Psicologia Escolar em Busca de Novos Rumos PDF
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- Introdução 13
Marilene Proença Rabello de Souza
Adriana Marcondes Machado
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PREFÁCIO
sociedade de classes seria justa se cada um ocupasse o devido lugar, em função de suas
capacidades pessoais, projeto que tinha na identificação dos mais e dos menos aptos à
escolarização uma peça fundamental. De outro lado, a
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década foi decisiva na redefinição dos objetivos da Psicologia Escolar que alguns
docentes do Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento
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pedia outras soluções; numa terceira fase, Ronilda Ribeiro, Ana Maria Curto Rodrigues
e eu percebemos que só poderíamos desenvolver um trabalho mais conseqüente,
duradouro e ético se déssemos início ao atendimento efetivo de umas poucas unidades
escolares, nas quais os alunos do curso de graduação em Psicologia realizassem a cada
ano o seu estágio, sem que sua passagem necessariamente transitória pela escola
implicasse em descontinuidade ou término dos trabalhos, o que vinha tornando, com
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razão, o pessoal docente e administrativo das escolas cada vez mais refratário à presença
de estagiários. Dizendo de outro modo, um dos papéis da Universidade — a prestação
de serviços à comunidade — poderia ser mais eficientemente cumprido se criássemos
frentes de trabalho, postos avançados de ação dos docentes encarregados no IP-USP do
conjunto de disciplinas relativas à Psicologia aplicada à escola. Mas éramos três, com
várias outras atividades no Departamento, e os alunos, setenta a cada ano letivo. Era
preciso juntar a nós outros psicólogos que possibilitassem a abertura desse novo espaço
de teoria e prática: é então que se forma o grupo que hoje traz a público alguns
resultados das experiências e reflexões realizadas no Serviço de Psicologia Escolar nos
últimos dez anos.
Adriana Marcondes Machado, Beatriz de Paula Souza, Cintia C. Freller e Yara Sayão
são, para a burocracia institucional, “técnicas de apoio ao ensino e à pesquisa”. Na
verdade, elas são muito mais que isso: jovens e capazes, poderiam estar comodamente
instaladas em seus consultórios particulares, mas escolheram, apesar da má
remuneração, a militância do trabalho em escolas públicas situadas nos bairros pobres
da cidade de São Paulo. Maria Cristina Machado Kupfer e Marilene Proença Rebello de
Souza, embora na categoria um pouco menos desconfortável de docentes, não aceitaram
o ensino rotineiro e a produção acadêmica quantitativa, preferindo o desafio da
intervenção numa escola pública maltratada e da criação de propostas profissionais
inovadoras.
Todas elas conhecem a fundo a realidade das escolas para o povo, sucateadas nos
países latino-americanos; todas elas sabem que só é possível entender o que nelas se
passa referindo-as à realidade social que as inclui; todas elas estão cientes dos limites
impostos pelas condições históricas atuais a qualquer projeto transformador da escola;
no entanto, mesmo sabendo que a Psicologia não tem o poder onipotente de fazer das
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Além do relato de intervenções que vem realizando e das reflexões que elas suscitam,
o grupo decidiu incluir nesta publicação um capítulo sobre método de pesquisa e o
relato de uma investigação realizada por duas jovens alunas do curso de graduação na
época — Jaqueline Kalmus e Renata Paparelli —, que elegeram como objeto de atenção
um aspecto tão importante quanto desconsiderado pelos que pesquisam
burocraticamente o problema do fracasso escolar: as marcas deixadas
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pela escola em crianças às quais foi vedada uma experiência escolar bem-sucedida.
Cristina Kupfer resume bem o que concluo ser a linha atual do trabalho desenvolvido
no Serviço de Psicologia Escolar do Instituto de Psicologia da USP: “Os discursos
institucionais tendem a produzir repetições, mesmice, na tentativa de preservar o igual e
garantir sua permanência. Contra isso, emergem vez por outra falas de sujeitos, que
buscam operar rachaduras no que está cristalizado. É exatamente como ‘auxiliar de
produção’ de tais emergências que um psicólogo pode encontrar o seu lugar”. Em outras
palavras, as psicólogas aqui reunidas convidam os seus colegas a criarem, nas
instituições em que atuam, condições para que se mantenham acesos a capacidade de
pensar e o desejo de dignidade numa sociedade que conspira o tempo todo contra isso.
Maria Helena Souza Patto
São Paulo, abril de 1995
INTRODUÇÃO
Este livro apresenta as principais reflexões e ações levadas a efeito pelo grupo de
trabalho do Serviço de Psicologia Escolar do Instituto de Psicologia da Universidade de
São Paulo.
Desde sua criação, o Serviço de Psicologia Escolar enfrenta dois grandes desafios:
oferecer estágios supervisionados aos alunos de Graduação em Psicologia — de forma
que as atividades práticas contribuam para as instituições escolares — e propor
alternativas de atuação psicológica, levando em conta uma concepção crítica tanto em
relação à escola quanto aos instrumentos de avaliação tradicionais em Psicologia.
Os capítulos apresentados representam alguns dos grandes desafios colocados hoje ao
psicólogo. Após uma década de críticas à Ciência Positivista, que espaço os
que muito fizeram para que pudéssemos socializar nossas experiências e reflexões na
área em especial à Profa. Maria Helena Souza Patto, pela leitura atenta e critica de
nossos artigos.
Marilene Proença Rebello de Zouza e Adriana Marcondes Machado
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1989, apontam o Brasil entre os 10 países de maior Produto Nacional Bruto e o l06 em
evasão escolar no primeiro grau (Helene, 1990, p.12).
(2) 1993 os professores nível 1 — formação em Magistério, responsáveis pelas classes
de primeira a quarta séries do primeiro grau — em início de carreira recebiam no Estado
de São Paulo um salário de US$80,00, menos do que os pagos na Índia(US$200,00) e
no Paquistão (US$120,00), países cuja renda per capita chega a ser cinco vezes menos
que a nossa. (Dimenstein, Folha de S. Paulo, 29.08.93).
(3) Estimando a produção do estado de São Paulo como sendo 40% da brasileira, o
nosso estado emprega 2,5 do PIB, contra 4,4 do México, 3,4 da Argentina, 4,1 da
Polônia e 3,6 do Brasil. (Helene, l990,p.13).
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de São Paulo possui uma renda per capita comparável a de países como Espanha,
Portugal e Grécia. Mas os índices econômicos estão muito distantes da qualidade de
vida existente nesses mesmos países(4). Em termos de taxa de escolarização, tem-se um
ensino de primeiro grau altamente seletivo — apenas 27% das crianças concluem o
primeiro grau no Brasil e 32% no Estado de São Paulo —, um ensino médio pior do que
o de países com rendas per capita de cinco a dez vezes inferiores à nossa, como a Índia
e Gana (35%) ou Madagascar (36%), e ainda uma rede pré-escolar recente, muito
aquém da demanda populacional (Helene, 1990).
Com relação à seletividade escolar encontram-se dados inadmissíveis nas contínuas
repetências vividas pelas crianças no processo de escolarização. As análises estatísticas
recentes divulgadas por Ribeiro (1992) dão conta que o aluno brasileiro permanece em
média oito anos e meio na escola, mas apenas três entre cem ingressantes concluem o
primeiro grau sem repetência. Ao longo do processo de escolarização a defasagem
série-idade aumenta, a ponto de termos em 1986 (SEADE, 1989) 70% dos alunos de 8º
série fora da idade real para o mesmo período (14 anos).
Dentro da lógica da “pedagogia da repetência” acredita-se que um aluno ao repetir terá
a oportunidade de “refazer”, de “reparar” aquilo que não sabe ou que não estudou
convenientemente. As análises estatísticas mostram, porém, uma outra face desse
processo: uma criança repetente tem a metade das chances de ser aprovada no ano
seguinte, quando comparada a uma criança ingressante nessa mesma série. Ao invés da
repetência permitir que o aluno “refaça” seu aprendizado, via de regra, cria espaço para
a sua estigmatização, marcando-o como diferente ou deficiente em relação aos demais.
No processo de seletividade na escolarização tem-se como informação que a maioria
das crianças reprovadas ou que se “evadem” é a que freqüenta as escolas públicas das
redes estadual e municipal de educação, proveniente das camadas mais pobres da
população. Segundo dados da Fundação SEADE (1989), em 1986, os índices de
reprovação
(4) A expectativa de vida no Estado de São Paulo corresponde a dez anos menos do que
nesses países (UNICEF, 1987, 88).
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na segunda série do primeiro grau são de 30,45% nas escolas públicas paulistas contra
7,59% nas escolas particulares. Na década de 70, levantamento feito na cidade de São
Paulo constatou que, nos bairros onde as famílias ganham menos de cinco salários
mínimos, os índices de reprovação chegam a 43%, enquanto que em outros, onde a
maioria da população moradora ganha acima dessa faixa salarial, esses mesmos índices
não ultrapassam 10% (Barreto et alii, 1979).
Os encaminhamentos foram feitos, em sua maioria, pela escola (50%), uma parte pelos
pais (26%) e por outros profissionais, incluindo os da área médica (23%), pediatras,
clínicos e psiquiatras.
Parte desses dados se confirmam através de outro levantamento realizado na Região
Sul da cidade de São Paulo, englobando os bairros de Grajaú, Interlagos e Parelheiros
(ARS-9), entre os meses de abril a junho de 1993, sorteando-se 15% dos prontuários de
atendimento. Os clientes das Unidades Básicas de Saúde dessa Região da cidade estão
na faixa de 7 a 12 anos (75%), são em sua maioria meninos (63%), sendo que a partir
dos 12 anos há maior incidência de meninas que procuram atendimento,
comparativamente aos meninos. São crianças que freqüentam a escola pública (82%),
sendo por ela encaminhados para atendimento em Saúde (59%), com predominância de
autores consideram que é possível que a criança vá mal na escola porque é isso que se
espera dela. O trabalho desses pesquisadores americanos é realizado no contexto da
problemática da desvantagem escolar sofrida pelas crianças que vivem em situação de
pobreza (americanos negros, mexicanos americanos, porto-riquenhos). Os resultados da
pesquisa ressaltam dois pontos importantes para a nossa questão: a) as crianças que
cursam as primeiras séries são mais susceptíveis às expectativas depositadas pelas
professoras do que as crianças mais velhas; b) a importância de se dar mais atenção ao
professor.
O que acontece, então, nessa relação de aprendizagem, nesse contato face a face, no
contexto da sala de aula para que tantos encaminhamentos ocorram? As perguntas que
nos remetem à sala de aula e buscam explicar as dificuldades escolares no processo de
escolarização não são tradição na psicologia brasileira. Tradicionalmente, as
explicações psicológicas para as dificuldades escolares consideram que muitas das
dificuldades tomam-se evidentes no momento de ingresso da criança na escola tanto
pelas habilidades psicomotoras que exige, quanto pela tarefa de adaptação a um
ambiente novo, que difere profundamente do ambiente familiar. A criança seria
portadora de dificuldades emocionais e conflitos internos que se revelam ao entrar em
contato com um ambiente desafiador e hostil como o escolar.
Esses dados preliminares também indicam que a alternativa do encaminhamento para
atendimento médico e psicológico das dificuldades de aprendizagem é o modelo
praticado por grande parte dos professores e diretores das escolas. Esse dado nos leva a
questionar as características de formação de professores e especialistas em educação
levada a efeito nos cursos de Magistério e de Pedagogia. A formação recebida acrescida
dos desafios enfrentados na prática docente diária enfatizam as explicações psicológicas
aos problemas escolares.
Os encaminhamentos em função de dificuldades na escolarização formal têm em
comum uma questão de gênero: os meninos são os maiores encaminhados para o
atendimento psicológico. Como analisa Silvares (op.cit) esta questão se repete na
literatura em vários trabalhos de pesquisa realizados desde a década de 60 (Wolff,1967,
1968; Garralda e Bailey, 1988; Lopez,l983; Schoenfeldt e Longhin,1959; Terzis e
Oliveira, 1985 apud Silvares, op.cit.), em pesquisas realizadas em centros de
atendimento nos Estados Unidos, Grã-Bretanha e Brasil.
As explicações para essa tendência vão desde a constatação de diferentes perfis
comportamentais entre meninos e meninas (Achenbach,1966 apud Silvares, op.cit.)(5)
psicólogo são, em geral, muito angustiantes, principalmente para uma população pobre
onde o atendimento pelo psicólogo é, via de regra, associado a problemas mentais, à
loucura, enfim, a problemas graves. Em alguns casos a escola atrela à continuidade da
criança na escola o acompanhamento psicológico, desrespeitando dentre outras coisas
um preceito Constitucional. Muitos pais não conseguem compreender os motivos pelos
quais seus filhos foram encaminhados para os serviços de atendimento psicológico, e ao
serem arguidos pelo psicólogo a respeito dos motivos do encaminhamento procuram
encontrar suas causas na história de vida não raro se culpando por muitos desses
acontecimentos. São depoimentos de pais a psicólogos:
“Acho que foi porque quando ele era pequeno ele caiu de uma laje e bateu a cabeça”.
O discurso da escola é vivido, em geral, de maneira ambígua pelos pais, pois por um
lado a convivência diária com as crianças possibilita uma certa percepção de seu
potencial e de suas realizações e por outro está a escola e o professor, com a autoridade
que possui e a legitimidade do saber, dizendo o contrário.
A queixa psicológica mais freqüente, portanto, não se relaciona a distúrbios
emocionais ou a problemas familiares vividos pela criança, mas está diretamente
relacionada com dificuldades no âmbito do processo de escolarização; é uma queixa
escolar, encaminhada na sua
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maioria pela escola ou por outros profissionais de saúde. Ela se faz presente como
incidência principal do trabalho do psicólogo, esteja ele atuando na Unidade Básica de
Saúde, na Clínica-Escola, na Unidade Escolar ou muito provavelmente no consultório
particular.
O predomínio do modelo psicológico clínico em relação aos problemas escolares
Como a queixa escolar vem sendo atendida pelos psicólogos ou, então, que práticas de
atendimento têm sido geradas para solucioná-la? Há várias descrições da prática
psicológica que indicam que o processo psicodiagnóstico da queixa escolar baseia-se no
tripé entrevista inicial e anamnese, aplicação de testes, encaminhamento para
psicoterapia e orientação de pais.
No levantamento realizado pela Regional de Saúde da Região Sul da cidade de São
da reprovação, no caso de um deles por três vezes, esse dado não aparece. Em apenas
um dos laudos psicológicos a escola é citada e a referência é feita no sentido dos
reflexos dos conflitos familiares sobre a aprendizagem: “na escola, tais conflitos
também aparecem, onde para Ângela torna-se difícil integrar seus recursos e anseios
com a aprendizagem” (p. 304). Para o leitor desses laudos, não é possível compreender
os motivos que teriam levado a tantas repetências, parecendo que a gravidade deste
dado não foi sequer levada em conta. As conclusões do psicodiagnóstico são todas no
sentido de encaminhar os pais para orientação familiar, a criança para psicoterapia, e
não fazem qualquer sugestão sobre estratégias de ação do professor ou da escola que
minimizem as dificuldades de aprendizagem, motivo da queixa.
A maioria dos psicólogos que emitem laudos psicológicos a respeito das crianças com
Quais são as concepções teóricas que dão sustentação a essas práticas de compreensão
e atendimento à queixa escolar? Basicamente, os psicólogos consideram que as crianças
encaminhadas são as que sofrem as conseqüências da pobreza: apresentam déficit
cognitivo, vêm de famílias desestruturadas, são vítimas de carência afetiva. Outro
argumento apresentado considera que “grande parte do déficit intelectual e da pobreza
da produção dessa população é causada por uma problemática emocional”. Essas
explicações foram encontradas por Freller (1993, p.27) ao entrevistar psicólogos que
atuam na rede pública de saúde, atendendo os encaminhamentos de crianças portadoras
de queixa escolar.
A Psicologia tem utilizado um saber que estabelece o seu recorte sobre o indivíduo,
enfatizando a importância de seu mundo interno constituído de fantasias, desejos,
habitado por mecanismos de projeção e introjeção, determinado pelas relações vividas
no grupo familiar primário. Essa observação fica evidente na apresentação dos métodos
psicológicos de avaliação de personalidade como o utilizado pelo CAT, quando seus
autores afirmam:
As ilustrações foram desenhadas para eliciar respostas especificamente a problemas de
alimentação e, em geral, a problemas orais; para investigar problemas de rivalidade
entre irmãos; para esclarecer atitudes concernentes às figuras parentais e o modo como
estas
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figuras são apercebidas; para apreender o relacionamento da criança no tocante aos pais
como um casal, tecnicamente falando, referente ao complexo de Édipo, culminando na
cena principal: digamos, a fantasia das crianças, vendo os pais junto na cama. Com
respeito a isso, é nossa intenção pelo provocar a fantasia do criança, no que concerne à
agressão; sobre sua aceitação pelo mundo adulto e seu medo de ficar só à noite, numa
possível conexão com a masturbação, seu comportamento no banheiro e a reação dos
pais a isso” (Bellak e Bellak, 1971, p. 5-6).
seus reflexos nos professores, nas suas concepções do processo pedagógico e nas
explicações dadas aos problemas de aprendizagem.
BIBLIOGRAFIA
Introdução
Tomemos inicialmente, como exemplo, o aluno que não aprende, que como dizem “vai
ficando para trás”. O destino dele é variado: ser aluno repetente (muitas vezes em classe
de repetentes ou classe dos lentos), ser aluno especial (encaminhado por psicólogos para
a classe especial), ou então parar de estudar (parar de ser aluno).
Desviando o olhar destes alunos tido como “alunos-problema” é que se percebe a série
de práticas que os objetivaram. A prática de encaminhamento de crianças com
problemas de aprendizagem e comportamento para psicólogos se ancora em uma série
de práticas paralelas: psicólogos fazendo avaliações diagnósticas para encaminhamento,
professores entendendo os problemas das crianças como algo individual ou familiar, a
exigência de um laudo psicológico para a criança estar na classe especial...
Para Michel Foucault, toda prática de objetivação implica uma prática de subjetivação.
Produz-se algo e produz-se o sujeito que entende este algo naturalmente. É preciso que
essas crianças de 8 a 16 anos tenham sido objetivadas como alunos especiais para que
elas sejam percebidas pelos professores como alunos que precisam de um programa
especial de ensino. Mais lento. Mais individual. O professor que trata seus alunos como
especiais nem imagina que poderia fazê-lo diferentemente. Faz o que lhe parece
evidente e “natural”. Veremos mais adiante como a naturalização fortalece as
cristalizações.
Atualmente somente cerca de 60 por cento das crianças que entram na primeira série
chegam à quarta série do primeiro grau. Os 40 por cento restantes repetem ou evadem-
se da escola. Se são nas relações e nas práticas que se produzem as objetivações, então
as perguntas devem ser feitas sobre as relações e as práticas e não sobre os objetos. Ao
invés de perguntar por que a Escola Pública produz alunos especiais, ou Porque aqueles
alunos não aprendem, deve-se perguntar como as relações de aprendizagem e as
relações diagnósticas fabricam esses alunos. Deve-se buscar , funcionamento
devolvendo-se com isso à história aquilo cuja existência “naturalizamos”.
“Naturalizar”, o que é isso? É pensar que o que acontece é decorrente da natureza
mesma das coisas e não da história. Aprisiona-se assim a diferença. Explicando melhor:
quando sentimos que é natural acontecer aquilo que nos incomoda, ficamos sem idéia
sobre o que azei, Como se existisse algo fora de nosso alcance que nos impõe a
existência de um objeto a ser analisado. As perguntas passam a ser, por
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exemplo, o que fazer com essas crianças que não aprendem? Como se exist
isse “a
criança que não aprende” em si. Nos excluímos assim das práticas e das relações... As
relações ficam estagnadas.
Havíamos perguntado acima o que é uma relação cristalizada. É aquela onde as
queixas são as mesmas há muito tempo, não há movimento. O efeito é a sensação de
que não se pode fazer, apenas esperar. Nela pergunta-se muito o porquê de certas coisas
e de certos afetos acontecerem. Como movimentar? Nosso convite é inicialmente
problematizarmos as perguntas que fazemos a respeito dos acontecimentos.
Deleuze, no livro El Bergsonismo, discute no primeiro capítulo a intuição como
método. Citando as obras de Bergson, explica os atos que determinam esse método. Um
deles é “aplicar a prova do verdadeiro e do falso aos problemas mesmos, denunciar os
vez: “Eu achava que a classe especial era uma série quedurava para sempre “. David,
um menino de 8 anos, disse:
- “Uma mulher me mandou para a classe especial porque na classe normal eu não
respeitava ninguém.”
