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Amora - Crítica UFAM
Amora - Crítica UFAM
Amora - Crítica UFAM
RESUMO: Neste artigo, propõe-se traçar e analisar o percurso de vivência lésbica em três contos
do livro Amora (2015), de Natalia Borges Polesso, dando ênfase às fases de descoberta, aceitação
e exploração da afetividade lésbica. Pretende-se refletir a respeito da representação contemporânea
da homossexualidade das mulheres na literatura e da afetividade lésbica por meio das personagens
dos contos “Minha prima está na cidade”, “Como te extraño, Clara” e “Amora”, que nomeia o livro.
Atrelado a isso, discute-se sobre o modo de narrar da escritora e o seu espaço no âmbito literário.
Para tanto, emprega-se como aporte teórico as discussões teóricas de Judith Butler, Michel
Foucault, bem como os estudos de Tania Navarro-Swain e de Lúcia Facco.
ABSTRACT: In this article, we propose to outline and analyze the path of lesbian experience in three
tales of the Book Amora (2015), by Natalia Borges Polesso, emphasizing the phases of discovery,
acceptance and exploitation of lesbian affectivity. It intends to reflect on the contemporary
representation of women's homosexuality in literature and lesbian affectivity through the characters
of the tales “Minha prima está na cidade”, “Como te extraño, Clara” e “Amora”, which names the
book. Tied to this, it discusses the way of narrating the writer and her space in the literary realm. To
this end, it employs as theoretical input the theoretical discussions of Judith Butler, Michel Foucault,
as well as the studies of Tania Navarro-Swain and Lúcia Facco.
“Grandes e sumarentas” como a indicar o caráter estético dos contos cuja constituição é
marcada por narrativas um pouco mais longas em contraposição à segunda parte, denominada
“Pequenas e ácidas”, cuja estrutura é perfeitamente em tom de reflexão filosófica-existencial,
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composta por textos mais curtos e profundos. Ao todo, são trinta e três textos que dão corpo à
coletânea.
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Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras – Estudos Literários da Universidade Federal do
Amazonas (UFAM). Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Literaturas de Língua Portuguesa
(GEPELIP), bolsista CAPES, e-mail: aleite.kal@gmail.com.
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Professora Doutora do curso de Letras – Língua e Literatura Portuguesa e do Programa de Pós-Graduação
em Letras – Estudos Literários da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Líder do Grupo de Estudos e
Pesquisas em Literaturas de Língua Portuguesa (GEPELIP), e-mail: ritapsocorro@gmail.com
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Termo usado por Tania Navarro-Swain no livro O que é o Lesbianismo (2004) para se referir às relações
amorosas, sexuais, afetivas entre mulheres (NAVARRO-SWAIN, 2004, p. 18-19) e que será empregado neste
estudo.
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As relações homoeróticas definem-se com base nas práticas sexuais entre mulheres, neste caso, na literatura
brasileira, tal como aponta o estudo realizado por Lúcia Facco (2004, p. 64).
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O termo afetividade lésbica neste artigo diz respeito ao amor, à sexualidade e à emoção das mulheres lésbicas
em seus relacionamentos.
Por trás dessa atitude da personagem há uma série de questões que podem ser
levantadas, principalmente, as inerentes ao modo como a sociedade se configura e à forma
como as relações lésbicas foram e ainda são vistas. Podemos começar com o que nos fala
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Michel Foucault, em História da sexualidade I (1988), sobre a relação entre sexo e poder que
se constitui como um modo de repressão. Isto é, o poder regula a sexualidade humana a partir
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Eduardo. Além disso, Fernanda tem medo de sair da sua zona de conforto construída com base
no casamento com Eduardo e na criação do filho, Rafael. Por isso, seu relacionamento com
Fernanda pensa no que faria sem Eduardo, no que faria com Rafael. Pensa onde
todas as coisas organizadas de sua vida iriam parar, caso tivesse um novo
caminho. Logo depois, pensa que talvez esteja se precipitando, não sabe direito
o que acontece, se Clara quer realmente fazer aquilo que diz. Pensa se ela mesma
quer assumir outro papel naquela peça ridícula que vive até ali. E diz em voz baixa
como te extraño, Clara. Porque tudo está mesmo estranho e escuro naquela
talvez possibilidade tão pequena de mudar de vida, tão farelenta, como seus
ossos depois da batida. Não sabe muito bem como funcionariam as coisas, todas
essas coisas novas, perigosas e atraentes que se apresentavam a ela (POLESSO,
2015, p. 128).
Por isso, há uma quinta-feira estranha, cujo tempo tempestuoso espelha esta
estranheza, que precede a mudança de rumo da vida de Fernanda e Clara, anunciando uma
possibilidade de liberdade para viverem o seu relacionamento, como anuncia Fernanda: “Agora,
é isso. Nós duas. Eu, parte quebrada, tu com essa cara de susto... E o guri” (POLESSO, 2015,
p. 129). Ao que Clara reage com emoção e intensidade. Depois disso, haverá apenas Fernanda,
Clara e Rafael em um novo caminho.
