
priadas e reinterpretadas nos nossos dias abre um interessante campo de reflexão relacionado
ao consumo global da diversidade cultural e à suposta condição pós-colonial das sociedades
contemporâneas. Como tentaremos mostrar ao longo deste texto, os imaginários transculturais
em torno do canibalismo no “Novo Mundo” – postos em circulação pelos cronistas das Índias
e pelos viajantes protoetnográficos da primeira modernidade, a partir do uso da retórica me-
dieval, da iconografia imperial e das alegorias teológico-militares – não só não desapareceram
como também parecem conviver de maneira sossegada com o discurso da equidade cultural
pós-colonial. A partir do nosso ponto de vista, esses imaginários transculturais estão na base do
que pode ser descrito como o efeito Benetton da pós-modernidade: a sublimação da diversida-
de cultural por meio da representação dos seus estereótipos visuais (GIROUX, 1994).
3 Utilizamos o conceito de Novo Mundo (Novi Orbis) entre aspas para denunciar não somente a genealogia
eurocêntrica e mercantil-militar da ideia do descobrimento/invenção da América – em sintonia com a ressemantiza-
ção que Enrique Dussel (1994) faz desses conceitos em sua crítica ao livro A invenção da América, de Edmundo O’Gor-
man (1958) –, mas também para ressaltar as interações entre a dimensão cartográfica e a cultura visual colonial tran-
satlântica. Como disse Eviatar Zerubavel: “A América é uma entidade tanto física quanto mental e toda a história do
seu “descobrimento” deveria ser, portanto, a história do seu descobrimento físico e cognitivo (ZERUBAVEL, 2003, p. 35).
4 O teórico peruano Aníbal Quijano escreveu a respeito da colonialidade do poder. Posteriormente, os debates
do “grupo decolonial” expandiram esse conceito e falaram sobre a colonialidade do saber e a colonialidade do ser.
Como tentei especificar em outro texto, a colonialidade do ver estabeleceria um contraponto tático entre os ou-
tros três níveis: o epistemológico (saber), o ontológico (ser) e o corpocrático (ou corpo-político como define Ramón
Grosfoguel). Esse contraponto abriria, a partir do ponto de vista deste quadrívio decolonial, um novo campo de aná-
lise das maquinarias visuais de racialização que acompanharam o desenvolvimento do capitalismo moderno/colo-
nial. Sobre o tema, ver Barriendos et al. (2010). Sobre a expansão do conceito de Quijano, ver Santiago Castro-Gómez
e Ramón Grosfoguel (2007) e Aníbal Quijano (2000b).
5 Para a teoria decolonial, a colonialidade é constitutiva da modernidade. Não há, portanto, nenhum tipo de mo-
dernidade sem que essa implique a produção, a reprodução ou a transformação da colonialidade. Por essa razão,
utilizamos a expressão “modernidade/colonialidade” como uma unidade de análise inseparável.
Joaquín Barriendos
A colonialidade do ver
6 É impossível explicar aqui, em detalhe, a dimensão do que chamei de razão intercultural da condição pós-co-
lonial. Em termos gerais, refiro-me à instrumentalização epistêmica e à normatividade afetiva do que é “intercul-
tural”, como partes substanciais das lógicas do capitalismo cognitivo. Elas suporiam um regime de representação
política da diversidade baseado na inclusão da diferença, mas não no reconhecimento da pluridiversidade, isto é,
faltar-lhes-ia um reconhecimento pleno das assimetrias epistêmicas e das hierarquias geoestéticas operadas pela
colonialidade. Em seus trabalhos sobre os desafios da plurinacionalidade, a pesquisadora Catherine Walsh propôs
modelos de interculturalidade radicalmente distintos e nos ofereceu uma leitura alternativa útil, mas não instru-
mentalizada, da necessidade de se trabalhar a partir da interculturalidade para questionar o que ela chama de
interculturalismo funcional. Sobre o tema, ver Walsh (2009) e Barriendos (2006, p. 56-63).
7 Utilizamos o conceito de imagem-arquivo para acentuar a capacidade condensadora e catalisadora de certas
imagens, ou seja, para ressaltar sua função semiótica e sua porosidade como depositárias de outras imagens e re-
presentações. As imagens-arquivo são, então, imagens formadas por múltiplas representações sedimentadas umas
sobre as outras, a partir das quais se conformam certas integridade hermenêutica e unidade icônica. Aquelas repre-
sentações que guardam algum grau de associação, alusão ou parentesco com a imagem-arquivo de Che Guevara,
para citar um exemplo, ficariam imediatamente inscritas no grosso da cultura visual gerada pela conhecida fotogra-
fia intitulada Guerrillero heroico, de Korda. E ficariam, também, em dívida com uma série de imaginários culturais,
tais como o mito do rebelde latino-americano, a ideia de uma veemência patriótico-nacionalista bolivariana, a ideia
de uma pureza e uma essência ideológico-revolucionária do Terceiro Mundo, a ideia de uma utopia social desen-
cadeada pela desobediência de certos grupos subalternos, a ideia do fracasso histórico das modernidades perifé-
das economias mercantis transatlânticas do século XVI, essa primeira seção relacionará a genea-
logia de algumas imagens-arquivo sobre o canibalismo das Índias ao problema da colonialidade
do ver, isto é, à matriz da colonialidade que subjaz a todo regime visual baseado na polarização
e inferiorização entre o sujeito que observa e seu objeto (ou sujeito) observado. Finalmente, esta
primeira seção abordará a maneira pela qual as imagens-arquivo sobre o canibalismo das Índias 43
operam no marco da crise epistemológica do ocularcentrismo ocidental, o que James Clifford
definiu como a “crise pós-colonial da autoridade etnográfica” (CLIFFORD, 1995, p. 23).
Mediante estes dois momentos, tentarei articular outra hipótese: para desmontar o pa-
drão de poder sobre o qual se estabelecem as atuais trocas migratórias, econômicas e simbólicas
na região cultural euro-latino-americana dos nossos dias (isto é, o lugar em que acontecem as
batalhas cognitivas, afetivas, corporativas e geoestéticas do mundo transatlântico pós-colonial),
é necessário estabelecer, primeiramente, uma clara correlação entre os seguintes elementos: a
origem eurocêntrica do saber etnográfico, o peso das retóricas cartográficas imperiais no pro-
cesso de consolidação das hierarquias etnorraciais e o racismo epistemológico como elemento
constitutivo da formação e da metamorfose do sistema capitalista moderno/colonial. Em conse-
quência disso, a colonialidade do ver deve ser entendida como uma maquinaria heterárquica do
poder que se expressa ao longo de todo o capitalismo, mas sob a forma explícita do que Quijano
chama de heterogeneidade histórico-estrutural; em outras palavras, a colonialidade do ver con-
siste em uma série de superposições, derivações e recombinações heterárquicas, que em sua
descontinuidade interconectam o século XV ao século XXI, o XVI ao XIX etc. A heterogeneidade
histórico-estrutural desmonta, portanto, a ideia progressista que afirma que a transformação
histórica do visual se estrutura por fases que vão das menos complexas e modernas às mais
complexas e desenvolvidas. Nesse relato progressista da cultura visual transatlântica que tenta-
mos colocar em questão, imagens como as que representam Hans Staden a ponto de ser devo-
rado pelos antropófagos do “Novo Mundo” seriam concebidas como a antípoda (ou, melhor dito,
a pré-história) das fotos de Oliviero Toscani sobre as “cores unidas” da Benetton. No entanto, para
tornar explícita essa ponte heterogênea histórico-estrutural da visualidade transatlântica e para
avançar na descolonização das imagens-arquivo em torno do canibal, é necessário estabelecer,
primeiramente, as genealogias dos processos de construção e transmissão do que Iris Zavala
define como o olhar panóptico colonial (ZAVALA, 1992). Ou seja, é necessário que o problema
da invenção do “Novo Mundo” seja repensado tomando como pontos de referência a geopolí-
tica do conhecimento, os diferentes regimes de visualidade da modernidade/colonialidade, as
retóricas visuais sobre o canibalismo das Índias, a função geoepistêmica das cartografias im-
periais, as economias simbólicas transatlânticas surgidas no século XVI e os diferentes regimes
heterárquicos de racialização epistêmica da alteridade. Pois é a partir desses elementos que se
ricas etc. As imagens-arquivo podem definir-se, então, como ferramentas semiótico-sociais de concatenação, isto
é, como signos disparadores de múltiplos imaginários subjacentes ou iconicidades complementares; sua utilidade
para o estudo das culturas visuais globais reside no fato de que, por meio de sua análise, podemos avançar na cons-
trução interdisciplinar de certa “arqueologia decolonial” do que neste texto descreve-se como a colonialidade do ver.
Joaquín Barriendos
A colonialidade do ver
articulam as matrizes binárias de gênero, classe, sexo, raça etc., e que se reproduzem as estrutu-
ras biopolíticas do patriarcado, do capitalismo, do desenvolvimentismo, do multiculturalismo, da
interculturalidade e da globalidade, entre outras.8
44
Até meados do século XVI, Juan Ginés de Sepúlveda e Bartolomé de las Casas deram for-
ma a um conflito transatlântico carregado de argumentos teológicos e problemas imperiais co-
nhecido como a Controvérsia de Valladolid. No Convento de São Gregório dessa cidade foram
debatidos os direitos teológicos, morais, jurídicos e trabalhistas dos índios do “Novo Mundo”.
Como consequência desses enfrentamentos epistêmicos em torno da “inferioridade natural”
dos habitantes das Índias, Las Casas redigiu, em 1552, uma versão reeditada, sintética e caute-
losa da sumária história da destruição do “Novo Mundo” – que este frade dominicano começara
a escrever em 1539 e que foi publicada em Sevilha com o título de Brevíssima relação da des-
truição das Índias.
De maneira conjunta ao debate sobre a existência ou não da alma indígena, o que estava
em jogo nesta controvérsia era, principalmente, o problema que se conhece como o paradig-
ma tutelar – ou seja, o direito de intervenção teológico-militar no “Novo Mundo” e a justificativa
da guerra contra os índios com base na sua não religiosidade “natural”, na sua duvidosa huma-
nidade e na sua suposta predisposição ao canibalismo. No entanto, como sugeriu Carlos Jáu-
regui, o que se fez evidente depois do fracasso político e econômicos das Leis Novas (promul-
gadas em 1542)9 foi que a retórica em torno do canibalismo das Índias converteu-se de uma
pedagogia missionária que pretendia redimir os selvagens consumidores de carne humana a
uma teologia militar que pretendia regular a “fome de metais” e o sistema de encomiendas.10
“O tema do canibalismo é cada vez menos uma questão de consumo de carne humana por
parte dos caribes e cada vez mais uma questão de consumo das forças de trabalho por parte
dos encomendaderos das Antilhas maiores”, relembra Jáuregui (2008, p. 79). A consolidação
desse processo baseou-se, como veremos mais adiante, na interação de dois elementos profun-
damente interconectados com a colonialidade do ver: a territorialização do canibalismo, por um
lado (isto é, a associação entre o consumo de carne humana e a geografia natural e selvagem
8 Para uma crítica à globalização e à relação entre democracia e capitalismo global a partir do ponto de vista da
heterogeneidade histórico-estrutural, ver Quijano (2001, p. 97-123).
9 Em termos muito esquemáticos, pode-se dizer que as Leis Novas pretendiam restringir o poder dos encomende-
ros por meio da racionalização da escravidão indígena no “Novo Mundo”.
10 As encomiendas foram implementadas pela Coroa espanhola em todas os seus domínios americanos e nas
Filipinas. Esse sistema consistia em uma espécie de distribuição laboral dos indígenas de um determinado terri-
tório e sob a administração e controle dos conquistadores ou de seus herdeiros, a quem era concedido o título de
encomenderos. As encomiendas foram concebidas, em sua origem, como um sistema de regulação e proteção
das terras que se encontravam sob a jurisdição da Coroa espanhola: o encomendero tinha a obrigação de cuidar
dos indígenas, catequizá-los e zelar pelo seu bem-estar e, ao mesmo tempo, devia defender o território que lhe era
entregue. Na prática, as encomiendas abriram um leque de tráfico de influências e abusos de poder graças à explo-
ração escravista da mão-de-obra indígena.
do “Novo Mundo”), e, por outro lado, a constante reinvenção do escravismo indígena por meio
da justificativa teológica do paradigma tutelar – que encontrava seu fundamento na cartogra-
fia imperial da bula Inter-Coetera de 1493 e sua tácita aprovação de outro tipo de consumo: a
concentração de mão-de-obra e metais preciosos nas mãos dos encomenderos.
45
Apesar das retificações propostas por John Elliott nos índices de exploração da mão-de-
-obra indígena sugeridos por Bartolomé de las Casas, os dados relacionados à diminuição po-
pulacional referidos por Massimo Livi Bacci, em uma data tão inicial quanto 1519 – mesmo ano
em que os dominicanos denunciaram a Carlos V as experiências escravistas, definidas como
carnificinas –, nos permitem afirmar que o surgimento do “Novo Mundo” no mapa teológico-
-comercial foi o catalisador por meio do qual as versões clássicas e medievais do selvagem e
do canibal tomaram um brilho plenamente moderno/mercantil-colonialista (ELLIOTT, 1976;
LIVI BACCI, 2006). Pode-se afirmar, portanto, que a “invenção” do canibalismo das Índias, a
racialização epistêmica da humanidade dos caribes, a exploração da força de trabalho indígena
e a “fome de metais” são quatro elementos constitutivos do sistema-mundo moderno/colonial.
Em meio às polêmicas teológicas sustentadas por Las Casas e Ginés de Sepúlveda – aquele
que justificou a guerra contra os indígenas com o argumento de que eles eram canibais que
“não se regiam pela razão, mas pelo apetite” –, surgiu uma conexão direta e paradoxal entre o
apetite colonial pelas riquezas naturais do “Novo Mundo” (“fome de metais”) e a justificativa
etnocartográfica do consumo escravista (o apetite etnográfico por uma forma de alteridade
indígena canibalizada e transformada em potência produtiva). Desse paradoxo surgiram, por
sua vez, os “dois artefatos selvagens ou formas conceituais da selvageria” (JÁUREGUI, 2008, p.
30), que transitaram desde a primeira modernidade e atravessaram todo o pensamento ilus-
trado, a saber: o selvagem amigo e aliado (que se integra à economia colonial transatlântica)
e o selvagem inimigo não humano e caribe (que se mantém à margem do comércio). Como o
próprio Rodrigo de Figueroa colocaria em evidência em 1520, em seu julgamento sobre aque-
les que deveriam ser descritos como canibais ou não, o assunto da antropofagia foi interpretado
a partir do olhar eurocêntrico dos encomenderos e de maneira geoculturalmente estratégica:
ritualizada no caso dos índios aliados (como foram, em alguns momentos, os tupinambás), de-
sumanizada como no caso dos índios inimigos (como foram os ouetacas). Jean de Léry afirma
em seu livro de viagens pelo Brasil que
Joaquín Barriendos
A colonialidade do ver
Modelada pelas visões demonológicas dos missioneiros, pela literatura de viagem dos
conquistadores, pelos relatos dos cronistas das Índias, pelos argumentos jurídico-territoriais dos
encomenderos e pela retórica do imperialismo cartográfico, no interior do olhar panóptico co-
lonial a que nos referimos antes surgiu o que neste texto definimos como a colonialidade do
ver. É por meio dessa colonialidade do olhar que se articularam tanto a matriz etnográfica e
racializadora do comércio transatlântico quanto o substrato imperial da cartografia expansio-
nista.
Uma das maquinarias geoepistêmicas na qual mais claramente se pode observar o sur-
gimento da colonialidade do ver é a que concerne a redistribuição entre o “fora” ontológico e o
“dentro” etnográfico das cartografias imperiais. Devido ao fato de que, após o “descobrimento”
do “Novo Mundo” – e a sua forçada aceitação como apêndice da geografia tripartida do mun-
do –, o mesmo já não podia seguir sendo um “fora” geográfico, a região Caribana redefiniu-se
a partir de então como um novo “fora” ontológico, como um “mais além” etnocartográfico. A
separação entre o “dentro” e o “fora” deixou de ser, então, uma divisão física e geográfica entre
o mundo conhecido e as terras desconhecidas e passou a ser um disciplinamento espacial, teo-
lógico, epistêmico, racial e ontológico do canibalismo das Índias. O “fora” absoluto e universal
viu-se substituído, portanto, por um “fora” definido visualmente pela territorialização colonial e
mercantil do canibal. Nesse sentido, como já apontamos antes, a nova cartografia simbólica da
alteridade canibal do “Novo Mundo” torna-se incompreensível se não se levam em conta tanto
a geografia escravista transatlântica quanto a reinvenção das justificativas medievais em torno
da exploração da força de trabalho indígena e do consumo de metais preciosos, ambos rela-
cionados à Bula Inter-Coetera de 1493. Foi então a construção desse “fora” etnocartográfico,
11 Nos mapas cartográficos como os de Ortelius (1570), Franciscus Verhaer (1618), Hendrik Hondius (1630) e Nicolaes
Visscher (1690) aparece explicitamente a palavra caribana, associada a um território extenso e impreciso, normal-
mente vinculado à prática da antropofagia.
assim como de sua capacidade simbólica e visual para territorializar o canibal, que garantiu a
consolidação e a continuidade das explorações geográfica e ontológica do “Novo Mundo”, pro-
movidas pela referida Bula. As cartografias imperiais, a protoetnografia eurocêntrica e a mer-
cantilização transatlântica da alteridade canibal devem ser consideradas, por consequência,
como constitutivas da colonialidade do ver. 47
Assim, o olhar panóptico colonial funcionou como o substrato para o desenho dos mapas
imperiais do “Novo Mundo” e foi a base teológico-argumentativa que permitiu que a antropo-
fagia kanibaloi – construída pelo imaginário medieval europeu – se encarnasse na imagem
etnocartográfica do caribe antropófago: o canibal das Índias. Como veremos, todo o passado
mitológico sobre o selvagem e a tradição retórica medievalista sobre o canibal foram reutiliza-
dos na construção do “bom” e do “mau” selvagem americanos. Assim se pode defini-los, com
toda propriedade, como uma forma radical do indigenismo medieval, ou melhor dizendo, como
uma forma extrema de alteridade no imaginário medieval das culturas do descobrimento. As
imagens-arquivo do selvagem americano fundem suas raízes, portanto, à reinvenção tardo-
-medieval da antropofagia greco-romana, à figura do naturmenschen e aos imaginários deri-
vados do problema ontológico da eucaristia cristã, ou seja, à justificativa metafórica e da função
simbólico-ecumênica de comer o “corpo” de Deus.
Como dizíamos antes, essa nova territorialização do que é monstruoso suscitou um tipo
de violência epistêmica e etnorracial hierarquizante, profundamente imbricada com o desen-
volvimento dos imaginários comerciais transatlânticos. O que a “fome de metais” pôs em mar-
cha foi, então, uma espécie de etnonegação tardo-medieval da natureza dos canibais do “Novo
Mundo”. Com isso, foi cancelada a possibilidade de estabelecer-se um diálogo interespistêmico
entre os saberes de um Ocidente em formação e os saberes divergentes que se encontravam
no território que veria chegar o influxo dos conquistadores, dando origem à irrupção do que
Landry-Wilfrid Miampika denomina como etnografia espontânea e Carlos Jáuregui chama de
saber protoetnográfico (MIAMPIKA, 2003). Isso fomentou a exaltação de uma única episteme:
a racionalidade eurocêntrica e hierarquizante do sistema moderno/colonial. Vistos a partir da
ótica da colonialidade do ver, os encontros protoetnográficos e os confrontos etnocartográficos
com a alteridade canibal deram vida a um tipo de violência epistêmica que se diferencia subs-
tancialmente de outras formas de inferiorização ontológica ou de negação epistêmica do que
é humano, devido a sua complexa matriz de racialização extrema.
Joaquín Barriendos
A colonialidade do ver
Embora seja certo, então, que não foi senão até o século XVIII que a antropologia ad-
quiriu sua legitimidade disciplinar e sua função científico-social, isso não nega o fato de que
tenha sido nas etnografias espontâneas do século XVI que se fermentaram a ideia da distância
etnográfica e o princípio da autorreflexividade etnográfica circular. Ou seja, que tenha sido nas
protoetnografias do século XVI que surgiu a ideia de descobrir a alteridade e fazer desaparecer
a mesmidade no acontecimento performático do olhar transcultural.12 No caso desta visuali-
dade protoetnográfica colonialista imperial, é notório, além disso, que os temas da distância e
da objetividade visuais surjam de uma espécie de dupla imbricação antropófaga: o consumo
objetivo do sujeito observado e a autocanibalização subjetiva do olhar etnocêntrico – isto é, em
um duplo movimento de corporização do canibal e de sublimação do regime visual moder-
no/colonial. A força deste tipo de violência ou protorracismo epistemológico – constitutivo da
colonialidade do ver – consiste, portanto, em uma dupla estratégia visual/ontológica: a de fazer
aparecer o objeto selvagem (o não ser canibal) e, ao mesmo tempo, a de fazer-se desaparecer
como sujeito de observação, como ordem ou lei das coisas e como princípio inquestionável da
racialização epistêmica radical.13 Em seu ensaio intitulado Dos canibais, o próprio Montaigne
([1580] 2009) torna explícita essa estratégia, ao diluir-se (como sujeito de enunciação) quando
afirma (sob a forma de uma autoridade etnográfica) o seguinte: “eu mesmo sou o conteúdo do
meu livro”. Recorda-nos Jáuregui (2003, p. 100) que “o olhar de Montaigne sobre as notícias
que tinha do canibalismo americano é oblíquo, um olhar que é um pretexto à alteridade com
vistas ao encontro crítico da mesmidade”.
12 Muitos teóricos opõem-se – na maioria dos casos devido ao fato de que subscrevem uma leitura eurocêntrica da
história das ciências sociais – à ideia de que as relações intersubjetivas e as retóricas geoidentitárias coloniais entre o
“Novo Mundo” e o Ocidente se definam como “protoetnografias”, “antropologias iniciais”, “etnografias espontâneas”
ou “alteridades etnológicas”. No entanto, como sugeriu o próprio Carlo Ginzburg em seu artigo sobre a influência
do colecionismo (expansionismo espaciotemporal), na visão etnográfica dos índios canibais de Montaigne, o surgi-
mento não disciplinar da etnografia é um terreno interdisciplinar que está ainda por explorar. Ver Ginzburg (1982).
13 Haveria, assim, uma estreita relação entre a protoetnografia, o protorracismo e o protocapitalismo.
Pelo que foi dito até aqui, ninguém se surpreenderá ao ouvir que a maquinaria racializan-
te das culturas visuais etnocêntricas tem profundas conexões com a matriz lumínica do saber
ocidental, ou seja, com lançar-se luz (conhecimento) e com isso ocultar não somente o sujeito
que observa, mas, também, o seu lugar de observação e enunciação do conhecimento. Isso é o
que Santiago Castro-Gómez chamou de a hybris do ponto zero (CASTRO-GÓMEZ, 2004). Tra-
ta-se do lugar não epistêmico, da tecnologia endêmica da colonialidade do saber ocular. Dessa
maneira, o “Novo Mundo” somente pode ser novo na medida em que sua irrupção na ordem tri-
partida do mapa teológico ocidental promoveu a aparição de um novo regime ou heterarquia
escópicos: a colonialidade do ver. A cartografia, o relato etnográfico, os “arquivos das Índias” e
as tecnologias do saber ocular foram chamados, então, para cumprir uma função determinante
na nova geopolítica do ver, inaugurada pelas “culturas do descobrimento”.
14 A ideia do inconsciente ótico está frequentemente relacionada ao desenvolvimento da fotografia e à capacidade
de decomposição científica da realidade e do tempo objetivo que o positivismo atribuiu a esta mídia, assim como
ao princípio da reprodutibilidade, posta a serviço da clínica e da psicanálise. Como tentei especificar em outro tex-
to (BARRIENDOS, 2007), a curva que vai desde o conceito de inconsciente-ótico-consciência de Walter Benjamin
até o revisionismo do ocularcentrismo epistemológico de Martin Jay, passando pelo olhar pós-lacaniano sobre o
“inconsciente ótico” do capitalismo tardio levado a cabo por Rosalind Krauss, não pode ser entendida como uma
linha contínua, mas, antes disso, como um percurso cheio de contradições e mal-entendidos que atravessam e se
colapsam com o pensamento estruturalista e com a antropologia visual pós-estruturalista. Neste texto, entretanto,
tentamos estender a noção de inconsciente ótico etnocartográfico colonial, que no nosso ponto de vista foi o que
permitiu o desenvolvimento das rotas comerciais transatlânticas embasadas em um domínio ao mesmo tempo
teológico, militar e científico. O inconsciente ótico etnocartográfico colonial seria, neste sentido, o “olho de deus” a
serviço do capitalismo.
15 A expressão é de Hommi Bhabha (1990). Ver Donatini (2000).
Joaquín Barriendos
A colonialidade do ver
No início deste texto afirmamos que a colonialidade do ver era constitutiva da moder-
nidade e que, por consequência, seu padrão de poder exerce um papel importante na con-
juntura interepistêmica derivada do que antes foi descrito como a crise pós-colonial da autori-
dade etnográfica de que a racionalidade ocidental padece hoje em dia. A seguir, gostaríamos
de analisar a colonialidade do ver a partir da ótica das tensões geopolíticas, geoeconômicas
e geoculturais por meio das quais o capitalismo cultural transatlântico opera atualmente. Ou
seja, gostaríamos de pensar o conceito a partir da colonialidade que se inscreve na irrupção da
região euro-latino-americana: na atualidade do mundo moderno/colonial transatlântico. Para
nós, fica claro que, como se tratava de uma espiral ontológica, aquelas formas antropófagas de
observação e de (di)gestão da alteridade surgidas no século XVI persistem em nossos imaginá-
rios econômicos e culturais globais, na atual retórica sobre a interdependência geopolítica e nas
negociações comerciais, corporativas e patrimoniais da “era pós-colonial”. Em outras palavras,
gostaríamos de começar esta segunda parte afirmando que, como imagem-arquivo, o cani-
balismo das Índias convive – atualizado e sublimado – na economia cultural transatlântica dos
nossos dias. Os processos migratórios de sujeitos fortemente racializados (sujeitos raciais do im-
pério, como chamados por Ramón Grosfoguel), os fluxos de remessas a partir da Europa para a
América Latina, a interdependência e a gestão do investimento estrangeiro direto, a construção
de espaços regionais do conhecimento e a nova divisão internacional do trabalho, por exemplo,
seriam então algumas das instâncias nas quais reaparece, metaformofoseada, essa forma de ra-
cismo epistêmico inaugurada no canibalismo de Índias. Nessas instâncias persistem a dialética
entre o sujeito que observa e a alteridade sujeitada a seu olhar. O mapa das migrações laborais
atuais seria, nesse sentido, um recipiente das adaptações e tecnologias da colonialidade do ver
que circunda as imagens-arquivo sobre o canibal.