- “O que você fazia?”, perguntei.
- “Eu não sentava”, ele respondeu.
- “O que você faz na classe especial?”
- “Fico sentado na carteira.”
- “Quem não senta tem que ir para a classe especial?”...
Inicialmente nossas perguntas em relação a essas crianças eram, em sua maioria, falsos
problemas. Queríamos saber o que significava, o que representava para essas crianças
estar na classe especial, porque elas estavam ali. Como se houvesse uma causa primeira,
srcinal. Como se houvesse algo essencial, por trás das coisas que percebemos. Qual o
efeito dessa maneira de pensar, onde se fica buscando a razão e o significado de as
coisas acontecerem? Fica-se sem ideias sobre o que fazer, impede-se a criatividade.
Mudamos as perguntas. Inventamos uma pergunta interessante: “Quem vai continuar e
quem vai sair da classe especial no próximo ano?”. Essa pergunta exigia movimento.
Foi nesse novo território que surgiram ideias, como, por exemplo, fazer um mapa com a
história das crianças na Escola. O pai de Carlos, um aluno de 15 anos, ficou
decepcionado ao saber que depois de 5 anos estudando na classe especial ele poderia ir
Intenções e efeitos
Aprender... Ensinar... Algo começa a funcionar diferentemente do que se pretendia na
máquina escolar. Pensemos em uma professora que percebe as dificuldades de seus
alunos e está preocupada em descobrir o que fazer para ajudar essas crianças que
apresentam dificuldades. Imaginemos a delicadeza desse processo que convida o
professor a saber de seu próprio desejo para poder ter ideias sobre o que fazer...
Um professor que coloca as crianças com dificuldade em aprender a ler e a escrever
em uma específica fileira das carteiras da classe, ou uma equipe de professores que
decide formar uma classe com os alunos lentos, deveriam perceber as produções de
subjetividade que essas práticas inventam. E comum a criança que está indo bem na
Escola, que está aprendendo, sentir que aquele que não aprende não tem nada a ver com
ela. É comum a criança encaminhada para a classe especial encarar o problema que
motivou o seu encaminhamento ser um problema apenas individual. Não é “a fileira dos
alunos lentos” que é em si boa ou má,
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assim como não é “a classe especial”, ou “o repetir”, que são em si bons ou maus. O
problema é que certas práticas potencializam a diferença ser vivida como negação,
como algo qualitativamente inferior. Por mais orgânico e individual que nos pareça um
sintoma, por exemplo, a cegueira, existe uma infinidade de maneiras de ser que
atravessam as relações com aquela criança cega. Isto é, a cegueira nos atravessa e os
efeitos desse encontro são infinitos. Ser cego e gostar de ler é diferente de ser cego e
estar amando, e estar desanimado... e de gostar de tocar um instrumento musical. Às
vezes nos preocupamos em demasia com o diagnóstico, como se ele fosse definir o que
pode fazer bem ou mal para aquele ser, aquela relação. Ilusão...
Muito já se tem criticado as práticas que buscam uma homogeneização, que trabalham
com modelos, que restringem a diversidade e a diferença ao campo do normal e do
anormal.
Sabemos que a velha estratégia de juntar o que se julga homogêneo para resolver
algum problema serve mais para produzir cristalizações do que imprimir algum
movimento ao que está cristalizado. A recente portaria que estabelece que não se pode
fazer teste para AIDS nas crianças que estão na Escola, e que proíbe a formação de
classes especiais para crianças portadoras de AIDS nos mostra essa preocupação.
Algumas pessoas que acreditam nas potencialidades de um lugar de ensino especial, são
guiadas por essas ideias com “boas intenções”. Quer-se efetuar libertar, o escrever..., o
ler..., o pensar... Se ser portador do vírus da AIDS pode atrapalhar essas tendências,
parece estranho criarmos um lugar onde aquilo que pretendemos libertar seja
secundário. Ou melhor, não é estranho, é delicado. Está-se ao mesmo tempo
potencializando a existência de algo que enfraquece a relação com esse mesmo ser. O
vírus da AIDS passa a ser algo que parece só existir naqueles que o portam, e a esse
acontecimento todos os outros se ligam. Numa Escola especial a criança vai ter sempre
o desejo capturado, aprisionado ao fato de ela ser especial.
Poderíamos pensar que todos nós temos uma infinidade de tendências, algumas
capturadas. Exemplificaremos o que podemos entender por captura de desejos. Uma
criança lê um livro. Eu pergunto: “o que você está fazendo?” Ela diz: “fazendo lição”.
Ela realiza “cumprir uma tarefa”. A professora recomendou esse livro porque lhe foi
pedido pela coordenadora Onde ficou o desejo “ler”? Em algum canto, guardado no
coração de quem achou interessante dar esse livro específico
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para as crianças lerem. O desejo “ler essa história” fica capturado pelo “dever fazer a
lição”. Nesse sentido, é preciso libertar o desejo do que o aprisiona para se poder ter
ideias de como efetuá-lo.
Aqui entendemos por desejo aquilo que se efetua; não remetemos o desejo à falta.
Imaginemos, numa conversa, alguém dizer em tom melancólico, queixando-se: “Eu
gostaria muito que esse aluno aprendesse, mas não consigo ensiná-lo”. O que esta
pessoa está efetuando? Qual tendência, qual desejo? Queixar-se; o desejo é “queixar”,
que é diferente do “ensinar”. Não falta nada para o queixar realizar -se. Queixar não é
querer algo e não ter, queixar é queixar. É uma positividade.
É nossa intenção problematizar esse estado de coisas onde algo domina de forma a
questões básicas: que lugar é esse? A que ele se propõe? Como funciona? Que pessoas
fazem parte dele? Quem são os professores? Como trabalham? Como se estabelecem os
agrupamentos nas salas de aula? Que práticas educacionais são processadas? A partir de
questões como essas procurávamos compreender, pouco a pouco, esse espaço escolar.
Constatamos, por exemplo, que há classes que têm uma professora autoritária que
consegue alfabetizar todos os seus alunos, que há diretores extremamente dedicados e
negociadores e outros não, que há professores jovens descrentes de seus trabalhos,
enquanto outros estão interessados em aprender, que há professores de mais de vinte
anos de magistério buscando novas significações para continuar sua prática docente...
Que há conteúdos curriculares comuns e opções totalmente diferentes em Como segui-
los; há práticas disciplinares distintas entre colegas que lecionam na mesma série, na
mesma escola.
Ou seja, constatamos a diversidade, a heterogeneidade na vida diária escolar, com que
diferentes escolas, professores, corpo administrativo se apropriam dos direcionamentos
dados pelos órgãos governamentais de ensino, quer na área administrativa, quer na
Pedagógica. Um exemplo típico é o da implantação do Ciclo Básico em nosso Estado.
Essa proposta pedagógica foi iniciada em 1984, entendendo que a criança deveria ser
alfabetizada nesse ciclo de dois anos, onde a reprovação não faz sentido, priorizando o
avanço da criança
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em cada etapa do processo de alfabetização. Em nossas observações notamos que cada
escola procura “adaptar” os princípios da proposta do ciclo básico às suas crenças ou
maneiras de funcionamento. As escolas que dividiam suas classes em fortes, médias e
fracas agora criam eufemismos para nomear essa divisão, passando a chamá-las, de CB-
inicial, CB em continuidade ou intermediário e CB-final. Mantêm, portanto, a mesma
rigidez com que sempre conceberam a escola. Os grupos homogêneos geram a prática
de constantes remanejamentos para outro grupo, conforme avancem ou não no conjunto
de critérios propostos pelo professor. É comum em escolas que têm essa concepção
algumas crianças passarem por quatro ou cinco professores e classes em um único ano
de escolaridade.
Ao mesmo tempo que tais práticas são encontradas, também observamos professores
que têm buscado maneiras mais críticas de trabalho nessa versão do ciclo, participando
etc. Essas observações apontavam para o fato de que cada escola se constitui num
espaço historicamente construído por aqueles que o compõem, e na impossibilidade de
encontrarmos duas escolas iguais, pois as redes de relações e as práticas nelas existentes
são singulares.
Esse “descobrir” o heterogêneo, dar-nos conta da diversidade, coloca-nos diante de
uma importante questão: o nosso saber psicológico sobre as inúmeras e complexas
relações que se estabelecem no interior da escola e fora dela. Que saber é esse? Que
práticas esse saber tem gerado? O que essas práticas excluem? O que incluem?
sobre o indivíduo, na sua relação com ele mesmo e com o outro. Analisa os significados
dos grupos primário e secundário para o indivíduo. No que se refere ao indivíduo e à
escola seria necessário, nesse recorte teórico, localizar as possíveis causas psíquicas que
estariam interferindo em seu não aprendizado, em seu “mau” comportamento na sala de
aula, vistos enquanto um sintoma de algo mais profundo. As causas de tais
comportamentos estariam intimamente vinculadas a uma relação familiar (grupo
primário) inadequada ou insuficiente para o bom desenvolvimento dessa criança,
permeada por carências afetivas, nutricionais e cognitivas. Esse saber tem gerado
diferentes práticas psicológicas, sendo um dos instrumentos principais o
psicodiagnóstico clínico, feito de diferentes formas: entrevistas com os pais ou
responsáveis, sessões de ludodiagnóstico individuais ou em grupo, aplicação de testes
de inteligência e projetivos que buscam incursionar pela subjetividade e nesse trajeto
desvelar os aspectos inconscientes e cognitivos que justificariam um tratamento
Psicológico. Um dos objetivos das terapias está em libertar o indivíduo de suas
dificuldades, das resistências, diminuir a angústia em que se encontra para tornar-se
alguém mais feliz, apropriar-se de seu desejo e dos limites deste na realidade.
O que esta prática inclui? O que exclui? Sem dúvida, podemos dizer que inclui a busca
do sentido da existência, do significado de estar no mundo, compreender-se, lidar com
seus anseios e desejos. Conhecer os limites e as possibilidades de ser e ter são aspectos
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relevantes e importantes para a vida de cada um de nós. Mas como pensar uma prática
psicológica quando, por exemplo, nos chega um encaminhamento com queixa escolar?
Essa pergunta nos remete ao que essa prática tem excluído. Exclui, por exemplo, todo
um contexto escolar onde a criança está inserida, onde ora é sujeito de seu saber, ora
não é. Exclui a existência da diversidade escolar, de seus determinantes e variantes.
Um dos casos encaminhados a uma psicóloga com quem trabalhamos referia-se a uma
criança ingressante na primeira série, cuja professora suspeitava que fosse deficiente
mental. Segundo esta professora, a criança não conseguiu nos primeiros dias de aula
responder perguntas simples, tais como: seu nome, de seus pais. Quando desistiu de lhe
perguntar, mostrou-lhe um lápis, insistindo para que a criança dissesse o que era. O
menino olhou-o respondendo: “é preto”. Mais uma sensação de estranheza, pois a
Nos relatos de psicólogos que se mostram preocupados com essa questão, há inúmeras
situações de encaminhamentos que se enquadram nessas circunstâncias. São comuns os
depoimentos das mães, quando encaminhadas pela escola para Unidades Básicas de
Saúde (UBS), tentarem atribuir significados a “problemas” que elas mesmas não
identificam. “Eu não sei não. A professora é que disse que ele está precisando de
tratamento”. Outras mães, aflitas pela não compreensão dos porquês dos “problemas
escolares”, tentam encontrar as causas em histórias de vida: “Acho que é porque quando
ele era pequeno, ele caiu de uma laje e bateu a cabeça”. Outros relatos mostram o
conflito das mães diante de sua própria observação, que contradiz a da escola: “Eu não
sei por que na escola ele não aprende, eu acho ele um menino muito esperto. Faz um
monte de coisas pra mim. Ajuda muito em casa! Ele me ajuda a fazer contas, ler coisas,
pegar ônibus. E a professora diz que ele não aprende”.
Paulo tinha dez anos e uma história de três repetências na primeira série. Sua
professora queixava-se que não escrevia nada, apenas copiava da lousa, não
conseguind0 na maior parte do tempo, permanecer sentado. Nos primeiros encontros no
grupo de crianças da escola, mostrava-se da mesma forma. Ao final de oito encontros
escreveu um poema a uma das coordenadoras. Como explicar três anos de sucessivas
tentativas escolares para superar um bloqueio que em oito encontros se resolve? O que
mais podemos oferecer, enquanto psicólogos, além dessas oito sessões?
própria identidade. O coro dos estudantes, profissionais e teóricos dessa área/ária vem
repetindo de modo exaustivo e monocórdico uma só frase musical. Cantam em
uníssono: “qual é o papel do psicólogo escolar?”.
Nos tempos da sua infância, a melodia era outra. Provinha da certeza de seus
praticantes de que a Psicologia Escolar tinha assegurado o seu lugar no mundo da
Educação. Jubilosamente festejavam a imagem recém-construída, tomada, porém de
empréstimo às ideologias que nela queriam ver uma prática ortopédica, corretiva das
ações dos professores sobre as crianças. Mais que isso, pediam que confirmasse a
máxima liberal segundo a qual as diferenças não provêm da desigualdade de
oportunidades e sim das diferenças individuais. Assim, buscando ir ao encontro daquilo
que seus criadores dela esperavam, a Psicologia Escolar elegia o objeto sobre o qual iria
concentrar seus esforços: os problemas de aprendizagem das crianças.
Durante algum tempo, então, foi necessário que a Psicologia Escolar se alienasse nessa
imagem que ela própria não construíra, mas que lhe conferia uma identidade e uma
existência.
Para os psicólogos orientados por essa perspectiva, foi conferido um lugar concreto na
escola, dentro do qual podia exercitar suas funções. Não se tratava nem de sala de aula,
nem do pátio de recreação, nem das dependências administrativas. Era apenas uma sala
de atendimento, um espaço em que podia aplicar testes. Um espaço à margem: caso
fosse eliminado, em nada mudaria a configuração geral da escola. Se instalado a uma
distância de dois quarteirões, seu trabalho poderia prosseguir sem prejuízos. Sua voz
não fazia coro com as demais vozes da escola.
51
No entanto, o psicólogo entrou na escola. É lá dentro, não podia deixar de ouvir as
vozes da escola. Tinha agora ao seu alcance novos dispositivos teóricos de leitura da
realidade escolar e de seus problemas. Sabia, por exemplo, do peso dos determinantes
sociais sobre os problemas de aprendizagem. Dispunha das leituras estruturais, segundo
as quais há uma relação de determinação recíproca entre os elementos de uma
instituição. Ou seja, não seria jamais possível estudar uma criança sem levar em conta
as peculiares relações com seus professores e pais, por exemplo.
Diante dessa mudança de visão, o psicólogo passou então a enfrentar dois problemas:
o da demanda e o da técnica. Em primeiro lugar, como participar mais ativamente da
vida da escola, se só o que lhe pediam era que testasse, discriminasse e “expulsasse” as
crianças indesejáveis? E, caso uma brecha lhe fosse aberta, com que instrumentos iria
trabalhar, se essas teorias mais recentes ajudavam a entender, mas pouco diziam sobre
como intervir na realidade escolar?(1) A ética que o orientava era agora a ética da
transformação social, mas não tinha idéia de como promovê-la com os poucos
instrumentos que a Psicologia lhe havia fornecido. Estamos agora naquele momento em
que o pré-adolescente cresceu, mas não interiorizou ainda seu novo tamanho, e vive
esbarrando pelos cantos. Sua voz oscila freqüentemente de um registro grave para um
agudo, o que decididamente não facilita a sua participação no coro da escola! Ou seja,
ora aceita seu antigo lugar de psicometrista, ora deseja participar de uma reunião de
professores. De modo canhestro, opina, aponta erros, critica o modo “pouco afetivo” de
alguns professores, “interpreta-os”. Quer agora ocupar o lugar do maestro do coro... A
escola se fecha, o trabalho do psicólogo escolar sofre uma retração.
Onde encontrar teorias psicológicas que viessem a orientar uma intervenção nas
escolas ao mesmo tempo que levassem em conta a análise da realidade social? Que
Psicologia poderia propor uma intervenção “não-alienante”?
(1) Justiça seja feita ao movimento institucionalista e à proposta dos grupos operativos
de Bleger. Tais idéias não chegaram, no entanto, a se constituir em um prática efetiva
junto aos psicólogos escolares em nosso meio.
52
Na busca das respostas a essas perguntas, o psicólogo acabou por “topar” com a
Psicanálise. Não que ela já não estivesse de alguma forma presente. Estava, sim,
exercendo influências sobretudo na Psicologia Clínica, e de modo impreciso quando se
falava por exemplo em projeção, em identidade, em “desenvolvimento afetivo”. Mas
agora se tratava de ir beber diretamente da fonte, ir em busca da teoria psicanalítica da
“personalidade”.
De início, as perspectivas pareciam muito promissoras. Tudo levava a crer que a ética
da Psicanálise não casava bem com a idéia de adaptação do indivíduo à realidade social,
pois seus compromissos eram com outras coisas; com o “desejo”, por exemplo, muito
embora não se pudesse entender exatamente do que se tratava quando se falava em
desejo. A Psicanálise era vista como uma prática não ideológica, e o que se pretendia,
com a Psicanálise, era transformá-la em um auxiliar na luta pela transformação social:
um homem mais equilibrado teria mais condições de lutar por ela.
Psicanálise faz, ao afirmar essa distinção, é colocar com rigor um divisor de águas. A
doença mental, por exemplo, é do âmbito do sujeito do inconsciente, e precisa ser
tratada como tal; os problemas de aprendizagem são na sua maioria problemas no
funcionamento egóico, e, portanto amplamente determinados pelas relações vividas
pelas crianças no interior da instituição escolar.
A Psicanálise coloca, portanto, limites claros a respeito das possibilidades de uso dessa
teoria fora dos consultórios: não pode auxiliar diretamente um professor, a não ser que
esse professor se analise, não pode criar métodos pedagógicos inspirados por ela, e não
tem os mesmos objetivos de qualquer trabalho institucional.
Levando em conta todas as restrições que a Psicanálise coloca, e admitindo que o
trabalho do psicólogo em uma instituição escolar se dirija principalmente ao eu, poderia
a Psicanálise contribuir para a leitura das instituições, para a definição de objetivos e
para a criação de “técnicas” de trabalho psicológico em uma escola?
A escuta
A palavra recolocada em circulação é o alvo. Para isso, seria necessário apontar,
mostrar, interpretar os sujeitos nos grupos, mostrando
(2) Paráfrase de um dito de Lacan: “o analista dirige o tratamento, mas não dirige o
sujeito”.
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aquilo que só o psicólogo pode escutar? Isto não seria tirar proveito das leis de
funcionamento da linguagem, e sim das leis de funcionamento do poder da sugestão.
Estaríamos tirando proveito do pedido dirigido ao psicólogo para que ele faça pela
instituição. Há transferência de poder da instituição para as mãos do psicólogo, mas ele
não deve usá-lo efetivamente, se quiser ser fiel aos princípios da Psicanálise.
Usando seu conhecimento sobre o funcionamento da linguagem, será necessário supor
que só a palavra proferida pelo sujeito pode ser por ele ouvida. No entanto, ele precisa
dirigir sua fala a alguém para que esta retome e ele a ouça. Não se ouve se não usar esse
recurso(3). Portanto, o psicólogo estará em posição de escuta ativa. Para que esses
efeitos se produzam, é preciso, em primeiro lugar, que o psicólogo tenha sido colocado
pelo falante em posição privilegiada. O falante precisa autorizá-lo a ser seu escutante.
Essa autorização é “assegurada” pela transferência de que o psicólogo será alvo. Em
seguida, será necessário proferir um “escuto”, para demonstrar essa sua disposição, para
oferecer-se nessa posição específica e não em qualquer outra. Ao contrário, caso atenda
ao pedido proferido na superfície, é possível que se feche a possibilidade de aquele
pedido ter suas “verdadeiras” raízes escutadas.
Em conseqüência, um psicólogo não aceitará a demanda da instituição, e tampouco se
recusará a aceitá-la. Só poderá escutá-la se quiser que os sujeitos nela envolvidos
venham, a saber, efetivamente o que está em jogo, o que querem, do que precisam, e por
que não podem formular tudo isso.
(3) Eis um trecho de O homem da mão seca, de Adélia Prado, que ilustra muito bem o
valor da escuta em uma análise: “Por que peso de Corcovado e não de Pão deAçúcar?