Da mesma forma, é o estranho e bonito gesto de estarem de mãos dadas que
despertará em Amora o seu desejo e amor por Angélica durante uma partida de torneio de
xadrez. As duas garotas se apaixonam uma pela outra antes mesmo de notarem suas emoções
e seus sentimentos. A beleza do conto “Amora” se revela profundamente na forma como o amor
de Amora por Angélica acontece de forma tranquila e é aceito com naturalidade por ambas.
Ora, não é de outra forma que devem ser considerados os diferentes amores existentes entre
homens e mulheres, com naturalidade. Em outras palavras, o amor entre ambas é legítimo. É
sublime o gesto de amor uma pela outra na medida em que ser e saber-se amada é a maior
medalha de Amora:
coisa mais brega, dita depois, que fez Amora entender: Você é quase toda amor
(POLESSO, 2015, p. 156).
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Pelo que o conto nos permite inferir, Amora está na adolescência. Este é um fator muito
importante para notarmos que a narrativa do conto acontece baseada no ritmo das emoções e
Amora foi idealizado no interior de uma escolha que é política, porque se faz
fundamental para mim como autora e leitora e que cumpre a função de expor
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O jogo da autora é não propor identificações simples: não é apenas uma literatura
para lésbicas. É uma literatura sobre sujeitos lésbicos que existem em uma
sociedade que valoriza e protege apenas a heterossexualidade, Natalia, como
escritora lésbica assumida, não se propõe a pensar o seu “si mesmo” como uma
reflexão existencial. Não há nada errado ou qualquer insatisfação dela com a
própria sexualidade, ao contrário, ela se posiciona como sujeito a partir desse
lugar. O que ela sim, pretende, é narrar um si mesmo que o tempo todo está
colocado pela sociedade patriarcal na posição inferior em relação a um outro
(BRITTO, 2018, p. 107).
É, por isso, que os contos de Amora tanto tematicamente como esteticamente pedem
o posicionamento e o envolvimento do leitor na medida em que sua existência é posta em
relação profunda com a de personagens que vivem seus amores proibidos e contestados pela
sociedade.
O ponto central de diferenciação da escrita de Natalia Borges Polesso para a escrita de
livros como O poço da solidão (1928), de Radclyffe Hall, consiste no modo de narrar suas
personagens lésbicas. Embora o livro de Hall tenha sido considerado a Bíblia do lesbianismo e
tenha proporcionado visibilidade para relações sexuais entre mulheres, ainda que tenha sido
julgado e condenado (FACCO, 2003, p. 56-58), descreve um final trágico em que Stephen
precisa abdicar de Mary para que ela tenha uma vida normal se casando com um homem. Ao
passo que na coletânea de Polesso, não cabe aqui o fim trágico da lésbica que era obrigada a
pagar por manter relações sexuais com mulheres. O que há, de fato, é a narração da vida das
amoras e de seus amores, sem a intromissão de destinos cruéis e estigmatizados considerados,
durante muito tempo, como modelos de escrita, já que a maior parte da literatura era produzida
por homens, o que fundamenta os estereótipos acerca das personagens lésbicas e de seus
relacionamentos, posto que, em sua visão machista e heteronormativa, esses escritores não
concebiam como real o amor entre duas mulheres para além do destino repulsivo de servir ao
masculino, partindo disso, claramente, a negação da legitimidade da sexualidade lésbica.
Contrapondo esse cenário, as personagens lésbicas de Natalia Borges Polesso trazem
a possibilidade de reconhecimento para muitas leitoras lésbicas e leitores em geral que irão
conhecer o universo narrativo de suas personagens, enquanto este permite a visão de uma vida
em que as lésbicas são livres para viver o amor e se sentirem felizes por vislumbrarem um futuro
no qual o relacionamento entre duas mulheres pode ter um final feliz, como no romance Carol
(1953), de Patricia Highsmith, primeiro livro nos Estados Unidos a retratar personagens lésbicas
que tiveram um final feliz, na medida em que houve a possibilidade de elas construírem uma
vida juntas.
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Isso nos leva a pensar sobre a questão do espaço na literatura cujo debate é recente,
visto que, de acordo com Regina Dalcastagnè, “os estudos literários (e o próprio fazer literário)
Página
vivência lésbica pautado nas fases de descoberta, aceitação e vivência da afetividade lésbica,
não teve o intuito de ser redutora nem de limitar a vivência das personagens lésbicas para que
se coadunassem às fases propostas, mas buscou traçar um norte para a realização da análise
Página
das narrativas.
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Esse termo é usado por Natalia Borges Polesso no artigo Geografias lésbicas: literatura e gênero. Revista
Criação & Crítica, n. 20, 2018, p. 3-19. Disponível em:<https://doi.org/10.11606/issn.1984-1124.v0i20p3-19>
Acesso em: 5 jan. 2019.
Enviado em 10-05-19
Aceito em 02-09-19
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