Nesse caso, as imagens-arquivo às quais vimos nos referindo parecem transitar, então,
pelo espaço da différance colonial da modernidade ocidental e parecem seguir adaptando-se,
atualmente, diante das novas necessidades geopolíticas do consumo cultural da era pós-co-
lonial. As mutações heterárquicas da colonialidade do ver poderiam ser rastreadas, então, por
meio dos diferentes reordenamentos da modernidade/colonialidade, desde a “invenção” do
“Novo Mundo” até os nossos dias. Entre os muitos momentos relevantes que deveriam ser le-
vados em conta no momento de estabelecer uma genealogia do racismo epistemológico da
visualidade moderno/colonial, poderiam ser mencionadas as seguintes conjunturas, somente
como exemplos: a gestão da “mulatez” e da “pardidade” no processo de “compra da brancura”
na Potosí colonial;16 a revolução racial haitiana de 1804 e a dívida econômica criada por São Do-
mingos para voltar a transformar-se no sujeito político que atualmente conhecemos como Haiti
(assim como para poder justificar politicamente a diretriz de que “todos os cidadãos, daqui em
diante, serão conhecidos pela denominação genérica de negros”) (Constituição do Haiti, artigo
14);17 as exposições universais – como a própria Exposição Antropológica Brasileira de 1882 –
51
que explicitamente se estruturavam com base numa exclusão inclusiva do “mau selvagem” (isto
é, em fazê-lo desaparecer como sujeito, por meio de fazê-lo visível como objeto) (GONZÁLEZ e
ANDERMANN, 2006); as irrupções fantasmagóricas a partir das quais o primitivismo apareceu e
reapareceu na arte, na literatura e na política, sob a forma de mercadoria-fetiche exótica desde
meados do século XIX até o período final do movimento surrealista; e a estética do fantástico
que transformou a plástica latino-americana em um contra-cânone visual muito bem integrado
ao mercado global da arte. Entre muitos outros, esses seriam alguns exemplos destacáveis nos
quais o canibal, o exótico, o selvagem, o fantástico e o antropófago reaparecem, associados com
um território simbólico e a uma hierarquia epistêmica racializante por meio da qual normatiza-
-se e disciplina-se a interação de culturas visuais diferenciadas.
Joaquín Barriendos
A colonialidade do ver
cas etnófagas. Para além dos conflitos regionais e interdepartamentais, o que agora nos inte-
ressa, aqui, são aqueles estudos visuais que souberam reabsorver e redirecionar as críticas ao
pós-colonialismo postuladas, sobretudo, pelas teorias das pós-feministas negras e chicanas,
pelas teorias do pós-ocidentalismo e pelos assim chamados giros decoloniais e pensamentos
52 fronteiriços. Imersas na crítica das políticas de representação, essas epistemologias transcultu-
rais da visualidade souberam confrontar-se com o tema do duplo desaparecimento do sujeito
(etnógrafo) que observa e do sujeito observável (consumível). Por meio da análise da matriz
sígnica e performática das retóricas visuais da modernidade/colonialidade, os estudos visuais
transculturais conseguiram, por sua vez, sobrevoar o projeto conhecido como Writing Culture e
sua relação com o pós-estruturalismo e souberam desarticular muitas das fantasias epistemo-
lógicas derivadas da observação participante e do trabalho de campo do etnógrafo (MARCUS
e CLIFFORD, 1996).
Em suma, a vertente dos estudos visuais que nos interessa vincular com a “crise pós-colo-
nial da autoridade etnográfica” e com as necessidades geoepistemológicas da América Latina
é aquela que deu destaque à genealogia etnocêntrica inscrita no “pôr em cena” malinowskia-
no, isto é, a dos estudos visuais 1) que tentaram desarticular o discurso da objetividade e da
verdade visuais arraigadas à ótica da invisibilidade da etnografia eurocêntrica; 2) que se afas-
taram da busca por transparência ou da aculturação antropológicas e 3) que questionaram o
alcance epistemológico tanto da “observação participante” quanto da “interação experiencial”
com a alteridade, a partir da crítica da matriz racializante que está na base da colonialidade do
ver (MARCUS, 2002). Em suma, o que nos interessa aqui é a vertente que questiona os rema-
nescentes epistemológicos e ontológicos derivados do princípio de “verdade” da cena canibal:
a descrição verídica do outro – canibal – por meio de alegorias visuais ou de alusões retóricas
à verdade ocular de “ter estado ali”.20 As epistemologias transculturais da visualidade que nos
interessam são, então, aquelas que levam em consideração a autorreflexividade das etnografias
críticas, mas a partir da ótica da crítica geoepistemológica ao ocularcentrismo normativo.
Ora, devido justamente a sua distribuição heterárquica, mais que hierárquica, e devido
também à própria heterogeneidade histórico-estrutural da colonialidade do ver, fica evidente
para nós que os diversos regimes etnocêntricos e etnófagos da colonialidade do ver podem
e devem ser analisados e contestados, isto é, incluídos na agenda de um novo diálogo visual
interepistêmico. Assim, não somente devem ser contestadas as epistemologias racializantes e
narrações visuais associadas à escrita de cronistas das Índias como Pedro Mártir de Angleria, aos
cadernos de viagem de autores como André Thevet ou Jean de Lèry, às representações visuais
de Hans Staden ou Theodore De Bry ou aos ensaios protoetnográficos como os do próprio Mon-
taigne, mas também todas as outras narrativas e os imaginários racializantes que surgiram em
plena modernidade do capitalismo tardio e que permitiram que se encobrisse certa razão in-
tercultural monoepistêmica, em plena era da globalização cultural. Nesse sentido, pode-se afir-
mar que embora os processos de produção, antropologização e (di)gestão da alteridade sejam
constitutivamente moderno/coloniais, não significa que eles careçam de pontos de fuga ou de
fissuras epistêmicas por meio das quais se possa exercer uma crítica antilumínica e decolonial
desses processos. Contudo, para concretizar essa crítica decolonial aos imaginários panópticos
coloniais a que viemos fazendo referência, é imprescindível levar em consideração que, por um
20 Referimo-nos ao mito do “testemunho visual etnográfico” da cena canibal, que se baseia geralmente em uma
série de inconsistências epistêmicas e narrativas – que, no entanto, serviu para que diversas tecnologias visuais,
como a iconografia imperial e a etnocartografia expansionista, radicalizassem a racialização epistêmica do índio
caribe e legitimassem a noção de não ser do mau selvagem. Um exemplo paradigmático seria, como nos lembra o
próprio Peter Hulme, a crônica que o próprio Chanca faz do seu suposto “encontro ocular” com a alteridade canibal.
A cena canibal é, nesse sentido, uma imagem-arquivo arquetípica da colonialidade do ver. Sobre o tema, ver Barker
et al. (1998).
lado, o saber antropológico – por estar em dívida com os regimes escópicos da modernidade – é
um saber reiteradamente ocularcêntrico e que, por outro lado, o método etnográfico de ob-
servação e contemplação da alteridade (associado ao “pôr em cena” malinowskiano) costuma
operar como um dispositivo hierárquico de vigilância e normalização do olhar e do que é olhado.
53
Para poderem se apresentar como verdadeiras estratégias decoloniais, os estudos visuais
transculturais precisam, então, irem mais além da simples afirmação de que tanto o desen-
volvimento heterogêneo histórico-estrutural da visualidade colonial e de suas etnografias im-
periais quanto o processo de legitimidade da etnografia autorreflexiva estão fortemente rela-
cionados aos paradigmas lumínicos imperiais (GLIOZZI, 1978). Fazê-lo será, sem dúvida, um
elemento-chave para poder entender a genealogia da colonialidade do ver e sua matriz de
racialização epistêmica radical da alteridade. Mas é necessário, com base no nosso ponto de
vista, ir mais além e reconhecer também que a sujeição, a inferiorização, a objetificação e a
racialização da alteridade por meio da visão não se constituiu – nem se constitui agora – um
único regime visual universal. Por consequência, a racionalidade lumínica do mundo ocidental
é chamada para estabelecer um acordo transmoderno e interepistêmico com as visualidades
e epistemologias-outras. Nesse sentido, deve-se considerar que qualquer imagem-arquivo da
modernidade/colonialidade, qualquer categoria imperial e qualquer relato colonial podem ser
deslocados e descartados, mas também se deve ter em consideração que é necessário pô-los
em visibilidade para que a sua descolonização avance.
Joaquín Barriendos
A colonialidade do ver
54 Como todos os extremos, a função simbólica do ouro descoberto (ou encoberto) nas
“terras dos canibais” e a sujeição etnorracial da força produtiva indígena são dois apetites que
se tocam e, melhor ainda, se fundem na geografia do capitalismo transatlântico. Ambos são,
por consequência, apetites extremos dos quais queremos chamar atenção: 1) para o consumo
insaciável de ouro e de mão-de-obra indígena e 2) para o consumo insaciável de alteridade
cartográfica e mesmidade etnográfica. Por essa razão, e apesar de terem tomado forma na pri-
meira modernidade, esses dois apetites extremos persistem no capitalismo pós-fordista. Nesse
sistema, tais apetites funcionam como base etno-hierárquica do que Toby Miller definiu como
a Nova Divisão Internacional do Trabalho Cultural (NDITC), ou seja, eles operam como o subs-
trato de toda inferiorização intercultural no marco das atuais migrações trabalhistas globais.
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Joaquín Barriendos
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57
Imagem, mídias e
telecolonialidade:
rumo a uma crítica
decolonial dos
estudos visuais1
Christian León
Universidade Andina Simón Bolívar, Sede Equador
Tradução:
1 “Imagen, medios y telecolonialidad: hacia una crítica decolonial de los estudios visuales” era o título original deste artigo, publicado
na revista Aisthesis, n. 51, p. 109-123, 2012 – Instituto de Estética, Pontifícia Universidade Católica do Chile (ISSN 0568-3939). Agradece-
mos ao autor e à publicação pela liberação para a tradução (Notas dos editores [N.E.]).
Imagem, mídias e telecolonialidade: rumo a uma crítica decolonial
dos estudos visuais
Resumo
El presente artículo propone pensar los procesos de visualidad desde América Latina
a partir del denominado “giro decolonial”. Intenta entender la relación estructural
que existe entre prácticas visuales y estructuras de poder mundial surgidas en el
contexto del sistema-mundo moderno. Plantea la relación existente entre las tecno-
logías, discursos, prácticas y sujetos asociados a las imágenes y la analítica de las
colonialidades del poder, el conocimiento y el ser. Analiza las jerarquías de distinto
tipo producidas a través de dispositivos visuales en el contexto de la división interna-
cional del trabajo tecnológico, la racialización global de la población y la economía
mundializada de las imágenes.
Palabras clave: visualidad, cine, arte, colonialidad, geopolítica.
This paper discusses the visuality processes in Latin America since the so-called
“decolonial turn” approach. It analyzes the structural relationship between visu-
al practices and global power arising in the context of the modern world system. It
seeks to study the relationship between visual technologies, discourses and practices
and the analytics of the coloniality of power, knowledge and being. It addresses the
different types of hierarchies produced through a visual dispositive in the context of
the international division of technology labor, the racialization of the population, and
the global economy of images.
Keywords: visuality, cinema, arts, coloniality, geopolitics.
Foto: Fran Rebelatto. Cidade do México
60
Artigos
Os estudos visuais que estão se desenvolvendo na América Latina têm como desafio
pendente a construção de um lugar de enunciação onde seus saberes estejam histórica e geo-
politicamente localizados. Nesse sentido, tanto a crítica à tradição ocidental das histórias e teo-
rias da arte, bem como a do audiovisual, ambos provenientes do primeiro mundo, são tarefas
essenciais. A particularidade dos processos de visualidade, em nosso subcontinente, levanta 61
singularidades históricas, culturais e epistêmicas que não foram abordadas em toda a sua com-
plexidade. Nesta questão, o chamado “giro decolonial” permite articular uma série de entradas
conceituais para entender “a heterogeneidade histórico-estrutural” da visualidade na América
Latina2 e assumir as tarefas pendentes deixadas pelos movimentos anti-imperialistas da arte e
do cinema latino-americanos ao longo do século XX.3
Nos últimos anos, a crítica cultural (RICHARD, 2007, p. 82) e os estudos culturais (GARCÍA
CANCLINI, 2007, p. 38) têm discutido a importância de contemplar as imagens em um campo
expandido de produção, circulação e consumo inserido em relações geopolíticas nas quais a
assimetria cultural, no cenário internacional, é uma norma. No entanto, esses esforços parecem
destinados ao fracasso, pois não encontram uma maneira de construir as relações constitutivas
entre visualidade e geopolítica no contexto da modernidade ocidental. A crítica decolonial, por
sua vez, tem sua origem no debate sobre as matrizes de poder geradas pela colonização nos
campos do conhecimento, da cultura, das representações e em sua constante reestruturação,
ao longo das diferentes ondas de modernização e ocidentalização pelas quais a América Latina
passou. A partir dessa abordagem, é possível entender a relação estrutural entre práticas signi-
ficativas (sejam elas discursivas, visuais ou corporais) e estruturas de poder globais decorrentes
do que o sociólogo estadunidense Immanuel Wallerstein chamou de “sistema-mundo moder-
no”.4 A partir dessa abordagem, Wallerstein torna legíveis fenômenos tão complexos quanto a
divisão internacional do trabalho tecnológico e a racialização global da população que emer-
gem de uma economia mundializada das imagens.
2 Para um balanço das abordagens da crítica decolonial ver Castro-Gómez e Grosfoguel (2007). Para uma definição
do conceito de “heterogeneidade histórico-estrutural”, ver Quijano (2000).
3 Durante o século XX, surgiram em diferentes regiões da América Latina vanguardas e movimentos estéticos que
começaram a defender a crítica ao imperialismo cultural e ao eurocentrismo. Esses esforços críticos, no entanto,
foram atormentados por uma contradição performativa: pretendiam impugnar o sistema cultural moderno a partir
da mesma linguagem, valores e epistemologias ocidentais. Muitos desses movimentos, como a antropofagia brasi-
leira ou o terceiro cinema argentino, propuseram fazer da arte um cavalo de batalha contra o imperialismo estadu-
nidense, mas ao mesmo tempo afirmaram a supremacia da cultura letrada ocidental e a figura viril e patriarcal do
autor, além de aderirem a um conceito homogêneo de cultura nacional.
4 Para uma introdução ao método da análise do sistema-mundo moderno, ver Wallerstein (2004).
5 Apesar de as noções de “centro” e “periferia”, “norte” e “sul”, “ocidente” e “não ocidente” terem sido severamente
questionadas em razão dos efeitos das mídias, das migrações e das hibridações culturais, vale a pena mencionar
o esforço feito pelos teóricos decoloniais para se afastar dos binarismos do pensamento moderno. Conceitos como
“heterogeneidade histórico-estrutural”, criado por Aníbal Quijano, ou “transmodernidade”, formulado por Enrique
Dussel, dão conta dessa questão. Talvez ainda haja um problema a ser resolvido no uso do conceito de “matriz” ou
“padrão” aplicado para compreender as ordens de dominação cultural abertas pela colonialidade. Esses conceitos
podem nos levar ao equívoco de uma “história-mestra” que nos impeça de entender a colonialidade como uma
cadeia de mediações e traduções contingentes.
Christian León
Imagem, mídias e telecolonialidade
Gostaria de acrescentar a necessidade de nos livrar das teorias da arte e do cinema cons-
truídas sob parâmetros da razão eurocêntrica, a fim de permitir a abertura a uma “estética-ou-
tra”, de “culturas-outras visuais”, de “tecnologias-outras da imagem”. Assim como nas Ciências
Sociais, em disciplinas e áreas ligadas à arte e à imagem há uma ampla genealogia construída
sobre a base dos desenvolvimentos do mundo greco-latino, da tradição judaico-cristã, do pen-
samento iluminista e da crítica pós-moderna. Esta tradição, transmitida a partir da história uni-
versal da arte, da estética e das teorias disciplinares da arte, permanece inquestionável até os
dias atuais e continua a ser o centro de organização dos programas das carreiras de Belas Artes
e Artes Visuais. Aqueles de nós que trabalham na docência dessas áreas, são sempre confron-
tados com o dilema a respeito de em que lugar se situa a história da arte latino-americana ou a
história do cinema latino-americano.6 A instituição universitária, para evitar um problema, ge-
ralmente adiciona uma disciplina anexa que é construída à imagem e semelhança da história
universal das artes ou do cinema, mas não faz parte dela. O desprendimento epistemológico e
a abertura decolonial que propõe Mignolo fala precisamente do questionamento das catego-
6 Gostaríamos de deixar claro que existem relações diferenciadas da tecnologia cinematográfica (base fotográfica)
e das tecnologias videográficas (base eletromagnética e digital) com a colonialidade do saber e a produção institu-
cional de conhecimento. No entanto, essas nuances complexas não são o tema deste ensaio.
rias eurocêntricas com as quais nos tornamos profissionais das disciplinas da imagem, a fim de
poder articular um pensamento que permita um lugar de enunciação para aqueles sujeitos e
histórias que foram silenciados pelo eurocentrismo. Esse pensamento, por um lado, não pode
mais corresponder às disciplinas da arte e da imagem, mas, a partir de uma abordagem inter e
transdisciplinar, trataria a própria constituição dessas áreas do conhecimento articulada ao sur- 63
gimento da modernidade/colonialidade. Por outro, está aberto ao diálogo interepistêmico com
saberes-outros, imagens-outras e visualidades-outras produzidos por movimentos, grupos e
culturas subalternos que desconsideram a autoridade cultural do mundo ocidental e que se ex-
pressam fora das instituições de conhecimento estabelecidas, como é o caso das universidades.
É por isso que temos dificuldade em falar e pensar em termos teóricos sobre as nossas
práticas visuais e artísticas sem sermos atormentados pelo fantasma da particularidade que há
para além da margem da universalidade e da história. É por essa razão que uma das primei-
ras tarefas dos estudos visuais latino-americanos é gerar condições intelectuais para que sua
enunciação tenha um lugar, permitindo a enunciação da visualidade-outra e a visualização
de uma enunciação-outra.
7 No que diz respeito ao conceito de “zona de não ser”, ver Gordon (2009) em Fanon ([1952] 2009).
Christian León
Imagem, mídias e telecolonialidade
francês Serge Gruzinski8 propôs, diante dos obstáculos de tradução com os quais a língua espa-
nhola encontrou perante a pluralidade das línguas indígenas e do analfabetismo persistente na
história da América Latina, a imagem constituiu um dos mecanismos fundamentais de ociden-
talização. No uso de representações visuais houve um processo de colonização do imaginário
64 indígena, permitindo ao mesmo tempo a proliferação de uma cultura visual rica em hibridiza-
ções e mestiçagens, o que fez com que a América Latina se tornasse um verdadeiro laboratório
intercultural de imagens.
Talvez sejam a colonialidade das imagens, o poder que elas exibiram e a resistência que
elas permitiram o precedente mais importante para a construção de uma cultura visual global
na América Latina. As indústrias do entretenimento, as mídias de comunicação de massa e a ge-
neralização do que Mirzoeff ([1999] 2003, p. 34) chamou de “o evento visual” na vida cotidiana
seriam apenas o resultado de uma complexa heterogeneidade histórico-estrutural da moderni-
dade visual que surge a partir do século XV. As tecnologias do cinema, da televisão, do vídeo, da
Internet e dos celulares – em suma, o que Roncagliolo (1999, p. 63-64) chamou de “videosfera
latino-americana” – seriam apenas um segundo momento da modernidade visual da América
Latina. Parece haver agora um consenso de que a dinâmica da reprodução cultural tende a
processos imaginários ligados ao consumo e à apropriação de imagens (CASTRO-GÓMEZ e
GUARDIOLA-RIVERA, 2000. p. XXIII). Este contexto abre novos campos de indagação para a crí-
tica decolonial, ao exigir que seja considerado o papel das imagens na produção e reprodução
da “diferença colonial” e para propor a análise geopolítica do papel desempenhado pelos dis-
positivos, instituições e conhecimentos da arte e do audiovisual na reprodução da colonialidade
do poder. Estamos testemunhando um segundo momento do pensamento decolonial em que
a crítica da visualidade adquire destaque. Como o próprio Mignolo apontou, é “neste momento
que começamos a descobrir que a colonialidade se envolve com o visual. Em razão disso dize-
mos que estamos na matriz colonial do poder, segunda época” (CARTAGENA et al., 2009).
8 Para uma análise do papel desempenhado pelas imagens ao longo da história de América Latina, ver Gruzinski
([1999] 2000 e [1990] 2003).
9 Para um questionamento dos campos artísticos a partir de conceitos ligados ao pensamento decolonial, ver:
Marín Hernández (2005), Cartagena (2006 e 2010), León (2006 e 2010), Barriendos (2007 e 2008), Palermo (2009),
Mignolo (2001) e Franco Reyes (2010). Além disso, há obras semelhantes no campo musical e do som: Santamaría
Delgado (2007) e Estévez Trujillo (2008 e 2010).
a denominação de “cultura visual”, que impede pensar-se as hierarquias de classe, gênero, raça
e nação. Pensar em uma estratégia conceitual para a análise combinada de múltiplos padrões
de discriminação é realmente um desafio para os estudos transdisciplinares, não só no campo
visual, mas também no cultural e social. A crítica decolonial tem avançado em considerações
importantes a este respeito, que podem se constituir em uma junção epistemológica para pen- 65
sar a relação entre poder e visualidade. Com base no conceito de “diferença colonial”, a crítica
decolonial tem articulado uma busca complexa sobre as diferentes esferas de dominação que
surgem com a modernidade/colonialidade. Para os pensadores latino-americanos, a constitui-
ção do sistema-mundo moderno/colonial estrutura um poderoso universo de categorias que
transforma a diferença em hierarquia. Por meio da razão moderna eurocêntrica, que organiza
o mundo em oposições binárias, é organizada uma ordem cuja lógica é a dominação. “A di-
ferença colonial consiste em classificar grupos de pessoas ou populações e identificá-los em
suas falhas ou excessos, o que aponta a diferença e inferioridade em relação a quem classifica”
(MIGNOLO, 2000, p. 39).
De fato há uma hierarquia acentuada entre sistemas visuais ocidentais e não ocidentais
desenvolvida a partir de uma série de mecanismos tecnológicos, iconográficos, psicológicos e
culturais integrados a sistemas coloniais de poder e conhecimento. A própria noção de ima-
gem precisa ser decolonizada, uma vez que é produto da retícula óptica, da perspectiva renas-
centista, do conceito ocidental de representação e do sujeito transcendental moderno. Como
Gruzinski apontou, “as categorias e classificações que aplicamos às imagens são inerentes a
uma concepção culta devida ao aristotelismo e ao Renascimento” (GRUZINSKI, [1990] 2003, p.
14). A noção de “ixiptla”, que os indígenas náuatles costumavam usar para se referir aos seus
ícones milagrosos, foi combatida como idolatria e posteriormente subsumida pelos efeitos da
colonialidade do poder por meio do conceito ocidental de “imagem”, associado ao catolicis-
mo. Do mesmo modo que as línguas e os códigos do olhar e da visualidade se cruzam com as
outras ordens hierárquicas da modernidade/colonialidade e servem como parâmetros para a
Christian León
Imagem, mídias e telecolonialidade
racialização e a inferiorização das populações não europeias. Poderíamos afirmar, portanto, que
um dos efeitos da colonização do poder e do saber foi a assimilação da multiplicidade de cultu-
ras visuais na ordem binária do eurocentrismo, que atribui lugares hegemônicos e subalternos
para cada uma delas.
66
Além disso, pode-se argumentar que as culturas visuais racializadas e inferiorizadas
por meio das múltiplas e misturadas discriminações e hierarquizações da modernidade/
colonialidade acabam por perder sua capacidade de significar, transformando-se tão somente
em um objeto significado. Nesta linha, seguindo Aníbal Quijano, Joaquín Barriendos desen-
volveu o conceito de “colonialidade do ver” para designar o complexo entrelaçamento entre
a extração colonial da riqueza, os saberes eurocêntricos, as tecnologias de representação e a
reorganização da ordem do olhar que ocorre com a “nova cultura visual transatlântica” inau-
gurada com a conquista da América e a invenção do canibalismo das Índias. Para o historiador
mexicano, a “colonialidade do ver” é causada pela confluência do expansionismo transatlântico
das culturas visuais imperiais, o ocularcentrismo militar-cartográfico, o saber protoetnográfico
eurocêntrico e a gênese do sistema mercantilista moderno/colonial. Quando esses fatores são
combinados, se produz uma epistemologia visual complexa que estrutura, por um lado, uma
ordem de descorporificação e invisibilização que permite a universalização do olhar imperial
e, por outro, uma ordem de corporificação e visibilidade que permite a racialização do corpo
indígena por meio do tropo do canibalismo. A colonialidade do ver é apresentada como uma
articulação geopolítica do olhar e do que se olha em um jogo de antropofagia dupla.
10 Um versão ampliada e posterior (de 2011) deste artigo de Joaquín Barriendos que é citado por Christian León foi
traduzida para o português para este mesmo volume da Epistemologias do Sul. Trata-se de “A colonialidade do ver:
rumo a um novo diálogo visual interepistêmico”, que se encontra nas páginas imediatamente anteriores ao presen-
te texto (N.E.).
que, atualmente, os dispositivos audiovisuais se tornaram uma rede de mediações que atua-
lizam a colonialidade do ver em um momento marcado pelo capitalismo cognitivo, pela era
das comunicações, pelas tecnologias da imagem, pela cultura visual, pelas indústrias cultu-
rais e pela incorporação ocidental do outro no contexto da globalização. Esta nova circunstân-
cia criará uma telecolonialidade visual marcada por uma forma de colonização do imaginário e 67
da memória ligada à operação particular da imagem produzida e reproduzida mecanicamente.
A história desta redefinição da colonialidade do ver pode ser traçada a partir do apare-
cimento de duas tecnologias inovadoras que transformaram o próprio ato de observação: a
fotografia em 1826 e o cinema em 1895. Graças à generalização dessas tecnologias se inicia,
nos países centrais do sistema-mundo, uma reflexão sobre o lugar da imagem dentro do capi-
talismo e do sistema geral da cultura. Segundo Walter Benjamin, a imagem é incorporada ao
consumo em massa, adquirindo um novo status que favorece a reprodutibilidade técnica sobre
a singularidade aurática e a proximidade espacial-perceptiva sobre o afastamento metafísico
(Benjamin, [1935] 1973, p. 24). Como eu já propus em outro texto, o aparecimento de tecnolo-
gias mecânicas de captura da imagem representa uma complexa reorganização do poder e da
governamentalidade estabelecida na passagem dos dispositivos panópticos dos séculos XVII
e XVIII para os dispositivos audiovisuais dos séculos XIX e XX. A partir dessa transformação, a
economia do poder ligada aos dispositivos audiovisuais começa a ser definida a partir de cinco
princípios: a) descentralização do olhar; b) tradução do corpo para o regime bidimensional da
representação; c) generalização do efeito da onipresença do sujeito transcendental; d) desloca-
mento do tempo e do espaço, o que permite uma ação difundida à distância, e) introdução do
prazer escópico (LEÓN, 2010).
11 No que diz respeito à origem desta sincronização geopolítica do tempo por consequência do dispositivo cinema-
tográfico, eu escrevi em outro texto que “em sociedades plurinacionais, a enorme tarefa do Estado era transformar
os tempos heterogêneos em que vivem as diferentes comunidades e povos no tempo homogêneo da Nação. O
cinematógrafo, com sua capacidade de homogeneizar o tempo e torná-lo linear, estabeleceu um modelo para a
construção da Nação. Antes do predomínio da televisão, o cinema mostrava o caminho para a sincronização dos
tempos e a anulação dos tempos-'outros' em que viviam as nações e comunidades subalternas” (LEÓN, 2009, p. 35).