Perguntou-me o doutor, inábil, recusando meu primeiro discurso, tomando meu
desenfeite orgulhoso por despojamento. Tinha mau sorriso. Não confiaria àquele
homem afoito a dor da minha alma. (...) O segundo doutor ouviu-me a um ponto que eu
mesma ouvi-me. Eu gostava da minha voz narrando, da tez, do sorriso obsceno, da
estatura anã dos monstrinhos que permitia passear entre a estante e a poltrona de couro
da sala, o doutor balançando a cabeça sem me criticar. Falei de novo ‘peso de
Corcovado’, ficou impassível escutando, era bom falar, chamar à luz do dia a população
das trevas, meu desassossego”. São Paulo, Siciliano, 1994, pp. 87-88.
58
Sendo ele o alvo da transferência, é a ele que serão dirigidos os discursos, e essa é a
condição para que ele possa lê-los. Um psicólogo pode saber sobre a relação que um
sujeito estabelece com ele porque ele mesmo é o alvo. Mas não há como saber como é a
relação de um professor com seu aluno. Mesmo indo observá-la em sala de aula, ou
ainda que o professor a relate, estaríamos apenas vendo comportamentos, com um risco
enorme de erros de interpretação. Só poderemos intervir sobre as relações
transferenciais de que formos alvo, daí a necessidade de criar instâncias especiais de
trabalho, sem a interferência de outras tarefas ou de outras figuras de autoridade
presentes.
Após ser configurada pelo estabelecimento da transferência, prossegue a montagem
desse espaço quando o psicólogo cria enquadres mais ou menos fixos para acionar seu
“eu escuto”; monta grupos, marca reuniões. Ao fazê-lo, põe a palavra em circulação.
Falam os professores no grupo, falam as crianças em outro, falam os pais na reunião. As
alternâncias de falas, as relações que o psicólogo estabelece entre elas, Vão
“desenhando”, dando contornos a esse espaço. A transferência de que se suporte e as
falas encadeadas montam o campo psi em que Circulará o psicólogo(4).
(4) Para entender melhor a transferência, ver Miller, J. A., Percurso de Lacan. Rio de
Janeiro, Zahar, 1987.
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poder, e ficarão fora as ações concretas que buscam modificar tais relações.
O psicólogo voltou agora, como no início, a não fazer parte do coro da escola.
Tampouco é seu maestro, nem o compositor da melodia que entoam. Resta-lhe então o
lugar do ouvinte, lugar difícil de manter. Mas não é pelo fato de haver um ouvinte que
se justifica toda a mobilização de um coro? Não é por ele que trabalham, que se
orientam? Se o psicólogo puder se manter nesse lugar, e se puder reproduzir em uma
escola os efeitos que um ouvinte causa a um coro, não terá trabalhado para “consertar”
uma escola, mas para ser um dos agentes na produção de uma instituição bem
“concertada”!
60
BIBLIOGRAFIA
JAPIASSU, H. Introdução à Epistemologia da Psicologia. Rio de Janeiro, Imago, 1982.
MILLOT, C. Freud anti-pedagogo. Rio de Janeiro, Zahar, 1987.
SOUZA, H.R. “Institucionalismo: a perdição das instituições”. Temas IMESC, v.1,
n°.1, pp.l3-24, 1984.
61
Este padrão de atendimento tem sido considerado insatisfatório pelas crianças, pais,
professores e até pelos psicólogos que o praticam.
Os pais, especialmente aqueles provenientes das camadas populares, relatam a enorme
dificuldade que enfrentam para seguir um tratamento tão longo, oneroso e muitas vezes
incompreensível e injustificável. Muitas vezes não acham necessário tal processo, já que
o filho não apresenta problemas em casa, só na escola.
As crianças se sentem discriminadas e desvalorizadas pelos colegas, familiares e
professores por necessitarem desse tipo de atendimento. Freqüentemente se dizem
loucas, doentes ou burras e passam a agir como tal. Outras vezes dizem que são
perseguidas pelas professoras, pois todas as crianças fazem bagunça, mas só elas são
encaminhadas. Sentem-se injustiçadas e expressam seu descontentamento por serem o
bode expiatório da classe.
Por fim, os psicólogos, ao mesmo tempo em que se defrontam com altos índices de
desistências no decorrer do processo de tratamento, são obrigados a dar conta de uma
fila de espera cada dia maior para o início de atendimento. Expressam muitas dúvidas
em relação à adequação do tratamento psicológico “clássico” dirigido à população de
baixa renda. Problematizam, no entanto, os pacientes e não a prática psicológica
proposta.
Encontram também dificuldade para explicitar os objetivos que almejam com seu
trabalho e uma certa insegurança em relação aos resultados obtidos. Afirmam que a
maior parte da clientela infantil procura atendimento por problemas escolares, mas não
incluem a escola no processo diagnóstico nem na proposta de tratamento.
Assim, tratam as crianças e sua família sem problematizar os fatores intra-escolares
implicados na produção e manutenção da queixa escolar. Acreditam que todas as
crianças têm algum nível de problema emocional que merece ser elaborado em um
processo terapêutico.
O desconhecimento dos psicólogos em relação à estrutura e ao funcionamento das
escolas públicas no Brasil, somado ao preconceito em relação às famílias pobres, são
muitas vezes justificados e camuflados por teorias psicológicas que explicam tudo pelos
A maioria das crianças que procura o posto vem com cartinha da escola, que quer um
encaminhamento para classe especial, porque não acompanham nas classes normais. Eu
não sei bem como funcionam essas classes, fico insegura de encaminhar.. Sei que têm
menos alunos e a professora pode dar mais atenção. Eles já têm pouca atenção em casa.
Sabe como é, essas famílias numerosas, desestruturadas, a mãe trabalha e tem montes de
filhos, não pode atender cada um, estimular, acompanharas lições. Então eu encaminho
para classe especial. Acho que deve ajudar Pelo menos vão ter mais atenção da
professora, que até é mais especializada neste tipo de criança.
Perguntamos a esta psicóloga se ela já esteve em alguma destas escolas, conversou com
a professora, procurou conhecer como funciona de fato uma classe especial. Ela
responde:
Nunca fui nestas escolas que encaminham. Às vezes fico com vontade de conversar
com a diretora de uma escola aqui perto que encaminha praticamente uma criança por
semana, ou porque não aprende ou por indisciplina. Mas eu nem saberia como entrai;
com quem falar..
A nossa formação é diferente, é clínica, e o que importa é o que observamos no contato
com o cliente como é sua relação com o psicólogo, com os brinquedos, os resultados
dos testes, o que a mãe fala. Aí trabalhamos com a criança, para ajudar ela. Nem daria
para ir na escola, conversar com a professora. São muitas escolas, muitas professoras.
Às vezes eu mando um bilhete perguntando alguma coisa, como ele é na sala de aula,
para ajudar no diagnóstico.
Esta mesma psicóloga, se conhecesse a história escolar desta criança, poderia concluir
que o déficit intelectual (apurado através dos testes de inteligência, sem que seu
desempenho global na vida cotidiana fosse levado m conta) pode ser conseqüência de
uma experiência escolar desastrosa, marcada por sucessivas mudanças de professores e
técnicas de alfabetização, entre outras coisas. No seu primeiro ano de escolarização
cinco professoras assumiram a classe, determinando uma repetência em bloco de todas
os alunos. A partir de então as repetências foram se sucedendo, a carreira de fracassos
se consolidando até o encaminhamento para classe especial, prejudicando sua auto-
imagem e provocando uma descrença na sua própria capacidade.
aprender em uma péssima escola e outro nada consegue em uma escola considerada
boa.
Nesta perspectiva, para entender um sintoma ou conflito que o indivíduo está
enfrentando no presente, o psicólogo busca as causas nas marcas deixadas pelas
relações primitivas e procura, entre outras coisas, conhecer (avaliar) os vínculos
familiares (no caso da psicanálise, relações dinâmicas inconscientes) através do
psicodiagnóstico.
discurso que lhe é comunicado. Sua escuta muitas vezes fica presa no concreto, distante
do desejo e daquele que deseja, colada só no sintoma e seu efeito no social. Distancia-se
do particular, do individual, estreitando sua capacidade de entender e ir ao encontro das
necessidades do paciente, deformando sua capacidade reveladora e limitando suas
escolhas.
das camadas populares, mais do que diferente, é considerado “pior” do que o das
famílias de classe média. E a definição pela ausência, pelo que falta ou pelo que essas
crianças têm de inadequado.
Essa autora analisa as características das intervenções propostas pelos teóricos da
carência cultural para preencher as lacunas deixadas pela educação familiar
supostamente inadequada das crianças pobres. São programas que visam oferecer uma
educação compensatória, que consiste em desenvolver na criança habilidades e
comportamentos adequados, ou que almejam agir sobre os pais, ensinando-os a educar
seus filhos adequadamente.
Em ambos os casos o tratamento é dirigido às crianças e a suas famílias para ajudá-las
a, em última instância, ter sucesso em um sistema educacional que não é modificado,
nem sequer problematizado profundamente.
quer aprender, afirma a mãe”. “Vamos tentar entender as causas do seu problema para
poder ajudá-lo”, decreta a psicóloga, psicologizando e patologizando um
comportamento esperado para crianças dessa idade, que estão iniciando seu processo de
escolarização. Não se importam se a criança brinca, é criativa, vivaz, alegre,
características reveladoras de saúde mental. Atêm-se apenas ao caráter “perturbador”
desses comportamentos e, ainda que involuntariamente, trabalham para a submissão e a
adaptação da criança ao seu meio social.
Ao atender essas crianças o psicólogo confunde, como nos ensina Costa (1984), tipo
psicológico ordinário com saúde mental. O primeiro refere-se a uma série de
características consideradas ideais por uma determinada classe social para serem
atingidas por seus membros. O segundo remete a uma estrutura psíquica patológica.
Nesse sentido, fracassar no acesso ao “tipo psicológico” que a instituição intenciona
produzir pode até ser fonte de sofrimento, mas não reflete necessariamente doença
mental, e não requer tratamento médico-Psicológico. Ao tratar a criança que não atinge
o tipo almejado socialmente, o psicólogo está realizando um trabalho adaptativo e
discriminatório, predominando a idéia de que a diversidade precisa ser domesticada e
uniformizada.
Como define Kupfer (1992), “A doença mental, por exemplo, é do âmbito do sujeito
do inconsciente, e precisa ser tratada como tal; os problemas de aprendizagem, são na
sua maioria problemas no funcionamento egóico, e portanto amplamente determinados
pelas relações vividas pelas crianças no interior da instituição escolar”.
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72
Dolto (1981), Mannonni (1981) e Winnicott (1975) afirmam que nem todos os casos
de inadaptação escolar necessitam tratamento
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psicanalítico e que muitos poderiam ser cuidados pelo próprio círculo escolar em que
estão inseridos. Alertam ainda que cabe ao psicanalista criar situações em que o ensino
seja possível para todas as crianças.
Mannonni (1981) relembra que: as nossas consultas são insuficientes para enfrentar o
número excessivo de casos benignos de inadaptação escolar que poderiam ter sido
resolvidos no âmbito de um ensino tradicional normal, se este último estivesse mais
bem adaptado às exigências de cada indivíduo. Desta forma, as crianças rotuladas de
doentes poderiam tirar partido de um ensino consentâneo com suas dificuldades.
Dolto (1981) recomenda aos psicanalistas clínicos que só tratem casos decorrentes de
desordens profundas da vida simbólica e não de dificuldades sadias à vida escolar
atualmente efetivamente patogênica. Ela afirma que o papel do psicanalista é permitir
que o sujeito neurótico ou psicótico encontre seu sentido, mas também dar seu grito de
alarme diante da carência do ensino público (Isso na França!).
A preocupação em estudar o contexto onde se produzem (ou reproduzem) e se
manifestam os conflitos individuais é outro aspecto marcante dos escritos de Winnicott.
Ele atribui um papel estruturante ao ambiente externo, inicialmente representado pela
mãe e posteriormente pelos círculos mais amplos como família, escola e sociedade.
Na sua teoria, o mundo externo não é concebido como repressor, representante do
princípio da realidade cujo papel é somente frustrar, limitar, cortar. Como afirma Luz
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Ainda segundo Luz (1989), a relação conflitante entre o mundo externo e interno é
superada através do conceito de espaço intermediário entre esses dois mundos. Ao invés
de estudar os processos intrínsecos de adaptação à realidade e à vida social, Winnicott
estuda os processos através dos quais o indivíduo pode “criar” e, assim,aceitar a
realidade.
O autor propõe a possibilidade de uma intercomunicação com o mundo externo,
característica de uma troca significativa que não pode ser expressa em termos de
mecanismos de projeção e introjeção.
Winnicott (1975) concebe “um papel contínuo de desenvolvimento humano, que
começa antes do nascimento e prossegue ao longo de toda a vida, até a morte”. Portanto
reflete, em vários artigos, sobre a evolução do ambiente e sua relação com o sujeito em
crescimento.
Desta forma o fracasso escolar não pode ser explicado apenas pelos mecanismos
intrapsíquicos da criança ou por suas relações familiares primitivas, O ambiente escolar
merece ser considerado.
Winnicott acentua a importância da aprendizagem criativa e do uso positivo da
agressividade para a experiência cultural, que é desenvolvida a partir dos primeiros
objetos transicionais, passando pelo brincar até os processos mais elaborados de
simbolização e produção cultural. Ele propõe um regime específico da experiência
cultural, em continuidade direta com os fenômenos transicionais e o brincar. O fio
condutor dessa experiência é a criatividade, que permite ao indivíduo transformar e se
apropriar do que está dado. É uma experiência em que o sujeito está pessoalmente
envolvido e descobre o mundo ao mesmo tempo em que descobre a si próprio,
proporcionando um sentimento de que a vida vale a pena.
Cabe ao meio ambiente, suficientemente bom, no início representado pela mãe e
depois pela escola e por outras instituições, Proporcionar essa experiência ao invés de
privilegiar uma relação com O mundo externo e com a cultura de cópia, adaptação e
submissão.
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76
77
BIBLIOGRAFIA
COSTA, J.F. Violência e Psicanálise. Rio de Janeiro, Graal, 1984.
DOLTO, F. Prefácio. In: MANNONI, M. A primeira entrevista com o psicanalista. Rio
de Janeiro, Campus, 1981.
FERNÁNDEZ, A. A inteligência aprisionada. Porto Alegre, Artes Médicas, 1991.
KUPFER, M. C. M. A contribuição da Psicanálise aos estudos sobre família e
LINS, M. Y. A. O jogo como interpretação. / Apresentado na Jornada Winnicott, Vinte
Anos Depois, Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
nov. 1991.
LUZ, R. “O espaço potencial”. Tu: Percurso: R evista de Psicanálise. São Paulo, n-° 3, p.
25-32, 1989.
MANNONI, M. A primeira entrevista com o psicanalista. Rio de Janeiro, Campus,
1981.
MELLO FILHO, J. O ser e o viver. Porto Alegre, Artes Médicas, 1989.
NICOLACI-DA-COSTA, A. M. Sujeito e cotidiano. Rio de Janeiro, Campus, 1987.
WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro, Imago, 1975.
Zahar, 1982. A criança e o seu mundo. Rio de Janeiro,
Fontes, 1987. Privação e delinqüência. São Paulo, Martins
78
Introdução
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medida em que todas as relações ali estabelecidas e vividas pelas crianças afetam seu
desenvolvimento e se relacionam com seu jeito de ser e de se expressar.
Um pouco de história
Nosso trabalho começa quando algo não vai bem. No caso das creches na USP(2), por
exemplo, quando uma classe (ou grupo) toda de crianças era considerada “terrível”,
“insuportável”. Parecia estranho que todo um grupo de crianças de 4-5 anos fosse tão
terrível a ponto de não ser contida por nenhum adulto da creche. “O trabalho não anda”,
“não consigo ficar com eles”, “não sei como manter meu projeto”, eram algumas falas
das educadoras a respeito de tais crianças. A diretora da creche nos conta que até
profissionais recentemente contratados diziam que não gostariam de trabalhar com
aquele grupo.
Do nosso ponto de vista, vários fatores estão colocados nos comentários apontados
acima. Várias perguntas poderiam ser feitas: de onde viria esta idéia dos terríveis?
Como cada trabalhador da creche fazia referência àquele grupo? Será que ninguém tinha
uma experiência diferente com estas crianças? Como as crianças sentiam-se?
Considerando estas questões devemos dizer que quando pensávamos, no Serviço de
Psicologia Escolar, naquele grupo específico de crianças, não conseguíamos deixar de
pensar em toda a instituição. Ouvíamos comentários da direção e educadoras sobre as
crianças. O que falavam delas nos parecia dizer respeito a uma certa relação. Relação
esta que transformava aquele grupo numa classe de terríveis, difícil de ser trabalhado,
que precisava constantemente de respostas das educadoras, como, por exemplo, de
imposição de regras, de contenção etc. Estabelecia-se, então, naquela creche, uma certa
relação entre a creche como um todo e as crianças daquele grupo.
(2) Este trabalho, desde seu início em 1990, contou com a participação da Divisão de
Creche COSEAS-USP. As diferentes atuações de deram em ambas as creches do
Campus-Cidade Universitária: Creche Central e Creche Oeste. Consideradas
exemplares tanto na sua concepção como no seu funcionamento, as creches da USP
contam com projetos educacionais que têm se mostrado eficientes, constituindo-se
referências importantes para outras instituições públicas que se destinam ao atendimento
de crianças de O a 7 anos.
80
daquelas crianças. Que significado assumiam? O que lidar com aquele grupo significava
particularmente para as educadoras?
Portanto, seria importante saber como se davam as diversas relações naquela creche,
considerando o grupo de crianças como referência. Como a instituição estava envolvida
naquela questão que parecia restrita (problemas com um grupo de crianças), e que, no
entanto, tomava naquele momento grandes dimensões? Que história existiria na creche
daquele grupo de crianças?
As perguntas voltam porque é necessário sempre questionar, inquirir sobre o que está
dado, tomar possível que algo mais seja dito.
Saber a respeito daquelas relações que existiam entre educadoras e crianças não é
simplesmente um recorte que limita o olhar. É preciso destacar que entendemos a
instituição como rede de relações, mutuamente determinantes dos movimentos que
ocorrem no interior da mesma. Relações estas legitimadoras de ações, reprodutoras de
formações imaginárias a respeito desta ou daquela parcela da instituição. É claro para
nós que nesta rede as ligações são múltiplas e que um recorte não pode manter-se por
muito tempo. Ele é apenas uma estratégia de atuação que visa compreender, ou melhor,
permitir alguma reflexão a respeito de um fato, por exemplo, neste caso, a dificuldade
com as crianças. Se considerarmos esta rede de relações como “estrutura” da instituição,
poderíamos dizer que uma atuação, por mais pontual que Possa parecer, amplia-se no
universo institucional como um todo, traz elementos de vários níveis das relações
institucionais.
A história daquele grupo de crianças, considerada pontualmente, não aparece desligada
de toda uma série de outras histórias. Por exemplo, ao falar sobre aquele grupo,
pensando numa proposta de intervenção, vimos surgir nos relatos outros dados: quais
educadoras estiveram com
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o grupo, como era sua relação, que fatos pareciam importantes no trabalho com aquelas
crianças, que entrada a psicóloga e pedagoga da creche tinham tido com o grupo. Além
disso, uma série de elementos implícitos colocavam-se no discurso sobre as crianças.
À história cronológica e factual de um grupo correm paralelamente muitas outras: a
história imaginada sobre como deveriam ser aquelas crianças, a história do desejo da
cada educadora ao exercer seu trabalho, a história do investimento da creche enquanto
instituição pré-escolar da Universidade de São Paulo, histórias estas que nem sempre
estão aparentes para quem está inserido cotidianamente na estrutura da instituição. Daí a
necessidade de um novo olhar, de novas perguntas, de alguém ou algo que possa romper
com o que está dado.
Todos estes pontos, todas as histórias estão presentes na constituição dos sujeitos que
participam daquela instituição. É este aspecto da subjetividade que é preciso ser
considerado quando pensamos numa intervenção institucional. O que importa é saber,
no discurso presente na instituição, como aqueles sujeitos que delas participam se
percebem, como se relacionam. Fazer pensar sobre isso tornando possível que algo mais
seja notado, alguma representação, uma idéia, um conflito. Além disso, que seja
retomado o investimento da instituição no exercício de sua tarefa. Assim é que uma
intervenção tal como a pensamos permite ou deveria permitir um momento de ruptura,
um recorte que faz pensar. O que se procura é a criação de espaços na instituição que se
caracterizem como lugar de escuta. Tais espaços pretendem garantir a circulação dos
discursos presentes na instituição buscando a construção de outros novos, de forma a
encontrar os significados dados àquilo que acontece no interior da instituição.
Importa dizer que nestes espaços de escuta não se pretende ter alguém, único, que ouça
e diga onde estão as “falhas”, os pontos cegos. O que se busca é o estabelecimento de
relações, de encontros e trocas onde os sujeitos envolvidos escutem-se, onde, naquilo
que é dito, algo de novo possa ser encontrado ou algum fato re-significado. Por
exemplo, numa das intervenções uma das educadoras se refere ao horário de sono das
crianças do seu grupo. Conta como era difícil, que as crianças demoravam a dormir, no
entanto, “tinham que dormir” (sic). Ao ser questionada pela coordenadora do grupo
sobre porque as crianças tinham que dormir, fala da necessidade do sono em crianças
daquela idade, como ficam no final do período se não dormem naquela hora etc.
82
Diante disso, outra educadora conta como aquela hora era também importante para ela,
era o final de seu turno, momento de deixar o grupo, passar informações para a
educadora da tarde. Algo então nesta conversa se re-significa sobre o sono, a hora de
dormir, sobre o que se dava numa situação tida como “dificuldade das crianças”. As
explicações lógicas sobre a necessidade daquele momento de descanso para as crianças
não davam conta da dimensão do problema da hora de dormir. Por quê? Porque
existiam outras respostas para aquela pergunta da coordenadora. Respostas estas que
envolviam as educadoras, suas necessidades e não somente a das crianças.
Neste caso, o coordenador de um grupo de intervenção pode ser alguém que, diante de
alguns fatos, aponta algo, faz perguntas, destaca algum exemplo ou situação narrada
produzindo novas histórias das quais é também participante. Sua presença e atuação, na
situação de grupo, guiam-se pela via contrária a da paralisia e estereotipia. O que se
procura produzir são novas significações para antigos fatos, sentido onde não existia
algum, possibilidade de deslocamento das pessoas em seus lugares normalmente
estabelecidos.
Voltando ao nosso ponto de partida, as crianças “terríveis”, apresentamos uma
proposta de intervenção com o grupo de educadoras. Preferimos, a princípio, não estar
com as crianças porque avaliamos que muitas das questões levantadas estavam ligadas a
dificuldades das educadoras na condução do trabalho com as crianças.
No início, o grupo requisitava alguma “orientação psicológica” sobre as crianças:
como lidar com elas, como agir. “X. diz que poderiam trazer situações do módulo para o
grupo e discutir comigo [coordenadora] o que fazer.”“Y. coloca que o trabalho [como
educadora] precisa de muita orientação.”“Z. comenta que sentem falta desta orientação
na creche..., quando ocorrem brigas, quando as crianças não se envolvem no trabalho...
o que fazemos?”.(3) Ao longo do processo foram surgindo comentários a respeito de
como aquele grupo de educadoras se sentia orientado, pela equipe de direção da Creche,
sobre o que fazer com as crianças. Algo então se transforma. O foco colocado desde o
início sobre as crianças desloca-se para a relação entre equipe e educadoras. Começam a
aparecer conflitos, insatisfações
83
etc. As crianças quase que não eram mencionadas, os problemas com elas pareciam ter
desaparecido, falava-se somente da relação entre educadoras e equipe da direção.
Que mudança seria aquela? As crianças não tinham mais problemas? Deixaram de ser
terríveis? Provavelmente não teríamos como delimitar de que ordem exatamente foi a
mudança, no entanto, poderíamos dizer que o que importa é considerar o momento em
que aquelas questões sobre as crianças eram feitas. Podemos dizer que se partia de um
determinado ponto de vista (por exemplo: elas são terríveis e nós — educadoras — não
temos nada a ver com isso) e que, com a entrada da intervenção, outras visões puderam
aparecer, outros fatos foram considerados — fatos que permeavam o envolvimento das
educadoras no trabalho com aquelas crianças, por exemplo, sua relação com a equipe de
direção. Isso é o que queríamos ressaltar quando apontamos acima o significado de uma
intervenção na instituição. Dizíamos: recorte que faz pensar, lugar de fala e escuta,
possibilidade de novos movimentos.
O exemplo citado trata de uma intervenção realizada com um grupo de educadoras, no
entanto, isto não constitui um modelo de atuação. A proposta de trabalho pode sugerir a
participação de um ou diversos grupos da instituição: profissionais, crianças, pais etc.
Cada trabalho surge de uma reflexão entre instituição e a equipe que o realiza, bem
como de uma avaliação no interior desta última. Neste processo tudo pode ser
reavaliado.
Considerações finais
As instituições educativas, ao trabalharem com a transmissão/ produção do
conhecimento, lidam predominante-mente com a objetividade. Nosso trabalho, ao entrar
nessas instituições, é o de buscar a dimensão psicológica no interior das práticas
educativas, dimensão esta que é dada pela subjetividade.
Nossa entrada na instituição se dá exatamente quando, a nosso ver, ocorre
“transbordamento da subjetividade”: a dimensão não prioritária se impõe produzindo,
no coletivo, situações inusitadas ou recorrentes, sempre preocupantes, escapando ao
funcionamento “normal”. É quando surge, por exemplo, o pedido de ajuda para o
atendimento
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85
Nestes quatro anos de trabalho temos observado que os efeitos e repercussões de nossa
intervenção estão relacionados ao momento vivido pela instituição. Esta pode, em maior
ou menor grau, apropriar-se das questões que se explicitam no decorrer do trabalho e,
assim, reposicionar-se em relação aos objetivos a que se propõe no exercício de sua
tarefa institucional.
Nosso objetivo nesta exposição foi de, ao relatar uma situação de intervenção, ainda
que resumidamente, e refletir sobre alguns aspectos que a contornaram, levantar
questões e ampliar a discussão sobre as diferentes possibilidades de trabalho psicológico
em instituições educativas.
BIBLIOGRAFIA
BLEGER, J. “O grupo como instituição e o grupo na instituição”. In: KAES, R., org. A
instituição e as instituições: estudos psicanalíticos. São Paulo, Casa do Psicólogo, 1991.
GUIRADO, M. Psicologia institucional: temas básicos de psicologia. São Paulo, EPU,
1987. v.l5
GUIRADO, M. Psicologia escolar e psicologia institucional. /mimeografado/
KUPFER, M.C. Psicologia escolar ou psicologia na escola? /mimeografado/
LOURAU, R. A análise institucional. Petrópolis, Vozes, 1975.
86
Os bastidores do trabalho
Em agosto de 1993, após um levantamento das escolas que apresentavam alto índice
de repetência na região próxima à Cidade Universitária, em São Paulo, cheguei à Escola
Estadual AJ.
Descreverei, a seguir, alguns trechos do histórico do trabalho, na forma de um diário
de campo, os quais serão intercalados com algumas análises dos acontecimentos.
(1) Esta intervenção foi realizada com a colaboração de seis alunas estagiárias do
curso de Graduação em Psicologia: Alessandra Isola, Alessandra Seabra, Ana
Cristina P. Rhulle, Fabiana P. de Lazzari, Lara Rossetti Machado, Rosana
Frischer.
87
Telefonei para a escola. Uma das secretárias da escola atendeu. Perguntei-lhe o nome
da coordenadora do ciclo básico, da vice-diretora e da diretora, e se podia falar com
alguma delas. A secretária contou-me que a diretora era recém-chegada à escola e que
não estava lá naquele momento, por isso conversei um pouco por telefone com a vice-
diretora. Apresentei-me e pedi para marcarmos um encontro para que eu pudesse lhe
explicar qual era nosso trabalho.
Tradicionalmente somos profissionais formados para analisar a demanda que nos
chega. O que recebemos, na maioria dos casos, são crianças portadoras de “queixa
escolar”, com um pedido de avaliação psicológica. Entender o que está acontecendo
com elas exige o contato com quem encaminha, pois é nessa relação que a queixa está
sendo produzida. Em alguns casos chegamos às escolas e recebemos uma lista de
crianças para atendermos. Se ocorrem encaminhamentos com a expectativa de
mudarmos uma criança, ou convencê-la de algo, é de nossa responsabilidade apresentar
nossas idéias e versões sobre os sintomas dos quais a escola se queixa. O contato com
os profissionais da escola é um processo longo e complexo.
Fui à escola na mesma semana. Após uma rápida conversa com a vice-diretora, pediu-
me que apresentasse minhas idéias e a possível proposta de trabalho para as professoras.
Aí vai um pouco da apresentação: - Sabemos que a maioria das crianças encaminhadas
para atendimentos, em Psicologia, apresentam queixas escolares. Temos tabulações de
algumas Unidades Básicas de Saúde que mostram que esses encaminhamentos são
feitos, em sua maioria, pelas escolas que relatam problemas de comportamento ou de
aprendizagem nas crianças. Optamos por trabalhar no território onde esses “problemas”
são produzidos, por acreditar que, em sua maioria, são sintomas do funcionamento das
relações que essas crianças habitam. (Discuti também sobre a tendência de analisarmos
os afetos racionalmente). Eu ainda
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Impressionava aos professores o fato de estar sendo proposto um trabalho que incluía a
participação deles. Alguns se queixaram da
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prática diagnóstica que não lhes ajudava no dia-a-dia da sala de aula. Mas se a
expectativa às vezes não é para definirmos o que a criança tem, ela ainda carrega a
ilusão de podermos dizer o que fazer para mudá-la, como se essa mudança não
90
As professoras fizeram uma lista com os alunos que as preocupavam. Pedi-lhes para
responderem um breve relatório com a intenção de ter a versão da professora sobre o
aluno encaminhado.
1 - Qual a preocupação e a queixa a respeito da criança?
2 - Como a criança age na sala de aula e no recreio? Como é sua freqüência às aulas?O
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As crianças e as professoras
Iniciamos o trabalho em grupo com as quinze crianças encaminhadas. Após o primeiro
encontro com as crianças deflagrou-se a greve dos professores em agosto de 1993. Das
quinze crianças, j. eram da classe especial. Como a professora da classe especial, Nadir,
não aderiu à greve por motivos particulares, permanecemos trabalhando com seus
alunos. Todas as professoras do Ciclo Básico, do período da tarde, participavam da
reunião por dois motivos: um é que haviam resolvido que um dos horários de HTP
(Hora de Trabalho Pedagógico) seria o da reunião comigo, pois as três professoras que
não encaminharam crianças queriam estar presentes (não gostei muito desta decisão por
temer que se transformasse em mais uma reunião obrigatória); o outro motivo é que,
durante a greve, esses encontros passaram a ser um momento onde elas iam à escola e
encontravam-se para conversar sobre o movimento de paralisação das aulas.
No primeiro encontro com as crianças, colocamos o enquadre: número de encontros,
duração e local. Desenhamos alguma figura (trem, pizza...) que pudesse representar o
número de encontros. Para cada um deles pintava-se um dos vagões, por exemplo. Era
muito comum as crianças acharem que não voltaríamos após o primeiro encontro.
Contamos para as crianças que elas foram encaminhadas pelas professoras que
estavam preocupadas com elas. Perguntei-lhes por que estavam no grupo? O que
preocupava a professora? E assim começou a conversa: “A tarefa é pensar os
acontecimentos na escola. Para isso nos conheceremos durante os encontros”.
Levamos material (sucata, cola, fita crepe, material gráfico, jogos - dominó, baralho,
memória...), que podia ser utilizado por eles. Esse material era de todos e o que fosse
produzido por eles seria guardado e entregue no final do grupo. Um pouco antes do
final de cada encontro, tínhamos que guardar o material e arrumar a sala. Enquanto
coordenadores, iríamos trabalhar para que esse material não fosse destruído e que
ninguém se machucasse. E, logicamente, o grupo é optativo.
Com o intuito de entender melhor o que vinha acontecendo na vida escolar deles,
pesquisamos na secretaria suas histórias escolares e conversamos com seus pais.
92
tarefas de várias casas do percurso, que deveriam ser executadas quando a peça caísse
nessas casas.
Vagner, Pedro, Wellington, Laurentino, Juliana, José Antonio, Fábio... crianças
perfeitamente normais do ponto de vista do desenvolvimento intelectual. Algumas
agrediam a professora, uma pessoa carinhosa, que gosta do trabalho que faz e que
desconfiava dos laudos psicológicos. O que agrediam? Encaminhadas para classe
especial sem terem noção do que estava ocorrendo, a maioria não queria e não gostava
de estar ali. Expressavam isso de formas diferentes. Wellington (13 anos) é o famoso
tipo “indisciplinado”, ele fora encaminhado para avaliação devido a problemas de
comportamento. A psicóloga que o encaminhou para a classe especial aplicou-lhe o
teste Raven para avaliar a inteligência. O resultado foi baixíssimo. Soubemos depois
que Wellington não teve paciência para responder todas as questões. Com 13 anos de
idade, ele gosta de “alegria, alegria”, como dizia. Não queria pensar sobre o fato de
estar na classe especial. Era famoso na escola por “desacatar, aprontar, responder”...
Wellington ocupava o lugar de “o terrível”. Um lugar que escondia sua insegurança e o
fracasso de sua história escolar. Um dia, jogando o jogo de percurso, ele caiu em uma
casa onde deveria contar uma história real. Chorou ao lembrar de sua avó que morreu.
Ela era quem cuidava dele. As estagiárias escreveram em seu relatório final:
“Wellington se apresentava diferente a cada encontro. Às vezes estava bravo, terrível,
outras vezes chorava. Entendemos (depois de muita angústia e algum tempo de
trabalho) que Wellington pôde se utilizar do espaço do grupo para mostrar essas suas
múltiplas faces. Sua situação na escola se encontra cristalizada, ele é “o” terrível e “o”
filho de família problemática”. Por que agride as outras crianças?
93
94
encaminhamento para a classe especial, construiu com sucata, pela primei vez, um
projeto seu.
Juliana (11 anos) fora encaminhada para avaliação por sua professora com a intenção
de “proporcionar-lhe uma ajuda durante a fase difícil pela qual passava (perda da mãe e
mudança de cidade)”, segundo relato das estagiárias. Ela se queixava que Juliana estava
sempre emburrada, recusando-se a fazer as lições, mas ficou impressionada quando veio
o encaminhamento para a classe especial. Juliana ia aos encontros do grupo, participava
das atividades e dizia não querer ir. Se mal - interpretada, poderia parecer que Juliana
95
os problemas de aprendizagem tivessem uma relação causal direta. E é uma idéia falsa.
Como trabalhar as questões afetivas que surgem na sala de a..., Um dia, durante os
encontros com as professoras, elas falaram de j menino que tinha trejeitos femininos na
forma de andar e que era a de gozações das outras crianças. Queriam que eu o
atendesse. Nessa gozações sofridas por ele, o tema da sexualidade aparecia. Ao invés
questionarmos a normalidade dele, era preciso pensar como esse tema na sala de aula.
Os acontecimentos nos revelam questões q... se são abafadas, tendem a reaparecer.
“Certas questões são difíceis serem trabalhadas pelo nosso próprio preconceito”, diz
uma professoras. Preconceitos carregados de valores morais. Como que as diferenças
existam em uma sala de aula?
Muitas das perguntas formuladas pelas professoras mostravam u fantasia de que o
psicólogo é aquele que adivinha e diagnostica todos os fatos. Por exemplo: “Adriana,
outro dia pedi um exemplo de i quadrúpede e a criança respondeu chapeuzinho
vermelho, o que e tem?”. Havia uma idealização dos diagnósticos e uma
desconsideração sobre seu próprio saber em relação às crianças. Neste caso a professora
havia perdido a oportunidade de pesquisar a hipótese da criança.
Existem certos casos, na escola, que demandariam atitudes coletivas. Penso que
algumas regras e o funcionamento burocrático dai escolas públicas intensificam a
prática de a professora ser a responsável pelas crianças de sua sala (e, nesse ano de
1994, as s têm, em média, 38 alunos). Muitas crianças, encaminhadas para ai especial,
passam a ser de responsabilidade exclusiva da professora dessa classe. É raro que uma
professora da classe comum, ao encaminhar aluno para uma avaliação que o manda à
classe especial na condição a - deficiente, dê continuidade à relação com esse aluno. Por
isso a sensação de solidão que as professoras da classe especial freqüentemente
denunciam e a dificuldade em fazer da classe especial um lugar.... circulação.
As professoras criticaram o fato de as classes terem sido organizada pelas secretárias,
que possuíam uma lista das crianças com problema comportamento, para que não as
colocassem na mesma classe. A formação de classes é uma atividade muito delicada.
Decidir o destino das crianças exige considerarmos as amizades entre elas, os vínculos
formados.
96
escola no mesmo dia, tirando-o de lá. Lembrei-lhes que algumas mães das crianças
repetentes encaminhadas para as classes dos alunos considerados fracos ou para uma
avaliação psicológica não são consultadas, outras acreditam que as professoras sabem o
que é melhor para seus filhos. Assim como as professoras acreditam ser o psicólogo
quem pode dizer o que é melhor para seu aluno. Uma das professoras disse, então, que
sentia tratar seus alunos como objetos. Como se perante um acontecimento qualquer
(por exemplo, remanejar a criança de uma sala de aula para outra), a criança não fosse
sentir nada e nem fantasiar nada. Entendesse, simplesmente, que a decisão tomada por
ela era a melhor. É comum as professoras contarem que já conversaram com a criança e
explicaram os acontecimentos. Por exemplo, terem dito que o remanejamento será bom
para ela, pois a outra classe está em um ritmo mais adequado ao dela. Razões,
explicações, que desconsideram os efeitos nessa criança remanejada. Em alguns casos a
criança diz que a professora a mudou de classe por não gostar dela. Como a criança
participou desse processo? O desinteresse das crianças, em relação ao fato de serem
alunos da classe especial, revelava o processo de encaminhamento. O pensamento
racional e lógico para o entendimento de certos gestos é uma herança filosófica que
carregamos em nossa formação. E fica então a questão: qual tipo de ser queremos
formar? Um ser simplesmente obediente?
Também íamos conversando sobre algumas crianças. As professoras se
impressionaram com relatos dos grupos que mostravam potencialidades das crianças.
Vagner, também diagnosticado como deficiente, levou no grupo seu jogo de dominó.
Ele não só ganhava sempre como, sensibilizado pelo fato de a estagiária não ganhar
dele, resolveu, em um dos jogos, deixá-la jogar. Ele descobria, com facilidade, as peças
que os vários jogadores deveriam ter, ao observar as jogadas dos mesmos. Em relação a
Wellington, parecia lógico a algumas professoras que ele precisava de limites e que era
um menino terrível. Perguntei-lhes sobre o motivo desse comportamento de Wellington.
97
Lilian, a professora de uma outra classe especial dessa escola, disse que ele precisava de
carinho e atenção. Isso parecia estranho a algumas professoras: “Aquele menino que
produz raiva na gente quer carinho?”. Com relação à professora de Juliana, ela passou a
sentir os mãos da garota como um “sim disfarçado”, como ela mesma expressou.
Parando de se sentir atacada por Juliana, foi possível descobrir formas de conseguir que
98
Nessa reunião devolutiva, temas como a questão da busca diagnóstica, da formação de
classes homogêneas, da solidão do professor da classe especial foram discutidos. A
professora da classe especial declarou que todas as crianças iriam ser encaminhadas
para a terceira série. Ela sairia da escola, pois ficaria sem classe para lecionar. Essa
99
inúmeros casos, prejudicado a vida escolar desses alunos, por não considerarem o
contexto escolar onde a queixa fora produzida e por produzirem um efeito rotulador. Por
BIBLIOGRAFIA
COLLARES, C.A. “Ajudando a desmistificar o fracasso escolar”. In: Toda criança é
capaz de aprender? São Paulo, FDE, 1989, p. 24-8 (Série Idéias, 6).
MACHADO, A.M. Crianças de classe especial - efeitos do encontro da saúde com a
educação. São Paulo, Casa do Psicólogo, 1994.
PATTO, M.H.S. A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. São
Paulo, T. A. Queiroz, 1990.
100
À abordagem que fiz, subjaz a idéia do psicólogo como agente capaz de contribuir
para o rompimento de discursos institucionalmente
101
cristalizados; dentre outras formas, pela abertura de espaços de expressão para discursos
reprimidos e aclaramento destes.
Assim, realizei uma reunião inicial com as professoras, onde pudemos aprofundar a
queixa, pedido e contrato, estabelecer as especificidades de cada classe, verificar que
não parecia tratar-se de rigidez excessiva das professoras e que essas já haviam
explorado bem seus recursos. Uma das professoras não apresentava queixa, mas
interessava-se pelo assunto. Propus que, conjuntamente, víssemos e ouvíssemos a
versão dos alunos com relação ao que estava acontecendo.