Christian León
Imagem, mídias e telecolonialidade
lonialismo global para a colonialidade global (GROSFOGUEL, 2007). Essas formulações tendem
a desafiar a ideia de que a pós-modernidade e a globalização criaram uma crise da moderni-
dade e das suas formas de opressão coloniais. Pelo contrário, elas argumentam que o capita-
lismo cognitivo, que tem o conhecimento e a comunicação como principal força produtiva, é
68 uma forma de continuar a colonialidade por outros meios que fortalecem a exploração colonial
do conhecimento das regiões não ocidentais (CASTRO-GÓMEZ, 2007, p. 84). Cada vez mais,
o poder se encontra desvinculado das antigas instituições coloniais e se dissemina no merca-
do mundial, nas grandes empresas transnacionais e na cultura global euro-americanas. Isso
faz com que o poder assuma formas menos visíveis, porém mais concentradas, baseadas no
mercado nos quais os conflitos culturais são atenuados por meio da incorporação do outro. As
formas de estabelecer as diferenças culturais são transferidas do conceito de “alteridade” para
“subalternidade” (CORONIL, 2000, p. 246). De fato, nesse novo cenário econômico-cultural, as
regiões periféricas do sistema-mundo moderno continuam sujeitas às múltiplas hierarquias
da colonialidade, ocupando uma posição subordinada na divisão internacional do trabalho e
sendo submetidas a processos de inferiorização e racialização na escala global (GROSFOGUEL,
2007, p. 106).
A partir dessas reflexões, é possível pensar o papel desempenhado pelas mídias audio-
visuais na produção e reprodução do que poderíamos chamar de “telecolonialidade”, que tra-
balha no controle geopolítico da alteridade na escala global com base na gestão de imagens
à distância. A telecolonialidade visual nos coloca diante de uma rede de dispositivos midiáti-
cos transnacionais que se baseiam na exploração colonial de conhecimentos, representações e
imaginários e que visam a reproduzir as hierarquias de classe, raça, sexuais, de gênero, linguísti-
cas, espirituais e geográficas da modernidade/colonialidade euro-norte-americana. Os disposi-
tivos midiáticos articulados dentro do regime de telecolonialidade propõem uma rearticulação
da diferença colonial em dois campos: a) novos parâmetros para a divisão internacional do tra-
balho tecnológico; e b) um novo estatuto para a racialização da população mundial.
Neste parágrafo, o sociólogo belga lança uma tese tão exata em uma de suas partes
quanto problemática em outra. Por um lado, levanta um julgamento justo do cinema, como
empresa cultural que permitiu superar a crise do primeiro eurocentrismo desencadeado pelo
Quem já trabalhou adequadamente nesta visão constitutiva entre raça e visão é Deborah
Poole ([1997] 2000). A partir da análise da economia visual nos Andes peruanos e bolivianos,
ela analisa como: a) a materialidade das imagens personificou as concepções de raça como fato
Christian León
Imagem, mídias e telecolonialidade
Conclusões
Finalmente, a título de conclusão, gostaria de salientar algumas das teses que tenho de-
fendido para assim iniciar uma discussão sobre o projeto de estudos visuais na América Latina,
as tecnologias audiovisuais e a crítica decolonial:
6. o giro decolonial nos estudos visuais pode se tornar uma poderosa estratégia para
realizar as tarefas deixadas pelos movimentos anti-imperialistas e anticolonialistas no
campo do cinema e da arte latino-americana, a fim de construir uma cultura visual
transmoderna.
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Christian León
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Christian León
Rumo a uma
memória decolonial:
breves apontamentos
para indagar sobre o
acontecimento por trás
do acontecimento
fotográfico1
Alex Schlenker
Universidade Andina Simón Bolívar, Sede Equador
Tradução:
1 Este artigo foi originalmente publicado em espanhol, sob o título “Hacia una memoria decolonial: breves apuntes para indagar por
el acontecimiento detrás del acontecimiento fotográfico”, no periódico Calle 14: revista de investigación en el campo del arte (ISSN:
2011-3757, E-ISSN: 2145-0706, Universidade Distrital Francisco José de Caldas, Bogotá, Colômbia), v. 6, n. 8, p. 128-142, 2012. Agradece-
mos a gentil liberação para a tradução (Nota dos editores).
Rumo a uma memória decolonial: breves apontamentos para inda-
gar sobre o acontecimento por trás do acontecimento fotográfico
Resumo
O retrato foi, ao longo da história da fotografia, um ritual cuja gramática visual este-
ve sempre condicionada por um determinado olhar. Fazemos retratos para lembrar,
para fixar um instante no tempo. Quando lembramos o que foi fotografado convo-
camos de novo esse instante, mas, além disso, também convocamos uma realidade,
uma ordem social específica construída por determinados atores sociais. A fotografia
tem representado e legitimado, em muitos momentos, um padrão de poder colonial
que, por meio de suas estruturas de dominação, tem elaborado rígidas hierarquias so-
ciais e raciais que circunscreveram índios, africanos, mulheres e classes populares ao
que Frantz Fanon chama de zona de “não ser”. É possível recordar, então, a partir da
fotografia, de maneira crítica e sem reproduzir em tal exercício a matriz colonial que
fez possível a toma da imagem?
Palavras-chaves: fotografia, retrato, memoria, matriz colonial.
Throughout the history of portrait photography has been a ritual whose visual gram-
mar is always conditioned by a determined way of gazing. We make portraits to re-
member, to fix a moment in time. When we remember what we photographed, we
recall once more that instant, but we also call on a reality, a specific social order built
by certain social actors. Photography has represented and legitimized more than
once a pattern of colonial power, which has produced in turn, through its structures
of domination, rigid social and racial hierarchies that have reduced Indians, blacks,
women and the lower classes to what Frantz Fanon calls the zone of non-being. Is it
possible, then, to remember from a picture, in a critical way and without reproducing
in the process the colonial matrix that enabled the capture of the image itself?
Key-words: photography, portrait, memory, colonial matrix.
Foto: Fran Rebelatto. Buenos Aires, Argentina
76
Artigos
Pois dei conta de coisas que se contêm, isto é, bens que foram
feitos assim para o serviço de deus e de Vossa Majestade com
nossas ilustres conquistas, e ainda que tão caras as vidas de todos
os demais, de meus companheiros, porque muito poucos ficamos
vivos, e os que morreram e foram sacrificados, e com seus corações
77
e sangue oferecidos aos ídolos mexicanos que se diziam
Texcatepuca e Uichilobos.
Bernal Díaz del Castillo,
História verdadeira da conquista da Nova Espanha.
Introdução
2 Segundo o Coronel (sp) Marco Rosales, irmão mais novo de Miguel Ángel Rosales, em entrevista para Alex
Schlenker e Adolfo Albán, Quito, 19 de agosto de 2009.
Alex Schlenker
Rumo a uma memória decolonial
Figura 1: “Retrato grupal”. Fonte: série "Os notáveis", Arquivo Rosales, década de 1930.
78
Núcleo de Imbabura, jornalista, inventor e, de especial interesse para a minha pesquisa, como
fotógrafo. Após sua morte, sua casa foi vendida em Ibarra, ao norte do Equador. Viveu neste
imóvel ao longo de sua vida e lá funcionou por várias décadas o Foto Estúdio Rosales, no qual
seu filho Wilson (1935?-2002) também se formou e trabalhou. Na casa permaneceram por
quase duas décadas cerca de dez caixas com aproximadamente 35.000 imagens em chapas
de vidro, negativos e fotos impressas em papel.
Desde as primeiras incursões, descobri dois aspectos importantes de sua fotografia. Por
um lado, havia uma interessante proliferação de temas, tais como o retrato de grupo, o evento
social, o retrato religioso (batizados, primeiras comunhões, casamentos, velórios etc.), os eventos
públicos, a fotografia costumbrista e paisagística, assim como o retrato indígena e o retrato afro.
Por outro lado, e depois de analisar cerca de 5.000 imagens, cheguei à pergunta sobre o olhar
diferente que se pode ler em muitas das imagens do Estúdio Rosales, especialmente naquilo
que se refere à representação do dominado (a mulher, a criança, os índios, os negros). Atrevo-me
a adiantar que o olhar fotográfico dos Rosales insere uma fissura crítica na maneira tradicional
e, portanto, colonial de representar os grupos sociais. Essa fissura permite pensar numa estraté-
gia de emancipação3 a partir da memória fotográfica. Este texto indagará sobre a possibilidade
de pensar a fotografia como disparador de reflexões críticas que levem a um giro decolonial do
olhar e, com ele, da representação visual como parte de uma memória-outra.
3 No texto em espanhol é perceptível que se joga com as noções de “desprendimiento” e “desenganche” (utilizada
neste momento) numa certa relação de sinonímia. Entretanto, é igualmente notável que o segundo substantivo,
derivado do verbo “desenganchar”, carrega a memória de uma situação mais específica de desvinculação (a qual
funciona tanto em “desprendimiento” como em “desenganche”). Trata-se de um desvencilhar-se de uma situação
de opressão. Por isso, optamos por “emancipação” nos contextos em que se usou “desenganche” e optamos por
“desprendimento” naqueles em que se usou “desprendimiento” (Nota da tradutora).
A história “oficial”, disciplina que ajudou durante séculos a estruturar os modos de enten-
der e reproduzir o estado-nação, transformando-se num dos melhores veículos para consolidar
a colonialidade/modernidade, entende a si mesma como a encarregada de elaborar a história
nacional por meio de determinados “relatos históricos nacionais com o objetivo de dar um su-
porte às soberanias [… e narrar] o que ocorreu de verdade” (WALLERSTEIN, 1996). Com isso, a
história reclama para si o direito de narrar o acontecimento, em especial suas implicações polí-
ticas, sociais e econômicas. Essa narração tem sua própria estética, de tipo colonial. A memória,
então, fica relegada a se assumir como um exercício de interpretação subjetiva de aspectos
menores que, face à sua não cientificidade, podem ir do anedótico e dos distintos aspectos
culturais até a ficção fantasiosa e pouco provável. A história se autoproclama, assim, como um
exercício acadêmico de muita precisão e despreza a memória, tachando-a como uma prática
popular pouco confiável e de menor transcendência que, como tal, não teria uma metodologia
científica e menos ainda uma estética própria. Isso a obrigaria a empregar a estética da domi-
nação dos grupos de poder com sua história oficial (desfiles, discursos, condecorações, para-
das militares, conselhos diretivos, códigos empregados para o retrato a óleo ou para a câmera
fotográfica etc.) para imprimir um sentido às suas práticas culturais, especialmente àquelas
relacionadas com o ato de recordar.
O acontecimento, então, gera dois olhares: por um lado, existiria o olhar de transcendên-
cia histórica, concatenado com outros importantes acontecimentos localizados antes e depois
(e, portanto, ao longo de uma linha do tempo do continuum histórico) daquele fato que é estu-
dado. Este olhar implica um tipo de aproximação, organização e interpretação que apenas um
seleto número de especialistas pode realizar, uma capacidade que radicaria em duas condições
fundamentais: a cognitiva (aquele que sabe o que é preciso saber para interpretar a história) e a
ética (aquela atitude que deve ser demonstrada para manter inalterados, incólumes, os distin-
tos aspectos essenciais do dado que remete ao acontecimento).
Alex Schlenker
Rumo a uma memória decolonial
4 Esta tensão se inscreve na ideia segundo a qual existe uma alta cultura (sofisticada) que se opõe à cultura popu-
lar (primitiva). Ver: Wallerstein (1999).
5 Nesse contexto é interessante ver de que maneira a história se esforçou em procurar para si um lugar próprio na
classificação do conhecimento, separando-se das ciências naturais e sociais e, de modo geral, das humanidades.
Ver: Wallerstein (1996).
para comemorar o voo inaugural do aeroporto dessa cidade, é possível gerar duas séries de per-
guntas totalmente diferentes. Todo historiador perguntará por um contexto histórico nacional e
pela possível transcendência do acontecimento para a vida nacional, indagando a respeito dos
grandes relatos da modernidade: progresso indefinido, poder onímodo da razão, da democra-
cia, da manipulação da natureza pela técnica etc. Os pesquisadores da memória, por sua vez, 81
indagarão sobre a repercussão de tal acontecimento na vida das pessoas, sobre os referentes
que circularam a partir do acontecimento, entre outros.
Para entender como se reproduz e se legitima a matriz, é preciso analisar os planos e pro-
gramas que compõem a educação atual. A maior parte desses planos está centrada na trans-
missão de conteúdos. O conhecimento é, então, entendido como quantidade de informação
necessária para vir a ser e não como forma de mediação entre sujeitos que, como diz Kusch, já
estão sendo. A ideia cultural do ser, um ser decolonial, implica entender as diversas expressões
culturais como “modos diferentes de ser” (KUSCH, 1976, p. 114). Ao contrário do que devería-
mos esperar de uma educação para a transformação, a grande maioria das escolas e colégios
concebem o conhecimento como uma construção que depende essencialmente do professor
(aquele que sabe) e menos do aluno (aquele que não sabe, mas pode vir a saber). Assim, a
colonialidade se estabelece de cara nos atores do processo educativo e se estende até as entra-
nhas da própria aprendizagem. Para que se ensina? Para que se aprende? A ideia de um aluno
como construtor de seu próprio conhecimento, como entende Ausubel, como sujeito de uma
aprendizagem significativa e potencial, leva a pensar na ideia de solo de Kusch, segundo a qual
Alex Schlenker
Rumo a uma memória decolonial
“o solo é habitado, […] o que implica que não se pode ser indiferente diante do que ocorre aqui.”
(KUSCH, 1976: 115). Habitar esse território implica habitar de maneira crítica uma memória
que me foi imposta. Esta consciência crítica deve me levar a (re)construir a minha verdadeira
memória.
82
Leitura crítica da representação fotográfica:
construindo um olhar decolonial
Esta divisão entre o científico e o popular fez aqueles com que se ocupam da história e da
memória acreditarem que o fato histórico, mesmo que lido de duas diferentes maneiras, seria
um único acontecimento. Da perspectiva da fotografia histórica esta ideia levaria a acreditar
que o importante para ambas as perspectivas consiste em abordar o quê daquilo que é fotogra-
ficamente representado e não o como. Seria apresentado, então, um evento histórico concreto
cujas leituras dependeriam da natureza de quem o lê e interpreta. A visita de um político seria
desta maneira um evento concreto interpretado por dois olhares distintos. Da perspectiva da
memória fotográfica, aquela que gera em determinadas situações imagens que abordam o
acontecimento histórico, essa tensão epistemológica conseguiu distrair a atenção do fato de
que numa fotografía existem, na verdade, dois acontecimentos: o histórico (aquele que a foto-
grafia tenta captar e a história e a memória tentam reconstruir) e o performativo-representacio-
nal que emana do anterior e que põe em jogo uma quantidade significativa de elementos que
determinam, afinal, os olhares de quem retrata e de quem é retratado.
Como foi selecionado um determinado fundo para a fotografia? Como foram determi-
nadas a composição, a localização, a postura e a vestimenta dos retratados? Quem e de que
maneira determinaram a distância entre alguns retratados e outros e, finalmente, deles com
relação à câmera? O retrato foi concebido como uma forma discursiva mais abstrata que, por-
tanto, prescinde de atributos físicos secundários que remetem ao ofício (ferramentas, lugares
específicos, formas de nomenclatura etc.) para destacar a posição política, social e econômica
por meio de atributos mais abstratos como a postura ou a relação espacial diante de outros6
retratados na mesma imagem?
A imagem fotográfica deve ser lida então como um objeto-representação composto por
várias camadas, entre as quais se destacam, em uma acepção foucaultiana, aquilo que é retra-
tado (o enunciado) e o retratar (o lugar de enunciação). Embora seja verdade que Foucault traz
um importante olhar sobre a elaboração do discurso, não é menos verdade que para as reali-
dades latino-americanas permanece em tais ideias uma espécie de dívida, que gira em torno
da ausência de um desenvolvimento mais profundo e de um contexto histórico, racial e social,
mais amplo.
A fotografia histórica exorta, então, o olhar que a percorre perguntando sobre, além do
quê, o como e assim, finalmente, o porquê. Por que surge um determinado retrato da maneira
como ficou impresso sobre a emulsão? Se essa foto não tivesse sido tirada dessa maneira, de
que outra forma poderia ter sido tirada? Em muitas fotos fica evidente uma colonialidade do
poder que emerge da linguagem desenvolvida/selecionada na e para a imagem. A fotografia
“retrato de família” (Figura 3) é um excelente exemplo dos dois acontecimentos que devem
ser lidos de maneira crítica para entender essa presença do colonial. O acontecimento primário
é, sem dúvida, o desejo de uma família de classe dominante (ou de determinados membros
6 A convenção generalizada dita que determinadas figuras de poder (homem, branco, pai, adulto, burguês etc.)
gozam do privilégio de serem retratados sentados.
83
de tal família) em ser retratada “para a posteridade”.7 O acontecimento que daí deriva é o que
finalmente traduz esse desejo em ação, em linguagem dentro do tempo; um acontecimento
que está composto pelo movimento dos retratados antes da obturação do disparador fotográ-
fico, pelas ordens dadas pelo fotógrafo, pelos olhares que vêm e que vão da e para a câmera.
O segundo acontecimento organiza o desejo do primeiro e o inscreve nos corpos retratados,
estabelecendo a gramática visual que determina que certos sujeitos retratados estejam de pé
(cinco filhas) e outros sentados (pai e mãe); da mesma forma, seria preciso ler a composição
central do poder: os pais no centro, os filhos às margens, assim como o nível de inferioridade ao
qual é submetida a jovem negra, descalça e sentada no chão.
A primeira leitura sugere uma escrita de poder que emana de formas de organização
visual (posicionamento e proximidade/distância) que remetem a uma forma de colonialidade
do poder e do ser. O pai/homem/burguês/branco vs. a criada/mulher/menina/negra. Um se-
gundo olhar permite descobrir que a menina negra foi colocada pelo fotógrafo numa posição
ambígua: os pais a interpretarão como uma posição de subordinação (o chão: região daquilo
que é primitivo, sujo, escuro – calibanesco na formulação de Roberto Fernández Retamar), mas
ao mesmo tempo o espectador percebe rapidamente que a menina foi posta pelo fotógrafo no
lugar da composição que é registrado ao final do percurso do olhar.8 Um lugar no qual final-
mente ficamos a sós com o olhar que a menina negra nos devolve. Coincidência? Intuição de
um fotógrafo comprometido com a ideologia socialista?
7 Susan Sontag se refere ao ato fotográfico como a tentativa de deter (estatizar) o instante. Ver: Sontag ([1977] 2006).
8 Numa composição de vários elementos (pessoas), o olhar não capta a imagem como totalidade, ela é construída
após o percurso do olhar pela soma dos elementos (pessoas) identificados como parte de um todo (família).
Alex Schlenker
Figura 4. Fonte: Indianertypen aus Colombia und Ecuador (1888).
Rumo a uma memória decolonial
84
O retrato de perfil, a maneira mais eficaz de evitar o olhar do retratado, permite destacar
os traços faciais e corporais (nariz, cabeleira comprida etc.) ao serem empregados na exotização
colonial. Se a imagem anterior impactou de alguma maneira, é preciso observar a série de retra-
tos indígenas do mesmo livro que como traço central tem o gesto de “tirar o chapéu” por parte
do índio retratado, como sinal de respeito diante da autoridade (retratante) branca/mestiça.
A cabeça sem chapéu opera então como sinal que exibe duplamente o poder da submis-
são: por um lado, se educa o índio com modos civilizatórios (descobrir a cabeça diante do poder
metropolitano) e, pelo outro, são exibidas as cabeças que o poder mandou raspar para evitar
pragas e sujeira. Uma forma de submissão e de civilização que humilhava o sujeito retratado
em um ambiente alheio, como é o estúdio fotográfico (ver o fundo das imagens). Neste caso,
a fotografia serve de veículo para construir, legitimar e fazer circular esse olhar colonial que
reproduz a matriz colonial. Seguindo a descrição que Mignolo faz da passagem do conceito
de colonialismo em Wallerstein ao de colonialidade em Quijano, é possível perguntar por esse
ponto de inflexão semântico a partir da leitura fotográfica. A pergunta que desejo desenvolver
para a pesquisa é: como propor-se uma leitura crítica da memória fotográfica que possa operar
enquanto mecanismo de emancipação da modernidade/colonialidade?
Alex Schlenker
Rumo a uma memória decolonial
cida assim uma relação desigual do saber que lhe proporcionava uma posição de privilégio no
momento de representar fotograficamente aquele que era diferente.
Um primeiro passo para decolonizar o ato fotográfico, e com ele a memória fotográfica,
passa pelo acesso à linguagem da representação, neste caso, a própria fotografia. Um segundo
86
passo exige desmontar por completo o processo de representação e circulação de imagens que
obedece à lógica da modernidade/colonialidade. Isso pressupõe examinar meticulosamente as
seguintes perguntas: quem representa quem e para quê? O que é representado e como é re-
presentado? A partir de onde se representa e para qual público/espectador? Por onde circulará
essa imagem e por que ou para quê?
As respostas para essas reflexões devem permitir ir além do ato de vingança artística do
coletivo olho mecânico para repensar a imagem como possibilidade de gerar sentidos a partir
do registro fotográfico de uma memória que tem importância para a comunidade em que a
imagem foi produzida. Um bom exemplo disso é o álbum familiar, composto por imagens que
devem gerar sentido para aqueles que têm um vínculo real/natural com o próprio álbum. Ne-
nhuma foto chega ao álbum sem um sentido negociado de alguma maneira. Kusch recorda
acertadamente que “o sentido de uma obra não se esgota com o autor, mas sim com o povo
[comunidade] que o absorve” (KUSCH, 1976, p. 116).
A capa e a dedicatória do livro de Stübel e Reiss deixam claro para quem foram compila-
das e publicadas as imagens dos índios da Colômbia e do Equador: “Dedicado aos membros do
VII Congresso Internacional de Americanistas” (Figura 6).
Figura 6: Capa e detalhe da dedicatória de Alphons Stuebel e Wilhelm Reiss para os membros do VII Con-
greso Internacional de Americanistas, em Alphons Stuebel e Wilhelm Reiss, Indianer von colombia und
Ecuador, VII. Fonte: Internationaler Amerikanisten Kongress, Berlim, 1888.
87
9 Certas tendências das ciências da comunicação propõem a dicotomia entre os estudos dedicados à mensagem
e os chamados estudos de recepção.
Alex Schlenker
Rumo a uma memória decolonial
Numa tentativa de adaptar a proposta gráfica ao Arquivo Rosales, elaborei para minha
pesquisa uma nova versão do mapa (Figura 7). As maneiras como na época eram representa-
das determinados sujeitos (mulheres, indígenas, negros, crianças, classes populares e pobres
etc.) acabam colocando uma infinidade de perguntas em torno da representação visual-co-
lonial do poder. Sem ignorar a colonialidade na autoridade, na economia, nos saberes e nas
subjetividades, no gênero e na sexualidade, me atrevo a pensar os limites do colonial a partir da
imagem, o que me permitiria em seguida aprofundar as formas de colonialidade mencionadas
no gráfico. Tal abordagem busca ler a partir da colonialidade das representações visuais as for-
mas de colonialidade exercidas pela matriz colonial na época e na região em que funcionou o
Foto Estúdio Rosales.
O mapa da colonialidade visual se configura então da seguinte maneira (ver gráfico): ele
permite articular uma estratégia de emancipação a partir dos processos concatenados. O pri-
meiro pode ser entendido como uma forma de ler a partir das visualidades – ou de um arquivo
fotográfico como o do Estúdio Rosales – as maneiras como a matriz colonial representa aquele
que não é homem branco, adulto, burguês ou reconhecido pública e, com isso, socialmente.
Não esqueçamos que o estado branco foi o encarregado de elaborar/configurar o humano na
modernidade mediante o conhecimento dominante (colonial) que fez do índio um índio, do
negro um negro, do pobre um pobre etc. O conceito daquilo que é humano na atualidade re-
monta ao Renascimento e se consolida na Ilustração. A busca por uma forma-outra de enten-
der e assumir o humano nos leva a buscar diferentes conceitos epistêmicos (outros). Vale então
recordar a frase do movimento Zapatista de Chiapas: “porque somos todos iguais temos direito
à diferença”.
Figura 7: A matriz colonial de poder. Fonte: Mignolo, "La opción descolonial" (2008) e adaptação do autor.
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Alex Schlenker
Rumo a uma memória decolonial
as visualidades e, com isso, os processos que buscam gerar processos educativos capazes de
facilitar uma aprendizagem-outra do visual, na arte e na linguagem. É, então, vital concluir o
processo gerando novas formas de entender, ensinar-aprender e ver as possíveis formas de vi-
sualidades geradas por uma determinada comunidade. Este conceito abriga em seu interior a
90 demanda por pensar uma visualidade que, acima de tudo, gere sentidos na comunidade à qual
ela se deve, a partir do que me permito propor três eixos principais para re-pensar as visualida-
des de uma perspectiva decolonial.
Tal desafio compreende uma nova paideia (como pensamento pedagógico) que par-
ta de recordar, a todo momento, que a América deve ser lida como construção cultural mo-
derna com dominação inicialmente europeia e, depois, criolla local. E, também, que recorde
a sentença central que dita: “a América não se descobre, se inventa”. Essa invenção redefine a
chamada cristandade ocidental e a transforma no que depois se denomina política e cultural-
mente como Europa, um modelo epistemológico e ontológico que definirá o homem america-
no como a “deformação” do modelo racial europeu e do modelo europeu de corpo – modelos
definidos e propagados pela modernidade. As distintas representações visuais que desde 1500
se realizarão do corpo do Calibã, desde a pintura colonial até a fotografia desenvolvida pelos in-
cipientes estados-nação de meados do XIX, acabarão exercendo uma forma de controle sobre o
corpo. Uma deformação que se consolida como o reflexo do preconceito diante do ser humano
americano entendido, por sua vez, como diferença colonial. As representações visuais devem
então ser lidas como discursos de comparação entre o puro (europeu) e o deformado (ameri-
cano). As leituras analíticas da estética da representação visual – a pureza foi explicada a partir
do aspecto religioso, depois do racial e, finalmente, do econômico e cultural (culto/refinado vs.
vulgar/chulo). A análise da matriz colonial e, em especial, de sua gramática colonial permitirão
propor uma prospecção que permita desmontar aquele discurso que nos fez não humanos e
posteriormente pensar e colocar em prática um mecanismo de emancipação a partir do qual
se inverte o problema: não se mede a deformação humana, ao invés disso se propõe que nós, os
Ánthropos, também participamos do humano. Sinto o Arquivo Rosales como a primeira fissura
do colonial, como as primeiras pinceladas dessa emancipação.
Referências
KUSCH, R. Geocultura del hombre americano. Buenos Aires: Colección Estudios Latinoameri-
canos, 1976.
91
MIGNOLO, W. La opción descolonial. Letral, n. 1, 2008.
QUIJANO, A. Colonialidad del poder, cultura y conocimiento en América Latina. In: CAS-
TRO-GÓMEZ, S., GUARDIOLA-RIVERA, O. e MILLÁN DE BENAVIDES, C. (Orgs.). Pensar (en)
los intersticios. Teoría y práctica de la crítica poscolonial. Bogotá: Colección Pensar/Pontificia
Universidad Javeriana, 1999.
STÜBEL, A. e REISS, W. Indianertypen aus Colombia und Ecuador. Berlim: Hermann, 1888.
WALLERSTEIN, I. Abrir las ciencias sociales. Informe de la comisión Gulbenkian. México: Siglo
XXI, 1996.
Alex Schlenker
Distopias à brasileira:
‘Bacurau’ e ‘Divino Amor’
Tereza Spyer
¡DALE!, PPGICAL / UNILA
Distopias à brasileira: ‘Bacurau’ e Divino ‘Amor’
Resumo:
Este artigo tem como mote duas recentes produções audiovisuais brasileiras: ‘Bacu-
rau’ (2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles e ‘Divino Amor’ (2019), de
Gabriel Mascaro. Estas obras, embora influenciadas pelos clássicos hollywoodianos,
têm um ethos brasileiro, essencialmente nordestino. Ambas apresentam alegorias do
Brasil em crise, inseridas precisamente no contexto de transição entre o período de
incentivo ao cinema nacional e a atual tentativa de desmonte da indústria do audiovi-
sual, marcando a passagem da utopia à distopia.
Palavras-chave: Brasil, cinema, distopias, Bacurau, Divino Amor.
This article aims at analyzing two different and recent Brazilian audio-visual produc-
tions: ‘Bacurau’ (2019), by Kleber Mendonça Filho and Juliano Dornelles; and ‘Divi-
no Amor’ (2019), by Gabriel Mascaro. Although they are influenced by hollywoodi-
an classical movies, these two works have a Brazilian ethos which comes essentially
from the Northeast part of Brazil. Both movies present Brazilian allegories related to
the current crisis in the country. These allegories are precisely inserted in the transi-
tion context between the period of stimulus to the national cinema and the current
attempt to destroy Brazilian audio-visual industry and this is a time that marks the
passing from a utopic to a dystopic era.
Keywords: Brazil, cinema, dystopias, Bacurau, Divino Amor.
Foto: Fran Rebelatto. Recife, Brasil
94
Artigos
Ainda que hostilizado pela nova onda conservadora que atingiu o Brasil nos últimos anos,
o cinema desse país segue resistindo com grande êxito nacional e internacional, com destaque
para os prêmios no Festival de Cannes. Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles
e Divino Amor, de Gabriel Mascaro, são bons exemplos da resiliência do cinema nacional. As
duas obras foram produzidas no contexto de rearticulação das forças conservadoras e estrea-
ram em 2019 – um ano marcado por ataques à classe artística como um todo (criminalização
da categoria) e ao audiovisual em particular (obras e autores censurados e retaliados), e em que
acompanhamos a tentativa de desmonte da indústria do audiovisual promovida pelo governo
de Jair Bolsonaro.
As recentes obras audiovisuais pernambucanas como Bacurau e Divino Amor estão in-
seridas precisamente no contexto de transição entre o período de incentivo ao cinema nacional
e a tentativa de desmonte da indústria do audiovisual, ou seja, marcam a passagem da utopia
à distopia, da euforia à tristeza. Ambas as narrativas nos apresentam alegorias do Brasil imerso
em uma profunda crise. De acordo com Luiz Moura estes filmes são um
Tereza Spyer
Distopias à brasileira
As duas distopias objeto deste artigo imaginam um futuro não tão distante no qual o
Brasil é dominado pelo imperialismo neoliberal e pelo fundamentalismo evangélico. Na primei-
ra (Bacurau), moradores de um pequeno povoado do sertão pernambucano são invadidos por
sudestinos e gringos supremacistas brancos e coletivamente organizam uma resistência popu-
lar. Já na segunda (Divino Amor), uma escrivã de um cartório em Recife se vale de sua posição
para defender os valores da sagrada família brasileira.
Embora parte da crítica tenha acusado o filme de se valer de uma linguagem sensa-
cionalista que apela à violência gratuita, em especial as cenas de morte, tal recurso parece ter
uma função catártica. Segundo um de seus diretores, Juliano Dornelles, trata-se de “um filme
sobre o coletivo, sobre pessoas que se organizam para sobreviver. Fala sobre a nossa história,
do Nordeste, que é marcada pela violência. Temos elementos de vida e compaixão associados
ao conflito e à tensão que há num filme de ação” (apud ALVES, 2019). Já para o outro diretor,
Kléber Mendonça Filho, Bacurau “é um filme de gênero, e os filmes de gênero são muito mais
fortes quando o mundo está alimentando ideias e realidades absurdas. E nosso país é muito
rico em absurdos, há alimento para mais de dois mil filmes. Bacurau é só mais um” (apud OLI-
VEIRA, 2019).
Nos Estados Unidos a raça não é uma questão fenotípica, é genealógica. Lida em função
da origem, o critério é a contaminação do sangue, ou seja, 1/16 de sangue negro ou indígena,
por exemplo, faz uma pessoa ser considerada “de cor”. Já nos países da América Latina a raça
é lida pela marca no corpo (SEGATO, 2007). Em Bacurau percebemos o caráter contextual da
raça. Os brasileiros do Sudeste que se sentem brancos (orgulhosos de suas origens europeias)
e que se valem da branquitude como elemento de distinção e manutenção dos privilégios, são
lidos pelas personagens gringas supremacistas brancas como latinos. O erro cabal dos sudesti-
nos no filme é que eles se consideram iguais aos estrangeiros, como parte da mesma comuni-
dade de origem. No entanto, não há partilha de uma herança comum, os “brancos de fato” não
admitem que “latinos” acreditem ser iguais a eles.
Bacurau põe em xeque o racismo estrutural brasileiro, que impregna a nossa existência.
Isso nos permite pensar também sobre a pertinência do conceito de necropolítica e os regimes
de controle e de governo das populações (MBEMBE, 2003 e 2012). O racismo produz uma
dominação existencial e subjetiva, e é, por isso mesmo, operacionalizado a partir do dispositivo
da colonialidade de poder, “conceito que dá conta de um dos elementos fundantes do atual
Tereza Spyer
Distopias à brasileira
Ainda que as lideranças sejam múltiplas, as mulheres têm grande protagonismo na obra,
em especial as bacurauenses: a matriarca Dona Carmelita, a enfermeira Teresa, a médica Do-
mingas etc. São personagens que desafiam à colonialidade de gênero, e as suas múltiplas vio-
lências, uma vez que “o capitalismo eurocêntrico global é heterossexual” (LUGONES, 2008, p.
92). As construções imagético-discursivas de Bacurau contradizem o modelo patriarcal, em
especial a objetificação, pois o filme elabora um exercício inverso ao do “olhar pornográfico”
colonizador, uma vez que põe em xeque a mirada coisificada (SEGATO, 2012, p. 126). Para Ídice
Leão, tanto as heroínas quanto as vilãs do filme
falam de igual para igual com os homens porque assim são vistas e tratadas,
[...] são bravas e corajosas, [...] tão cruéis quanto seus pares masculinos. Tam-
bém falam do mesmo lugar que os homens, com igual potência agressiva. Em
Bacurau, não há mulheres ‘belas, recatadas e do lar’ nem entre as moradoras
nem entre as forasteiras (LEÃO, 2019).
No discurso imagético, as personagens LGBTQI+ também são pura potência. Nesta co-
munidade distópica existe respeito e confiança mútua entre os habitantes, muito diferente do
Brasil atual, líder em crimes vinculados à homofobia e a transfobia. No filme, uma mulher trans
vive com dois homens e uma das mulheres de um casal de lésbicas se relaciona com um mi-
chê. Lunga, o cangaceiro queer, representa esta diversidade de Bacurau e do próprio cenário
do sertão, um espaço fronteiriço também para as minorias. “As putas, as bi, as travas e as sa-
patão tão tudo preparadas pra fazer revolução” (BENTES, 2019). Segundo Silvero Pereira, ator
que representou a personagem, haveria “uma revolução LGBT+ no sertão” (apud JUCÁ, 2019).
Um dos principais cenários da produção do filme, ele foi inspirado no Museu de Canu-
dos, rendendo homenagens ao passado de luta e resistência nordestina. De acordo com Thales
Junqueira, responsável pela direção de arte do longa-metragem, ele inspirou-se “no museu de
Canudos. É um memorial da violência. Porém, também precisava que esse espaço fosse além da
guerra e da luta, abarcando elementos da vida daquele lugar” (apud JACOB, 2019). Uma das se-
quências-chave do filme é aquela em que os moradores de Bacurau “vão buscar seus objetos de
luta e devolver a eles as funções primárias para as quais foram criados: fazer guerra” (KUNZLER,
2019). Para Josiane Kunzler, o
A cena em que uma moradora de Bacurau pede para outras mulheres lavarem o chão do
museu, mas deixarem as marcas de mãos feitas com sangue impregnadas na parede, “tem sido
relacionada com a frase cunhada pelo museólogo Mário Chagas – ‘há uma gota de sangue em
cada museu’ –, parafraseando o escritor Mário de Andrade que afirmara que ‘há uma gota de
sangue em cada poema’” (PERROTA e CRUZ, 2019). Para Sônia Fardin, na cidade de Bacurau,
“foi essa consciência do sangue em sua História que fez dos pacatos moradores sujeitos insur-
gentes contra as formas capitalistas de produção da morte” (FARDIN, 2019).
As armas high tech dos forasteiros (vide o vilão teuto-estadunidense que se vangloria de
ser um exímio atirador de elite com seu rifle sniper) versus a apropriação das armas do museu
pela população local, também é uma crítica à cultura armamentista em voga atualmente. Se-
gundo Mendonça Filho, as armas “devem ser destruídas e apenas uma pequena quantidade
deve ser colocada em museus como referência para o futuro” (apud BATISTA, 2019).
Esse nordeste insurgente não lembra em nada as imagens da seca e da vegetação árida,
tampouco recorda o cenário euclidiano. No filme, o sertão é abundante, vibrante, colorido, pop,
high tech. Nesta comunidade todas s e todos e conectam – pelos celulares, tablets ou carros de
som. Há uma onipresença da tecnologia, uma das características mais distintivas das distopias.
A cidade de Bacurau é, nesse sentido, a periferia do mundo ultraconectada que rompe com os
binarismos da modernidade/colonialidade (DUSSEL, 2000).
Um outro tema que salta aos olhos é a laicidade da vida política dessa comunidade, pois
há uma ausência de figuras religiosas, como padres e pastores. Embora a igreja faça parte do
cenário do vilarejo, não possui qualquer relevância na narrativa, servindo de local de depósito.
Tereza Spyer
Distopias à brasileira
A religião nem chega a ser uma questão em Bacurau, está lá para quem desejar, sem ser parte
da organização política do lugar. “Os moradores de Bacurau não aguardam por alento divino ou
divinizado do Estado, partem da compreensão do exercício de gestão colegiada para tomar em
suas mãos a organização do combate ao opressor político nativo ou imigrante” (ALBUQUER-
100 QUE e SILVA, 2019).
Entretanto, o sagrado está presente, como por exemplo, na roda de capoeira como “trei-
namento” em pré-ataque e nas pílulas que os moradores tomam para resistir ao extermínio.
Os psicotrópicos são instrumentos que preparam para a batalha e potencializam a existência.
Bacurau faz também uma crítica contundente à indústria farmacêutica e à produção da apatia
subsidiada pelos conglomerados da saúde, com a conivência do poder público. “Diferentes das
drogas ‘tarja preta’ oferecidas pelo prefeito, que têm a função de controlar ou conter, as pílulas
de Bacurau inauguram uma nova condição de estar no mundo: original, potente e radical” (AS-
SIS, PALMA e VILAÇA, 2019).
trazem nos corpos, nos cabelos, na cor da pele, um Brasil que emergiu e ga-
nhou visibilidade. Homens e mulheres, negros e negras, trans, putas, os cabo-
clos e povos originários. Magníficas as cenas de um devir índio dos persona-
gens que andam e vivem nus nas suas casas de barro, falando com as plantas,
vivendo em uma temporalidade estendida, donos de poderes mágicos e de
uma cosmovisão (BENTES, 2019).
A catarse final de Bacurau ocorre com a sequência em que o vilão Michael, líder do gru-
po de extermínio gringo, é aprisionado pela comunidade e enterrado vivo em uma prisão es-
condida nos subterrâneos do vilarejo. Para Thiago Silva, talvez isso ocorra “como num ritual
antropofágico, em que o líder rival está à altura o bastante para ser deglutido e incorporado
aos guerreiros locais, ou então como se Bacurau o retivesse para transformá-lo em adubo e nu- 101
triente da terra” (SILVA, 2019). Diferente da antropofagia proposta pelos modernistas, diga-se
de passagem, parte da hegemonia sudestina, Bacurau canibalizou a língua, convertendo-se
em “verbo transitivo direto”, viralizado nas redes sociais (Figura 1).
Somos um país cristão. Não existe essa historinha de Estado laico, não. O
Estado é cristão. Vamos fazer o Brasil para as maiorias. As minorias têm que se
curvar às maiorias. As minorias se adequam ou simplesmente desaparecem.
Tereza Spyer
Distopias à brasileira
Divino Amor está inserido em uma leva de produções audiovisuais contemporâneas que
tratam dos neofundamentalismos judaico-cristãos, como a série estadunidense O Conto da
Aia (2016-atual), baseada no romance homônimo de 1985 da escritora canadense Margaret
Atwood. A série se passa em um antigo território dos Estados Unidos, convertido em uma nação
fundamentalista após um golpe de Estado. Nessa trama, a República de Gilead divide-se em
castas e as aias são mulheres férteis cultivadas como reprodutoras. Assim como em muitas ou-
tras distopias, este país enfrenta um grave problema de infertilidade devido aos desequilíbrios
geoclimáticos e aos impactos de agrotóxicos e congêneres.
faz um movimento um pouco inverso [ao O Conto da Aia]; você tem ali uma
distopia, uma tradição, que é criar um personagem que luta contra o sistema.
Mas queríamos o contrário, queríamos uma personagem que, ao invés de lutar
contra, quer ainda mais que a força do sistema oprima. O Brasil de Joana tem
a fé no futuro (DEMEROV, 2019).
Neste futuro não muito distante, a maior festa religiosa deixou de ser o carnaval e pas-
sou a ser a rave do Amor Supremo, um ritual tecnogospel que reúne fiéis à espera do retorno
do Messias. A alegria, o regozijo e a irreverência tão “tipicamente” brasileiros, no carnaval, são
substituídas pela melancolia, tristeza e solidão dos cultos em néon (CARLOS, 2019). Em Divino
Amor já não há espaço para o profano, o sagrado (cristão) parece ser a forma de existir.
De acordo com Mascaro, devemos refletir com cuidado sobre o slogan “Brasil acima de
tudo e Deus acima de todos” (apud AQUINO e IZEL, 2019). Embora Bolsonaro tenha declarado
103
em diversas ocasiões que nosso Estado é laico, parafraseando a ministra Damares Alvez, do
Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, afirmou: “‘Nós somos terrivelmente
cristãos’. E esse espírito deve estar presente em todos os poderes” (CALGARO e MAZUI, 2019).
É importante frisar, aqui, que Divino Amor tenta ir na contramão da filmografia brasi-
leira que tem o costume de representar os evangélicos de forma estereotipada, calcada em
clichês. Valendo-se de uma abordagem que parece etnográfica, “Divino Amor ultrapassa esses
estereótipos. Mascaro elabora um atento panorama da fé evangélica” (GONÇALO, 2019)”. Além
disso, em tempos de preeminência da ideologia neopentecostal e da teologia da prosperidade,
ao apresentar um perfil de classe média para as personagens, com destaque para o casal de
protagonistas, o filme
Filmada em Recife, a cidade de Divino Amor é quase uma urbe genérica desse Brasil de
2027. Criada com o auxílio de efeitos especiais, as cores dos ambientes exteriores, em especial
das construções (cartórios, casas geminadas, clínicas médicas, estabelecimentos comerciais
etc.), seguem uma paleta de tons opacos, próximos ao cinza e ao bege, enquanto os ambientes
internos (casas, igrejas, templos drive-thru) são repletos de cores fortes, marcadamente fluores-
centes. No filme as personagens se encontram enquadradas tanto pelo espaço arquitetônico
moderno quanto pelo “cenário, entre paredes, tetos, cortinas e carros. São corpos confinados e
limitados em sua naturalidade” (RÊGO, 2019, p. 15).
Tereza Spyer
Distopias à brasileira
O cartório, símbolo da famigerada burocracia do nosso país, é uma das chaves de lei-
tura de Divino Amor. Provém da colonização e sua permanência praticamente nos mesmos
moldes desde a conquista constitui-se em um marco da colonialidade (poder, saber e ser)
(MALDONADO-TORRES, 2019). É também o meio por excelência do controle estatal. Com Joa-
104 na podemos acompanhar o modus operandi da burocracia, o que nos permite ver que subsiste
a associação que se faz desde a conquista da América (especialmente na América Portuguesa)
entre os cartórios e a hereditariedade (SALGADO, 1985), isto é, os dispositivos de controle e
manutenção dos privilégios via branquitude (LANDER, 2000).
Os formulários, requerimentos e petições são usados pela protagonista para tentar man-
ter de forma ritualística os laços sagrados das famílias. Por meio de seu labor, ela se vale da
autoridade da função “para promover sua agenda pessoal e religiosa no espaço institucional”
(BARROS, 2019). Conforme ressalta Isabel Rêgo:, “a tecnocracia implica crueldades que entram
num processo de naturalização” (RÊGO, 2019, p. 8).
Com isso Divino Amor parece fazer uma etnografia da burocracia atual, ainda que imagi-
nando um futuro próximo. O longa-metragem, inclusive, incorpora e ressalta os símbolos nacio-
nalistas, tão em voga atualmente, como a bandeira, presente nos prédios públicos e também
nos estabelecimentos comerciais dessa Recife distópica (CANHISARES, 2019). Para Carolina
Almeida,
Divino amor lida diretamente com um ethos religioso em que os rituais – seja
da Igreja Divino Amor ou mesmo os rituais do estado burocrático – exercem
papel fundamental na constituição de um sujeito mo-ral, é pelo ritual que po-
demos sentir, e não mais apenas entender, os valores positivos ou negativos.
A sacralização da narrativa em forma dessacralizada. O filme cria uma mise en
scène rígida tanto dentro da igreja quanto no pátio do estado burocrático para
dar peso aos rituais (ALMEIDA, 2019).
Estas igrejas que mantêm pastores de plantão à espera dos fiéis em espaços drive-thru
nos permite refletir sobre a “colonialidade espiritual” que se estabeleceu desde a conquista,
marcando as hierarquias entre a religião cristã e as outras formas de experienciar o sagrado.
Na modernidade eurocêntrica, as cosmogonias indígenas e africanas foram marginalizadas e
subalternizadas. Os saberes religiosos dos outros (não cristãos) foram classificados como in-
feriores, invisilibilizados ou silenciados, num claro processo de epistemicídio (SANTOS, 2010),
resultando numa naturalização física e simbólica da violência (MALDONADO-TORRES, 2007).
Os corpos também estão no centro da trama de Divino Amor. Aqui a chave de leitura
é a biopolítica pois o filme problematiza a cultura do corpo no marco de ascensão da agenda
conservadora e o controle biopolítico sobre a vida. “O comportamento passivo é comum a gran-
de parte dos personagens, poucos contestam os protocolos daquela sociedade burocratizada.
Como um rebanho, os cidadãos do Brasil de 2027 se evangelizam e entregam suas vidas e
corpos ao Estado” (RÊGO, 2019, p. 12). Mascaro afirmou em diversas entrevistas que se valeu
desse conceito foucaultiano de biopolítica para conceber o filme, com destaque para o tema do
Estado-corpo, que agencia e controla as existências (PORTUGAL, 2019). Para o diretor, ele queria
fazer um filme minimalista sobre esse Estado que controla o corpo. Ou seja, a
narrativa é concentrada na mudança cultural e não no fetiche da tecnologia.
A tecnologia que aparece no filme, que se passa em 2027, já existe hoje, o
que muda é a aceitação social de uma tecnologia invasiva, no sentido moral,
em que informações privadas se tornam públicas, como o estado marital do
casamento – se é casado, divorciado, solteiro – e se uma mulher está grávida,
se o feto está registrado ou não e de quem é a sua paternidade. É um estado a
serviço da vida, sob o pretexto da segurança da vida. E o filme faz essa discus-
são sobre o corpo e a privacidade (apud BARROS, 2019).
A frase proferida pela pastora (Mestra Dalva) nos encontros da Igreja Divino Amor, “Quem
ama não trai. Quem ama divide”, dá o tom do tratamento que este tema tem na narrativa.
Casais com problemas conjugais procuram aconselhamento religioso para superar as adver-
sidades e as provações do senhor. Joana e Danilo, que enfrentam obstáculos para engravidar,
oferecem seus corpos a Deus em um swing religioso. Nos cultos os protagonistas, depois de
comentarem coletivamente trechos da Bíblia, mantêm relações sexuais com diferentes parcei-
ros a cada encontro. A prática do swing é, no entanto, precedida por um ritual no qual eles se
banham para se purificar com a água que acreditam ser abençoada.
Nessa narrativa, os corpos, a serviço dos rituais, parecem ter uma função normativa. Estão
“sujeitos a uma dominação abstrata, quando os mapas genéticos cruzam informações sobre
gravidez, natalidade, paternidade” e vivem o prazer de modo controlado, mais numa “forma de
vigília, de aprisionamento e dominação do que, propriamente, uma transcendência espiritual
e individual. [...] O amor revela um corpo político, que é ora terreno, ora transcendental” (apud
GONÇALO, 2019).
Com essas orgias religiosas, o realizador busca fazer uma releitura de um subgênero bem
brasileiro, a pornochanchada. Em Divino Amor, a comédia erótica é revisitada a partir do diá-
logo com o sagrado (PORTUGAL, 2019). Conforme afirma Mascaro: “atualizei um pouco esse
imaginário [da pornochanchada] dentro do dicionário de multiplicar, dividir e partilhar e trouxe
para Divino Amor essa ideia elevada da experiência do corpo e do matrimônio, da manutenção
da família sagrada e da vida” (apud CANHISARES, 2019).
Este é, sem dúvida, um dos elementos mais provocadores da obra, ao propor que uma
congregação religiosa viva o prazer sexual com o objetivo de solucionar os mais variados proble-
mas conjugais, entre eles, o da fertilidade. Nessa distópica sociedade há uma tentativa de res-
significação do corpo no marco pentecostal. Joana lida com a fé e a sexualidade com a mesma
intensidade, baseando-se numa espécie de liturgia erótica gospel. Segundo Mascaro, ele tentou
Tereza Spyer
Distopias à brasileira
Divino Amor é narrado em voz off por essa criança que, “como um Deus onisciente não
sugere algo inocente ou infantil. Ela soa mais como essas locuções robóticas de aplicativo, al-
guém que define uma rota que apenas seguimos (CARLOS, 2019). Ao final do filme, nos da-
mos conta de que esse narrador, o rebento de Joana (uma revisão do dogma da Imaculada
Conceição), é o Messias, um salvador sem nome, registro e controle (ainda que pernambucano/
brasileiro!). Para Juliano Gomes: “o nascimento do menino Jesus torna-se um espetáculo gore,
onde a ideia de artificial se dobra: da trucagem do plano em movimento e da própria noção de
parto ‘não natural’ ao acompanhamento dos sintetizadores intensamente à altura da grandeza
do acontecimento” (GOMES, 2019).
Fruto dos profundos desejos da protagonista (que, em uma das sequências mais poten-
tes do filme, pergunta ao pastor no drive-thru se o seu pecado é amar demais), a criança nos
provoca afirmando que “quem tem fé não tem dúvida”. Este bastardo que não é outro senão o
Messias retornado, o devir enjeitado, “fruto amargo”, nos questiona sobre o estatuto da verdade.
“Num timbre anômalo, emerge um ente sem forma definida. Por uma fala ainda não reconhe-
cível, mas inteligível, esse Messias consubstancia-se num corpo inefável, ansioso e seguro para
inventar um novo religar” (GONÇALO, 2019).
Referências
ALBUQUERQUE, N. e SILVA, J. As relações entre os filmes Bacurau, Sol Alegria e o autoritaris-
mo brasileiro. Das Amazônias, v. 2, n. 1, 2019.
ALVES, P. ‘Bacurau é sobre existir como brasileiro, sendo do Nordeste’, diz diretor de filme. G1,
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Tereza Spyer
O quarto de
empregada
e a morte de
Miguel1
João Soares Pena
Laboratório Urbano, Doutor no PPG-AU/FAUFBA
1 Este texto originalmente publicado no Portal Geledés em 6 de julho de 2020. Disponível em https://www.geledes.org.br/o-quarto-
-de-empregada-e-a-morte-de-miguel. Agradecemos a liberação para a republicação na Epistemologias do Sul.
O quarto de empregada e a morte de Miguel
Resumo
O artigo parte do trágico caso da morte do menino negro Miguel, que caiu do nono
andar de um prédio de luxo na cidade do Recife, onde sua mãe mantinha-se traba-
lhando como empregada doméstica mesmo durante a pandemia de Covid-19. Ar-
gumenta-se sobre o papel que desempenham os quartos de empregada nas casas
das elites brancas brasileiras e sua relação com a herança escravagista. Também se
apontam as responsabilidades do ensino de arquitetura e urbanismo, no Brasil, para a
perenidade da segregação racial expressa nos espaços das cidades do país.
Palavras-chave: quarto de empregada, caso Miguel, racismo, segregação, ensino de
arquitetura e urbanismo.
El artículo parte del trágico caso de la muerte del niño negro Miguel, que cayó del no-
veno piso de un edificio de lujo en la ciudad de Recife, Brasil, donde su madre seguía
trabajando como empleada doméstica incluso durante la pandemia de Covid-19.
Se discute el papel que juegan los cuartos de servicio en los hogares de las élites
blancas brasileñas y su relación con el legado de la esclavitud. Las responsabilidades
de la enseñanza de arquitectura y urbanismo en Brasil también se señalan para la
continuidad de la segregación racial expresada en los espacios de las ciudades del
país.
Palabras clave: cuarto de servicio, caso de Miguel, racismo, segregación, enseñan-
za de arquitectura y urbanismo.
The article starts from the tragic case of the death of the black boy Miguel, who fell
from the ninth floor of a luxury building in the city of Recife, Brazil, where his mother
remained working as a housekeeper even during the Covid-19 pandemic. It is argued
about the role that the house cleaner’s room play in the homes of Brazilian white
elites and their relationship with the slave heritage. The responsibilities of teaching
architecture and urbanism in Brazil are also pointed out for the continuity of racial
segregation expressed in the spaces of the Brazilian cities.
Keywords: maid's room, Miguel's case, racism, segregation, teaching architecture
and urbanism.