Foi pedido a eles que expressassem de alguma forma no papel — anonimamente se
quisessem — como sentiam a classe. Analisei a produção dos alunos, reuni-me com
cada professora para discutirmos tal análise, levantar mais hipóteses e pensar a
devolutiva com a classe, feita com a professora presente. Com algumas classes, foram
feitas várias reuniões.
Com as professoras, o trabalho prosseguiu algum tempo mais, com reuniões de
acompanhamento. Foi interessante ter adotado procedimento similar com a classe da
professora não-queixosa, pois seus resultados ofereceram interessante e produtivo
contraponto.
Passo a apresentar algumas das produções que mais se repetiram e que ilustram as
questões mais candentes.
102
As figuras 1 que aparecem nesse desenho não são bem seres humanos, como se o que
pudesse habitar a escola fossem “seres escolares”, que de humano só têm a cabeça.
Melhor dizendo, na escola só estaria havendo espaço para o racional, para a produção
intelectual. O corpo é transformado ou misturado à carteira, onde deve permanecer o
tempo todo. Aparecem figuras inteiras quase que só nos desenhos de pátio, quadra, rua,
enfim, fora da classe.
Figura 2 tem um texto: Eu acho a classe muito bagunceira, Eu não sou de muita
bagunça, Eu só bagunço quando estou na rua, E aqui na escola eu não gosto também
porque quando chego na minha casa eu penso só na bagunça e eu não agüento ver os
outros brincando e daí eu vai brincar também.
Esse texto vem aclarar o que já aparecia na ilustração anterior: num lugar onde só a
racionalidade é admitida, não pode haver brincadeira, que em tal contexto muda de
nome e significado. Brincadeira, na escola, é bagunça. Bagunça, na rua, é brincadeira.
Veja- se como o aluno se perde com esses dois termos pelo meio do texto, quando passa
da escola para a rua. Isso indicou — e confirmou-se depois no contato com o aluno-
autor — que o fenômento o mesmo. Diferentes são os significados conforme o contexto.
Ora, a necessidade de brincar,
103
irreprimível (são crianças!), sem possibilidades institucionais de satisfação, procura
canais por sua própria conta: a “bagunça”.
A questão da cisão entre o estudar e o brincar, ou melhor (ou pior), entre estudar e ter
prazer, foi das que mais apareceu. Não que eu acredite ser possível estudar tendo prazer
e brincando o tempo todo, mas sabemos que existem muitas estratégias pedagógicas que
contemplam integradamente ludicidade e conteúdo escolar, além de propiciar a
aprendizagem significativa. Estratégias com estas características quase não vinham
sendo utilizadas pelas professoras. É quando isso ocorria, a classe ficava muito
insegura, pois era algo que desde a pré-escola praticamente deixaram de vivenciar. Tal
cisão naturalmente contribui para afastar o interesse dos alunos dos conteúdos escolares,
influindo diretamente na aprendizagem.
Mais uma vez foi muito positivo o envolvimento da professora não-queixosa e de sua
classe, pois ficou claro que não era coincidência o fato de ela ser a única que usava com
104
Assim, é difícil transmitir prazer em estudar quando seu próprio vínculo com o estudo e
as produções acadêmicas é ruim. É difícil descobrir sentido em conteúdos específicos
onde nunca se viu nenhum, é difícil ensinar de forma significativa e lúdica quando
nunca se passou por algo assim.
Esse é um exemplo claro de onde a ação do pedagogo e do psicólogo se
complementam. Faltam ao psicólogo as técnicas pedagógicas, falta essa que aliás foi
sentida ao longo desse trabalho. E falta ao pedagogo a formação para lidar com questões
mais profundas como essas, sem o que a simples apresentação de técnicas corre o risco
de cair no vazio.
Na figura 5 retoma-se o tema já discutido do cerceamento do corpo e aparecem
crianças como que amarradas às cadeiras, que seriam as educadas, que seguem as regras
presentes no texto do terceiro quadro do desenho. Tal texto reproduz o discurso oficial,
o permitido.
No segundo quadro aparece referência a um conflito marcante em todas as classes e
bem conhecido de quem lida com escolas: o que ocorre entre meninos e meninas, estas
últimas sendo massacradas pelos meninos. Vejamos o desabafo de uma delas na figura
seguinte.
106
Figura 6 texto: Eu me sinto ruim, Porque eles vão começar a fazer barulho é não
deixarão a gente fazer lição. Daí fica uma gritaria e a professora grita de cá e os
meninos gritam de lá. E eles puxam a gente e enchem o saco que nem agora. E eles não
deixam a gente quieto.
Esse é um exemplo claro de que não se pode pensar a escola isolada da sociedade, pois
vêem-se reproduzidos dentro dela mecanismos, tal como o machismo, que se fazem
presentes em toda a sociedade — assim como as contradições que podem levar à
mudança.
Como no mundo extra-muros escolares, observamos também os mais fortes
dominando os mais fracos. Mescla-se a isso a questão dos repetentes, que agridem os
menores não só por serem mais fortes, mas também como uma atuação. Reagem ao fato
de se sentirem agredidos por estarem na mesma classe de crianças bem menores, o que
os põe em evidência e os faz lembrar constantemente de sua condição de repetentes,
com todos os significados degradantes a ela associados.
O racismo marcou presença forte, com a rejeição dos negros pelos brancos e mulatos.
Esses últimos também eram rejeitados pelos brancos. Negros e mulatos
envergonhavam-se de sua raça e por vezes revidavam com agressões.
107
A responsabilização dos alunos pelo que ocorre de “errado” na classe, de mau
rendimento a mau comportamento, faz parte do discurso oficial. Este é freqüentemente
internalizado por tais alunos, como mostra a figura 7 e outras manifestações dos
mesmos, fenômenos c conseqüências perigosas para essa e outras áreas de relação
desses seres humanos em desenvolvimento.
É importante, sim, a consideração das responsabilidades dos alunos. Não se trata aqui
de isentá-los disso, imputando tudo à Escola e à Sociedade. Não é à toa que os
emergentes das várias questões aqui tratadas foram determinados alunos e não outros.
Certamente houve algo neles que se combinou com os determinantes externos, O que
preocupa é quando a responsabilidade do aluno é superestimada,
108
109
junto a uma outra cuja professora mostrou-se fechada e delegou-me todo o trabalho,
com alunos que tinham muitos conflitos envolvendo questões de âmbito social, como o
racismo, por exemplo.
Foram eleitos alguns temas de trabalho com toda a escola, tais como a revisão das
estratégias pedagógicas desde as séries iniciais (como a adoção de trabalhos em grupo,
por exemplo), o repensar os mecanismos escolares que reforçam o afastamento de
meninos e meninas (como fila, chamada e Educação Física diferenciadas); o
aproveitamento da Semana do Negro para trabalhar o tema do racismo etc.
Por fim, alguns reparos técnicos: notei ser aos alunos importante e prazeroso rever
suas produções e discutir cada uma. Aliado ao fato de o tempo decorrido entre a
produção do material e a devolutiva dever ser o mais curto possível, tornou-se
imperativa — e produziu melhores resultados — a adoção de produções em pequenos
grupos. Essas eram exploradas primeiramente em separado com cada grupo e numa
outra ocasião se reunia a classe toda.
BIBLIOGRAFIA
ANZIEU, D. Os métodos projetivos. Rio de Janeiro, Campus, 1979.
BLEGER, J. Psico-higiene e psicologia institucional. Porto Alegre, Artes Médicas,
1984.
FREUD, S. Mas allá dei principio dei placer. Madrid Editorial Biblioteca Nueva, 1973.
(Obras Completas, v.3)
110
111
112
Dentro dessa nova categoria encontram-se, de acordo com as estatísticas americanas
apontadas nesse manual, 10 a 15 crianças ou adolescentes em cada 10.000. Supondo-se
que essa incidência seja semelhante no Brasil — que tem hoje, segundo o IBGE, uma
população estimada de 60 milhões de crianças e adolescentes de até 17 anos (Crianças e
113
portanto de um equipamento apto a receber crianças portadoras dos distúrbios globais
de desenvolvimento, uma vez que elas podem ser recebidas na crise e obter também um
tratamento continuado através de “abordagens múltiplas (medicamentos, psicoterapias,
terapia ocupacional, orientação e apoio familiar e atividades sócio-culturais
O eixo educacional
Sabe-se que toda exclusão dos chamados “doentes mentais” do convívio com a
sociedade em geral não propicia a sua recuperação. As tentativas de “desospitalização”,
o repúdio à internação cronificante e a condenação da segregação têm sido as bandeiras
empunhadas pelas políticas atuais de saúde mental (Marsiglia, 1987).
Para uma criança, o principal agente de inserção social é sem dúvida a escola. Ora, as
psicóticas e autistas estavam, até há bem pouco tempo, excluídas da escola e, portanto,
do circuito social por dois motivos: não se pensava que eram capazes de aprender e era
impossível mantê-las por muito tempo em uma escola, devido à sua instabilidade,
agressividade ou comportamentos bizarros.
No entanto, fala-se atualmente cada vez mais das condições intelectuais que podem ser
encontradas nessas crianças; são as “ilhas de inteligência” que permanecem intocadas,
apesar da violenta interrupção de seu desenvolvimento provocada pela irrupção das
crises.
O movimento natural, que se segue a essas novas considerações, deveria ser o de
buscar a reinserção dessas crianças na escolarização regular, caso se queira ser fiel às
políticas de saúde mental mencionadas. Caminhando na direção oposta, a criação de
escolas especiais para autistas e psicóticos seria então acusada de “prática
segregacionista”.
No entanto, as tentativas de colocar essas crianças na rede escolar regular nunca foram
de fácil execução. Tomem-se, por exemplo, as experiências européias reportadas em um
Colóquio Internacional realizado na Noruega sobre esse tema (Integração de jovens
deficientes no ensino obrigatório na Noruega, 1983). Ali se descrevem as tentativas
feitas no sentido de manter em classes regulares do ensino público algumas crianças
autistas e psicóticas: elas terminaram, depois de se verificar que as escolas acabavam
criando classes especiais, em que havia apenas uma criança — exatamente a psicótica
ou a autista, com quem o convívio se tornara insuportável.
115
Por isso, o Lugar de Vida é uma pré-escola: trata-se de um trabalho prévio, anterior à
escola, que busca colocar nossas crianças em condições mínimas de freqüentar uma
escola. De nada adianta tentar impô-las a uma professora, estando ainda instáveis,
agressivas.
Assim, a reinserção escolar, no Lugar de Vida, é o alvo final, que equivale aos
objetivos de diminuição do número de internações ou inserção no mercado de trabalho,
usados pelos serviços de atendimento e hospitais-dia para adolescentes e adultos.
A “pré-educação” pode ainda prover uma sustentação imaginária para essa inserção
social. “Meu filho está na escola”, poderá dizer a si mesmo e aos vizinhos um pai que
vê seu filho sair do Lugar de Vida segurando um trabalho de sucata. O menino terá
colaborado com um único gesto, o de colar um tubo pintado — resto descartável — em
uma base de papelão, fazendo-o ficar de pé. Mas o olhar que lhe dirigir seu pai terá
valor mais estruturante que seu gesto: somado a outros que lhe serão dirigidos em outras
ocasiões, é agora ao menino que poderá ajudar a “ficar de pé”.
116
Pode-se dizer, grosseiramente, que em uma criança dita psicótica “o que falta é a
falta”. Dito de outro modo, a estrutura que as organiza pode ser comparada à de uma
frase melódica sem um repouso na tônica, o que equivale a uma frase sem ponto final. A
falta de ponto final, de uma pausa no enunciado, de um momento de conclusão, impede
a emergência do sentido. As palavras voam sem o necessário momento de pausa, o
momento que teria permitido o movimento de retroação e de compreensão do que havia
sido enunciado até aí. A parada, renúncia à entrega ao movimento da linguagem, que
tende para o constante deslocamento, implica que se introduza aí uma falta, uma
suspensão, sem a qual, no entanto o sentido não pode advir. Então, o que se diz é que
falta à criança dita psicótica o equivalente a esse ponto final, falta-lhe esse momento de
interrupção, e o sentido que não pode então advir.
Poderá o sentido que lhe falta ser provocado de modo ortopédico? No Lugar de Vida,
estamos apostando nessa criação através de recursos da montagem institucional,
entendida em seu sentido amplo, além da tentativa de criá-lo em cada instância de
trabalho.
No sentido amplo, busca-se acompanhar as respostas das crianças aos manejos
institucionais ali praticados. Verificam-se, por exemplo, os efeitos da introdução das
atividades educacionais em seguida às terapêuticas. Observa-se o modo como as
crianças recebem o corte que acontece na passagem de uma atividade para outra, espera-
se que a alternância de atividades, espaços e pessoas crie o equivalente a frases, tecendo
redes de linguagem nas quais a criança poderá vir a se situar.
Entende-se ainda que as três grandes redes de linguagem que se tecem no Lugar de
Vida — o discurso dos pais, o institucional e o das crianças no conjunto das atividades
— estão sempre entrecruzando-se, produzindo pontos nodais. A reunião semanal da
equipe, chamada reunião de síntese, é o momento em que esses pontos nodais são
117
Para terminar, podem-se tomar os movimentos de uma criança como fio condutor para
a ilustração de como se realiza o trabalho no Lugar de Vida.
Maurício é um menino de 11 anos, cuja história de vida nos leva a crer que foi um dia
um autista, e é hoje um psicótico. É capaz de aprendizagens casuais, mas não parece
implicar-se nelas. Verificamos com espanto que sabia ler, embora não fizesse nenhum
esforço para demonstrá-lo. Fala muito mal, e sua aproximação é extremamente
desorganizada; busca tão somente agarrar as “muié” e puxar-lhes o cabelo.
Quando seu pai passa a levá-lo à instituição, produzem-se mudanças em sua posição
frente ao filho, operadas, supõe-se, a partir de sua transferência com a instituição. No
grupo dos pais, ele observa que “se os profissionais do Lugar de Vida cuidam tanto de
filhos que não são deles, com mais direito deve ele cuidar do seu”. Os resultados no
filho fazem-se notar: toma-se mais organizado e obediente ao pai.
No ateliê de música, pendura-se sensualmente a uma das profissionais e cola seu corpo
ao dela, escorrega-se nela, que responde propondo-lhe que dance com ela ao som da
música, ritmadamente, corpos afastados, já que não são namorados. Ou seja, propõe
uma forma estruturada, sublimada, criada pela cultura, de arrancá-lo, pela via do prazer,
do gozo em que se achava mergulhado. Maurício poderia não aceitar, mas aceitou.
Maurício trabalha um pouco mais organizadamente nas atividades educacionais,
folheia livros de estória, encontra lá materiais, nomes e atividades que o ajudam na
conquista de uma estabilização crescente.
No grupo terapêutico, vê-se um dia sozinho. As outras crianças faltaram. Angustia-se,
e pergunta — cadê? — por cada um deles. Constata-se que conhece os nomes, e que
pode registrar ausências. Em seguida, começa uma brincadeira em que é ele, agora,
quem desaparece.
118
Indo depois para a “escolinha”, mostra que sabe ler os nomes das outras crianças,
escritos no mural. É agora uma leitura que faz sentido para ele: designa as crianças
ausentes.
Pouco tempo depois, começam os primeiros desenhos, que culminam com uma figura
humana. Seu nome: “Maurício”.
O grupo de pais, os ateliês, o grupo terapêutico e o educacional trabalham em
diferentes frentes, na tentativa de compor uma estruturação da qual uma criança venha a
se apossar, se puder.
Para concluir: o desamparo não é o único responsável pela produção da “doença
mental”, já que esta é multideterminada. Mas é um fato que a “doença mental” produz
desamparo. E contra esse desamparo, sobretudo, que o Lugar de Vida quer lutar.
BIBLIOGRAFIA
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distúrbios mentais - DSM-III. 3.ed., São Paulo, 1989.
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MANNONI, M., org. Bonneuil, seize ans après. Paris, Denoel, 1987.
119
121
que se pode utilizar o jogo dos rabiscos, para facilitar uma breve e profunda
comunicação com o paciente, que exporá seu problema principal nas primeiras
entrevistas.
Inspirada nas Consultas, optei por um trabalho com grupos de crianças, apesar das
restrições que o autor apresenta quanto a esse tipo de intervenção. Alguns dos
“seguidores” de Winnicott trabalharam com grupos e obtiveram resultados favoráveis.
De qualquer forma é uma possibilidade técnica interessante e representa um desafio que
resolvi
122
enfrentar. Este trabalho é uma oportunidade para refletir sobre seus limites e
possibilidades.
Acredito que reunir algumas crianças com queixa escolar, diante de uma caixa com
material gráfico, sem nenhuma atividade pré-estabelecida, com um adulto disponível a
acompanhá-las e escutá-las, pode ser uma oportunidade para a expressão do conflito
predominante de cada criança e do grupo. Também permite ao psicólogo esboçar um
pré-diagnóstico, localizando o tipo de dificuldade que apresentam para delinear
estratégias de trabalho.
A função terapêutica, ou facilitadora, dessa experiência deve ser avaliada,
constantemente, e o material clínico que relato a seguir é uma boa oportunidade para
iniciar essa reflexão.
O enquadre proposto para as crianças suporta variações, mas os parâmetros básicos
são: seis a oito participantes, aproximadamente 10 sessões, uma hora de duração, uma
vez por semana, uma caixa com material gráfico e, dependendo da idade, jogos, animais
de plástico e famílias de pano.
Procuro conversar uma vez com o grupo de pais e com o de professores,
separadamente, uma vez antes de começar o trabalho com os alunos e no final do
processo, objetivando, por um lado, escutar sua versão sobre os problemas enfrentados
pelas crianças e seus sentimentos e atitudes frente a essa problemática. Por outro lado,
procuro ajudá-los a pensar em formas de facilitar o crescimento das crianças,
aproveitando possíveis mudanças ocorridas a partir do processo grupal, ao propiciar
Estudo de caso
A seguir, relato, sucintamente, o percurso percorrido por um grupo formado por
crianças repetentes que estavam cursando a primeira série
123
pela terceira ou quarta vez, encaminhadas por professores de uma escola pública
estadual. Repito que meu intuito com esse relato é fornecer material para reflexão sobre
essa prática, e não generalizar mecanismos, já que cada processo grupal é único,
particular e diverso.
seguinte”.
Gabriel, 9 anos, “é um menino largado, vem sujo para a escola”, “está bloqueado, não
consegue dar o dique, aprende até certo ponto e depois não vai”.
Sílvia, 10 anos, “é apática, fica divagando, no mundo da lua, no seu caderno, ao invés
de lições só tem flores”.
Carlos, 10 anos, “é tímido e introvertido”, “não entende o que a gente faIa”, “não
participa de nada, nem de Educação Física”, “não tem amigos”, “não faz nada”.
124
A história escolar
A história escolar inicial de todos é comum, pois embora estivessem freqüentando, no
momento do trabalho, classes diversas, pertenceram, na primeira série, à mesma classe,
a qual ficou “marcada” na escola por ter sido reprovada em massa (70%) e pela
substituição constante de professores. Estes tiraram licença médica ou se aposentaram
(foram sete professores em um ano).
Após este início conturbado, as crianças reprovadas foram reunidas com outras
“crianças-problema”, tendo sido designada uma professora novata, sem experiência
docente, para assumir a classe, informalmente chamada “lixão”,
Essas crianças repetiram novamente e foram redistribuídas pelas classes iniciantes, a
fim de recomeçar, pela terceira vez, o processo de alfabetização, com exercícios de
coordenação motora fina e orientação espaço-temporal.
A pesquisa da história escolar, geralmente desconsiderada pelos psicólogos clínicos, é
fundamental para entender a problemática enfrentada por essas crianças.
Freqüentemente revela um processo escolar complicado, fruto de práticas escolares
equivocadas e inadequadas.
dos filhos.
Segundo os pais, as crianças tiveram um desenvolvimento normal até entrarem na
escola, quando surgiram os problemas e preocupações. Os professores começaram a
chamá-los na escola para se queixarem dos seus filhos, cobrando-lhes providências.
A exceção foi a mãe de Carlos, que sempre se preocupou com o “o jeito diferente” e o
desenvolvimento “atrasado” do filho.
Os pais de Jorge, Marcos e Wagner achavam que seus filhos não aprendiam porque
eram desinteressados e preguiçosos, ao mesmo tempo
125
canto. Dividiram todo o material, com alguma briga ou discussão. Cada um segurou
firmemente suas coisas e assim permaneceram até o fim da sessão. Não brincaram, não
manipularam os objetos. Apenas tomaram posse deles.
Na terceira sessão, os objetos foram manipulados e, em seguida, destruídos. Marcos
fazia bolas de massinha, as amontoava formando uma torre e em seguida chutava longe.
Jorge amassava os papéis antes de terminar seus desenhos, falando que estavam feios.
Escondia para que ninguém visse sua produção. Fábio apontava o lápis,
obsessivamente, até que ficassem toquinhos e não pudessem ser utilizados. As pontas
eram espalhadas pela sala inteira. Wagner e Gabriel subiam e desciam
126
das carteiras e corriam pela sala. Sílvia desenhava flores, menininhas de “maria
chiquinha”, árvore, casa. Carlos ficava no canto, murmurava frases que não
entendíamos, andava pela sala.
A quarta sessão caiu em um feriado e esqueci de avisá-los que seria transferida para
outro dia.
Quando me viram, na quinta sessão, olharam admirados e perguntaram em uníssono:
— “Você voltou?”.
— Sim, respondi, vocês pensaram que me assustei tanto com a última sessão que não
voltaria mais? Esqueci de avisá-los que não haveria sessão por causa do feriado.
Essa sessão se caracterizou por brincadeiras de luta, brigas, cadeiras derrubadas, gritaria
e agitação geral. Até a Sílvia participou do empurra-empurra, e Carlos, também, como
depositário de tapas e puxões de cabelo. O clima estava tão tenso que todos pediam para
ir ao banheiro. Intervi impedindo apenas as agressões que provocariam algum estrago
material irreparável ou que machucassem realmente alguém.
Comentei que eles ficaram com muita raiva da minha falta, e que tinham razão. Eu
havia sido displicente ao esquecer de avisá-los do feriado. Acrescentei que eles também
devem ter ficado muito bravos com as sucessivas faltas de professores que sofreram no
primeiro ano escolar e em outras ocasiões de sua vida pessoal. A “guerra” Continuou
até o final da sessão.
Na sexta sessão, demonstraram novamente surpresa com a minha presença: — “Hoje
era dia de você vir ?“ e “Você esta bonita, cortou o cabelo?”.
Pegaram a massinha e Sílvia fez uma menina com longos cabelos, que eles se
revesavam para cortar. Chamaram Carlos para cortar também, o que ele fez com um
sorriso nos lábios. Cada vez que o cabelo era cortado, Sílvia recolocava-o ainda maior,
o que provocou o comentário de Fábio: — “Parece uma bruxa”. — “Parece Regina,
nossa professora, aquela que tinha aquele cabelão”, acrescentou Marcos.
Construímos uma sala de aula e fizemos crianças de massinha, que colocamos
sentados. A professora de pé. Dramatizaram, com os bonequinhos de massinha, uma
situação de sala de aula com uma professora brava, autoritária e injusta. A dramatização
prosseguiu com eles se revesando para interpretar os personagens.
A professora sempre gritava e emitia ordens absurdas para os alunos, que acuados
obedeciam. Ela reclamava da bagunça e gritava sem parar.
127
No meio da gritaria, tropeçou no lixo jogado pelos alunos, “bateu a cabeça e morreu”.
Lembraram que Regina, primeira professora, ficou doente, saiu de licença médica, não
se despediu e nunca mais apareceu. Outra professora a substituiu, sem dar qualquer
notícia ou explicação. Levantaram hipóteses sobre a sua doença, e Jorge falou que ela
saiu porque teve “sistema nervoso” e não podia mais dar aula. Essa dramatização foi
acompanhada de risada e gritinhos, por todas as crianças.
Na sessão seguinte, desenharam, contaram estórias e fizeram objetos com massinha.
Enquanto produziam, conversavam, com evidente prazer sobre situações cotidianas, da
escola ou do bairro, trocando idéias sobre diversos assuntos.
Um assunto em pauta nesse dia foi um acidente de bicicleta sofrido por uma criança.
Conversaram sobre as mães e o que cada uma permitia ou proibia, como deixar que eles
brincassem na rua, até que hora etc. Também falaram sobre cenas de violência que cada
um já ouviu ou presenciou, e que faziam parte do seu cotidiano.
Na oitava sessão, houve uma disputa de material. Cada um queria ficar com um pedaço
maior de massa e achava que o outro tinha mais. Puderam conversar sobre as
quantidades: o que contém mais massa, uma bola ou uma cobra? Também discutiram
sobre as injustiças que sentiam sofrer em casa e na escola. Quem era protegido, quem
era discriminado, perseguido e vítima de determinadas situações?
Sua produção inicialmente pobre, estereotipada e infantilizada foi se tomando cada vez
128
Continuo disponível para eventuais encontros com as professoras, com os pais e com
as crianças.
Carlos foi encaminhado para uma psicoterapia individual.
Discussão
A partir deste relato podemos supor que descobrimos algumas coisas sobre estas sete
crianças e sobre o grupo que elas constituíram, mas, principalmente, podemos dizer que
elas descobriram várias coisas sobre elas mesmas.
129
130
131
132
faltas, abonos, licenças e substituições das professoras, sem nenhuma explicação aos
alunos.
A manutenção do fracasso, por parte da escola, ocorreu pela incapacidade de entender
as necessidades destes alunos para tentar ajuda-los a sair do lugar de incapazes que
foram confinados (sem precisar recorrer a outros profissionais especialistas como
médicos, psicólogos). E sobretudo pela dificuldade em cumprir sua função educativa,
em um ambiente interessante, estável, criativo e mais respeitoso.
Podemos supor que as práticas adversas da escola provocaram descontinuidades no
crescimento das nossas crianças, que para se defender contra tais situações
imprevisíveis se recolheram, inibindo suas capacidades; ou reagiram, mostrando sua
insatisfação através da recusa em aprender e da indisciplina.
O comportamento agressivo que apresentavam, parte da vida e do impulso de
aprender, deve ter sido vivido como muito perigoso e capaz de provocar danos reais no
ambiente. Provavelmente as crianças interpretaram a mudança constante de professores,
assim como as
133
sociais mais amplos e, no nosso caso, pela escola, tem um papel fundamental para
enriquecimento do mesmo.
Assim como um ambiente (por exemplo, a escola) adequado pode promover e facilitar
o crescimento da criança, um ambiente adverso e hostil pode obstruir seu
desenvolvimento e até comprometer as estruturas e capacidades já adquiridas por ela.
Neste sentido, para o entendimento da queixa escolar, é necessário procurar articular a
história pessoal com a história escolar da criança.
Para buscar uma intervenção terapêutica que dê conta da complexidade desta
problemática, precisamos trabalhar não só com o aluno, mas com seus pais e
professores. Procurando enfocar não só o mundo interno da criança, mas também o
ambiente externo e principalmente a área intermediária, ajudando a constituí-la, quando
necessário. Esse esforço conjunto pode facilitar o crescimento da criança, ao possibilitar
o uso de seus recursos e capacidades, com maior liberdade e criatividade, e ao propiciar
uma provisão ambiental mais adequada.
134
BIBLIOGRAFIA
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1994.
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Privação e delinqüência. São Paulo, Martins Fontes, 1987.
Explorações Psicanalíticas. Porto Alegre, Artes Médicas, 1994.
135
problemas de aprendizagem e,via de regra, depositou sobre a criança e seus pais a causa
dos problemas escolares. Pesquisas recentes revelam que o preconceito em relação às
classes populares e sua relação com o discurso científico, no Brasil, tem suas srcens
nas teorias racistas, que aqui chegaram no final de século passado e no início deste
século (Patto,1990).
As discussões desencadeadas por uma análise crítica da escola e de sua função numa
sociedade de classes possibilitaram movimentos em busca de explicações do fracasso
escolar que levassem em conta a escola como instituição situada numa estrutura social.
A crítica teórica que se processou a partir da leitura de autores neo-marxistas a
princípio não foi acompanhada da crítica metodológica(Gouveia, l985, apud Patto,
1988). Era preciso construir uma metodologia que desse conta de uma leitura
materialista dialética. Não era possível usarmos os mesmos instrumentos —
observações com categorias previamente definidas, situações artificiais de
experimentação, ou questionários — para compreender uma instituição tão complexa
quanto a escola numa sociedade de classes e para ampliar a compreensão do fenômeno
da repetência e da evasão escolares.
No caso específico das explicações dominantes a respeito do fracasso escolar, era
preciso mudar o eixo de discussão, descentrando-as das explicações atribuídas aos
alunos e/ou professores e construir um conjunto de conhecimentos que contextuasse tais
explicações no conjunto do pensamento histórico brasileiro e que possibilitasse
conhecer como esse processo de escolarização produz os alunos que repetem e que
“desistem” de continuar na escola. As perguntas principais referem-se à
138
natureza da vida diária que se processa nas escolas públicas, as redes de relações aí
construídas, à maneira como os educadores concebem sua atuação e seus alunos, que
práticas valorizam em sala de aula, como os pais e as crianças entendem e explicam o
processo de escolarização, quem são as crianças que fracassam, que trajetória escolar
percorreram, como se produz a medicalização dos problemas de aprendizagem, como as
políticas educacionais e pedagógicas se fazem presentes nas práticas escolares. Esse
conhecimento só poderia ser possível através da longa convivência com as crianças e
com a escola, através de um detalhado processo de observação participante, entrevistas
139
1987, 1993; André e Mediano, 1986; André e Fazenda, 1989) e à prática pedagógica
(Dias da Silva, 1992; Davis, 1988).Um terceiro grupo de pesquisas centra-se na questão
da participação política dos professores (Souza,1991) e da gestão popular na escola
pública (Paro, 1991,1992).
Tais pesquisas têm subsidiado propostas de intervenção na escola, possibilitando um
trabalho de parceria entre psicólogos e educadores (Machado,1991; Souza et alii,1989).
acumulado.
Na escola tudo conspira para que professores e alunos vivam situações diárias de
descontentamento, perda da auto-estima, descrédito na própria produção, reduzindo,
portanto, as possibilidades de reflexão em relação a essa realidade que aliena e impede
de dar conta de um processo adequado de escolarização. Os professores acabam se
apropriando de uma visão burocratizada do ensino, defendendo os interesses estatais em
detrimento da qualidade da escola, distantes do compromisso com os usuários da escola,
principalmente com os mais pobres. A imersão na cotidianidade escolar dificulta a
visualização do compromisso com a criança, com o direito à escolarização plena e com
o acesso ao conhecimento socialmente acumulado.
O discurso dos professores em relação às possibilidades de aprendizagem das crianças
das classes populares é um discurso no mínimo ambíguo, que ora analisa a escola e seus
problemas, afirmando as faltas nela existentes para um ensino de qualidade, ora
considera que a responsabilidade pelo fracasso escolar está nas deficiências das crianças
e/ou nos problemas e desinteresse de suas famílias.
Outro aspecto importante apontado por esta pesquisa é o papel desempenhado pelos
profissionais de saúde mental, em especial os Psicólogos, na perpetuação da visão
medicalizante e ou psicologizante do processo de aprendizagem. A participação do
psicólogo frente à queixa escolar se dá, via de regra, através da realização de laudos
Psicológicos, baseados em psicodiagnósticos cujos pressupostos traduzem
141
confiança na sua capacidade de aprender”(p. 268). Sobre elas paira um constante ataque
à sua auto-estima, além de recriminações que são maiores à medida que as crianças
manifestam não estar entendendo o que a professora explica. A ameaça de expulsão é
uma constante, tendo como causas dois fatores: a incapacidade para aprender e os
problemas de comportamento. O preço e a representação que permanece para as
crianças serem aceitas é o de perda de sua identidade: “Elas sentem que só serão
‘aprovadas ‘(duplamente) se apresentarem apenas com certas partes de si, deformarem-
se” (p. 271).
Com relação ao aprendizado, a questão formal se sobrepõe ao conteúdo, o
comportamento sobre o pensamento, a rotina está acima do sentido do que se aprende.
143
“A falta de condições materiais não causa danos cognitivos, mas pode causar a falta de
condições para o uso dessa capacidade no sentido de realizar coisas que socialmente
estão ao alcance apenas das pessoas que dominam a sociedade através do dinheiro e do
saber acumulado e socializado, como por exemplo tudo aquilo que se faz na escola ou
através dela “(p..59).
“As dificuldades de aprendizagem têm sua causa na prática escolar na incompetência
da escola e dos autores de livros didáticos e pedagógicos, nas metodologias usadas nas
salas de aula, bem como na política educacional do país. Essas dificuldades de
aprendizagem são baseadas numa visão errada da natureza e do uso da linguagem (uma
grande parte) das chamadas crianças carentes, na discriminação social e no resultado de
trabalhos de pesquisa acadêmica mal conduzidos e de sua influência no trabalho
escolar”(p.62).
144
temática da relação entre linguagem oral e pobreza através de pesquisa realizada com
crianças de um bairro periférico da cidade de São Paulo.
Essa pesquisa tem como objetivo verificar o uso que essas crianças fazem da
linguagem, ou seja, sobre o que a verbalização desses meninos e meninas informa ao
pesquisador a respeito de suas percepções, análises e explicações de diferentes aspectos
da realidade.
A faixa etária dos participantes da pesquisa varia de 3 a 9 anos e os encontros
semanais, durante aproximadamente um ano, foram realizados no próprio bairro, em
suas casas e em outros espaços informais, registrando e gravando várias circunstâncias
diferentes de interação verbal, participando de brincadeiras de roda,jogos, conversas
informais, ouvindo relatos e narrativas sobre o bairro, sobre suas vidas e de seus
familiares e amigos, ou ainda sobre episódios vividos na escola, considerada pela
pesquisadora como o um lugar central em suas vidas.
A análise e a riqueza dos relatos e narrativas levam a autora a afirmar a complexidade
com que as estas crianças utilizam a linguagem verbal, conquistando seu lugar no
145
bairro, a rua, as situações vividas no dia-a-dia dessas famílias, tem possibilitado um rico
material de pesquisa, que no seu conjunto questiona as explicações até então defendidas
pelas pesquisas na área.
Algumas conseqüências das pesquisas qualitativas para o trabalho do psicólogo
escolar.
As análises e descrições dos processos de produção do fracasso escolar existentes nas
escolas públicas brasileiras trazem questões fundamentais em relação ao trabalho
psicológico levado junto aos alunos que apresentam problemas no processo de
escolarização. Tais questões referem-se à maneira como a queixa escolar tem sido
entendida pelo meio “psi” e as práticas diagnósticas e terapêuticas.
O centro das explicações e das práticas psicológicas frente à queixa escolar é marcado
pela visão clínica. A Psicologia tem utilizado um saber que estabelece seu recorte
teórico sobre o indivíduo, enfatizando a importância de seu mundo interno constituído
de fantasias e desejos, habitado por mecanismos de projeção e de introjeção e
determinado pelas relações vividas no grupo familiar primário. Essa constatação pode
ser feita através dos métodos de psicodiagnóstico da queixa escolar
146
147
148
o questionamento dos mitos da desnutrição e dos problemas emocionais, dentre outros,
como causadores do fracasso escolar; a reconstrução da história escolar dos alunos que
vivem a reprovação escolar; o esclarecimento da dinâmica de produção do fracasso
escolar e o resgate de experiências bem-sucedidas no processo de escolarização. Do
ponto de vista das políticas educacionais vigentes, defrontamo-nos, assim como os
educadores, as crianças e seus pais, com a pauperização cada vez mais crescente das
escolas públicas estaduais que atendem as famílias mais pobres dos bairros de nossa
Capital, a manutenção de altos índices de reprovação e de evasão escolares, apesar dos
dez anos de existência do projeto educacional denominado Ciclo Básico.
Procuramos, através desta reflexão, ampliar a discussão quanto às contribuições das
pesquisas etnográficas com ênfase nos processos constitutivos das relações escolares
para a atuação de profissionais que se propõem a somar sua participação na luta por
uma escola mais democrática. Sabemos das dificuldades que as mudanças de enfoque
BIBLIOGRAFIA
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estudo etnográfico sobre alunos repetentes na primeira série do primeiro grau. Tese
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150
151
(1) Esta pesquisa foi realizada com apoio da FAPESP (Processos n° 92/5108-6 e n° 92/
5166-6, correspondentes às duas bolsas de iniciação científica) e sob a orientação de
Maria Helena Souza Patto.
(2) Psicólogas; na época da pesquisa (entre 1992 e 1994) cursavam a graduação do
Instituto de Psicologia-USP.
153
seu fracasso nela? Quais as repercussões desse fracasso e do estigma dele decorrente em
sua auto-imagem e no seu grupo familiar?
É na passagem do Ciclo Básico(3) para a 35 série (no caso da rede estadual paulista)
que se verificam os maiores índices de reprovação. Assim, optou-se por realizar o
trabalho numa unidade escolar pública da periferia de São Paulo, onde as professoras do
Ciclo Básico (CB)(3) foram solicitadas a encaminhar às pesquisadoras alguns de seus
alunos que apresentassem dificuldades de aprendizagem e ajustamento escolar. Essa
pesquisa não se propôs a estudar o aluno reprovado, mas algumas crianças, que estudam
em uma determinada escola, em um determinado bairro. Isso não significa dizer que as
histórias de vida aqui encontradas não sejam representativas de enorme parcela das
crianças que sobrevivem à escola pública.
A pesquisa desenvolveu-se durante dois anos, em três fases. Na primeira, estabeleceu-
se um contato individual com as crianças na escola, onde mostraram suas primeiras
(3) O Ciclo Básico foi instituído pelo governo do Estado São Paulo através de um
decreto de 1983. Consiste na união da l e 2 séries com o objetivo de diminuir os índices
de reprovação escolar: a alfabetização e a aprendizagem das operações básicas da
Matemática ocorreriam em dois anos consecutivos, sem reprovações do 12 ano (Ciclo
Básico Inicial) para o 22 (Ciclo Básico Continuação).
154
PRIMEIRA APRESENTAÇÃO:
Surgem Carlos, Ricardo, Nivânia e Rildo na voz das professoras
“Ele se sente culpado por ter nascido normal enquanto sua irmã é deficiente. A mãe
prende ele muito em casa, tem que cuidar da irmã “. (...) nos últimos tempos ele vem
melhorando, está bem mais alegre (...) Acho que a mãe está soltando ele mais,
permitindo que ele seja de fato um menino sadio”.
155
“Ela ficava desesperada para aprender chorava, acabava passando o desespero prá mim
(...) Ultimamente está mais desanimada, mais quietona (...) Eu noto que a Nivânia não é
mais a mesma. Ela finge que aprende, ela descobriu que pode escapar (...) Não sei se ela
se colocou na cabeça que não é capaz.”
Rildo, 12 anos, multi-repetente:
“É quietinho, educado, ajuda a professora (...) mas às vezes fica nervoso, fica violento,
muito agitado. (...) Ele é oito ou oitenta.”
“Ele é muito educadinho, ninguém nunca desconfiava dele. Mas começaram a sumir
coisas. E apareceram com ele. Eu perguntava como foi que aquilo apareceu com ele e
ele inventava histórias, dizia que comprou de outras pessoas. (...) Ele fica muito nervoso
quando desconfiam dele, pela mínima coisa. Quando chamo a atenção dele, tem uma
veia no pescoço que salta. (...) Quando ele tá nervoso e faz alguma coisa dá pra ver nos
desenhos e na letra que ele tá nervoso.”
“A mãe dá impressão que deixa os filhos muito soltos. São muitos, são sete. Acho que
ela é empregada (...) as crianças vêm na escola pra comer”
SEGUNDA APRESENTAÇÃO:
156
I. O Jardim
É no centro de um pequeno bairro localizado na Zona Oeste de São Paulo, divisa com
Osasco, cujos limites são uma rodovia estadual, uma pedreira, uma grande indústria e
outro bairro (já em Osasco), que se encontra a Escola Estadual onde se desenvolveu a
pesquisa. Também é aqui que moram duas das crianças com quem convivemos: Carlos
e Ricardo.
O Jardim “era só mato “(fala de Carlos, terceira etapa da pesquisa). Gerado sem
condições, o bairro reflete a história de muitos que o habitam: cada conquista
transforma a vida do lugar e daqueles que o constroem. Foi assim que aos poucos,
através da mobilização popular, foram surgindo, entre outros, desde a l linha de ônibus
(1977), passando pela escola municipal, canalização da água (1980), asfaltamento de
ruas, até a fundação, ampliação e transformação em Escola-Padrão da Escola Estadual
(1987, 1991 e 1994).