Foto: Fran Rebelatto. Havana, Cuba
112
Artigos
Ao mesmo tempo que esse caso nos causa revolta, ele revela a verdadeira face da elite
branca brasileira: do alto de seus luxuosos apartamentos ou em suas mansões, ela pouco se
importa com a vida daquelas e daqueles que cuidam da sua e, mais ainda, se negam a virar a
página de um passado colonial e escravagista relativamente recente. Embora tenham-se pas-
sados 132 anos da abolição da escravatura no Brasil sem nenhuma política social de reparação
ou suporte ao povo preto, muito ainda precisa ser feito para que isto efetivamente se torne uma
realidade. Para pensar essas questões, fui convidado pela equipe do Grupo de Estudos Corpo,
Discurso e Território, da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia (FAUFBA),
para participar de uma live no dia 9 de junho, pelo Instagram. Minha interlocutora foi Gabriela
Leandro Pereira, coordenadora do grupo e uma das poucas professoras negras da referida fa-
culdade.
O título da live, que posteriormente foi disponibilizada como podcast (cf. CORPO, DIS-
CURSO E TERRITÓRIO, 2020), foi o mesmo deste texto, pois do mesmo modo que o quarto de
empregada, a morte de Miguel nos mostra, mais uma vez, o desvalor que é atribuído às vidas
pretas no Brasil. Digo “mais uma vez” porque a morte de uma criança preta em uma sociedade
estruturada pelo racismo e pelo derramamento de sangue do povo preto não é um episódio
isolado. O contexto social no qual isso aconteceu também não é incomum, já que famílias como
a de Sari Corte Real não costumam fazer, elas mesmas, suas atividades domésticas. Por isso,
todos os dias muitas mulheres (e homens) saem de suas casas, geralmente nas periferias, para
trabalhar nas residências da elite brasileira, onde cuidam da casa, preparam as refeições de
seus patrões, cuidam das crianças, entre tantos outros afazeres.
Sendo o racismo algo que é estrutural em nosso país, ele se expressa das mais distintas
maneiras e nas mais diferentes dimensões de nossa sociedade. Não seria diferente no tocante
à forma como nossas cidades se estruturam, tampouco na produção da arquitetura residencial
dessa elite. Aqui reside nosso maior interesse de discussão neste texto: que lugar é destinado
às trabalhadoras domésticas na arquitetura das casas daqueles que as contratam? Como o ra-
cismo estrutura as relações entre patrões e empregadas? Como o racismo estrutura as cidades
onde vivem patrões e empregadas domésticas? Queremos aqui discutir essas questões a partir
da morte de Miguel, com base em uma perspectiva mais abrangente que nos ajude a com-
preender diversas questões que atravessam a situação.
Mirtes e tantas outras mulheres que exercem o trabalho doméstico teve seus direitos
trabalhistas garantidos apenas em 2015, com a aprovação da Lei Complementar n. 150, de 1º
de junho de 2015 (BRASIL, 2015). De acordo com as pesquisadoras Marta Rodriguez de Assis
Machado e Márcia Lima (2016), cerca de 6% das pessoas ocupadas no país realizam trabalho
doméstico, sendo que 60% dessas pessoas possuem apenas o ensino fundamental incompleto,
61,6% delas são negras e 94,4% são mulheres. Portanto, o trabalho doméstico é predominante-
mente exercido por pessoas negras e por mulheres.
É difícil de acreditar, mas em pleno século XXI houve quem se levantasse contra a refe-
rida Lei Complementar e, logo, contra a garantia de direitos trabalhistas das domésticas – ou,
quem sabe, essas pessoas não as considerassem como trabalhadoras igualmente merecedo-
ras desses direitos. O ranço escravocrata que está enraizado na mentalidade colonial da elite
114 brasileira recusa-se a desaparecer. É essa mentalidade que obriga empregadas domésticas a
continuarem trabalhando em plena pandemia de Covid-19, pondo a si e a sua família em risco
de infecção. A isso a historiadora e professora Luciana Cruz Britto, da Universidade Federal do
Recôncavo da Bahia (UFRB), chamou de “delírios escravistas coloniais da sociedade brasileira”
(cf. COSTA, 2020), referindo-se ao desprezo em relação à vida de seus empregados. Vale ressal-
tar que após seus patrões contraírem Covid-19, Mirtes e seu filho Miguel também foram infec-
tados, tendo sintomas leves (cf. YAHOO NOTÍCIAS, 2020).
Mesmo após 132 anos da abolição da escravatura, a elite brasileira não parece querer
virar a página. Isto pode ser observado pela existência (e exigência) do quarto de empregada –
quarto de serviço ou dependência, como também é chamado –, nos imóveis das classes mais
abastadas. Assim como no Edifício Píer Maurício de Nassau, via de regra esse cômodo locali-
za-se nos fundos da casa ou apartamento, após a cozinha, na área de serviço. O quarto de em-
pregada também costuma ser muito pequeno, suficiente apenas para uma cama de solteiro
e, quando muito, uma cômoda ou um pequeno guarda-roupas (Figura 1). A dimensão muito
reduzida desse cômodo independe do tamanho do imóvel, ou seja, mesmo em casas e aparta-
mentos muito grandes, o quarto de empregada costuma ser minúsculo (CARRANZA, 2005). A
preocupação com a qualidade dos acabamentos nessa área da casa também não é a mesma
que se tem com as áreas “sociais” ou, melhor dizendo, com outros cômodos de maior uso dos
demais moradores e moradoras (quartos, salas, varandas etc.).
Figura 1: Planta baixa do pavimento tipo com dois apartamentos por andar no Edifício Píer Maurício de
Nassau, Recife-PE. Destaques para os quartos de empregada de cada unidade. Fonte: adaptado do anúncio
de apartamento no Edifício Píer Maurício de Nassau. Disponível em https://bit.ly/nassaurecife.
115
A disposição do quarto de empregada em relação aos demais espaços da casa tem a ver
não com o programa de necessidades, mas com as relações de poder que ocorrem nesse espa-
ço doméstico entre os patrões e as empregadas. Considerando que uma empregada durma no
serviço, o que justifica seu quarto ser um cubículo e localizar-se ao lado da área de serviço, se
não lhe mostrar o seu lugar nessa casa? Cabe ressaltar também que é frequente a existência de
um “elevador de serviço”, de modo a evitar que os funcionários do prédio utilizem o chamado
“elevador social”. Mais uma vez, cabe aqui questionar o porquê de tal segregação se não for para
demonstrar que essas funcionárias não merecem utilizar os mesmos espaços de seus patrões.
Edite Galote Carranza (2005) explica que a inclusão do elevador de serviço nos aparta-
mentos paulistanos, no começo do século XX, teve o objetivo de atrair compradores da classe
média que cobiçavam a casa burguesa. Segundo Carranza, “com o intuito de reproduzir o acesso
de serviço, que nas casas era feito pelo quintal, surgiu o acesso de serviço com escada e elevador
próprio. A sociedade aceitava e adotava francamente a separação social, nela incluindo um com-
portamento racista e discriminatório de etnias” (ibid.). Na medida em que muitas empregadas
domésticas e outros funcionários, nesse contexto do Brasil, são pessoas negras, essa arquitetura
residencial nos lembra que a escravidão não foi há tanto tempo assim e que essa mentalidade
colonial e escravagista continua a influenciar na configuração espacial e nas relações sociais.
docentes da área de projeto que exigem que estudantes incluam o quarto de empregada e o
elevador de serviço em seus projetos residenciais. Se do ponto de vista comercial a existência
desse cômodo na configuração descrita acima não parece desqualificar um projeto arquitetô-
nico pelo comprador, do ponto de vista ético é extremamente reprovável. É importante lembrar
116 que as escolas de arquitetura são historicamente elitistas e costumam ter um quadro docente
predominantemente branco: como ainda é o caso da FAUFBA, em uma universidade pública
em Salvador – cidade mais negra fora da África – e na qual apenas recentemente a discussão
sobre questões raciais e étnicas na arquitetura e no urbanismo tem sido levantada.
A reflexão sobre essa questão cabe a arquitetas e arquitetos, mas não apenas. É urgen-
te que todas e todos nós pensemos sobre a manutenção e/ou atualização dessa mentalidade
colonial e escravocrata nas mais diversas esferas da sociedade. No que se refere à arquitetura e
ao urbanismo, é preciso refletir sobre o ensino de projeto, bem como sobre o arcabouço teórico
que é mobilizado nas faculdades. Sendo assim, cabe a arquitetos e arquitetas, docentes e estu-
dantes questionarem em sua própria prática esse padrão perverso que perpetua lugares de su-
balternidade nos projetos de arquitetura; e que materializa relações de hierarquia e poder que
deveriam ter sido superadas há muito tempo. Essa reflexão só é possível pelo reconhecimento
de como a arquitetura tem contribuído para a manutenção do racismo e da segregação – a
partir desse tipo de projetos com quartos de empregada, por exemplo – e pelo entendimento
deste problema em sua perspectiva mais ampla e em toda a sua complexidade.
Finalizo dizendo que a existência do quarto de empregada nas casas da elite e o con-
texto da morte de Miguel fazem parte de um mesmo problema: a desvalorização da vida da
população negra e dos pobres que construíram esse país com seu suor e seu sangue. Portanto,
repensar a produção da arquitetura é uma questão incontornável dentre tantas outras para a
superação do fantasma colonial e escravocrata que se arrastou até 2020. Essa é uma tarefa de
todas e todos nós e deve ser enfrentada nas mais diversas esferas de nossa sociedade.
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balho doméstico; altera as Leis no 8.212, de 24 de julho de 1991, no 8.213, de 24 de julho de
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de 29 de março de 1990, o art. 36 da Lei no 8.213, de 24 de julho de 1991, a Lei no 5.859, de
11 de dezembro de 1972, e o inciso VII do art. 12 da Lei no 9.250, de 26 de dezembro 1995;
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do trabalho de doméstica. Yahoo Notícias, 5 de junho de 2020. Disponível na Internet via:
https://br.noticias.yahoo.com/coronavirus-mae-miguel-domestica-145148991.html
Mabel Zambuzzi
Mestra em Conservação e Restauro, PPG-AU / FAUFBA
1 Esse artigo é resultado de nossa inserção como aluno ouvinte e aluna especial na disciplina “Relações Étnico-Raciais em Arquite-
tura, Urbanismo e Cidades”, ministrada pela professora Gabriela Leandro Pereira (Gaia) e pelo professor Fabio Macêdo Velame, em
2019, no PPG-AU/FAUFBA. Agradecemos imensamente – a ela e a ele, em especial, mas também às/aos demais colegas da disciplina
– pela generosidade e pela afetividade concedidas nas frutíferas trocas de saberes ao longo do semestre, sem as quais nosso texto
não seria concluído.
Notas inconclusivas sobre raça, arquitetura e a colonialidade do
patrimônio material e imaterial
Resumo
A partir de los ejemplos del Solar do Unhão, en Salvador, Brasil, catalogado por el
Instituto do Patrimonio Histórico y Artístico Nacional, y del Registro del Oficio de las
Baianas de Acarajé; y basado en las contribuciones decoloniales, realizaremos un
breve debate crítico sobre el patrimonio material e inmaterial y su relación con la
formación de nuevas repúblicas y monarquías en América Latina y el Caribe. Pro-
ponemos notas inconclusas sobre las colonialidades del territorio, la arquitectura y
el patrimonio que pueden manifestarse a través de jerarquías étnico-raciales atrás
de las diferencias en la protección de bienes materiales e inmateriales. Así, propone-
mos una reflexión, en el caso específico de nuestros ejemplos de Brasil, qué lugar le
es dado a la blancura y qué lugares se dan al negro y al indígena en el patrimonio
material e inmaterial y, en consecuencia, en la cultura nacional.
Palabras clave: patrimonio material, patrimonio inmaterial, colonialidad, raza.
From the examples of turning “Solar do Unhão” and “Registro de Ofícios das Baianas
do Acarajé” into heritages sites in Salvador and also based on decolonial thoughts,
this paper aims at debating critically about material and immaterial heritages and
their relation to the formation of monarchies and of new republic governments in
Latin America and Caribbean. We propose inconclusive notes on colonialities of ter-
ritory, architecture and heritage which can be manifested through ethnic-racial hi-
erarchies based on differences in the protection of tangible and intangible assets.
Therefore, we propose a reflection: in the specific case of Brazilian examples, which
places are related to the whiteness, blackness and also to the indigeneous material
and immaterial patrimonies, and consequently, to the national culture?
Keywords: tangible heritage, intangible heritage,; coloniality, race.
Foto: Fran Rebelatto. Belém, Brasil
120
Artigos
Introdução
Não se sabe ao certo o número de pessoas, mas o Museu de Arte Moderna da Bahia
(MAM), em Salvador, lotou. Tinha gente por toda parte: na frente e atrás do palco, perto da igre-
121
ja, debruçada no aqueduto. Em 8 de dezembro de 2019, o cantor Saulo Fernandes, ícone da
axé music, fez um show na área externa da instituição, ao que se seguiu uma denúncia ao Ins-
tituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). O MAM ocupa, desde 1969, o cha-
mado Solar do Unhão, seguindo projeto de restauração de Lina Bo Bardi e em cujo terreno há
um expressivo conjunto arquitetônico erguido entre os séculos XVII e XVIII – com casa-grande e
senzala, a Capela de Nossa Senhora da Conceição, um cais privativo, um aqueduto, um chafariz
e um alambique com tanques –, tombado pelo órgão em 1943 (Figuras 1 e 2). Nas suas áreas
externas vêm também ocorrendo outras atividades: por exemplo, jam sessions mensais, há cer-
ca de vinte anos e com poucas interrupções, ou festivais ao ar livre esporádicos, como um que
ocorreu em dezembro de 2019, voltado à gastronomia e à música. São cada vez mais frequen-
tes, por isso, as reclamações de especialistas sobre os riscos potenciais às edificações oriundos
dos sons em altos decibéis, além de possíveis prejuízos acarretados pela falta de instalações
sanitárias adequadas ou o grande descarte e lixo durante esses eventos.2
Figura 1: Cais do Solar do Unhão e visão do conjunto edificado. Fonte: Mabel Zambuzzi (2019).
Figura 2: Cais do Solar do Unhão e visão parcial do conjunto edificado, com público e estrutura para o
show de Saulo Fernandes. Fonte: Fernando Barbosa, Folha de S. Paulo (2019).
2 Ver as reportagens de Marília Moreira e Clarissa Pacheco, ambas de dezembro de 2019, para o Correio: respecti-
vamente, “FAM Festival leva música, arte e gastronomia ao MAM neste fim de semana” e “MAM em risco: tombado,
museu erguido há 400 anos é palco de show e polêmica”. Sobre o “JAM no MAM”, é possível acessar o histórico do
projeto em seu site próprio.
Em junho de 2015, a Associação das Baianas de Acarajé (ABAM), com o apoio do IPHAN,
ameaçou entrar na justiça contra empresas e profissionais de Salvador que, em sua opinião, es-
tariam produzindo ou vendendo o bolinho de acarajé de forma deturpada. A entidade alegava
que o Ofício das Baianas de Acarajé (Figura 3) recebera, em 2004,3 o Registro de Patrimônio
122 Imaterial Brasileiro (cf. IPHAN, 2007). Por isso, apontava que a fabricação industrial de bolinhos
congelados para a venda em supermercados, as versões gourmets servidas em estabelecimen-
tos elegantes ou os “bolinhos de Jesus” comercializados por fiéis evangélicos seriam alguns dos
exemplos de desrespeito a valores intrínsecos ao quitute: a venda em tabuleiros por baianas em
vestimentas típicas e, à semelhança da hóstia católica, a partir de receita e práticas ritualísticas
específicas de religiões de matrizes africanas.4
3 Foi em 1º de dezembro de 2004, na reunião do conselho presidido pelo então Ministro da Cultura Gilberto Gil,
ocorrida dentro da nave da Igreja do Convento de Santa Tereza onde funciona o Museu de Arte Sacra da Universi-
dade Federal da Bahia, que finalmente é concedido o registro do Ofício das Baianas de Acarajé. Na mesma sessão
foi tombado o Terreiro do Alaketu, com a presença da matriarca Olga de Alaketu (in memoriam), numa sessão
de fechamento com a manifestação de cânticos ancestrais de muitas baianas devidamente paramentadas para o
evento.
4 O acarajé é considerado uma “comida de Orixá”, isto é, um tributo a divindades do candomblé e da umbanda.
Seus ingredientes incluem massa de feijão fradinho, sal e cebola, frita em azeite de dendê, e recheio de vatapá,
pimenta, camarão, salada e, às vezes, caruru. Na tradição católica, a hóstia e o vinho são servidos em missas, respec-
tivamente representando o corpo e o sangue de Cristo. Em 2014, o Vaticano, a pedido do Papa Francisco e devido à
venda crescente em supermercados e na internet, publicou uma circular normatizando os ingredientes da hóstia:
o trigo geneticamente modificado ou com baixo teor de glúten foram considerados válidos, mas agregar frutas,
açúcar ou mel é condenável. Ver: “Vaticano define critérios para a hóstia e o vinho usados nas missas”, de Sandra
Coutinho (2017), para o Jornal Hoje. “Baianas querem proteger forma tradicional de preparo do acarajé” e “Só baia-
nas de acarajé que respeitam tradição terão licença garantida”, de Alexandre Lyrio (2015a e 2015b), para o Correio; e
“Empresa vende acarajé congelado em mercados e fatura R$ 200 mil por mês”, de Afonso Ferreira (2014), para o Uol.
Que grupos têm mais voz na enunciação do que é patrimônio? Quais modificações serão
aceitas como valorizadoras e quais serão vistas como descaracterizadoras desse patrimônio?
O quanto diretrizes patrimoniais efetivamente protegem os bens a que se referem ou são res-
peitadas pelos variados grupos sociais que com eles se relacionam? As diferenças entre patri-
mônio material e patrimônio imaterial explicar-se-iam efetivamente por um dualismo entre
concretude e abstração ou mais propriamente por uma oposição de perenidade a efemeridade
ou sazonalidade? Ou, ainda, pela proteção do que se quer sempre visto em contraponto ao que
se quer valorizar por outros sentidos e significados? E o que mais nos importa: há hierarquias
não explicitadas entre o tombamento de bens materiais e o registro de bens imateriais? Em
que medida elas são embasadas por questões étnico-raciais?
5 Não é nossa intenção aqui realizar estudos mais minuciosos do Solar do Unhão ou do Ofício das Baianas de Aca-
rajé. Para isso, ver por exemplo: Pereira e Sobral Anelli (2005), Bitter e Bitar (2012), Mendel (2014 e 2019), Évora (2015),
Ivester (2015) e Werneck Lima (2015).
Os escritos decoloniais nos alertam, por isso, que a brancura a qual geo-historicamente
se concede privilégios é resultado “de uma política de identidade que denota identidades tanto
similares quanto opostas como essencialistas e fundamentalistas”, mas que “não se manifesta
como tal, mas através de conceitos universais abstratos” (MIGNOLO, [2007] 2008, p. 289) –, que
são forjados como se fossem “sem determinações corporais nem determinações geopolíticas”
(BERNARDINO COSTA et al., 2019b, p. 11-12). Ademais, contrariando os discursos sobre ori-
gens estritamente intraeuropeias do racismo, apontam que “negro” e “indígena” são identida-
des geo-historicamente enunciadas em oposição a uma outra identidade, “branco” – todas elas
inventadas no tempo-espaço e em meio às relações assimétricas de poder instituídas desde a
invasão das Américas6 (QUIJANO, 2000a; QUIJANO e WALLERSTEIN, 1992; MIGNOLO [2007]
2008; MALDONADO-TORRES, 2008a).
6 A mais contundente das críticas provém de Ramón Grosfoguel (2012) às acepções de Foucault ([1997] 2008) sobre
as origens do racismo. O sociólogo porto-riquenho acusa o filósofo francês de circunscrevê-las a embates do final
da Idade Média, na Europa: para Foucault, determinados grupos e territórios teriam sido inferiorizados por questões
culturais – mais especificamente religiosas – e somente bem mais tarde, com a transmutação do determinismo
ambiental e do darwinismo social em racismo científico e, mais especificamente, com a ascensão do Nazismo
antissemita, teria surgido o racismo com base na biologia. Grosfoguel argumenta que o fim da Idade Média coin-
cide com a invasão da América e a implantação do sistema-mundo moderno/colonial que inicialmente apontou os
indígenas como inferiores, acusando-os de não possuírem alma (um argumento com base em diferença cultural/
religiosa); e que, posteriormente, ao escravizar africanos, adotou um discurso de inferioridade com base na “cor”/
fenótipo (um argumento com base em diferença biológica). As origens do racismo, portanto, segundo ele precisam
ser compreendidas a partir de uma geo-história intercontinental. Sobre o assunto, ver Name (2010 e 2019).
7 Com vistas à reversão disso, a conceituação de Frantz Fanon ([1952] 2008) sobre um racismo desumanizador,
que localiza mulheres e homens negros em “zonas do não ser”, tem recebido crescente atenção de intelectuais
decoloniais (cf. MALDONADO-TORRES, 2004, 2007, 2008b e 2019; GROSFOGUEL, 2012; WALSH, 2017).
Os debates de Ramos Penha, Pereira, Velame e Moassab são fundamentais por lem-
brarem que a colonialidade, afinal, não é abstrata. Como nos informa o arquiteto cubano
Yasser Farrés Delgado, ela se “espacializa” na sobrevalorização de territórios, corpos, ob-
jetos e saberes de matrizes e padrões de poder branco-burgueses; e, sobretudo, na ocu-
pação, transformação, exploração, inferiorização e destruição de outros territórios, corpos,
objetos e saberes. Sendo assim, é pertinente se esmiuçar as espaciotemporalidades da
colonialidade tanto quanto é urgente revisar, a partir de uma perspectiva decolonial (ou
ao menos antirracista), os fundamentos epistemológicos da arquitetura, do urbanismo, do
paisagismo e do planejamento territorial (cf. FARRÉS DELGADO et al, 2020) – em todos os
quais, aliás, está incluída a dimensão do patrimônio.
8 Entre muitos outros nomes: Maria Firmina dos Reis, Abdias do Nascimento, Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Beatriz
do Nascimento, Aimé Cesaire e Manuel Zapata Olivella (cf. WALSH, 2017; BERNARDINO-COSTA et al., 2019a).
9 O título do livro de Rufino é Pedagogia das encruzilhadas, ao passo que a coletânea que reúne parte da produ-
ção de Alexander, lançada treze anos antes, chama-se Pedagogies of crossing. Além disso, os apontamentos do au-
tor sobre a polissemia do termo “encruzilhada”, aplicados seja ao debate do papel político transformador do Outro e
de si mesmo exercido pela produção e pela troca de saberes, seja à relação entre a pedagogia e o sagrado, também
são muito semelhantes aos da autora – que, infelizmente, não é citada em sua obra nem uma única vez.
O autor também percebe outras hierarquias nos saberes prático e teórico em arquitetura:
“saber pensar”, “saber fazer”, “saber ver”, “saber apreciar” e “saber aprender” a arquitetura e o
urbanismo, por exemplo, também são contaminados pela colonialidade. Desta feita, cremos ser
possível poder se debater sobre colonialidades no saber pensar, no saber fazer, no saber ver, no
saber apreciar e no saber aprender ligados ao patrimônio.
Colonialidade do patrimônio
geo-historicamente foi estabelecida com base no saqueio conduzido pelos regimes coloniais e
imperiais de variados objetos (cada vez mais reivindicados pelas comunidades espoliadas como
seu patrimônio); e, também, a partir de práticas de valoração comparativa e assimétrica, com
vistas a se imaginar o Outro colonizado, seus espaços, suas práticas, suas arquiteturas e seus
objetos de valor como o que é inferior, exótico, bárbaro ou que está alhures, possibilitando tam- 127
bém imaginar o Eu colonial-imperial, seus espaços, suas práticas, suas arquiteturas e seus obje-
tos de valor como o que é superior, normal ou de valor “universal”.
Quanto ao patrimônio imaterial, seriam assim nomeados práticas, ritos, processos de sa-
cralização de objetos ou lugares e atividades – como é o caso do Ofício das Baianas de Acarajé,
por exemplo. Tende-se a concebê-los, no passado e/ou no presente, como estritamente perten-
centes a determinados territórios ou comunidades, por sua vez vistos não só como estáveis e/ou
homogêneos, mas também como idiossincráticos (LACARRIEU e LABORDE, 2018). Além disso,
destacadamente no Brasil, o que é concebido como valor imaterial normalmente se relaciona
128 aos saberes-outros e às manifestações-outras, isto é, aqueles e aquelas das matrizes africanas
ou indígenas.
O patrimônio imaterial resultaria, então, de uma complexa equação: por um lado, visaria
a proteger, legitimar, ou valorizar alguns elementos considerados representativos – muitas ve-
zes pelas próprias comunidades étnico-raciais que o preservaram e/ou reproduziram; por outro
lado, também objetivaria manter a coesão desses grupos a partir de uma lógica eurocêntrica e
brancocêntrica que, sob a égide da colonialidade, legitimaria sua acepção como o que é exóti-
co, tradicional ou de um espaço ou tempo distantes – uma condição ao mesmo tempo singular
e inferior.
Art. 4º. O Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional possuirá quatro 129
Livros do Tombo, nos quais serão inscritas as obras a que se refere o art. 1º
desta lei, a saber:
1) no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, as coisas per-
tencentes às categorias de arte arqueológica, etnográfica, ameríndia e popu-
lar, e bem assim as mencionadas no § 2º do citado art. 1º.
2) no Livro do Tombo Histórico, as coisas de interesse histórico e as obras de
arte histórica;
3) no Livro do Tombo das Belas Artes, as coisas de arte erudita, nacional ou
estrangeira;
4) no Livro do Tombo das Artes Aplicadas, as obras que se incluírem na catego-
ria das artes aplicadas, nacionais ou estrangeiras (ibid.).
Destacamos, em primeiro lugar, o fato de que Decreto-Lei 25/37 informa que a proteção
que pretende regular não apresenta objetos e obras consideradas eruditas como as únicas dig-
nas de terem suas inscrições no elenco de bens tombados. E, em segundo lugar, que a norma
deixa claro que há a possibilidade de abertura de diversos volumes para cada um dos livros
do tombo, se houver a necessidade de organizar o patrimônio por características e afinidades.
Assim se pode compreender que o documento visaria a abranger os mais diversos exemplares
de manifestações culturais no Brasil, sem definição de origens, grupos, linguagens ou estilos.
Há também abrangência e variedade do que pode ser elencado nesses livros: atividades
humanas diversas, ofícios, festividades, lugares... No entanto, é preciso destacar incongruências
na dicotomia entre imaterialidades e materialidades. Bens imateriais apresentam traços tanto
imateriais quanto materiais: um lugar, um mercado, uma praça, ou uma feira têm dimensões
bem palpáveis; saberes produzem objetos; e rituais, festejos e outras práticas da vida social mui-
tas vezes dependem de espaços específicos e sua organização. E no caso dos bens materiais,
elas albergam, também, práticas ditas imateriais.
Todas as leis são constituídas por várias influências sociais, econômicas e culturais e têm
130
relação com uma antevisão de futuro, em vistas a se organizar a vida humana em comum, a
cidade, a paisagem. A proteção dos patrimônios depende da política de Estado para a cultura
e do corpo técnico da instituição e, evidentemente, está sujeita ao entendimento de cultura de
cada um dos atores ou grupos sociais envolvidos. Mas as leis, afinal,
não têm garantias de obediência, podem ser dúbias, imprecisas e falhas: por
conta da imprevisibilidade dos interesses pessoais ou coletivos que influen-
ciam seus processos de formulação e aplicação; porque na sua comparação
com outras normas que se sobrepõem à realidade, estimulem inúmeras in-
terpretações, às vezes conflitantes e tantas outras ao sabor de interesses es-
pecíficos; porque por ineficiência do Estado, imprecisão do texto legal ou con-
tradição em relação a outras normas, torne-se difícil ou inviável sua aplicação;
ou, por fim, porém não menos importante, porque há processos que se dão
necessariamente à margem da lei. O discurso legal, a bem da verdade, torna
possível criar a ilusão de certeza em uma esfera que é de total incerteza (PIRES
DO RIO e NAME, 2013, p. 6-7).
Para além da ambiguidade entre material/imaterial, na tardia norma sobre bens imate-
riais não se prevê o tombamento, mas apenas o registro. Os efeitos de proteção do patrimônio
material ou imaterial, do tombamento ou do registro, também são distintos – apesar de terem
como base as mesmas motivações: proteger as referências culturais nacionais. Em ambos os
casos, a solicitação pode partir de qualquer cidadão e a instrução do processo é feita por um
corpo técnico do IPHAN que julga a procedência para a concessão do título. Tanto para o patri-
mônio material como para o patrimônio imaterial existe na legislação, a previsão de valorização,
fomento e incentivo, mas não é garantida a liberação de recursos. Para isso, depende-se da
política do Estado para a cultura. No entanto, ao passo que nos casos de violação do patrimônio
material são previstas multas, no caso do patrimônio imaterial não há previsão de qualquer pu-
nição. Além disso, tendo em vista a consideração de que a cultura é algo mutável, e que os cos-
tumes, as festividades e o cotidiano são sujeitos a alterações no tempo, o registro do bem ima-
terial é passível de revisão a cada dez anos – o que não ocorre com o patrimônio material que
tem seu tombamento permanente e é objeto de contínua fiscalização por parte das superin-
tendências regionais do IPHAN pelo país, mesmo no contexto de um quadro técnico reduzido.
Isso nos permite supor que há hierarquias entre o patrimônio material – de regulação
anterior e para qual geram-se tombamentos – e o patrimônio imaterial – cuja legislação tardou
e gera registros. Vale observar os números relacionados à proteção institucional do patrimônio
cultural no Brasil e como este abrange os diferentes grupos formadores do país, conforme apre-
sentamos no Quadro 1.
*
Os “+2” referem-se a bens que são de matrizes indígenas e africanas, sendo destacados para que não se contabilizem
duas vezes.
Nosso quadro utiliza dados de Moassab (2016) a respeito do patrimônio material no Bra-
sil, e os complementa com uma contagem feita por uma de nós para os bens imateriais. Pelos
dados apresentados se pode observar, em primeiro lugar, que a grande diferença nos quantita-
tivos de elementos protegidos do patrimônio material e do patrimônio imaterial é notória, mas
compreensível se observado o tempo de existência da legislação para cada uma dessas formas
de proteção. Porém o mais impactante é a grande distância que estes instrumentos são utili-
zados para atender a diversidade dos grupos formadores do país. Moassab (2016) assinala que
se por um lado as novas perspectivas acadêmicas, artísticas e legais sobre patrimônio, no Brasil
pós-constituinte, tornaram-se um pouco mais inclusivas em relação às memórias dos povos
indígenas e afrodescendentes, por outro lado os dados sobre tombamentos de edificações não
oferecem a mesma perspectiva de inclusão.
anos. E de, também, como a política de cultura anda a passos lentos nas políticas de reparação
e na equiparação do tratamento da população formadora da nação. A permanente representa-
ção privilegiada da cultura de origem colonial/europeia/branca continua se fazendo presente e
continuamente sendo ampliada no seu aparato de proteção em detrimento das manifestações
132 oriundas ou criadas por descendentes de povos de outras origens étnico-raciais.
No mesmo artigo em que Moassab (2016) apresenta os dados sobre os bens arquitetô-
nicos tombados pelo IPHAN, ela relaciona a monumentalização e a produção de cidades-cená-
rios promovidas pela patrimonialização ao que julga ser uma suavização das marcas do espaço
advindas das contradições e violências históricas do convívio entre colonizadores e colonizados
no Brasil. A esse arranjo territorial produzido pelos bens arquitetônicos o arquiteto Cláudio Re-
zende Ribeiro (2014) fornece a alcunha pejorativa de “espaço cordial”, em alusão a Sérgio Buar-
que de Holanda ([1936] 1995): tratar-se-ia de uma tradução material e edificada da recorrente
ação de harmonização e encobrimento de conflitos, em verdade nada amistosos, a que se inclui
a malfadada ideologia da mestiçagem como democracia racial – que está presente não só no
Brasil, mas também em outros países latino-americanos (cf. VASCONCELOS, [1925] 1948; AR-
GUEDAS, [1919] 1966; FREYRE, [1933] 1998). Estamos de acordo com Moassab e Ribeiro, mas
nossa adesão à literatura decolonial nos faz preferir dizer que a cordialidade, a monumentaliza-
ção e a espetacularização suavizadoras de conflitos étnico-raciais no espaço são manifestações
da colonialidade territorial.
Sendo assim, voltando aos exemplos que abriram este trabalho, ousamos perguntar: não
seria o Solar do Unhão um espaço cordial, monumentalizado e espetacularizado, atravessado
pela colonialidade territorial? Afinal, embora situado nos limites da área urbana de sua época,
tratava-se de um complexo agroindustrial do mesmo tipo dos engenhos de açúcar (IPHAN,
s.d.): é representativo, portanto, de uma economia dependente da escravização de africanos e
cuja materialidade europeia/branca, como vimos, tem sido privilegiada quando se quer enun-
ciar quais são os valores a se preservar como representativos da nação brasileira. O IPHAN, aliás,
sobre a polêmica relacionada ao show de Saulo, tranquilizou a população soteropolitana ao ga-
rantir que a música do cantor não causou nenhum dano ao conjunto. Mesmo assim, vetou um
espetáculo de Luan Santana que ocorreria ali em janeiro de 2020.10 É de se estranhar que seus
técnicos tenham manifestado receio de que as robustíssimas paredes do conjunto tombado
não pudessem resistir aos agudos do sertanejo. Não nos parece, afinal, que haja real ameaça
10 Ver o texto de João Pedro Pitombo (2020) para a Folha de São Paulo: “Iphan barra festa de Luan Santana em
museu tombado em Salvador”.
ao tombamento do conjunto mesmo que continue a abrigar, como vem abrigando, outras fun-
ções, independentemente do elemento histórico, etnográfico ou artístico que o fez se tornar
item digno de ser elencado e protegido em um dos livros do tombo.
A avaliação de processo de registro do Ofício das Baianas de Acarajé foi extensa, tendo
gerado um enorme debate entre o corpo técnico e o Conselho Consultivo. Por um tempo, se im-
pediu a comercialização dos tradicionais bolinhos que não fossem no tabuleiro de uma baiana
devidamente paramentada. No entanto, o registro não garantiu a manutenção e a preservação
do que tais grupos percebem como seus maiores valores e outros modos de comercializar vol-
taram. Por não serem perenes, a lógica da visibilidade permanente que é própria de uma edifi-
cação tombada parece não ser sempre aplicável ao acarajé —muito embora contraditoriamen-
te o mesmo faça parte da imagem da cidade de Salvador e de seus anúncios turísticos. Talvez
seja isso que nos permita entender porque, em meio ao retorno dos conflitos, a Prefeitura de
Salvador tenha emitido um decreto condicionando a licença da atividade a comerciantes que
usassem o tabuleiro de madeira e as vestimentas em acordo com a tradição afro-brasileira (SAL-
VADOR, 2015): se efetivamente são itens ligados a questões rituais, são também notadamente
elementos distintivos visualmente, que a Prefeitura viu como necessário serem resguardados.
Mesmo assim, os sites das empresas produtoras de acarajé congelado ainda estão no ar; uma
famosa rede de delicatessens deixou de vender o quitute na capital baiana, mas ainda o faz, por
exemplo, em sua filial em Recife;11 e há a comercialização de massas congeladas ou misturas
prontas de acarajé em inúmeros supermercados soteropolitanos (Figura 4). Além disso, ainda
perdura a apropriação de outras concepções religiosas que voltaram a vender o acarajé utilizan-
do outra denominação e sem observar a ancestralidade do alimento ou obedecer ao processo
ritual com base em matrizes africanas.
Considerando que qualquer feito humano depende de um suporte físico, fica outra per-
gunta no ar: o espaço material não requer atenção especial quando ele se apresenta como
suporte para uma manifestação cultural entendida com natureza imaterial? Além disso, se este
espaço é fundamental para a realização de uma prática representativa da cultura brasileira,
qual a motivação para se proceder apenas com o instrumento do registro para seu conheci-
mento num livro que elenca as práticas com características afins e não se promover o tomba-
mento ou outro mecanismo de proteção mais efetivo?
11 Ver: “Perini oferece o tradicional acarajé da Bahia”, no site do Shopping Rio Mar Recife (2019).
Nesse sentido, cremos ter avançando sobre a conceituação de Farrés Delgado, apontando
que ela não diz respeito apenas à hegemonização de determinadas concepções territoriais de
determinados grupos sociais, mas também ao apagamento, à suavização e à espetacularização
das marcas de sua violência ainda presentes no espaço. Também nos parece ser manifestação
da colonialidade territorial, outrossim, o pouco caso à espacialização, isto é, à base material de 135
práticas e saberes indígenas e – no nosso exemplo – africanas, não se garantindo o suporte físi-
co para a reprodução de suas práticas ditas imateriais.
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tecnocientífica
145
Foto: Fran Rebelatto. Sucre, Bolívia
146
Artigos
a. um protagonismo popular, sem tutela externa (e no caso de existir essa tutela, ele a
define como “cogestão”);
A assistência técnica (AT) no Brasil, por sua vez, é definida pela Lei nº 11.888 de 24 de
dezembro de 2008, como toda atividade profissional que abrange os trabalhos de projeto,
acompanhamento e execução da obra pelos profissionais das áreas de arquitetura, urbanismo
e engenharia, com vistas a facilitar o acesso à moradia digna à população de baixa renda. A
AT é, portanto, peça-chave fundamental em quaisquer experiências, autogestionárias ou não,
de produção de moradia. Quando empregada naquelas autogestionárias, pode ter um efeito
catalisador e potencializador de conquistas políticas das comunidades envolvidas. Pois os tra-
balhos da AT possuem uma dupla dimensão técnico-política: trata-se do papel complementar
ao da autogestão, que visa a municiar os movimentos populares organizados em determinada
produção habitacional com um profissional com competências técnicas para lidar com opera-
dores públicos ou estatais das políticas habitacionais – capaz de atender às exigências impostas
pelos órgãos públicos, tais como os projetos, planilhas, controle e gestão das obras, entre outros
serviços técnico-profissionais. Isto, por si só, amplia a voz e as intenções destas populações,
muitas vezes marginalizadas e inferiorizadas pelos agentes ou representantes do Estado, por
meio de um profissional com conhecimento técnico que, no geral, não se encontra disponível
junto aos envolvidos. Em outras palavras, a exclusão socioespacial a que estão submetidas es-
sas populações tem como uma de suas dimensões o distanciamento da linguagem arquite-
tônica e das decisões de ordem técnica – frente às quais a AT possibilita um enfrentamento,
Aqui no Brasil, pelo menos desde a década de 1990, as propostas de revisão ou de busca
para uma alternativa à tecnociência capitalista em diversos setores produtivos nacionais têm
recebido o nome de tecnologias sociais. Apesar de polissêmica e controversa, esta noção tem
sido útil para demarcar pressupostos diferentes e alternativos ao capitalismo, englobando as
experiências que buscam a democratização de processos tecnológicos, a revisão das práticas
de produção e dos processos cognitivos nela envolvidos. Muitas destas experiências partem
de processos tecnocientíficos vigentes visando a readequá-los ou reprogramá-los, prática tam-
bém denominada adequação sociotécnica (AST) (DAGNINO, 2002; DAGNINO et al., 2004). O
exemplo mais emblemático da necessidade de AST é o das fábricas ocupadas ou recuperadas,
nas quais os trabalhadores assumem, por diversas razões (falência do proprietário, por exem-
plo), o controle das unidades de produção. Nestas situações, constata-se que a coletivização da
propriedade não é condição suficiente para a revisão das práticas sociotécnicas, que continuam
seguindo por si só a lógica capitalista que as constituiu. É necessário, também, um esforço
direcionado à reprogramação das relações de produção, buscando o quanto for possível a sua
humanização e desalienação. Ou seja, a AST é justamente este esforço cognitivo e direcionado
de revisão ou reprogramação.
Proponho que a AT deva ser entendida como uma atividade profissional com grande po-
tencialidade de realizar a AST na ação da produção do espaço, da construção de moradias po-
pulares. Afinal de contas, e como veremos a seguir, acredito que algumas das mais conhecidas
e destacadas experiências latino-americanas de construção de moradia popular que adotaram
a autogestão, revelaram uma possibilidade concreta de estabelecimento da AST, ainda que
não tenham necessariamente a efetivado. Elas engendraram, pois, aqueles três pontos essen-
ciais para os quais Bastos chamou atenção, que criam condições e demandas para a AST.
A proximidade destas experiências de gestão com aquelas verificadas nas fábricas ocu-
1 Utilizo aqui a expressão sociotécnica e não “técnica” simplesmente, tampouco “tecnologia”, para frisar o entendi-
mento de que os processos técnico-tecnológicos são construções sociais, históricas, passíveis de serem transforma-
dos e controlados e não fatos dados, reificados e descolados da realidade social.
2 Neste caso utilizo a expressão original utilizada por Feenberg em alusão ao termo mais em voga dentro da lógica
capitalista. A noção de tecnociência também remete ao entrelaçamento entre a produção científica e a produção
tecnológica verificada sobretudo ao longo do século XX. A este respeito, ver: Jover (1999).
padas, portanto, é evidente. E, a meu ver, esta pode ser uma de suas limitações ao repetir o
mesmo caminho, isto é, o de não levar a cabo a compreensão do papel fundamental que os
processos tecnológicos assumem nestes momentos de organização coletiva da produção. Isso
nos impõe o desafio de suplantar tais limites, abrindo um profícuo horizonte de atuação pro-
fissional no bojo do que hoje se entende por AT, para aqueles profissionais técnicos (arquitetos, 149
engenheiros e afins) comprometidos com a transformação social e com a luta anticapitalista. É
o que veremos no tópico a seguir.
Experiências de autogestão na
produção de moradia popular latino-americana
É fato bastante conhecido que a autogestão habitacional na América do Sul teve como
marco inicial as experiências ocorridas no Uruguai, na década de 1960. Como nos lembra Bas-
tos (2019), esse pontapé inicial ocorreu a partir de três experiências-piloto no interior do país,
impulsionadas pelo Centro Cooperativista Uruguaio (CCU). Naquele país, a opção de autoges-
tão habitacional em cooperativas toma impulso em 1968, com a instituição da Ley Nacional
de Vivienda (Lei 13.728), na qual claramente se previa o regime autogestionário como uma das
modalidades de construção a serem incentivadas, pelo governo, no âmbito de acesso à mora-
dia da população sem recursos. Além disso, essa lei também instituiu a propriedade coletiva no
país. Entre 1968, quando a referida lei é aprovada, e 1973, quando se instaura uma ditadura
civil-militar que tenta enfraquecer o movimento cooperativista,
No que diz respeito à AT, as experiências mais conhecidas na capital paulista foram pro-
movidas pelo Laboratório de Habitação (LAB-HAB), do curso de Arquitetura e Urbanismo da Fa-
culdade de Belas Artes de São Paulo (tendo à frente o professor Nabil Bonduki), que lidava com
urbanizações de favelas e intervenções em assentamentos precários, a partir de demandas de
organizações comunitárias locais (BASTOS, 2019). O conjunto habitacional Recanto da Alegria
(1982-1985) foi a primeira experiência do LAB-HAB, apontada como a “urbanização de uma
favela por autogestão” e considerada uma exceção que seguia mais proximamente ao modelo
uruguaio (BONDUKI, 1992) e incluía a reconstrução das casas no local. Além do LAB-HAB, Bas-
tos chama atenção para os trabalhos do Sindicato dos Arquitetos de São Paulo, órgão que tam-
bém realizava iniciativas de AT junto a organizações populares comunitárias; e do Centro de As-
sistência à Autogestão Popular (CAAP), coordenado pelo arquiteto uruguaio Leonardo Pessina,
que havia atuado nas iniciativas da FUCVAM e CCU na década de 1970 – exilado pelo regime
ditatorial do país, ele posteriormente se instala em São Paulo e inicia o mutirão “São Bernardo”,
em que “busca instalar os preceitos de autogestão habitacional uruguaios: construção por aju-
da mútua, formas de produção de mutirões autogeridos, autogestão do grupo administrativa e
financeiramente” (BASTOS, 2019, p. 55).
O que estes e estas autores mostram em seus trabalhos é que os avanços inegáveis da
autogestão enfatizaram aspectos administrativos e financeiros, contribuição fundamental e
positiva em termos de desmercantilização da moradia. Entretanto, não conseguiram avançar
muito em termos técnicos, revendo profundamente práticas construtivas, materiais e ferra-
mentas para construção etc. Promoveram (ou criaram condições para) uma AST da gestão
capitalista original desta produção, mas, ao que parece, não necessariamente planejaram uma
outra AST para os procedimentos práticos construtivos, das etapas de construção, das práticas
empreendidas no âmbito do canteiro de obras – enfim, dos aspectos mais técnicos da produ-
ção habitacional. Isto é, tendo a crer ao analisar os e as autoras que estudaram esta produção
habitacional autogestionária, que houve menos ênfase em rever práticas sociotécnicas no âm-
bito das técnicas construtivas, dos materiais de construção, das relações de trabalho, práticas
estas que têm maior dependência do perfil do profissional que está desempenhando a AT.
Se minha hipótese estiver correta, creio que se trata de limites históricos destas con-
tribuições, relacionados a uma série de fatores. O primeiro deles é o de que este assunto não
constitui um interesse principal das ações dos profissionais responsáveis pela organização e
gestão dos processos de produção destas moradias – a denominada AT – (arquitetos, engenhei-
ros e mestres de obras, principalmente). Esta preocupação cognitiva com relação à produção
tecnológica não estava colocada neste contexto. Além disso, em segundo lugar, temos que
reconhecer que lidavam com as condições possíveis encontradas naquele momento. A gestão
de precariedades, a dura realidade das condições de existência das comunidades com as quais
colaboraram é, certamente, um imperativo inescapável que impõe limites aos avanços na cons-
trução de uma produção contra-hegemônica de moradias. Soma-se a isso o fato de que, ainda
atualmente, a ideologia desenvolvimentista e o determinismo científico tecnológico estão pre-
sentes na formação acadêmica dos profissionais da área. A crítica às desigualdades, o impulso
ao engajamento político que se verificou no campo da ação política e a criação de inovação da
gestão, não era verificado ainda com o mesmo vigor na crítica radical da produção tecnológica
moderna. Destaco aqui, como não poderia deixar de fazê-lo, o esforço teórico de Sergio Ferro
e sua crítica radical às relações de produção no canteiro de obras (FERRO, 1979 e 2006), mas
que, como sabemos, ainda hoje em dia não é uma discussão central nos cursos de arquitetura
e urbanismo do país: os/as arquitetos/as ignoram, nas palavras de Pedro Arantes, “as condições
dos operários, que existem e construirão sua cidade, são seres do subterrâneo social que não se
quer ver” (ARANTES, 2010, p. 207) e a prática de AT, por meio da qual poder-se-ia desenvolver
esta sensibilidade, continua a ser uma experiência de exceção dos/as profissionais. 151
Acredito que uma formulação crítica mais radical e consistente localiza-se no horizonte
acadêmico vinculado à Teoria Crítica da Tecnologia, com Feenberg; e à filosofia e à sociologia
da tecnologia, dos brasileiros Ricardo Neder e Renato Dagnino – ou seja, fora dos campos disci-
plinares da arquitetura e da engenharia. Mais recentemente, incluo também as críticas oriun-
das do giro decolonial, com seu olhar centrado na realidade latino-americana, para a qual creio
que podemos buscar outras contribuições, assuntos que debaterei subsequentemente.
A colonialidade territorial
e a colonialidade dos saberes construtivos
Figura 1: O triângulo da colonialidade territorial. Fonte: Farrés Delgado e Matarán Ruiz (2014).
colonialidade
do saber
(territorial)
colonialidade colonialidade
do poder do ser
(territorial) (territorial)
Para Catherine Walsh (2009, p. 27), a decolonialidade representa o esforço por “transgre-
dir, deslocar e incidir na negação ontológica, epistêmica e cosmogônico-espiritual que foi – e
é – estratégia, fim e resultado do poder da colonialidade” – o que Walter Mignolo (2008) chama
de “desobediência epistêmica” e Aníbal Quijano (1992) de “revolução epistêmica”. Estas postu-
152 ras alinham-se à ideia das “epistemologias do sul”, proposta por Boaventura de Sousa Santos
e Maria Paula Meneses (2010) e que se assenta “em três orientações: aprender que existe o
Sul; aprender a ir para o Sul; aprender a partir do Sul e com o Sul” (SANTOS, 2010), como uma
afirmação emancipatória e empoderada pela qual os saberes dos oprimidos passam a ser legi-
timamente praticados.
Yasser Farrés Delgado e Alberto Matarán Ruiz (2012 e 2014) definiram a colonialidade
territorial como o conjunto de padrões de poder que, na práxis territorial, servem para estabele-
cer hegemonicamente uma concepção de território sobre outras, tratadas como “inferiorizadas”.
Trata-se de uma particularização do conceito geral que oferece Castro-Gómez (2007) sobre a
colonialidade. Esses autores, além disso, subdividiram a colonialidade territorial em três dimen-
sões: colonialidade do saber territorial, colonialidade do poder territorial e a colonialidade do
ser territorial (ver Figura 1).
3 O grupo de pesquisa desde 2016 está cadastrado no CNPq e é liderado pelo professor e pesquisador Leo Name
(UNILA). O supracitado minicurso teve suas aulas formuladas coletivamente – por mim, Leo Name, Tereza Spyer,
Marcos Britto e Ana Carolina Rodrigues de Oliveira – e tinha como título “Insurgências decoloniais: geopolítica do
conhecimento para outros mundos possíveis” (cf. NAME et al, 2019 e 2020) e foi inicialmente ministrado no auditório
da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia (FAUFBA) em maio de 2019 e em parceria com o
exemplificar como entendemos a colonialidade de uma forma geral (NAME et al., 2019; ver
Figura 2). Nosso objetivo era criar uma ferramenta didática para sintetizar a colonialidade do
poder e do ser. Depois, no Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Gra-
duação em Planejamento Urbano e Regional (ENANPUR) de 2019,4 propus uma adaptação
destes esquemas gráficos com ênfase na colonialidade territorial conforme tratada por Farrés 153
Delgado e Matarán Ruiz (ver Figura 3). Porém, meu objetivo desta vez é enfatizar como a cons-
tituição da colonialidade territorial está atada à construção histórica da civilização “ocidental” e
sua correspondente ideia de alteridade.
Tal esquema pode ser explicado como representativo da lógica eurocêntrica e racista de
dominação que se direcionou ao Outro conquistado, gerando uma articulação perversa entre
evolucionismo (deve o Outro conquistado seguir a modernidade europeia para salvar-se de seu
atraso) e dualismo (jamais o Outro conquistado vai atingir a modernidade plena, pois a ele lhe
são atribuídas diferenças agudas e inconciliáveis, da ordem da alteridade) (cf. QUIJANO, 2000;
NAME et al., 2019). Em termos territoriais, esta perspectiva evolucionista considera, portanto,
que a organização espacial branca, especialmente a urbana (ou o que poderíamos chamar de
mundo branco) é o referencial avançado, superior, em relação ao atrasado mundo dos outros, do
indígena, dos afrodescendentes e mesmo das periferias pobres das cidades. Do ponto de vista
da alteridade, entre o “Eu branco” e o “Outro não-branco” nota-se a linha abissal, em alusão ao
conceito de Boaventura dos Santos (SANTOS, 2010) que separa as distintas organizações terri-
toriais. Nos processos de urbanização latino-americanos, o que observamos como regra geral é o
êxodo das populações de territórios não-urbanos (rural, quilombos, aldeias e cidades indígenas,
por exemplo).
Talvez não haja nada de muito novo nesta representação gráfica, esquemática, da
colonialidade territorial. No entanto, creio que precisamos debater mais a colonialidade tec-
nológica – ou tecnocientífica. Sobretudo no campo epistemológico da arquitetura, em que há
ainda muita confusão com relação à importância e à forma como devemos abordar os saberes
construtivos “não brancos”. A própria dificuldade em definir estes saberes revela isso: “técnicas
tradicionais”, “técnicas autóctones”, “técnicas alternativas”, técnicas “não convencionais” e as-
sim por diante.
Laboratório Urbano e o Laboratório Co-Adaptativo (LabZat). Depois, em agosto do mesmo ano foi oferecido tam-
bém na UNILA e, a convite do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal
de Minas Gerais (UFMG), como uma disciplina optativa.
4 Apresentação de Sessão Livre em 27 de maio de 2019, denominada “Autonomía y diseños del sur: opções a formas
de pensar, representar e construir a cidade”. Minha exposição nesta sessão livre foi em parceria com Tiago Souza
Bastos (CAU UNILA) e tinha como título “Assessoria com técnicas construtivas alternativas: pluriverso, autonomia e
comunalidade”.
EVOLUCIONISMO DUALISMO
154
Grau de o mundo do Eu o mundo do Outro
civilização
o mundo do Eu
diferença
o mundo do Outro
Tempo Alteridade
Linha Abissal
(branco) favelas
Grau de (indígena e o negro)
civilização
Mundo urbano
(branco)
rural,
ecovila etc.
(alternativas
do branco)
Mundo rural
Aldeias e favelas
(indígena, negro)
OUTRO
Tempo
EVOLUCIONISMO ALTERIDADE
Figura 4: Esquema explicativo da colonialidade dos saberes construtivos numa perspectiva evolucionista
e da alteridade. Fonte: Cunha (2019), adaptado de Name et al. (2019).
(branco) e do negro
Grau de
civilização
Técnicas
convencionais
(branco)
Técnicas
ecologicamente
corretas,
bioconstrução etc.
Técnicas alternativas
(indígena, negro) OUTRO
Tempo
EVOLUCIONISMO ALTERIDADE
Por isso, proponho que a valorização de técnicas “alternativas” vá muito além do que a
ideia de desenvolvimento sustentável propõe. Há que se usá-las, se tomarmos como ponto de
partida a perspectiva de Feenberg, como uma alternativa que funcione como instrumento de
revisão cognitiva da tecnologia “convencional” e contribua para promover a democratização
tecnológica. Mas devemos ir além: devemos compreender o problema como uma questão de
colonialidade tecnológica, com íntima relação com a colonialidade territorial.