Apesar de ser um bairro pobre da periferia de São Paulo, o Jardim não é homogêneo:
existem três áreas que se distinguem pelas condições econômicas de seus moradores. A
área mais pobre é a favela. A área intermediária localiza-se nas ruas fronteiriças do
bairro, aquelas pelas quais os ônibus trafegam. Lá, a maioria das casas, que vão sendo
construídas cômodo a cômodo, possui quintal e, algumas, carro na garagem. É comum a
construção de mais de uma habitação em cada terreno, havendo inclusive alguns
cortiços que abrigam diversas famílias. É nessa parte do bairro que se encontra a casa de
Ricardo. A área onde os moradores têm melhores condições de vida localiza-se nas ruas
centrais do bairro. Lá as casas são maiores, as ruas são mais tranqüilas
157
do que na área intermediária, O comércio local centraliza-se em uma de suas ruas, onde
encontram-se um mercado, farmácia, padaria. É nessa parte do Jardim que moram
Carlos e sua família.
158
que não queria falar sobre sua história escolar (pelo menos, não da forma direta como
abordamos o assunto). Na segunda, sua irmã trouxe-nos a mensagem: “O Carlos fugiu
quando viu que vocês chegaram. Fugiu porque não queria falar com vocês “. Na terceira
visita, ninguém veio atender à porta. Os olhos de Carlos e sua mãe, que nos espiavam da
laje, deram o recado.
Parece que retomar a história escolar, para Carlos, era retomar uma história de
fracasso, exclusão, sentimentos de incapacidade. História onde não aparecia o Carlos
sagaz, irônico, inteligente; o Carlos líder do grupo. História que seria melhor não
aparecer, não retomar.
Carlos não consegue negar-se verbalmente a participar da terceira etapa do trabalho
(como não consegue negar-se a assistir às aulas do CBC há 3 anos); sem poder falar,
Carlos baixa os olhos, não atende à porta, foge. Não pôde falar, da mesma forma que
não pode dar sua opinião sobre a escola onde estuda: “Isso eu também não posso falar”
(primeira etapa da pesquisa, procedimento história-desenho), Carlos nunca teve voz na
escola. Dos nossos encontros ele ainda pôde fugir; da escola, não. É obrigado a repetir
os mesmos programas curriculares há anos e a repetir todo ano a experiência de
conviver com crianças cada vez menores. E, como Carlos, há tantos meninos mudos e
com olhares eternamente desconfiados, como registram os rapazes da Escola de
Barbiana: “O Gianni, por sua vez, sempre foi o mais velho entre os seus colegas de
turma. Quando está sozinho com eles, ainda tenta um bocado armar aos cágados, mas na
frente dos adultos nem abre o bico” (Carta, 1982, p. 57).
159
Mora com os pais e a irmã mais nova numa pequena casa numa curva da avenida que
liga a Rodovia ao Jardim e segue em direção ao Sem-Terra, casa de quarto, sala,
cozinha, banheiro e o “quartinho de ferramenta” na laje, cada um construído num
momento diferente, o que imprime um aspecto de falta de conjunto ao local. Na parede
da sala podem-se avistar dois retratos que contam um pouco a história do filho mais
velho: Ricardo-bebê sentado num banco de praça, Ricardo de beca e chapéu na
formatura da Escola Municipal de Educação Infantil (“Tá aí pra prova que ele se formô;
pra quem quiser vê eu mostro”, contou Dª. Irene, mãe de Ricardo).
Dª. Irene conta que, nos últimos 15 anos, o bairro vem mudando muito: “Não tinha
escola, as ruas era tudo de terra e não passava ônibus, só lá na Raposo; faça chuva ou
faça sol, a gente tinha que ir lá na Raposo, atravessar o morro pra pega ônibus “. Mas, se
as linhas de ônibus que hoje servem ao Bairro representaram facilidades para os
moradores, ao mesmo tempo constituem uma das maiores preocupações de D. Irene,
que relatou inúmeros atropelamentos e acidentes na rua onde mora. Algumas casas
vizinhas às suas já foram parcialmente destruídas por caminhões e ônibus
desgovernados: “Eu sempre sonho que alguém vai entra gritando aqui em casa, dizendo
que o Ricardo foi atropelado. Só fico sossegada mesmo quando o Ricardo tá dormindo,
dentro de casa “. Longe de ser desvinculado da realidade, o sonho de Dª. Irene mostra a
insegurança em que vivem as pessoas das camadas populares e o temor que têm da
perda de tudo: os poucos bens, a casa, os filhos, a vida.
160
Dª. Irene é uma mulher tão pequena e tão franzina que parece nem caber tanta
“braveza” e força dentro dela. A expressão normalmente séria, de quem já passou por
muita coisa na vida, às vezes deixa escapar um sorriso também pequeno, mas muito
expressivo. Ouvindo Dª. Irene, pode-se entender de onde vem essa feição séria: todo seu
relato poderia ser intitulado “Manifesto contra o Desrespeito”. Desrespeito que,
continuamente repetido e que não se pode combater, transforma-se em ameaça
constante à vida de D. Irene e daqueles que, como ela, não têm assegurada a garantia de
seus direitos.
Desrespeito a que foi submetida em dois de seus partos, onde, por falhas dos médicos,
dos enfermeiros, do hospital, enfim, do Serviço Público, uma criança morreu e outra,
Rosemary, foi condenada a ter uma vida dependente: não anda, não fala, não coordena
os movimentos, é deficiente mental.
Desrespeito a que foi submetida em um centro de reabilitação para deficientes, onde
participou de algumas reuniões com pais de crianças em tratamento, sob a coordenação
de um profissional: “Eu ficava gastando dinheiro com ônibus, tempo (...) Só ficava me
perguntando o que eu como, como é minha casa, como que eu me visto, como tomo
banho, modo de dizer, né? Em que isso pode me ajuda?! “.
Desrespeito a que foi submetida por uma psicóloga: devido às inúmeras reprovações,
Ricardo (como a maioria das crianças que vão mal na escola) foi encaminhado a uma
psicóloga, que afirmou que o menino não tinha nenhum problema e que ele repetia de
ano por outros motivos. Disse que quem deveria voltar para ser atendida seria Dª. Irene:
“Eu achei muito estranho, mas acabei indo lá mais duas vezes. Mas a psicóloga só
ficava perguntando como eu me dava com o meu marido, como era com meu filho, se
eu batia ou não, como que era dentro da minha casa. Mas eu nem estudo! Como vai
querê tratá de mim?! Como é que eu posso tê problema na escola?”.
Dª. Irene foi parar numa psicóloga sem nem saber por quê ou para quê. A reflexão que
faz a partir desse episódio deveria ser ouvida por todos aqueles professores que chegam
a encaminhar metade de sua classe aos Postos de Saúde e por todos aqueles psicólogos
que recebem essa
161
rendimento escolar, não se pode entender o comportamento escolar de uma criança sem
levar em conta a maneira como a escola se relaciona com sua subjetividade” (Patto,
1990, p. 296).
Desrespeito a que foi submetida na escola.
Há alguns anos, na época da re-matrícula, Ricardo apareceu em casa com um “bilhete
ameaçador” avisando que havia uma taxa não- obrigatória de 20 cruzeiros para a APM
(Associação de Pais e Mestres) e que, caso não fosse paga até o dia seguinte, não
haveria garantias sobre a vaga do aluno para o próximo ano. Dª. Irene relata o drama
que viveu nesse dia:
“Tudo bem o Ricardo ficá sem leite, sem pão; ele já é grande e pode entender Mas a
Rosemary não entende; ela sabe ouvir, mas não sabe falar Ela não ia entendê tê que ficá
sem pão e leite. Então eu sempre preciso ficá com um dinheirinho pra essas coisas. Mas
eu fiquei com tanto medo, tão preocupada com a ameaça do bilhete, que usei o dinheiro
pra pagar a APM na escola”.(...) Ficá sem comê, até pode; mas ficá sem estudá, não.
Comê, você não come num dia e no outro você come, pede emprestado pro vizinho Mas
ficá sem estudo, não”.
Indagada a respeito da finalidade da taxa, Dª. Irene contou o que lhe responderam:
“É pra reformar as cortinas da escola, construir o prédio novo, pra limpeza.., eles disse
rani que os professores também ajudam. O diretor falou que o Estado não liga pra
educação, então todos têm que colaborar pra escola funcionar”.
O absurdo se inicia no momento em que, numa escola “pública e gratuita”, se cobra
uma taxa, travestida de não-obrigatória, e se vincula o pagamento dessa “contribuição”
àquilo que é direito de todos: uma vaga na escola. O absurdo continua à medida que se
desconsidera o poder aquisitivo do usuário e se transforma o pagamento em obrigação.
162
Por trás dessa exigência encontra-se o preconceito de que os pais dos alunos das
camadas populares não têm interesse na escolarização dos filhos e, portanto, não
contribuiriam com a escola caso não fossem ameaçados. O absurdo se intensifica
quando afirmam que a taxa arrecadada, cujo valor corresponde ao pão e ao leite da
família, destina-se à construção da Escola-Padrão: a mentira deixa claro o desprezo
163
Muitas vezes a professora que nutre tais preconceitos encontra-se numa situação sócio-
econômica semelhante à dos seus alunos, driblando a miséria com a jornada tripla de
trabalho; geralmente têm como “melhor” (senão a única) opção profissionalizante o
Magistério; trabalham em condições precárias (salas de aula, material) etc. Utilizam-se
então de mecanismos para marcar as diferenças entre elas e os alunos: não raro o
preconceito e o desprezo cumprem esse papel.
Segundo Dª. Irene, em uma reunião de pais, a professora insinuou que alguns deles não
alimentavam bem seus filhos, deixando-os com fome. Apenas uma mãe conseguiu
contestá-la: “Meu filho não passa fome, não!! A gente é pobre, mas tem comida pra dar
pras crianças “. A professora, ao acusar os pais, tenta estabelecer uma relação entre o
fracasso escolar das crianças e a falta de alimentação(6). Porém, há estudos (Moysés e
Lima, 1982) que demonstram que, geralmente, a desnutrição não explica o fracasso
escolar, e que por trás de tal teoria encontra-se a intenção de responsabilizar os pais e a
família do aluno pelo seu fracasso, eximindo a escola de qualquer responsabilidade.
Numa reunião onde todos ficam calados, impotentes frente à opressão exercida pela
autoridade, a voz que manifesta o descontentamento de todos acaba escorraçada. Foi o
que aconteceu com a mãe de uma criança, quando reclamou das freqüentes faltas da
(6) Tal relação vem sendo largamente estabelecida a partir da década de setenta, não
apenas pelos agentes escolares, mas também por cientistas, meios de comunicação e a
sociedade como um todo.
164
professora. Dª. Irene contou que todos os pais concordavam com a mãe que se
manifestou: a professora havia faltado duas semanas seguidas. Mas a concordância e
indignação dos pais não foi suficiente para que conseguissem apoiar aquela mãe. Como
todas as outras, Dª. Irene mantém-se quieta, nas reuniões e em todos os momentos em
que sofre a opressão das autoridades. Sua quietude a incomoda e, de uma forma ainda
não absolutamente clara, sugere a organização dos pais para garantir o respeito:
“Eu não esperava que ela (a mãe que se manifestou) fosse falá aquilo... Talvez se ela
tivesse avisado a gente antes que ela ia falá... talvez aí as outras mães poderia te falado.
Mas ela não avisô e todo mundo ficô assustado, ficô quieto. Quem ficou louca foi ela”.
Dentro desse cenário atroz da escola pública, que desvaloriza e desumaniza o professor
e despreza a clientela, quando surge alguém que ouve com atenção e respeito o que os
pais têm a dizer, trata e ensina as crianças de forma digna, essa pessoa transforma-se em
merecedora de enorme gratidão. É o que acontece com a professora Vanda: “Amo a
Vanda até corno um homem ama uma mulher Nem sei explicar por quê “. Dª. Irene não
consegue explicar o porquê desse sentimento, mas a totalidade de seu relato acaba por
deixar claro: na relação que mãe e filho estabelecem com a professora Vanda existe o
respeito. Dª. Irene também não sabe como responder à pergunta: por que só existe uma
professora Vanda na escola?
Dª. Irene percebe diversas mazelas da escola. Por vezes, reconhece o papel da escola
nas reprovações de Ricardo, principalmente na figura da professora:
“O Ricardo gostou de duas professoras até hoje: a Vanda e a do pré. Aí ele sempre
queria ir pra escola, fazia sempre lição, até acordava antes da hora. Com as outras
professoras ele chorava pra não tê que ir Desde a 1ª série que ele chora”.
165
“Inteligente ele é. Mas é muito preguiçoso, é vagabundo. Ele não tá tendo aula desde
agosto por causa da greve, só teve uma semana, e não pegou nenhumavez o caderno”.
Essas falas de Dª. Irene apontam para um “discurso ambíguo” (tal como definido por
Chauí, 1981): nem totalmente lúcido, nem totalmente alienado, encontra-se na fala da
maioria das mães quando se referem ao fracasso escolar de seus filhos.
formaram, junto com ele, o grupo que se reunia “na escada da calçada do outro lado da
rua” para brincar, desenhar, conversar e falar sobre a vida. Seus nomes: Maurício, de 10
anos, estudante da 4il série da Escola Municipal; Mauro, o “Balinha”, de 9 anos, cursa a
3 série da Escola Estadual; Irineu, de 7 anos, está no CBI da Escola Estadual.
Ricardo é o líder do grupo. Mais velho, ágil no futebol “de latinha” e no “rolimã sem
rodas”, é o Titi e o Pipoca que todos querem desenhar, o que todos solicitam.
A improvisação marca o dia-a-dia das crianças: Irineu e Balinha, sentados lado a lado,
“constroem” uma mesa para desenhar usando uma revista apoiada metade no colo de
cada um; Maurício faz um diário desenhado (desenha as coisas que acontecem na sua
vida) com folhas de comandas de um bar; os meninos utilizam pedaços velhos de
fórmica para escorregar ladeira abaixo junto à água que corre na sarjeta.
O cotidiano da escola foi amplamente representado pelas crianças no decorrer dos
encontros:
- Juliana: “Minha professora é a bruxa”.
- Maurício: “É. Na minha escola também tem uma... Sabe aquela mulher que eu
desenhei? Então, aquela lá que é abruxa”.
166
Em um dos encontros, Ricardo tenta escrever “Irineu” e escreve “Irineu”. Todos riem
dele. Renan diz: “Tá na 2ª série e não sabe nem escrever!”. Ricardo tenta consertar o
erro, visivelmente desesperado:
“Mas é só trocá o ‘o’ pelo ‘e’ e o ‘u’!”. Continuam rindo. Ricardo se levanta e começa
a gritar: “E o Balinha que só leva bilhete!”. Renan fala: “Eu só tiro nota azul, A, B e C”.
Ricardo sai correndo atrás de Balinha. Depois fica andando de um lado para outro e
neste dia não desenha mais. O Ricardo que ensina os amigos a fazer uma máquina
fotográfica de papel, que é admirado pelos colegas, é o repetente da turma, é o que mal
sabe escrever. Seu desespero vem demonstrar os efeitos de sua história de reprovações
em sua subjetividade. De um momento a outro, Ricardo passa de admirável a burro, de
grande a pequeno, de companheiro a agressivo.
Em outro encontro, as crianças foram convidadas a construir a maquete de uma escola.
Ricardo e Balinha construíram-na juntos. A primeira coisa que Ricardo fez foi o portão
de grades, portão fechado, intransponível, dando à escola um aspecto de prisão. Já
Balinha fez a escola com um toldo cobrindo a entrada, cuja porta ficava aberta.
167
havíamos conhecido até então. Pela primeira vez, deparamo-nos com um Ricardo
egoísta, mesquinho, que não dividia o material, impedindo os amigos de fazerem suas
construções.
II. O Sem-Terra(7)
No caminho que leva do jardim ao Sem-Terra, lugar onde morava Nivânia, encontra-se
a Vila, bairro intermediário entre a boa infra-estrutura do primeiro e a miséria absoluta
do segundo. Procurávamos o endereço de Nivânia, que, segundo informações da escola,
encontrava- se em uma das ruas deste bairro (mais tarde viemos a saber que o endereço
era de um tio da menina, única ligação possível entre o correio e a família de Nivânia,
entre a posse da cidadania e o nãoreconheciment0 da existência dos sem-terra). Mas,
nesse bairro os nomes das ruas só são feitos para quem é de fora (a Prefeitura - que
apenas deu os nomes - e os
168
169
Nivânia tem 10 anos, grandes olhos arregalados que não conseguem se esconder atrás
das lentes dos óculos baratos, corpo franzino, rabo-de- cavalo. Maranhense, veio há
cinco anos para São Paulo com a mãe, D. Antônia, e o irmão mais novo, Nivaniel,
encontrar com o pai, Sr. Nivaldo, que tinha vindo antes tentar a vida na cidade. Foi no
ano em que decorreu a pesquisa que a família se estabeleceu no Jardim dos
Trabalhadores, “bairro” do Sem-Terra (antes moravam na casa do irmão do Sr. Nivaldo,
na Vila). O dinheiro economizado nesses cinco anos foi suficiente para comprar um
pequeno terreno e trocar as tábuas do velho barraco de três cômodos que nele se
encontrava. Mas não foi suficiente para conformar Nivânia, que se recusava a entrar na
nova casa e, chorando, dizia querer voltar para o Maranhão.
Na falta de numeração, as novas tábuas do barraco, vermelhas, e o amontoado de lixo
nas proximidades servem como referência para quem quer distinguir a casa de Nivânia
das demais. A energia elétrica chega à casa de Nivânia da mesma maneira que às
incontáveis casas do Sem-Terra: através do emaranhado de fios das mais variadas cores
e espessuras, atados a postes de madeira em forma de cruz, que partem de ligações
clandestinas dos postes oficiais da Rua Paranaense, a última asfaltada, a penúltima
nomeada, a que divide a Vila e o Sem-Terra.
170
Nivânia conta a trajetória da família que saiu do Maranhão em busca das mesmas
melhores condições de vida que agora anseiam encontrar na terra de onde partiram:
“Lá foi onde eu nasci, eu gosto mais de lá porque lá é mais ,nelho, lá não tem perigo, lá
não é rua, lá tem uni lugar que é assim, né? Aí tem um quintal assim, dá pra gente
brincá... Aqui é muito perigoso, né? Meu pai falou que quando ele ir receber dinheiro,
ele vai sair embora daqui. Vai lá pro Maranhão “.
Se por um lado o discurso nostálgico de Nivânia remete a uma idealização do passado,
por outro mostra a dura realidade de um presente que não garante condições de uma
vida digna. Foi também o que observou Patto (1991) em sua convivência com a mãe de
Ângela, menina multi-repetente: “O desejo de voltar para o norte, nem que seja por
alguns tempos, é explícito, como se nesta volta pudesse resgatar o passado idealizado e
fazer uma pausa que a realimente para a vida desenraizada e solitária que leva em São
Paulo” (p. 290).
Dª. Antônia fala do desempenho escolar da filha: “Eu f ico meio triste que a Nivânia
não passa de ano faz cinco anos”. Nivânia não foi reprovada cinco vezes, mas sim duas;
cinco anos foi o tempo que passou desde que a família deixou o Maranhão. Tempo que
acabou se configurando como um tempo que não progride, já que a vida em São Paulo
traz as mesmas mazelas da pobreza do lugar de srcem. Na verdade, IY. Antônia fala de
duas reprovações: a de Nivânia na escola, a da família na grande metrópole.
A mãe busca desesperadamente encontrar explicações para as reprovações da filha.
Confiando nos “doutores em criança” (médicos, psicólogos, professores...), levou
Nivânia para fazer “exames da cabeça”, um eletroencefalograma que não acusou
nenhuma anormalidade. Não acreditando plenamente no resultado, solicitou um exame
mais minucioso, que foi negado pelo médico, afirmando que o problema da menina era
“psicológico”. Dª. Antônia passa então para uma explicação que atribui o fracasso
escolar da filha à preguiça: “O médico disse que ela não tem nada. O remédio é cabo de
vassoura”.
Rapidamente, volta à explicação psico-orgânica, ao fazer uma imitação grotesca de
uma criança anormal quando quer dizer como é
171
Nivânia, como se tivesse sido convencida de que a filha é assim (mesmo que só se
perceba o contrário): boca semi-aberta, cabeça inclinada, olhos mirando lugar nenhum,
catatonia. Dª. Antônia toma o “discurso competente” (Chauí, 1981) como verdadeiro,
procura em sua filha características que possam comprová-lo e desautoriza por
completo a sua experiência de mãe: a imagem de Nivânia, ágil e contente, pulando as
poças d’água enquanto caminhava com a mãe e as pesquisadoras difere, e muito, da
imagem que há instantes havia sido apresentada por Dª. Antônia. A menina, que na
escola é “desanimada”, “quietona” (segundo sua professora), mostrou-se, no contexto
não-escolar, conversando com as pesquisadoras, extremamente viva, carinhosa e
curiosa:
“Na casa de quem vocês já foram? ‘Cês moram juntas? Quando vocês vêm almoçá na
minha casa? ‘Cês têm mãe? Ainda bem que eu tenho mãe!”.