No contexto da América Latina, nada mais apropriado que seguir aqui a trilha de Farrés
Delgado e Matarán Ruiz a partir da perspectiva decolonial, por ser um pensamento geografi-
camente adequado à nossa realidade e produzido a partir dela. A revisão cognitiva significa,
nos termos decoloniais, o enfrentamento da colonialidade do saber tecnológico. É preciso dar
centralidade para outras formas de construir e outros saberes técnicos para a construção de
novas espacialidades e novos territórios. Permitir-se utilizar materiais de construção naturais
encontrados no próprio local ou região onde habitam as comunidades, ou produzidos por eles
A vida urbana, como sabemos, implica uma especialização e divisão do trabalho sem pre-
cedentes que atualmente direciona nossos esforços produtivos para o setor de serviços – que já
responde por boa fatia dos empregos nas cidades – e nos alija crescentemente das atividades
primárias, de produção de bens e, sobretudo, daquelas ligadas à terra (como o plantio de ali-
mentos, por exemplo). Aqui cabe um relato pessoal que exemplifica a questão do epistemicídio 157
que o modo de ser urbano causa nas práticas não urbanas: visitei há uns anos um acampa-
mento de reforma agrária recém-estabelecido (existia há 3 semanas, naquele momento) num
município do oeste paranaense. A organização territorial implicava a subdivisão de lotes de 100
metros quadrados para cada família do movimento, parte dos quais era destinado ao barraco e
a outra parte para a produção de alimentos de subsistência. Sobre um dos lotes, conversei com
os moradores e as moradoras que plantavam alface para saber o que era possível nestes me-
nos de 50 metros quadrados disponíveis: responderam-me que produziam o suficiente para
mais de uma família. Na mesma época, acompanhei bairros periféricos residenciais urbanos
de Foz do Iguaçu com 2,5 vezes mais área (lotes de 250 metros quadrados, com cerca de 200
metros disponíveis de áreas livres), onde era comum não encontrar um mísero pé de alface! A
colonialidade do ser territorial e tecnológico que está contida na hegemonia do ser urbano mo-
derno chega ao ponto de apagar saberes tão ancestrais e simples como o de cultivo de hortas,
mesmo nos casos nos quais as famílias vêm a fome bater à porta com frequência.
A experiência profissional na UNILA tem sido desafiadora, por ser uma universidade nova,
em construção, bilíngue (a única no país) e com discentes e colegas profissionais oriundos dos
diversos países latino-americanos. Também tem procurado se afirmar na região, promovendo
atividades extensionistas na cidade de Foz do Iguaçu e estreitando laços com as comunidades
da periferia pobre urbana da tríplice fronteira – incluindo terreiros, comunidades quilombolas
e aldeias indígenas –, com as quais tenho realizado atividades diversas, que envolvem ensino,
pesquisa e extensão. A jovialidade e especificidades do CAU UNILA têm nos permitido experi-
mentações didático-pedagógicas em acordo com as perspectivas teóricas por mim já mencio-
nadas. Consta do projeto político-pedagógico do curso (PPC) a sua vocação “para a produção
compartilhada de conhecimentos fundamentais com o objetivo de promover ações voltadas
ao desenvolvimento de espaços e espacialidades socialmente mais justos no contexto regio-
nal” (UNILA, 2014). Para tanto, o PPC está organizando em cinco eixos de instrumentação: 1.
Estudos Latino-Americanos, 2. Crítica; 3. Técnica (onde me insiro); 4. Leitura e Representação e
5 São os grupos MALOCA (Grupo de Estudos Multidisciplinares em Urbanismos e Arquiteturas do Sul), coordenado
pela professora Andréia Moassab e o ¡DALE! (Decolonizar a América Latina e seus Espaços), coordenado pelo pro-
fessor Leo Name.
5. Atelier Integrado. A separação dos eixos é um critério mais de ordem organizacional e menos
disciplinar. O ensino da teoria e da prática é uma realidade exercida nos cinco eixos pedagógicos.
Cada qual opera esta articulação a partir de suas especificidades e temáticas (MOASSAB, 2013).
158
Figura 5: Foto aérea da Ocupação Bubas, em 2019. Fonte: Portal H2Foz.com.br
Parte de minhas experiências didáticas podem ser conhecidas em artigo publicado re-
centemente (MOASSAB e CUNHA, 2019). No presente artigo, me deterei mais na experiência
extensionista com AT nas comunidades periféricas de Foz do Iguaçu, especialmente a Comu-
nidade Ocupação Bubas (ver Figura 5), localizada na região sul da cidade. Esta ocupação é a
maior do Paraná, com mais de 1.200 famílias e superando 5.000 habitantes, entre os quais
brasileiros, argentinos e paraguaios. Resulta de remoções forçadas causadas pela pressão do
agronegócio, mas também pela pressão extrativista e imobiliária na região. Nesta comunidade
realizei dois trabalhos de AT, um voltado à produção de moradia e o outro voltado à paisagem
e ao espaço exterior doméstico.
6 Preferi utilizar a noção de “assessoria” e não “assistência” técnica para evitar conotações ligadas à ideia de “assis-
tencialismo”. Nas páginas anteriores a essa nota de rodapé, utilizei a palavra “assistência”, não por considerá-la mais
apropriada, mas por ser a noção mais comumente utilizada, inclusive por muitos escritos teóricos e na lei nº 11.888.
Como agora se trata de minhas experiências em meus projetos, propositadamente faço a mudança de termos.
159
a b
c d
O objetivo desta experiência é demonstrar que é possível promover uma práxis cons-
trutiva, supervisionada pela assessoria técnica, voltada para o tensionamento da colonialidade
tecnocientífica presente nos modos de construir urbanos “convencionais”. O incentivo à utili-
zação de técnica construtiva com terra crua, ao invés de capacitar a comunidade para técnicas
de alvenaria convencional ou concreto armado, foi com vistas a criar uma alternativa viável que
pudesse abrir caminhos para enfrentar as colonialidades do saber, do ser e do poder tecnológi-
cos. Entendo que com todas as limitações desta experiência, pudemos perceber que é possível
reprogramar a atividade de assessoria na direção de uma AST. A comunidade em questão é
constituída por barracos de madeira e outros materiais reaproveitados, devido à exclusão social
a que suas moradoras e seus moradores estão submetidos devido à condição econômica. O
acesso a materiais de construção produzidos a partir da terra crua retirada das imediações (a
terra obtida teve origem em um corte de outro terreno próximo, trazida sem custos por uma
empresa de terraplenagem vizinha do bairro) faz com que haja menor dependência econômica
160 e que se consigam melhorias na qualidade do ambiente construído sem elevação significativa
de gastos. A utilização de mão-de-obra própria, já verificada na construção dos barracos, pôde
ser redirecionada para a realização desta técnica. Com isso, já foi possível perceber a incidência
da colonialidade do saber, porque a não utilização desta técnica se deve mais ao fato de não
possuírem o know how necessário e menos devido a questões econômicas, em situação seme-
lhante àquela que já debati no caso das hortas urbanas como forma complementar de subsis-
tência – que, quando não ocorre, não é por falta de espaço.
Em analogia ao que se verifica nas fábricas ocupadas – nas quais a coletivização da pro-
priedade não é condição suficiente para a revisão das práticas sociotécnicas, pelas quais se
perpetua a lógica capitalista que a constituiu –, na ocupação Bubas (assim como em qualquer
outra) a situação de exceção criada pela organização coletiva e pelo ímpeto político de enfren-
tamento da lógica capitalista em relação à posse da terra, bem como em relação à exclusão
socioespacial, não encontra respaldo no que tange à edificação neste território ocupado. A pro-
posta de projeto habitacional já oferecida pela prefeitura de Foz do Iguaçu para esta comuni-
dade, tendo em vista o futuro financiamento público para a construção de unidades habita-
cionais, segue a tipologia dos tradicionais conjuntos verticais com unidades de cerca de 40m²
– que foi rejeitada pelas moradoras e pelos moradores. Soma-se como dificuldade o fato de eles
e elas ainda não possuírem uma entidade coletiva que dê conta de estabelecer um processo
autogestionário.
Claro que o poder público não deve se eximir de seu dever de contribuir para o acesso
à moradia digna, devendo prover os recursos públicos para financiar as futuras moradias, sem
os quais a comunidade dificilmente conseguirá resolver seu problema. No entanto, será fun-
damental que esta crie alguma instância de representação coletiva no momento da produção
habitacional. Aliás, antes disso, ela precisa preparar-se tecnicamente e já ir promovendo melho-
rias imediatas nas casas improvisadas que ampliem a qualidade de vida do bairro, enquanto os
recursos não chegam. Meu intuito é que as moradoras e os moradores possam apropriar-se de
novos saberes construtivos para que também tenham autonomia para operar tecnicamente
as políticas públicas, contribuindo para redefini-las localmente e que esta e outras técnicas
construtivas e outros processos de trabalho que vierem a aprender possam contribuir para a
construção (no sentido simbólico) da comunidade. Por este ângulo, acredito contribuir para o
enfrentamento da colonialidade do poder tecnocientífico não necessariamente alimentando
uma cadeia produtiva da indústria da construção como a única solução possível de moradia –
especialmente nesse momento, em que estão numa condição de provisoriedade.
Com esse curso que organizei na comunidade, tive a intenção de agregar aos saberes
construtivos com materiais reaproveitados existentes na comunidade (saberes sociotécnicos
possíveis na precariedade, ou a perícia popular), novos saberes que permitam incorporar mais
qualidade e respeito ao meio ambiente local (saberes sociotécnicos originados na universida-
de, mas compatíveis com esta condição de precariedade, que promovam melhores condições
de domínio dos parâmetros que regem o espaço construído). A precariedade que ao mesmo
tempo gera e recicla saberes populares na comunidade, quando aproximada dos saberes aca-
dêmicos, pode ser canalizada para um salto sociotécnico qualitativo. Um curso de capacitação
de melhoria dos saberes sociotécnicos existentes (como de melhor maneira utilizar os materiais
reaproveitados para produzirem melhor conforto térmico, acústico etc.) também desempenha-
ria um papel similar ao do curso que fizemos sobre a taipa, tirando o máximo de proveito das
técnicas por eles e elas utilizadas (possibilidades que nos ocorreram no meio do processo, mas
que ainda não tivemos tempo de realizar em termos de AST). A diferença entre a taipa e os ma-
teriais reaproveitados é que a terra é um material que serve tanto para o momento provisório
da ocupação quanto para o momento seguinte, com a consolidação das casas com financia- 161
mento público, quando houver. No caso do Bubas, isso faz toda a diferença: porque observa-se
que muitas das casas já levam em conta regramentos e exigências simples do código de obras
em suas melhorias imediatas (reformas, ampliações e a troca de materiais provisórios por per-
manentes com recursos familiares) antes da solução de financiamento por parte dos órgãos
públicos, de modo a evitar a perda do investimento feito em razão de uma desconformidade
com a legislação.
Esta é outra contribuição que identifico nesta experiência: a saber, que os trabalhos de
AST podem e devem iniciar-se antes da contratação da construção, da realização do projeto ha-
bitacional. Pode-se assim, contribuir para combater a colonialidade do ser tecnocientífico, uma
vez que desde antes da concepção do projeto de financiamento do conjunto habitacional já se
trabalha no sentido da revisão dos valores e das formas de existência urbana e das formas de
construir no seio desta comunidade. Ou seja, já se inicia um processo de desconstrução do racis-
mo e do desperdício de experiências num momento ideal, antes que está se consuma de fato.
Considerações finais
Como vimos, a autogestão abre a possibilidade de preparar condições para uma orga-
nização comunitária cujas bases de participação política sejam mais igualitárias e favoreça a
contínua desalienação do trabalhador. No limite, a prática da autogestão significa recompor o
sentido do trabalho como ferramenta e meio de criação do trabalhador. Só que para lidar com
esta “ferramenta” nesta direção política contra-hegemônica é necessário reprogramá-la tam-
bém do ponto de vista técnico para que ela opere em conformidade com esta direção. Se a AT
é prática complementar da autogestão, ela deve oferecer um instrumental técnico-científico
que amplie seu potencial crítico, revendo não apenas a gestão do ponto de vista administrativo
como também as práticas sociotécnicas das diversas fases de construção da moradia.
Nos projetos de extensão coordenados por mim, articulados com atividades de pesquisa
e de ensino, tenho buscado identificar e fortalecer formas alternativas de transformação políti-
ca tendo como base a intervenção na relação sociotécnica, promovendo a AST. Procurei mos-
trar aqui, portanto, que é possível canalizar os esforços de AT para uma efetiva AST, como o novo
horizonte de enfrentamento do capital. Apesar dos limites de minha experiência, que lidou
Espero ter mostrado que é necessário repensar o uso, no bojo de territórios contra-hege-
162
mônicos, das tecnologias e das práticas construtivas chamadas “convencionais”, pelo limite que
elas impõem aos processos de autonomia, como também à ecologia de saberes das práticas de-
senvolvidas nestes contextos. Mesmo na produção autogestionada da moradia, o silenciamento
de práticas e saberes construtivos locais pode ocorrer quando se adotam acriticamente as tec-
nologias construtivas hegemônicas. Amparado pela perspectiva decolonial, sugeri, portanto,
que há uma indissociabilidade entre os processos e as técnicas construtivos e a produção de
autonomia, de laços comunais e o respeito à pluriversalidade. Tal indissociabilidade precisa ser
ponderada pelo profissional da construção (arquitetos/as, engenheiros/as, mestres/as de obra
etc.) como mais um elemento fundamental na luta pela desmercantilização da moradia.
Referências
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no debería olvidar. La Habana: Editorial Félix Varela, 1999. 163
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VERÍSSIMO, C. e CUNHA, G.R. Assessoria técnica para paisagem e espaço exterior domés-
tico voltados à habitação, soberania alimentar e regeneração ambiental: Aldeia Itamarã,
Escola Indígena Araju Porã. Projeto de Extensão. Foz do Iguaçu: PROEX/UNILA, 2017a.
VERÍSSIMO, C. e CUNHA, G.R. Assessoria técnica para paisagem e espaço exterior domésti-
co voltados à habitação, soberania alimentar e regeneração ambiental: Ocupação Bubas,
Foz do Iguaçu. Projeto de Extensão. Foz do Iguaçu: PROEX/UNILA, 2017b.
165
Ensaios
166
Desenhando com
o subalterno1,2
Tradução:
Leo Name
¡DALE!, PPGLC / UNILA, PPGIELA / UNILA
1 O texto original em espanhol utiliza várias vezes os substantivos “diseño”, “dibujo” e “proyecto”, além dos verbos “diseñar” e
“dibujar”, de difícil tradução para o português. Como a palavra inglesa “design”, diseño faz referência, por um lado, as atividades
como conceber, planejar, organizar, propor e – somente quando necessário – desenhar. Por outro, à área de conhecimento e ao
campo de atuação profissional que abarcam tais atividades (que no Brasil costuma ser nomeada como “Design”). No entanto,
em português, raras vezes a palavra “desenho” refere-se a questões mais subjetivas relacionadas à concepção e à imaginação, na
maioria delas referindo-se ao resultado de ações com vistas a uma representação gráfica – o que, em espanhol, chama-se de dibu-
jo. Não é incomum traduzir-se diseño (assim como design) como “projeto”. No entanto, Freitez Carrillo também utiliza “proyecto”,
mas somente ao referir-se às soluções quando traduzidas sob a forma de peças gráficas específicas produzidas em um processo
dialógico com contratante ou pedreiro. Sendo assim, optei por utilizar projeto somente nessa situação (quando ele utiliza proyec-
to), “peça gráfica” para o que é a representação (dibujo) e desenho para o imaginado ou concebido (diseño) (Nota do Tradutor).
2 Este ensaio toma como base meu trabalho de conclusão de curso no Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Fe-
deral da Integração Latino-Americana intitulado Diseñar desde lo subalterno: lenguaje y representación gráfica en arquitectura,
defendido em 2018, orientado por Leo Name e coorientado por Karine Queiroz.
Ensaios
167
1. Manteremos
a árvore,
reformaremos
o jardim.
4. Testaremos a 5. A janela e a
paleta de cores porta existentes
escolhida sobre serão pintadas de
a fachada. amarelo.
6.Faremos uma
parede com janelas
recicladas.
7.Escolheremos
as plantas para o
jardim.
Elevações para a execução do trabalho
Reforma do banheiro
14.Instalar o lavatório.
Ferramentas de trabalho e outras coisas para narrar as ações
Fotocopiar, recortar e colar. As tipias podem combinar-se com outras imagens, fotografías, dese-
nhos e textos que facilitem a narrativa do projeto. Os objetos combinados com os personagens
indicam ações a serem executadas e materiais a serem utilizados.
Ferramentas de trabalho e outras coisas para narrar as ações
Fotocopiar, recortar e colar. As tipias podem combinar-se com outras imagens, fotografías, dese-
nhos e textos que facilitem a narrativa do projeto. Os objetos combinados com os personagens
indicam ações a serem executadas e materiais a serem utilizados.
Personagens: participantes do desenho
Você pode fotocopiar, recortar e colar. As tipias podem combinar-se com outras imagens, foto-
grafias, desenhos e textos que facilitem a narrativa do projeto e, além disso, não foram pré-con-
cebidas. Os personagens de tamanho maior são os protagonistas do relato.
Personagens: participantes do desenho
Você pode fotocopiar, recortar e colar. As tipias podem combinar-se com outras imagens, foto-
grafias, desenhos e textos que facilitem a narrativa do projeto e, além disso, não foram pré-con-
cebidas. Os personagens de tamanho maior são os protagonistas do relato.
Desenhando com o subalterno
174
As peças gráficas produzidas na arquitetura são imagens que também são instrumentos
de sedução estabelecidos como parte de um poder que não é coercivo. Pelo contrário, repre-
sentam o que o filósofo colombiano Santiago Castro-Gómez (2000) chamou de “poder libi-
dinal”: aquele que não “castiga e vigia”, mas que é interiorizado de tal maneira que as regras
anônimas que o regem não parecem imposições. Em verdade, essas peças gráficas seduzem
através de gramáticas visuais que fazem parte da “colonialidade arquitetônica” em suas três
instâncias: colonialidades do ser, do saber e do poder (FARÉS DELGADO e MATARÁN RUIZ, 175
2014). Também o fazem com base na “colonialidade do ver” que é própria dos regimes visuais
da modernidade (BARRIENDOS, 2008 e 2011).
Aí radica a importância do “giro decolonial” (cf. LANDER, 2005; QUIJANO, 1992; 2002;
[2000] 2005), que nos apresenta uma epistemologia própria que permite o trabalho com gru-
pos subalternizados e um desenho que pode ser mais consciente da gramática visual usada
para desenhar-se, sem comprometer sua autonomia e acionando conhecimentos situados
(HARAWAY, [1988] 2005). E mediante métodos que nos ajudem a iluminar os “espaços opa-
cos” (SANTOS, [1996] 2008) de modo a desfazer o “encobrimento do Outro” (DUSSEL, 1994).
De igual maneira, alinhado às ideias de Escobar (op. cit.), penso que as peças gráficas
mais usualmente produzidas em arquitetura desenham um só mundo e colaboram para o
silenciamento de outras formas de ser, saber e estar. Por isso, é necessário explorar outras gra-
máticas visuais que permitam repensar nossa implicação com o desenho, de modo a repre-
sentar-se o que normalmente não é representado – ou o que é subalternizado ou silenciado.
Em analogia ao que foi dito pela filósofa indiana Gayatri Spivak ([1985] 1998), penso que o su-
balterno usualmente não pode falar e tampouco desenhar, porque a seu lugar de enunciação
não é dado a possibilidade de domínio das linguagens da arquitetura, que também não são
tendentes a validar suas formas de vida, seus saberes construtivos e suas formas de organiza-
ção espacial. Em função disso, é necessário gerar e promover gramáticas mais acessíveis que
promovam codesenhos, verdadeiramente em diálogo com as pessoas.
Com base no conjunto teórico exposto aqui, em 2018 realizei uma série de imagens,
que apresento neste ensaio, e que fazia parte de um projeto feito em conjunto com Marizete
e Daniel, a contratante e o pedreiro de uma obra. Tratava-se da reforma de uma casa de ma-
deira, localizada no bairro da Vila A, em Foz do Iguaçu (Paraná), originalmente construída pela
empresa Itaipu Binacional na década de 1970, visando a sua conversão em um restaurante de
comida vegana.
As imagens que aqui apresento derivam das conversas com Marizete e Daniel. Em muitas
delas, durante mais de três meses, Marizete expunha seus receios sobre não querer um restau-
rante “branquinho ou cinza”, ou tampouco que tudo fosse demolido, incluindo as árvores. Além
disso, ela queria participar ativamente do projeto e de sua construção. Com Daniel, um momen-
to significativo ocorreu quando, já com a obra em curso, eu lhe mostrei a planta de construções
e demolições: percebi que apesar de toda a minha preocupação inicial em fazer o projeto me-
diante aquela planta que utilizava as convenções técnicas – vermelho para tudo que se constrói,
amarelo para tudo que se demole –, aquela peça gráfica precisou ser convertida em palavras: so-
mente conversando com Daniel, e não por meio da planta , é que o projeto pôde ser entendido.
Estas tipias foram usadas para relatar o projeto, isto é, para pensar as soluções junto a
Marizete e organizar o cronograma com o Daniel. Nas imagens, enumeraram-se as ações (res
gestae) a serem realizadas para reformar o banheiro da edificação. Também consta um calen-
dário (estrutura dos anais) para marcar, por exemplo, as horas de trabalho, as modificações do
cronograma ou as novas tarefas não previstas inicialmente. Estas vistas organizaram-se de ma-
neira sucessiva (res gestae), de modo a representar as modificações do projeto e os diferentes
trabalhos que precisavam ser realizados.
No entanto, para além de buscarem auxiliar nessa comunicação durante a obra, essas
peças gráficas também visavam a fazer visível a ação de cada participante, em enfrentamento
à colonialidade do ver que normalmente os invisibiliza. Cabe ressaltar que o tamanho das pes-
soas em cada um dos desenhos depende do protagonismo que elas têm nas tarefas a serem
desempenhadas. E se eu sempre me autorretratei, também o fiz sempre dialogando com os
demais participantes do processo de projeto.
Nessas peças gráficas, ainda, preferi as imagens de vistas e elevações no lugar de plantas
baixas: por serem as primeiras menos abstratas que as segundas e, também, por representa-
rem um ângulo de visão sobre as paredes mais relacionadas com o nosso. Os materiais de cons-
trução também foram desenhados e sobre eles puderam ser feitas anotações.
177
Finalmente, as tipias aqui publicadas podem ser cortadas e reproduzidas livremente, de
modo a ajudarem a construir outras narrativas de projeto.
Referencias
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Paulo: Editora 34, 2012.
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miento detrás del acontecimiento fotográfico. Calle14: revista de investigación en el campo
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SPIVAK, G.C. ¿Puede hablar el sujeto subalterno? Orbis Tertius, v. 3, n. 6, (1985) 1998.
179
Gritos em muros
e em marcha
no Chile
Fran Rebelatto
Cinema e Audiovisual / UNILA
Ensaios
181
Se hoje, por essas mesmas calles chilenas, há um silêncio abrutpo ocasiado pela pan-
demia da Covid-19, quando lá estive em fevereiro de 2020 ainda era possível marchar ao lado
de milhares de jovens, mulheres, cidadãos daquele país que não conseguiam mais esconder o
descontentamento com as contradições das políticas neoliberais.
197
Fran Rebelatto
198
Resenhas
199
Resenhas
200
‘As cores da
masculinidade’,
de Mara Viveros
Vigoya
Isaac Palma
PPGA / UFF, ¡DALE!
Ensaios
201
Foto: Fran Rebelatto. Havana, Cuba
202
Resenhas
Na entrada do evento havia o aviso de que a palestra seria em inglês e, portanto, quem
desejasse deveria pegar os aparelhos para tradução simultânea. Assim o fiz. Com a voz tranqui-
la, em um inglês aparentemente compreensível, Mara Viveros Vigoya disse que naquela noite
faria sua exposição em espanhol e não em inglês (língua oficial do evento), como era esperado,
demonstrando um esforço em ser compreendida por quem fala português. Estávamos no sul 203
global, no Brasil, e para ela falar em inglês naquele ambiente, para ela, seria incompatível. O au-
ditório estava cheio. Esperei os tradutores concluírem a tradução nos meus fones desajeitados
para juntar-me aos demais que a aplaudiram. O seu gesto foi acompanhado de outros. Junto
com uma parte representativa da plateia, retirei meus fones, outra parte os colocou. Esses ges-
tos, aparentemente simples, encenavam o giro proposto pela antropóloga, não apenas em sua
palestra mas em seu trabalho.
Essa cena de gestualidades ocorreu no congresso da IUAES1 Brasil, em 2018. Isto é, acon-
teceu em um congresso internacional que reuniu antropólogos e antropólogas de diversos lu-
gares do mundo. Esse evento foi o qual me apresentou o trabalho de Mara Viveros Vigoya. Vi
o nome dela entre as pessoas convidadas para uma das principais conferências do evento. Ao
buscar informações sobre as pessoas que iriam palestrar, deparei-me com algo que me desper-
tou interesse: a surpresa era o fato de ela ser uma mulher, negra e colombiana. Esse interesse
está profundamente alicerçado em um sentimento explicado por experiências de ausência.
Nos diversos eventos de antropologia em que participei e/ou acompanhei nos últimos oito
anos, esse foi o único no qual vislumbrei essa situação. Na realidade, o mais comum foi acom-
panhar homens e/ou pessoas brancas nessa posição. Esse sentimento de ausência não é algo
disseminado entre antropólogos no Brasil. Ao contrário, é uma ausência naturalizada, mas que
vem sendo nos últimos anos problematizada e denunciada por docentes, estudantes e pesqui-
sadoras/es negras e negros, nos quais me incluo.
Considero fundamental ressaltar esses aspectos como forma de localizar o livro aqui re-
senhado em um contexto de significação específico. Conforme vem sendo proposto em di-
ferentes produções feministas, o conhecimento localizado e/ou situado tem aparecido como
uma alternativa bastante propositiva.2 Essa perspectiva tem endereçado críticas às formas de
construção de conhecimento que insistem na não localização como forma de legitimação de
um saber científico que se coloca como universal. Nesse sentido, situar/localizar/posicionar um
texto é justamente uma forma de visibilizar as condições de possibilidade e os pontos de vista
contidos em um trabalho.
1 International Union of Anthropological and Ethnological Sciences. O congresso foi realizado em 2018 na Universi-
dade Federal de Santa Catarina.
2 Considero o texto de Donna Haraway ([1986] 1995) um marco na sistematização desse debate em termos científi-
cos. Embora seja possível apontar outros caminhos, esse texto surge constantemente atravessando perspectivas. As
ideias de Donna Haraway remetem sobretudo a uma ciência parcial, mas nem por isso menor. Talvez, como a autora
pontua, menos poluída da presunção absoluta do olhar que só é possível a homens brancos europeus.