Nossa convivência com Nivânia em sua casa não passou de uma visita. Sua família
mudou repentinamente para um bairro na periferia da Zona Sul da cidade, não deixando
o novo endereço nem com vizinhos, nem na escola. Desapareceram na cidade grande na
tentativa de buscar a concretização do desejo dé uma vida melhor, de encontrar o
Maranhão com que tanto sonham, num canto de São Paulo.
III. A COHAB
Pegando uma estrada de terra a partir do Sem-Terra, ou percorrendo alguns
quilômetros além da entrada do Jardim pela rodovia, chega-se à COHAB, onde mora
Rildo. Pertencente ao município de Osasco, compõe-se de um conglomerado de casas
no centro, cercado pelos dois lados de prédios de três andares idênticos.
Não há árvores na COHAB. “As casas parecem ser as únicas coisas plantadas nos
terrenos” (Mello, 1988, p. 70). A cor predominante é o cinza do asfalto, dos blocos das
casas, do reboque das paredes dos prédios. A sombra só se faz no início da manhã ou no
final da tarde, sombra de prédios. Nos horários em que o sol está a pino é difícil
encontrar pessoas andando pelas ruas. O ar é quente, denso,
172
abafado. Há muitas COHABs como essa nas periferias de São Paulo: sem a
preocupação com os futuros moradores, sem um espaço para plantar árvores,
transformam-se em cidadelas áridas, secas, desérticas. Além disso, o fornecimento de
água pela SABESP é constantemente interrompido. Ironicamente, as pequenas vielas
entre as casas trazem nomes como “Cachoeira da Felicidade”, “Cachoeira da Fartura”.
Rildo tem 12 anos, é alto, magro, tem os olhos castanho-claros meigos e expressivos.
Vive na COHAB há 5 anos e há 2 estuda na Escola Estadual. Mora com a mãe, Dª.
Marlene, o pai, que também se chama Rildo, e alguns dos irmãos: Romualdo, de 15
anos; Isabel, de 13 anos; Renato, de li anos; Misleine, de 9 anos. Tem ainda uma irmã,
já casada e com filhos, que mora em Diadema, e um irmão que mora no Recife, de onde
migraram seus pais.
No pequeno contato que tivemos com Rildo fora da escola, ele se mostrou bastante
carinhoso com seus familiares, da mesma forma como se apresentava no grupo, onde
gostava muito de desenhar e suas produções eram criativas, adaptando o material
conforme suas necessidades.
Na primeira vez que fomos à COHAB, a casa de Rildo se destacava muito das demais.
Não pelo quarto-sala com a cama de casal e o beliche, onde sete dormem, sete comem,
passam o tempo, mas pela descrição que vizinhos faziam: “É urna casa com muro alto,
portão alto e bastante caco de vidro no muro”. A primeira impressão a respeito da casa
foi a de uma espécie de presídio, com seu muro mais alto do que o de todas as casas
vizinhas, o portão vermelho de ferro que não deixava nenhuma fresta onde fosse
possível avistar o interior da casa, da mesma forma
173
que não era possível avistar a rua de dentro do pequeno quintal. Trancar-se dentro de
casa, erguer muros, não se aproximar dos vizinhos foram as formas que a família,
representada por Dª. Marlene, encontrou para tentar proteger-se da violência que
permeia a vida na pobreza. Mas os muros parecem não ser suficientes, já que a violência
e a marginalidade podem surgir dentro de casa, pois a miséria tem na ilegalidade uma de
suas alternativas. E é o que ocorre, através da figura do filho Romualdo...
“Aqui tem gente boa, mas a maior parte é ruim, nunca dá pra saber Porque o
Romualdo, ele confiou, ele tinha uns amigos que ele achou que eram legais. Mas
levaram ele prum caminho que ‘cê precisava ver! Foi só Deus pra tirar ele desse
caminho.(...) Ele passava o dia inteiro fumando maconha, cheirando cola, não queria
mais ir pra escola saiu da escola, parou... Foi pra rua, durmia na rua. Até roubá,
roubava. Ele brigava, apanhava da polícia, da polícia e de quem ele roubava. Eu pedia:
‘Romualdo, não faz isso!’ Não sabia se tinha raiva ou pena dele. Tinha vezes que ele
passava vários dia na rua e chegava todo cheio de sangue, todo machucado de ter
apanhado da polícia e com a roupa assim, de mendigo, toda estrupiada e suja. Até pedir
esmola ele já pediu “(Dª. Marlene).
...através do estigma de delinqüência que Rildo e Isabel carregam na escola...
“O Renato sim, é o tempo todo agitado, bagunceiro. Não é estranho, não fica uma hora
quieto e outra hora agitado. E sempre de um jeito. Não acho que é ele que rouba. O
Rildo sim, que tem unia cara de santinho” (professora de Rildo e Renato).
“A Isabel não é burra, sempre tirou nota azul, nunca nota vermelha, sempre foi ótima
aluna, uma das melhores, e elas (as inspetoras da escola) ficam enchendo o saco,
dizendo que ela é ladrona” (Dª. Marlene).
174
arbusto plantado por Renato, que insiste em crescer num canto de terra batida, um
cachorro e dois galos, dos quais Dª. Marlene diz não gostar porque “dão muito trabalho,
muito gasto”. “O Boião (cachorro) come carne, dá muita despesa”. Mas, em Outro
momento, quando nos conta a respeito de seu sonho (uma casa em Itanhaém, à beira da
praia, onde pudesse “criar uns bichos, cuidá duma horta”), acaba por explicitar do que
de fato não gosta: não é dos animais ou das plantas, mas da pobreza que faz com que
criá-los seja um sacrifício.
A Casa de Itanhaém surge como uma redenção: redenção da vida na COHAB,
redenção da vida no Recife...
175
Quando fala sobre a Casa de Itanhaém, Dª. Marlene parece perder- se no sonho, divaga
e conta como conseguirá realizá-lo: “Já tenho cano, tanque, pia. Tamo comprando
móvel novo pra casa, então os velho posso guardá pra casa de Itanhaém, invés de dar
pra vizinha de nove filhos. Dinheiro pra construir eu já tenho. Só que tamo pagando os
móveis novos, trocamo agora o som”. Dª. Marlene vê a Casa de Itanhaém pronta e nesse
momento parece esquecer-se que na casa da COHAB a comida é racionada e nem
geladeira tem.
Se o sonho da Casa de Itanhaém aparece como redenção para a família, a escolarização
dos filhos surge como promessa de um futuro um pouco melhor que o dos pais. Dª.
Marlene quer que os filhos “estudem pra poder trabalhar e se manter”, apesar do
sacrifício que é mantê-los estudando: há que se compr ar “mala, material, fardamento”.
Sr. Rildo traz o dinheiro para as despesas do dia-a -dia, Dª. Marlene arruma o dinheiro
para manter os filhos na escola (pública e gratuita...): “Tô fazendo uns bico desde já pra
conseguir o dinheiro (...) Tem muita mãe que tira os filho da escola, mas eu acho que
tem que ficá. A Isabel já quis sair da escola, ir trabalhá. Eu e o meu marido não
176
(8) Muitas vezes, nas falas de Dª. Marlene, a história de Romualdo parece se sobrepor à
história de Rildo. Na verdade, ao falar de Romualdo, D Marlene está contando a saga
escolar de todos os seus filhos,já que as marcas deixadas pelo percurso de Romualdo na
Escola Estadual também marcam, de forma decisiva, a vida escolar de Rildo, Renato,
Isabel e Misleine.
(9) Este dado permite formular a hipótese segundo a qual, nas escolas públicas, além do
estigma individual, ocorre com freqüência o que podemos chamar de “estigma
familiar”, que merece maior investigação.
177
Dª. Marlene percebe que os filhos que surgem nas conversas com a diretora, nas
reuniões de pais, nos bilhetes, não correspondem aos filhos com quem convive
diariamente. Revolta-se, fica indignada, mas é apenas com o “guarda que ganha um
salário que nem dá pra comprar comida” que consegue discutir. Fre nte às autoridades
escolares permanece calada, humilhada, e aconselha os filhos a fazerem o mesmo:
“Eu já falei com eles pra eles não se meterem. E assim ocorre com milhares de
brasileiros, que tomam seus direitos como favores e agradecem por “poderem” ficar na
fila do médico ou da matrícula.
Dª. Marlene não sabe ao certo as causas das reprovações dos filhos, mas desconfia que
a escola tenha ao menos um parcela da responsabilidade: “A Misleine repetiu só uma
vez. Eu não sei se foi culpa minha, que não dava tempo... que não ficava em cima para
ela fazer lição e ela era muito pequena, ou se foi a professora que não sabia ensinar
mesmo
A mãe, então, muda os filhos sucessivamente de escola (foi assim há dois anos, será
assim no próximo): “Vou mudá eles pr’uma escola em Pinheiros (....) vou botá eles
mais pra frente “. O duplo sentido da frase de D. Marlene revela o desejo desesperado
de que a mudança da escola dos filhos possa também “botá eles mais pra frente”, fazer
com que progridam na escola e na vida; esperança que se renova a cada mudança de
escola. Mas, assim como a Casa de Itanhaém, a escola “mais pra frente” vem se
mostrando inacessível à família de Rildo, aos moradores da COHAB, do Sem-Terra, do
Jardim.
Concluindo...
Depois da convivência com quatro crianças multi-repetentes, o que se apresentou para
nós foram crianças muito diferentes daquelas descritas pelas professoras: encontramos
crianças inteligentes, criativas, curiosas, ágeis, com capacidade reflexiva. Esses
resultados vêm a corroborar dados obtidos em pesquisas anteriores com outras crianças
e em outras unidades escolares (Patto, 1990; Machado, 1991; Freller, 1993). Se cada
uma dessas pesquisas qualitativas restringiu-se a um pequeno número de “estudos de
caso”, voltados para a especificidade de situações e de pessoas, e entendendo que essa
particularidade é
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reveladora do geral, a somatória dos resultados de todas elas vem a ratificar cada uma.
Em nosso estudo, encontramos: um Carlos capaz de exercer liderança, que se utiliza
freqüentemente de ironias, demonstrando sua capacidade reflexiva e inteligência. Nos
encontros lúdicos na escola era ele quem, muitas vezes, pontuava as falas, quem
gerenciava as brincadeiras;
• um Ricardo ágil, com boa coordenação motora, capaz de reproduzir em uma maquete
detalhes da escola onde estuda, o que mostra inteligência, boa memória e raciocínio
espacial; em seu grupo de amigos era o “chefe”, um amigo brincalhão, companheiro e
sorridente, diferente da imagem triste delineada por sua professora;
• uma Nivânia ágil, atenta, curiosa, além de muito carinhosa; desmente a fala de sua
professora de que teria um “lado meio esquizofrênico”;
• um Rildo cujos desenhos demonstram criatividade, um menino muito meigo e
carinhoso, o oposto da imagem ameaçadora que sua professora lhe atribuía: “Quando
chamo a atenção dele, pela mínima coisa, tem uma veia no pescoço que salta (...) Dá pra
ver nos desenhose na letra quando ele está nervoso”.
A presente pesquisa pôde registrar as implicações do fracasso escolar na subjetividade
das crianças reprovadas e de suas famílias, mostrando que tais implicações ultrapassam
as cadernetas escolares e os muros da escola.
Nas crianças, as conseqüências do fracasso escolar apareceram com maior ou menor
nitidez: Ricardo é quieto se comparado a seus amigos da rua; Carlos é desconfiado;
Rildo é muito mais tímido que seus irmãos, que não têm no currículo tantas
reprovações; Nívânia aparece quase sempre como uma figura triste. A auto-imagem de
todos é profundamente negativa: reconhecem-se enquanto “burros”, incapazes,
marginais, mas ainda conservam a vivacidade e o desejo do sucesso escolar...
O caso de Ricardo nos parece exemplar. Depois de quatro reprovações, qualquer erro
na escrita pode se tornar fatal: o líder admirado pela turma, aquele que ensina os colegas
a fazerem brinquedos de papel, dá lugar a um menino ridicularizado pelos mesmos
colegas, que não teria nada a ensinar. Depois de quatro reprovações perde-se o
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BIBLIOGRAFIA
BUARQUE DE HOLANDA, F. “Até o fim”. In: Chico Buarque, letra e música. São
Paulo, Cia. das Letras, 1989.
CARTA a uma professora, pelos rapazes da escola de Barbiana. Lisboa, Presença, 1982.
CHAUI, M.S. Cultura e democracia. São Paulo, Moderna, 1981.
FRELLER, CC. Crianças portadoras de queixa escolar: um enfoque Winnicotiano. São
Paulo, 1993. Dissertação de mestrado, Instituto de Psicologia da Universidade de São
Paulo.
LISPECTOR, C. A hora da estrela. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984.
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familiar e de estilo de vida em família que tem uma localização no tempo, no espaço e
em categorias sociais, mas esta ancoragem não é explicitada e tudo aparece como
natural.
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Entendo que, para abordar este tema, passamos obrigatoriamente por uma análise da
maternagem contemporânea, entendida no bojo de sua história.
Mulher e feminismo
É por demais conhecida a caracterização da questão do gênero na divisão tradicional
dos papéis, dentro do imaginário social das sociedades ocidentais: ao homem, o
universo do público, o trabalho remunerado, o papel de provedor econômico da família,
a racionalidade, a fibra. À mulher, o universo do privado, o trabalho não-remunerado do
lar, o cuidado com os filhos, a sensibilidade, a fragilidade.
O feminismo vem a subverter esta ordem. Legitima que a mulher exerça papéis antes
vistos como exclusivamente masculinos. Embora esta mudança venha de longe e
tenhamos mulheres pioneiras já nos tempos de nossas bisavós e mesmo antes,
observamos uma mudança de uma magnitude e extensão sem precedentes ocorrida da
última geração para a atual, principalmente se falarmos das camadas médias e altas da
população. A percepção da aceleração brutal desta mudança nos últimos tempos é
fundamental para nosso tema.
Nas camadas de baixo poder aquisitivo, existem diferenças, pois nestas as mulheres
sempre estiveram bem mais presentes no mercado de trabalho, já que as necessidades
econômicas sempre as pressionaram a obter remuneração. É fato conhecido que os
primeiros braços na nascente indústria paulistana eram femininos (e infantis); as
empregadas domésticas são uma categoria de trabalhadoras bastante antiga, existem
desde o fim da escravatura. No campo, as mulheres sempre estiveram presentes na
lavoura, basta ver qualquer ilustração de colheitas de café ou cana-de-açúcar para
constatá-lo. Mas esta presença sempre se deu apesar do que se passava no nível do
imaginário social, que reprovava e cobria de vergonha tal prática, ao invés de valorizá-
la, como passa a poder acontecer a partir do advento do feminismo.
A reorganização do universo do público, mormente do mundo do trabalho fora de casa,
não vem acompanhada de uma mudança que a corresponda tal e qual no universo do
privado, no lar e na família. A
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Filhos contemporâneos
Neste contexto, reinvenção é uma grande palavra. Reinventar a mulher, reinventar o
amor, reinventar a maternagem, reinventar os filhos. A educação para a autonomia
ganha novo significado e a relação mãe filho(s) assume muito mais um sentido de
parceria.
As idéias de fórmulas para orientar os filhos nos estudos e também na vida (se é que
fórmulas podem realmente ajudar, já que resvalam
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sempre para o genérico e simplista) vão hoje muito mais na seguinte direção:
-não faça por seu filho o que ele pode fazer sozinho;
-quando não for possível para ele, veja se pode fazer com ele, proporcionando-lhe
ocasião para que ele pense e descubra a lógica da coisa, para que se torne capaz de fazer
sozinho o quanto antes.
Enfim, prepare seu filho para ser capaz de “se virar” ao máximo, sem depender de
você, o que hoje é uma forma de amor, não de abandono.
Entendo que o boom do construtivismo nas instituições educativas tem muito a ver
com este modo de vida que supõe uma criança ativa e autônoma (o quanto se pode falar
em autonomia em se tratando de uma criança — como a própria palavra diz ).
Segundo seu autor mais conhecido, J. Piaget, a aprendizagem é um mecanismo de
adaptação do ser humano ao meio ambiente. Tem como finalidade última a preservação
da vida, O autor partiu da Biologia para estudar aquela que é a grande questão de sua
vasta obra: como é possível o conhecimento. Observa que o que caracteriza um ser vivo
(e conseqüentemente o diferencia de um ser inanimado) é a possibilidade de não ficar
simplesmente à mercê das características e mudanças do meio externo com o qual
interage. Modificando-o ou a si próprio em função dele, garante sua sobrevivência.
No caso do ser humano, o grande instrumento de adaptação é a inteligência. Na
interação com o meio, busca a coerência, a lógica que regula o que apreende dele, e é
assim que seu conhecimento e as estruturas de sua inteligência (as ferramentas do
pensar) são construídos.
Assim, o ser humano é essencialmente ativo e busca a autonomia na medida em que
vai tomando seus os conhecimentos e conceitos que permitem sua interação cada vez
mais independente com seu ambiente. Desta concepção resulta uma pedagogia que
estimula estas atitudes, privilegiando situações em que os alunos buscam por conta
própria a resolução de problemas, ao invés de acatar passivamente um conhecimento
que vem pronto. Deslocado do centro da aprendizagem, que agora se coloca no aluno-
sujeito, o professor assume o papel de mediador entre este aprendiz ativo e o universo
dos conteúdos escolares.
Enfim, o construtivismo dá legitimidade e trabalha na direção de desenvolver uma
atitude de busca de autonomia que vem ao encontro das necessidades dos novos tempos.
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Há que se dizer que estamos em pleno meio desta nova experiência e os tropeços são
muitos. Estão-se tornando comuns os relatos da produção de crianças tiranas e rebeldes,
desrespeitosas com relação aos mais velhos. Isto é voz corrente entre os pais e
professores. E de se pensar se esta parceria não tem perdido o horizonte de que há uma
diferenciação de papéis entre o adulto e a criança e que autonomia não é fazer o que se
quer (confusão natural para o pensamento egocêntrico característico da criança — não
no sentido moral, mas no evolutivo, como uma fase normal e necessária no
desenvolvimento do ser humano).
Considerações finais
Pensando nas escolas, é fundamental que estas possam adequar seus discursos aos
novos tempos, sob o risco de estarem desvalorizando as mães trabalhadoras diante de si
mesmas e de seus filhos, dentre outros riscos. Tenho trabalhado já há longos anos
(desde 1981) junto a escolas públicas, percebo que ainda é muito forte a presença do
discurso que tem como modelo subjacente a divisão tradicional de papéis entre homens
e mulheres, supondo uma mãe que não trabalha fora ou o faz meio-período, sempre
tendo o trabalho como secundário. Supõe ainda uma família estruturada com pai, mãe e
filhos que vivem juntos, considerando como desviantes indesejáveis os que não
obedecem a estes padrões.
Mitos como “mães que não respondem adequadamente às convocações da escola
(reuniões gerais e particulares, encaminhamentos) = mães desinteressadas”, ou “pais
separados = família desestruturada = problemas psicológicos” povoam o universo
escolar.
Entendo que estes, assim como muitos outros que vêm sendo apontados na literatura
especializada (Patto, 1990 e Souza et al.,1994), como “criança pobre é desnutrida, por
isso não aprende”, “crianças pobres têm déficit cognitivo” etc., fazem parte de um
arsenal imaginário que vem culpar as crianças pobres e suas famílias pelo fracasso
escolar, lançando uma cortina de fumaça sobre os fatores de outra natureza que vêm a
determiná-lo, tais como o sistemático uso eleitoreiro da questão da Educação no país e
efetivo abandono político e econômico das
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BIBLIOGRAFIA
BRINGUIER, J.C. Conversando com Jean Piaget. Rio de Janeiro, Difel, 1978.
BRUSCHINI, M.C.A. “Mulher e trabalho: engenheira, enfermeiras e professoras”. In:
Cadernos de Pesquisa n. 27, pp.5-17 1978.
KARTCHEVSKYBULPORT A. et ai. O sexo do trabalho. Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1987.
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