Isaac Palma
As cores da masculinidade
Tal operação não é simplesmente uma construção teórica, mas está correlacionada às
posições sociais daquela ou daquele que produz o conhecimento. Essa é uma forma de rela-
cionar conhecimentos com pontos de vista acessíveis por experiências sociais diferentes. Dizer
isso não é o mesmo que dizer que os lugares sociais definem pontos de vista, mas que pontos
204 de vista estão imersos em posições sociais. Considerações como essas têm sido fundamentais
na forma como feministas negras têm exposto seu pensamento. Patricia HIll Collins (2016)
argumentou, ainda no final dos anos de 1980, que o pensamento de mulheres negras poderia
acrescentar novas formas de observar a sociedade, já que essa perspectiva esteve majoritaria-
mente ausente. É com essa característica que Mara Viveros Vigoya posiciona seu livro.
O livro de Mara Viveros Vigoya é um texto habilmente posicionado. O livro foi escrito origi-
nalmente em espanhol colombiano, língua que “conserva a marca das lutas travadas na Nossa
América para se apropriar do sentido de sua própria história” (p. 177). Nesse sentido, ela posi-
ciona o texto como parte de diversas lutas. Principalmente, a da descolonização, a antirracista e
a feminista. A partir dessa escrita em espanhol, o livro foi traduzido no mesmo ano (2018) em
francês e em português – publicado no Brasil pela editora Papéis Selvagens. Um dos lançamen-
tos do livro aconteceu no evento narrado no início de meu texto e no qual foi tive o primeiro
contato com o trabalho.
Eu me nomeio assim, não por ser filha de um homem “negro” e uma mulher
“branco-mestiça”, mas por ter me posicionado política e subjetivamente deste
modo, consciente do efeito que podem ter, sobre a vida social e pessoal, os dis-
cursos sobre raça e etnicidade que circulam na Colômbia e que são objeto de
minha reflexão neste livro. [...] Assim minha própria relação com a negridade e
a mestiçagem carrega a marca da trajetória desses conceitos (p. 27).
Outro posicionamento que vale destacar aqui é o construído através do conceito de Nos-
sa América, que aparece no título do livro e ganha, em alguns trechos, uma centralidade bas-
tante significativa no argumento da pesquisadora – relacionada ao questionamento de uma
ideia de América Latina como definidora das experiências vivenciadas em determinados terri-
tórios das Américas. Para Viveros Vigoya, a América Latina definiria a experiência desses terri-
tórios a partir da importância do controle espanhol e/ou português. Justamente esse ponto faz
com que sejam invisibilizadas as experiências negras e indígenas em detrimento daquela “lati-
na”. Para contrastar com isso, ela recorre a um dos discursos do intelectual cubano José Martí,
que reivindicou uma Nuestra América em contraposição não apenas ao domínio europeu mas
a nascente presunção estadunidense em ser “a América”:
Partindo desse referencial, ela utiliza a ideia de interseccionalidade como conceito analí-
tico – ideia construída, gestada e sintetizada entre os feminismos negros e/ou de mulheres não
brancas. No sentido utilizado por Viveros Vigoya, a análise interseccional é mais do que uma
metáfora gráfica, é uma “forma de leitura das desigualdades sociais” (p. 23). Dessa forma, a
preocupação recai sobre a distribuição desigual do poder e dos recursos. Para ela, uma análise
interseccional permite um ponto de vista interessante sobre questões de masculinidade por le-
var em conta diferentes arranjos situacionais, considerando fatores como raça, classe, território,
nação, sexualidade, identidade de gênero etc.
Por falar em masculinidades, embora esse seja, de certa forma, o ponto culminante do
livro, ou ao menos aquele que tem certo destaque na construção argumentativa, ele não é
apresentado de maneira isolada. Esse aspecto é consequência direta dos posicionamentos an-
teriores da autora. A explicitação do caminho dela até a discussão sobre masculinidades, muito
embora esteja de maneira direta na introdução, permeia todo livro. Como uma mulher que é
parte do campo de estudos de gênero, Viveros Vigoya empreendeu um tempo considerável de
suas pesquisas na compreensão das relações de gênero a partir da experiência feminina. Entre-
tanto, a percepção de uma lacuna levou-a para esse campo ainda pouco explorado.
Mas o que os feminismos ou as autoras feministas têm a contribuir sobre esse tema?
Essa é uma pergunta que, ainda que ela busque responder de maneira direta, ajuda-me
interpretativamente a entender o caminho e, ao menos em parte, a trajetória argumentativa da
autora. O livro é dividido em duas partes. A primeira poderia ser qualificada como uma revisão
bibliográfica, na qual a autora apresenta diversas contribuições nos estudos sobre homens e
masculinidades, primeiro entre autoras e autores europeus e estadunidenses (capítulo I). De-
pois, há uma revisão bibliográfica do que tem sido produzido sobre o tema na Nossa América
(capítulo II). Para além de um percurso meramente descritivo de um campo, esses dois capí-
tulos fazem parte da argumentação. Eles servem a uma estrutura argumentativa posicionada.
Em ambos os capítulos ela insere os estudos sobre masculinidades a partir dos estudos femi-
nistas, e nisso há uma diferença profundamente alicerçada num pensamento político de des-
construção das opressões. O posicionamento explícito e parcial da autora advoga por uma des-
naturalização das características opressoras das masculinidades vigentes. Para ela, não basta
indagar as masculinidades, é preciso colocá-las em questão a partir de uma estrutura relacional
de gênero da qual fazem parte.
Isaac Palma
As cores da masculinidade
Nesse sentido, o estudo de homens e/ou masculinidades de maneira isolada tem sério
risco de naturalizar posições socialmente construídas. De certa forma, esse risco está alicer-
çado em uma não visualização das relações de gênero como estruturantes das masculinida-
des. Viveros identifica parte dos trabalhos sobre masculinidades como “masculinismo teórico”
206 ou simplesmente “masculinistas”. Esses trabalhos acabam configurando trajetórias de gênero
como naturais e/ou ignorando teorias feministas que, para ela, são fundadoras da análise da
situação de gênero envolvendo homens. A partir disso, ela interage com diferentes vertentes
e perspectivas feministas que têm optado por levar a frente empreendimentos que tenham
como objeto de análise as masculinidades. Neste primeiro capítulo, o diálogo mais evidente
está relacionado às teorias que interseccionam gênero com outras características sociais. E é
nelas que ela se concentra para seguir seu argumento.
No segundo capítulo, Viveros Vigoya destaca que grande parte dos trabalhos nossoame-
ricanos sobre homens e masculinidades têm dado uma importância central aos desenvolvi-
mentos feministas, sendo que, segundo a autora, na Nossa América, “os estudos sobre homens
e masculinidades foram iniciados por mulheres provenientes do feminismo” (p. 61). Também
os trabalhos escritos por homens, que entraram posteriormente no campo, tiveram uma in-
fluência bastante demarcada de aspectos dos debates de gênero propostos por feministas.
Esse aspecto outorgou uma característica muito própria a esses estudos na região.
De toda maneira, neste capítulo Viveros Vigoya apresenta um panorama bastante insti-
gante da produção nossoamericana, perpassando por temas e perspectivas diferentes. Pare-
ce-me importante destacar que, neste espaço, a autora se aproxima de trabalhos que tomam
como parte da reflexão os contextos coloniais, político-institucionais, econômicos e étnico-ra-
ciais, entre outros.
Dessa forma, no capítulo III, Viveros Vigoya analisa discursos sobre os corpos masculinos
negros na Colômbia, tanto a maneira como essas ideias foram se constituindo historicamente
quanto como homens negros têm articulado discursos próprios sobre seus corpos. Nesse sen-
tido, a antropóloga remete diretamente à discussão de Frantz Fanon sobre a forma como os
corpos negros são fixados pelo olhar branco, que ela chama de um “modelo centrado na pele” 207
(p. 126). Para além disso, Viveros Vigoya se preocupa com a forma como esses discursos, que
produzem estereótipos, são ressignificados na recepção e na prática desses homens negros:
ao invés de apenas serem fixados por olhares brancos, eles concebem discursos a partir de seu
próprio corpo que celebram os atributos que deveriam diminuí-los desde fora, considerado um
modelo “centrado na carne” que remete a sensações do corpo negro.
Por fim, no quinto capítulo, Viveros Vigoya indaga sobre a identificação da violência e
do machismo com os homens dos países nossoamericanos. Diversas mudanças em diferentes
países têm questionado uma série de práticas naturalizadas. A violência contra as mulheres,
especialmente em casos de feminicídio, nesses cenários tem sofrido alterações profundas em
sua representação pública. A legitimidade das pautas feministas e dos avanços dos direitos das
mulheres têm recebido diversas reações por parte dos homens. Mas Viveros Vigoya insiste que
a violência machista não pode ser explicada por aspectos meramente culturais, como se fos-
sem traços dos homens desses países. Para isso, a pesquisadora analisa as formas como a vio-
lência (não só machista) se apresenta nos diversos contextos dos diferentes países. Além disso,
intersecciona múltiplas dimensões como o colonialismo, a colonialidade, o racismo, o sistema
econômico neoliberal, a dominação masculina e as violências advindas dos contextos aos quais
alguns homens também estão expostos. Sem absolver as violências, Viveros Vigoya interroga
esses discursos naturalizados, buscando também visibilizar “masculinidades outras”, que não
só não estão associadas à violência da dominação, mas também às condicionantes heteronor-
mativas ou centrados em um gênero específico.
Isaac Palma
As cores da masculinidade
tivo que o primeiro espaço que encontrei possibilidade de apresentar e ler esse livro foi há um
ano atrás em um grupo de estudos autônomo (sem nenhuma ligação institucional) e compos-
to majoritariamente por mulheres. São esses os espaços nos quais, de maneira mais incisiva,
têm circulado alguns materiais que aí encontram interpretações mais relevantes.
208
Para além das sensações e sentimentos de ausência com os quais comecei esse texto,
há “espaços-outros”, que já estão em andamento, cabendo aos pesquisadores e pesquisadoras
visibilizar e viabilizar tais espaços e reflexões.
Referências
HARAWAY, D. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da
perspectiva parcial. cadernos pagu, n. 5, p. 7-41, (1986)1995.
209
210
‘Un mundo
ch’ixi es posible’,
de Silvia Rivera
Cusicanqui
Patrícia Lânes
¡DALE!, PPCIS/UERJ
Ensaios
211
Foto: Fran Rebelatto. Otavalo, Equador
212
Resenhas
Escrevo este texto no primeiro semestre de 2020, na região metropolitana do Rio de Ja- 213
neiro, sudeste do Brasil, durante a quarentena estabelecida devido à COVID-19 enquanto auto-
ridades do sul e do norte globais discutem as melhores estratégias para lidar com a pandemia.
Um dos poucos consensos é que vivemos uma crise sanitária. Como é comum em momentos
em que crises se instalam e se agravam em países do norte global, muitas pessoas passam a
prestar mais atenção àquilo que vem sendo dito há tempos (dezenas, centenas de anos?) por
aquelas e aqueles para quem crises nunca deixaram de existir, para os quais o fim do mundo já
aconteceu várias vezes.1
Esse foi o contexto do meu primeiro encontro com este livro e com o pensamento da
ativista, antropóloga e socióloga boliviana (de ascendência aimará e europeia) Silvia Rivera
Cusicanqui. Dele me aproximei trazendo essa experiência ainda em curso e interpretações (pro-
visórias e incompletas) sobre a mesma. Busco, portanto, e mais do que nunca, compreender se
é possível um outro mundo.2 Cusicanqui nos convida já no título de sua publicação a pensar
“Um mundo ch’ixi posible” e situa os ensaios que compõem o livro em um “presente em crise”.3
Com textos que partem de falas realizadas por ela (sobretudo em universidades de diferentes
países, sobretudo da América Latina) entre 2011 e 2016, a autora reflete de forma crítica e
contundente a partir das tensões e conflitos na Bolívia que antecederam e sucederam a chega-
da de Evo Morales e do MAS (Movimento para o Socialismo) à presidência do país. A crise que
vivemos em 2020 pode ser outra, mas não está desconectada daquelas sobre as quais Silvia
Cusicanqui nos convoca a refletir.
A autora faz coro com outras pensadoras e pensadores de variadas origens que trazem
a dimensão do passado para pensar e habitar o presente. Propõe, assim como Ailton Krenak
(2019, 2020) e outras e outros, que as experiências do sul global em sua diversidade e comple-
xidade sejam seriamente consideradas na construção de novos mundos a partir de epistemolo-
gias que nunca deixaram de existir, mas que têm sido sistematicamente apagadas, silenciadas
e historicamente tratadas como objeto de curiosidade, estudo e disputa política a partir de um
olhar colonial centrado em um ideal nunca cumprido de modernidade.
1 Faço aqui referência ao livro Ideias para adiar o fim do mundo, de Ailton Krenak, importante liderança indígena do
povo Krenak. O livro foi publicado em 2019 e desde o início da pandemia, o autor vem sendo convidado para apresen-
tar suas ideias em debates virtuais (lives), tendo publicado um segundo livro a partir de suas reflexões e falas públicas
sobre a pandemia, O amanhã não está à venda (2020), que foi distribuído gratuitamente em plataformas digitais.
2 Aqui minha referência é não apenas ao título do presente livro, mas ao lema do Fórum Social Mundial (Um outro
mundo é possível), que teve sua primeira edição em Porto Alegre, nos idos de 2001. O evento reunia movimentos so-
ciais do Brasil e de vários países vizinhos e do mundo, além de pensadores e políticos “de esquerda”, contrapondo-se
ao Fórum Econômico Mundial que acontecia anualmente em Davos, na Suíça. Em sua carta de princípios, colocava-se
como “um espaço internacional para reflexão e organização de todos os que se contrapõem à globalização neoliberal
e estão construindo alternativas para favorecer o desenvolvimento humano e buscar a superação da dominação dos
mercados em cada país e nas relações internacionais” (http://forumsocialportoalegre.org.br/forum-social-mundial).
3 O livro encontra-se disponível em espanhol. Trechos incorporados à resenha foram livremente traduzidos por mim.
Patrícia Lânes
Un mundo ch'ixi es posible
Como já foi mencionado, o livro – publicado como parte da Colección Nociones Comunes
da iniciativa editorial coletiva e autogestionada Tinta Limón da Argentina, em 2018 – é expres-
são de uma parte dos deslocamentos de Silvia Rivera Cusicanqui para apresentar seu trabalho
de várias décadas em universidades latino-americanas e europeias. Além da maior parte dos
214 capítulos ser fruto de falas públicas, aparecem também no livro experiências outras da autora,
como seu envolvimento nas mobilizaçãoes de 2000-2005 em El Alto, Bolívia; na Marcha Indí-
gena pela Paz (ou “Marcha de las Flores”), em Bogotá, Colômbia, em 2016; ou sua participação
ativa em coletivos que articulam produção de conhecimento e engajamento político-social (es-
pecialmente o THOA – Taller de História Oral Andina, El Colectivo e Colectivx Ch’ixi), além de sua
colaboração no processo da recente constituição boliviana.
Muitas das ideias trabalhadas pela autora ao longo dos textos são fruto do que estou
chamando de encontros de diversas naturezas. O político, sociólogo e filósofo boliviano René
Zavaleta Mercado (fundamental para o desenvolvimento das ciências sociais na Bolívia); a psi-
canalista e professora brasileira Silvia Rolnik; a crítica e teórica pós-colonialista indiana Gayatri
Spivak; o pensador europeu Walter Benjamin; o escultor Víctor Zapana e o cronista de ascen-
dência inca Waman Puma (ou Felipe Guaman Poma de Ayala, cujas gravuras são determinan-
tes para o trabalho de Cusicanqui) são alguns dos que aparecem com grande relevo.
Mas o que é o ch’ixi? O ch’ixi pode ser “um modo de não buscar a síntese, de trabalhar
com e na contradição, de desenvolvê-la, na medida em que a síntese é o desejo de retorno ao
Uno” (p. 83).4 A tradução da palavra para o português significa cinza. E poderíamos parar por
aí. Mas o que a autora propõe é que olhemos de novo, pois está falando de algo que de longe
enxergamos como cinza, mas, ao nos aproximarmos, notamos que é feito de pontos de cores
puras e agônicas: manchas brancas e manchas pretas entrelaçadas. Para a população aimará,
o ch’ixi está presente como tecido ou marca corporal. Ele distingue certas figuras ou entidades
“nas quais se manifesta a potência de atravessar fronteiras e encarnar polos opostos de manei-
ra reverberante” (p. 79). Algumas pedras (e o encontro com o escultor aimará Victor Zapana é
convocado para essa explicação) são ch’ixi. Delas saem animais poderosos, porque indetermi-
nados, porque não são brancos, nem negros; as entidades ch’ixis são poderosas porque são as
duas coisas ao mesmo tempo.
É a partir dessas ideias que Rivera Cusicanqui e o Coletivx Ch’ixi irão, para além de com-
preender os usos pragmáticos desse e de outros conceitos aimarás, converter alguns deles no
que chama de “conceitos-metáfora” (citando Spivak), “no esforço de restituir seus níveis abstra-
tos e hermenêuticos, seus níveis teóricos. Fazíamos de maneira que pudéssemos imaginar ou-
4 Em outro momento do livro, Cusicanqui faz a importante distinção entre contradição genuína (nos termos de Ernst
Bloch) e contradição inautêntica. Enquanto, no primeiro caso, fala-se de uma “dificuldade de fundo que se vive na mo-
dernidade para usar as palavras com dotacões simbólicas particulares que permitam às sociedades con-viver e repro-
duzir a vida”; no outro, a contradição expressaria “o uso das palavras encobridoras, a paródia do conhecimento, o uso da
uma bagagem simbólica índia e feminina como ferramenta de consolidação de novas e velhas elites no poder” (p. 100).
tros modos de pensar, tendo como base a polissemia de cada conceito” (p.147). Aqui a “fetichi-
zação de conceitos”, o uso das palavras como “cortina de fumaça”, ou seja, como incapazes de
ir além da persistência de ideias e práticas coloniais, é confrontada a partir de epistemologias
para as quais as memórias em suas diferentes expressões têm lugar central.
215
Uma das crises a que a autora se refere é a epistemológica, a crise da produção de conhe-
cimento. Mas ela não é uma crise solitária, sem laços e lastros. Ao contrário, como demonstra
a autora, esse “sistemático bloqueio e confusão nos processos de conhecimento” (p. 93) rela-
ciona-se ao modo de fazer e analisar práticas e processos políticos. Questionar, por exemplo,
ideias como “progresso” e “desenvolvimento” (centrais nos projetos políticos de governos pro-
gressistas latino-americanos que estiveram no poder desde o início dos anos 2000) articula-se,
na proposta de Rivera Cusicanqui, à “reconstituição de uma episteme índia ancestral” (p. 97). A
autora apresenta a epistemologia ch’ixi como “esforço por superar o historicismo e os binaris-
mos da ciência social hegemônica, lançando mão de conceitos-metáfora que ao mesmo tem-
po descrevem e interpretam as complexas mediações e a constituição heterogênea da nossa
sociedade” (p. 17).
Uma das críticas mais contundentes realizada ao longo dos textos do livro dirige-se à
captura da “diversidade” por esquemas normativos variados e sobrepostos (capitalismo, mo-
dernidade, estado). O colonialismo é formulado pela autora como “uma estrutura, um ethos e
uma cultura que se reproduzem dia a dia em suas opressões e silenciamentos, apesar das su-
cessivas tentativas de transformação radical que proclamam as elites político/intelectuais, seja
em versão liberal, populista ou indigenista/marxista” (p. 25). Cusicanqui reconhece (e denun-
cia) a condição colonizada das elites político-intelectuais (p. 27), apontando o uso de palavras
(como “movimento social”, “nação” e “território”, por exemplo) como “penumbra cognitiva” que
contribuiu para que essas elites ocultassem divórcios e contradições. As ideias e as palavras que
expressam não podem ser descoladas dos processos que as produzem.
A constituição boliviana, que foi a culminação textual de uma larga gestação coletiva do
qual Silvia Rivera Cusicanqui fez parte, não expressou uma ruptura com práticas coloniais histori-
camente enraizadas na sociedade, especialmente em suas novas e velhas elites (políticas, econô-
micas e intelectuais). A busca pela modernização e pelo desenvolvimento continuou a ser centro
de um projeto de nação pautada em unidade (construída também em torno de uma “identi-
dade boliviana”) e a serviço de determinados setores e interesses (como o setor cocaleiro e o
capital estrangeiro) em detrimento de outros, muitos deles não só presentes, mas estruturantes
no novo texto constitucional, como a alteridade cultural, a autonomia indígena e popular e o re-
conhecimento da natureza para além de seu potencial como recurso econômico a ser explorado.
O ch’ixi, na proposta de Silvia Cusicanqui e seu coletivo, contribui para se pensar a “ideo-
logia oficial da mestiçagem” que postula uma “confluência harmônica do povo, o espanhol e
Patrícia Lânes
Un mundo ch'ixi es posible
o índio, que daria lugar a essa fusão imaginária”5 (p. 143). De acordo com Cusicanqui, nessa
operação maniqueísta a natureza da mistura é evitada e tacitamente se assume um dominante
branco. Ou seja, o resultado da mistura sempre se dá em relação ao embranquecimento/desejo
não cumprido de embranquecimento. A política hegemônica e oficial de mestiçagem opera,
216 portanto, como política de esquecimento, tendo como base o “apagamento da contradição”.
Nas palavras da autora, “não se vê o cholo como um espaço de afirmação de alteridade, como
a dizer ‘somos ao mesmo tempo modernos e ancestrais, somos urbanxs, urbandinxs. Somos
cholxs!’” (p. 144).
É para o cotidiano que Silvia Cusicanqui propõe olhar a partir dessa perspectiva mais
“de baixo”, na qual “identidades ch’ixi e negociações identitárias ch’ixi” vão na contramão da
homogeneização forçada, aquela que também se constituiu no processo de construção do Es-
tado Plurinacional da Bolívia. A autora chama a atenção para olhar a identidade não como algo
limitado em um mapa, mas como um “tecido de intercâmbios”, como um contínuo processo de
devir/tornar-se, um tecido feminino que se contraporia a uma versão masculina de identidade,
essencialista, moderna e multicultural, ou seja, uma identidade “como questão de minorias: o
território étnico, o espaço circunscrito e cercado por fronteiras, emblematizado em símbolos e
signos corporais” (p. 126).
Para a autora, as alternativas estiveram, desde o início, fossem elas mais ou menos arti-
culadas à macropolítica, no micro, no cotidiano, na vida daquelas e daqueles que seguem habi-
tando e construindo as brechas, as contradições, habitando e construindo o ch’ixi. A oralidade e
as memórias dos corpos andinos são tomados para se compreender vivências e emoções que
acompanham o ato de pensar em outros “contextos epistemológicos”. Em aimará, pensar e co-
nhecer podem ter dois significados: “em primeiro lugar, lup’iña, pensar com a cabeça clara, que
vem da raiz lupi, luz do sol”, seria aquilo que associaríamos ao racional. O outro modo de pensar
seria o amuyt’aña. Ele está no chuyma, que de acordo com a autora pode ser traduzido como
coração, mas que não seria apenas isso (chama a atenção para o perigo das traduções simples
e apressadas), seriam então “as entranhas superiores, que incluem o coração, mas também os
pulmões e o fígado, quer dizer, as funções de absorção e purificação que nosso corpo exerce
em intercâmbio com o cosmos. Poderia se dizer, então, que a respiração e a batida (do cora-
ção) constituem o ritmo dessa forma de pensar” (p. 121). Essas outras dimensões possíveis do
pensar fazem parte das “múltiplas memórias que habitam as subjetividades (pós-)coloniais em
nossa zona dos Andes, e que se expressam também no terreno linguístico” (p. 121). Os proces-
sos de dominação são, nesse sentido, formas de silenciamento sistemático não apenas do que
continua a ser dito e feito, mas também de como as coisas são feitas, ditas, pensadas.
As memórias de que fala Cusicanqui, assim como as identidades, não estão aprisionadas
nem em algum lugar, nem em algum tempo. Na episteme indígena reside o diálogo com e o
5 A mestiçagem é bastante central para a construção da ideia de “identidade nacional”, na Bolívia e em diversos
outros países na América Latina. Basta recordarmos da relevância dos mitos da “democracia racial” e da “miscigena-
ção”, no Brasil, e do impacto que ainda têm em nossa formação e experiência como sociedade.
reconhecimento de sujeitos não humanos. Nela, os mortos vivem e transitam entre mundos.
A comunidade, a comunalidade, a tendência a criar comunidade, nem sempre herdada, mas
que pode ser pensada a partir de “afinidades de gesto”. “Se dizemos que ‘descolonizar é fazer’,
em nossa Colectiva fazemos esse gesto “não, não falaremos de descolonização, mas faremos,
faremos o possível para nos aproximarmos dessa prática” (p. 151). Uma das questões que per- 217
meiam todos os textos que compõem esse volume, como parte necessária da crítica à socieda-
de colonial, é a lacuna entre as palavras e os atos. Esse seria um “traço primordial e fundante da
sociedade colonial” (p. 151).
O ch’ixi não é, portanto, síntese, nem mediação, não é conciliação de opostos, muito me-
nos hibridização ou fusão. Os opostos são mantidos e, para ela, o “gesto descolonizador” con-
sistiria em “resgatá-los dos envoltórios capitalistas, consumistas e alienantes a que a história do
capital os condenou; o liberalismo, o multiculturalismo estatal e do Banco Mundial, o reformis-
mo etc” (p. 148). Assumir o ch’ixi é assumir cotidianamente contradições (entre comunidade e
pessoa individual; entre particular-universal e o jiwasa, o nós como quarta pessoa do plural) e a
questão não está em como superá-las mas em como habitá-las: “Para mim isto se faz possível
através da alegoria: por uma poiesis autoconsciente capaz de criar condições de pleno respeito
à pessoa individual sem por isso minar ou diminuir a força do comum” (p. 151). O ch’ixi, nesse
sentido, pode ser pensado como aposta ética, teórica e metodológica que nos desafia a superar
o pensamento que busca a unidade, a síntese, abrindo caminhos possíveis para que sejamos
capazes de enxergar o múltiplo, o indeterminado, aquilo que pode ser mais de uma coisa ao
mesmo tempo.
O livro de Silvia Rivera Cusicanqui, publicado em 2018, não teve até o momento uma
tradução para o português. A Tinta Limón, responsável por esta e outras publicações da autora
ao longo dos últimos anos, estabeleceu alguns convênios com pequenas editoras brasileiras
para publicação de autores e autoras que propõem ideias e análises da realidade latino-ameri-
cana da qual nós, brasileiras e brasileiros, fazemos parte – ainda que tendamos a voltar nossas
atenções para a produção do norte global. O pensamento aimará, da forma como trabalhado
por Cusicanqui, torna ainda mais evidente de que circuitos editoriais e de produção de conhe-
cimento necessitam circular de forma menos verticalizada, mostrando como o conhecimento
de outras epistemologias dialoga com a construção de outras formas de pensar e viver em
sociedade.
Referências
KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
KRENAK, A. O amanhã não está à venda. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
Patrícia Lânes
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Epistemologias do Sul: Pensamento Social e Político em/para/
desde América Latina, Caribe, África e Ásia é um periódico onli-
ne de publicação semestral do grupo de pesquisa homônimo li-
gado à Universidade Federal da Integração Latino-Americana em
Foz do Iguaçu/PR. Seu objetivo é divulgar estudos e investigações
sobre ou desde o pensamento social e político latino-america-
no, caribenho, africano e asiático, promovendo o diálogo Sul-Sul.
ISSN 2526-7655
ISSN 2526-7655